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Filosofia e Linguagem Filosofia | UNISUAM

FILOSOFIA E
LINGUAGEM
Objetivo do estudo
- Nesta Unidade, vamos esclarecer alguns pontos sobre
determinadas posições adotadas por filósofos sobre a
linguagem; discutir a Filosofia desde o seu surgimento, e
que não é simples entendimento, pois envolve de diferentes
modos muitas outras questões.

INTRODUÇÃO:
Você está iniciando uma nova etapa de seus estudos de
Filosofia. O trajeto que você já percorreu até aqui, na disciplina,
foi muito bem traçado! Isso te credencia a estudar esta
Unidade, que, com toda a certeza, te exigirá muita atenção.

Tenha um ótimo estudo!

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3 T1 O que pode a linguagem?


O ser humano é o único ser que diz. Ou seja, é o único ser que se expressa de muitas
maneiras além da produção de palavras comunicadas através de sons vocais e símbolos de
variadas naturezas. À multiplicidade de formas de comunicação desenvolvida pelo homem
em sua história e na singularidade de cada cultura dá-se o nome de linguagem.

Saiba mAIS
No site da Revista Signum você poderá ler
muitos estudos sobre a temática em questão.

http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/
signum

Aristóteles, filósofo grego que já estudamos em alguns


momentos, afirmou que o homem é um animal racional e é,
também, um animal social. A realização das necessidades
humanas em função do existir é, portanto, relacional. Não
dá para ser sem o outro. Evidentemente, daqui nasce uma
grande questão de necessidade de se comunicar. E essa
dimensão relacional do existir humano envolve todo o
contexto de realidade, imediatamente chamada natureza,
sociedade etc. No grande esforço de conviver com todas
essas mesmas realidades e principalmente com os demais
seres humanos, o homem desenvolveu a linguagem.

Num primeiro momento, a linguagem se caracteriza por essa


questão imediata: a grande necessidade de comunicação do
homem com o meio e os outros com os quais deve existir
em função da grande necessidade de se situar no mundo
como pessoa, isto é, tendo consciência do seu contexto
de existência e ao mesmo tempo resguardando-se na sua
condição de poder ser humano.

http://linguaportuguesa.uol.com.br/linguaportuguesa/
gramatica-ortografia/28/imagens/i257303.jpg

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Antes de preocupar-se com o que se pode fazer ou alcançar com a linguagem, seria
interessante saber o que ela é, embora a questão da utilidade não possa ser ignorada.

“A linguagem é um sistema de signos ou sinais usados para indicar coisas,


para a comunicação entre pessoas e para a expressão de ideias, valores
e sentimentos” (Chauí, 1997, p. 141).

Signo é algo que pode estar no lugar de outra coisa e representá-la sob
algum aspecto (Chauí, 1997).

Por exemplo, apresentar-se com a cabeça baixa pode ser expressão de humildade ou
humilhação pela qual alguém esteja passando em determinado momento de sua vida.
Daí a linguagem apresentar uma função denotativa, pela qual é capaz de indicar coisas,
interpretações e definições.

O uso das palavras, por exemplo, apresenta essa função


denotativa (emprego de palavras no seu sentido próprio).
Pode também apresentar uma função conotativa (sentido
Saiba mAIS referencial, literal, cada palavra remete a inúmeros outros
sentidos), pela qual a linguagem pode expressar sentidos ou
significados diferenciados, de acordo com a visão de quem
Para você recordar a denotação e a
conotação, leia a seguinte aula: a exerce ou do contexto no qual ela é exercida.

http://www.soportugues.com.br/secoes/estil/ Por exemplo: a expressão “martelar os ouvidos” pode indicar


estil1.php um sentido denotativo de pedir para alguém parar de ficar
falando alguma coisa repetidamente:

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Ainda sobre o conhecimento do que é a linguagem, desde a Antiguidade grega, sua origem
é concebida a partir de dois pontos de vista.

• Primeiro, o surgimento da linguagem é atribuído a uma causa natural, recebida


de uma divindade.

• Segundo, originada pela ação do próprio homem, que mediante uma convenção
poderia ter inventado um ou outro termo para designar as coisas.

Possibilitar
Nesse segundo caso, a linguagem se torna arbitrária, pois os homens
que criam a linguagem e, talvez, nesse caso, esteja a explicação para
a diferenciação das várias línguas. Nesse contexto, a linguagem surgiu

ao homem a quando o homem começa a imitar, pela voz, os sons da natureza


(onomatopeia). Também teria surgido quando o homem, através de gestos,
procura interpretar as coisas à sua volta, colocando depois os sons naquilo

comunicação que já mostrava através de suas expressões corporais.

Ao desejo de satisfação das necessidades humanas também é atribuída

com o meio a origem da linguagem, já que o ser humano teria criado um vocabulário
rudimentar a partir de sons expressos nas várias situações de busca da

onde vive e
sobrevivência e que depois teria se tornado mais complexo. Nesse sentido,
a origem da língua também poderia estar atrelada a sons colocados na
maneira de o homem reagir emocionalmente em relação às várias situações

situá-lo em
da vida – medo, prazer etc (Rousseau, 1997).

De certo modo, a função da linguagem já está presente em sua definição:

sua existência De forma um tanto mais didática e fazendo aprofundamento, destacaríamos


essas funções na tabela a seguir, como:

no mundo. Possibilitar ao homem a comunicação com o meio onde vive e situá-lo


em sua existência no mundo.

Função descritiva Função comunicativa Função de valor existencial

Pela função descritiva , ao fazer uso da Pela função comunicativa, ao fazer uso Pela função de valor existencial, quando
linguaguem o ser humano denota, descreve da linguaguem, o homem, além da sua o ser humano faz uso da linguaguem,
de modo real o que uma coisa é, no alcance de dimensão cognoscitiva, de conhecimento, além da função descritiva e comunicativa,
sua verdade. Essa função foi muito buscada desenvolve também sua capacidade de descrevendo objetos ou comunicando
pela corrente filosófica neopositivista e pela ser presença diante do outro e acolher o sentimentos, ela surge com a possibilidade
filosofia analítica, colocando a linguaguem outro como presença diante de si (Mondin, de comunicar aos outros sua existência.
da ciência como a linguaguem primordial 1980, p.42), tanto em sentido positivo como A palavra dá um significado mais exato
e verdadeira do homem, desvalorizando negativo. A linguaguem, portanto, permite ao às expressoes de existência e a seus
outras formas de linguaguem - como a ser humano que se abra diante da realidade, significados. O ser humano desenvolve
artística, por exemplo. Wittgenstein defende que saia do invólucro do próprio eu e chegue sons específicos e até palavras próprias,
essa posição em sua obra Tractatus Logico a possibilidade de existência do outro, como os ditos palavrões, com os quais comunica
Philosophicus; essa posição foi contestada confirmção ou negação do seu existir. Nesse de modo mais exato e real uma atitude de
por outros filósofos, que, na esteira de sentido, a linguaguem pode até desenvolver agrado ou desagrado em relaçao a um fato
Kant, mostraram que existem dimensões da uma realidade ambígua, pois a confirmação de existência, no sentido da afirmação ou da
realidade que estão além da possibilidade de de si pode não ser necessariamente a sua negação, de modo imediato, independente
compreenssão da razão científica, de base verdade, e a negação de si pode não ser de uma análise cognitiva desse mesmo fato.
lógico-matemática. a sua falsidade. Mas, independentemente
desses resultados, a linguaguem tem grande
valor de não permitir que o ser humano esteja
alheio as coisas e aos outros que o circunda.
A ambiguidade da linguaguem sempre esteve
presente nos grandes questionamentos sobre
a busca da verdade desde os sofistas, e com
Sócrates, Platão, Santo Agostinho, Descartes
até os dias de hoje.

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A contribuição grega dos sofistas

A Filosofia nasceu na antiga Grécia com o propósito de buscar um fundamento que pudesse
resolver a questão do caos da realidade, tido como aparente, e situar o homem em relação
ao mundo onde vive. Foi a busca pelo famoso princípio primeiro (arqué) da realidade; a
busca de um universal a partir do qual tudo pudesse ser explicado e resolver o problema do
absurdo gerado pelo caos: uma justificativa de existência.

Um pouco mais tarde, a partir de Sócrates, essa questão tornou-se, em sentido mais
estritamente filosófico, a busca da sabedoria pela busca da verdade, descrita como absoluta
na demonstração filosófica socrática e perseguida tenaz e metodologicamente pela maiêutica
(diálogo irônico entre o mestre e o discípulo – já estudamos sobre a maiêutica no tópico 3
– “As formas de conhecer o mundo”, constante na unidade II, Filosofia e conhecimento); a
busca da sabedoria através de um diálogo crítico sobre as aparentes e “falsas verdades”.

você já leu isso no tópico 3 - página 18 - Un2

relembre
Anteriormente ao posicionamento de Sócrates, os sofistas estavam presentes na cultura
grega. Eram homens que desenvolveram habilmente a capacidade de uso da razão de modo
instrumental, isto é, com o objetivo de realizar determinados interesses. Eram capazes de
usar a razão independentemente do compromisso de busca da verdade no sentido socrático,
mas sim no desenvolvimento de uma atitude prático-utilitarista:

Prático no sentido do imediatismo e utilitarista no sentido de tirar proveito imediato da


capacidade humana de argumentar no uso correto da linguagem, sabendo organizar e
expressar pela fala os pensamentos, convencendo sempre alguém sobre algo.

Os sofistas, embora criticados por essa atitude, não podem ser desprezados como pessoas
de cultura que foram, capazes de desenvolver o uso da razão no exercício da linguagem.
Interessante é que, na elaboração de sofismas (argumento com aparência lógica correta e
conteúdo falso), os sofistas já antecipavam o uso da estrutura da razão (lógica) na construção
de demonstrações sobre aquilo que se queria mostrar anteriormente no Organum (obra
em que Aristóteles mostrou o conhecimento sobre a estrutura da razão: a lógica). De certo
modo, está aí presente um grande valor humano de uso da linguagem como possibilidade
de produção e comunicação de conhecimento, embora independente das conclusões a que
se pudesse ter chegado.

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A finalidade sofística
Os sofistas operam uma importante revolução espiritual
no homem grego, deslocando o eixo da reflexão filosófica
da physys e do cosmos para o homem e para aquilo que
conceme a vida do homem como membro de uma sociedade.

Seus temas preponderantes são a ética, a política, a retórica,


INÍCIO DO
a arte, a linguagem, a religião e a educação.
PERÍODO
Há três grupos de sofistas: 1) o primeiro grupo de sofistas
tem o reconhecimento de platão por serem dignos do ponto
HUMANISTA
de vista moral, por terem justamente uma rígida moral; 2) os
“erísticos”, que perderam o apego moral e levam o aspecto
formal do método a esxasperação, perdendo interesse pelo
conteúdo; 3) os “políticos-sofistas”, são ideólogos, usam
suas ideias com finalidades políticas.

importantes aspéctos sofística

1) Os sofistas visavamobjetivos práticos - com os sofistas,o


problemas educacional emerge para o primeiro plano e
assume um novo significado. Afirmavam que o areté, isto é,
a virtude, funda-se no saber.

2) Mostravam uma grande confiança no uso da razão.

3) realmente os sofistas exigiam pagamento por seus


ensinamentos. Para os antigos, isso era um escândalo, pois
assim, apenas os aristocratas poderia ter a possibilidade de
uma melhor educação.

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A reabilitação contemporânea dessa modalidade de discurso

A atitude sofista no uso da linguagem, mais tarde reforçada por Aristóteles, influenciou
largamente a cultura ocidental. O ser humano passou, já a partir de Sócrates e na sequência de
toda a filosofia e, mais tarde, da ciência, a usar a capacidade humana de pensar com ordem,
com lógica, na desafiante missão do uso da linguagem para a construção do conhecimento
e consequente busca do que poderia ser “o verdadeiro”.

Na tradição cultural do Ocidente, o desenvolvimento da filosofia praticamente até o século


XIX tornou-se acentuadamente marcado com forte racionalismo, cujo ápice se realiza na
visão de mundo hegeliana:

“A razão idealisticamente se projeta como espírito absoluto guiando todo o


processo histórico de realização da humanidade” (Hegel, 1985).

“A razão
A linguagem da ciência, por sua vez, junto com o sucesso
cultural, ao qual se agrega o sucesso econômico da produção
de bens e serviços na atividade socioeconômica pelo

idealisticamente desenvolvimento tecnológico, se impõe de modo imediato


como o exercício humano da capacidade de comunicação
pela linguagem de modo acentuadamente utilitarista.

se projeta como Além disso, a ciência se torna presença marcante e


preponderante na cultura, ditando uma forma de expressão –

espírito absoluto e, portanto linguagem – a partir da onipotência da objetividade


científica, presumidamente tida como realização antiga de

guiando todo o
um grande anseio da humanidade que vem desde a Grécia
antiga, em que o ser humano quer ter um posicionamento de
segurança e certeza diante do aparente caos da realidade.

processo histórico A linguagem, nas suas vertentes de língua, fala (dizer) e


palavra, e mais ainda como expressão existencial total, se

de realização afirma na perspectiva instrumental de condição de produção


para a satisfação de necessidades imediatas, obscurecendo
a visão mais total de realização existencial. Aí surge a

da humanidade” linguagem da exatidão, do fundamento lógico-matemático,


da determinação da objetividade e da certeza do homem
como dominador da realidade e de si mesmo.

(Hegel, 1985). A linguagem se acentua de forma cada vez mais instrumental,


e, como na própria ideia do que é um instrumento, passa a
ter valor e justificativa de existência a partir de determinada
função. A linguagem se torna rigorosa, técnica. Talvez aqui
pudéssemos, entre tantos exemplos, admitir a possibilidade
de exercício de:

aprofundando Uma linguagem tecnicamente jurídica, que não fosse humana,


uma linguagem econômica em que a questão humana não é
Estudaremos mais sobre o espírito absoluto discutida, uma linguagem política em que a questão humana
de Hegel no tópico 2, “Tópicos sobre o não fosse contemplada, uma linguagem pedagógica em que
pensamento político moderno”, constante na o ser humano não conta...
unidade IV- Filosofia e Política.

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Essa atitude instrumental atribuída à linguagem se impõe na cultura ocidental. Vários


pensadores se posicionam na busca de entendimento dessa característica emergente no
exercício da linguagem, seja para entendê-la e corroborá-la, seja para criticamente refutá-la
ou simplesmente colocá-la em seus devidos limites.

Terminamos nosso primeiro tópico. A partir do próximo tópico, deve-se começar a aprofundar
mais a temática.

Então, vamos estudar!

A linguagem vista como instrumento:


as propostas de Nietzsche, Dewey e
Wittgenstein
T2 Os sofistas, como conferiu-se, amplamente criticados na tradição filosófica ocidental devido
ao desenvolvimento de uma racionalidade filosófica prático-utilitarista e consequente
relativização da verdade, foram também reconhecidos, talvez por uma minoria, pelo seu
valor filosófico, resgatando a filosofia de uma discussão cosmológica, trazendo-a para um
debate que envolve o homem, como objeto primordial, precisamente na questão do uso da
linguagem, na capacidade de conhecimento desenvolvida livremente diante de uma proposta
de verdade não mais universalizada (Sciacca, 1968, p. 38).

Os sofistas conduzem a filosofia para a discussão sobre o uso instrumental da linguagem


diante do grande desafio do ser humano em se situar diante da realidade na qual existe. Outros
pensadores, no desenvolvimento da história da filosofia, irão se debruçar sobre essa questão.
A partir disto, podem ser destacados os pensamentos de Nietzsche, Dewey e Wittgenstein.

No contexto de uma produção filosófica que se estabeleceu com um posicionamento


considerado anticultural, Nietzsche aciona sua metralhadora giratória na construção de uma
crítica que se poderia considerar holística na direção da cultura ocidental. Os fundamentos
dessa cultura são questionados. Sua posição antirracionalista abala praticamente todas as
possíveis compreensões da realidade. Nessa esteira, são questionadas: a religião, a arte,
a política, a educação e, de forma estritamente filosófica, a construção de uma metafísica
racionalista. Dentro desse posicionamento crítico, Nietzsche se posiciona reavaliando a
dimensão instrumental da linguagem.
Friedrich Nietzsche
– 1844-1900

Sobre a metafísica: Na tradição clássica (grega), a metafísica


é a parte mais central da filosofia, a ontologia (doutrina que
estuda o Ser) geral, que procura entender o ser enquanto

Saiba mAIS ser. A metafísica define-se assim como filosofia primeira,


como ponto de partida da filosofia ao passo que examina
os princípios e causas primeiras da realidade. Por isso,
Para entender melhor sobre o holismo, leia se constitui como doutrina do ser em geral, e não de suas
o seguinte site: determinações particulares; inclui ainda a doutrina do Ser
Divino ou do Ser Supremo – no nosso caso, em Platão, as
http://www.infoescola.com/filosofia/holismo-
holistico/ Ideias/Formas.

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Para Nietzsche, a linguagem não revela, como a tradição


filosófica supunha, o mundo de forma real, naquilo que
realmente é (Scribd, 2010). A linguagem, na emaranhada
estrutura composta de signos e sinais conduzida pelas regras
da gramática e estruturação lógica, pela racionalização,
falseia ou esconde a autêntica realidade, muitas vezes,
se não sempre, em função da imposição do poder de
uns sobre os outros na realidade social (Scribd, 2010).
Em sentido instrumental, o homem, pela sua condição de
possuir códigos, signos e de moldar significados, é capaz
de produzir e acumular conhecimentos com os quais
exerce o convencimento, impondo-se pela aquisição de
pseudoverdades no exercício do poder.

A linguagem socializada e rigorosamente estruturada no uso


aprofundando da gramática estabelece uma lógica entre o sujeito que se
comunica e o predicado que é comunicado, o que impede
o ser humano de poder expressar o que realmente sente
O posicionamento de Nietzsche em relação
à linguagem não significa que a dimensão de na percepção da realidade (Scribd, 2010). Essa lógica,
instrumentalidade que a linguagem carrega no fundo, é a lógica do poder. É a lógica da dominação.
seja desprezada ou não reconhecida. A É a lógica do forte que faz sucumbir o fraco. Certamente
linguagem é e deve ser instrumental, mas não Nietzsche, se vivesse em nosso tempo, muito mais do que
pode ser considerada, como foi mostrado, na
no seu, ficaria horrorizado com a grande investida do mundo
determinação única e determinante do seu uso,
embora nem sempre consciente, já que é um da mídia na condução da sociedade, na linha do consumismo
dado cultural, de geração da subserviência e da submissão política à imposição do poder – que hoje se
do que pode mais em detrimento do que pode estabelece não de modo regional, mas de forma globalizada.
menos. A linguagem tem que ser resgatada
não somente na instrumentalidade; precisamos
A partir do contexto do pragmatismo, corrente filosófica da
saber fazer uso da linguagem, mas nela
mesma, das determinações que a cultura qual é um dos expoentes, e pela sua grande dedicação
ocidental racionalista a atrela ao jogo do poder. em pensar a educação a partir desse ponto de vista,
Dewey desenvolve uma concepção instrumentalista da
linguagem dentro dessas influências. Vendo a educação pela
perspectiva pragmática, centra o grande valor da atividade
educativa na ação. Para ele, a educação não tem fim (Garcia,
1977, p. 27), como era concebida de forma tradicional.

Saiba mAIS
Para entender melhor a corrente filosófica
pragmatista, pesquise no seguinte site:

http://www.pucsp.br/pragmatismo/

John Dewey – 1859-1952

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Na educação, o que vale é o processo de sua construção. Portanto, os indivíduos da


educação, no caso, o educador e o educando, estariam livres para construir uma proposta
de educação independente de algo que, lá na frente, estaria orientando-a e, mais do que
isso, determinando-a. O resultado do processo seria aquilo que fosse construído. Este seria
o grande desafio da educação:

Encontrar a forma da ação que levasse à construção do melhor fim.

Encontrar a
A partir daí, pragmaticamente, os chamados meios
da educação passam a ser valorizados a partir
de si mesmos. Como no pragmatismo os fins
justificam os meios, pois somente é verdadeiro

forma da ação
o que é útil e que dá resultado, a concepção da
educação concentra-se na ação, como a famosa
expressão “aprender fazendo”.

que levasse
Ora, nesse contexto o uso da linguagem, observada
a partir dessa perspectiva pragmático-pedagógica,
se apresenta de modo fortemente instrumental.
Segundo Dewey, “o conhecimento não é mais
do que atividade dirigida e parte funcional da

à construção experiência” (Dewey, 1983). O que deve ser


conhecido é aquilo que trará resultados práticos
e possivelmente de modo imediato, sem outra
determinação além desta: como diz o próprio

do melhor fim.
Dewey, na atividade inteligente nas ciências
naturais, a atividade moral do homem não é dirigida
por uma “prévia ideia do bem” (Dewey, 1983).

Vendo a atividade educativa dessa forma, a linguagem passa a ser entendida por
Dewey como ampliadora da experiência: sua função é descrever a experiência, ser
sua representante. Mas a criatividade continua centrada na ação. A linguagem como
representação se torna ampliadora da experiência. A palavra evoca o conjunto de
experiências já significativas que um indivíduo outrora já tenha vivido. A experiência
é ampliada por um processo de reconstrução imaginativa e, graças a essa função
ampliadora, a linguagem se torna o “instrumento” por excelência da educação
(Dewey, 1978, p. 23-24).

A linguagem dá nome às experiências progressivamente acumuladas. Nessa concepção,


que parte da inspiração educativa e pragmática para o ser humano, em Dewey poder-
se-ia talvez afirmar que a linguagem, como instrumento, teria a grande importância
de relatar, do modo mais fiel possível, o acúmulo de vivências e experiências geradas
na ação humana, que poderia remeter ao seu dia a dia e, quem sabe, à sua atividade
acadêmica e à atividade produtiva, na linha imediata de resolução de problemas
humanos, contribuindo não só para ser a relatora e memória desse processo, com
principalmente a condição instrumental em seu constante aprimoramento.

Vendo a questão da linguagem como outra atividade humana, a partir da cultura, talvez
perguntássemos por que a filosofia, no final do século XIX e início do século XX se preocupou
bastante com a questão da linguagem. Talvez pudéssemos responder também perguntando:

Por que a filosofia do começo da modernidade se preocupava tanto com a questão do


conhecimento?

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Na filosofia moderna inicial, começando com Descartes (já estudado no tópico 5 – “O


desdobramento do empirismo e do racionalismo no interior da Revolução Científica no século
XVII”, constante na unidade II, Filosofia e conhecimento) poder-se-ia dizer que na critica à
filosofia tradicional, buscava-se uma nova forma de filosofia que pudesse levar o homem à
resolução imediata de seus problemas. Bacon, estudado na mesmo unidade que Descartes,
já dizia: saber é poder; sabe-se hoje que, na busca desenfreada pela nova filosofia, a
cultura acabou desenvolvendo uma nova forma de conhecimento: a ciência moderna, hoje
amplamente produzida e difundida a partir de uma linguagem de base lógico-matemática.

você já leu isso no tópico 5 - página 26 - Un2

relembre
Assim como determinações culturais provocaram a nova forma de o homem conhecer o
mundo em que existia, não muito tardiamente, a cultura levanta a questão de descobrir de
forma proposicional a linguagem adequada e competente para traduzir essa nova forma de
conhecer a realidade do mundo e do homem.

Essa foi a primeira preocupação do filósofo austríaco Wittgenstein: como encontrar e


desenvolver uma forma de linguagem que pudesse objetivamente comunicar essa nova forma
de conhecer, influenciado, claro, pelo objetivismo cientificista, já concebido pelo positivismo de
Auguste Comte, que afirmava que, pelo conhecimento da ciência, o homem já teria chegado
ao patamar mais alto como condição de
compreensão da verdade.

Wittgenstein, então, sugere a existência


de um paralelismo entre o mundo dos
fatos reais e as estruturas, a linguagem.
Na construção da linguagem verdadeira,
as sentenças teriam a forma da realidade
que afiguram. É como se o ser humano,
no uso instrumental da linguagem,
pela construção e encadeamento
lógico das sentenças, fosse capaz de
produzir uma representação real, um
retrato da realidade. Na expressão de
Wittgenstein, a realidade é afigurada
pela linguagem. Poder-se-ia também
dizer que a linguagem pode mostrar com
rigor e fidelidade a verdadeira realidade
(Wittgenstein, 1983). Por isso que, nesse
contexto, todo problema filosófico reduz-
se apenas à questão do que pode ser
dito por meio de proposições lógicas, na
construção da linguagem certa, objetiva.

Ludwig Wittgenstein – 1889-1951

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A realidade é afigurada, retratada fielmente pela linguagem e só devem existir e ser


aceitas as proposições que evidenciem isso. A linguagem não pode, portanto, estar além
do fato constatado. Para Wittgenstein, inclusive, nem as tautologias e nem as equações
matemáticas dizem coisa alguma sobre o mundo. São puras estruturas lógicas; têm seu
valor instrumental, em função de ajudar na produção do conhecimento, mas não produzem
conhecimentos por si sós.

Uma proposição não pode ser simplesmente inferida, tirada de outras. Não levaria a nada.
Na concepção de realidade de Wittgenstein, tudo é acidental. E então, na realidade, um fato
não pode ser simplesmente inferido de outro. Que o sol vai se levantar toda manhã é uma
“certeza” pelo que até agora ele tem se levantado. Como já dizia Hume, estudado na mesma
circunstância que Descartes, na crítica ao empirismo, um efeito pode ter a determinação de
várias causas; portanto, como assegurar o acontecimento do efeito se a posse da causa não
é determinada de modo exclusivo? (Sciacca, 1968, p. 137).

Nessa, linha, Wittgenstein, já na sua segunda fase, tendo já influenciado e inspirado o


neopositivismo lógico como escola filosófica, chega a afirmar que não existem proposições
éticas e que a metafísica está além da linguagem (Wittgenstein, 1983). Contrariamente a
este autor, que não chega a negar a possibilidade da ética

saiba mais (existência de valores) e da metafísica (uma realidade


além da realidade imediata que o homem possa conceber
e perceber), o neopositivismo lógico se propõe a chegar a
essas conclusões. Para ele, uma proposição é verdadeira
Para entender melhor sobre o positivismo lógico,
ou neo positivismo, leia o seguinte site: somente se verificada. Uma linguagem de cunho ético e
metafísico não teria sentido, seria um despropósito.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Positivismo_l%C3%B3gico
Em sua primeira fase de pensamento sobre a linguagem,
Wittgenstein endossou, como fez, essa afirmação. Mas na
sua segunda fase, essa afirmação estaria limitada a tudo
aquilo que o ser humano pode conhecer de modo imediato, como o conteúdo das ciências,
e sobre “certas realidades”, como a ética e a metafísica: “do que não se pode falar, deve-se
calar”. Esse calar, que antes era uma determinação linguística da não existência dessas
realidades, hoje em Wittgenstein é uma limitação da própria instrumentalidade da linguagem.

uma
É como se pudesse afirmar que o ser humano precisaria
ainda, quem sabe, no futuro, desenvolver novas formas
de linguagem para poder compreender e expressar a sua
realidade na realidade em que existe.

proposição é Em termos filosóficos, redundaria em que simplesmente


não existem problemas filosóficos, isto é, os pensadores

verdadeira
até hoje não conseguiram alcançar o modo de ser profundo
das coisas para questioná-las. Na verdade, o que existe,
inclusive pela dimensão instrumental da linguagem, são
as perplexidades que nos reconduzem sempre à proposta

somente se
fundamental do método provocativo que nos leva a filosofar.
No mais, a filosofia é a luta constante contra o enfeitiçamento
da linguagem que conduz os ingênuos homens na crença
de conhecer e dominar a realidade onde vivem.

verificada Vamos continuar!

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T3 O caráter criador da linguagem


A discussão e a consequente afirmação do caráter criativo da linguagem advêm da análise
fenomenológica da própria linguagem: a linguagem pressupõe três condições para que possa
se realizar, existir. Para que seja, a linguagem pressupõe a existência de um sujeito que fala,
um objeto do qual se fala e se representa mediante a palavra e um interlocutor a quem ou
com o qual se comunica falando. Antes dessa consciência, tão evidente, tradicionalmente
se concebia uma visão dicotômica das funções da linguagem (Mondin, 1980, p. 140- 141).

• de um lado, uma função descritiva, cognitiva, denotativa, representativa ou


simbólica;

• de outro, uma função emotiva, performativa, existencial ou pessoal

Pela evidência da presença relacional do interlocutor, a linguagem, além das funções


tradicionalmente concebidas, passa a apresentar a função comunicativa ou intersubjetiva nos
confrontos da pessoa a que se dirige o discurso (Mondin, 1980, p. 142). No desenrolar das
várias visões filosóficas através dos tempos, cada corrente privilegia ou dá maior importância a
determinada função. O neopositivismo lógico, na filosofia analítica, sempre enfatizou a concepção
da linguagem dentro de uma função denotativa (descritiva, cognitiva, lógica e objetiva).

É como se a linguagem pudesse indicar com precisão a verdade da realidade e demonstrá-


la. Esta, inclusive, seria a intenção de Wittgenstein em um primeiro momento, como vimos
anteriormente. Essa função se realizaria através da realização da linguagem científica, dotada
de clareza e objetividade. Essa função da linguagem seria, numa visão positiva, comprovada
experimentalmente. Vários pensadores de diversas escolas filosóficas levantaram argumentos
contra essa concepção de função da linguagem.

Argumento 1 Argumento 2 Argumento 3

Pensadores afirmavam e mostravam que Pensadores afirmavam que a preferência Pensadores destacavam que “a
o critério de verificação experimental é pela linguagem científica não deve ser preferência pela função descritiva ou
um postulado privado de fundamento. A única, pois existem outras formas de cognitiva da linguagem é consequência
verdadeira condição de cientificidade de linguagem tão ou mais importantes do de uma tradição intelectualista e
uma teoria não é sua verificabilidade, e que a científica: a linguagem filosófica racionalista que foi extremamente
sim sua fasificabilidade, isto é, a ciência (com a metafísica), a linguagem do danosa porque criou uma imagem
cresce não pelas teorias de possíveis senso comum, a linguagem artística, a deformada e empobrecida do homem”
comprovações, mas sim pelas teorias linguagem religiosa etc. (Mondin,1980, p. 143).
de possíveis falsificações, o que provoca
a retomada constante da pesquisa e a
consequente criação do conhecimento
(Popper, 1970, p. 131).

Essa crítica se torna importante principalmente se nos situamos a partir do contexto da nossa
cultura e da sociedade atual, que faz o culto da objetividade em função do convencimento imediato
da imposição do consumismo tecnológico, apresentando como criativa uma determinada forma
de linguagem (tecnológica), quando em sua própria realidade é limitada pelos ditames das
definições das teorias científicas que a sustentam: nem sempre aquilo que imediatamente surge
como novo pode ser considerado criativo em sua essência. O bem consumido imediatamente
pode não estar sendo um avanço na proposta de realização do homem.

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Além dessa função descritiva e cognoscitiva, a linguagem apresenta também uma função
comunicativa, que, muitas vezes, está além da explicação de fenômenos, leis da natureza etc.,
mostrando o valor de afetos, sentimentos, e desejos (Mondin, 1980, p. 144). O ser humano
não é fechado em si, como um objeto qualquer. A sua presença no mundo é surpreendente
justamente porque não é objetiva. Não é uma presença meramente física e passiva.

Pelo uso da linguagem, o ser humano consegue ser significante diante dos outros e do
mundo, que também se tornam significantes em relação a ele.

Pela fala, o exercício da língua, na expressão de linguagem, e hoje ajudado por tantas
tecnologias e além delas, o homem pode se tornar criativo em relação à percepção do mundo
em que vive com os demais. E o uso da linguagem nessa função não parte de posicionamentos
de objetividade. Às vezes, se expressa dentro de condições de ambiguidades, como muitas
vezes se concebe a própria realidade ou existência. As
pessoas se exprimem dentro de contextos históricos,
contextos transitórios, como no entendimento e na aceitação
de determinados valores que, em certo contexto ou época,
têm grande consideração e, em outras condições, podem
se tornar desprezíveis (ou quase).

Além da função meramente descritiva, com qual podemos


descrever objetos, está a comunicativa, com a qual podemos
nos relacionar com o outro. A linguagem tem também função
existencial. O exercício da linguagem serve para testemunhar
a nossa existência (Mondin, 1980, p. 145). Pela linguagem
podemos ter a consciência de que somos. Ter nome, por
exemplo, e ser chamado por ele, traz a satisfação de poder
ser presença diante de algo, de alguém e de si mesmo.

Carregar o nome do pai ou da mãe como sobrenome é quase


a garantia da existência pela garantia de sua origem. As
pessoas gostam de ser reconhecidas pelos seus nomes e
ainda mais se regozijam ao perceber que seu nome tem reconhecimento amplo em sentido
social pela notoriedade e fama que podem conseguir em determinada atividade. O modo
próprio de falar de cada indivíduo, por si só, reforça e reafirma existencialmente a sua
singularidade, seja na entonação da voz, no uso específico de determinadas palavras, seja
na maneira como são ditas.

Daí percebermos, sem muita dificuldade, a variedade de formas de linguagem também na


diversidade de grupos sociais, como na linguagem religiosa, esportiva, artística etc. Além
disso, em cada uma delas, podemos observar o fato de continuar prevalecendo a singularidade
de linguagem dos indivíduos. Dessa forma, a linguagem reafirma constantemente a presença
de cada indivíduo na existência, na sociedade, no mundo e na realidade.

A linguagem apresenta também uma função ontológica que a remete à sua própria origem,
àquilo que ela é em si mesma. A linguagem, em sua origem, é anterior a qualquer expressão
simbólica em termos convencionais. Os signos não a fundam; é ela que os cria. Ela tem uma
força que funda o próprio ser das coisas, uma força criativa: busca a expressão essencial
das coisas além de qualquer possibilidade de definição.

Essa linguagem está presente no mito. Surge a partir da vontade profunda do homem
de dar sentido às coisas através de uma explicação que se estabelece além do domínio
lógico-conceitual. Devido a isso, é muito difícil estabelecer se a verdade que o mito procura
comunicar é uma verdade-fábula ou uma verdade-verdadeira.

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Por isso, “a origem da linguagem e, mais ainda, do mito está envolvida em um véu de mistério,
que nenhuma técnica filosófica ou psicanalítica conseguirá destrinchar” (Mondin, 1980, p. 149).

Como foi visto, no mundo em que vivemos, a visão da linguagem nas várias funções nos
libertará do determinismo denotativo em que a cultura foi envolvida. Embora não se possa
negar a importância da função descritiva, daí não se pode auferir que o ser humano deve
expressar-se e expressar o mundo unicamente a partir de um viés racionalista.

A linguagem da ciência, na sua consequência de aplicação, que é a tecnologia, cada vez


mais obscurece no ser humano a sua capacidade de imaginação, com a qual pode sempre
se atrever a pensar a realidade de forma distinta do que é imposto. Na sua atividade de
comunicação, de consciência de existência e do valor da linguagem em si, o ser humano
se torna livre diante das definições de mundo que a cultura veicula no imediatismo de um
conhecimento moldado a partir de uma linguagem altamente racionalizada e técnica, alienando
o ser humano de sonhar com um mundo novo e melhor. Aí aparece a grande importância
da filosofia e da arte como exercício dessa linguagem, talvez considerada a mais completa
para a existência humana.

Linguagem, filosofia e arte

Sempre que se fala em linguagem, relacionando o termo à filosofia e à arte, a primeira ideia
que surge sobre o assunto é a criatividade. A linguagem escrita ou falada, de cunho científico,
de caráter objetivista, normalmente foi concebida carente de criatividade, no sentido de que
o discurso sempre é elaborado de modo fechado, dentro de determinados princípios causais
que são determinantes para que se possam tirar suas conclusões: por exemplo, a química se
desenvolve dentro do princípio de que a matéria tem uma estrutura atômica; fundamentado
nisso, o químico tira suas conclusões independentemente de se poder imaginar a existência
salvador dali de outra estrutura diversa, pois isso a que ele chegou e assumiu como ponto de partida foi
http://www.wisdom-square.com/ aquilo que se pôde “observar”, no nível e nas condições possíveis.
images/Salvador-Dali-w.jpg

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Daí se pode compreender que a linguagem científica de


estrutura lógico-matemática pode ser entendida, em sua
forma de linguagem, como conceitual. Também a filosofia,
por exemplo, produzida dentro dos parâmetros de objetivos e
metodologias tradicionais, a partir de um realismo racionalista
que vem desde Aristóteles, é normalmente concebida como
conceitual, como ciência, no sentido de que ela parte do
pressuposto de que o pensamento tem que se adequar às
coisas, revelando-as naquilo que elas já são essencialmente,
sem propor nada a acrescentar ou subtrair nelas.

Dentro do vasto e histórico desenvolvimento da filosofia,


encontram-se também correntes filosóficas, como a
fenomenologia, que valoriza dimensões do homem além da
razão, como os sentimentos e as emoções, na construção
do saber e na tentativa de compreensão nem sempre
criatividade
imediatamente possível da realidade.

A filosofia da linguagem opõe a essa característica de


expressão conceitual na linguagem humana, que é atribuída
à ciência e a determinadas filosofias, à característica
denominada simbólica, que é própria da linguagem da arte
e de determinadas filosofias, em busca da possibilidade do
ser humano de se comunicar e atuar no meio onde vive, que
num sentido de totalidade é a realidade onde está inserido.
Nesse ponto, para fundamentar a dimensão criativa da
linguagem simbólica, própria da arte e presente de modo
muito expressivo na filosofia, seria oportuno diferenciar uma
da outra, como faremos a seguir.

A linguagem simbólica se realiza através de analogias, isto


é, semelhanças entre palavras e sons, palavras e coisas,
ou de metáforas, criando um sentido além e, às vezes,
diverso do que uma determinada coisa sugere na realidade
(Chauí, 1997, p. 149).

o pensamento tem que


se adequar às coisas,
revelando-as naquilo que
elas já são essencialmente
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Isso reforça, para ela, a ideia de criatividade, no sentido


de que ela é capaz de expressar uma dimensão de
realidade que ultrapassa o dado imediato que se pode
perceber. Já a linguagem conceitual, pela sua base lógica
e realista, não permite essa “liberdade de expressão”,
pois é denotativa e, embora também possa ser conotativa,
não permite esse uso livre da analogia, porque não é
proposta sua permitir que o uso da imaginação suplante
o determinismo desse realismo lógico.

A linguagem simbólica presente nas narrativas míticas, nos


romances, na poesia não só permite como assume, como
condição para que possa se realizar, o uso da imaginação.
A imaginação é uma faculdade humana ou capacidade
mental que permite a representação de objetos segundo
aquelas suas qualidades que são dadas à mente através
dos sentidos. Em filosofia, tais qualidades são chamadas
de qualidades secundárias.

Essas qualidades são consideradas secundárias porque


não estão mais concebidas na forma imediata da percepção
sensível e, às vezes, se realizam além dessa percepção,
mediante a combinação de percepções anteriores. Pela
imaginação, o ser humano procura livremente criar uma
realidade além da realidade imediata na qual está inserido.
Poeticamente, o coração é concebido como morada do
amor ou o instrumento para amar, além da determinação
biológica de sua função, que é bombear o sangue para todo
o organismo do ser vivo.

A linguagem simbólica é entendida com forte expressão de


emoção e afetividade, ao passo que a linguagem conceitual,
lógica, é concebida como uma “linguagem fria”, que se
propõe a fazer afirmações somente dentro dos parâmetros
da demonstração pautada pela coerência lógica. A linguagem
simbólica não é tão exata assim, como, por exemplo, é usada
pelo compositor e cantor Caetano Veloso quando canta que,
na “matemática da vida”, em nível de sentimento, do amor,
dois mais dois pode ser igual a cinco.

Ao contrário disso, a linguagem conceitual não admite essa


obscuridade, como era a posição dos filósofos racionalistas
modernos até o fim do século XVIII, que afirmavam que o uso
da imaginação é a condição de mostrar, de modo confuso e,

pare e reflita portanto, obscuro, a realidade que deveria ser apresentada


de modo claro e distinto pela razão.

O que Caetano Veloso quis dizer com isso, senão


atentar para a obscuridade da determinação do que
é o sentimento humano em relação às situações
de vida onde é exercido?

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Com o uso da linguagem simbólica, o ser humano, usando imagens, pode realizar sínteses
imediatas, como os gregos na mitologia garantiam a compreensão da explicação e do domínio
do mar pela crença do Deus do mar, Posseidon, ignorando a análise e síntese causal que
hoje a ciência faz para se alcançar o mesmo objetivo, mas situando-a a partir de linguagem
conceitual.

A linguagem simbólica não se propõe a ser técnica como a linguagem conceitual. As palavras
não têm o rigor na expressão das coisas; são livres para a interpretação a partir do que
sugerem. Sua característica linguística é a polissemia: podem apresentar vários sentidos – e
às vezes até contraditórios. A linguagem simbólica é envolvente, isto é, quem está em contato
com ela passa a ser tocado pelo seu conteúdo e reage de forma emocional.

Já a linguagem conceitual nos mantém distanciados dela. Ela nos convence a partir de
demonstrações lógicas, de ilações de pensamentos que podem estar muito distantes do
que sentimos vivendo. Por isso, ler um romance pode ser algo prazeroso, enquanto ler um
texto científico pode ser algo cansativo e até enfadonho.

a lógica não é um conjunto de doutrinas,


mas uma imagem-espelho do mundo

podemos criar uma imagem que denota a linguagem lógica,


assim podemos usar o seguinte exemplo para a frase um
gato sentou no tapete, colocar a imagem de um gato + um
tapete = um gato no tapete. Vide exemplo na página 251 do
livro de filosofia

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Pela linguagem simbólica se procura conhecer o mundo em que vivemos por meio de um
mundo que criamos, que pode ser projetado de maneira doce, terna ou trágica, mas que, de
certo modo, nos toca no sentido de um posicionamento crítico em relação ao mundo real de
onde partimos. George Orwell usou a metáfora dos animais de modo muito inteligente e original
para fazer um forte questionamento da sociedade de sua época em termos da exploração
do homem pelo homem, criticando de forma profunda o totalitarismo político (Orwell, 2000).

Na mais viva expressão da realidade pelo uso da faculdade da imaginação, o ser humano
– seja na produção da arte, seja na produção de uma filosofia não sufocada por um
contundente racionalismo – pode se estabelecer diante da realidade e buscar inspirações
de formas de libertação associadas à produção da fantasia, alimentando depois pela busca
da realização de sonhos aí nascidos o alcance de ideais que nascem do mais autêntico
exercício da arte e da filosofia.

Isto se torna possível não somente devido a exemplos que a história revelou, mas
principalmente pelo exercício da linguagem, que, assim como possibilita a denotação e a
conotação da realidade a partir do uso da razão, permite também, na sua particularidade
de ser simbólica, a possibilidade criativa do desejo constante do ser humano de, além de
todo determinismo cultural, social, político, religioso, econômico, poder conotar, isto é,
buscar um sentido mais inovador, projetando o futuro dessa mesma realidade na linha da
procura pela perfeição.

A reviravolta na questão da linguagem:


considerações iniciais e a elaboração
moderna da linguagem a partir de Humboldt
T4 Ao longo da tradição ocidental do pensamento, quando alguns indivíduos se dedicaram a
refletir sobre a linguagem, o ponto de partida foi, na maior parte das vezes, a fala. O homem
fala, e isso é um fato inegável. Evidente também que a fala é eminentemente um meio de
comunicação e expressão, e esta particularidade, conforme Martin Heidegger, restringe-se
ao homem e ao seu modo de ser específico. A frase “o homem fala” parece significar que,
pela fala, o homem torna-se homem – e é justamente isso o que ocorre, já que algo só passa
a existir onde se instaura a palavra.

Esse tópico e o próximo, como logo ficará claro, tem em vista alguns dos momentos
fundamentais da reflexão de Heidegger, especialmente sua reflexão sobre a linguagem.

Trilhando os passos do autor, uma coisa existe quando a palavra acontece. As palavras não
são provenientes do intelecto subjetivo humano – como vimos nos tópicos acima desta unidade
–, porém, nascem a partir de um campo de mostração prévio no qual as próprias coisas se
mostram em seu ser para os indivíduos. O homem vem a ser homem na fala, melhor, por
meio da linguagem: o homem é um diálogo, ele é no diálogo. Não que a linguagem, para
ser a experiência que é, necessite do homem, como expressam muitos autores clássicos,
mas, o homem, para existir, não como um sujeito que se vale de um instrumento qualquer
(Aristóteles entendia a linguagem como um instrumento), passa a ganhar a sua medida (a sua
existência) no interior da linguagem. A medida do homem se efetiva na realização de suas
possibilidades, e a articulação das possibilidades de ser desse ente perfaz a sua existência.

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A linguagem, no entanto, foi sempre entendida como algo derivado do homem, que passa
a existir, de alguma maneira, na produção de expressões por meio da fala humana.
Segundo Heidegger:

“Na fala, a linguagem se apresenta como atividade dos órgãos da fala:


a boca, os lábios, o ‘ranger de dentes’, a língua, a garganta. Os nomes
usados pelas línguas ocidentais para dizer linguagem testemunham como,
de há muito, a linguagem é representada a partir desses fenômenos.
Linguagem língua, langue, language. Linguagem é língua, é ‘modo de
boca’”(HEIDEGGER, 2008, 194).

Ao conferirmos muitos autores clássicos, de Aristóteles (384-322 a. C.) a Ferdinand de


Saussure (1857-1913), o que se observa é a linguagem como um instrumento disponível ao
homem, permitindo que esse ente possa, ao seu dispor, valer-se da língua como desejar.

Martin Heidegger
– 1889-1976

Na vida dos indivíduos e da sociedade,


a linguagem é um fator de importância
maior do que qualquer outro. –
Ferdinand de Saussure
Aristóteles

Ferdinand de Saussure

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Marlène Zarader em sua obra Heidegger e as palavras da origem pontua qual o intuito da recolocação
da questão da linguagem por parte de Heidegger bem como marca a forma mais comum de se
endereçar críticas a forma de tematização da questão pelo filósofo alemão. Segundo Zarader:

“[...] a interrogação sobre a linguagem parte de uma ‘representação prévia’


que, tida por ‘evidente’, não é interrogada nem sequer percebida: é muito
simplesmente imposta, como o são todas as falsas evidências. No segundo
caso, o avanço em direção à linguagem parte também de uma ‘representação
prévia’. Mas esta só é tomada como ponto de partida da meditação porque
foi já conquistada como ponto de chegada de outra meditação. Quer dizer
que o prévio, muito longe de ser imposto (porque é pensado), é muito pelo
contrário deliberadamente proposto (porque é resultado do pensamento).
Quer dizer também que o ponto de partida da interrogação tradicional se crê
sem história, embora estando carregado de uma história não percebida (a da
metafísica e de sua concepção de homem), o ponto de partida da interrogação
heideggeriana sabe-se e quer-se resolutamente historial, e é dessa própria
historialidade que detém a sua legitimidade” (ZARADER, 1990, pp. 238-239).

Segundo Paul Ricoeur,

“À abordagem unidimensional da linguagem, para a qual os signos são as


únicas entidades básicas, quero opor uma abordagem bidimensional, para
a qual a linguagem se funda em duas entidades irredutíveis, os signos e as
frases. Esta dualidade não coincide com a de langue e parole, como foram
consideradas por Saussure no seu Cours de linguistique générale, ou mesmo
como essa dualidade foi mais tarde reformulada enquanto oposição entre
código e mensagem. Na terminologia de langue e parole, apenas a langue é um
objeto homogêneo para uma ciência única, graças às propriedades estruturais,
dos sistemas sincrônicos. Parole, como dissemos, é heterogênea, além de
ser individual, diacrônica e contingente. Mas a parole apresenta também
uma estrutura que é irredutível num sentido específico ao das possibilidades
combinatórias abertas pelas oposições entre entidades discretas. Esta
estrutura é a construção sintética da própria frase enquanto distinta de qualquer
combinação analítica de entidades discretas [...]” (RICOEUR, 2011, pp. 18-19).

Levando em consideração a temática sobre a verdade, esta, em nenhuma hipótese, será


interpretada, tal como na escrita de Humboldt está implícito, a saber, como a concordância
do intelecto humano à coisa. A formulação dos enunciados e, consequentemente, das
expressões – verdadeiras ou não, na perspectiva de Humboldt – só ganham o caráter de
verdade quando fundados em um feixe de representações pautadas no intelecto humano. A
contrapelo dessa noção tradicional, Heidegger, ao desconstruir tal interpretação (interpretação
Wilhelm von Humboldt
fundamental para o modo moderno de pensar a linguagem), mostra que a verdade não é
– 1767-1835
outra coisa senão a manifestação do ser nas coisas, tornando, a partir dessa manifestação,
toda forma possível de formulação de enunciados, quer verdadeiros ou não. Para Heidegger,
o enunciado é uma questão secundária.

Deve-se notar que a mudança de perspectiva de Heidegger quanto a Humboldt é tão grande
que o primeiro, dialogando com a tradição que provém de Humboldt, escreve exatamente
o contrário do linguista alemão (Humboldt). No texto A palavra, conferência que consta na
coletânea A caminha da linguagem (HEIDEGGER, 2008a), Heidegger refere-se à palavra
não como algo proveniente do intelecto humano possível pela fala, somente, mas como
nome capaz de deixar que o mundo – realidade – se revele como tal, já que “nenhuma coisa
é (existe) onde falta a palavra” (HEIDEGGER, 2008a, p. 175).

Pode-se constatar essa questão na interpretação de Paul Ricoeur da linguagem como


instrumento em sua obra Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação,
ensaios oriundos de uma série de palestras ministradas nos Estados Unidos em 1973.

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O filósofo francês, já no primeiro texto intitulado Linguagem


como discurso deixa muito claro, ao interpretar a obra de
Saussure, que a linguagem, tal como o linguista suíço
entendia, é um instrumento pertencente ao homem, não
consistindo em outra coisa senão em algo derivado da fala
– sendo, portanto, discurso. No entanto, Ricoeur acaba por
tomar a linguagem também como um instrumento criador de
sentido e pautado fundamentalmente na fala.
Segundo Ricoeur,

“À abordagem unidimensional da linguagem, para


a qual os signos são as únicas entidades básicas,
quero opor uma abordagem bidimensional, para
a qual a linguagem se funda em duas entidades
irredutíveis, os signos e as frases. Esta dualidade
não coincide com a de langue e parole, como
foram consideradas por Saussure no seu Cours
de linguistique générale, ou mesmo como essa
dualidade foi mais tarde reformulada enquanto
oposição entre código e mensagem. Na terminologia
de langue e parole, apenas a langue é um objeto
homogêneo para uma ciência única, graças às
propriedades estruturais, dos sistemas sincrônicos.
Parole, como dissemos, é heterogênea, além de ser
individual, diacrônica e contingente. Mas a parole
apresenta também uma estrutura que é irredutível
num sentido específico ao das possibilidades
combinatórias abertas pelas oposições entre
entidades discretas. Esta estrutura é a construção
sintética da própria frase enquanto distinta de
Paul Ricoeur qualquer combinação analítica de entidades
– 1913-2005 discretas [...]” (RICOEUR, 2011, pp. 18-19).

Nessa caracterização, a linguagem é entendida, na maior

À abordagem parte das vezes, como algo proveniente da fala, e esta, como
linguagem, está totalmente vinculada ao pensamento. A dito
de elucidação, toma-se um estudo de Wilhelm von Humboldt

unidimensional intitulado A origem das formas gramaticais e da influência


sobre o desenvolvimento das ideias. Embora possua tal

da linguagem,
título, esse escrito não visa percorrer as diferentes classes
gramaticais, mas, limita-se a considerar a ideia geral de
gramática a fim de responder a duas questões:

para a qual 1) como nasce em uma língua o modo particular

os signos são de representação das relações gramaticais que


merecem o nome de forma?; e

as únicas 2) que importância tem ela (a forma) para o


pensamento e para o desenvolvimento das ideias,
na medida em que as relações gramaticais sejam

entidades representadas por formas verdadeiras ou por outras


menos verdadeiras?

básicas
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O que pretende o autor é mostrar os diferentes graus de desenvolvimento da gramática em


línguas distintas, marcando, assim, a preponderância da gramática a fim de se falar nas
línguas (e na linguagem como um todo) possíveis.

O caminho da linguagem de Humboldt busca primeiramente analisar as línguas, desde as


mais “bárbaras”, como assim ele as chama, às mais cultas, já que ambas possuem formas
gramaticais em sentido próprio. Apesar de sua viva potência e influência sobre o espírito, a
língua, segundo Humboldt, “é também um instrumento inanimado e passivo” (HUMBOLDT,
1859, p. 7.). As relações gramaticais, pelo motivo exposto, dependem da intenção de um
indivíduo que se valha dela – da gramática –, e isso porque a gramática está menos presa às
palavras do que aquelas palavras que um indivíduo pensa e, principalmente, daquelas que
este fala ou entende. Somente a partir dessa complexa relação do indivíduo com a palavra
(aquilo que expressa um objeto no mundo exterior), e esta vista a partir da gramática e da
fala, é que se pode falar em sentido.

O sentido nasce na relação entre o sujeito que, a partir de uma representação, pode
enunciar algo sobre um objeto. Conforme Humboldt, sem representação, não há modos
de se comunicar, nem falar, nem compreender, enfim, nada é possível quando não há
representação. É preciso que cada língua, ainda que seja a mais grosseira, possa realizar
representações, devendo entender representação, no contexto do linguista alemão, como a
faculdade intelectual capaz de criar imagens mentais nos sujeitos do conhecimento, isto é,
nos sujeitos que falam.

Hamburguer!!!!!

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Por fim, para Humboldt, a língua se forma no pensamento. A linguagem é a forma mais
elaborada de pensamento, ou seja, é um atributo derivado do pensamento. A linguagem,
assim, se encontra no homem perfeitamente. Se fosse retirada a possibilidade de
desenvolvimento do pensamento, a linguagem cairia em uma falta de delimitação, pois ela
perderia seu caráter de instrumento. Isso confirmou, a partir de Humboldt, que a linguagem
fosse entendida como uma propriedade humana.

Vamos, agora, para nosso último tópico!

A linguagem como logos originário


T5 Para conseguir ter clareza quanto ao poder reunidor e integrador da linguagem, Heidegger
lança mão de seus estudos sobre o pensamento de Heráclito de Éfeso (535-475 a.C.),
pensador originário que apreendeu o vigor da linguagem enquanto o elemento estruturador
do todo (mundo). Porém, que vigor é esse? É o dizer que, enquanto dizer, é verdade. O dizer
é verdade. Mas, por hora, contentemo-nos com a explicação do primeiro termo, dizer a fim
de que seja elucidado seu parentesco radical com a linguagem.

Em uma conferência de 1951 intitulada Logos, Heidegger


busca interpretar o fragmento 50 de Heráclito. O pensador
faz a leitura da tradução clássica de Bruno Snell (1859-1939),
que diz o seguinte: “Se não me haveis escutado a mim,
mas o sentido, é sábio dizer no mesmo sentido: um é tudo”
(HEIDEGGER, 2001, p. 183). A mais conhecida tradução
dos fragmentos, a de Hermann Diels (1848-1922) e Walter
Kranz (1884-1960), verte assim o fragmento supracitado:
“Não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio homologar
tudo é um” (HERÁCLITO, In: PRÉ-SOCRÁTICOS, 2000,
p. 93). Depois do estudo feito a partir da tradução de Snell
na conferência supracitada, Heidegger chegou à seguinte
interpretação-tradução do fragmento do pensador originário:

Não escutai a mim, o mortal, que vos fala; mas sede, em


vossa escuta, obedientes à postura recolhedora; se lhe
pertencerdes, escutais, em sentido próprio; uma tal escuta
se dá, quando acontece um deixar-disponível-num-conjunto,
o deixar pôr-se que acolhe; quando acontece que o deixar
dispor-se se põe, dá-se, em sua propriedade um envio sábio,
pois o envio sábio, propriamente dito, o único destino, é: o
único unindo tudo (HEIDEGGER, 2001, p. 199).

“Postura recolhedora”, bem como escrito na passagem


acima, é o logos. Interpretou-se essa palavra originária,
Heráclito de Éfeso
logos, ao longo da tradição metafísica de diversas formas,
– 535 1.C. – 475 a.C
tais como razão, verbo, sentido – assim como na tradução de
Snell –, isso para valermo-nos das traduções mais comuns.
Deve-se atentar, nessa circunstância, para a visão moderna
(mas, não somente) de se interpretar as palavras originárias,
como, no caso, a palavra grega logos.

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Vamos relembrar, como marcado no tópico anterior, a perspectiva de Humboldt acerca da


linguagem, na qual esse fenômeno é do mesmo modo interpretado como algo racional ou,
ao menos, proveniente da razão. Outro caso é a tradução de Diels-Kranz, na qual nem se
traduziu a palavra em questão, o que é ainda pior, pois, visando-se o intérprete não versado
em grego (e este é o nosso caso), como ele deve ler uma palavra com um poder evocativo
tão grande como logos se a própria tradução não oferece um correlato à altura? Nunca,
conforme Heidegger, essa tradição pensou o logos em sua essência dizente.

O que vem a ser o falar do logos, o falar do falar, que, na interpretação comum a Heidegger
tornou-se a frase trazer a linguagem como linguagem para a linguagem (HEIDEGGER,
2008a, p. 192.)? Se a questão for assim colocada, o que nos deixa sem saídas é afirmar que
linguagem, o dizer, no movimento de sua experiência como o mostrante, é logos, é palavra
originária, arcaica e fundamental.

O logos está intimamente ligado ao légein. Esta palavra não


saiba mais! significa, como no uso habitual da língua grega, dizer e falar. Não
que essas interpretações estejam erradas ou ainda equivocadas
(até porque são fundamentais para Heidegger), mas, não dão
Palavras originárias são palavras fundamentais conta de evidenciar o logos como essência dizente, sendo tal
ao pensamento que resguardam grande força
essência a possibilitação de aberturas de campos de sentido.
evocativa.

Conforme a interpretação heideggeriana, légein diz o mesmo


que a palavra alemã legen, cujo significado é de depor e
propor, prostrar e estender, em suma, apresentar e deixar que
o apresentado se ofereça, isto é, se manifeste. Não é depor como pôr a parte, renunciar,
destituir, ou ainda declarar em juízo, muito menos propor, que submete algo à apreciação,
ou ainda narrar algo, referir-se a alguma coisa para obter explicação ou conselho. Depor e
propor são palavras para dizer apresentar.

Para Heidegger, o sentido atribuído à palavra apresentar é de essência dizente. Depor como
apresentar não pode ser outra coisa senão a possibilidade na qual pelo dizer originário da
língua deixa-se um mundo, uma totalidade conjuntural das coisas se encontrar manifesto.
Depor e propor, nessa perspectiva, ganham juntos outros sentidos, quais sejam, colher,
ajuntar, recolher e oferecer. Entretanto, não é um recolhimento no sentido de que o homem
colhe isso ou aquilo, toma ou pega algo, mas se refere a entrar na obediência e escuta da
coisa recolhida e oferecida, acolhendo-a como tal, uma vez que, pela escuta, o Homem já
está em sintonia com a coisa apresentada.

Recolher, nesse contexto, diz igualmente acolher. “Légein diz propriamente um depor e
propor que recolhe a si e ao outro”. Completando, “Legen significa estender e prostrar, mas,
ao mesmo tempo, significa também pôr uma coisa junto a outra, pôr em conjunto, ajuntar”
(HEIDEGGER, 2001, p. 184).

Pelo exposto, passa a ser caracterizado o depor e propor como o colher que abriga em sua
residência e cercania a coisa apresentada, abriga-a na medida em que “deixa-a disponível
em um conjunto” com às outras coisas. Deixar não configura um largar ou abandonar, mas,
deixar disponível, significa ajuntar em um mesmo âmbito aquilo que se mostra, mantendo-o
como mostrado por si mesmo em sua verdade. “É a proteção da verdade”, aquilo que certifica
que o todo, um mundo (o real), está disposto. Escreve Heidegger:

“O único empenho do depor e propor, como légein, é deixar que o que se dispõe por si mesmo
num conjunto, seja entregue, como real, à proteção que o preserva disposto. Que proteção
é essa? É a proteção da verdade”.

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Disposto em um conjunto diz, por fim, que a coisa revelada está posta a desencoberto, quer
dizer, descerrada, aberta. O abrigo do depor e propor é justamente esse desencobrimento,
esse desvelamento, o posto em manifesto. “Ao deixar o real dispor-se num conjunto, o légein
se empenha por abrigar o real no descoberto” (HEIDEGGER, 2001, p. 187.).

É isso mesmo a essência da linguagem, fazer manifestar a realidade. O real, a realidade,


aqui, foi o que se chamou constantemente (até mesmo em outras unidades) de mundo.
A linguagem, em sua forma essencial, não se determina pela voz ou articulação de sons,
como diziam os demais pensadores. Essa linguagem fundamental é o dizer, que descobre
os sentidos nas coisas, sendo uma linguagem Poética, desveladora; é logos, e este é légein,
o dizer que mostra.

Delimitou-se em que sentido a palavra originária, a força do dizer, é, na verdade, um logos


originário: é palavra mostrante. A evidência desse dizer, dessa experiência, o elemento
reunidor da experiência da manifestação das coisas, a qual foi chamada de mundo, se
determinada enquanto um depor e propor, assim como légein, uma vez que da mesma
forma busca deixar acessível, disposto o ente em seu ser.

O habitar poético do Homem e a sua morada na linguagem

Sempre que falamos o verbo habitar, somos remetidos para o significado usual dessa palavra,
qual seja, o de moradia e de residência. Habitar é morar em, fincar residência em algum lugar.
Entretanto, também poderíamos ainda dizer: habitar é demorar, sabendo que a preposição
“de” significa “estar em direção à”, isto é, pôr-se a caminho de

saiba mais! algo. O sufixo “morar” indica-nos, por sua vez, à moradia, “moro
em”, pertenço à. Habitar é esse de-morar no sentido de pertencer.

Habitar é pertencer àquilo que nos é próprio. Não Por exemplo: um engenheiro, ao fazer uma ponte, habita a
tem, portanto, nenhuma conotação de residência, ponte, no sentido de que só pensa nela, tudo o que faz é para
de casa, de caixa postal, mas, evidencia um que a ponte seja edificada, seus cálculos, desenhos, etc. tem
pertencimento essencial àquilo que se mostra por objetivo a ponte. Ou o caminhoneiro, que dirige horas em
de forma particularmente próxima no campo
referencial que é o do homem. uma solidão atroz, muitas vezes, apenas ele, seu caminhão e
a imensidão da estrada. O caminhão vira casa sem muito luxo,
somente com uma cama modesta na qual pode descansar para,
novamente, voltar ao trabalho.

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Na obra Ser e Tempo, Heidegger expõe a estrutura do homem que ele chamou de ser-em,
isto é, o homem é sempre um ser-em determinado lugar: é sempre um ser em um mundo.
Ser-em (determinado lugar) é uma maneira especial de o homem ser no mundo.

Este “em”, em alemão (pois se trata de autor alemão),

atenção! deriva-se de –innan, que dizia morar, habitar, deter-se. A


partícula –an (innan) remete-nos a hábito, estar habituado a,
familiarizado com. No antigo alto alemão, havia outra palavra
para dizer habitar. Em Construir, habitar, pensar, conferência
É claro que você não deve memorizar essa análise. proferida e publicada em 1951, Heidegger refere-se a buan,
Deve apenas entender o pensamento do autor.
palavra que significava construir, mas que também dizia
habitar. Buan, construir-habitar, por sua vez, remetia a ich
bin, du bist: eu sou, tu és. “Eu sou” significava: eu habito.

Conforme Heidegger:

Bauen, buan, bhu, beo é, na verdade, a mesma palavra alemã bin, eu sou
nas conjugações ich bin, du bist, eu sou, tu és, nas formas imperativas bis,
sei, sê, sede. O que diz então: eu sou? A antiga palavra bauen (construir)
a que pertence bin, sou, responde: ich bin, du bist (eu sou, tu és) significa:
eu habito, tu habitas. A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o
qual somos homens sobre essa terra é o Baum, habitar (HEIDEGGER,
2001, p. 127).

No início da conferência Construir, habitar, pensar, de 1951, Heidegger define habitar


como pertencimento íntimo, essencial do homem àquilo que mais o caracteriza. Para
tanto, lembramos então o fragmento 119 de Heráclito citado acima: “A morada do homem,
o extraordinário” (HERÁCLITO, apud CARNEIRO LEÃO, 2005, 91). Contudo, não é um
extraordinário como algo fora do comum, não cotidiano, mas, apenas com um caráter de
experiência fundamental. Essencial, nesse contexto, significa a experiência de realização de
uma maneira muito especial de ser do homem.

Pertencer essencialmente ao mundo constitui uma forma determinante de o homem ser no


mundo, pois, como foi exposto, pertencer diz: ser habituado a, de-morar-se em. O habitar
sempre se revela no desempenho de algo habitual, comum e cotidiano. O poeta habita a
poesia na medida em que poetiza, quando está ocupado daquilo que mais o necessita. Habitar
é estar abandonado ao que cotidianamente se mostra de forma comum, tornando-se hábito,
ao qual se pertence propriamente. O hábito cotidiano é aquilo que cunha um caráter, traça
a marca, forja um estigma: constrói identidade.

O modo radical de o homem existir no mundo, segundo Heidegger, é o habitar.

Nessa perspectiva, Heidegger pensa o habitar como modo no qual os homens demoram-se
nisso que lhe é essencial e habitual sobre no mundo. Por isso, habitar significa estar entregue
àquilo que mais nos é íntimo. O nosso mundo se mostra na medida em que constitui a dimensão
mais própria de realização do mundo por realizar-se, em sua verdade, enquanto modo de
acontecimento e instauração originária do próprio mundo. E para dizer esse acontecimento
tão fundamental, a linguagem carece de seu dizer mais elevado, qual seja, o dizer poético.

Mas, a partir desse ponto, deveríamos investigar a linguagem poética, que não é nosso objetivo.

Com isso, terminamos mais uma unidade, talvez o mais complexo por sua temática.
Não deixe de estudar. Filosofia não é um saber de fácil apreensão. Mas, com toda a certeza,
o mais belo. Porém, para isso, devemos fazer o movimento de ir ao seu encontro, e isso nos
impele a estudar muito!

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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