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Da Divisão do Trabalho Social (1893)

Émile Durkheim

INTRODUÇÃO
Embora a divisão do trabalho não seja de ontem, foi somente no fim do século
passado que as sociedades começaram a tomar consciência desta lei que, até então,
sofreram quase sem saber. Sem dúvida desde a Antiguidade vários pensadores
aperceberam-se da sua importância: mas foi Adam Smith o primeiro a tentar enquadra-la
teoricamente. Foi, aliás, ele quem criou a expressão, que a Ciência Social mais tarde
emprestou à Biologia.
Hoje este fenômeno generalizou-se a um tal ponto que se torna evidente para todos.
Não há já ilusão possível acerca das tendências da nossa indústria moderna; ela assenta
cada vez mais em potentes mecanismos, em grandes conjuntos de forças e de capitais e, por
conseqüência, na extrema divisão do trabalho. Não somente no interior das fábricas as
ocupações se separaram e se especializaram infinitamente, como cada manufatura é, ela
própria, uma especialidade, que supõe outras. Adam Smith e Stuart Mill esperavam ainda
que pelo menos a agricultura fosse exceção à regra, e viam nela o último reduto da pequena
propriedade. Embora em semelhante matéria seja preciso precavermo-nos contra a
generalização desmedida, parece, no entanto, difícil contestar hoje que os principais ramos
da indústria agrícola são cada vez mais arrastados no movimento geral. Enfim, o próprio
comércio esforça-se por seguir e por refletir, com todas as suas gradações, a infinita
diversidade das empresas industriais, e enquanto esta evolução se realiza com uma
espontaneidade irrefletida, os economistas, que lhe perscrutam as causas e apreciam os
resultados, longe de a condenar e de a combater, proclamam a sua necessidade. Vêem nisso
a lei superior das sociedades humanas e a condição do progresso.
Mas a divisão do trabalho não é específica ao mundo econômico; pode-se observar a
sua influência crescente nas mais diferentes áreas da sociedade. As funções políticas,
administrativas, judiciárias especializam-se cada vez mais. O mesmo acontece com as
funções artísticas e científicas. Estamos longe do tempo em que a Filosofia era a ciência
única; ela fragmentou-se numa quantidade de disciplinas particulares, tendo cada uma o seu
objeto, o seu método, o seu espírito. “De meio século em meio século os homens que se
evidenciam nas ciências são cada vez mais especialistas”.
Querendo mostrar a natureza dos estudos de que se tinham ocupado os cientistas
mais ilustres desde há dois séculos, De Candolle notou que na época de Leibnitz e de
Newton teria sido preciso fazer menção “quase sempre de duas ou três designações para
cada cientistas”; por exemplo, astrônomo e físico ou matemático, astrônomo e físico; ou
então utilizar termos genéricos como filósofo ou naturalista. Mesmo isto não seria
suficiente. Os matemáticos e os naturalistas eram por vezes eruditos ou poetas. Mesmo no
fim do século XVIII, designações múltiplas teriam sido necessárias para indicar exatamente
aquilo que homens como Wolff, Haller, Charles Bonnet tinham de notável em vários
domínios das ciências e das letras. No século XIX esta dificuldade já não existe ou, pelo
menos, é muito rara”. Não só o cientista não cultiva já simultaneamente ciências diferentes,
como nem sequer abarca mesmo o domínio completo de uma ciência. O âmbito das suas

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pesquisas restringe-se a uma ordem determinada de problemas ou mesmo a um único
problema. Ao mesmo tempo, a função científica, que outrora era acumulada quase sempre
com outra mais lucrativa, como a de médico, padre, magistrado ou militar, basta-se cada
vez mais a si própria. De Candolle prevê mesmo que proximamente a profissão de cientista
e a de professor, hoje ainda tão intimamente ligadas, se dissociarão em definitivo.
As recentes especulações da filosofia biológica acabaram por nos fazer ver na
divisão do trabalho um fato de uma tal generalidade, que os economistas, que dele falaram
pela primeira vez, não teriam suspeitado. Com efeito, sabe-se, depois dos trabalhos de
Wolff, de Von Baer, de Milne-Edwards, que a lei da divisão do trabalho se aplica tanto aos
organismos como às sociedades; pôde-se mesmo dizer que um organismo ocupa um lugar
tanto mais elevado na escala animal quanto mais nele as funções estão especializadas. Esta
descoberta teve por efeito, simultaneamente, estender desmedidamente o campo de ação da
divisão do trabalho e atirar as suas origens para um passado infinitamente longínquo, já que
ela é quase contemporânea do aparecimento da vida no mundo. Não é apenas uma
instituição social que tem a sua origem na inteligência e na vontade dos homens; mas é um
fenômeno de biologia geral de que é preciso, parece, ir procurar as condições nas
propriedades essenciais da matéria organizada. A divisão do trabalho social já não aparece
senão como uma forma particular deste processus geral, e as sociedades, conformando-se a
essa lei, parecem ceder a uma corrente nascida bem antes delas e que arrasta num mesmo
sentido o mundo vivo por inteiro.
(...)

LIVRO I - A FUNÇÃO DA DIVISÃO DO TRABALHO


CAPÍTULO I - MÉTODO PARA DETERMINAR ESSA FUNÇÃO
(...)
Mas como proceder a essa verificação? [Se, de fato, na sociedade em que vivemos,
é da divisão do trabalho que deriva essencialmente a solidariedade social.]
Não temos simplesmente que procurar se, neste tipo de sociedade, existe uma
solidariedade social que provém da divisão do trabalho. É uma verdade evidente, pois a
divisão do trabalho está aí muito desenvolvida e produz a solidariedade. Mas é preciso,
sobretudo, determinar em que medida a solidariedade que ela produz contribui para a
integração geral da sociedade: pois é somente então que saberemos até que ponto ela é
necessária, se é um fato essencial da coesão social ou, pelo contrário, se não é senão uma
condição acessória e secundária. Para responder a esta questão, é preciso comparar este
laço social aos outros, a fim de medir a parte que lhe pertence no efeito total, e para isto é
indispensável começar por classificar as diferentes espécies de solidariedade social.
Mas a solidariedade social é um fenômeno completamente moral que, por si
próprio, não se presta à observação exata nem, sobretudo, à medida. Para proceder, quer a
esta classificação, quer a esta comparação, é preciso, portanto, substituir o fato interior, que
nos escapa, pelo fato exterior, que o simboliza, e estudar o primeiro através do segundo.
Este símbolo visível é o direito. Com efeito, onde a solidariedade social existe,
apesar do seu caráter imaterial, ela não permanece no estado de potência pura, mas

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manifesta a sua presença através de efeitos sensíveis. Onde ela é forte, inclina fortemente os
homens uns para os outros, põe-nos frequentemente em contato, multiplica as ocasiões de
entrarem em relação. Em rigor, no ponto a que chegamos, é difícil dizer se é ela que produz
estes fenômenos ou, pelo contrário, se deles resulta; se os homens se aproximam porque ela
é enérgica, ou se, pelo contrário, é enérgica porque eles se aproximam uns dos outros. Mas,
de momento, não é necessário elucidar a questão e basta verificar que estas duas ordens de
fatos se encontram ligadas e variam ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Quanto mais os
membros de uma sociedade são solidários, mais eles mantêm relações diversas, quer uns
com os outros, quer com o grupo tomado coletivamente: porque, se os seus encontros
fossem raros, eles não dependeriam uns dos outros senão de uma maneira intermitente e
fraca. Por outro lado, o número destas relações é necessariamente proporcional ao das
normas jurídicas que as determinam. Com efeito, a vida social, por todo o lado onde ela
existe de uma maneira durável, tende inevitavelmente a tomar uma forma definida e
organizar-se e o direito não é outra coisa senão esta mesma organização, naquilo que ela
tem de mais estável e de mais preciso. A vida geral da sociedade não pode estender-se num
certo sentido sem que a vida jurídica para aí se estenda ao mesmo tempo e na mesma
proporção. Podemos assim estar certos de encontrar refletidas no direito todas as variedades
essenciais da solidariedade social.
Poder-se-ia objetar, é verdade, que as relações sociais podem fixar-se sem tomarem
para isso uma forma jurídica. Assim é, quando a regulamentação não atinge um dado grau
de consolidação e de precisão; mas nem por isso aquelas relações ficam indeterminadas; em
vez de serem reguladas pelo direito, são-no pelo costume. O direito não reflete, portanto,
senão uma parte da vida social, e por conseqüência, não nos fornece senão dados
incompletos para resolver o problema. Há mais: acontece frequentemente que os costumes
não estão em concordância com o direito; diz-se incessantemente que aqueles lhe moderam
os rigores, que lhe corrigem os excessos formalistas, por vezes mesmo que estão animados
de um espírito completamente diferente. Não poderá acontecer que manifestem espécies de
solidariedade social diferentes daquelas que o direito positivo exprime?
Mas esta oposição somente se produz em circunstâncias absolutamente
excepcionais. É preciso para isso que o direito já não corresponda à situação vigente na
sociedade e que, no entanto, ele se mantenha, sem razão de ser, pela força do hábito. Com
efeito, neste caso, e apesar disso, as novas relações que se estabelecem não deixam de se
organizar; porque não podem subsistir sem procurar consolidar-se. Somente, como estão
em conflito com o antigo direito que persiste, não ultrapassam o estádio dos costumes e não
chegam a entrar na vida jurídica propriamente dita. É assim que surge o antagonismo. Mas
este não se pode produzir senão em casos raros e patológicos, que não podem prolongar-se
sem perigo. Normalmente, os costumes não se opõem ao direito, mas, pelo contrário,
constituem-lhe a base. Pode acontecer, é verdade, que sobre esta base nada se erga. Pode
haver relações sociais que apenas comportem essa regulamentação difusa que provém dos
costumes, mas é porque carecem de importância e continuidade, exceto, bem entendido,
nos casos anormais que acabamos de tratar. Assim, se pode acontecer que haja tipos de
solidariedade social que só os costumes manifestam, são certamente muito secundários;
pelo contrário, o direito reproduz todos aqueles que são essenciais e esses são os únicos que
temos necessidade de conhecer.

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Poder-se-á ir mais longe e sustentar que a solidariedade social não se encontra por
completo na suas manifestações sensíveis? Que estas apenas a expressam em parte e
imperfeitamente? Que para além do direito e dos costumes existe o estado interior donde
ela deriva e que, para a conhecer verdadeiramente, é preciso atingi-la em si própria e sem
intermediários? Mas não podemos conhecer cientificamente as causas senão através dos
efeitos que produzem, e, para melhor determinar a sua natureza, a ciência não faz senão
escolher de entre esses resultados àqueles que são mais objetivos e que melhor se prestam à
medida. Ela estuda o calor através das variações de volume que as mudanças de
temperatura produzem nos corpos, a eletricidade através dos seus efeitos físico-químicos, a
força através do movimento. Por que é que a solidariedade social haveria de ser exceção?
Aliás, o que é que subsistiria dela uma vez despojada das suas formas sociais? O
que dá as suas características específicas é a natureza do grupo de que ela assegura a
unidade, é por isso que ela varia consoante os tipos sociais. Ela não é a mesma no seio da
família e nas sociedades políticas; nós não estamos vinculados à nossa pátria da mesma
maneira que o Romano estava à cidade, ou o germano à sua tribo. Mas porque estas
diferenças têm que ver com causas sociais, só podemos configurá-las através das diferenças
que os efeitos sociais da solidariedade apresentam. Assim, se negligenciarmos estas
últimas, todas estas variedades se tornam indiscerníveis e já não nos apercebemos senão do
que lhes é comum a todas, a saber, a tendência geral à sociabilidade, tendência que é
sempre e por todo o lado à mesma, e não está ligada a nenhum tipo social em particular.
Mas este resíduo não é senão uma abstração; pois a sociabilidade em si não se encontra em
parte alguma. O que existe e vive realmente são as formas particulares da solidariedade, a
solidariedade doméstica, a solidariedade profissional, a solidariedade nacional, a de ontem,
a de hoje, etc. Cada uma tem a sua natureza própria; por conseqüência, estas generalidades
não poderiam em qualquer caso dar do fenômeno senão uma explicação bem incompleta,
pois que deixam necessariamente escapar aquilo que têm de concreto e de vivo.
O estudo da solidariedade releva assim da Sociologia. É um fato social que não se
pode conhecer bem a não ser por intermédio dos seus efeitos sociais. Se tantos moralistas e
psicólogos puderam tratar da questão sem seguir este método, foi porque tornearam a
dificuldade. Eliminaram do fenômeno tudo o que ele tem de mais especificamente social
para apenas reterem o núcleo psicológico de que ele é o desenvolvimento. Com efeito, é
certo que a solidariedade, sendo em primeiro lugar um fato social, depende do nosso
organismo individual. Para que ela possa existir, é preciso que a nossa constituição física e
psíquica a comporte. Em rigor, podemo-nos, pois, contentar em estudá-la sob este aspecto.
Mas, neste caso, dela não se vê senão a parte mais indistinta e menos específica; não se
trata dela propriamente, mas antes do que a torna possível.
Mesmo este estudo abstrato não poderia ser muito fecundo em resultados. Porque
enquanto permanece no estado de simples predisposição da nossa natureza psíquica, a
solidariedade é qualquer coisa de demasiado indefinido para que se possa facilmente atingi-
la. É uma virtualidade intangível que não se abre à observação. Para que tome uma forma
perceptível, é preciso que algumas conseqüências sociais a traduzam no exterior. Além
disso, mesmo nesse estado de indeterminação, ela depende de condições sociais que a
explicam e de que, consequentemente, ela não pode ser desligada. É por isso que não é raro
que nestas análises de pura psicologia se encontrem misturados alguns pontos de vista
sociológicos. Por exemplo, dizem-se algumas palavras sobre a influência do estado

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gregário na formação do sentimento social em geral; ou então se indicam rapidamente as
principais relações sociais de que a solidariedade depende de maneira mais aparente.
Certamente que estas considerações complementares, introduzidas sem elucidar
grandemente a natureza social da solidariedade. Elas demonstram, pelo menos, que o ponto
de vista sociológico se impõe mesmo aos psicólogos.
O nosso método está assim completamente traçado. Já que o direito reproduz as
formas principais da solidariedade social, não temos mais do que classificar as diferentes
espécies de direito para procurar em seguida quais são as diferentes espécies de
solidariedade social que lhes correspondem. Desde já, é provável que haja uma que
simbolize essa solidariedade especial de que a divisão do trabalho é a causa. Feito isto, para
medir a importância desta última bastará comparar o número de normas jurídicas que a
exprimem ao volume total do direito.
Para este trabalho, não nos podemos servir das distinções comuns dos
jurisconsultos. Criadas pela prática, podem ser muito cômodas desse ponto de vista, mas a
ciência não pode contentar-se com estas classificações empíricas e aproximadas. A mais
divulgada é a que divide o direito em direito público e em direito privado; o primeiro é
suposto regular as relações entre o indivíduo e o Estado, o segundo as relações dos
indivíduos entre si. Mas quando se trata de analisar os termos com mais minúcia, a linha de
demarcação, que parecia tão nítida à primeira vista, esbate-se. Todo o direito é privado no
sentido em que são sempre e por todo o lado os indivíduos que se encontram em presença e
que agem; mas principalmente todo o direito é público, no sentido em que ele é uma função
social e que todos os indivíduos são, embora a diversos títulos, funcionários da sociedade.
As funções maritais, paternais etc., não são delimitadas nem organizadas de maneira
diferente das funções ministeriais e legislativas e não foi sem razão que o direito romano
qualificou a tutela de munus publicum. O que é então o Estado? Onde começa e onde
acaba? Sabe-se quanto é controversa a questão; não é científico fazer assentar uma
classificação fundamental numa noção tão obscura e mal analisada.
Para proceder metodicamente é preciso encontrar alguma característica que sendo
essencial aos fenômenos jurídicos, seja susceptível de variar quando eles variam. Ora, todo
o preceito de direito pode ser definido: uma regra de conduta sancionada. Por outro lado, é
evidente que as sanções mudam conforme a gravidade atribuída aos preceitos, o lugar que
ocupam na consciência pública, o papel que desempenham na sociedade. É conveniente
assim classificar as normas jurídicas segundo as diferentes sanções que lhes estão adstritas.
Trata-se de duas espécies. Umas consistem essencialmente numa pena, ou, pelo
menos, numa limitação infligida ao agente; têm por objeto atingi-lo no seu pecúlio, ou na
sua honra, ou na sua vida, ou na sua liberdade, priva-lo de qualquer coisa de que goze. Diz-
se que são repressivas; é o caso do direito penal. É verdade que aquelas que estão adstritas
às normas puramente morais têm o mesmo caráter: apenas estão distribuídas de uma
maneira difusa por toda a gente indistintamente, enquanto que as do direito penal não são
aplicadas senão por intermédio de um órgão definido; estão organizadas. Quanto à outra
espécie, ela não implica necessariamente um sofrimento do agente, mas consiste somente
na reposição das coisas, no restabelecimento das relações atingidas na sua forma normal,
quer o ato incriminado seja reconduzido pela força à forma de que se desviou, quer seja
anulado, isto é, privado de qualquer valor social. Deve-se, portanto, repartir em dois
grandes tipos as normas jurídicas, consoante sejam sanções repressivas organizadas ou

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sanções apenas restitutivas. A primeira compreende todo o direito penal; a segunda, o
direito civil, o direito comercial, o direito processual, o direito administrativo e
constitucional, abstração feita das normas penais que aí se podem encontrar.
Procuremos agora a que espécie de solidariedade social corresponde cada um destes
tipos.

CAPÍTULO II - SOLIDARIEDADE MECÂNICA OU POR SIMILITUDE


O laço de solidariedade social a que corresponde o direito repressivo é aquele cuja
ruptura constitui o crime; designamos por este nome todo o ato que, num qualquer grau,
determina contra o seu autor essa reação característica a que se chama a pena. Procurar que
laço é este, é, portanto, perguntar qual é a causa da pena, ou, mais claramente, em que é que
o crime essencialmente consiste.
Há, sem dúvida, crime de espécies diferentes; mas entre todas esses espécies há, não
menos seguramente, qualquer coisa em comum. O que o prova, é que a reação que
determinam por parte da sociedade, ou seja, a pena, é, salvo diferenças de grau, sempre e
por todo o lado a mesma. A unidade do efeito revela a unidade da causa. Não apenas entre
todos os crimes previstos pela legislação de uma só e mesma sociedade, mas entre todos
aqueles que foram ou que são reconhecidos e punidos nos diferentes tipos sociais, existem
seguramente semelhanças essenciais. Por mais diferentes que à primeira vista pareçam os
atos assim qualificados, é impossível que não tenham qualquer fundo comum. Pois afetam
por todo o lado da mesma maneira a consciência moral das nações e por todo o lado
produzem as mesmas conseqüências. Todos eles constituem crimes, isto é, atos reprimidos
através de castigos definidos. Ora, as propriedades essenciais de uma coisa são as que se
observam por todo o lado onde essa coisa existe e que apenas pertencem a ela.
(...)
Resulta deste capítulo que existe uma solidariedade social que provém do fato de
um certo número de estados de consciência serem comuns a todos os membros da mesma
sociedade. É essa solidariedade que o direito repressivo configura materialmente, pelo
menos no que tem de essencial. A parte que tem na integração geral da sociedade depende
evidentemente da amplitude maior ou menor da vida social que a consciência comum
abarca e regulamenta. Quanto mais relações diversas houver em que esta última faça sentir
a sua ação, mais também ela cria laços que prendem o indivíduo ao grupo;
consequentemente, mais a coesão social deriva completamente desta cousa e dela traz a
marca. Mas, por outro lado, o número destas relações é ele próprio proporcional ao das
normas repressivas; determinando qual a fração do aparelho jurídico que representa o
direito penal, medimos, portanto simultaneamente a importância relativa desta
solidariedade. É verdade que ao procedermos desta maneira não levamos em conta certos
elementos da consciência coletiva que, em virtude da sua menor energia, ou da sua
indeterminação, permanecem estranhos ao direito repressivo, contribuindo sempre para
assegurar a harmonia social; são aqueles que são protegidos por penas simplesmente
difusas. Mas o mesmo se passa com as outras partes do direito. Não há nenhuma delas que
não seja completada pelos costumes, e como não há razão para supor que a relação entre o
direito e os costumes não seja a mesma nessas diferentes esferas, esta eliminação não corre
o risco de alterar os resultado da nossa comparação.

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CAPÍTULO 3 - A SOLIDARIEDADE DEVIDA À DIVISÃO DO TRABALHO OU
ORGÂNICA
A própria natureza da sanção restitutiva basta para mostrar que a solidariedade
social, à qual corresponde este direito, é de uma espécie completamente diferente.
O que distingue esta sanção é que ela não é expiatória, mas reduz-se a uma simples
reposição das coisas. Um sofrimento proporcional ao dano não é infligido àquele que
violou o direito, ou que o desconhece; este é simplesmente condenado a submeter-se-lhe.
Se houver já fatos consumados, o juiz repõe-os tal como deveriam ser. Ele dita o direito,
não dita penas. As perdas e danos não têm caráter penal; é apenas um meio de voltar ao
passado para o restituir tanto quanto possível à sua forma normal.
(...)
Mas, se bem que estas normas estejam mais ou menos fora da consciência coletiva,
elas não dizem respeito somente aos particulares. Se assim fosse, o direito restitutivo não
teria nada em comum com a solidariedade social, porque as relações que ele regula ligariam
os indivíduos uns aos outros sem os vincular à sociedade. Seriam simples acontecimentos
da vida privada como, por exemplo, as relações de amizade. Mas estamos longe de que a
sociedade esteja ausente desta esfera da vida jurídica. É verdade que, em geral, ela não
intervém por si própria e pelo seu próprio movimento; é preciso que seja solicitada pelos
interessados. Mas, sendo provocada, a sua intervenção nem por isso é menos a engrenagem
essencial do mecanismo, pois que ela o faz funcionar. É ela que dita o direito por
intermédio dos seus representantes.
(...)
Já que as normas de sanção restitutiva são estranhas à consciência comum, as
relações que determinam não são das que indistintamente atingem toda a gente; quer dizer
que estas se estabelecem imediatamente, não entre o indivíduo e a sociedade, mas entre
partes restritas e especiais da sociedade, que ligam entre si. Mas, por outro lado, uma vez
que esta não está ausente, é preciso que ela esteja mais ou menos diretamente interessada,
que lhe sinta as incidências. Então, consoante a vivacidade com a qual as sente, intervirá
mais ou menos prontamente a representar. Estas relações são assim bem diferentes daquelas
que o direito repressivo regula, pois estas ligam diretamente, e sem intermediários, a
consciência particular à consciência coletiva, quer dizer, o indivíduo à sociedade.

Trechos extraídos da seleção disponível in: SOUTO, Cláudio; FALCÃO, Joaquim (orgs.).
Sociologia e Direito. 2ª ed. São Paulo: Pioneira, 1999, p. 99-108.

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