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Cosmopolíticas no nordeste,

leste e Amazônia indígenas

Autores:

Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira


Antonio Plácido Matos Portela
Clarissa Martins Lima
Deanny Stacy Sousa Lemos
Ernenek Mejía Lara
Fernanda Lima Almeida
Florêncio Almeida Vaz Filho
Gabriel Cardoso
Hugo Ciavatta
Jardel Jesus Santos Rodrigues
José Glebson Vieira
Larissa Santiago Hohenfeld
Maria Rosário de Carvalho
Mbo’esara Esãîã Tremembé
Ugo Maia Andrade
Vanessa Morais
© 2021 Autores. Direitos para esta edição cedidos à Editora UFS. Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de
impressão, em forma idêntica, resumida ou modificada, em Língua Portuguesa ou qualquer outro idioma. Este livro segue as
normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

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Reitor

Valter Joviniano de Santana Filho Obra selecionada e publicada com recursos


públicos advindos do Edital 001/2020 do
Programa Editorial da UFS.
Vice-reitor 1 of 1 12/03/2021 10:59

Rosalvo Ferreira Santos


Revisão

EDITORA DA UNIVERSIDADE Daniele Francisca Martins do Nascimento


FEDERAL DE SERGIPE Michele Barboza Dunda

Coordenadora do Programa Editorial Capa e Projeto Gráfico


Maíra Carneiro Bittencourt Maia Ramon Silva Oliveira

Coordenador Gráfico da Editora UFS Diagramação


1 of 1 12/03/2021 10:59

Luís Américo Silva Bonfim Jeane de Santana


Ramon Silva Oliveira
Conselho Editorial da Editora UFS
Alisson Marcel Souza de Oliveira Imagens das Separatrizes

Ana Beatriz Garcia Costa Rodrigues Ernenek Mejía Lara

Carla Patrícia Hernandez Alves Ribeiro César


FICHA CATALOGRÁFICA
Cristina de Almeida Valença Cunha Barroso
Elaborada pela Biblioteca Central –
Fernando Bittencourt dos Santos Universidade Federal de Sergipe
Flávia Lopes Pacheco
Por uma etnologia transversa [recurso eletrônico] :
Jacqueline Rego da Silva Rodrigues cosmopolíticas no Nordeste, Leste e Amazônia
P832 indígenas / Ernenek Mejía Lara, Maria Rosário
Joaquim Tavares da Conceição de Carvalho, Ugo Maia Andrade (Orgs.). – São
Cristóvão, SE : Editora UFS, 2021.
Luís Américo Silva Bonfim 374 p. : il.

Maíra Carneiro Bittencourt Maia (Presidente)


ISBN: 978-65-86195-62-0
Ricardo Nascimento Abreu
1. Etnologia. 2. Cosmopolítica. 3. Indígenas da
América do Sul – Brasil. 4. Xamanismo. 5. Amazônia.
Yzila Liziane Farias Maia de Araújo 6. Brasil, Nordeste. I. Lara, Ernenek Mejía. II. Carvalho,
Maria Rosário de. III. Andrade, Ugo Maia.

CDU 39(=1-82)(81)

Cidade Universitária “Prof. José Aloísio de Campos” | CEP 49.100-000 – São Cristóvão - SE | Telefone: 3194 - 6922/6923.
e-mail: editora@ufs.brBrasil em 2009.
SUMÁRIO
7 ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

PARTE 1 - XAMANISMO, ALTERIDADES,


PRÁTICAS RITUAIS E COSMOPOLÍTICAS
24 AKROÁ GAMELLA E A TERRA ENCANTADA
Deanny Stacy Sousa Lemos

36 CANTANDO E MARCANDO REDES COSMOPOLÍTICAS


Ugo Maia Andrade

72 AWKHÊÊ PRESENTE: COSMOPOLÍTICA E MESSIA-


NISMO CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

98 TORÉ ANACÉ: CANTOS, NARRATIVAS E POLÍTICAS


DE UM RITUAL INDÍGENA
Antonio Plácido Matos Portela

117 “TUDO O QUE É RUIM ESSA FOLHA RETIRA”:


RITUAIS DE CURA PARA AFLIÇÕES ESPIRITUAIS
NA ALDEIA TUPINAMBÁ SERRA DO PADEIRO
Larissa Santiago Hohenfeld

142 BREVES NOTAS SOBRE O RITUAL DE MORTE


ENTRE OS KIRIRI
Jardel Jesus Santos Rodrigues
SUMÁRIO
PARTE 2 - RETOMADAS, CONFLITOS
E DISPUTAS COSMOPOLÍTICAS
161 XAMANISMO E COSMOPOLÍTICA:
‘CULTURAS’ E ETNICIDADE NO POVO KIRIRI
Gabriel Cardoso e Vanessa Morais

183 CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS


NO NORDESTE BRASILEIRO, UM ESPELHO INFINITO
Ernenek Mejía Lara

209 TRANSFORMAÇÕES, HISTÓRIA E CULTURA


NA ETNOLOGIA DOS POVOS INDÍGENAS
DO NORDESTE
José Glebson Vieira

237 DESCOBRINDO UM XAMÃ


Hugo Ciavatta

259 RELAÇÕES DE ALIANÇA PODEM SUBVERTER


SECCIONALISMOS HISTÓRICOS? UMA ANÁLISE
DO CONTEXTO KIRIRI
Fernanda Lima Almeida
SUMÁRIO
PARTE 3 - DEFININDO E REORDENANDO
RELAÇÕES COM INTENCIONALIDADES
NÃO HUMANAS
276 A PERSPECTIVA INVERSA YANONAMI
DA EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES
Mbo’esara Esãîã Tremembé

300 NA SOMBRA DA JUREMA


Clarissa Martins Lima

329 INTERAÇÃO HUMANOS E NÃO HUMANOS


EM CONTEXTO DE TENSÃO COSMOLÓGICA
Maria Rosário de Carvalho

353 OS CURUPIRAS NÃO FORAM EMBORA?


OS ENCANTADOS NA RESISTÊNCIA
INDÍGENA NO BAIXO RIO TAPAJÓS
Florêncio Almeida Vaz Filho
ANTECEDENTES
DA COLETÂNEA
1

A presente coletânea reúne os materiais diversos apresenta-


dos no Grupo de Trabalho (GT) “Cosmopolíticas e resiliência
no Norte e Nordeste indígenas do Brasil” e na Mesa-Redonda
(MR) “Etnologia dos povos indígenas do Nordeste: balanço
crítico-reflexivo” – da VI Reunião Equatorial de Antropologia
(REA), realizada em dezembro de 2019, no campus de Ondina
da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador, Bahia.
Tais atividades concentraram-se, respectivamente, em debater
aspectos etnográficos e teóricos atinentes às cosmopolíticas
no Nordeste e Amazônia indígenas e em avaliar os avanços
produzidos, nos últimos 25 anos, pela literatura sobre índios
no Nordeste, assim como apreciar sua contribuição para a et-
nologia brasileira. Ambas as atividades constituem o prolon-
gamento de diversos esforços realizados para criar espaços de
debate e de exercícios comparativos teórico-etnográficos de
duas regiões percebidas e, em certo sentido, mantidas como
díspares na etnologia nacional: Nordeste (aqui incluída a região
Leste, composta por Sul da Bahia e os estados de Minas Gerais
e Espírito Santo) e Amazônia. Tal diligência é fruto tanto de uma

1. Ernenek Mejía Lara


Maria Rosário de Carvalho
Ugo Maia Andrade

Fonte: Ugo Maia Andrade, rio Uaçá/AP, 2004


ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

demanda reprimida e cansada de ver dois países na etnologia in-


dígena brasileira quanto de experiências de pesquisa dos próprios
coordenadores desta coletânea, que – a partir do trânsito entre a
Amazônia e o Nordeste indígenas – têm buscado aproximar essas
duas regiões etnográficas como uma etnologia transversa.

A aventura dos fóruns dedicados a tal reflexividade etnológica, que


já soma quase uma década, surgiu como uma espécie de compa-
ração controlada e a posteriori. Iniciada na III REA / XII ABANNE,
realizada em Boa Vista, Roraima, em 2011, o manifesto dessa et-
nologia transversa, seminalmente cristalizada no GT “A etnologia
indígena da Amazônia e do Nordeste Brasileiro” –, propunha, então,
“proporcionar um espaço de reflexão sobre sistemas ameríndios
não comprometidos com dicotomias do tipo ‘externalismo X in-
ternalismo’”, suplantando, assim, polarizações academicamente
consolidadas que opõem as relações (e seus efeitos) com o Estado
às dinâmicas societárias mobilizadas pelo parentesco, pela guer-
ra e pelo xamanismo. Esse espaço de diálogo, preambular e não
segmentado, entre pesquisas tematicamente diversas sobre cole-
tivos indígenas na Amazônia e no Nordeste/Leste consistiu numa
experiência de “etnologia cruzada” estimulada tanto pelos estudos
de sociogênese e movimentos de reetnização na Amazônia, alguns
deles já clássicos, como Jonathan Hill (1996), quanto pelas pesqui-
sas recentes sobre as cosmologias do toré.

O passo seguinte da aventura veio com o GT “Amazônia e Nordeste


indígenas: por uma etnologia transversa”, presente na programa-
ção da 28a Reunião Brasileira de Antropologia (RBA), realizada na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em julho de
2012. Com o ânimo alentado pela boa adesão ao GT da ABANNE do
ano anterior, pretendeu-se, na 28a RBA, reunir pesquisadores com
interesses comuns na construção de comparações etnográficas e
históricas entre Nordeste e Amazônia indígenas, ainda dentro do
espírito de buscar alternativas à clássica dicotomia “externalismo
X internalismo” vigente na etnologia produzida sobre essas regi-
ões. Em 2013, na IV REA e na XIII ABANNE, realizadas no campus da

8
ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

Universidade Federal do Ceará (UFC) em Fortaleza, continuou-se,


com o GT “Diálogos transversais: pesquisas em etnologia indígena
na Amazônia e no Nordeste”, a reunir resultados de pesquisas de-
senvolvidas sobre povos indígenas sem a “clássica dicotomia” di-
fundida na etnologia brasileira, primando, assim, pela diversidade
temática passível de oferecer possibilidades mais amplas para um
diálogo transregional. Educação escolar indígena, território, cosmo-
logia e etnicidade prevaleceram entre as comunicações que busca-
ram, simultaneamente, refletir sobre problemas locais com o olho
em etnografias desenvolvidas em contextos alternos de pesquisa.

Na 29a RBA, no campus da Universidade Federal do Rio Grande do


Norte (UFRN), em Natal, em 2014, a atividade de etnologia trans-
versa ficou por conta da Mesa-Redonda “Etnologias da Amazônia
e região Nordeste/Leste: diálogos, convergências e intersecções”,
que propôs abordar eixos pertinentes de aproximação/compara-
ção entre sistemas ameríndios na Amazônia e no Nordeste/Leste,
seguindo a reflexão iniciada na REA/ABANNE, três anos antes. Após
uma pausa de cinco anos, eis que acontece, na REA de 2019, o GT
de onde a presente coletânea é oriunda, e que também compôs a
programação da 32a RBA em 2021, o GT “Amazônia e Nordeste indí-
genas: por uma etnologia transversa”, oportunidade em que se pre-
tende, mais uma vez, fazer convergir os interesses na construção
de comparações etnológicas Amazônia-Nordeste/Leste, tomando
como referência eixos comuns que perpassam, nessas regiões, re-
lações interindígenas, entre índios e não índios e entre humanos e
não humanos.

Diga-se, ainda, que as edições citadas foram beneficiadas e valori-


zadas pela presença de colegas, de instituições como Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal da Bahia
(UFBA) e Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), que fun-
cionaram como debatedores em GTs ou conferencistas da mesa-
-redonda que integrou a programação da RBA de 2014.

9
ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

CONTROLES COMPARATIVOS
Não obstante já tenham passado nove anos desde a primeira ex-
periência da proposta de diálogo entre as etnologias produzidas
sobre Amazônia e Nordeste (lembrando a inclusão aqui do Leste),
ainda é possível discutir-se a complexidade subjacente à própria
comparação enquanto modo analítico de extrair resultados, uma
vez que é necessário estar atento à comparatibilidade dos termos
comparados. Isso nos recorda a baixa univocidade do método com-
parativo na história da antropologia, que remonta aos primórdios
da disciplina. Franz Boas (2005) – que opôs seu método histórico
ao método comparativo do evolucionismo cultural – é o respon-
sável por duas injeções precípuas na antropologia: uma ideológica
(o relativismo) e outra metodológica (o indutivismo etnográfico).
Em relação a ambas e respondendo (sempre) aos a priori da teoria
evolucionista, Boas (2005, p. 32) postularia que “[...] antes de se
tecerem comparações mais amplas, é preciso comprovar a com-
parabilidade do material”. Aqui, o seu próprio a priori é “só se pode
comparar o que é comparável”.

Com tal suspeita, a antropologia cultural norte-americana pôs o méto-


do comparativo na geladeira, salvaguardando o significado, a diferen-
ça, a diversidade e a história como o elã vital da cultura. Desconfiado
das comparações, mas sem se abster de fazê-las, na versão “controla-
da”, Boas criou seu próprio estilo comparativo autorizado a funcionar
pela equivalência de significados (em oposição à equivalência mor-
fológica de Morgan) encontrados em áreas culturais historicamente
conectadas. Pois, só se pode comparar o que é comparável.

Mauss (2003, p. 189), animado leitor de Boas, inicia o Ensaio sobre


a dádiva advertindo que “[...] cada estudo teve por objeto sistemas
que nos limitamos a descrever, um após o outro, em sua integrida-
de; renunciamos, portanto, a essa comparação constante em que
tudo se mistura e em que as instituições perdem toda cor local, e
os documentos seu sabor”. Inversamente, Radcliffe-Brown (1978,

10
ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

p. 43), um comparativista à moda antiga em busca de universais,


vai aclamar “[...] as variedades de formas da vida social” como ob-
jeto da comparação em Antropologia Social (eleita como um ramo
da Sociologia Comparativa, não nos esqueçamos). Como Boas, ele
pressupõe um método histórico (da etnologia, particular e genealó-
gico) e um método comparativo (o da Antropologia Social), asseve-
rando sobre este que “[...] é aquele pelo qual passamos do particu-
lar para o geral, do geral para o mais geral, com o objetivo em vista
de que podemos deste modo chegar ao universal, a características
que podem ser encontradas em diferentes formas em todas as so-
ciedades humanas” (RADCLIFFE-BROWN, 1978, p. 57). Destoando
das reações virulentas da antropologia cultural ao método compa-
rativo de amplo alcance, Radcliffe-Brown mostra que, enfim, não é
só de propriedades deletérias que é feita a comparação.

Mais recentemente e na interface entre antropologia, história e


estudos helenistas, Marcel Detienne (2004) propôs revigorar o
método comparativo ao mostrar que posturas do tipo “só se pode
comparar o que é comparável” formaram, na Europa ao menos, o
solo de sentimentos nacionalistas que pretenderam reservar para
si um espólio cultural superior, especialmente aquele legado pelos
gregos. Mas, se do ponto de vista ideológico da construção/recons-
trução da nação os gregos são incomparáveis, podem (e devem)
sê-lo do ponto de vista da etnografia. Para alento do método com-
parativo, Detienne (2004, p. 16) assevera que “[...] o comparativista
experimentador se dá assim a liberdade e o prazer de desmontar e
de remontar lógicas parciais de pensamento.

A comparação é, assim, uma questão que emerge quando se buscam


diálogos amplos e estes se enfrentam com fronteiras geográficas,
ideológicas, teóricas ou metodológicas. Neste sentido, os diálogos
transversos propostos nos encontros que compõem esses inter-
câmbios por quase uma década tentam ampliar e reconhecer con-
troles diversos que garantam a liberdade de desmontar, remontar
e desmontar novamente, tantas vezes quanto preciso for, os limi-
tes, em prol de um diálogo produtivo no qual nem se suponha uma

11
ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

paridade oculta por trás das formas específicas, nem se edifiquem


fronteiras para tramas que encontram suas próprias conexões.

OS CAPÍTULOS
Com o intuito de estimular o interesse do leitor e, na sequência,
de animá-lo a reunir-se a nós no esforço de constituição de uma
etnologia transversa, segue uma breve apresentação dos 15 capí-
tulos do livro, distribuídos por vários contextos etnográficos (vide
“Localização dos principais povos indígenas citados”), agrupados em
três partes: 1. Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíti-
cas; 2. Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas e 3. Definindo
e reordenando relações com intencionalidades não humanas. Vale
lembrar que a ideia da coletânea foi suscitada ao fim dos três dias de
intensos debates do GT da VI REA e, devido à participação dos seus
dois coordenadores também na Mesa-Redonda e, reciprocamente,
da coordenadora da MR como debatedora desse GT, foi automática
a associação das duas atividades. Todos foram convidados para o
esforço coletivo e apenas uma pequena parcela não aderiu.

Entre os Xukuru de Ororubá, no município de Pesqueira (PE), há


duas forças criadoras e antagônicas – Deus, “bonito, bom e tem
futuro”; e o Cão, “feio, ruim e sem futuro” –, ao abrigo das quais se-
res oriundos do cristianismo e de religiões de matriz africana estão
associados à jurema, aos antepassados e aos encantados, tidos
como seres exclusivos das terras Xukuru. Ao abrigo dessa marcada
divisão, todos os Xukuru parecem reivindicar estar ao lado de Deus
– todos os meus guias são de luz; eu não trabalho com espírito ruim
–, mas, instados a se diferenciarem, relativizam – é tudo a mesma
coisa –, admitindo, na sequência, que “a diferença é que a gente
não corta para esquerda, não derrama sangue”.

Acusar alguém de feiticeiro ou censurar os que cortam para a es-


querda – até porque “os que cortam para a direita” só podem fazê-lo

12
ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

com a presença do seu par complementar (tudo tem os dois lados)


–, não implica, contudo, em questionamentos de ordem identitária, o
que leva Clarissa Lima, autora de “A sombra da jurema”, a supor que
não é a lógica identitária que preside as relações locais, mas os dis-
cursos e narrativas acerca das práticas e representações acionadas.

O seu artigo permite-nos evocar três clássicos. O já citado Marcel


Mauss, quando, em Esboço de uma Teoria da Magia, afirma que a virtu-
de mágica resulta da “atitude que a sociedade adota em relação a todo
o seu gênero” (MAUSS, 1974, p. 58); o também francês Robert Hertz
e o ensaio sobre a polaridade entre a mão direita e a mão esquerda
que apresenta o princípio básico da religião segundo o grupo Ĺ Année
Sociologique (do qual ele fazia parte, juntamente com Durkheim,
Mauss e outros), i.e., a oposição entre o sagrado e o profano carregada
de significados culturais e servindo como representação de divisões e
hierarquias sociais (HERTZ, 1960, p. 99); e o filólogo Antônio Houaiss
para quem feiticeiro compartilha o campo semântico com bruxo, jure-
meiro, macumbeiro, mágico, mago, mandingueiro, necromante, nigro-
mante, pajé, pandoro, suangue, xamã (HOUAISS, 2001).

Um conjunto de quatro capítulos versam sobre os Kiriri, povo in-


dígena estabelecido na região Nordeste do estado da Bahia, na
única “Missão Quiriri” que resistiu à conquista, e guardam relação
mais ou menos direta com os seccionalismos que ali têm ocorrido.
Fernanda Almeida procede a um exame preliminar sobre as trocas
matrimoniais de modo a verificar se as divisões políticas, exacer-
badas a partir dos anos 1980, prosseguem constituindo um fator
determinante e limitante para as alianças matrimoniais ou se já há
espaço para escolhas individuais. Ela lança mão de uma amostra
que, não obstante pequena, sugere que têm ocorrido mudanças
passíveis de contornar as fronteiras erigidas, concernentes às or-
dens política e cosmológica. No entanto, parece persistir, para as
mulheres, uma condição ainda assimétrica comparativamente à
dos homens, notadamente nos casos em que as alianças matrimo-
niais se entrecruzam com questões relacionadas à terra. Nesses
casos, o temor de que casamentos interétnicos de mulheres indí-

13
ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

genas com homens não indígenas possam acarretar consequências


negativas, tal como ocorreu no passado – dado que a transmissão
de bens se faz matrilinearmente –, redunda em fator limitador à
escolha conjugal por parte das mulheres.

Jardel Rodrigues trata de um ritual funerário que o surpreendeu em


seu primeiro trabalho de campo individual e que ele não se furtou
a observar. O registro que ele compartilha com os leitores constitui
bom testemunho de que a morte não cancela ou suspende as con-
venções e hierarquias sociais e de que as atenções, nas ocasiões de
morte, não se voltam exclusivamente para o morto, mas abrangem
a teia de relações do morto com os vivos, mais e menos socialmen-
te próximos. Nesse sentido, o ritual tem um claro propósito repa-
rador, ou, evocando uma vez mais Mauss (1974, p. 90-91), o ritual
busca a alteração positiva do estado, no caso o restabelecimento
das relações sociais post mortem: “[...] diferem entre si os atos se-
gundo o ato inicial, as circunstâncias que determinam o sentido da
mudança e os fins especiais que lhes são indicados, mas asseme-
lham-se por terem por efeito imediato e essencial a modificação
de um certo estado”.

“Xamanismo e cosmopolítica: ‘culturas’ e etnicidade no povo Kiriri”


foi escrito conjuntamente por Gabriel Cardoso e Vanessa Morais, o
que foi possível graças ao fato de terem compartilhado o campo,
embora com temas distintos, e prolongado a parceria. Os autores
entendem a categoria empírica ciência do índio, que é recorrente
no Nordeste indígena, como uma modalidade de xamanismo que
asseguraria, aos Kiriri e a outros povos na região, a sua continui-
dade cultural. Trata-se, vale notar, de um xamanismo que guarda
semelhança com o xamanismo tradicional ou clássico, seja por seu
caráter predestinado (os encantes escolhem o futuro xamã), seja
pela trajetória de aflições e afecções a que o escolhido é submetido
até a acolhida do apelo. A história de vida de uma mulher escolhida
– entre os Kiriri são as mulheres que recebem os encantados ao
longo do transe mediúnico, sendo denominadas mestras, mestras
do toré – é exemplar desse tipo de trajetória entrecortada por do-

14
ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

enças, diagnósticos de “feitiçaria pro mal” (cortar para a esquerda,


como vimos entre os Xukuru) e sonhos perturbadores com “formas
animalescas”. A sua integração ao corpo cosmológico e social – co-
mo mestra de toré – ocorre mediante um processo conduzido por
um especialista que com ela compartilha “os significados de seu
sofrimento”. O exemplo evoca Claude Lévi-Strauss e a eficácia sim-
bólica da cura xamanística cuna, no Panamá (1975), e, mais recen-
temente, John Renshaw e os cantos de cura ayoreo, povo indígena
do Gran Chaco (2006).

Por fim, no capítulo intitulado “Interação humanos e não humanos


em contexto de tensão cosmológica”, Maria Rosário de Carvalho de-
monstra interesse profícuo pelo campo cosmopolítico kiriri entre as
décadas de 1970 e 1990. Esse é o período em que os Kiriri lograram
uma unificação sociopolítica fantástica que lhes permitiu protago-
nizar uma das mais vigorosas mobilizações indígenas [do período]
e recompor seu território colonial, todavia à custa da autonomia
dos grupos locais e do acossamento de práticas rituais que discor-
dassem do modelo de toré e das novas relações rituais que foram
instituídos. Buscando “expandir percepções a partir de uma outra
posição”, a autora, que desde os anos de 1970 vem pesquisando
junto aos Kiriri, examina o período da unificação desse povo através
de duas dissertações exemplares – Nascimento (1994) e Brasileiro
(1996) – por ela orientadas, reexaminando as análises elaboradas
especialmente em torno do que os índios definiram como coador,
escala utilizada para avaliar comportamentos de adesão ao toré e
que gerou uma série de expulsões de famílias indígenas da Terra
Indígena (TI) Kiriri. Com o recrudescimento do coador – que passa
a monitorar comportamentos, vestimentas e o empenho nas ati-
vidades comunitárias –, iniciam-se também movimentos de cisão
dentro do grupo unificado, conduzindo à emergência de caciques,
pajés e trabalhos rituais vinculados aos novos segmentos, tudo
sob o auspício dos encantados que, ao fim e ao cabo, são jogadores
essenciais no dinâmico jogo cosmopolítico kiriri.

No capítulo intitulado “Transformações, história e cultura na etno-


logia dos povos indígenas do Nordeste”, José Glebson Vieira procura

15
ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

refletir a respeito do lugar e papel que o conceito de aculturação vem


tendo na etnologia dos povos indígenas do Nordeste, assim como
sobre sua assimilação pelas políticas indigenistas, pelos discursos
sobre “cultura” e projetos étnico-políticos empreendidos por esses
povos. O recorte proposto é o uso de conceito de cultura nos proje-
tos de resgate da língua indígena desenvolvidos pelos Potiguara da
Paraíba (PB) e do Rio Grande do Norte (RN), ação desenvolvida após
“retomadas” de escolas municipais visando à concretização de uma
política linguística que instituiu o ensino obrigatório do tupi (a “lín-
gua dos antepassados” dos Potiguara) nessas escolas, fazendo da
educação escolar indígena ferramenta essencial na luta política
pelo reconhecimento étnico.

Dois capítulos do livro tratam dos Tupinambá do sul da Bahia. Em


um dos mais graves cenários de perseguição e criminalização
normalizadas envolvendo povos indígenas no Brasil contempo-
râneo, Ernenek Mejía Lara, em capítulo que leva o título “Contra-
antropologias indígenas no Nordeste brasileiro, um espelho infini-
to”, pergunta o que os índios “estão nos propondo quando incluem
nas suas locuções categorias comuns às usadas pela antropolo-
gia?”, referindo-se a um fluxo de apropriação e politização dos con-
ceitos operados pelos movimentos indígenas em suas “antropolo-
gias” (i.e., contra-antropologias) construídas na relação conosco,
de forma análoga ao que fazemos com nossa antropologia a partir
da relação com eles. Assim, em meio a diferentes contextos etno-
gráficos, os capítulos de José Glebson Viera e de Ernenek Lara se
cruzam ao refletirem sobre as formas reflexivas indígenas cons-
truídas mediante a assimilação e devolução de categorias antro-
pológicas. Adotando como fundo o discurso de Célia Tupinambá,
liderança na Serra do Padeiro, na abertura da VI REA, e falas de
índios tupinambás dessa localidade e de outras, Ernenek analisa o
uso de categorias como “cultura”, “território”, “sangue” e “mistura”
por uma contra-antropologia indígena – simultaneamente análoga
à nossa antropologia e construída a partir de engrenagens epistê-
micas próprias – que reflete sobre as fricções entre os mundos in-
dígena e não indígena, à maneira do discurso xamânico que traduz

16
ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

alteridades. Na outra ponta tupinambá, temos o capítulo de Larissa


Hohenfeld, cujo título “‘Tudo o que é ruim essa folha retira’: ritu-
ais de cura para aflições espirituais na aldeia tupinambá Serra do
Padeiro” de antemão sugere a forte conexão entre os Tupinambá da
Serra do Padeiro e os Encantados, percebendo o seu próprio terri-
tório como morada desses entes. Portanto, assegurar a permanên-
cia no território é assegurar a existência dos Encantados, empenho
que necessita ser cumprido por meio das retomadas ritualmen-
te preparadas no âmbito do fechamento de trabalho e do toré,
imprescindíveis à produção de corpos espiritualmente apropriados
às relações com os Encantados e adaptados às exigências físicas
da luta pela terra

Outro capítulo cujo centro está na relação entre território e


Encantados é o de autoria de Deanny Stacy Lemos, “Akroá gamella
e a terra encantada”. Aqui a motivação dos índios Akroá Gamella do
Maranhão para realizar retomadas a fim de recomporem seu terri-
tório colonial, cujo domínio atual é de irrisórios 3,6% da área total,
é recuperar os “pontos sagrados”, locais de morada de Encantados
que, a exemplo das cosmologias amazônicas, confundem-se com
mestres de espécies animais e possuem poderes de cura e transfor-
mação. Os próprios Encantados instigam os Gamella a tais ações,
uma vez que são entes proativos com interação cotidiana com os
índios, influenciando-os decididamente através da transmissão de
memórias e narrativas sobre eles.

Do Maranhão ao baixo Tapajós, no Pará, os Encantados persistem


como catalisadores de representações sobre o território e a identi-
dade. O capítulo de Florêncio Vaz, “Os Curupiras não foram embora?
Os Encantados na resistência indígena no baixo rio Tapajós”,
confronta a perspectiva da diáspora do Curupira, motivada pelas
transformações impostas à região nas últimas décadas, com
a revigoração da pajelança e da crença nos Encantados pelos
Munduruku de Takuara e outros 11 povos que hoje habitam a área
do baixo rio Tapajós, entre os municípios de Aveiro, Belterra e
Santarém. O Curupira fornece matéria vigorosa para a constituição

17
ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

das identidades culturais e dos territórios locais ao atuar como


potente imagem de resistência indígena às rotinas de subjugação
impostas por poderes políticos e econômicos, possibilitando que
este Encantado, em seu ato de resistência, seja metáfora dos po-
vos indígenas da região emergidos nas últimas décadas a partir de
comunidades caboclas.

Mbo’esara Esãîã Tremembé, com o capítulo “A perspectiva inver-


sa Yanonami da evolução das espécies”, argumenta que, entre os
Yanomami do rio Marauiá (AM), os wãnowãno (algo como narrati-
vas míticas) relatam que os humanos existiam já no tempo primevo
enquanto substrato comum de onde emergiram as espécies animais
por diferenciação ethossomática, responsável pela multiplicidade
de corpos e de perspectivas. Assim, a perspectiva evolutiva yano-
mami não é nem biológica (como é o evolucionismo darwiniano),
nem meramente intencional (conforme o criacionismo), mas ética,
compreendendo aqui o ethos como o “lócus da transubstanciação”
que permite produzir as diferenças que nomeamos por espécies.
Trata-se, pois, a exemplo de demais cosmologias amazônicas, de
explicar o surgimento dos animais e não dos humanos que, a ri-
gor, permaneceram como no tempo mítico, revelando que, antes de
sermos animais, os animais são ex-humanos, mas que mantêm, de
modo subevidente, sua humanidade (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p.
464-465). Por fim, a teoria yanomami para o surgimento das espé-
cies ensina que a humanidade é uma condição compartilhada com
outras espécies e que não somos o suprassumo do universo.

No capítulo “Toré anacé: cantos, narrativas e políticas de um ritual


indígena”, Antônio Portela analisa os cantos de toré dos Anacé da al-
deia de Japuara (CE), rito que, dentre esse povo, atende a propósitos,
simultaneamente, cosmológicos e organizacionais. O argumento
defendido pelo autor é que “os cantos do toré anacé constituem um
processo de criação de imagens a partir de suas narrativas”, cujos te-
mas são o grito de reconhecimento (movimento de pré-indianização
de um coletivo emergente), encantamentos, chamamento de Tupã,
Encantados e território. Analisando letras de cantos do toré anacé

18
ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

em situações distintas, Portela sublinha a recorrência de relações


cosmopolíticas determinantes, em especial o acordo estabelecido
com Tupã que aboliria o sofrimento de outrora após o retorno ao ter-
ritório, contrato esse que reacende a esperança de uma vida digna e
que é revivido tanto nos cantos quanto na toponímia anacé.

Cantos rituais são igualmente o foco do capítulo “Cantando e mar-


cando redes cosmopolíticas”, de Ugo Maia, visando considerar a
circulação de cantos em dois complexos xamanísticos distintos: o
turé vigente no baixo Oiapoque e bacia do rio Uaçá (AP) e o toré
no submédio rio São Francisco. O autor argumenta que, em am-
bas as regiões, os cantos funcionam tanto como marcadores de
relações interespecíficas (entre humanos e não humanos) quanto
interindígenas, uma vez que são registros de circuitos de trocas
estabelecidas pelos Galibi-Marworno (AP) e pelos Tumbalalá (BA)
com os espíritos auxiliares dos pajés (respectivamente Karuãna e
Encantados) e com povos vizinhos, guardando-se as singularida-
des atinentes a cada complexo xamanístico produzidas na fricção
com as histórias regionais.

A trama dinâmica composta pela cosmologia e história é analisada


por Adalberto Luiz Rizzo como matriz da presença recente de movi-
mentos messiânicos entre os Ramkokamekrá-Canela (MA), no capí-
tulo “Awkhêê presente: cosmopolítica e messianismo canela ante o
desenvolvimento”. Interessado no campo multiagentes do qual es-
ses índios fazem parte, o autor defende que programas e projetos de
desenvolvimento regional, especialmente desenvolvidos nos anos
da ditadura militar, assim como projetos locais, de base comunitária
ou étnica, tiveram grande impacto ao facultarem transformações
econômicas e socioambientais na região, induzindo movimentos
sociorreligiosos entre os Ramkokamekrá-Canela referendados no
mito timbira de Awkhêê (por vezes assimilado a Jesus Cristo por tais
movimentos) que trata da origem do homem branco e de suas re-
lações desiguais com os índios. O autor conclui argumentando que
o surgimento dos movimentos sociorreligiosos entre os anos de
1970 e 1980 indica que os Ramkokamekrá-Canela participaram dos

19
ANTECEDENTES DA COLETÂNEA

projetos regionais de desenvolvimento “pautados em suas próprias


categorias culturais e em sua ‘consciência histórica’”.

Já em “Descobrindo um xamã”, o autor, Hugo Ciavatta, visa elabo-


rar o arranjo de relações do ex-pajé Tatiarabu a fim de acessar “as
nuances do xamanismo dos Jamamadi madiha (AC), sua cosmopo-
lítica, seja em relação aos brancos, seja em relação aos próprios
Jamamadi de Massekury”, tomando suas próprias descrições (do
autor) como compreensão aproximada dos Jamamadi madiha de
Massekury, contextualizados em relação aos outros povos arawá
da região. O ponto de partida consiste na negação, pelo próprio
Tatiarabu, de sua condição de pajé, simultaneamente às suas rela-
ções claramente xamanísticas, conduzindo o autor a examinar os
percursos, conexões e relações biográficos, mas representativos
dos Jamamadi madiha, capazes de produzirem xamãs mesmo na
ausência do xamanismo.

Que o leitor se agrade dessas sendas heteróclitas e, simultanea-


mente, unívocas no esforço de buscar iluminar transversalmente
situações etnográficas embasadas nas etnologias indígenas pro-
duzidas sobre a Amazônia e sobre o Nordeste/Leste brasileiro.

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21
1 - Yanomami
2 - Galibi-Marworno
3 - Jamamadi madiha
4 - Povos indígenas do Baixo Tapajós
5 - Akroá Gamella
6 - Anacé
7 - Ramkokamekrá-Canela
8, 9 - Potiguara
10 - Tumbalalá
11 - Xukuru
12 - Kiriri
13 - Tupinambá (Olivença)
14 - Tupinambá (Serra do Padeiro)

LOCALIZAÇÃO DOS PRINCIPAIS


POVOS INDÍGENAS CITADOS
XAMANISMO,
PARTE 1

ALTERIDADES,
PRÁTICAS RITUAIS
E COSMOPOLÍTICAS

figura 1: Tupinambá de Olivença durante “Caminhada Tupi-


nambá em Mártires do Massacre do Rio Cururupe”, 2015

Fonte: Ernenek Mejía Lara


aKROÁ gamella
e a terra encantada
Deanny Stacy Sousa Lemos*

INTRODUÇÃO

Este trabalho surge de uma pesquisa desenvolvida


na mo-nografia realizada em 2018 no território Akroá
Gamella, localizado na região conhecida como baixada
maranhense, que fica entre os municípios de Viana,
Matinha e Penalva, no estado do Maranhão. O território
possui 14,5 mil hectares, de acordo com a carta de
doação da terra de 1759, porém, os indígenas ocupam
apenas 530 hectares divididos entre nove aldeias onde
vivem mais de 700 famílias. As outras localidades que
compõem o território são referidas como “comunidades’’,
ao total, possuem 36, dentre algumas, ficou evidente
que há presença de não indígenas.

* Mestranda em Antropologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Graduada


em Ciências Sociais pela UFPI (2018). Participou da Bolsa de Incentivo a Atividades
Multiculturais (BIAMA), 2016 e 2017, com objetivo desenvolver pesquisas relaciona-
das ao racismo ambiental, assim realizou pesquisas com oleiros removidos de suas
olarias devido a um projeto financiado pelo Banco Mundial. Desenvolveu pesquisa
sobre o povo Akroá Gamella acerca do processo de reconstrução territorial por meio
das retomadas de terra. Tem experiência na área de antropologia, com ênfase em
antropologia, atuando principalmente nos seguintes temas: projetos desenvolvi-
mentistas, direito à cidade, conflito socioambiental, território e territorialidade.
E-mail: deannystacy@gmail.com.
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

A pesquisa buscava compreender o processo de reconstrução do


território por meio das retomadas de terras, pois o povo Akroá
Gamella se encontrava em processo de emergência étnica e, como
meio de construção ativa do território (ALARCON, 2013), realizou
ao todo 11 “retomadas de terras” entre os anos de 2015 a 2017.
Durante muitas narrativas, falava-se que retomavam as terras por
necessidades especiais, como também para recuperar os “pontos
sagrados” que estavam sob posse de não indígenas nas fazendas
ou sítios. Os lugares sagrados se tornaram uma grande ferramenta
política de reivindicação territorial, pois, como afirma Rappaport
(2000), eles recorrem a todo o momento à história, à memória e
aos mitos, que sinalizam como a cosmologia ou a cosmovisão
indígena contribuí para formação da identidade cultural, política
e para o sentimento de pertencimento territorial de povo, que
podem ser utilizados como tática de resistência e armas políticas
para defesa da comunidade, principalmente porque esses lugares
abrigam uma outra classe de seres que também são categorizados
como sagrados. Esses seres são chamados de encantados, que
são caracterizados por serem uma classe de seres humanos e não
humanos que habitam e compartilham a terra indígena.

Não só a morada de João Piraí, um encantado que teve sua morada


retomada pelos indígenas, mas também as demais retomadas re-
alizadas marcam lugares sagrados para os encantados. As antigas
fazendas, de alguma forma, interferiram na natureza sagrada e
prejudicaram a morada desses seres que compartilham o território
com os indígenas. Essas decisões e atos políticos de construção
terri-torial ativa (ALARCON, 2013) nos mostram como os encanta-
dos os direcionam e os estimulam a retomarem as áreas que pos-
suem o ponto sagrado.

Tem-se por exemplo a “retomada” da localidade Piraí. Nesse local,


passa o Rio Grande também conhecido como Rio Piraí que é morada
do encantado João Piraí, e sua morada estava sendo destruída pelo
Junior Qenack, um empresário que, para suprir a matéria-prima que
precisava para a empresa de cerâmica, tirava o barro do Rio Piraí.

25
AKROÁ GAMELLA E A TERRA ENCANTADA
Deanny Stacy Sousa Lemos

Sendo assim, ao “retomarem” o local, também puderam recuperar


a morada do encantado.

Seu Antônio, que possui 50 anos e mora na aldeia Centro do Antero,


e Mandioca, que possui 40 anos e mora na aldeia Tabocal, expli-
caram que João Piraí estava feliz, pois hoje tinha a morada dele de
novo. Esses seres que compartilham o território com os indígenas
são vistos pelo povo Akroá Gamella não como espíritos passivos,
que não influenciam no cotidiano do território, mas são, na ver-
dade, agentes ativos, que interagem, vivem, divertem-se, bebem
e fumam, protegem o território e interferem nas ações políticas
(COUTO, 2008). Esses são tão ativos que, diversas vezes, durante as
entrevistas ou nas conversas do cotidiano, pareciam estar falando
de algum indígena, quando, na verdade, era sobre o encantado.

Um dos pontos fundamentais para a reconstrução territorial de


Akroá Gamella se baseia nos “pontos sagrados” ou “pontos de ín-
dio”. Desse modo, a natureza que abriga os encantados oferece le-
gitimidade sobre o pertencimento histórico territorial, pois reconta
a história desse povo sendo, ainda, utilizada como elemento para
que reivindique as áreas sagradas como dimensão fundamental
para a noção da reconstrução do território e da territorialidade
indígena, tendo em vista que os “pontos sagrados” garantem as
práticas culturais e sociais do povo Akroá Gamella. Então, a com-
preensão do território indígena (LADEIRA, 2001) reflete a totalidade
de elementos que possuí, ou seja, capta os seres que compartilham
o território e a relação de simbiose entre a terra e os encantados.

Partindo dessa compreensão do território que abriga e promove a


interação dos diversos seres nesse espaço, busco, neste trabalho,
compreender a relação dos encantados com o território, tendo em
vista que são dados ainda primários, pois se baseia em materiais
que resultaram de uma pesquisa feita em 2018 durante os meses
de janeiro a março. As narrativas em campo sempre direcionam a
compreender os encantados como grandes elementos que com-

26
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

põem o território, sendo responsáveis por inúmeras atividades, co-


mo a proteção do território e da cultura akroá gamella. Afirmavam
que foram se afastando da identidade akroá gamella porque foram
afastados das moradas dos encantados. Nas narrativas, compar-
tilhavam histórias durante as pescas e os passeios pela mata. Em
vários espaços, tornaram-se constantes as histórias sobre os en-
cantados e a sua relação com os lugares sagrados e, consequente-
mente, a relação com o território. Desse modo, a presente pesquisa
busca compreender a relação dos encantados com o território indí-
gena, sendo assim, este artigo se dividirá em duas partes.

TERRITÓRIO, ENCANTAMENTO E ENCANTADOS

Além das “retomadas” realizadas pelo povo Akroá Gamella serem


feitas por necessidade de espaço para desenvolver suas ativida-
des, constantemente essas ações estão ligadas aos encantados,
como foi falado anteriormente, pois o território Akroá Gamella é
colocado pelos indígenas como um local encantado, esse território
encantado e que encanta, habitado por uma outra classe de seres
que compartilham com os indígenas os espaços.

O povo Akroá Gamella falava sobre os encantados serem donos do


terri-tório, pela terra em que vivem ser um local de “encantaria”.
Essa “encantaria” refere-se aos “pontos sagrados” ou “pontos de
índios”, locais onde os encantados moram, são lugares que possuem
o “encanto”, como diz uma cantiga que ouvi em um ritual: “Terra de
caboclo é terra de encantaria. Terra de caboclo é terra de encantaria.
Lá vem caboclo descendo a serraria”. Esse encanto/encantaria
se traduz em áreas (lugares sagrados) onde se encontra uma
variedade de elementos. Os “pontos sagrados” mostram elementos
essenciais que refletem a vitalidade humana por recontarem a
história essencial para a construção da humanidade e também
por esses lugares transmitirem uma interação entre diferentes

27
AKROÁ GAMELLA E A TERRA ENCANTADA
Deanny Stacy Sousa Lemos

seres que lá habitam, assim, demonstrando o quão determinantes


são em relação às práticas sociais cotidianas (CAYÓN, 2012). Ao
compreendermos esses pontos sagrados, podemos capturar a
compreensão de um possível mundo, pois significa penetrar no
ambiente e conhecer suas práticas.

Algumas cantigas sagradas também falam dessa variedade de


animais e plantas que possui o território. Tem-se, por exemplo,
as cantigas que falam da palmeira do babaçu, um elemento muito
importante na vida do povo Akroá Gamella, principalmente paras
mulheres que são quebradeiras de coco, e das cobras que existem
no território: “Eu tava no meio da mata quando ouvi coco cair, cai
coco, cai coco, não cai em cima de mim”, “cobrinha preta, uruparana,
surucucu ela cobra tirana”. Com o babaçu, usa-se tudo, as cascas
podem ser utilizadas como carvão, o coco é utilizado para preparar
o azeite e também fazem o mesocarpo ao triturar a parte mais dura
do coco. Nesses pontos sagrados, podem-se obter ervas para fazer
garrafadas e tratar doenças.

Quando estão nas águas, os indígenas precisam pedir para que o en-
cantado permita uma pesca em abundância ou que deixe pegar água.
Os mais velhos narravam muito sobre como, no passado, antes de
ter o enorme esbulho da terra, precisavam pedir permissão aos en-
cantados para muitas coisas, pois, naquele tempo, afirmavam que os
encantados viviam mais no território, desse modo, a forma como se
manifestavam era mais intensa. Diversas vezes, alguns anciãos nar-
ravam sobre as histórias desses seres que exigiam que fosse pedida
a permissão para que pudessem andar em alguns lugares. Também
não podem se aproximar desses “pontos sagrados” sem autorização
dos encantados, pois podem ser atingidos por uma flecha, esse ato
de levar uma “flechada” refere-se ao ser atingido por alguma coisa
ruim, podemos traduzir isso como uma mandinga que é jogada em
quem desrespeita essa área. Seu Oscar, que mora na aldeia Nova Vila,
relata que, quando criança, foi flechado enquanto estava pescando
com Dona Lili, sua mãe, pois espetou um sapo e por isso João Piraí o
flechou. Quando passam em lugares sagrados, esses seres também

28
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

podem manifestar sua presença permitindo que sejam notados por


meio de algum animal, ou que se sinta o cheiro de fumo ou cachaça.
De alguma forma, permitem que sejam notados pelos indígenas. Há
relatos de encantados que deixam ouvir seus risos, ou que sejam
vistos e, dependendo da situação, podem até brigar com a pessoa.

Desse modo, a natureza se torna sagrada por abrigar esses seres


encantados e os elementos que eles oferecem aos indígenas (SILVA,
2008). Dito isso, a terra em que vivem é um local de “encantaria”,
tanto por abrigar os encantados como por agregar a gama de ele-
mentos sagrados que possuí, como os animais que podem ser a re-
presentação de alguns seres sagrados, a exemplo de João Piraí, um
encantado que pode ser encontrado em forma de um sapo que vive
nas margens do Rio Piraí, também conhecido como Rio Grande, sen-
do temido e muito respeitado pelos indígenas. Seu Oscar foi flechado
por ter espetado “as costa” de um sapo, e esse sapo era João Piraí.

Além dos pontos sagrados abrigarem elementos importantes ligados


à pesca, ao plantio e à cura, podemos sublinhar, então, que os encan-
tados são responsáveis por preservar a identidade akroá gamella,
pois os indígenas afirmam que, ao serem afastados forçosamente das
águas e consequentemente dos encantados, foram se distanciando
da cultura e da identidade akroá gamella. Muitos rios e lagos estão
dentro de fazendas, e, a partir do momento que as áreas foram polu-
ídas e desmatadas por não indígenas, os encantados perderam suas
moradas, alguns se afastaram do território ou ficaram escondidos.

Ao distanciarem-se dos encantados, foram se afastando da cultura


akroá gamella. Algo importante a salientar é que, em todo o percurso
que os Akroá Gamella fizeram no Maranhão, eles estavam próximos às
margens de rios ou lagos, caracterizados como morada dos encanta-
dos e, consequentemente, lugares sagrados. Ao fazerem esse proces-
so de se reconectar com os encantados e de se aproximar das águas
e das matas por meio das “retomadas de terra”, sentem que estão
conseguindo aos poucos retomar a sua identidade, pois os encantados
estão voltando a andar pelo território, e as falas dos anciãos reforçam
sobre o andar dos encantados, o movimento que fazem de idas e vin-

29
AKROÁ GAMELLA E A TERRA ENCANTADA
Deanny Stacy Sousa Lemos

das, isso depende se o território está sendo ocupado pelos indígenas e


se estão preservando essa natureza.

Para além das conversas, durante os rituais, enquanto dançavam e


cantavam as cantigas que chamam de cura, descreviam não só os lo-
cais onde os encantados moram ou a sua personalidade, que reforçam
o ser guerreiro que eles possuem, como também as muitas cantigas
sagradas cantadas ofereciam uma descrição sobre a vida dos encan-
tados. É mencionado, ainda, muito sobre as cobras verdes e pretas,
corais e uruparana, esses animais também são alguns encantados.

As memórias que perpassam as cantigas e as narrativas são dois


elementos muito fortes para poder compreender quem são os en-
cantados. A memória se torna um fator importante, pois é por meio
dela que o povo Akroá Gamella revive o tempo antes do esbulho
em que encantados estavam mais presentes e as cantigas foram
ensinadas. Ao unir esses dois elementos, alguns pontos são res-
saltados a respeito desses seres sagrados. Em primeiro lugar, en-
cantado é uma categoria que abriga uma variedade de seres, sendo
esses animais, humanos, mães d’águas e, até mesmo, há relatos de
animais que também podem ser humanos. Desse modo, essa vasta
categoria de humanos e não humanos pode ser de encantados. Ao
tratarmos dessa variedade de seres que rompem com essa noção
ocidental entre natureza e cultura ao recontarem as histórias dos
encantados como seres que também são humanos, que podem e se
“transformam”, abre-se a possibilidade de abordar outras formas
de relações que estão além da dualidade entre natureza e cultura.

Philippe Descola (2006) trata muito bem sobre esse assunto. Isso
pode ser entendido nas narrativas ouvidas, principalmente a de seu
Oscar, que afirma ter sido “flechado”, sendo uma forma de castigo
por ter espetado “as costas” do sapo que era Seu João Piraí. Esse
encantado também mantinha relações muito próximas com uma
indígena que curava, que conversava com os encantados, mas que,
com João Piraí, tinha uma relação de maior contato, inclusive foi

30
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

essa senhora que, conversando com o João Piraí, fez com que ele
tirasse a flecha que estava em Seu o Oscar. Assim, durante o seu
relato, seu Oscar deixa exposto que João Piraí, ao mesmo tempo
que ele é um sapo, ele também é homem. Neste momento, Descola
(2006) nos traz, como base para refletir sobre a relação entre hu-
manos e não humanos, o animismo, pois os humanos e não huma-
nos são concebidos e dotados dos mesmos tipos de interioridade.
Desse modo, possuem características sociais, por meio dos concei-
tos de interioridade, fisicalidade e até mesmo da metamorfose que
oferecerá meios de compreender essas, o que permite a interação,
num mesmo patamar, entre entidades com corpos totalmente dife-
rentes. Ocorre quando animais e plantas revelam sua interioridade
sob uma forma humana, buscando a comunicação com humanos.
Alguns encantados podem sofrer metamorfose, como João Piraí,
que, ao mesmo tempo que pode ser um sapo, se transforma em
humanos, assim, de acordo com Descola (2006), a metamorfose
permite que haja a interação, em um mesmo nível, entre entidades
de estrutura física totalmente diferentes.

As mães d’águas, que são mulheres que vivem nos rios e igarapés,
têm uma relação com os indígenas a se observar, pois cuidam dos
espaços que possuem água, oferecem o dom de curar a alguns in-
dígenas, mas também são conhecidas por pregarem peças no ter-
ritório, seja colocando medo para não invadirem o espaço delas ou
até mesmo tentando puxar alguém para a sua morada, desse modo,
encantado algum Akroá Gamella. Esses seres sagrados estão muito
atrelados também à cura, pois podem curar os indígenas, e oferecem
a eles o conhecimento sobre as ervas, sobre como curar por meio dos
benzimentos e principalmente como protegê-los de todos os males.

Interação encantados e território


Os seres sagrados estão no território Akroá Gamella e desenvolvem uma
relação de simbiose. Esses seres que compartilham o território com os
indígenas são vistos pelo povo Akroá Gamella não como seres passivos,
que não influenciam de maneira alguma, mas como agentes ativos, que

31
AKROÁ GAMELLA E A TERRA ENCANTADA
Deanny Stacy Sousa Lemos

interagem, vivem, divertem-se, bebem e fumam, protegem o território e


interferem nas ações políticas. Esses são tão ativos que, diversas vezes
durante as entrevistas ou nas conversas do cotidiano, pareciam estar
falando de um indígena, quando, na verdade, era sobre o encantado.

Não pode haver separação entre território e encantados, sem esses


seres não há cura, não há identidade, os rituais não existem, os in-
dígenas precisam dos encantados para sobreviverem no território.

Compreendendo o território e a territorialidade tendo por base as


vivências cul-turais de um povo, no qual emergem, da totalidade
de seres, espíritos, bens, valores, conhecimentos tradicionais que
garantem o sentido da vida individual e coletiva, esse território que
dá sentido à vida individual e coletiva (GALLOIS, 2004). Sendo assim,
precisa-se dos encantados para que haja a coerência no território, pois
é por meio deles que se aprendem as cantigas sagradas, a história de
seu povo e até mesmo sobre os encantados e a sua morada, além da
relação desses humanos e não humanos com o território e os locais
onde vivem, ou seja, é por meio da tradução do campo verbal, a cantiga
sagrada e os mitos de origem, que busco compreender o não verbal,
que são os pontos sagrados.

Então, essa noção de tradução e de transmutação abre caminhos


para pensar essas criaturas (cobras e sapos) que passam por uma
interação e sofrem metamorfose, transformando- se em humanos.
A transmutação e a interação que o Carlos Severi aborda também
traz um debate sobre essa outra classe de seres que podem ser in-
corporados e, assim, mais uma vez, ter transmutado. Carlos Severi
(2014), ao propor a antropologia do pensamento para falar de tra-
dução e transmutação, oferecerá suporte para compreender essa
tradução do verbal das cantigas sagradas como meio de entender
esse território ocupado por seres sagrados, tendo em vista que,
para o autor, traduzir é compreender o mundo. Laura Kostanski
(2014), através dos topônimos, busca compreender a identidade
do local e o apego à natureza, já que possui uma relação simbólica
com o lugar, pois a paisagem desperta memória.

32
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Dona Zidora, que possui 70 anos e mora na aldeia Vila Nova, narra
diversas histórias sobre a presença dos encantados no território.
Quando mais jovem e ainda morava com seus pais, sonhou que se ajo-
elhava próximo a umas axixazeiras e um pau d’arco, cavava bastante
até achar várias moedas de ouro e um crucifixo, e, no sonho, falavam
que ela deveria buscar, pois era dela. Ao acordar do sonho, pegou uma
cuia e foi até o local que sonhou, no meio do caminho, viu as mães
d’águas andando. Quando chegou, tirou as palhas e um pouco de água
que tinha, em seguida, achou um crucifixo e as moedas de ouro, co-
locou tudo dentro da cuia e continuou a cavar, até que chegaram uns
outros parentes para tirar a mandioca, com o intuito de amolecê-la, e
acabaram xingando porque a porca tinha comido a mandioca. Dona
Zidora disse que a cuia com as moedas caiu no chão e não achou as
moedas encantadas. Muito tempo depois, ela descobriu que seria uma
curadora se tivesse conseguido ficar com o crucifixo.

Seu Pitácio, que possui 77 anos e mora na aldeia Tabocal, conta


que, quando chegou para morar no local que hoje reside, as mães
d’águas passavam o dia todo a chamá-lo, pois ele morava perto de
muitos olhos d’águas. Sua filha Vanusa, quando criança, era muito
incomodada pelas mães d’águas sempre que tinha que buscar água
no igarapé. Seu Pitácio relata que uma vez ela até quebrou o pote
em que carregava água porque as mães d’águas correram atrás
dela. Seu Oscar, que possui 70 anos e mora na aldeia Nova Vila, re-
latou que, na sua infância, foi flechado nas costelas por João Piraí,
quando tinha ido pescar cascudo com sua mãe, Dona Lili, e acabou
espetando um sapo. Então, João Piraí atirou uma flecha nele e, as-
sim, durante a noite, não conseguiu dormir de dor e foi até uma pajé
para se curar, chegando lá, a pajé disse que foi uma flechada de
João Piraí, pois ele tinha machucado um animal

O processo de interação desses seres sagrados com o território é


de uma aliança intensa, pois o povo Akroá Gamella não concebe o
território sem esses seres. É partir da relação deles com os espa-
ços que os indígenas definem os espaços territoriais que compõem
a terra indígena Akroá Gamella. É concomitante a esses espaços

33
AKROÁ GAMELLA E A TERRA ENCANTADA
Deanny Stacy Sousa Lemos

sagrados dos rios, dos igarapés e das matas que esses encantados
podem desenvolver suas atividades, podem curar ou dar esse dom,
proteger o território, ensinar a viver no território e dar significado e
coerência para a vida coletiva dos indígenas.

CONCLUSÃO

Deste modo, concluo que os encantados estão integrados com o


território. Além de interagirem com os espaços, estão integrados a
eles, buscam desenvolver uma relação de aliança e proteção com
o território e com todos aqueles que estão presentes na terra. As
cantigas sagradas são um grande meio de os indígenas poderem
aprender mais sobre os encantados, pois é por meio desse proces-
so que podemos compreender como interagem com os espaços,
como vivem no território e quais os pontos sagrados referentes a
cada encantado. É através dos nomes de lugares que podemos
compreender as práticas e as identidades dos locais, até mesmo o
processo de metamorfose, na qual os encantados se transformam
fisicamente para que haja comunicação com os indígenas.

REFERÊNCIAS

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da Serra do Padeiro, sul da Bahia. 2013. 272 f. Dissertação (Mestrado
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34
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

dade entre os Tupinambá da Serra do Padeiro, Buerarema, BA. 2008.


169 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade
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– Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, SP, 2008.

35
CANTANDO E MARCANDO
REDES COSMOPOLÍTICAS
Ugo Maia Andrade*

Em memória de Luís Fatum,

Mestre de cantos e Encantados.

PARA INICIAR
Cantos xamânicos – paralelamente a nomes, canções,
imagens e grafismos – formam uma categoria especial de
artefatos (coisas) produzidos por pessoas humanas e não
humanas (SANTOS-GRANERO, 2009, p. 3) e que tendem à
comunicação e à relação interespecíficas, sendo dádivas
comuns de espíritos, mestres de espécies, demiurgos etc.
feitas a humanos. Os cantos estão também fortemente
presentes no plano das relações inter-humanas, sendo
transmitidos em contextos de iniciação ritual ou de per-
formances em mobilizações políticas multi-indígenas.
Podem constituir tanto repertórios de alta circulação
quanto acervos restritos de domínio particular de pajés,

* Doutor e mestre em Antropologia (PPGAS-USP), bacharel em Ciências Sociais


(UFBA), é professor dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Ar-
queologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), pesquisador do Programa
de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro (PINEB) e coorde-
nador do grupo de pesquisa Interfaces humano não humano (Inuma-UFS). Vem
pesquisando xamanismo, ritual, cosmologia e classificações socioambientais no
submédio rio São Francisco e no extremo norte do estado do Amapá.
E-mail: ugomaia@ufs.br.
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

de parentelas ou de comunidades, convertendo-se em um dos itens


de prestígio da autoridade ritual.

O capítulo presente busca considerar o papel de cantos xamânicos


em redes de comunicação no baixo rio Oiapoque e bacia do rio Uaçá
(AP) e no submédio rio São Francisco (BA/PE/AL), salientando sua
frequência nas relações interindígenas e interespecíficas (entre
humanos e não humanos) que ocorrem dentro dessas redes. O pro-
pósito, portanto, não são os cantos em si e muito menos a música
empregada nos contextos do xamanismo sul-americano, temas que
contam com uma copiosa e competente literatura. Trata-se de bus-
car por singularidades e recorrências da interposição de cantos xa-
mânicos nas relações atinentes às redes de comunicação nas áreas
etnográficas em tela, compreendendo, assim, que os cantos funcio-
nam como marcadores de relações em circuitos de trocas cosmopo-
líticas, envolvendo humanos e não humanos, esses representados
pelos espíritos auxiliares de pajés que atuam, respectivamente, no
turé do baixo Oiapoque e rio Uaçá (Karuãna) e no toré do submédio
São Francisco (Encantados).

Considero o xamanismo um sistema de ideias e práticas responsá-


vel pela comunicação controlada com a diferença a fim de permitir a
continuidade da sociedade humana em meio a uma série de socieda-
des não humanas (de animais, de plantas, de artefatos, de mestres
de espécies, de mortos etc.), todas relacionadas em fluxos transfor-
macionais que, simultaneamente, reafirmam as diferenças objeti-
vas e a unidade na pessoa (sujeito) a elas subjacente (VIVEIROS DE
CASTRO, 2004, p. 466; DESCOLA, 2013, p. 5-13). Enquanto instituição
social, o xamanismo se ocupa dos efeitos dos fluxos de energias, re-
presentadas pelas sociedades não humanas, sobre o bem-estar dos
humanos, procurando interferir em tais fluxos (LANGDON, 1992, p.
13). Antes de revelarem especialidades, as dimensões ritual, política,
terapêutica e religiosa do xamanismo são estratégias diferentes de
gestão de relações com não humanos e necessitam ser compreendi-
das de forma holística (LANGDON, 1992, p. 20).

37
CANTANDO E MARCANDO REDES COSMOPOLÍTICAS
Ugo Maia Andrade

Por redes de relações, compreendo a concepção e o recurso me-


todológico que possibilitam abordar dinâmicas locais e regionais,
entre humanos e não humanos organizados como coletivos cujos
limites fluidos, em expansão e contração, não coincidem com os
de unidades sociológicas do tipo “grupos” (GALLOIS, 2005, p. 13-14).

O BAIXO OIAPOQUE E BACIA DO RIO UAÇÁ


Os Galibi-Marworno habitam a Terra Indígena Uaçá – dividindo-
-a com os Karipuna e Palikur – em aldeias no rio homônimo e às
margens da BR-156, que liga Macapá à cidade de Oiapoque, estado
do Amapá. São um coletivo constituído historicamente por matri-
zes diversas, tais como Galibi, Itutan, Aruã e Maraon, reunidas na
bacia do rio Uaçá a partir do século XVI (COUDREAU, 1887, p. 428-
430; GALLOIS, 1986, p. 297; NIMUENDAJU, 1948, p. 197; GRENAND e
GRENAND, 1987, p. 47), com significativa influência karib (“galibi”)
e arawak, esta, especialmente, em função das relações com os
Palikur estabelecidos no rio Urukauá desde que foram expulsos do
Uaçá, por volta do último quartel do século XVII. Tal expulsão é um
dos raros atos de hostilidades entre Galibi e Palikur de que se tem
notícias na região, cristalizada em mitos e em cantos rituais que
narram a guerra entre esses dois coletivos pela permanência no
rio Uaçá (VIDAL, 2001). O domínio ritual presente na região e que,
em certo sentido, reflete padrões típicos da área etnográfica das
Guianas (GALLOIS, 2005) é de fundo arawak e representado pelo
complexo xamânico do turé. Assim, uma parcela dos cantos dos
Galibi-Marworno apresenta léxico do parikwik, língua falada pelos
Palikur, não obstante a importância de um léxico evidentemente
karib. Tal dedução encontra consonância com Nimuendaju (1926) e
Arnaud (1970) ao afirmarem a influência dos Palikur sobre o xama-
nismo regional, uma vez que o turé praticado pelo Galibi-Marworno
e pelos Karipuna seria basicamente de origem palikur, incluindo os
cantos, os adornos, os instrumentos rituais e parte das danças.
Ironicamente, com a evangelização em massa a partir dos anos de
1960, os Palikur abandonaram a prática do turé, não obstante sus-

38
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

tentarem – por meio da religião evangélica – uma forte ideologia


xamânica (CAPIBERIBE, 2007, p. 236-237)

Seja como for, tanto os Galibi-Marworno quanto os Karipuna vêm


mantendo as práticas xamânicas cristalizadas nas sessões de can-
tos e cura (xitotó ou cantarola) e no turé, rito da região das Guianas
que leva o nome de uma clarineta e cuja presença na ocasião é
imprescindível. As xitotós e os turés são realizados em função da
relação dos pajés com seus espíritos auxiliares (Karuãna), incluin-
do mestres de espécies animais e vegetais, de tal modo que esses
estão sempre presentes em ambos os ritos, posto serem eles a
fonte de todos os poderes de cura, vidência e agressão apresen-
tados pelos pajés humanos. Aqui focarei as fronteiras intercomu-
nitárias e interespecíficas demarcadas por meio da circulação de
cantos entoados nas xitotós e nos turés realizados pelos Galibi-
Marworno, de maneira a especificar circuitos de relações inter-hu-
manas e entre humanos e não humanos.

1.1 Pessoas do Outro Mundo


Em agosto de 2004, fiz minha primeira viagem à principal aldeia ga-
libi-marworno, Kumarumã, no rio Uaçá. Na ocasião, estavam sendo
iniciadas oficinas relativas a um projeto em curso, apresentado pela
antiga Associação dos Povos Indígenas do Oiapoque (APIO) no âm-
bito do Projeto Demonstrativo de Povos Indígenas (PDPI-MMA), de
resgate cultural, e os cantos do turé galibi-marworno eram objetos
de transmissão pelo pajé Levên a uma audiência formada por jovens
de sua parentela e das parentelas de seus auxiliares rituais. Essa
transmissão basicamente consistia na entoação dos cantos, em um
galibi lexical, seguida de tradução para o patois (língua hoje falada
pelos Galibi-Marworno) e comentários. Tudo de forma muito didá-
tica e organizada, buscando a participação da plateia constituída
por meia dúzia de aprendizes-cantadores. Nos comentários, Levên
sublinhava que a palavra itutan, bastante frequente nos cantos
e traduzida por ele como “o fundo do mato” (a floresta profunda),

39
CANTANDO E MARCANDO REDES COSMOPOLÍTICAS
Ugo Maia Andrade

quando adicionada a iranã, formando a expressão itutai iranã, de-


signa o local de habitação de alguns Karuãna. A tradução fornecida
parece ser congruente com “habitantes da floresta”, tradução aceita
para o exorreferente Itutan que, segundo Grenand e Grenand (1987,
p. 11-12), delimitava a oposição entre gente da costa/gente da flo-
resta, utilizada, inclusive, para definir populações que habitavam a
bacia do rio Uaçá. As traduções dos cantos feitas por Levên vinham
ainda ilustradas por mitos ou narrativas cosmo-históricas, espécie
de estrutura sequencial de eventos preenchida por referentes cos-
mológicos, uma vez que os cantos do complexo xamânico do turé
são modos de comunicação e presentificação dos Karuãna.

Os Karuãna são pessoas do Outro Mundo – notadamente mestres


ou donos de espécies animais e vegetais, mas também estrelas,
constelações, nuvens, trovão, raio etc. – invisíveis, segundo o ponto
de vista dos humanos comuns, porém visíveis para os pajés em sua
forma antropomorfa subjacente. São também chamados de Bichos
e definidos categoricamente como pessoas, análogas e diferen-
tes dos humanos, mas convivendo em mundos sociais coexten-
sivos à cultura, ao modo das cosmologias animistas amazônicas
(DESCOLA, 1992; 1996; 2013), que lhes facultam a vida comunitária
em populosas e belas cidades, o domínio de tecnologias superiores
à nossa, o uso de artefatos culturais e a organização de grandes
festas. Aliás, sem ter que se preocupar com as agruras da sobre-
vivência, os Karuãna, na opinião de Levên, são grandes folgazões:
“Essa gente encantada só faz isso: dançar e cantar e beber caxiri,
não tem outro serviço”. Os Karuãna aproximam-se dos humanos
portando invólucros1 de animais a fim de caçá-los ou raptar-lhes
mulheres. No primeiro caso, uma ilustração precisa é fornecida pelo
mito de Yakaikani, um jovem palikur capturado pela Cobra-Grande
que vem a Este Mundo, onde estão os humanos, caçar macacos (ou
papagaios, a depender da versão do mito).

Aqui o ponto de vista, seguindo a teoria do perspectivismo amerín-


dio (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, 2002; 2004, 2015; LIMA, 1996, 2005),
define que Yakaikani seja, para a Cobra-Grande, um macaco; assim

40
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

como o homem grande e branco, que é a pessoa dona do invólucro


de Cobra-Grande, é visto como uma gorda Sucuriju pelos humanos.
O mito ainda revela sequências de transformação do índio, captu-
rado e levado ao Outro Mundo, em Cobra-Grande, à medida que,
tendo-lhe a vida poupada, estreita a convivência com a família de
seu captor. Ao fim, Yakaikani instrui seus parentes humanos a matar
o casal Cobra-Grande e muda-se, já transformado em Cobra, com
seu irmão caçula não humano e cuja orfandade ele provocou, para
o lago Marapuruá, ponto importante na paisagem da TI Uaçá. Toda
a longa narrativa do mito está supercondensada no canto de turé
de Yakaikani, com ênfase na sua transformação em Cobra-Grande
e permanência, até os dias de hoje, no lago Marapuruá, do qual é
“dono” (SANTOS e SANTOS, 2017, p. 25).

Nem sempre os Karuãna são predadores dos humanos. Quando os


encontros entre ambos, especialmente oníricos, transcorrem de
forma amistosa, os Karuãna ensinam cantos xamânicos e, exibindo
suas vestimentas ou marcas características, doam padrões gráficos
que serão reproduzidos em artefatos rituais ou de uso doméstico.
Além de cantos e grafismos, diretamente acessados pelos pajés du-
rante as viagens ao Outro Mundo, fórmulas fitoterápicas são outra
dádiva proveniente dos Karuãna e que deverão ser oportunamente
retribuídas. A festa do turé, dirigida às pessoas invisíveis do pajé,
representa uma dessas oportunidades de retribuir-lhes dádivas
recebidas, incluindo serviços de cura e de agressão; todavia, sua
função primária, antes de encerrar uma dívida mediante seu res-
pectivo “pagamento”, é renovar a aliança do pajé com seus Karuãna
por meio da manutenção do ciclo de obrigações (ANDRADE, 2012,
p. 981). Daí a posição precípua dos cantos durante o turé, uma vez
que eles são chamamentos particularizados para que os diferentes
tipos de Karuãna aliados venham para festa, deslocando-se pelo
ar e descendo pelo Mastro posicionado ao centro do lakuh, local
público do rito. O Mastro central funciona como “escada de Bicho”,
auxiliado pelas bolotas de algodão, presas às varas delineantes do
lakuh, que os Karuãna veem como luzes de sinalização.

41
CANTANDO E MARCANDO REDES COSMOPOLÍTICAS
Ugo Maia Andrade

Receber cantos oniricamente e aprender a cantá-los é parte essen-


cial do processo de formação de um pajé galibi-marworno, pois si-
naliza o consórcio estabelecido com os Karuãna. Cantos xamânicos
também podem ser herdados de outro pajé, notadamente alguém
em linha ascendente direta (pai ou avô bilateral) ou não (tio e pri-
mo bilateral; irmão), de quem igualmente se herdará Karuãna. As
mulheres, embora menos comum, também viram pajés, herdam e
legam seus cantos e Karuãna a parentes próximos ou a auxiliares
rituais (paliká) que, frequentemente, fazem parte de sua parente-
la. Herdar ou receber cantos é fundamental porque não há aliança
com Karuãna sem o domínio de cantos; por tal razão, uma xitotó
ou um turé deve apresentar uma grande variedade deles, indicando
a robustez da amizade que um pajé mantém com as pessoas do
Outro Mundo e que será interpretada como índice de seu poder de
cura/agressão.

1.2 Os donos dos cantos


Não obstante os Karuãna formarem consórcio com os pajés e esses a
eles referirem-se coletivamente como “exército” ou dizerem “o meu
pessoal” ou “eu tenho tantas pessoas”,2 esses espíritos auxiliares
não são suas propriedades, uma vez que são pessoas stricto sensu
e, como tais, dotadas de vontade, autonomia e liberdade. A relação
do pajé com eles é cercada por obrigações e diplomacia, evitando-se
a contraforma da cooperação: a predação. Pois, assim como é capaz
de curar, um Karuãna, quando instruído por seu pajé, também age
como patógeno, instalando-se no corpo da vítima e devorando-a por
dentro até a sua morte (ANDRADE, 2007, p. 238). Saúde e doença são
complementares e o processo da cura xamanística consiste no due-
lo entre um Karuãna que atua como patógeno e outro Karuãna que
tenta neutralizá-lo, cada qual aliado de um pajé. Por conseguinte, ter
o máximo de Karuãna como aliado e saber conservar a aliança com
eles é uma boa estratégia de reduzir os riscos de virar alvo de pató-
genos canibais enviados por pajés inimigos.

Com os cantos e os padrões gráficos utilizados em Bancos zoo-


morfos e Mastros rituais, se passa um pouco diferente. Ambos são

42
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

doados pelos Karuãna a um pajé aliado durante encontros oníricos


ou visitas ao Outro Mundo. Ele também poderá herdá-lo de seu pre-
ceptor, geralmente aquela pessoa que o iniciou no xamanismo. Pode
ainda acontecer de a oferta de cantos ser para concluir um processo
de xamanização em curso, fazendo com que a pessoa xamanizada e
adoecida (i.e., assediada pelos Karuãna) cante e consiga escapar da
morte, virando pajé. Os cantos, assim como grafismos, são parte de
acervos xamânicos privativos porque formam a chave da comunica-
ção e da aliança com as pessoas invisíveis e é por meio dos cantos
que os Karuãna tornam-se presentes nos cerimoniais de cura (can-
tarola ou xitotó) e celebração (o turé). Mas, se os cantos e os grafis-
mos de artefatos rituais são exclusivos de cada pajé, exceto aqueles
raros de domínio coletivo,3 os Karuãna circulam por onde desejam.

Os cantos assinalam reciprocidades com pessoas do Outro Mundo,


trocas intercomunitárias e com outros povos (incluindo não índios
de vilas vizinhas e cidades mais distantes e negros Saramaká da
Guiana Francesa), posto que a iniciação ao xamanismo pode acon-
tecer por meio de pajés de fora da TI Uaçá (ANDRADE, 2018, p. 54).
Mas a ideia de que um Karuãna “pertence” a uma comunidade ou
a um pajé em especial inexiste e ninguém é acusado de roubar
Karuãna, uma vez que os espíritos auxiliares podem estar consor-
ciados simultaneamente a vários pajés, devendo estes competir
por sua atenção. É possível reivindicar a propriedade de cantos e
de grafismos como parte do acervo de um pajé ou de uma linhagem
de pajés, quase sempre patrilinear, pois eles constituem a senha
da aliança com as pessoas invisíveis. Todavia, os Karuãna mesmo
nunca são reivindicados como parte de tais acervos, exceto, talvez,
aqueles que usam invólucros de artefatos rituais de uso exclusi-
vo do pajé, a exemplo de seu Banco zoomorfo, seu cesto trançado
(Pakará), seu bastão (Sauli) e seu Maracá.

Com frequência, ocorrem, entre os pajés da região, acusações vela-


das de roubo de cantos e de grafismos aplicados a Bancos zoomor-
fos e Mastros rituais e eu mesmo fui suspeito de tal desvio. Ocorreu
pouco antes da conclusão de minha terceira estada em Kumarumã,
no ano de 2005, e o próprio cacique da aldeia foi, a contragosto e
acabrunhado, ter comigo. Disse-me que “viram” os cantos utiliza-

43
CANTANDO E MARCANDO REDES COSMOPOLÍTICAS
Ugo Maia Andrade

dos em Kumarumã sendo vendidos em fita cassete em Macapá e,


mesmo confiando que eu não tinha nada a ver com o assunto, pre-
cisava cumprir o papel de mediador entre mim (acusado) e não sei
quem (o acusador), pois nunca procurei investigar de onde partira a
suspeita e esqueci o assunto quando perguntei ao cacique quanto
ele achava que valiam os cantos e por que alguém os compraria em
Macapá. Em ocasião ulterior, fui informado pelo próprio Levên que
fotografias dos grafismos que ele utilizou nos Bancos zoomorfos e
Mastros rituais em seu primeiro turé estavam sendo vendidas na
Guiana Francesa e no Suriname e que pajés desses lugares vinham
copiando seus grafismos, doados por Karuãna aliados. Isso foi sufi-
ciente para que eu entendesse que os cantos e os padrões gráficos
são repertórios privativos e que, para além de serem propriedades
que conferiam aos seus donos humanos direitos de domínio e uso,
eram índices de relações com as pessoas do Outro Mundo, residin-
do aí o seu verdadeiro valor. Ser dono de um canto ou de um padrão
gráfico é configurar uma relação, ter a chave e o índice do acesso
aos Karuãna doadores, que, no fundo, são os verdadeiros donos de
cantos e grafismos, assim como são donos (mestres) de espécies.4
Faltava de minha parte o feeling etnográfico para perceber a ne-
cessidade de conduzir com mais parcimônia o registro dos cantos e
dos padrões gráficos associados ao xamanismo galibi-marworno.

1.3 Cantos de xitotó e turé


Nas xitotós, a sequência dos cantos entoados segue a ordem em
que os tipos diferentes de Karuãna devem aparecer na sessão, uma
vez que, não obstante poderem agir como patógenos ou agentes de
cura, a depender do contexto de relações (ANDRADE, 2011a, p. 92-
93; 2012, p. 975), há alguns Karuãna especialistas em curar doenças,
combatendo Karuãna patogênicos, dentre esses aqueles que são
“grandes doutores”, a exemplo de Lapousiene ou Laposiniê, as pes-
soas Estrelas da constelação das Plêiades (VIDAL, 2007, p. 24-27).
Apenas tais Karuãna finalizam o complexo tratamento em face da
doença gerada por feitiçaria, fazendo a operação, por meio do pajé,
a fim de extrair o Karuãna que está a agir como patógeno canibal.
E fazem em troca de tawari e caxiri (VIDAL, 2007, p. 27). Nem todas

44
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

as doenças, porém, são geradas por agressão xamânica: há as que


decorrem de flechadas e sopros produzidos por mestres de animais,
ocasionando AVCs (caueru), por exemplo (ANDRADE, 2007, p. 149);
há, ainda, aquelas levadas por potás, fórmulas incantatórias do ti-
po breathing sorcery e evil spells (VIDAL e WHITEHEAD, 2004, p. 63;
WILBERT, 2004, p. 38; WRIGHT, 2004, p. 89; BUCHILLET, 2004, p. 111)
muito comuns na Amazônia indígena em geral e que geram efeitos,
incluindo doenças, a partir da manipulação agentiva da palavra, dis-
tinguindo-se dos cantos xamânicos, que visam à produção de efeitos
por meio da comunicação com os Karuãna (ANDRADE, 2012, p. 980).

O turé é a ocasião em que os cantos são mais eloquentes e en-


toados em ações pré-cerimoniais (com a produção do caxiri e de
artefatos), cerimoniais e pós-cerimoniais (representadas pela
Kulev, uma semana após o turé, quando se despacha a Cobra-
Grande de volta ao Outro Mundo), desdobrando sua mensagem.
Assim, há cantos de preparação, de execução e de encerramento
definitivo do rito entoados conforme a ação em curso. Por conse-
guinte, o canto para a preparação da clarineta turé (Karamatá) é
ouvido apenas durante a produção desse instrumento, que é um
Karuãna; o canto de levantamento do Mastro, outro Karuãna, é
exclusivo para a execução de tal ação, nas versões pública e re-
servada (levantamento do Mastro no lakuh e dentro da casa do
pajé onde, em paralelo, parte do cerimonial transcorre). Há, ain-
da, cantos do caxiri que marcam diferentes etapas de serviço da
bebida. O primeiro canto dessa sequência convida os Karuãna
da mata a virem tomar parte na festa, servindo-lhes o fermen-
tado de mandioca. O segundo é entoado no momento em que os
“donos do caxiri”, aquelas pessoas que prepararam a bebida, são
dele servidos. O terceiro é o canto do caxiri das mulheres, quando
apenas elas, primeiro as cantadoras oficiais do pajé (Koiaminãns)
e depois as demais, são servidas. Por fim, o caxiri é franqueado a
todos e entoa-se outro canto da bebida na casa do pajé.5 Durante
a execução desses cantos de caxiri, as pessoas cantam e dançam
em volta (sentido horário) do Mastro menor erguido dentro da
casa, que também recebe sua cota da bebida,6 batendo sincroni-
camente o maracá de cabo longo no assoalho de madeira.

45
Figura 1 - Canto e serviço do caxiri no turé. Junho de 2005.

Fonte: Ugo Maia Andrade

46
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Seguindo a série dos cantos do caxiri, vem o canto do Mastro (ni-


kawrô) do tukay, fixado no interior da casa do pajé e depois trans-
ferido para uma das três entradas do lakuh. Na casa de Levên, esse
Mastro fica posicionado atrás do tukay, o abrigo onde o pajé canta,
nas ocasiões em que há sessões de xitotó, e sua função é a mes-
ma do Mastro principal dentro do lakuh, isto é, servir de “escada de
Bicho”, permitindo que os Karuãna desçam por ele e encontrem o pa-
jé em transe em seu casulo cerimonial. Quando não estão em uso, os
Mastros menores e as quatro varas de armação do tukay - dispostas
de maneira a formar um cubículo lateralmente fechado por tecido
e aberto na parte superior - são armazenados na estrutura de ma-
deira que suporta o telhado da casa, onde, aliás, é costume guardar
utensílios domésticos diversos. Os Bancos zoomorfos são conser-
vados em um canto do compartimento maior da casa, ao passo que
o Mastro principal, aparentemente grande e pesado demais para o
esteio do telhado, é acondicionado do lado de fora.

A lista continua com os cantos dos Karuãna presentes, a exemplo


dos Bancos zoomorfos, Mastro, Maracás, arara (Kinorô), a pomba
do Mastro (Uaramim), Karamatá (há outro canto para a clarineta
turé) e todos os demais Karuãna aliados do pajé, de maneira que,
durante dois dias, com um intervalo longo entre o fim da manhã e o
fim da tarde do segundo dia, percebe-se pouca repetição de cantos,
todos eles em galibi ritual.

De fato, os cantos gozam de posição precípua no complexo xamâ-


nico regional, sendo parte de acervos privados, ao lado dos padrões
decorativos que enfeitam os Bancos e Mastros rituais, formados
por dádivas dos Karuãna. Por tal motivo, os cantos são alvos de
cuidados especiais que previnem o seu roubo por outros pajés; é a
acusação de plágio de cantos xamânicos que predomina hoje entre
os pajés do baixo Oiapoque, uma vez que eles foram continuamen-
te proibidos, por agentes do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e de-
pois pelos caciques de suas comunidades, de revelar os nomes de
autores de feitiços por eles diagnosticados. Os cantos são também
um dos motivos principais de desqualificação de um pajé, insinuan-

47
CANTANDO E MARCANDO REDES COSMOPOLÍTICAS
Ugo Maia Andrade

do-se que ele possui um minguado repertório, não tem auxiliares


competentes para ajudá-lo a cantar ou que “canta errado”.

Um turé apresentará variações nos cantos conforme o repertório do


pajé patrocinador; todavia, há uma estrutura inicial invariável da qual
depende o transcorrer ulterior da cerimônia. Essa sequência primária
corresponde a procedimentos que visam atrair as pessoas invisíveis
para o lakuh e são realizados através da entoação de canto-convites.
A rigor, tais cantos não precisam ser entoados na mesma sucessão,
mas é imprescindível manter sua unidade morfológica, i.e., que todos
eles, independentemente da série, sejam canto-convites (ANDRADE,
2012, p. 993). Os dois primeiros são dirigidos às pessoas Karamatá,
sendo seguidos por cantos de outros Karuãna aliados do pajé, com
especial atenção para os seus Bancos zoomorfos.

Por fim, há a Kulev, com cantos específicos, ocasião pós-cerimonial


importantíssima para fazer com que humanos e Karuãna retomem
a distância devida suspensa pelo turé. No fundo, o rito consiste em
produzir uma conjunção controlada de pessoas humanas e não hu-
manas e que será substituída por um novo e derradeiro esforço:
restabelecer a ordem do cosmos onde humanos e Karuãna estão
devida e seguramente separados, habitando mundos distintos
(ANDRADE, 2012, p. 998). Daí a finalidade precípua da Kulev em
despachar para o Outro Mundo a Cobra-Grande, um dos mais po-
derosos Karuãna. E ela deve seguir bastante bêbada de caxiri, para
que não ache o caminho de volta da aldeia.

48
Figura 2 - Kulev e serviço do caxiri. Junho de 2005

Figura 2 - Kulev e serviço do caxiri. Junho de 2005

Fonte: Ugo Maia Andrade

49
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

DAS LINHAS, SEGUIMENTOS E TOANTES NO SUBMÉDIO


SÃO FRANCISCO
Na outra ponta, habitando a região baiana do submédio rio São
Francisco, estão os Tumbalalá, cujo território delimitado encontra-
-se entre os municípios de Curaçá e Abaré. Os cantos de toré7 são
chamados de linhas, toantes ou seguimentos8 e são vitais para a
sequência ritual, permitindo que os Encantados cheguem e se apre-
sentem por meio dos mestres e das mestras que comandam o rito.

O toré tumbalalá pode ser aberto ou restrito, variedade comum no


Nordeste indígena e descrita por Hohenthal Jr. (1960, p. 61) para os
Tuxá de Rodelas. Em sua versão aberta, que é menos formalizada,
os Tumbalalá cantam apenas para os Encantados do brabio (das
matas de caatinga) e há mais participantes. Aqui o toré consiste
numa dança, ritmada por passos e maracás, que observa uma
distribuição simétrica no terreiro, devendo os dançarinos estar
dispostos em duas fileiras paradas, uma defronte a outra que, em
dados momentos, saem paralelamente (em fila indiana) e percor-
rem o espaço ritual até uma de suas extremidades, que abriga um
cruzeiro simples de madeira, para depois retornarem ao ponto de
partida, junto ao banco dos oficiantes mestres colocado do lado
alterno ao cruzeiro. A versão restrita, chamada de mesa de toré ou
particular, é realizada na casa de alguém que a encomendou por
ocasião de uma doença de parente e excetuando o uso de linhas
de Encantados das águas e do brabio (versão restrita) e as limi-
tações de espaço para execução das coreografias, ambos os torés
assemelham-se nos passos (com destaque para um passo que
a pessoa executa-o parada) e no uso de artefatos como maracá,
cataioba, pujá, cruzeiro de madeira (o do particular é pequeno e
móvel), colares, apitos (para chamar os Encantados) e cachimbos
(kwaki) feitos de raiz da jurema ou, mais raro, cerâmica. Em ambas
as modalidades, faz-se uso de bebida proveniente da imersão da
entrecasca macerada da jurema e de tabaco.

50
CANTANDO E MARCANDO REDES COSMOPOLÍTICAS
Ugo Maia Andrade

Os Encantados tumbalalá são, como os Karuãna no baixo Oiapoque,


pessoas invisíveis para humanos comuns e com certos poderes ex-
cepcionais, especialmente de cura e premonição. Estão associados
às aguas do rio São Francisco ou à caatinga e retiram do vínculo
ecológico os fundamentos de sua persona, gerando um padrão de
comportamento rústico e esquivo para os Encantados do brabio
(caatinga) – tais como Vaqueiros, Índios indômitos e entes “natu-
rais”, como a Caipora/Caiporinha –, que complementa a urbanidade
e a sociabilidade dos Encantados das águas, a exemplo de capitães
de aldeia, lideranças políticas, pajés, reis e princesas (ANDRADE,
2008, p. 249-253). Ambas as classes são dotadas de índices cultu-
rais idealizadores de mundos pré e pós contato, respectivamente
do “gentio inocente” e ancestral primevo e dos índios civilizados,
imagens polares e contínuas da alteridade que, combinadas, orga-
nizam práticas e relações sociais (GOW, 1993, p. 329). De tal ma-
neira, os Encantados tumbalalá refletem a memória do acúmulo
de experiências culturais intensamente vividas com as missões, os
currais de bois, a escravização indígena, a presença holandesa, a
administração colonial, os escravos africanos e os colonos portu-
gueses, formando camadas diferentes de história.

Os Encantados podem também ser ex-humanos, geralmente lide-


ranças políticas ou rituais (ou ambas), que se transformaram em
Encantados por mérito próprio; ou foram transformados por ação
das pessoas encantadas. Encantamentos compulsórios estão as-
sociados a raptos de humanos comuns motivados por vingança,
desejo da companhia dos humanos (diz-se que um Encantado “se
agradou” de alguém) ou aplicação de rigorosas sanções. Nesses
casos, os humanos são levados para a morada do Encantado
raptor, que pode ser uma cidade encantada, um palácio no fundo
do rio, uma gruta subterrânea etc., localizados em um mundo pa-
ralelo, mas sinalizados no mundo humano por morros, redemoi-
nhos no rio, depressões no terreno, grutas etc.. Tais lugares são
vórtices cosmológicos ou passagens entre os mundos humano e
o encante e anexo a eles, em terra firme, os Tumbalalá identificam
terrenos planos e limpos onde os Encantados dançam seus torés
(ANDRADE, 2008, p. 244). Os Encantados atuam no cotidiano das

51
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

pessoas, agem nas relações entre os núcleos político-rituais tum-


balalá, nas relações dos Tumbalalá com outros povos indígenas do
submédio São Francisco e influenciam ações indígenas conjuntas, a
exemplo da declaração feita por lideranças truká e tumbalalá, após
reunião com o governo federal a fim de negociar a transposição do
rio São Francisco, em 2005, alegando que convocariam para impe-
dir a obra “as forças encantadas da natureza”. Em outras ocasiões,
os Encantados ratificavam argumentos sustentados nas disputas
entre os núcleos político-rituais da Missão Velha e do São Miguel
em torno das propostas de ambos os grupos para o “levantamento
da aldeia” tumbalalá (ANDRADE, 2008, p. 261).

Nesse sentido, tais entes podem constituir acervos de parentelas,


de povos ou de um conjunto de povos que mantêm ou mantiveram
intercâmbios rituais. Todavia, a exemplo dos Karuãna galibi-ma-
rworno, o que está em jogo são direitos de monopólio de comuni-
cação e não direitos de propriedade sobre os Encantados, uma vez
que se trata de sujeitos com vontade própria não reduzida à von-
tade humana. De tal sorte que, como no baixo Oiapoque, os objetos
de disputas serão os cantos xamânicos (as linhas de toré) que efe-
tivamente sinalizam relações com os Encantados e relações com
outros povos, uma vez que as dádivas de linhas de toré provêm
tanto de sonhos, quanto dos contatos interindígenas.

1.4 Circuitos de humanos, cantos e Encantados


O que define o toré enquanto um rito específico de identidade indí-
gena são menos os procedimentos e as práticas a eles atribuídos e
mais os cantos (ou linhas) entoados que, no conjunto, formam um
corpo de representações acerca da origem ameríndia. As linhas de
toré são tradicionalmente “dadas” pelos Encantados durante so-
nhos a algumas pessoas, mas há também aquelas que são tiradas
de cabeça, i.e., são composições pessoais. Na atualidade, a prática
do toré entre os Tumbalalá vem arrefecendo. Isso se deve, em parte,
à morte das grandes lideranças rituais nos últimos vinte anos e à
dificuldade em repor tais perdas. Adicionalmente, as mobilizações

52
CANTANDO E MARCANDO REDES COSMOPOLÍTICAS
Ugo Maia Andrade

territoriais estão igualmente arrefecidas em um cenário onde forças


anti-indígenas foram oficializadas e ocuparam aparelhos estatais,
sobretudo a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). As lutas de retoma-
da, por demarcação ou pela aprovação e homologação de relatórios
de identificação territorial, antes impulsionadoras de atividades do
toré, tornaram-se mais ponderadas diante do quadro atual.

Pode-se dizer que as linhas de toré “puxam” os Encantados até o


local do rito. As correntes da jurema são, como o nome sugere, uma
ligação com os ancestrais representados pelos Encantados e a ma-
neira pela qual se chega até eles, sendo a sua antítese representada
pelo ponto de sessão associado a trabalhos vigentes nas variantes
regionais do candomblé. Para a condução apropriada do toré, me-
diante as correntes da jurema, um Encantado deve chegar e sair com
linhas diferentes, uma vez que a repetição da linha na chegada e na
saída do mesmo Encantado configura desempenho ritual que opera
com ponto (ao invés de correntes), atraindo outros entes e sendo al-
tamente condenado pelos Tumbalalá (ANDRADE, 2008, p. 259).

As linhas de toré também atuam como revelações sobre a histó-


ria regional que possibilitaram sociogêneses no submédio rio São
Francisco, a exemplo do desvelamento, nos anos de 1940, do “no-
me da tribo” feito a partir do contato intensificado do líder truká
e mestre de toré, Acilon Ciriaco da Luz, com os Encantados, após
receber reforço ritual dos Tuxá de Rodelas. O segredo foi revela-
do na última estrofe de uma linha de toré dada pelos Encantados
a Acilon Ciriaco: “Caboclo que não tem flecha/ Como pode traba-
lhar?/ Tenho arco e tenho a flecha/ Na hora de trabalhar/ Tuxá e
Tuxí, oi Tumbalalá, nação Turká” (ANDRADE, 2008, p. 190; BATISTA,
2004, 192). Desvelou-se, simultaneamente, o etnônimo verdadeiro
dos caboclos da ilha da Assunção (Turká ou Truká), dos caboclos
reunidos em torno do povoado de Pambu (Tumbalalá) e dos ca-
boclos da Ilha da Vargem (Tuxí), antigo local da Missão do Beato
Seraphim. E mais ainda: a linha de toré revela que tais coletivos for-
mam uma unidade representada pelas redes de relações que histo-
ricamente conectam as famílias que constituem os “troncos-velho”
tumbalalá, truká e tuxí. Os Tuxá, que mantinham alianças com os

53
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

caboclos da ilha da Assunção, especialmente por meio do capitão


João Gomes (SAMPAIO-SILVA, 1997, p. 26; BATISTA, 2004 p. 192), e
auxiliaram Acilon Ciriaco a reforçar a atividade ritual, têm também
o seu lugar na memória regional das relações interindígenas regis-
tradas na linha de toré revelada pelos Encantados.

Linhas de toré e Encantados podem ser amplamente comparti-


lhados por povos distintos ou constituírem estoques restritos de
baixa circulação. Dentro dos dois principais núcleos político-rituais
no território dos Tumbalalá, da Missão Velha e do São Miguel, há
significativas diferenças na abertura e no encerramento dos torés,
sendo possível destacar apenas meia dúzia de linhas compartilha-
das por ambos os núcleos. Não é relevante saber o número total de
linhas de que dispõe um e outro núcleo, uma vez que sua incorpo-
ração e seu esquecimento são contínuos, mas é bastante razoável
dizer que cada núcleo mantém em uso cerca de 80 linhas, dentre as
de uso comum, de baixa e de alta circulação.

Dentre essas, arriscaria dizer, mais da metade é originada em outros


povos do Nordeste indígena, tendo sido adaptadas para novos con-
textos. A bem da verdade, é difícil mapear a origem de quase todas
as linhas cantadas nos terreiros tumbalalá. Mesmo as que foram
aprendidas com os Truká durante o período de trocas rituais intensas
entre Acilon Ciriaco e a família Fatum do núcleo do São Miguel são,
em boa parte, provenientes de outros povos do Nordeste (ANDRADE,
2011b, p. 213). A exceção são as linhas de Encantados atribuídas à
aldeia tumbalalá, como o mestre Manoel Ramos, uma vez que um
acervo próprio de Encantados exige um conjunto particularizado
de linhas de baixa circulação. Todavia, as linhas de toré são fluidas
por excelência, abertas aos eventos e seus registros e, além disso,
sua enorme variedade permite que sejam circunstancialmente
combinadas, em função do contexto e efeito desejado.

Apresento abaixo seis linhas cantadas no toré dos Tuxí de Pernambuco.9


A última delas foi entoada no terreiro do Caxoí, dentro de território rei-
vindicado pelos Tuxí, quando lá estive na companhia das lideranças
tumbalalá Cícero Marinheiro e Socorrinho, em fevereiro de 2014:

54
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

(1) Lá no pé do cruzeiro, oh jurema


Eu venho com meu maracá na mão (2x)
Vou pedir a Jesus Cristo
Com Cristo no meu coração (2x)

(2) Lá no pé daquele morro


Ali não mora mais ninguém (2x)
Chame João do pé do morro
Chame ele que ele vem (2x)
(3) Eu vi Santa Bárbara no céu
Trovão troveja no ar (2x)
Quando eu vim da minha aldeia
Da aldeia do Paraná
Venho dar força aos meus índios
Para nós poder trabalhar

(4) Vamo, vamo, minha gente


Que uma noite não é nada
Ah, quem chegou foi os Tuxi
No romper da madrugada

(5) Sou Aricuti


Eu vim trabalhar
Na tribo de Atikum
Na pedra letra do ar
Trabalhe, meus caboclos
Com muita força no pé
Para dar força a nossa tribo
E ao divino São José

(6) Deus no céu e os índios na terra


Mas quem é que pode mais?
É Deus no céu
Mas quem é que pode mais?
É Deus no céu

As três primeiras linhas reconheço dos torés tumbalalá dos quais


participei no terreiro do São Miguel, liderado pela família Fatum. A
terceira linha, inclusive, se me recordo bem, foi entoada pela pri-
meira vez pelo velho Luís Rosa, que a apresentou à audiência co-
mo tendo sido a ele revelada em um sonho e logo foi apreciada e
acolhida. A quarta linha escutei, em junho de 2002, no terreiro de
toré kalancó do Lajedo do Couro, município de Águas Claras/AL,
com variação da referência aos próprios Kalancó no lugar dos Tuxí.
A quinta linha faz referência aos Atikum, parentes de famílias tuxí e
com quem a família tumbalalá Fatum manteve importantes trocas
rituais no passado. Por fim, a sexta linha, atribuída pelos Tumbalalá
aos Xukuru-Cariri, é de alta circulação no Nordeste e pode ser ouvi-
da em torés pluriétnicos desempenhados em ocasiões de grandes
mobilizações indígenas realizadas em Brasília e demais capitais.

55
Figura 3 - Índios tuxá no toré tumbalalá no São Miguel. Março de 1999.

Fonte: Ugo Maia Andrade

56
Figura 4 - Presença tumbalalá no toré tuxí no Caxoí (PE). Fevereiro de 2014.

Fonte: Ugo Maia Andrade

57
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Não obstante a circulação e os empréstimos, a linha de uma aldeia


cantada em terreiro alheio atrai um Encantado da aldeia que a to-
mou de empréstimo e não da que cedeu (ANDRADE, 2008, p 271). As
alianças envolvendo trocas rituais entre índios do Nordeste pro-
porcionam intercâmbios cosmopolíticos representados pela alta
circulação de linhas e Encantados, transformados em marcadores
da presença de coletivos em redes regionais de relações interin-
dígenas. Os intercâmbios de linhas entre os Tumbalalá e demais
grupos do Nordeste foram intensificados a partir de 1999, com a
participação deles nos encontros indígenas regionais e nacionais,
ampliando as possibilidades de novas aquisições para muito além
das fronteiras até então conhecidas. Os próprios Tumbalalá, nos
dois principais núcleos político-rituais, entoam linhas com referên-
cias a outros povos, o que, efetivamente, não autoriza a atribuição
automática da autoria das linhas aos povos citados, mas registra,
por certo, movimentos dentro de redes interindígenas de relações
e trocas múltiplas, incluindo rituais (ANDRADE, 2011b, p. 218). Tais
movimentos permitem que linhas circulem a partir de intermediá-
rios, quando não são aprendidas com pessoas do próprio coletivo
ao qual se atribui a autoria, como é o caso dessa linha pankararé
que evoca os Tuxá e é cantada no terreiro tumbalalá do São Miguel:

Ôh Tuxá
Ôh Pai do ar
Quero que me dê notícia
Da aldeia de lá

Várias outras linhas dessa natureza poderiam ser aqui apresenta-


das. O dado realmente interessante, porém, é que seu uso constante
nos torés tumbalalá faz com que sejam incorporadas aos repertó-
rios locais, esmaecendo-se sua aloctonia. Por isso é frequente ver,
após a entoação de uma linha, seja no toré aberto, seja no parti-
cular, pessoas debatendo sobre sua origem, tema mobilizador que
pode provocar longas pausas no rito. Mas não há uma preocupação
obsessiva em relação a isso, pois os Tumbalalá sabem quais linhas
são, inequivocadamente, de seus núcleos político-rituais, não obs-

58
CANTANDO E MARCANDO REDES COSMOPOLÍTICAS
Ugo Maia Andrade

tante as desconstruções de tal origem dirigidas de um núcleo a


outro, visto que cantar em excesso linhas estrangeiras represen-
ta não manter consórcio com os Encantados locais. Em agosto de
2001, fiz a compilação, junto a Aprígio Fatum, contramestre e notó-
rio conhecedor da cosmologia tumbalalá, de 63 linhas de toré que
compunham o acervo do São Miguel, sem, todavia, esgotá-lo. Há
linhas bastante curtas, outras longas; linhas aceleradas, outras la-
muriosas; linhas que tematizam memórias coletivas de relações ou
experiências e outras que falam de animais ou plantas. O conjunto
é, ao menos à primeira vista, heteróclito e dinâmico e penso que os
Tumbalalá estão interessados nas incorporações e autoctonização
de linhas estrangeiras – como índice de sua participação em redes
interindígenas de trocas – na mesma proporção que se interessam
pela manutenção de seus repertórios locais, pois o consórcio com
os Encantados da aldeia tumbalalá não é nem mais nem menos
importante que as relações de trocas com outros povos e seus
Encantados. Ilustro esse argumento com uma belíssima linha que
fala na jurema florescendo e dividindo-se em dois galhos (“gaios”),
que as pessoas do núcleo do São Miguel afirmam ser os Tumbalalá
e os Truká da Ilha da Assunção:

A jurema enfulora
A jurema enfulorou
Mas o caboclo vai pro mato [...]
Heina hê
Porque meu gentio voltou
Heina hê
Heina hê há hê oh
A jurema tem dois gaios
Que é pros índios trabalhar

59
Figura 5 - Mestre truká comanda toré tumbalalá na Missão Velha. Fevereiro de 1999.

Fonte: Ugo Maia Andrade

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PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

PARA FINALIZAR
Que semelhanças e particularidades podemos extrair da presença
e do papel dos cantos xamânicos nas redes interindígenas no baixo
Oiapoque e rio Uaçá e no submédio São Francisco a partir dos re-
cortes etnográficos exibidos? Em uma breve consideração desses
cenários, poderíamos enumerar alguns tópicos relevantes. Antes,
entretanto, sublinhe-se a necessidade de pesquisas no Nordeste
indígena que produzam efetivamente comparações10 entre redes
e circuitos interindígenas de trocas rituais mais amplas, incluindo
modalidades indianizadas de ritos outros (penitentes, São Gonçalo,
candomblé, mesa branca etc.), por vezes regionalmente edificados
com grandes contribuições ameríndias para, depois, retornarem às
práticas indígenas, como é o próprio toré e suas variações repre-
sentadas pelo praiá, ouricuri, porancim, torém. Tal retorno é tão so-
mente uma imagem, posto se tratar da transformação contínua do
fundo xamânico que passa a ser encontrado em formas regionais
que emergem de diversas situações de contato.

Todavia, as expressões rituais presentes no Nordeste indígena não


podem ser reduzidas ao xamanismo, normalmente associado ao
complexo do toré, sob pena de perda da diversidade e exotização
de alguns ritos. Claudia Mura (2013, p. 292) argumenta que, para os
Pankararu de Brejo dos Padres, as romarias, que contam com apre-
sentações de praiás ligados a determinadas parentelas, são um meio
de projeção para além do território, acionando a identidade de romei-
ro que opera conjuntamente à de indígena, em meio a relações com
romeiros não indígenas e indígenas que agregarão prestígio e apoio
às relações intracomunitárias de seus aliados romeiros pankararu.

Voltemos aos tópicos, ao mesmo tempo sínteses e breves conclu-


sões que elencarei da forma seguinte:

(i) Os espíritos auxiliares (Karuãna e Encantados), doadores


e destinatários dos cantos, estão ligados aos humanos pelo

61
CANTANDO E MARCANDO REDES COSMOPOLÍTICAS
Ugo Maia Andrade

sangue e pela história, uma vez que podem ser ex-humanos


(grandes lideranças que se encantaram voluntariamente ou
pessoas comuns raptadas e transformadas à revelia, como
Yakaikani) ou ancestrais dos humanos;

(ii) Karuãna e Encantados são percebidos como sujeitos


sociais plenos, pessoas não humanas com capacidades de
transformação, havendo níveis distintos de disputa pelo
monopólio de relações com eles, representados pela posse
ou direitos sobre cantos e grafismos (estes últimos apenas
no baixo Oiapoque e rio Uaçá), uma vez que tais artefatos são
normalmente doados aos humanos pelos espíritos auxiliares;

(iii) Os cantos de turé e toré são escadas ou estradas que


possibilitam a presentificação de Karuãna e Encantados, tra-
zendo-os por meio de conexões preexistentes que consolidam
a mutualidade entre eles e seus pajés;11

(iv) Os Galibi-Marworno tendem a ser mais ciosos de seus


estoques privativos de cantos e grafismos, ao passo que os
Tumbalalá, ao menos no núcleo político-ritual do São Miguel,
valorizam seu estoque próprio tanto quanto cantar linhas de
outros povos com quem mantiveram/mantém relações, si-
nalizando a participação desse núcleo nas redes regionais de
comunicação interindígena;

(v) Os cantos de turé e toré expressam formas distintas de


consciência histórica, que podem estar amparadas ou não nos
mitos. Na região do baixo Oiapoque e rio Uaçá, é possível en-
contrar textos cujas variantes em seu conjunto formam o que
Lévi-Strauss (1975, p. 240-243) definiu por mito. Apresentei
muito brevemente o enredo do mito de Yakaikani – que regio-
nalmente tem versões karipuna, palikur e galibi-marworno
– do qual o canto de turé homônimo é uma síntese extrema
melódica. Outros cantos de turé apresentam nítida correlação

62
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

com mitos, a exemplo dos cantos de Kadeicaru, uma variedade


de Cobra Karuãna, e de Ho-ho, ogro-anão da floresta. No que
concerne à região do submédio São Francisco, sugiro que é a
dimensão diacrônica que aflora por meio das linhas de toré,
não impedindo, todavia, que tais textos estejam no domínio de
uma metalinguagem análoga aos mitos;

(vi) Nesse sentido, as linhas de toré tumbalalá possuem um


potencial fantástico de refletirem sobre camadas distintas
de experiências densas, similarmente aos Fulni-ô, que fa-
zem do rito um exercício de consciência histórica, refletindo
sobre eventos coletivamente dramáticos, sendo “bastante
provável que o tema da Guerra do Paraguai [onde os Fulni-ô
foram obrigados a lutar] ocupe lugar de destaque dentre as
rememorações evocadas via Toré, durante o ritual secreto do
Ouricuri” (DANTAS, 2011, p. 201). Duas linhas do toré tumbalalá,
do núcleo do São Miguel, exprimem também um exercício de
reflexividade histórica:

Eu sou das matas,


Todo caboclo é índio
Tenho arco e tenho a flecha
E tenho pujá,
Eu sou do brabio

Contra-mestre
Contra-guia
Vamos trabalhar, gentio (2x)
Me lembrou das minhas matas
Eu também já fui brabio (2x)

A segunda linha, com pouca variação, é também cantada pelos


Atikum de Serra do Umã (GRÜNEWALD, 1999, p. 168), demonstran-
do, além da circulação das linhas de toré nas redes regionais de
comunicação, que o uso do rito enquanto exercício de consciência
histórica é comum no Nordeste indígena. Tal modalidade de exercí-

63
CANTANDO E MARCANDO REDES COSMOPOLÍTICAS
Ugo Maia Andrade

cio, assim como sua recorrência entre povos distintos, pode carac-
terizar as linhas de toré enquanto textos situados na intersecção
entre o mito e a história (LÉVI-STRAUSS, 1986, p. 152), criando nar-
rativas diversas do tipo histórias míticas que emergem, inclusive,
para “validar reivindicações econômicas, políticas ou territoriais”
(LÉVI-STRAUSS, 1986, p. 150), conforme se observou no Noroeste
americano entre os séculos XIX e XX e é contumaz nas linhas con-
temporâneas de toré;

(vii) Relativamente à região do submédio São Francisco, as li-


nhas de toré circulam com a circulação histórica interindígena,
gerando redes de relações cujas causas podem ser precisas
(comércio, aliança, ritual, apoio político etc.), mas não qualifi-
cam no presente tais redes de forma exclusivamente comer-
cial ou ritual ou de trocas matrimoniais. Se as linhas circulam,
os Encantados idem, consolidando as correntes em um dado
terreiro de toré e em meio a uma trama tecida de histórias
indígenas que se encontram, aproximam-se e afastam-se
continuamente, possibilitando que as redes de relações re-
gionais se expandam e contraiam de maneira incessante. Tal
movimento é impulsionado hoje pela alta mobilidade vigente
na articulação indígena, representada por reuniões, encontros,
manifestações e concentrações presenciais que reúnem povos
de vários lugares do Nordeste e de outras regiões do Brasil, às
vezes por semanas, criando, reacendendo ou esmaecendo re-
des de reciprocidades que, no entanto, vão muito além desses
espaços. Refiro-me aqui à intensa importância que aplicativos
e redes virtuais vêm assumindo para os povos indígenas em
geral que, com enorme apetite, devoram as possibilidades
interacionais oferecidas por Facebook, Twitter, Instagram e
WhatsApp, trocando intensamente informações sob a forma
de arquivos de textos, imagens, áudios, fotografias, vídeos etc.,
inaugurando novas redes ou mantendo – agora com recursos
adicionais – velhas redes interindígenas de trocas.

64
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Notas
1 Tais invólucros são o mesmo que a “roupa” ou o “envelope” presentes
nas cosmologias amazônicas (vide RIVIÈRE, 1995; VIVEIROS DE CASTRO,
2002, p. 351-356; DESCOLA, 2013, p. 25).

2 Os Karuãna podem referir-se aos pajés aliados como “papai” ou “amigo”,


conforme presenciei em sessões de xitotó.

3 É necessário não utilizar apenas cantos e grafismos de uso comum, pois


se um pajé recorre exclusivamente a tal conjunto trivial e não apresenta
repertório próprio durante um turé ou mesmo uma xitotó, sinalizará que
não domina relações com os Karuãna, podendo ser identificado por sua
comunidade como um pajé fraco.

4 Para a noção amazônica de dono e a relação de maestria cf. Fausto


(2008).

5 Além desses quatro cantos do caxiri, há mais dois: um para a bebida


servida no lakuh e outro para o lamã, quando alguém que comete uma
infração grave bebe uma enorme cuia de caxiri do lado de fora do círculo
cerimonial. Portanto, são, ao todo, seis os cantos do caxiri: quatro para
ingestão dentro da casa do pajé e dois para ingestão pública, todos va-
riações de um mesmo canto da bebida.

6 Mastros e Bancos rituais são os principais Karuãna presentes no turé,


pessoas do Outro Mundo que utilizam invólucros de artefatos (ANDRA-
DE, 2016).

7 Aqui a semelhança com turé pode indicar uma suposta origem remota
comum, possivelmente mapeável a partir das migrações tupi, mas é ain-
da especulativo.

8 Seguimento é a linha na qual o Encantado vai embora e que, a fim de


configurar uma corrente da jurema, deve ser diferente da linha cantada
para sua chegada.

9 As linhas foram transcritas por Clarice Bittencourt, durante trabalho de


campo com os Tuxí, em 2017.

10 Veja, por exemplo, as pesquisas em etnologia que vêm sendo conduzi-


das, com inovações no uso de métodos e recursos comparativos, visan-
do comparar gênero na amazônia e na melanésia (GREGOR; TUZIN, 2001)
e cosmologia e ritual nos andes, na mesoamérica e na amazônia (HALB-
MAYER, 2020).

65
CANTANDO E MARCANDO REDES COSMOPOLÍTICAS
Ugo Maia Andrade

11 Entre os Kalancó de Água Branca (AL), desdobro dos Pankararu de Brejo


dos Padres (PE), os cantos são sempre doados, pois estão na “posição
de natureza”, ao passo que as danças do complexo do praiá precisam
ser aprendidas (HERBETTA, 2006, p. 56). Já as sementes de praiá repre-
sentam os Encantados e dividem com os cantos a função de acessá-los,
criando uma estrita correlação entre ambos a ponto de quanto mais se-
mentes tiver um Encantado, mais cantos ele também terá (HERBETTA,
2006, p. 95).

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71
AWKHÊÊ PRESENTE:
COSMOPOLÍTICA E MESSIANISMO
CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira*

INTRODUÇÃO1
Este artigo resulta de uma pesquisa iniciada na década
de 1980, período de implantação de programas e pro-
jetos de desenvolvimento na Amazônia oriental, com
desdobramentos no centro-sul maranhense2. Os impac-
tos econômicos e socioambientais decorrentes desses
empreendimentos junto a grupos indígenas e regionais
chegam aos dias atuais, através do agronegócio e de
outros projetos desenvolvimentistas.

Os processos aqui analisados envolvem os Ramkokamekrá-


Canela3 e outros grupos indígenas, agricultores, criadores
e agentes tutelares e do desenvolvimento, nos municí-
pios de Barra do Corda, Fernando Falcão, além de outras
agências governamentais e privadas, implementadoras de
ações relativas ao meio ambiente e ao desenvolvimento
rural na região.

* Professor Associado no Departamento de Sociologia e Antropologia da Uni-


versidade Federal do Maranhão (UFMA). Bacharel em Ciências Sociais (UNICAMP,
1982), Mestre em Antropologia Social (UNICAMP, 2002), Doutor em Políticas Pú-
blicas (UFMA, 2006), com pós-doutorado em Antropologia (UNB, 2014). Possui
experiência docente e como pesquisador em etnologia indígena, cultura brasi-
leira e regional e antropologia visual, nos temas etno-história Timbira, messia-
nismo Canela, movimentos sociorreligiosos e processos de desenvolvimento;
fotografia e memória, etnografias visuais.
E-mail: adrizzo@terra.com.br.
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Os Ramkokamekrá têm respondido a esses processos, através do


associativismo e de movimentos sociorreligiosos. Neste texto, são
analisados o “movimento messiânico canela de 1963” e outros mo-
vimentos que emergiram posteriormente, associados à implanta-
ção de projetos de desenvolvimento regional e local. Fica evidente
a vinculação entre esses movimentos e as expectativas desse gru-
po étnico em relação aos recursos implementados pelo Estado e
por agências de fomento ao desenvolvimento.

DA TERRITORIALIZAÇÃO AO DESENVOLVIMENTO
Os Ramkokamekrá-Canela e outros grupos Timbira no centro-sul ma-
ranhense foram inseridos em uma situação histórica específica – a
situação pastoril, gerada e consolidada por suas relações junto à ad-
ministração colonial e aos agentes estabelecidos pelas frentes de ex-
pansão tradicionais, especialmente criadores do sertão maranhense.4

A emergência dos Ramkokamekrá como grupo étnico específico de-


correu de um processo de territorialização5. A pesquisa histórica re-
alizada permitiu recompor os diferentes momentos desse processo
em relação aos grupos Timbira no Maranhão, em especial aos atuais
Ramkokamekrá, até meados do século XX (OLIVEIRA, [2002] 2018).6

No período republicano, a inserção dos Canela e de outros grupos


indígenas no regime tutelar foi marcada por políticas e práticas
indigenistas do Estado brasileiro. O modelo tutelar implementado
pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, depois, pela Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) buscou compatibilizar a proteção aos po-
vos indígenas aos interesses econômicos da sociedade brasileira.

A análise das relações entre os Ramkokamekrá, segmentos regionais


e agentes tutelares nas últimas décadas, requer a compreensão de
processos vinculados ao desenvolvimento, decorrentes da expan-
são do Estado e da sociedade nacional pelo centro-sul maranhense,

73
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

através de agências e empreendimentos econômicos. Assim, os pro-


gramas e projetos de desenvolvimento regional, bem como os proje-
tos “comunitários”, “locais” ou “étnicos” são considerados indutores
das transformações econômicas e socioambientais na região.

Esses programas e projetos desenvolvimentistas chegaram ao cen-


tro-sul maranhense através de frentes de expansão contemporâ-
neas, impactando grupos indígenas e regionais. Na atuação dessas
frentes, destacam-se a vertente “político-administrativa”, represen-
tada pelo órgão tutelar e por outras agências oficiais, e a vertente
propriamente “desenvolvimentista”, que se estabelece via projetos
de desenvolvimento regional e local (SCHRÖDER, 2003, p. 72-74).

Nas décadas de 1960-1970, essas frentes foram impulsionadas


pelo regime militar, através de grandes projetos e programas de
desenvolvimento regional, como o Projeto Ferro-Carajás (PFC) e o
Programa Grande Carajás (PGC), que levaram a uma intensa trans-
formação econômica e socioambiental ao centro-sul maranhense,
atingindo grupos indígenas e camponeses.

Esse processo levou, ainda, à constituição de um “mercado de


projetos” (ALBERT, 2000) voltado ao “desenvolvimento local” ou
“étnico” na região. Envolvendo grupos indígenas, agências finan-
ciadoras e o indigenismo oficial, esses projetos impactaram a
organização socioeconômica desses grupos, induzindo-os à mu-
dança social em sua totalidade.

Legitimados por uma elaboração discursiva pautada em conceitos


como o “desenvolvimento sustentável”, “etnodesenvolvimento” e ou-
tros, esses projetos revelam suas múltiplas vinculações: do Estado
às organizações não governamentais; de agências financiadoras às
“populações-alvo” e de consultores a pesquisadores independentes.

74
AWKHÊÊ PRESENTE: COSMOPOLÍTICA E MESSIANISMO CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

2.1 conflitos territoriais e regime tutelar

O processo de territorialização dos grupos formadores dos atuais


Ramkokamekrá-Canela resultou das frentes de expansão colo-
niais, que ocuparam o território tradicional dos povos Timbira no
Maranhão, entre o fim do século XVIII e a segunda metade do sé-
culo XIX. O avanço das “bandeiras” pelos vales dos rios Itapecuru
e Mearim e por toda região de cerrados entre os rios Parnaíba e
Tocantins foi seguido pela ação da administração colonial no
Maranhão, que levou à sujeição dos antigos Capiekran e outros
grupos Timbira nos “aldeamentos” e postos militares da região.

Durante o Império, as relações entre esses grupos e a administração


provincial pautaram-se numa “aliança”, que levou ao engajamento dos
Capiekran em expedições de sujeição de outros grupos Timbira, cujos
remanescentes foram transferidos para as aldeias Canela, sob o con-
trole de diretores parciais de índios e outros agentes (OLIVEIRA, 2018).

No período republicano, os povos indígenas foram inseridos no re-


gime tutelar pela ação do Serviço de Proteção ao Índio – SPI – (1910).
Como mediador nas relações entre os Canela e a sociedade regio-
nal, o SPI não conteve os conflitos, que, em alguns casos, signifi-
caram a eliminação étnica e a apropriação do território tribal pelos
criadores. Assim, os Kenkateyê, vinculados aos Apaniekrá-Canela,
que viviam nas cabeceiras do Rio Alpercatas, foram massacrados
em 1913 por um criador local e seus vaqueiros (NIMUENDAJU, 1946).

A presença do SPI representou uma intervenção sobre a vida diá-


ria e cerimonial e a organização política dos Ramkokamekrá, com
a imposição de modelos de chefia subordinados ao poder tutelar.
Significou, também, um obstáculo às pretensões dos criadores em
ocupar o território residual desse grupo. Em meados da década de
1930, surgiu a perspectiva da demarcação oficial de parte do terri-
tório Canela, o que favoreceu a sua afirmação étnica em contrapo-
sição ao poder dos criadores locais.7

75
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Nas décadas de 1940 e 1950, foi redefinida a “aliança” entre os


Ramkokamekrá e o “homem branco” representado pelo poder tute-
lar do SPI, através da figura emblemática de Cândido Rondon, tido
como o “pai dos índios”. A morte de Rondon em 1958 impactou os
Canela, em função da vinculação da sua imagem à do herói cultural
Awkhêê (ANEXO A).

Os conflitos entre os Ramkokamekrá e a sociedade regional, nesse mo-


mento, estiveram vinculados à possibilidade de demarcação territorial,
a qual constituiu uma das motivações à ação armada dos criadores
contra esse grupo, durante o “movimento messiânico de 1963”, ampa-
rados em acusações de “roubo de gado” pelos índios (OLIVEIRA, 2018).

2.2 O movimento messiânico canela de 1963

Entre janeiro e julho de 1963, ocorreu um movimento sociorreligio-


so, que representou o conflito mais significativo na história recente
dos Ramkokamekrá.8 Esse movimento foi desencadeado a partir
das revelações de uma mulher, Kêê-khwèy também conhecida pelo
nome regional de “Maria Castelo” em alusão a um agente do SPI,
encarregado de posto indígena junto a esse grupo, cerca de duas
décadas antes (CROCKER, [1967] 1976).

O “movimento messiânico dede 1963” teve como referência o mito


de Awkhêê, que na mitologia timbira explica a origem do “homem
branco” e as relações de desigualdade que este mantém com os in-
dígenas (ANEXO B). Esse mito constituiu, ainda, a principal referên-
cia para movimentos sociorreligiosos posteriores surgidos entre
os Ramkokamekrá e de um movimento semelhante ocorrido entre
os Krahô, na década de 1950 (MELATTI, 1972).

As motivações para a emergência do “movimento messiânico


Canela de 1963” têm sido discutidas por diferentes analistas9. Além
dos chamados “fatores externos” que estariam na determinação

76
AWKHÊÊ PRESENTE: COSMOPOLÍTICA E MESSIANISMO CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

dos movimentos sociorreligiosos, especialmente decorrentes da


“situação colonial” e do “colonialismo interno” (BARABÁS,1989),
“fatores internos” estariam norteando esses movimentos a partir
de “correntes culturais profundas” (BROWN, 1991).

Crocker (1976) aponta o “conservantismo” como uma característica


histórica dos Ramkokamekrá, o que os distinguiria inclusive de ou-
tros grupos Timbira. Segundo esse autor, desde a sua “pacificação”
em 1815, os Canela teriam desenvolvido “um modo viável e flexível
de coexistência” junto aos segmentos formados a partir da frente
pastoril, durante o século XIX. Esse “equilíbrio” teria sido “parcial-
mente abalado” em 1910, em função da “instabilidade econômica”
que teria se abatido sobre o grupo.

Por volta de 1960, os Ramkokamekrá manifestavam, nas reuniões


do Prokhaman10, sua convicção de que as gerações futuras “conser-
variam muito pouco das tradições de seus antepassados”; em cer-
tas situações, alguns indivíduos “consideravam o modo de vida do
‘civilizado’ melhor do que o seu”. Um exemplo disso seria o pedido
de uma mulher para que seu filho fosse enviado à capital do estado
para ser “educado” por “civilizados”, uma situação que não ocorria
até 1958 (CROCKER, 1976, p. 524-525).

Nesse período, o SPI realizava “os encargos de Awkhêê”, segundo o


qual, ao possibilitar aos “civilizados” as vantagens materiais e tec-
nológicas de sua escolha, estes deveriam agir com generosidade em
relação aos índios.11 Mudanças operadas a partir de 1957, quando o ór-
gão tutelar assumiu uma postura menos “paternalista”, agravadas pe-
la morte do Marechal Candido Rondon (1958), cuja imagem de “grande
pai” dos índios fora forjada durante décadas, conforme os atributos
colocados pelo mito de Awkhêê, teriam levado os Ramkokamekrá à
consciência da perda de sua posição de protegidos do SPI.

A questão econômica é outro elemento que tem sido considerado


central na emergência messiânica. Como aponta Barabás (1989), a
“privação econômica” constitui um dos fatores à eclosão de movi-

77
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

mentos sociorreligiosos na América Latina, associada à exploração


da força de trabalho indígena por agentes vinculados à dominação
colonial. Essa situação explicaria a dificuldade desses povos em
gerir sua economia de autossustentação. A impossibilidade de ob-
tenção de bens industrializados, que se tornaram imprescindíveis a
esses grupos, poderia, ainda, motivar a ocorrência de movimentos
do tipo cargo cult (WORSLEY, 1971).

A economia dos Ramkokamekrá era, então, considerada “defi-


ciente”, mas, em 1963, estaria ocorrendo uma “melhora razoável”,
através de uma relação estabelecida entre um líder emergente, o
“jovem” Kaapel-tïc, junto a um criador local, a qual possibilitava a
troca de trabalho indígena por carne e outras mercadorias. Crocker
(1976) considera que essa “pequena melhora econômica” poderia
suscitar entre os Ramkokamekrá o “desejo” de obter muitos outros
bens, o que teria constituído um fator na emergência do “movimen-
to messiânico de 1963”. Outra leitura pode ser feita sobre esse fato,
pois, à medida que os Canela participavam da prestação de servi-
ços ao poderoso criador local, as suas roças familiares estariam
sendo relegadas a um segundo plano fragilizando, ainda mais, a
sua economia de autossustentação.

O “movimento messiânico Canela de 1963” tem sido interpretado como


uma tentativa de abandono, pelos Ramkokamekrá, da sua organiza-
ção social tradicional, para que se tornassem “civilizados”, embora se
reconheçam elementos milenaristas no movimento. Exemplos dessa
orientação seriam a alternância entre danças Canela e sertanejas; a
reprodução pela profetisa do padrão regional do “grande homem” e
seu grupo de seguidores; a utilização de símbolos para a distinção de
estratificação social e a valorização de cantos e rezas do catolicismo
popular. A conversão do sexo de fonte de prazer em meio de punição e
a redução do número de parentes por meio do incesto atuariam, ainda,
nessa transformação (CROCKER, 1976, p. 525-526).

As histórias pessoais da profetisa Kêê-khwèy e do “jovem” Kaapel-


tïc seriam coerentes com essa explicação, já que formavam per-

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AWKHÊÊ PRESENTE: COSMOPOLÍTICA E MESSIANISMO CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

sonalidades distintas em relação à maioria dos Ramkokamekrá.


Kêê-khwèy ou “Maria Castelo” era apresentada como uma mulher
alta, simpática, autoritária e prestigiosa – tudo, menos marginal.
Dominava a língua portuguesa melhor do que a maioria das mulhe-
res do grupo e já tivera casos amorosos com “civilizados”.

De outro lado, Kaapel-tïc era uma liderança “natural”, nascido dentro


de uma linhagem de vários chefes (pahí) Ramkokamekrá, como os
velhos líderes Major Delfino, Duruteu Haktotok e Faustino, além de
seu “tio” Alcy Kaapel-tïc, então chefe da Aldeia Baixão Preto. Kaapel-
tïc recebeu educação escolar na aldeia, ministrada pelo SPI durante
os anos de 1940 e depois em São Luís, onde permaneceu por nove
meses consolidando seu aprendizado em leitura e escrita. Teria,
ainda, realizado diversas viagens ao Rio de Janeiro e a Brasília, on-
de manteve contatos com a administração do SPI e aprofundou seu
conhecimento sobre a sociedade brasileira (CROCKER, 1976, p. 526).

A utilização de poderes mágicos, normalmente privativa de xa-


mãs e “curadores” vivos, por um ente sobrenatural – o herói míti-
co Awkhêê – foi considerada o traço mais notável do “movimento
messiânico de 1963”. Para que o movimento se desenvolvesse, os
Ramkokamekrá deveriam estar persuadidos de que uma mudança
dessa natureza estaria em relação com uma profunda transforma-
ção da imagem do mundo pelo “messianismo canela”: de benéfico
em hostil, de provedor em solicitante, de abundante em insuficien-
te e de manipulável em controlador (CROCKER, 1976, p. 527).

2.3 Messianismo e poder tutelar

Cerca de duas décadas após a eclosão do “movimento messiâni-


co Canela de 1963”, novos movimentos e manifestações sociorre-
ligiosas emergiram junto a esse grupo, reforçando a perspectiva
“messiânica” como um modelo de compreensão e atuação dos
Ramkokamekrá nas relações intersocietárias.

79
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Após cinco anos de “exílio” em uma área florestal habitada pelos


Tenetehara-Guajajara, em decorrência das represálias dos criadores
ao “movimento messiânico de 1963”, os Ramkokamekrá puderam
retornar gradativamente ao seu território tradicional, sob o controle
tutelar da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a agência indigenista
criada pelo regime militar para ocupar o espaço deixado pelo SPI.

Uma nova possibilidade se abriu nesse momento aos Canela. O início


do processo demarcatório da então Área Indígena Kanela, ao final
da década de 1960, marcou uma nova etapa nas relações entre os
Ramkokamekrá, os sertanejos (criadores, vaqueiros e agregados),
os segmentos urbanos e as agências tutelar e de desenvolvimento
no centro-sul maranhense.

Durante a década de 1970, a ação da FUNAI sobre os territórios e os


grupos indígenas na região pautou-se nas prioridades do regime
militar e os seus projetos de longo prazo, atrelados ao desenvolvi-
mento regional. A administração indigenista estabeleceu, então, o
controle ideológico sobre os agentes tutelares e um ordenamento
autoritário em relação aos povos indígenas. De outro lado, neutra-
lizou as pretensões dos segmentos locais em apropriar-se dos ter-
ritórios indígenas na região. Essa seria uma explicação para a não
ocupação do território Kanela pelos criadores, após os conflitos
associados ao “movimento messiânico de 1963”, até o seu retorno,
a partir de 1968 (CROCKER, 1990, p. 78).

Esse atrelamento às políticas desenvolvimentistas dos governos


militares direcionou a ação da FUNAI para as regiões suscetíveis às
grandes transformações econômicas, como a Amazônia oriental e
o centro-sul maranhense. Esse fato resultou na ampliação do nú-
mero de postos indígenas no estado do Maranhão e na deflagração
do processo de demarcação das terras indígenas na região.

A combinação entre o poder tutelar exercido pela FUNAI sob o man-


to do autoritarismo, a implementação de programas econômicos,

80
AWKHÊÊ PRESENTE: COSMOPOLÍTICA E MESSIANISMO CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

educacionais e de saúde, além da segurança em relação aos limites


e à integridade de seu território demarcado e em vias de homolo-
gação, associados ao crescimento demográfico e ao estímulo às
suas atividades cerimoniais teria criado um “clima” de otimismo
junto aos Ramkokamekrá, quanto às suas possibilidades enquanto
grupo étnico diferenciado.

2.4 O movimento messiânico canela de 1980

Esses fatores, associados à crença messiânica inspirada no mito


de Awkhêê, levaram à emergência de um novo movimento socior-
religioso entre os Ramkokamekrá, cerca de 17 anos após o movi-
mento de 1963. Esse movimento, que teria reforçado a vinculação
do poder tutelar aos “desígnios de Awkhêê”, teve seus indícios em
1979, quando o Chefe da Ajudância de Barra do Corda autorizou os
Ramkokamekrá a abaterem o gado dos criadores, no caso de inva-
são à terra indígena e destruição das suas roças. Esse fato guar-
dava uma relação profunda com o “messianismo de 1963” e teria
contribuído decisivamente para a eclosão messiânica em 1980.

Esse novo movimento sociorreligioso foi liderado por Raimundo


Roberto Kaapel-tïc, o “jovem” Kaapel-tïc, líder Canela que havia
participado ativamente do “movimento messiânico de 1963”, como
um dos principais colaboradores da profetisa Kêê-khwèy. Líder
político e cerimonial, Kaapel-tïc desfrutava do importante título de
Mëkapõ-katê, ou comandante do seu grupo de idade, nos ritos de
formação Ketwayê e Pepyê.

Nesse momento, Kaapel-tïc exercia, ainda, a função de “pai” da


menina-Vuté, um dos atributos cerimoniais mais valorizados entre
os Ramkokamekrá, o que lhe concedia grande autoridade política e
força moral junto ao seu povo. O movimento foi deflagrado a partir
da previsão ou promessa de uma “boa nova” anunciada pelo líder
messiânico durante os trabalhos em uma roça coletiva, no setor de
roças da Aldeia Velha.

81
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Kaapel-tïc teria recebido mensagens de um “Anjo”, que anunciava a


chegada próxima de “Jesus Cristo” – imagem sincrética de Awkhêê –
que desceria do “céu” para ajudar seu povo, o qual iria, então, “enrique-
cer”. O líder conclamava os Ramkokamekrá a abandonarem o trabalho
nas roças e outras atividades, como a caça e a coleta, para que se
reunissem na Aldeia Velha, local onde se originou o “movimento mes-
siânico de 1963”, para aguardar a chegada de “Jesus Cristo” (Awkhêê).

As plantações foram abandonadas pelos Ramkokamekrá, que


se reuniram na Aldeia Velha, onde construíram uma pequena al-
deia, junto ao setor de roças do líder messiânico. Apenas a roça de
Kaapel-tïc teria sido utilizada para a manutenção do movimento,
o que pode estar associado a uma estratégia de manutenção do
prestígio do líder messiânico.

Uma parte do grupo – especialmente as famílias cujas roças se lo-


calizavam nesse setor e vinculadas por parentesco a Kaapel-tïc – se
manteve unida em torno das promessas de “riqueza” difundidas pelo
líder messiânico, como obra de um ente sobrenatural – “Jesus Cristo”
ou o “Anjo”, manifestações sincréticas do herói cultural Awkhêê.
Entretanto, a adesão ao movimento não foi ampla, como em 1963. O
não cumprimento da “promessa” teria levado a maior parte do grupo
a abandonar o movimento, retornando à Aldeia Escalvado.

Em se tratando de um ano atípico, cujas perspectivas de boa colhei-


ta não se vislumbravam, é possível que os Ramkokamekrá tenham
acompanhado Kaapel-tïc enquanto os produtos de sua roça os pu-
dessem alimentar, abandonando em seguida o movimento. Como
decorrência da frustração em relação às promessas messiânicas,
Kaapel-tïc passou a ser visto com desconfiança, o que o levou a um
período de isolamento social (SILVA JÚNIOR, 2006).

Uma interpretação plausível procura vincular o messianismo de 1980


a uma decepção dos Ramkokamekrá para com a agência tutelar, e
em especial ao Chefe de Posto, o qual, após uma década de traba-
lho “construtivo” junto ao grupo, teria ingressado em um processo

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AWKHÊÊ PRESENTE: COSMOPOLÍTICA E MESSIANISMO CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

de decadência pessoal e profissional, abandonando os preceitos de


Awkhêê, quanto ao papel do “civilizado” para com os índios.

Outros fatores podem ser apontados como motivadores a essa


emergência messiânica. Uma mudança significativa na ação tute-
lar em relação aos Ramkokamekrá ocorreu a partir do seu retorno
do “exílio”, sob o controle da FUNAI. Essa mudança era expressa
na iniciativa de demarcação do território indígena, na organização
das atividades produtivas e no clima favorável decorrente da uni-
ficação do grupo, da retomada plena de sua vida cerimonial e do
crescimento demográfico, ao longo dos anos de 1970.

Esses fatos teriam levado ao afastamento e a um sentimento de


segurança dos Ramkokamekrá em relação à sociedade regional e,
em especial, aos segmentos sertanejos, os quais além de terem
deixado a terra indígena, em decorrência da sua demarcação, pas-
saram a “respeitar” mais os Ramkokamekrá, em função do poder
tutelar exercido pela FUNAI, sob a égide do regime militar.

A retomada de alguns procedimentos que vigoraram no período


anterior ao messianismo de 1963, especialmente a “autorização”
para o abate do gado dos criadores, caso esse gado ingressasse na
Terra Indígena e destruísse as roças indígenas, remetia, ainda, ao
“tempo de Castelo Branco”, o agente tutelar que teria “influenciado”
o messianismo de 1963.

A existência de um líder potencial ao “messianismo canela”, que,


além de seus atributos cerimoniais e políticos, havia desempe-
nhado papel crucial no movimento de 1963, surgindo como nova
liderança política, constitui outro fator explicativo ao movimento. A
ascensão do grupo de idade de Kaapel-tïc ao Prokhaman, principal
instância de decisões políticas e cerimoniais dos Ramkokamekrá,
atribuiria, ainda, uma maior credibilidade ao seu discurso.

Finalmente, a decepção em relação à agência tutelar, num mo-


mento seguinte, especialmente com o agente tutelar que sim-

83
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

bolizava essa “nova aliança” estabelecida entre os Canela e o


Estado, nos moldes propostos por Awkhêê, teria contribuído
para a eclosão desse movimento.

2.5 Messianismo e desenvolvimento

Em meados da década de 1980, um novo movimento sociorreligioso


emergiu entre os Ramkokamekrá, com clara vinculação a um pro-
jeto desenvolvimentista que se implantava no Maranhão: o Projeto
Ferro-Carajás (PFC), um megaempreendimento voltado à explo-
ração, beneficiamento e exportação mineral, implementado pela
Companhia Vale do Rio Doce (atual VALE), cujos impactos atingiram
grupos indígenas e camponeses em toda Amazônia oriental.

Por exigência das agências financiadoras do PFC, foi estabele-


cido, em 1982, o “Convênio CVRD-FUNAI: Apoio às Comunidades
Indígenas”, voltado à implementação de obras de infraestrutura,
serviços assistenciais e projetos econômicos junto aos grupos indí-
genas impactados por esse empreendimento (CVRD-FUNAI, 1982).
Os Ramkokamekrá e outros grupos no centro-sul maranhense tor-
naram-se objetos desse convênio (OLIVEIRA, 2004).

Esse movimento sociorreligioso teve início no ano de 1984 e se


estendeu por um período de três meses. As “condições externas”
tiveram importância fundamental na deflagração do movimento,
tendo em vista as transformações econômicas e sociais que se
verificaram em todo o estado do Maranhão nesse período, com re-
flexos na região centro-sul. Entretanto, os “impactos” do Projeto
Ferro-Carajás e, especificamente, do Convênio CVRD-FUNAI sobre
os Ramkokamekrá se deram mais pelas expectativas geradas jun-
to ao grupo em relação à chegada desses recursos do que pelos
investimentos realizados e os resultados obtidos.

Essas expectativas contribuíram de forma decisiva para a eclosão


desse movimento sociorreligioso, o qual envolveu o grupo étnico
em sua totalidade. Sabe-se que, naquele ano, as previsões para a
safra agrícola eram pessimistas, em função da escassez de chuvas.

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AWKHÊÊ PRESENTE: COSMOPOLÍTICA E MESSIANISMO CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

Os Ramkokamekrá viviam, então, as consequências do “movimento


messiânico de 1980”, que havia resultado na escassez de alimentos
nos anos subsequentes, em decorrência do abandono das roças
familiares durante o movimento.

É possível que a fome tenha assolado os Canela nos anos seguintes


a 1980, em função da desorganização das roças familiares e da
estiagem prolongada. Nesse contexto, diante das “notícias” da
chegada em breve dos recursos do Convênio CVRD-FUNAI, veio
à tona um movimento sociorreligioso, conhecido como “o movi-
mento de Mirandy”12.

Ao se buscar as causas ou motivações que teriam contribuído para


a eclosão desse processo, alguns fatos devem ser levados em con-
ta, como o campo intersocietário que envolveu os Ramkokamekrá
naquele momento. O contexto regional era marcado por uma
acentuada transformação econômica que se operava na Amazônia
oriental e no centro-sul do Maranhão desde o início da década de
1980, em decorrência da implantação do Projeto Ferro-Carajás e do
Programa Grande Carajás.

Esses empreendimentos geraram mudanças acentuadas na região,


decorrentes da abertura de estradas e da ocupação e titulação de ter-
ras, levando ao acirramento dos conflitos entre índios e camponeses
em relação à demarcação das terras indígenas. Nesse contexto, o
“Convênio CVRD-FUNAI: Apoio às Comunidades Indígenas” tornou-se
fator de conflitos intra e interétnicos envolvendo expectativas sobre
os recursos que seriam investidos junto às “comunidades indígenas”13.

A divulgação sobre a breve chegada desses recursos, antes da sua


implementação junto aos Ramkokamekrá e outros grupos na região,
foi crucial à eclosão desse movimento sociorreligioso. As informa-
ções de que recursos do Convênio CVRD-FUNAI chegariam até os
Canela constituíram uma “boa-nova”. É provável que, nos anos de
1982-1983, os Ramkokamekrá elaboraram a expectativa messiânica,
a qual se constituiu como movimento a partir da iminência da sua
concretização, quando os Canela se tornariam “beneficiários” desses

85
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

recursos, em 1984. As notícias sobre “dinheiro da Vale”, divulgadas


entre lideranças indígenas, servidores da FUNAI e outros agentes,
referiam-se à existência de “milhões de dólares”, que seriam “distri-
buídos” às “comunidades indígenas” atingidas pelo PFC.14

As relações entre a expectativa messiânica dos Canela e os re-


cursos vinculados ao PFC são óbvias: o líder messiânico discursa-
va sobre a breve chegada de uma “caixa de dinheiro” aos Canela,
contendo “dólares”, os quais seriam trocados por “cruzeiros”. De
outro lado, a solução apontada pelo líder messiânico, em retirar
o suposto valor em uma agência bancária localizada em Barra do
Corda, se aproximava ao modo pelo qual esses recursos chegavam
às “comunidades indígenas”, sob a dinâmica da FUNAI.

As safras agrícolas dos anos de 1984-1985 e de 1985-1986 entre os


Ramkokamekrá foram fomentadas pelos recursos do Convênio CVRD-
FUNAI e implementadas através de “projetos de desenvolvimento co-
munitários”, sob coordenação de agentes da FUNAI. Este pesquisador
teve a oportunidade de observar, em meados de 1985, a implantação
de uma grande “roça comunitária” junto aos Canela, na Aldeia Velha
(lócus dos movimentos de 1963 e 1980) fomentada por esses recur-
sos.15 Portanto, parecem evidentes as vinculações entre o movimento
sociorreligioso de 1984 e os recursos do Convênio CVRD-FUNAI.

Um fator a ser considerado é que os processos messiânicos, como


os vividos pelos Ramkokamekrá, na medida em que propunham a
interrupção ou o encerramento das atividades de autossustenta-
ção, baseados na crença de que os suprimentos de que necessi-
tavam viriam como decorrência do retorno do herói cultural e dos
bens “mágicos” de que esse era portador, resultaram em situações
de penúria ou privação econômica e nutricional do grupo, durante
os anos subsequentes à ocorrência desses movimentos.

Seria previsível que a economia de autossustentação dos


Ramkokamekrá tenderia a fragilizar-se nos anos subsequentes ao
movimento anterior (1980), ainda que o grupo pudesse contar com

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AWKHÊÊ PRESENTE: COSMOPOLÍTICA E MESSIANISMO CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

o apoio da agência tutelar, através da distribuição de sementes


e ferramentas. A fome passou a assolar os Canela durante esses
anos, como uma situação a ser enfrentada. Esse fato ocorreu si-
multaneamente à decadência do então chefe do Posto Indígena
Kanela, um dos agentes que acompanharam os Ramkokamekrá ao
longo desses anos.

A sequência entre a situação de privação alimentar vivida pelos


Ramkokamekrá, as “notícias” sobre os recursos do Convênio CVRD-
FUNAI e a chegada desses recursos junto a esse grupo teriam
criado condições à emergência do movimento sociorreligioso de
1984. Ao contrário do “movimento messiânico de 1963”, que previa
a transformação dos Canela em “civilizados”, o movimento de 1980
e, enfaticamente, o de 1984 apresentam claros sinais de cargo cult,
conforme proposto por Worsley (1971).

Nesses movimentos, os Ramkokamekrá não almejavam tornar-se


“civilizados”, ou viver como “civilizados”, mas possuir uma série de
bens. Suas aldeias se transformariam em fazendas e cidades, e
eles teriam uma fonte inesgotável de “dinheiro”, com a qual obte-
riam todos os bens desejados.

O movimento sociorreligioso de 1984 não se encerrou com a decep-


ção dos Canela diante do “fracasso” do líder messiânico, uma vez que
os “dólares” anunciados não se concretizaram conforme sua previ-
são. Contrariamente, Miikrô realizou novas investidas ao “dinheiro
mágico”, o qual seria “retirado” em Brasília e, depois, no Rio de Janeiro,
onde se localizam as sedes administrativas da FUNAI e da CVRD (atual
VALE), parceiras do Convênio CVRD-FUNAI, de onde partiriam todos
os recursos sobre os quais se especulava no movimento. Essas capi-
tais são, também, os locais de moradia terrestre de Awkhêê, em suas
manifestações transfiguradas do SPI, através da figura do Marechal
Rondon, o “pai dos índios”, e da FUNAI, sua herdeira atual.

A presença dos recursos gerados pelo Projeto Ferro-Carajás, atra-


vés do Convênio CVRD-FUNAI, produziu respostas distintas, em
relação aos diferentes grupos indígenas “afetados”, “atingidos” ou

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PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

“beneficiados”. Os Ramkokamekrá canalizaram suas expectativas


em relação a esses recursos para uma saída utópica, viabilizada
pelos movimentos sociorreligiosos.

Renovando sua crença na cosmologia timbira, e em especial no


“pacto” proposto pelo herói cultural Awkhêê, os Canela preten-
deram apropriar-se dos bens da sociedade brasileira e, dessa
forma, equiparar-se a esta na sua busca por equidade nas rela-
ções intersocietárias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho abordou a dinâmica do campo indigenista que envolve os
Ramkokamekrá-Canela à sociedade brasileira regional e às agências
tutelares de desenvolvimento no centro-sul do Maranhão. A análise
percorreu uma trajetória histórica situada entre o fim do século XVIII
e meados da década de 1980, analisando diferentes momentos desse
processo, da formação à consolidação das relações intersocietárias.

Ficaram evidentes as relações entre os movimentos sociorreligiosos


dos Ramkokamekrá e os discursos e as práticas do desenvolvimento,
tanto na sua vertente regional, através dos chamados “projetos e pro-
gramas desenvolvimentistas”, como nos projetos “comunitários” e em
outras denominações pelas quais instala-se junto aos grupos indígenas.

Através de investimentos na infraestrutura regional, a qual levou


à crescente pressão demográfica e econômica sobre povos tra-
dicionais, como pelos “impactos” e “expectativas” gerados pelos
projetos “étnicos” e “locais”, o desenvolvimento tende a inserir os
povos indígenas e seus territórios na lógica do mercado, abolindo a
diversidade étnica e cultural em prol da homogeneização econômi-
ca e da padronização sociocultural.

A emergência desses movimentos constitui um indicador de que os


Ramkokamekrá têm interagido junto aos processos do desenvol-

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AWKHÊÊ PRESENTE: COSMOPOLÍTICA E MESSIANISMO CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

vimento, pautados em suas próprias categorias culturais e em sua


“consciência histórica” (TURNER, 1993). Assim, essas transforma-
ções são interpretadas a partir de um elemento central na mitolo-
gia timbira – o mito de Awkhêê – que atribui significado à origem e
à presença do “homem branco” junto a esses povos.

Na perspectiva do mito, a existência do “mundo civilizado” – o


“branco”, seus bens, sua tecnologia e riqueza – é uma concessão
de Awkhêê, resultante de uma escolha dos próprios índios, que
optaram por sua cultura e tecnologia tradicionais – simbolizados
pelo “arco e flecha” e o “maracá” –, o que levou o herói cultural a
entregar os outros elementos aos “civilizados”, a saber, a tecnolo-
gia e o poder – simbolizados pela “espingarda” e a “sanfona”.

A despeito da escolha realizada, os Ramkokamekrá e outros grupos


Timbira se tornaram credores dos “cristãos”, significando que, de
acordo com o pacto insinuado no “Mito de Awkhêê”, o “branco” – a
sociedade brasileira, o poder tutelar, o Estado e os agentes do de-
senvolvimento – deve oferecer aos índios a contrapartida de tudo
que lhe foi ofertado pelo herói mítico.

Os movimentos sociorreligiosos apresentados revelam que os Canela


não se colocaram de forma passiva aos processos do desenvolvimen-
to. Ao contrário, desenvolveram formas de resistência e afirmação ét-
nica, expressaram sua compreensão sobre a dominação e realizaram
ações concretas, colocando-se como sujeitos da sua história.

Notas
1 Este trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa
e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA).

2 Designo por centro-sul maranhense uma área de transição entre flores-


tas e cerrado, localizada na região central do Maranhão, formada atual-
mente por 11 municípios, dentre os quais Barra do Corda, Fernando Fal-
cão, Grajaú, Fortaleza dos Nogueiras e Formosa de Serra Negra, onde se
localizam as atuais Terra Indígena Kanela e Terra Indígena Porquinhos.

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PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

3 Os Ramkokamekrá-Canela constituem um grupo étnico (BARTH, 2000)


vinculado à tradição linguística e cultural Jê-Timbira, formando, junto aos
Apaniekrá-Canela, Krikati, Pukobyê, Krepumkateyê e Kreyê, no Maranhão,
Krahô no Tocantins e Parkateyê no leste do Pará, um conjunto etnológico
conhecido como Timbiras Orientais (NIMUENDAJÚ, 1946).

4 Oliveira define a situação histórica como o potencial com que diferen-


tes agências do contato (tutelares, desenvolvimentistas, religiosas e
outras) produzem modelos de distribuição de poder e autoridade sobre
agentes sociais, a partir de um conjunto de interdependências ligadas à
resolução de conflitos (OLIVEIRA, 1988, p. 59).

5 A atribuição de uma base territorial fixa permite apreender as mudanças


pelas quais passa um grupo étnico, alterando o funcionamento de suas
instituições e os significados de suas expressões culturais. Assim, a ter-
ritorialização implica no surgimento de uma nova unidade sociocultural,
pelo estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora (OLIVEI-
RA, 1988, p. 55).

6 Atualmente, os moradores da Terra Indígena Kanela estabelecem sua


identificação étnica pelo termo Memortum’ré, numa referência aos an-
tigos Capiekran, um dos povos ancestrais, que, através do processo de
territorialização, deram origem aos Ramkokamekrá-Canela (NIMUEN-
DAJU, 1946; OLIVEIRA, 2018).

7 Em 1936, o etnógrafo Curt Nimuendajú elaborou um mapa do território


então ocupado pelos Apaniekrá e Ramkokamekrá-Canela, o qual seria de-
marcado por iniciativa do então Governador do Maranhão, Benedito Leite.
Essa demarcação não foi concretizada pela reação dos criadores locais,
com ameaças de massacre aos “índios Canelas”. Cf. OLIVEIRA, 2018.

8 Uma narrativa resumida do “movimento messiânico canela de 1963” en-


contra-se em Anexo B.

9 O “movimento messiânico canela de 1963” foi descrito e analisado por


William Crocker, Carneiro da Cunha, Brown e Oliveira, dentre outros. Cf.
CROCKER, 1976, 1990; CARNEIRO DA CUNHA, [1972] 1986; BROWN, 1991 e
OLIVEIRA, [2006] 2011, 2018.

10 Conselho formado por membros das classes de idade mais antigas,


constituindo a mais importante instância da vida política e cerimonial
dos Ramkokamekrá-Canela. Cf. NIMUENDAJU, 1946.

11 Conforme a versão Canela do Mito de Awkhêê (ANEXO A).

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AWKHÊÊ PRESENTE: COSMOPOLÍTICA E MESSIANISMO CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

12 Mirandy Miikrô constituíu, nesse momento, o líder político que represen-


tava a metade cerimonial Kuy’kateyê, que, no processo político Canela,
atua em oposição à metade Harã’kateyê, a qual teria como líder Raimundo
Roberto Kaapel-tïc, principal colaborador da profetisa que liderou o “mo-
vimento messiânico de 1963” e líder do movimento messiânico de 1980.

13 O Convênio CVRD-FUNAI previa um investimento de cerca de U$ 13 mi-


lhões em infraestrutura e serviços junto às “comunidades indígenas”
impactadas pelo PFC e PGC, dentre as quais os Apanjekrá e Ramkoka-
mekrá-Canela. Cf. CVRD-FUNAI, 1982; CEDI, 1986.

14 Nos anos de 1982-1983, quando teve início a liberação dos recursos do


Convênio CVRD-FUNAI aos grupos indígenas situados nas áreas de “im-
pacto direto” ao PFC e PGC, notícias divulgadas pela imprensa indicavam
que lideranças indígenas retiravam “sacos de dinheiro” desse convênio,
o que pode ter alimentado o imaginário messiânico dos Ramkokamekrá
e suas expectativas milenaristas.

15 Essa grande “roça comunitária” era implementada sob a liderança de


Raimundo Roberto Kaapel-tïc, um dos líderes políticos naquele momen-
to e “rival” de Miikrô no processo político Canela.

16 Versão recolhida por Curt Nimuendaju (1946) e compilada por Roberto


Da Matta ([1973] 1977).

17 Essa narrativa do “movimento messiânico canela” parte da descrição de


William Crocker e de outros informantes. Cf. CROCKER, 1976; OLIVEIRA, 2018.

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92
AWKHÊÊ PRESENTE: COSMOPOLÍTICA E MESSIANISMO CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

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ANEXO A

O mito de Awkhêê16

Uma rapariga de pátio de nome Amcukwëi estava grávida. Certa


vez quando ela, em companhia de muitas outras estava tomando
banho, ouviu de repente o grito do preá. Admirada, ela olhou para
todos os lados, sem descobrir de onde o grito partira. Logo depois
ouviu-o novamente. Voltando para casa com as outras, ela se dei-
tou na cama de varas (jirau) quando o grito se fez ouvir pela ter-
ceira vez reconhecendo ela, agora, que partira do interior do seu
próprio corpo. Depois ouviu a criança falar: “Minha mãe, tu já estás
cansada de me carregar?” “Sim, meu filho – respondeu ela – saia”.
“Bom – disse a criança – em tal e tal dia eu sairei”.

93
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Quando Amcukwëi começou a sentir as dores do parto ela foi só


ao mato. Deitando folhas de patí no chão, disse: “Se fores menino
te matarei, se fores menina te criarei”. Então nasceu um menino.
Ela cavou um buraco, sepultou-o vivo e voltou para casa. Sua mãe,
vendo-a chegar, perguntou pela criança e quando soube o que
Amcukwëi havia feito, ralhou com ela: Que tivesse trazido o menino,
por que ela, avó, o criaria; e quando ela foi lá, desenterrou a crian-
ça e depois de lavá-la a trouxe para casa. Amcukwëi não lhe quis
dar de mamar, mas a avó o amamentou. Mas o pequeno Awkhêê
levantou-se e disse para sua mãe: “Então, não me queres criar?”
Amcukwëi muito assustada respondeu: “Sim, eu te criarei”.

Awkhêê cresceu rapidamente. Ele possuía o dom de transformar-se


em qualquer animal. Quando tomava banho ele se transformava em
peixe, e na roça assustava os seus parentes em forma de onça. Então
o irmão de Amcukwëi resolveu matá-lo. Estando o menino sentado
no chão, comendo bolo de carne, ele o bateu por trás com o cacete,
enterrando-o atrás da casa. Pela manhã seguinte, porém, cheio de
terra, voltou para casa: “Avó – disse ele – por que me mataste?” “Foi
seu tio que te matou porque andas assustando a gente”. “Não – pro-
meteu Awkhêê – eu não farei mal a ninguém”. Mas logo depois, brin-
cando com outras crianças, transformou-se novamente em onça.

Então seu tio resolveu desfazer-se dele de outra maneira: cha-


mou para ir com ele para buscar mel. Eles passaram duas serras.
Chegando ao cume da terceira, ele agarrou o menino atirando-o no
abismo. Mas Awkhêê transformou-se em folha seca, desceu vagaro-
samente em espirais até o chão. Ali ele cuspiu e de repente se ergue-
ram em redor do tio dele rochedos íngremes dos quais este debalde
procurou uma saída. Awkhêê voltou para casa dizendo que seu tio
vinha atrás dele. Como depois de cinco dias ele ainda não tivesse
voltado, Awkhêê fez desaparecer outra vez os rochedos e então fi-
nalmente o tio conseguiu voltar: ele estava quase morto de fome.

94
AWKHÊÊ PRESENTE: COSMOPOLÍTICA E MESSIANISMO CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

Logo, porém, concebeu outro plano para matar Awkhêê: sentando


numa esteira deu-lhe comida, mas Awkhêê disse que bem sabia o
que ia fazer com ele. Depois o tio o derrubou pelas costas com o
cacete e lhe queimou o corpo. Todos abandonaram em seguida a al-
deia, mudando-se para um lugar longe. Amcukwëi estava choran-
do, mas sua mãe disse: “Por que estás chorando agora? Tu mesmo
não o quiseste matar?”

Algum tempo depois Amcukwëi pediu aos chefes e conselheiros que


mandassem buscar a cinza de Awkhêê, e estes mandaram dois ho-
mens à aldeia abandonada para ver se ainda a encontravam. Quando
os dois chegaram ao lugar descobriram que Awkhêê havia se trans-
formado em homem branco: tinha feito uma casa grande e criados
negros de âmago preto de certa árvore, cavalos de madeira do bacuri
e bois do piquiá. Ele chamou os dois enviados e mostrou-lhes a sua fa-
zenda. Depois mandou chamar Amcukwëi para que morasse com ele.

Awkhêê é o Imperador D. Pedro II.

ANEXO B

Movimento messiânico canela de 196317

Com a ocupação do seu território tradicional pelos criadores do cen-


tro-sul do Maranhão, ocorreu em 1963 o mais importante conflito na
história recente dos Ramkokamkerá-Canela. O “movimento messiâni-
co canela” foi liderado por uma mulher, Khêê-khwèy, também conhe-
cida como Maria Castelo, que reviveu e dramatizou o mito de Awkhêê.

Grávida, Khêê-khwèy dizia que abrigava em seu ventre a “irmã de


Awkhêê”, a qual enviava mensagens aos Canela revelando os dese-
jos do herói cultural. Em suas revelações, Kraa-Khwèy (“menina se-
ca”) dizia que Awkhêê estava “zangado” pelo modo como os Kupên

95
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

(sertanejos) vinham tratando os Mé hí (Canela, índios) e que essa


situação seria alterada.

Os Canela aderiram em massa ao movimento. Khêê-khwèy conse-


guiu unificar a população indígena na Aldeia do Ponto, após uma
peregrinação por todas as outras aldeias, num movimento que
lembrava a trajetória bíblica do nascimento de Cristo.

A profetisa promoveu mudanças na vida cotidiana e ritual dos


Canela criando uma “guarda indígena” para impor suas ordens. Os
sertanejos que passavam pela Aldeia do Ponto eram amarrados,
suas roupas retiradas e suas armas tomadas. Os agentes do SPI
não foram informados pelos Canela sobre o movimento em curso,
o qual foi mantido em “segredo”.

Khêê-khwèy autorizou a intensificação na matança de gado dos


sertanejos, afinal todos os bens dos kupên foram concedidos por
Awkhêê, que agora exigia que esses bens retornassem aos índios.
Dizia a profetisa que, ao nascer a filha que trazia no ventre, Awkhêê
faria uma transformação nas relações entre os Canela e os “civi-
lizados”. Os Mé hí passariam a viver nas cidades, desfrutando de
caminhões, carros e aviões e os Kupên iriam morar em aldeias, so-
brevivendo da caça e da coleta.

O movimento se enfraqueceu quando os criadores do sertão forma-


ram uma tropa de jagunços recrutados na região entre vaqueiros
e agregados das fazendas, para dar fim aos Canela. Logo nos pri-
meiros ataques, quatro anciãos Canela foram mortos e os parentes
das vítimas passaram a questionar a profetisa e suas previsões,
mas o movimento prosseguiu.

Os Canela não foram massacrados pelos jagunços, em parte, pela


ação dos agentes do SPI, que organizaram a retirada do grupo de
seu território encaminhando-o à Aldeia Sardinha dos Tenetehara-
Guajajara, em uma área florestal próxima. Nesse momento, a pro-
fetisa passou a ser hostilizada pelos Canela, especialmente pelos

96
AWKHÊÊ PRESENTE: COSMOPOLÍTICA E MESSIANISMO CANELA ANTE O DESENVOLVIMENTO
Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira

parentes dos índios mortos nos ataques, e a viver um processo de


isolamento social que a levou à “loucura”.

Afastados do seu território no cerrado por mais de cinco anos, os


Canela viveram um ambiente hostil, pelo fracasso do movimento
messiânico. A partir de 1968, já sob a administração da FUNAI, criada
pelo regime militar, os Canela iniciaram o retorno ao seu território tra-
dicional. Khêê-khwèy ou Maria Castelo não viveria este retorno, pois
morreu durante a transferência dos Canela de volta ao seu território.

97
TORÉ ANACÉ: CANTOS,
NARRATIVAS E POLÍTICAS DE
UM RITUAL INDÍGENA
Antonio Plácido Matos Portela*

Ao cacique Antonio Anacé, in memoriam.

TORÉ ANACÉ: CONTEXTO


Este trabalho objetiva o estudo dos cantos do ritual do
toré do povo Anacé da aldeia Japuara. Baseado em um
trabalho de campo realizado junto ao povo no mês de ju-
lho de 2018, pretendo argumentar acerca dos contextos
de criação dos cantos e da semântica que nutre suas le-
tras. Os Anacé são uma comunidade indígena localizada
nos municípios de Caucaia e São Gonçalo do Amarante
e “aparecem na literatura desde o século XVII, quando
o padre Antônio Vieira cita este povo em seu relato da
missão na serra de Ibiapaba” (SANTANA et al., p. 4, 2010).
Um outro registro histórico dos Anacé está contido no
trabalho de Carlos Studart Filho (1931, p. 74) dizendo que

* Graduado em Comunicação Social, com habilitação em Publicidade e Propagan-


da pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente, é mestrando do Progra-
ma de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) pela UFC. É membro do Grupo de Es-
tudos e Pesquisas Étnicas (GEPE) e do Laboratório das Artes e Juventudes (LAJUS).
Suas pesquisas têm como ênfase etnologia, parentesco e antropologia da arte.
E-mail: placidoportela@gmail.com.
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

[…] em 1666 estavam os Anassés em franca rebeldia. Do


regimento dado nessa época ao ajudante Phelippe Coelho
de Moraes pelo Capitão mór Mello Gusmão, para ir a Jeri-
coacoara, consta lhe ter sido ordenado que se durante a
viagem encontrasse alguma horda dessa nação lhe fizesse
guerra, levando tudo a ferro e fogo e matasse todos os va-
rões em estado de pegar em armas.

O Ceará enfrentou um processo colonial conhecido como os “alde-


amentos”, que se configuraram no deslocamento de comunidades
indígenas de seus territórios originais para uma localidade onde as
dimensões espaciais consistiam na disposição dos povos ao redor
de uma igreja cristã. Sobre o processo dos aldeamentos e a con-
sequente catequização das populações indígenas, Férrer (2002, p.
116) afirma que
O índio era considerado um inimigo, da fé e da civilização,
e necessitava ter salva sua alma através da doutrinação
cristã. A doutrinação dos indígenas feita no Brasil pelos
Jesuítas, cuja educação tinha como finalidade “atualizar as
capacidades da pessoa e salvar sua alma”, nem sempre se
fez com intenções pacíficas.

A imposição de um modo de vida ocidental, durante a colonização,


progressivamente evoluiu para tentativas de extinção desses gru-
pos. Nesse processo, foram produzidos mecanismos de intensifi-
cação de um pensamento colonial, que assegurava um lugar privi-
legiado à cultura do colonizador e um lugar subalterno à cultura do
colonizado. Mas os aldeamentos, importantes instrumentos nesse
exercício, começaram a desaparecer junto com as comunidades
indígenas. Segundo Porto Alegre (1998, p. 3)

Sem grandes controvérsias ou disputas, o indigenismo ofi-


cial do século XIX empenha-se em estimular a diluição dos
povos indígenas na população circundante. Com esse ob-
jetivo são extintos muitos dos antigos aldeamentos e vilas
de índios por todo o país e a maior parte das terras indíge-
nas é definidamente expropriada.

Segundo a autora, o Nordeste presenciou o declínio das ações dos


aldeamentos. Em um outro trabalho, a autora diz que, durante o

99
TORÉ ANACÉ: CANTOS, NARRATIVAS E POLÍTICAS DE UM RITUAL INDÍGENA
Antonio Plácido Matos Portela

Diretório Pombalino1 (1757-1798), houve grandes dinâmicas nos


modos de operação dos aldeamentos, devido à expulsão dos je-
suítas e à instalação das vilas administrativas pelo governo portu-
guês (PORTO ALEGRE, 1998, p. 219). Durante o Diretório Pombalino,
o Ceará também presenciou o surgimento de novos instrumentos
da colonização, tais como o Relatório Provincial, documento ela-
borado em 1863 (SILVA, 2011) que afirmava a extinção, no território
cearense, das populações indígenas, sendo, então, a efetivação do-
cumental das tentativas de extermínio dessas populações.

O Ceará, após a efetivação do Relatório Provincial, passa por um


longo período sem registros de populações indígenas no território.
Até a década de 1980, por exemplo, não havia, na Fundação Nacional
do Índio (FUNAI), registros de tais populações que habitassem o es-
tado (PACHECO DE OLIVEIRA, 2004). Mas foi nessa mesma década
que ocorreu a virada de tal literatura do extermínio, quando o es-
tado presencia fenômenos de ressurgimento de grupos indígenas
considerados extintos, ou, até mesmo, o aparecimento de novos
grupos, caracterizando modos de emergência étnica comuns no
Nordeste. João Pacheco de Oliveira (2004) denomina esse fenôme-
no de “viagem da volta”, que é um importante conceito para pensar
as dinâmicas de habitação e reabitação das populações indígenas
no Nordeste brasileiro. O autor se inspira nos versos de Torquato
Neto para criar o conceito, e o que essa figura poética sugere é

[…] uma poderosa conexão entre o sentimento de pertenci-


mento étnico e um lugar de origem específico, onde o indi-
víduo e seus componentes mágicos se unem e identificam
com a própria terra, passando a integrar um destino comum
[...]. A viagem da volta não é um exercício nostálgico de re-
torno ao passado e desconectado do presente (por isso não
é uma viagem de volta). (PACHECO DE OLIVEIRA, 2004, p. 33)

Os povos Tapeba e Tremembé foram os primeiros a proferir os gri-


tos de reconhecimento étnico no Ceará (RATTS, 1998), e os Anacé
iniciaram esse movimento em 2004. Os Anacé iniciam o processo
de reconhecimento étnico em 12 de setembro de 2004 (ANACÉ,

100
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

2008), quando uma ação cosmológica fez Antonio Ferreira da Silva


liderar o povo rumo à luta pela demarcação do território. Grito de
reconhecimento se trata de uma mobilização entre as comunida-
des indígenas, no qual se angariam pessoas que se reconhecem
em determinada etnia, para coletivamente iniciarem a luta pela
demarcação de terras.

Cacique fala que seu avô, João Batista da Silva, contava a história do
renascimento anacé todas as noites enquanto fumava cachimbo. A
história dizia que, após diversos embates com os portugueses, os
Anacé perderam suas forças. Os índios, então, fizeram um pacto
com pai Tupã e a força perdida nas batalhas foi guardada por ele
na Lagoa do Parnamirim e na Pedra Branca, ela seria devolvida aos
índios quando chegasse a hora de o escolhido por Tupã guiar o povo
na reconquista do território.

Um dia, cacique sonhou com pai Tupã dizendo que ele era o esco-
lhido da profecia e deveria guiar o povo Anacé à reconquista de seu
território. Quando procurava, junto aos seus primos Jonas Gomes de
Azevedo e Moisés Gomes de Azevedo, documentos históricos para a
composição de um cordel, cacique encontrou uma carta de sesma-
rias que dizia que o território que se demanda hoje à demarcação
pertencia a uma comunidade de índios nomeada Anacé. Esses dois
acontecimentos (o sonho e a carta) dispararam as mobilizações pelo
grito de reconhecimento. Cacique Antonio obteve ajuda do cacique
Daniel, Venâncio, Jeová, todos da etnia pitaguary, e mais 180 indíge-
nas que estavam presentes no momento do reconhecimento. Após
esses fatos, a primeira retomada foi instaurada em 2004 e a luta
pela demarcação do território segue até os dias de hoje.

1.1 Breves notas sobre o ritual do toré

Falar do toré implica a discussão de uma prática ritual comum


aos sistemas culturais de grupos indígenas no Nordeste em que,

101
TORÉ ANACÉ: CANTOS, NARRATIVAS E POLÍTICAS DE UM RITUAL INDÍGENA
Antonio Plácido Matos Portela

dentre outras, tem como utilidade política a delimitação de frontei-


ras identitárias. Em um estudo sobre o toré pitaguary, Magalhães
(2007, p. 107) afirma que

[…] em diversos processos étnicos a realização do toré é


acionada crucialmente como um momento expressivo da
mobilização política do grupo na luta pelo reconhecimento,
sendo incrementado como um dos elementos das “transa-
ções de conhecimento” que fomentam a construção da et-
nicidade Pitaguary.

No caso anacé, por exemplo, muitas vezes quando há ações ex-


ternas à aldeia, como palestras, eventos, oficinas etc., a execução
do ritual é demandada. Mais do que exibir uma prática cultural ca-
racterística dos Anacé, a performance cria um exercício no qual as
fronteiras identitárias são marcadas. Mas não devemos, com isso,
limitar a riqueza e as várias facetas do ritual a uma dimensão única,
isto é, a de criação de fronteiras políticas. Afinal, há, no toré, cosmo-
visões do universo de cada grupo, a serem atualizadas no momento
da performance. Sendo assim, o toré é uma ação ambivalente, pois,
ao mesmo tempo em que atualiza uma fronteira identitária entre
indígenas e não indígenas, com um viés político importante para
o movimento, torna atual também uma rede virtual cosmológica
presente no modo de vida da aldeia. Nos parágrafos que seguem,
serão discutidas as particularidades do toré anacé, em específico,
os cantos que compõem o ritual e os aspectos semânticos presen-
tes nas narrativas das letras.

1.2 Cantos do toré

Viso aqui focar nas camadas semânticas presentes nos cantos anacé
e, para isso, faço uma ponte com os momentos de suas atualizações
performáticas. Sobre isso, Jakobson (2008, p. 16) afirma que

[…] quando determinamos o que seja linguagem, de-


vemos [...] compará-la aos outros sistemas simbóli-

102
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

cos, por exemplo, o sistema de gestos. Esse sistema


de gestos oferece — estou de acordo — semelhan-
ças instrutivas com a linguagem e também — é bom
acrescentar — diferenças não menos notáveis.

1.2.1 O canto de abertura

Durante o campo, houve um fim de tarde e começo de noite que


passei junto ao cacique conversando sobre as músicas do toré2.
Assim que iniciamos a conversa, proferiu de imediato o canto de
abertura do ritual. Seguem os versos abaixo:

(I)
Os Anacé renasceram (1.1)
foi como o estrondo do mar (1.2)
Quem mandou foi pai Tupã (1.3)
eles se manifestar (1.4)

(II)
Só ele é o verdadeiro (2.1)
é o que os índios tem fé (2.2)
já estão todos reunidos (2.3)
na aldeia com o cacique Anacé (2.4)

(III)
Derrama graça pai Tupã (3.1)
para os índios se fortificarem (3.2)
pois a corrente está feita (3.3)
Tupã não deixa quebrar (3.4)

(IV)
Afastar todos os maus (4.1)
e defender do perigo (4.2)
com a força de deus Tupã (4.3)
vamos vencer os inimigos (4.4)

Começo expondo a ideia: os cantos do ritual do toré anacé consti-


tuem um processo de criação de imagens a partir de suas narrativas.
O conteúdo dos versos acima narra a história da profecia do grito
de reconhecimento por meio da pregnância de imagens comuns
à aldeia. Por exemplo, geograficamente os Anacé se localizam em

103
TORÉ ANACÉ: CANTOS, NARRATIVAS E POLÍTICAS DE UM RITUAL INDÍGENA
Antonio Plácido Matos Portela

uma região dotada de serra, sertão e mar. Em 1.1, o ato de renascer


é comparado, ao verso seguinte (1.2), ao alto barulho do mar. “Os
Anacé”, nas palavras do verso, correspondem ao pronome pessoal
“eles”, ou seja, é narrada uma história que aconteceu com terceiros.
Para a efetivação desse ato comparativo, o sujeito já possuía em seu
repertório a imagem do estrondo do mar. O movimento de etnogê-
nese (ou emergência étnica, tal qual descrito anteriormente) anacé
foi mediado por sujeitos, como é o caso do cacique Antonio, que con-
viviam com muitos elementos do cotidiano anacé, antes mesmo do
reconhecimento étnico. Utiliza-se a imagética do “estrondo do mar”
como recurso metafórico para a intensificação do ato de renascer.

Mas aqui também podemos traçar uma pequena (e limitada) dis-


cussão acerca da noção de morte para os Anacé. Compreender a
morte requer o entendimento de como a encantaria opera na al-
deia. Os encantados são, segundo Roberto3, espíritos dos índios
falecidos que permanecem até hoje no território anacé. A transição
entre vida e morte é mediada pela ação de se “encantar”. Quando
há o falecimento de um Anacé, seu espírito permanece vivo na ma-
ta, no mar e na serra. A “encantaria” é o processo pelo qual a vida
dos Anacé continua, ultrapassando um fim sujeitado pela morte.
Utilizar a metáfora do “estrondo do mar” em 1.2 é também trazer a
imagem de um espaço (mar) pelo qual a vida ganha uma condição
de sobrevida, afinal, o mar é um dos espaços em que se pode per-
manecer vivo. Se a encantaria permite aos Anacé renascer em seus
territórios, o canto de abertura do toré atualiza a capacidade de
sobrevida presente na ação de se “encantar”.

Mas não são todos os Anacé que se encantam. Cacique Antonio,


Roberto e Climério, ao falarem dos Anacé que se encantaram, men-
cionam o fato de a figura do “índio guerreiro” ser atrelada à pessoa
que se encantou. Na aldeia Japuara, há queixas, por parte das lide-
ranças, do pouco engajamento por parte da maioria da população.
Por exemplo, apesar da retomada de São Sebastião ganhar cada
vez mais corpo, o número de pessoas envolvidas em sua mobili-
zação é muito inferior ao esperado. As lideranças, por vezes, falam

104
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

que sacrificam suas vidas por uma causa de pouco engajamento,


pois alguns conseguem benefícios de um movimento de luta no
qual poucos participam. Não basta afirmar um pertencimento ao
território, é necessário estar engajado nas lutas em sua defesa. Em
minhas interpretações, penso que os Anacé que se encantam são
aqueles reconhecidos dentro da aldeia, por efetivamente mobiliza-
rem ações de luta em defesa pelo território4.

Os versos 1.3 e 1.4 falam do momento de latência ao qual cacique


Antonio esteve esperando pelo chamado de Tupã para guiar seu po-
vo à conquista de uma terra sagrada. Encontramos aqui paralelos
com a narrativa cristã da história de Moisés, assim como com outras
narrativas míticas alhures. Um povo que aguardava o escolhido para
guiá-los à terra prometida. As comunidades indígenas no Nordeste
sofreram processos de aldeamentos, nos quais o cristianismo foi
amplamente disseminado entre essas comunidades. Na oficina de
colares e brincos indígenas, por exemplo, Climério, outro filho do
cacique Antonio, liderança e também atual cacique, responde à se-
guinte pergunta feita por uma participante da atividade: “Quais as
religiões presentes na Japuara?”. De imediato, Climério lançou o se-
guinte dado: o cristianismo, hoje, corresponde a 70% das manifesta-
ções religiosas da aldeia. Cacique Antonio tinha um amplo repertório
de composição de cantos evangélicos, chegando inclusive a gravar
um CD. Viso a, com esses fatos, dizer que as semelhanças narrativas
provêm de uma força que o cristianismo exerce sobre a Japuara, mas
há um processo de ressignificação dos modos de operação dessa
religião, sendo, inclusive, temática para a construção de narrativas
míticas sobre o ressurgimento do povo. O cristianismo na Japuara
existe em suas dessemelhanças, e não devemos ir pelo viés de pen-
sar na operacionalidade por igual, mas de como esses elementos
são apropriados e passam a atuar de uma maneira distinta.

A metáfora “estrondo do mar” também é contada na profecia do


grito de reconhecimento. O avô de cacique Antonio contava a his-
tória do renascimento anacé todas as noites para ele, enquanto
fumava cachimbo. A profecia conta um evento futuro, no qual os

105
TORÉ ANACÉ: CANTOS, NARRATIVAS E POLÍTICAS DE UM RITUAL INDÍGENA
Antonio Plácido Matos Portela

Anacé renascem a mando de pai Tupã, e as exatas palavras utili-


zadas para descrever o renascimento são “Os Anacé renasceram,
foi como o estrondo do mar”. Encontramos essa metáfora tanto no
canto quanto na profecia do grito de reconhecimento, dessa forma,
podemos pensar nos cantos do toré como um momento de atuali-
zação da profecia.
Toré da Pedra Branca5

(I)
Eu tava na Pedra Branca (1.1)
Tava pelando um bom é (1.2)

(II)
Eu tava na Pedra Branca (2.1)
Tava pelando um bom é (2.2)

(III)
Chegou um índio Tapuia (3.1)
Para dançar o Toré (3.2)

(IV)
Pisa no chão com força e com fé (4.1)
Índios guerreiro é os índio Anacé (4.2)

(V)
Pisa no chão com força e com fé (5.1)
Índios guerreiro é os índio Anacé (5.2)6

Começo da mesma forma que iniciei o parágrafo do canto anterior,


reforçando uma ideia, em específico, a do paralelismo como um re-
curso semântico utilizado nos cantos como forma de causar preg-
nância às imagens criadas a partir das narrativas. Um elemento
que logo chega aos versos paralelísticos 1.1 e 2.1 é a Pedra Branca,
local sagrado que compõe o universo cosmológico e político anacé.
Como dito anteriormente, os Anacé ocupam uma faixa territorial
que compreende sertão, mar e serra, onde, na última, se localiza a
Pedra Branca. O espaço é tido na aldeia como um ambiente sagrado,
por vezes, associado a uma intensa ação dos encantados. A repeti-
ção paralelística nos versos que trazem a Pedra Branca está longe
de ser uma redundância. Se pensarmos pelo viés político, a ênfase
que o canto dá à Pedra Branca é uma forma de marcar a diferença
daquele território, por meio da criação de imagens de elementos

106
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

particulares a ele, que qualificam o espaço enquanto único.


Além da dimensão política de marcação de diferenças, podemos
pensar também no universo cosmológico que esse canto retrata,
afinal, o cenário referido no canto concentra uma intensa atividade
dos encantados. Segundo Climério, os encantados que habitam a
mata e os arredores da Pedra Branca são espíritos dos abortos de
índias do passado. Um exemplo de encantado que habita as proxi-
midades da Pedra Branca é o “Gritador”, a sua presença é reconhe-
cida por meio de um grito atordoante que ecoa na cabeça das pes-
soas enquanto caminham em meio à mata, e não se sabe a fonte
de origem de tal som. Outros tipos de encantados são as caiporas,
legítimas protetoras da mata, defendem o território e guiam pes-
soas perdidas em meio aos caminhos que guardam.

Na estrofe 3, aparece em 3.1 um índio tapuia para compor o cenário


da Pedra Branca. “Tapuia”, segundo Carlos Studart Filho (1931, p.
53), é um termo que designa populações indígenas no Nordeste não
falantes do tronco linguístico tupi. Sobre a relação Tupi e Tapuia no
Nordeste, Pompa (2001, p. 221) afirma que

A “língua geral”, o tupi universal sistematizado e difundido


pelos jesuítas a partir desta uniformidade, fez com que os
inacianos não considerassem no mesmo patamar as outras
línguas como instrumento de catequese, apesar de elaborar
catecismos e gramáticas em língua não tupi, como no caso
do kariri. Elas foram identificadas, portanto, junto com seus
falantes, com o nome genérico – utilizado de forma contras-
tante pelos mesmos tupi – de “Tapuia”. O universo dos “Ta-
puia” é, então, percebido em oposição ao mundo tupi.

Thomas Pompeu Sobrinho (1937, p. 12) diz que os Tapuia ocupavam


quase que a totalidade dos estados do Ceará, Piauí, Paraíba, Rio
Grande do Norte e Pernambuco e partes consideráveis dos estados
de Alagoas, Bahia e Sergipe. Anacé, Tremembé, Jenipapo-Kanindé,
Calabaças e Pitaguary são algumas das etnias, registradas nos
trabalhos do autor, associadas historicamente ao tronco tapuia7.

107
TORÉ ANACÉ: CANTOS, NARRATIVAS E POLÍTICAS DE UM RITUAL INDÍGENA
Antonio Plácido Matos Portela

Na narrativa do canto, cria-se um cenário no qual a Pedra Branca é


palco da performance de um toré, que tem participação de um índio
do tronco tapuia. Um elemento importante na operação ritualística
do toré anacé é explicitado nos versos 3.1 e 3.2: o fato de outras
etnias comporem a performance. Além dos dados etnográficos,
acerca do toré, expostos na seção anterior, esse canto foi um im-
portante agente na interpretação que faço sobre a circulação dos
usos do toré, pois o toré performado baseia-se na imagem de um
outro toré executado no canto, no qual há evidências de um movi-
mento que contribui para a circulação dos usos: a participação de
indígenas de etnias diferentes à Anacé.

Cacique falava que o que o inspira a criar músicas são histórias de


sua vida. Como liderança, cacique Antonio fez constantes viagens
para outras aldeias indígenas, sendo assim, a circulação entre es-
paços diferentes da aldeia da Japuara faz parte de suas histórias.
Se o processo pelo qual cacique cria os cantos anacé é baseado
em suas vivências, isso implica o entendimento de que os cenários
construídos nas narrativas são comuns a ele.

Durante a performance, estabelece-se nas estrofes 4 e 5 o movi-


mento de chamado e resposta. Os chamados em 4.1 e 5.1 são feitos
pelo puxador e as respostas 4.2 e 5.2 são feitas pelos demais parti-
cipantes. Uma característica marcante do toré é a intensidade com
que as pessoas localizadas no círculo maior pisam no chão e a plena
circulação do toré depende de uma estrutura assimétrica estabe-
lecida entre os participantes. Não à toa o puxador profere “pisa no
chão, com força e com fé”; as palavras dão ordens ao destinatário
para manter o movimento circular, mas também diferem os papéis
dos participantes na operação ritualística: o puxador é o encarrega-
do de instaurar desejos nos demais participantes a fim de manter a
estrutura circular do toré; o puxador nesse contexto é puxador-mo-
tivador. Os versos paralelísticos nesse canto destacam imagens que
marcam diferenças: territoriais, pois diferem o território anacé dos
demais, e estruturais, pois evidenciam uma estrutura composta de
assimetrias que fazem fluir a performance ritualística do toré anacé.

108
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Para concluir a seção desse canto, pergunto-me o que condensa


mais a ideia de pertencimento a um território do que pisar nele?
E mais ainda, como dito em 4.1 e 5.1, pisar “com força e com fé”. Os
gestos de intensas pisadas durante a operação ritualística do toré
ampliam a noção de pertencimento ao território.

Toré “Os Anacé Renasceram”

(I)
Os Anacé renasceram (1.1)
foi com força pra lutar (1.2)
quer de volta nossas águas (1.3)
para se poder pescar (1.4)

(II)
Os Anacé renasceram (2.1)
foi com força pra lutar (2.2)
quer de volta nossas matas (2.3)
para de poder caçar (2.4)

(III)
Os Anacé renasceram (3.1)
foi com força pra lutar (3.2)
quer de volta nossas terras (3.3)
para se poder plantar (3.4)

Os versos paralelísticos 1.1, 2.1 e 3.1 introduzem a etnogênese anacé


para o restante das estrofes, e os sequenciais 1.2, 2.2 e 3.2 quali-
ficam o modo como os Anacé renasceram: com força e disposição
para lutar. Três espaços e ações são os elementos que diferenciam
as estrofes umas das outras: águas/pescar, matas/caçar e terras/
plantar. Os cantos do toré anacé estão nutridos por uma geografia
do território. O plantar, por exemplo, é uma atividade fundamental
para a economia da Japuara. Muitos troncos-velhos são agricultores
aposentados, sendo o cacique Antonio o responsável pela assinatu-
ra dos documentos de expedição de aposentadoria para agricultores
indígenas. A FUNAI, muito raramente, envia cestas básicas à Japuara,
mas estas são insuficientes para atender à demanda de toda a al-
deia. Durante uma reunião dos troncos-velhos, cacique foi enfático
ao dizer que metade das cestas deveriam ir para as pessoas que
estão na retomada. As ajudas da FUNAI são poucas, Roberto disse

109
TORÉ ANACÉ: CANTOS, NARRATIVAS E POLÍTICAS DE UM RITUAL INDÍGENA
Antonio Plácido Matos Portela

que o órgão indigenista prioriza as terras indígenas já demarcadas,


ou em processo avançado de demarcação. Muitos Anacé dependem
daquilo que plantam para viver. Cacique mesmo tem algumas plan-
tações próximas à cozinha: mandioca, banana, feijão etc.

As plantações agem como uma cartografia interna do território


anacé. Explico: se existe um pedaço de terra vazio e alguém pre-
cisando plantar, a pessoa é livre para estabelecer ali seu plantio.
Dessa forma, a plantação age como um demarcador de terras in-
terno ao território anacé.

O movimento das retomadas é um movimento de ocupação.


Muitos posseiros próximos à Japuara não desenvolvem atividades
no território, limitando-o à condição de posse. Uma vez que as
retomadas são mobilizadas, plantações começam a surgir, e
o território que antes era abandonado pelo posseiro passa a
significar uma fonte de renda para as populações indígenas. Na
visita de Sônia Guajajara à aldeia, a candidata à vice-presidência da
República – nas eleições presidenciais de 2018 – falou que as ter-
ras indígenas são as terras mais bem preservadas do Brasil, pois
concentram o equilíbrio perfeito entre cultivar e preservar a terra.
Quero com isso enfatizar uma ideia muito frequente, a saber, a luta
pela terra é a luta pela vida; é um território que nutre a vida do povo
Anacé, sociopolítico-cosmologicamente.

Para se querer algo de volta, como expresso nos versos paralelís-


ticos 1.3, 2.3 e 3.3, é necessário que esse algo tenha se perdido. Se
nos determos ao fato do apagamento histórico sofrido pelas po-
pulações indígenas no Ceará e o movimento de etnogênese dessas
populações a partir da década de 1980, o canto sintetiza as ações de
perda e, posteriormente, as mobilizações baseadas em um desejo
de recuperar o território perdido. Se, no canto anterior, pudemos
ver as nuances cosmológicas atreladas ao território anacé, neste,
uma outra dimensão vibra: o fato de o território ser um órgão que
deve pulsar no corpo como forma de nutrir a vida.

110
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Retorno aqui ao canto de abertura do toré. Em 1.3 e 4.3, existe o


apoio de Tupã às ações de renascer e de lutar. Se cruzarmos esses
dois cantos, podemos ver uma narrativa construída que passa pela
etnogênese agenciada por Tupã, a intensificação de imagens par-
ticulares ao território anacé (serra, sertão e mar), a manutenção
da vida por meio do cultivo de subsistências (caça, pesca e plantio)
e a lembrança de que o movimento de luta a ser calcado para a
recuperação do território é auxiliado por Tupã.

(I)
Quem mandou foi pai Tupã (1.3)

(IV)
Com a força de deus Tupã (4.3)

Toré “Foi na Mata”

(I)
Foi na mata, foi na mata (1.1)
onde nasceu o toré (1.2)
Foi na mata, foi na mata (1.3)
onde começou o toré (1.4)

(II)
Ai foi na mata sim (2.1)
que começou o toré (2.2)
Ai foi na mata sim (2.3)
que começou o toré (2.4)

(III)
Foi na praia, foi na praia (3.1)
onde dançou-se o toré (3.2)
Foi na praia, foi na praia (3.3)
onde dançou-se o toré (3.4)

(IV)
Ai foi na praia sim (4.1)
onde dançou-se o toré (4.2)
Ai foi na praia sim (4.3)
onde dançou-se o toré (4.4)

Mata e praia também são cenários descritos no canto, onde a práti-


ca ritualística do toré começou. No canto “Toré da Branca”, podemos
visualizar a operação do toré junto a um índio tapuia. Nesse canto,
vemos que os cenários criados a partir das narrativas dos cantos

111
TORÉ ANACÉ: CANTOS, NARRATIVAS E POLÍTICAS DE UM RITUAL INDÍGENA
Antonio Plácido Matos Portela

anteriores também são os locais de origem do ritual. Lembro com


isso da primeira retomada, localizada na entrada principal da al-
deia. Foi lá onde cacique Antonio, junto a 180 índios, iniciou também
o grito de reconhecimento. O toré é mobilizado, dentro da aldeia,
em ocasiões que se intenta a expansão das ações de recuperação
do território, e os círculos abertos em meio ao mato acabam por
criar uma cartografia dos espaços onde o toré foi dançado: onde o
toré começa é também onde ações de luta começam8.

O paralelismo, estabelecido nos versos da primeira estrofe, forne-


ce à audiência comum pregnância em duas imagens principais: a
mata e a confirmação de que ali se iniciou o toré. Essa pregnância
é uma máxima contida na narrativa dos cantos anacé; os três pila-
res de sustentação da diferença do território (serra, sertão e mar)
retornam como forma de estabelecer destaque a essa geografia,
estabelecendo um movimento de circulação dos cenários, alimen-
tando as narrativas que se estabelecem em cenários típicos da al-
deia. Os cantos proporcionam às imagens do território da Japuara
uma “circulação geográfica”.

Toré “Na Pedra Branca”

(I)
Pedra Branca canta galo (1.1)
berra boi, passa boiada (1.2)
Pedra branca canta galo (1.3)
berra boi, passa boiada (1.4)

(II)
Era ali que os Anacé (2.1)
tavam com a aldeia encantada (2.2)
Era ali que os Anacé (2.3)
tavam com a aldeia encantada (2.4)

Por meio da história da primeira estrofe, a audiência tem acesso à


ampliação da imagem da Pedra Branca trabalhada no canto “Toré
da Pedra branca”. Novos elementos surgem para compor a paisa-
gem desse espaço sagrado do território anacé: galo, boi e boiada.

112
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Um fato interessante a ser contado acerca da Pedra Branca é a sua


importância no processo de renascimento do povo Anacé. Cacique
conta em seu livro9 que, durante os embates com os portugueses,
os Anacé perderam resistência, mas que um pacto feito entre pai
Tupã e os índios concentrou a força, perdida durante a batalha, na
Lagoa do Parnamirim e na Pedra Branca, e a sua liberação deveria
ser feita quando o escolhido (cacique Antonio) guiasse o povo para
o renascimento. Por isso, os versos paralelísticos que se referem
à Pedra Branca visam a uma pregnância dessa imagem, pois é o
local de onde a força anacé foi guardada por Tupã, esperando a
hora do ressurgimento.

Desse modo, o sentido de ressurgir não implica habitar em condi-


ções parelhas ao passado. No acordo feito com Tupã, foi prometido
que, após o retorno dos índios ao território, não haveria mais sofri-
mento como o do passado, de tipos como escravidão, perseguições
e agressões. A Pedra Branca, como importante elemento na etno-
gênese anacé, assume um papel de manter as esperanças de que
os Anacé não mais sofrerão em seu território.

Notas
1 Sobre o Diretório, Ricardo Pinto de Medeiros (2011, p. 116) diz que “o perío-
do pombalino se caracterizou por uma série de mudanças implementadas
pela Coroa portuguesa para promover a agricultura e o comércio, e aumen-
tar os laços da exploração colonial. [...] Desse modo, uma série de medi-
das foram implantadas em relação aos povos indígenas nos seus domínios
na América. A ideia então era civilizar os índios, integrando-os à sociedade
portuguesa, ao contrário da política anterior de segregação, que havia ca-
racterizado a administração missionária, principalmente a jesuítica”.

2 Todos os cantos aqui transcritos foram passados de forma oral pelo ca-
cique Antonio em uma conversa que tive com ele durante o trabalho de
campo. Contudo, os cantos aqui presentes também podem ser encon-
trados em seu livro (ANACÉ, 2008).

3 Roberto é filho do cacique Antonio e, após o falecimento de seu pai, as-


sumiu, junto ao seu irmão Climério, o cacicado do povo Anacé.

113
TORÉ ANACÉ: CANTOS, NARRATIVAS E POLÍTICAS DE UM RITUAL INDÍGENA
Antonio Plácido Matos Portela

4 Ressalta-se que o trabalho de campo que gerou esta pesquisa foi efe-
tuado em um período de 12 dias, sendo assim, afirmativas como essa,
que assumem uma dimensão macro, não abarcam a particularidade das
relações das pessoas e seus parentes.

5 Os nomes dos cantos seguem a nomenclatura criada pelo cacique.

6 Repito o canto nesta seção pois se trata de uma abordagem distinta da


que foi tratada anteriormente. Também o repito para facilitar as propo-
sições em versos presentes no texto e evitar o deslocamento, que pode
se tornar exaustivo, entre a página atual e as anteriores.

7 Tomo como base para essa afirmação o trabalho de Studart Filho (1931),
entendendo as limitações que cercam tais assertivas. Os Anacé, por
exemplo, têm seus registros históricos ligados aos Tapuia, porém, a pa-
lavra Anacé é de origem tupi, significando “aquele que é parente”. Os Tupi
ocupavam parte do litoral do Nordeste e os Tapuia, o interior. Pompa
(2001, p. 228) afirma que “A noção de tapuia se constrói assim colada à
noção de sertão, espaço do imaginário em que se desloca, cada vez mais
longe, a alteridade bárbara que a conquista e colonização vão incorporan-
do aos poucos, em posição subalterna, ao mundo colonial. Ao passo que
as aldeias de índios conquistados iam ‘descendo’ para mais perto da pala-
vra cristã dos missionários, os currais ou os engenhos, os ‘Tapuia’ iam se
afastando, ‘nas brenhas dos centros dos sertões’, para usar as palavras
de Japoatão, nas serras inacessíveis”. As dinâmicas de deslocamentos das
populações indígenas no Nordeste eram intensas: grupos do interior mi-
gravam para o litoral e vice-versa. Temos que levar em consideração tam-
bém a ação colonial dos aldeamentos, que deslocavam os grupos de seu
território de origem para outros onde pudessem ser catequizados com
mais facilidade. Na literatura de Pompeu Sobrinho (1937), consta o fato de
haver, entre esses grupos, diversas manifestações bélicas, que ocasiona-
va o extermínio ou a fusão de grupos indígenas em confronto. Intento com
os fatos narrados anteriormente destacar que precisar o pertencimento
de um grupo a um determinado tronco linguístico é entender as dinâmicas
existentes entre o contato desses grupos com outros indígenas, ou com
os colonizadores, sendo assim, tais assertivas são limitadas.

8 Faço essas analogias baseando-me na história do povo Anacé a partir


de sua “viagem da volta”: de 2004 a 2018.

9 ANACÉ, 2008.

114
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

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PACHECO DE OLIVEIRA, J. Uma etnologia dos “índios misturados”: situação


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POMPEU SOBRINHO, T. Tapuias no Nordeste. Revista do Instituto do


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116
“TUDO O QUE É RUIM ESSA
FOLHA RETIRA”: RITUAIS DE CURA
PARA AFLIÇÕES ESPIRITUAIS NA ALDEIA
TUPINAMBÁ SERRA DO PADEIRO
Larissa Santiago Hohenfeld*

INTRODUÇÃO
Os índios Tupinambá da Serra do Padeiro (FIGURA 1) tor-
naram-se conhecidos na recente literatura antropoló-
gica pelo seu enérgico combate político em defesa dos
seus direitos enquanto povo originário, especialmente
pela manutenção do seu território tradicionalmente
ocupado não só por indígenas, mas também por en-
cantados, considerados os verdadeiros donos da terra.
A relação entre esses indígenas e os encantados foi
amplamente examinada em diversas teses e disser-
tações que ressaltam a significação da espiritualidade
tupinambá para a luta política (MACEDO, 2007; COUTO,
2008; MAGALHÃES, 2010; FERREIRA, 2011; UBINGER,
2012; ALARCON, 2013; PAVELIC, 2019).

* Graduada no curso de Licenciatura em História pela Universidade Federal da


Bahia (UFBA). Cursando mestrado no Programa Multidisciplinar de Pós-Gradua-
ção em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro/UFBA). Pesquisadora no Progra-
ma de Pesquisa Sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro (PINEB).
E-mail: lshohenfeld@gmail.com.
Figura 1 – Seu Lírio (pajé) em frente à Casa do Santo, na sede da aldeia,
durante a abertura da Semana Pedagógica. Ao fundo, a Serra do Padeiro.

Fonte: Larissa Santiago Hohenfeld, 2019

118
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Neste artigo, proponho tratar, sob a forma de uma etnografia, das


práticas rituais relacionadas à cura de aflições espirituais na aldeia
Tupinambá Serra do Padeiro. Realizado de forma coletiva, o Toré
possui diferentes modalidades para aplacar diferentes situações de
aflição nessa aldeia. A modalidade aqui analisada é aquela mobiliza-
da para a cura da terra. Um outro ritual de caráter particular – mas
com o apoio do coletivo –, o fechamento de trabalho tem como ob-
jetivo a cura do indivíduo e, sobretudo, fechar o corpo para futuras
aflições. O artigo busca compreender as formas de interação entre
as pessoas e o ambiente compartilhado com seres não humanos e
concebido a partir de processos históricos de violências e resistência.

Durante o período em que realizei o trabalho de campo na Serra do


Padeiro (aldeia situada na Terra Indígena Tupinambá de Olivença,
em Ilhéus, Bahia), como parte do mestrado em andamento, par-
ticipei de uma série de rituais que compõem a cosmologia desse
território (habitado por indígenas, não indígenas, animais, espíritos
e encantados). Como dizem os índios participantes, “aqui não para,
tem coisa o ano inteiro”. O calendário festivo na aldeia inicia-se com
a Festa de São Sebastião (FIGURA 2), padroeiro da comunidade, na
madrugada de 19 de janeiro. Nos meses seguintes, acontece uma
série de obrigações, geralmente referenciadas a partir das pessoas
que as cumprem: obrigação de Iemanjá de Lúcia, obrigação do Preto
Velho de Célia, Marujada de Maria de Caetano, cariru de Miúda etc.,
além dos fechamentos de trabalho. Vale notar que, senão em to-
dos, o Toré é realizado na maioria desses festejos, seja na abertura,
seja no encerramento.

119
Figura 2 – Encerramento da Festa de São Sebastião.

Fonte: Larissa Santiago Hohenfeld, 2019

120
“TUDO O QUE É RUIM ESSA FOLHA RETIRA”: RITUAIS DE CURA PARA AFLIÇÕES
ESPIRITUAIS NA ALDEIA TUPINAMBÁ SERRA DO PADEIRO | Larissa Santiago Hohenfeld

TORÉ E RETOMADAS PARA BLINDAR A ALDEIA


No nordeste brasileiro, região onde a “mistura” entre populações
indígenas, negras e europeias aconteceu de modo intensivo desde
o princípio da colonização, a afirmação identitária dos povos ori-
ginários é, ainda hoje, posta à prova pelo Estado e pela sociedade
nacional que têm dificuldade em reconhecer no fenótipo e nos cos-
tumes dos povos da região uma típica indianidade. Nesse sentido,
o ritual do Toré – como ficou genericamente conhecido o ritual pra-
ticado pelos indígenas no Nordeste – tornou-se um sinal diacrítico
de indianidade a ser exibido no contexto interétnico formado pelos
regionais, indigenistas e os próprios índios (OLIVEIRA, 1998).

Para além do sentido de fortalecimento identitário, o Toré estabe-


lece comunicação entre o coletivo Tupinambá e outras nações e,
principalmente, com os encantados. Foi-me dito que “o Toré serve
para ‘brindar’ a aldeia”. A princípio, influenciada pela literatura so-
bre esse tema e em decorrência de um trabalho de campo menos
extensivo, com rápidas visitas em eventos específicos, entendi que
o “brindar a aldeia” conotava apenas o sentido de saudar, home-
nagear, ou de apresentar a cultura aos visitantes. Entretanto, um
interlocutor completou “toda pessoa tem um lado bom e um lado
ruim, tem que estar brindado pra não deixar o ruim chegar”. Assim,
em todo evento, iniciam um Toré para “abrir os caminhos” e para
“chamar os encantados, trazer eles na frente”, para blindar a aldeia
ou protegê-la das forças negativas.

Embora haja a participação da comunidade, a prática do Toré é a


principal responsabilidade do Grupo de Jovens da aldeia. Como já
mencionado, é realizado nos eventos coletivos: festas e obriga-
ções, Jornada Pedagógica, início das aulas, encontros com outras
nações, indígenas ou não indígenas, tais como nações de candom-
blé etc.. Semanalmente, os jovens são convidados a fazer o Toré
nas “retomadas”, termo utilizado, neste momento, em referência
às parcelas do território antes ocupadas pelos fazendeiros e agora
reconquistadas pelos indígenas.

121
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

O Toré é também acionado em momentos críticos relacionados


à luta pela terra (FIGURA 3). Enquanto desenvolvia o trabalho de
campo mais extenso na aldeia, desde janeiro de 2019, a situação
que se apresentava era de relativa tranquilidade com relação aos
conflitos com o Estado e os fazendeiros1. Cientes do meu interesse
de pesquisar sobre o Toré, ouvia sempre, provavelmente à guisa de
alertas, comentários sobre o período das retomadas e das inva-
sões da Polícia Federal, do Exército e dos capangas dos fazendei-
ros. Esse foi o período em que “a coisa tava quente” e, desse modo,
o período em que mais se fazia o Toré e com a participação massiva
da comunidade: “vinha gente de pé, vinha gente de moto, de carro,
de tudo quanto era coisa” (informação verbal)2.

122
Figura 3 – Toré de limpeza em retomada.

Fonte: Larissa Santiago Hohenfeld, 2019

123
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

A Aldeia Tupinambá Serra do Padeiro e suas lideranças são cons-


tantemente destaques nas mídias nacionais e internacionais por
sua atuação política voltada para a recuperação e a manutenção
do seu território e pela intrepidez do seu cacique. A partir da sua re-
lação cotidiana com os encantados – espíritos vivos que habitam a
aldeia –, os índios promovem as condições para habitar o território,
no sentido de garantir seu modo tradicional de existência.

Entendendo-se como habitantes de um “território de sangue”, em-


basados na memória coletiva do passado, os Tupinambá empreen-
dem sua luta apoiados na relação cotidiana com os encantados. A
ação desse povo indígena para preservar e recuperar o seu territó-
rio tem ocorrido mediante o enfrentamento direto nas chamadas
“retomadas”, mediante as quais os moradores não índios das ter-
ras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são compelidos a
se retirar, notadamente os grandes fazendeiros (UBINGER, 2012).
Vale salientar que os pequenos agricultores não indígenas, aqueles
que possuem a terra como meio de subsistência, não são afetados
pelos processos das retomadas.

Antes do início de uma retomada, os índios consultam os encantados,


espíritos “vivos” que habitam o território, como já mencionado, que
revelam quando e de qual modo eles devem desencadeá-la. As con-
sultas são feitas por intermédio de Seu Lírio, o atual pajé da comunida-
de. Enquanto os guerreiros se encaminham para os espaços a serem
retomados, os que permanecem na aldeia cantam e dançam o Toré,
pois acreditam que assim estarão fortalecendo a luta conduzida pelos
encantados. Aqueles que chegam ao local a ser retomado, iniciam um
Toré para que os encantados lhes infundam coragem e eles possam
seguir as determinações deles advindas, no espaço da luta.

As terras indígenas tradicionalmente ocupadas foram, ali na Serra


do Padeiro e alhures, usurpadas pelos fazendeiros que se utilizaram
de ardis de distintas ordens, enganaram os índios e se apropriaram
de suas terras, ou empregaram a violência direta, com a ação de
jagunços e pistoleiros, causando a eliminação física daqueles que
habitavam as terras e resistiam às suas ações.

124
“TUDO O QUE É RUIM ESSA FOLHA RETIRA”: RITUAIS DE CURA PARA AFLIÇÕES
ESPIRITUAIS NA ALDEIA TUPINAMBÁ SERRA DO PADEIRO | Larissa Santiago Hohenfeld

Segundo o cacique Babau, a luta pelo território visa a não somente


garantir a subsistência e a autonomia da comunidade, como também
a possibilidade de oferecer, aos espíritos daqueles que sofreram pe-
la terra e na luta morreram, o devido descanso. Ademais, assegurar
a permanência dos indígenas nesta terra é possibilitar também a
existência dos encantados, tendo em vista que a Serra do Padeiro,
altar sagrado, é a “morada dos encantados” (COUTO, 2008).

Como consequência da crise econômica causada pela vassoura-


-de-bruxa nas plantações de cacau, na década de 1980, os fazen-
deiros abandonaram as terras que eram, efetivamente, ocupadas
por trabalhadores não indígenas, que, todavia, ali continuaram. As
retomadas na Serra do Padeiro iniciaram-se em 2004 e, desde en-
tão, os indígenas começaram a retornar para as terras.

A reação dos fazendeiros não tardou a acontecer, de modo que, des-


de 2008, o território passou a ser invadido por pistoleiros e pelas
forças armadas do Estado, com vários episódios de reintegração de
posse determinadas pelo poder judiciário. A memória de tais ata-
ques está constantemente presente nas conversas na aldeia, e a
proteção dos encantados é, nesses momentos, sempre ressaltada.

Em um desses relatos, me chamou atenção o que ocorreu em 2012,


no complexo de fazendas denominado Unacau. Não obstante a re-
tomada tenha transcorrido de forma tranquila, sem qualquer tipo de
confronto, o que se seguiu após os rituais de limpeza espiritual da
área causou impacto direto na vida dos participantes desses rituais.

A Unacau era uma das maiores empresas produtoras de cacau no


país. Após a vassoura-de-bruxa, passou a produzir café. No en-
tanto, a empresa foi autuada por crime ambiental e, além disso,
foi denunciada pelo emprego de trabalho escravo, de modo que foi
desativada em 2006 (ALARCON, 2013). A história do local é marcada
pelo grande sofrimento dos trabalhadores que ali foram confina-
dos em situação degradante (FIGURA 4).

125
Figura 4 – Dormitório dos trabalhadores na Unacau.

Fonte: Larissa Santiago Hohenfeld, 2019

126
“TUDO O QUE É RUIM ESSA FOLHA RETIRA”: RITUAIS DE CURA PARA AFLIÇÕES
ESPIRITUAIS NA ALDEIA TUPINAMBÁ SERRA DO PADEIRO | Larissa Santiago Hohenfeld

Como costuma ocorrer após as retomadas, os Tupinambá realizaram


rituais para a expulsão dos espíritos daqueles que ali padeceram du-
rante muito tempo. Para a cosmologia tupinambá, se a pessoa morre
antes de “cumprir seu tempo na terra”, e em contexto de violência,
o seu espírito torna-se “vagante”, permanece “perambulando” pelo
território e, consequentemente, influencia a vida daqueles que pas-
sam a habitar o espaço, “encostados” ou “irradiando” os vivos, na
tentativa de manter os hábitos que tinham em vida. Desse modo, é
necessário que os espaços passem por uma assepsia para acalmar
esses espíritos, através do Toré, de rezas e do uso de folhas, sempre
sob a orientação dos encantados, para que encontrem um descanso
ou, mais radicalmente, sejam definitivamente expulsos. Assim, ten-
do em vista o histórico de sofrimento do local ocupado pela Unacau,
o ritual de limpeza nessa localidade durou meses.

Em conversa com um jovem tupinambá3 que participou desses ri-


tuais, tomei conhecimento de que todos os jovens que se envol-
veram com a limpeza do local ficaram com “os cão nas costas”, ou
seja, passaram a ser perturbados diretamente pela ação daqueles
espíritos. De acordo com o jovem interlocutor, ele mesmo foi afe-
tado por um dos espíritos que ele via claramente “montado em
suas costas”, de modo que começou a experimentar grande aflição,
com alterações em seu corpo: sentia muitos arrepios, ficava com
a mente confusa e olhos vermelhos, ouvia os gritos dos espíritos.
Conseguia acalmar-se quando era rezado pelos iniciados na reli-
gião dos encantados mais experientes, além de também recorrer
aos banhos de folha. Conseguiu afastar esses espíritos, finalmen-
te, quando resolveu rezar para “fechar o corpo”, no ritual chamado
de “fechamento de trabalho”.

FECHAR TRABALHO PARA FECHAR O CORPO


Para reestabelecer a normalidade de suas vidas, todos os jovens
tupinambás que participaram da ação de retomada da Unacau sub-
meteram-se ao “fechamento de trabalho”, que, nesse caso, reque-

127
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

reu mais tempo e compreendeu mais restrições devido à gravidade


da influência dos maus espíritos que passaram a assediá-los.

A religiosidade Tupinambá tal como hoje se organiza sofreu uma


inflexão com a história do primeiro pajé da aldeia, o João de Nô. Por
volta da década de 1950, João de Nô foi acometido de um estado
de loucura incontrolável, que teria feito com que o seu pai, o Velho
Nô, o conduzisse para Salvador em busca de solução para as suas
constantes crises. Em Salvador, com a saúde muito debilitada, ele
teria sido tratado por Mãe Menininha do Gantois, que, no entanto,
teria afirmado não deter o poder para curá-lo, atribuindo ao próprio
João de Nô o poder de cura e de autocura. Muito provavelmente, a
grande ialorixá sabia estar lidando com um indígena, descendente
de um povo originário.

De volta à aldeia, João de Nô passou por uma etapa de reclusão na


mata, onde desenvolveu o dom da cura com base em banhos de
folha e orações destinadas aos caboclos e encantados. A partir de
então, tornou-se a grande liderança religiosa da região, procurado
por muitos graças ao seu poder de cura. Através de um sonho, João
de Nô teria visto como deveria “cuidar” daqueles que “tivessem”
caboclos e encantados. É desse modo – do modo como João de Nô
teria sido ensinado, em sonho e mediante a sua experiência de re-
clusão na mata – que se inicia e passa a ser praticado o culto, até
os dias atuais na Serra do Padeiro.

Após a morte de João de Nô, o dom da cura, através da oração


para os encantados e da previsão, foi transferido para o seu filho
Rosemiro Ferreira da Silva, o Seu Lírio. Nascido e criado na Serra do
Padeiro, antes da morte do pai, Seu Lírio afirmava não possuir tais
dons, tampouco ter experiência de contato com outras religiões. No
entanto, no ato de morte de João de Nô, Seu Lírio sentiu reações
estranhas, interpretadas como relacionadas à transferência dos
poderes cosmológicos. Como já mencionado, Seu Lírio, atualmente,
é a principal liderança cosmológica na aldeia, responsável por ini-

128
“TUDO O QUE É RUIM ESSA FOLHA RETIRA”: RITUAIS DE CURA PARA AFLIÇÕES
ESPIRITUAIS NA ALDEIA TUPINAMBÁ SERRA DO PADEIRO | Larissa Santiago Hohenfeld

ciar aqueles que necessitam da espiritualidade tupinambá através


do “fechamento de trabalho”.

De acordo com o cacique Babau, o corpo Tupinambá é formado por


80% de espírito e 20% de matéria. Assim como a cura do territó-
rio é perpassado por práticas espirituais, a cura de enfermidades
demanda uma série de condutas para o fortalecimento do anjo
da guarda que cuida do corpo. A forma mais eficaz para manter o
corpo livre de influências negativas que possam vir a afetá-lo é o
“fechamento de trabalho”.

Pude acompanhar o ritual de “fechamento de trabalho” nos períodos


em que vivi na aldeia. Para alcançar a etapa final do “trabalho”, os
iniciados passam por um processo que tem duração mínima de seis
meses, durante os quais são orientados a assumir novas condutas
de relacionamento com o ambiente e com suas práticas corporais.

Em 2016, na primeira visita que fiz à aldeia, ainda como estudante


da graduação, conversei com um grupo de meninas tupinambás
que se mostraram bem dispostas a me introduzir no tema da re-
ligiosidade na aldeia. Sobre o fechamento de trabalho, uma jovem,
na época com 16 anos e neta do pajé, afirmou:

Esse rito de passagem, tem gente que chama de trabalho


também. Quem vai rezar, a gente fala que vai começar a
rezar. Por seis meses ou mais, tem que ficar longe de bar,
longe de festa, não pode beber, mulher não pode cortar ca-
belo, não pode fazer sobrancelha, não pode andar de roupa
curta, não pode dançar. E tudo o que consideram que é ruim
não pode fazer. Eu tenho, Zona tem, Binha também tem,
essa daqui tá rezando. Evita coisas que consequentemente
vem mais tarde. É pra tirar espírito ruim. Porque uma coisa
que eu acredito é que cada um, todo mundo, tem uma carga
boa e uma carga ruim. Aqui a gente tira essa carga ruim,
a gente não né, meu avô e os encantados, tira essa carga
ruim. A gente não né, a gente só faz rezar. A gente usa o
termo de fechar o corpo pra coisa ruim. A gente considera
o fechamento de trabalho, a gente fecha o corpo pra coi-

129
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

sa ruim. Sempre antes da gente começar a rezar, a gente


tá com a cabeça meia virada, só pensa bestagem, é aquela
coisa, só quer andar pelo mundo. Depois que começa a re-
zar, que você fecha trabalho, sua mente muda totalmente.
Você não vê mais graça em tudo o que você pensava, es-
ses pensamentos ruins que tinha… Eu mesmo, eu pensava
muito em sair por aí, eu tava virada, virada mesmo, tava
com a mente assim a mil. Depois que eu fechei trabalho eu
fico pensando: ‘como é que eu tava pensando um negócio
daquele?’. É tipo uma passagem pra evitar que aconteça
uma coisa ruim depois. Porque é aquela coisa da coletivi-
dade, atingiu um, atingiu todo mundo (informação verbal)4.

Perguntei às meninas a motivação para o fechamento do trabalho.


Uma das jovens que participou dos rituais de limpeza da Unacau
relatou sua experiência:

No meu caso, mais o da minha irmã, foi espírito ruim, coisa


ruim. Eles pegavam a gente, antes da gente fechar. Foi isso
que a gente começou a iniciar o trabalho, a rezar pra fechar
o trabalho da gente. Agora tem pessoas que eles não chega
a pegar, eles só encosta, fica tentando, irradiando a pessoa.
Porque tem ar de morto, são vários tipos. E o da gente, ele
encostava na gente mesmo. Acabava com tudo dentro de
casa. Sente arrepio, gosto de sangue.

No momento da nossa interlocução, sua irmã, que estava “rezando


pra fechar o trabalho”, também compartilhou sua motivação:

No caso meu mesmo, eu ia começar ano que vem, mas eu


comecei agora porque essa daqui foi dormir e chegou lá
viu uma mulher que falou que gostava de mim por que eu
andava do jeito que ela andava, maquiada, batom verme-
lho, short curtinho, cabelo vermelho. Aí eu falei “valei mi-
nha nossa Senhora!”, eu tenho medo, eu comecei, eu tenho
medo. Sente quando tá perto, sente arrepio.

Para os casos em que a pessoa já está sofrendo pela influência dos


espíritos, as restrições com relação às vestimentas são maiores. Os
rapazes que fecharam o trabalho após os rituais na Unacau preci-
saram também usar somente calças e camisas de manga longa du-

130
“TUDO O QUE É RUIM ESSA FOLHA RETIRA”: RITUAIS DE CURA PARA AFLIÇÕES
ESPIRITUAIS NA ALDEIA TUPINAMBÁ SERRA DO PADEIRO | Larissa Santiago Hohenfeld

rante o processo. Tanto no caso de homens quanto de mulheres, as


restrições parecem ser mais comportamentais, i.e., não frequentar
bares, interdições sexuais em determinados dias, manter os pen-
samentos tranquilos, evitar transitar em ambientes com energia
de mortos, além de locais com diferentes expressões religiosas.
Recato, nas roupas e comportamentos, atitudes mais contempla-
tivas e várias ordens de privação são recomendações que sugerem
combate, no período ritual, às volições individuais em nome de um
comportamento social padrão ideal que colaboraria para a união
social. Os mortos também aqui parecem encarnar a alteridade má-
xima (CARNEIRO DA CUNHA, 1978, p. 3), daí a evitação de ambientes
“com a sua energia” ou ambientes que propiciem competição reli-
giosa (“diferentes expressões religiosas”). O controle social exerce-
-se sobre os corpos e mentes dos agentes sociais – notadamente
agentes jovens – considerados, simultaneamente, vulneráveis às
pressões do entorno social e, reciprocamente, vetores de perturba-
ções. A qualquer sinal de desvio, o ritual emerge como mecanismo
de reparação do comportamento individual e, consequentemente,
de restabelecimento da ordem, mediante o consenso social criado
no âmbito de relações de causa e efeito.

Complementarmente, no decurso do fechamento de trabalho, a ên-


fase incide sobre o combate a hábitos passíveis de agradar aos es-
píritos indesejados, sejam eles espíritos de mortos, sejam espíritos
pertinentes a “linha” religiosas com as quais eles não trabalham,
tais como Exus e Pombagiras. Afastar-se de certos hábitos cotidia-
nos são também um modo de comprometimento com o processo
de cura, o que pode colaborar para o sentimento de alteração posi-
tiva da realidade.

Em outro momento, nos preparativos para um Toré de limpeza de


uma retomada antes ocupada por um fazendeiro membro da ma-
çonaria, do qual pude participar, um jovem tupinambá comentou
que não participa do Toré sem camisa, pois era assim que o espírito
que “encostou nele” costumava ficar. Desse modo, ele evitaria o
interesse do espírito em estar próximo ao seu corpo. Afirmou que

131
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

chegava a ver o espírito “em suas costas”, um homem de estatura


baixa, negro, cujo nome seria “Rola Bosta”. Esse jovem é filho de
uma das principais “médias” da aldeia, Raimunda. Recentemente,
ele também tem sido usado como “aparelho” (termo utilizado pelos
encantados para as pessoas que incorporam) dos encantados, mas
ainda como iniciante, de modo que ainda não possui muito controle
sobre as situações. Nesses momentos, os mais experientes apro-
ximam-se para prestar auxílio e, quando presentes, os encantados
entoam cantos para instruir a entidade que se dispõe a permanecer.

É interessante notar, nesse caso, o esforço do pajé, das médias e dos


encantados para afastar os espíritos indesejados e, na mesma medida,
para preparar o corpo do jovem para a recepção dos encantados.

O cacique Babau, numa comunicação durante o primeiro encontro


de pesquisadores que ocorreu na aldeia em 2016, também falou
sobre o fechamento de trabalho:

Muitas coisas se acontece. Fazemos ritual de passagem,


esses jovens em idade adequada, para evitar determina-
dos espíritos permanecer com eles. Nós não amansa, não
domestica espírito junto a nós, nós remove, nós tira, nós
escorraça aqueles que não pertence a nós, porque muitos
outros espíritos que é usado, o que a gente chama de cava-
lo dos nossos. E ninguém bota o cavalo dentro de casa e o
dono do lado de fora né (informação verbal)5.

Não obstante a intenção de distanciar-se de outras influências


religiosas, pode-se notar elementos do catolicismo e do candom-
blé de caboclo durante o fechamento de trabalho. Embora tenha
sido orientado por Mãe Menininha a empenhar-se para desenvol-
ver sua espiritualidade em reclusão na mata, João de Nô já havia
anteriormente sido levado a tratar-se em casas de candomblé
locais. Ainda que tenha sido uma experiência não satisfatória,
carregada de maus-tratos, conforme afirmam seus descenden-
tes, ela deixou marcas que persistiram.

Ademais das influências dos maus espíritos que “encostam” ou “irra-


diam” as pessoas, e que podem transportá-las a um estado de lou-

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“TUDO O QUE É RUIM ESSA FOLHA RETIRA”: RITUAIS DE CURA PARA AFLIÇÕES
ESPIRITUAIS NA ALDEIA TUPINAMBÁ SERRA DO PADEIRO | Larissa Santiago Hohenfeld

cura, outras motivações foram compartilhadas, como a pretensão


de abandonar o vício em cachaça ou cigarro, conforme revelou uma
mulher idosa não indígena: “O meu foi pra tirar cachaça. Tirou, viu?
Fui eu que chamei os índios, azuada. Eu lembro de tudo… Eu sabia
que se viesse aqui eu sarava, eu agora não falava pra ninguém, né”.

Para iniciar o processo do fechamento de trabalho, a pessoa deve


passar por uma consulta com o pajé, que determinará o período em
que permanecerá rezando e em resguardo. O período mínimo é de
seis meses e, para alguns que estejam com a “carga mais pesada”,
pode chegar a um ano e seis meses. Durante esse período, a pes-
soa deve rezar às 6h da manhã, meio-dia e às 6h da noite algumas
orações católicas: doze pais-nossos, doze ave-marias e doze san-
tas-marias. Além disso, orientada pelo pajé, deve tomar banhos de
folha e banhos nos rios que cortam a aldeia.

Uma série de restrições deve ser observada para quem pretende


“fechar o corpo”: os iniciantes devem evitar festas, dançar, bebidas
alcoólicas, passar em frente a cemitério, bar, candomblé e “igreja de
crente”, falar palavrão, evitar relações sexuais nas quartas e sextas-
-feiras, as mulheres não devem cortar o cabelo, pintar as unhas, usar
roupas curtas ou decotadas, e todos devem ficar “bem sossegados”.

Miriam Rabelo (2011), ao discorrer sobre o engajamento corporal


no aprendizado das práticas religiosas a partir do Bori, no candom-
blé, observa que a iniciação no ritual contribui para abrir um campo
de experiência e compreensão. A compreensão e o conhecimento
não advêm, essencialmente, da transmissão de conteúdos. Mas, a
partir do envolvimento corporal com seu entorno, o corpo “integra
a si uma situação, respondendo e ajustando-se a ela”. De acordo
com a autora, “compreender é reconhecer, ser afetado ou tocado
pelo estilo latente proposto pelas coisas e lugares. É também uma
experiência sensível” (RABELO, 2011, p. 5). Mudanças nas formas
pelas quais o iniciante está cotidianamente engajado podem pos-
sibilitar novas sensibilidades e novas formas de entendimento.

Uma vez cumprido o período de resguardo, o iniciante procura o pa-


jé para marcar o dia do fechamento do trabalho. O ritual acontece

133
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

dentro da Casa do Santo, durante a noite, estando presentes al-


guns familiares dos que estão diretamente engajados no trabalho
e pessoas que já passaram pelo ritual (as quais têm participação
ativa nesse momento), além de eventuais visitantes.

Registrei o curso do ritual e da movimentação na Casa do Santo.


Em frente ao altar, sentado em uma cadeira, observando sempre
o copo com água, Seu Lírio orienta a todos que iniciem uma oração
dedicada ao respectivo anjo da guarda. Do seu lado direito, ficam
sentados, num grande banco, os homens já iniciados, todos ves-
tidos com calça azul e camisa social branca, descalços. Do lado
esquerdo, em número muito mais expressivo, as mulheres também
permanecem sentadas em um banco e ao chão. Estão trajadas com
longos vestidos nas cores brancas ou azul, com uma grande cruz
costurada na frente e atrás dos vestidos.

Ao passar dos anos, ocorreram pequenas mudanças nos vestidos.


A princípio, eram todos brancos, depois foi incorporada a cor azul.
No fechamento de trabalho que presenciei, em 2018, através da
consulta no copo com água, o pajé anunciou que as mulheres que
fechassem trabalho, a partir de então, deveriam usar o vestido da
cor verde. Essas cores foram também adicionadas à decoração da
Casa do Santo. As roupas dos iniciados caracterizam o compromisso
firmado com os encantados durante o ritual, de modo que são orien-
tados, categoricamente, a zelar pelas vestes, usadas sempre que
algum evento religioso ocorre na Casa do Santo. O descuido com “a
roupa da obrigação” pode desencadear desordens em suas vidas.

Após as orações individuais, o iniciante é convidado pelo pajé a acen-


der oito velas sobre o altar, da esquerda para direita e, para cada ve-
la, há uma oração. Terminadas as orações, o iniciante senta-se em
um banquinho em frente ao altar e aguarda. O pajé, então, solicitou
que quatro mulheres com os vestidos da cor azul iniciassem orações
para cada vela em frente ao altar, o que se repetiu para as mulheres
com os vestidos da cor branca e, depois, para duas com vestidos de
cada cor (FIGURA 5). Após as orações das mulheres, foi, então, a vez
de quatro homens iniciarem as orações em frente ao altar.

134
Figura 5 – Mulheres rezam em frente ao altar durante o fechamento
de trabalho.

Fonte: Larissa Santiago Hohenfeld, 2019

135
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Finalizadas as orações, o iniciante é convidado a sentar-se num


banquinho em frente ao altar, no centro do salão. O pajé inicia a
limpeza do corpo do iniciante com uma bola de algodão molhada
em um líquido (que não consegui identificar), desenhando cruzes
em seus pés, pernas, braços, testa e nuca. Em seguida, uma pe-
quena quantidade de pólvora é disposta sobre papéis em volta do
iniciante, formando o desenho da cruz. Seu Lírio usou fósforo para
acender cada papel com pólvora, o que provocava pequenas explo-
sões. Esse é o momento de “descarga”, quando os maus espíritos
são definitivamente afastados. Se, porventura, houver dificulda-
de para acender o fogo nos papéis, ou caso não haja a explosão
esperada, o iniciante deve voltar ao resguardo e o fechamento de
trabalho não é concluído naquela ocasião, devendo aguardar a
oportunidade propícia.

A cada explosão, as “médias” que aguardam ao lado do altar, junta-


mente com as outras mulheres, apresentam uma agitação em seus
corpos. Quando ocorre a última explosão, imediatamente os encan-
tados “chegam”, dando altos gritos e pisadas fortes no chão. Cada
encantado, então, segurando três galhos da planta quarana, proce-
de à limpeza do iniciante, passando as folhas em seu corpo. Em se-
guida, Seu Lírio pede que o iniciante se levante e passa a puxar-lhe
os dedos de cada mão, seguido de um movimento cruzado de seus
braços, finalizado com um sopro em cada ouvido. Enquanto isso, os
encantados batem com força os galhos de quarana no banco onde
antes estava sentado o iniciante e, logo depois, utilizam esses ga-
lhos como uma vassoura, varrendo em direção à porta. Seguem até
a estrada de terra que dá acesso ao centro da aldeia, onde deixam
os galhos, para que “os ventos levem os maus espíritos”.

Enquanto os encantados utilizam as folhas para a limpeza do ini-


ciante, os presentes participam através de cantos e palmas: “O
vento dá e a folha vira, tudo que é ruim essa folha retira / O vento
deu na Jurema, balançou mas não quebrou / O vento já cessou, pe-
gou o mal e carregou” (informação verbal)6.

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“TUDO O QUE É RUIM ESSA FOLHA RETIRA”: RITUAIS DE CURA PARA AFLIÇÕES
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Durante o fechamento de trabalho, aconselha-se que ninguém


permaneça às portas da Casa do Santo, pois é através delas que
os espíritos ruins passam. Os mais experientes dizem que chegam
a ver os espíritos partindo. O ritual segue com os cantos e a pre-
sença dos encantados que continuam no salão da Casa do Santo,
cantando em meio aos presentes e dançando. Faz-se um intervalo
para comer algum alimento oferecido aos participantes (geral-
mente mingau, mungunzá, cachorro-quente, suco etc.). Após esse
intervalo, retornam à Casa do Santo e iniciam um Toré, que costu-
ma se prolongar até a meia-noite. Ao fim de tudo, os iniciantes são
cumprimentados e parabenizados pelo fechamento do trabalho,
respondendo e agradecendo a presença de todos.

O processo do “fechamento do corpo”, contudo, não finaliza nesse dia.


São necessários, ainda, mais doze dias de resguardo, considerados
os mais importantes durante todo o processo: “Depois que termina o
processo, 12 dias de resguardo. Não pode nem se estressar. Não pode
sentir raiva no coração. 12 dias é pior do que os 6 meses. Porque com
12 dias se a pessoa quebrar o resguardo ou morre ou fica doida”.7

Além do fechamento do corpo às influências dos espíritos ruins, o fe-


chamento de trabalho prepara o corpo do iniciante para a possibilida-
de de receber os encantados, embora nem todos possuam esse “dom”.

CONCLUSÃO: PROPÓSITO TUPINAMBÁ


Com o corpo fechado para as más influências espirituais e cultivan-
do a relação cotidiana com os encantados, os Tupinambá da Serra
do Padeiro julgam-se preparados para a possibilidade de cumprir
sua missão, conforme afirma o cacique Babau:

Tupinambá não surgiu e voltou e fez assim “eu tô vivo” por


acaso não. Tupinambá não sumiu tanto tempo no Brasil pra
voltar por acaso não. Voltamos com um propósito e não
se engane, como eu já falei “ah eu sou tupinambá”, nós so-

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PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

mos apenas usuário da terra de Tupinambá. Tupinambá é


encantado, é luz, é espírito sagrado, guardião. E nós é pra
não parar e cessar ritual pra ele porque foi assim que o pai
determinou que nós fortalecemos os espíritos de luz.

Para o povo Tupinambá, a luta política ocorre não somente no pla-


no visível, no qual, historicamente, violências diversas ameaçaram,
e continuam ameaçando, sua existência física e enquanto coletivo
diferenciado da população regional. A organização desse povo em
torno da sua espiritualidade lhe daria acesso a uma realidade na
qual a fé promove condições pungentes de resistência.

A disposição para levar a cabo o fechamento de trabalho e para


manter constante a prática do Toré deve ser também demonstrati-
va de um comprometimento com o território: para o cumprimento
de alguns preceitos, é necessária a presença física do oficiante e do
iniciando no local. Distanciar-se do território pode indicar distancia-
mento também das forças que protegem o espaço e as pessoas que
nele habitam. Nesse sentido, a luta espiritual colabora com a força
política, reciprocamente, uma vez que é necessário ocupar as áreas
retomadas para que não retornem ao domínio dos fazendeiros.

Não obstante as adversidades enfrentadas, o vínculo desses indí-


genas com os encantados assegura a permanência de ambas as
forças no território, no qual ainda se manifestam os traumas viven-
ciados no percurso histórico, simultaneamente às possibilidades
de enfrentamento no presente.

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“TUDO O QUE É RUIM ESSA FOLHA RETIRA”: RITUAIS DE CURA PARA AFLIÇÕES
ESPIRITUAIS NA ALDEIA TUPINAMBÁ SERRA DO PADEIRO | Larissa Santiago Hohenfeld

Notas
1 Tal situação foi alterada pouco tempo depois, já que, no dia 30 de janeiro
de 2019, chegou ao conhecimento do cacique Babau Tupinambá, princi-
pal liderança política do povo Tupinambá da Serra do Padeiro e, também,
liderança de grande destaque no cenário da luta indígena nacional, um
plano de extermínio organizado por indivíduos contrários à demarcação
da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. De acordo com informantes
anônimos, o plano seria efetuado com a colaboração de agentes do po-
der público, que há algum tempo participavam de reuniões com o ob-
jetivo de arquitetar o ataque. Tendo em vista o fracasso dos inúmeros
ataques empreendidos dentro do território indígena, o grupo planeja-
va emboscadas nas estradas fora do território, visando ao assassinato
dos familiares mais próximos do cacique, seguidos de implantação de
drogas ilícitas em seus veículos para, com a colaboração da mídia local,
criminalizar os indígenas e desgastar a imagem do cacique Babau, que
seria preso logo em seguida, conforme relata a carta assinada por pes-
quisadores que realizaram trabalhos junto ao povo Tupinambá.

2 Fala de Raimunda Almeida, auxiliar de cozinha do Colégio Estadual Indí-


gena Tupinambá Serra do Padeiro, durante conversa enquanto prepara-
va a merenda, em 2019.

3 Enquanto buscava informações sobre um Toré de limpeza que aconte-


ceria alguns dias depois, o jovem conhecido por “Beu” relatou-me, em
conversa, os acontecimentos decorrentes do mesmo ritual realizado
anteriormente. Relatos registrados em diário de campo, em 2019.

4 Entrevista realizada em 2016, durante intervalo do encontro de pesqui-


sadores na aldeia Serra do Padeiro.

5 Comunicação do cacique Babau, no primeiro encontro de pesquisadores


na aldeia Serra do Padeiro em 2016.

6 Canto do ritual de fechamento de trabalho, realizado na Casa do Santo,


na Serra do Padeiro, em 15/02/2019

7 Entrevista realizada em 2016, durante intervalo do encontro de pesqui-


sadores na aldeia Serra do Padeiro.

139
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

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140
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

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141
BREVES NOTAS SOBRE
O RITUAL DE MORTE
ENTRE OS KIRIRI
Jardel Jesus Santos Rodrigues*

INTRODUÇÃO
Às 10 h 15 min de um sábado (06/07/2019) ensolarado
e com fortes ventos, deixei1 a capital baiana em direção
à Terra Indígena Kiriri (TI), mais especificamente à al-
deia de Araçás, cortada lateralmente pela BA-388. Esse
trabalho de campo foi o primeiro que realizei individual-
mente. As outras oportunidades de campo decorreram
de atividades do componente curricular Educação dife-
renciada e revitalização de línguas indígenas (FCHL47)2,
do qual fui aluno, tendo passado, posteriormente, a
integrar a equipe de assessoria linguística coordenada
pelo professor Marco Tromboni.

Durante os 15 dias, aproximadamente, de trabalho de


campo fiquei hospedado na casa de Suely Kiriri. Na pri-
meira semana, choveu quase que ininterruptamente, o
que foi recebido com grande alegria e entusiasmo pelos
índios, haja vista que estão localizados no sertão baia-
no, região com baixo nível pluviométrico. Para mim, con-

* Mestrando em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP). Licenciado


em Ciências Sociais (2019) pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmen-
te, é pesquisador vinculado ao Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas
do Nordeste Brasileiro (PINEB/UFBA), desenvolvendo pesquisa na área de An-
tropologia Social, Antropologia Linguística e Antropologia Histórica. Além disso,
possui experiência em digitação diplomática de documentos históricos do Fundo
de Documentação Histórica Manuscrita sobre os Índios da Bahia (FUNDOCIN/PI-
NEB/UFBA) de acordo com normas paleográficas para esse fim estabelecidas.
E-mail: jardeljrodrigues@gmail.com.
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

tudo, implicou certa restrição de mobilidade pelo território, devido


às péssimas condições das estradas que ligam as aldeias.

Todavia, durante os curtos períodos de estiagem, circulei pela


área, evidentemente nas casas próximas do local onde estava alo-
jado, chegando até às aldeias de Marcação e, contígua a Araçás,
Mirandela, na porção oriental do território. O objetivo inicial era
me aventurar no trabalho de campo individual, sem a presença da
equipe de revitalização linguística, bem como restabelecer laços
sociais e encetar novos.

No início da tarde de sexta-feira (12/07/2019), fui informado, através


de Suely, que seu tio Manuel Anjo da Hora, conhecido como seu Nino,
havia sido acometido por um acidente vascular encefálico (AVE), o
qual o levou a óbito. Suely e os familiares do grupo local e político
a que o falecido pertencia organizaram toda a estrutura necessária
para o velório e o sepultamento, i.e., caixão, comida, bebidas etc..
Decidi não passar a noite no funeral, o que hoje, em retrospectiva,
considero um equívoco, mas, no dia subsequente, por volta das 9 h,
fui para aldeia de Marcação, local em estava ocorrendo o velório.

O presente texto tem como objetivo apresentar os registros que


efetuei durante o velório e o sepultamento, evidenciando elemen-
tos da cosmologia Kiriri no que concerne às obrigações3 para com
as agências não humanas, os “invisíveis”4, e às práticas ritualizadas.

OS KIRIRI: O POVO, A HISTÓRIA E A LÍNGUA


Os Kiriri habitam a região nordeste do estado da Bahia, estando
localizados entre os municípios de Banzaê, Quijingue e Ribeira do
Pombal, a aproximadamente 300 quilômetros da capital do estado,
Salvador, em um território com cerca de 12.320 hectares, corres-
pondentes ao octógono regular que, partindo da igreja missionária
de Nosso Senhor da Ascensão (localizada na aldeia de Mirandela),
dirige-se para todos os pontos cardeais e colaterais, conforme o
alvará de 1700 (BANDEIRA, 1972), ilustrado a seguir (FIGURA 1).

143
Figura 1 – Mapa da Terra Indígena Kiriri.

Elaborado pelo autor, por Neves Santos e por Fernanda Lima Almeida, 2020

144
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Atualmente, a Terra Indígena Kiriri possui 13 aldeias, Alto da Boa


Vista, Araçás, Baixa da Cangalha, Baixa do Juá, Cajazeiras, Canta
Galo, Gado Velhaco, Marcação, Marrocos, Mirandela, Pau Ferro,
Pitomba e Segredo.

O último censo (2010) do Instituto Nacional de Geografia e


Estatística (IBGE) registrou para os Kiriri uma população de cerca
de 3.079 índios. Contudo, segundo dados da Secretaria Especial de
Saúde Indígena (SESAI), vinculada ao Ministério da Saúde, a popu-
lação Kiriri abrange cerca de 2.344 habitantes. A discrepância dos
dados censitários pode ser explicada pelo fato de a SESAI não ter
dados cadastrados de toda a população Kiriri.

Os registros sobre o contato dos índios da região nordeste da Bahia


com não indígenas remontam ao século XVII, quando foram criadas
aldeias na chamada rota das boiadas, que ligava Salvador aos pas-
tos do médio rio São Francisco, onde estava localizada uma pletora
de índios, entre os quais os Tuxá de Rodelas. Havia quatro aldea-
mentos missionários “quiriris” criados pelo padre jesuíta João de
Barros (LEITE, 1945), i.e., “Saco dos Morcegos (atual Terra Indígena
Kiriri), Canabrava (atual cidade de Ribeira do Pombal), Natuba (atu-
al cidade de Nova Soure) e Geru (atual cidade de Tomar do Geru, no
estado de Sergipe)” (CARVALHO, 2004, p. 39-40).

Entre os impactos de ordem social e cultural decorrentes do conta-


to com a sociedade envolvente, a perda da língua e de boa parte do
que eles se referem como “tradições” merece destaque. Para Edwin
Reesink (2012), o golpe quase fatal foi a Guerra de Canudos-BA
(1896 a 1897), que culminou na morte de diversos índios, dentre os
quais os últimos pajés kiriris que dominavam a língua e as “tradi-
ções”. Este dado me leva a supor que a língua Kipeá/Kiriri já estaria
restrita a alguns falantes.

Os Kiriri não mais falam cotidianamente a língua indígena, denomi-


nada pela documentação colonial de Kipeá (MAMIANI [1698] 1942;

145
BREVES NOTAS SOBRE O RITUAL DE MORTE ENTRE OS KIRIRI
Jardel Jesus Santos Rodrigues

[1699] 1877), uma língua pertencente à família linguística Kariri,


englobada pelo tronco Macrô-Jê. Ela está hoje, aparentemente,
restrita ao contexto ritual. Não obstante, é fundamental que este-
jamos atentos ao que linguistas vêm enfatizando, recentemente,
no tocante ao modo próprio de falar o português pelos próprios
indígenas, o que atualmente tem sido difundido como português
indígena. Esses modos têm, quase sempre, marcas muito especí-
ficas da língua de origem do povo em questão no vocabulário, na
gramática, na pronúncia (BRASIL, 1998, p. 114).

O CAMPO
O meu contato com os Kiriri teve início no dia 11/11/2017, quando fiz
minha primeira viagem de campo como parte do componente cur-
ricular Educação diferenciada e revitalização de línguas indígenas
(FCHL4), como informado anteriormente.

Como parte dessa disciplina, desenvolvemos uma série de oficinas


– que versaram sobre conteúdos da área da Linguística, ou seja,
conceitos de língua, linguagem, variação linguística, tronco linguís-
tico, família linguística etc. – destinadas aos professores indígenas
Kiriri, sobretudo aqueles responsáveis pelas disciplinas língua indí-
gena e cultura indígena. Desde então, tenho mantido contato com a
comunidade indígena5 mediante visitas para realização de oficinas
e treinamentos relacionados ao projeto de revitalização linguística.
A partir das oficinas de linguística, construí minha relação com os
Kiriri e, portanto, minha entrada em campo, em termos metodo-
lógicos e epistemológicos. Assim, busquei aliar o trabalho de as-
sessoria linguística à observação da realidade Kiriri, prospectando
temas que pudessem despertar meu interesse para desenvolver
uma pesquisa individual, que, na medida do possível, pudesse se
conectar com a demanda indígena de revitalização linguística6.
Nesse sentido, foi elaborado o projeto de pesquisa Passeio da
alma: diálogos sobre os sonhos e a retomada linguística do povo

146
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Kiriri, com o qual fui aprovado no curso de mestrado do Programa


de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade
de São Paulo (USP).

Ao longo dos mais de dois anos de contato com os Kiriri, lancei mão
da observação participante, orientada por uma perspectiva etno-
gráfica, entendida como “um modo de acercamento e apreensão
do que um conjunto de procedimentos” (MAGNANI, 2002, p. 17). Os
dados recolhidos foram registrados no caderno de campo, entre
os quais se encontram aqueles concernentes ao velório e sepul-
tamento do seu Nino, na aldeia Marcação, e que serviram de apoio
para a breve análise que será realizada, tomando uma série de
ações como práticas ritualizadas.

O RITUAL FUNERÁRIO KIRIRI


A morte, como é sabido, é concebida de maneira distinta pelas so-
ciedades humanas, constituindo, portanto uma construção social,
tal como tem afirmado a literatura antropológica que consultamos
(GENNEP, [1909] 2011; ELIADE, 2001; TURNER, 2005; SARMENTO,
2006; LIMA, 2013; FERREIRA, 2016; BARBOSA, 2016)7. Todas, ou
quase todas, as sociedades possuem alguma maneira de tratar
seus mortos, como assinala Claude Lévi-Strauss (1957) no célebre
Tristes Trópicos. Compartilho com o leitor algumas notas prelimi-
nares sobre o ritual de morte entre os Kiriri, esperando poder apro-
fundá-las, em breve, mediante trabalho de campo sistemático.

Após a notícia do falecimento de seu Nino, ocorreram os prepara-


tivos para o velório e o enterro, conforme apontei na Introdução.
Velou-se o morto durante a noite, no decorrer da qual, por diversas
questões, não pude estar. Na manhã do sábado, sob forte sol, fui
de bicicleta da aldeia de Araçás até o velório, que ocorreu na casa
do próprio finado, como costumeiramente acontece entre os Kiriri.

147
BREVES NOTAS SOBRE O RITUAL DE MORTE ENTRE OS KIRIRI
Jardel Jesus Santos Rodrigues

Após cumprimentar alguns kiriris conhecidos, apresentei meus pê-


sames aos parentes próximos e, logo após, circulei pelo espaço, a fim
de me ambientar e buscar saber, mesmo que precariamente, quem
estava no velório. Em que pese à idade avançada de seu Nino, os
kiriris ali presentes estavam tristes, sérios, introspectivos, além de
outros tantos adjetivos que seriam tradicionalmente aplicados para
esse contexto. A tristeza reinante não impedia, contudo, que a cha-
mada sentinela se revelasse um espaço de socialização, no âmbito
do qual as pessoas conversavam sobre os mais variados assuntos.
Em sua etnografia sobre os Kiriri, Maria Bandeira de Lourdes (1972)
registra a presença da zuru (cachaça) nos velórios, usada na defesa
da sentinela. A expectativa é de que haja muita cachaça, assim como
comida, ambas servidas aos seres invisíveis. A quantidade de uma
e de outra é proporcional à afluência de pessoas na dependência, e,
por sua vez, do prestígio do morto (BANDEIRA, 1972).

Cabe destacar que as circunstâncias da morte condicionam as ati-


tudes dos participantes do velório e do sepultamento. Se o faleci-
mento tivesse sido causado por acidente automobilístico, suicídio
ou morte prematura, o comportamento dos participantes tenderia
à maior circunspeção, o que quer dizer que a idade do morto e a
causa do óbito mobilizam sentimentos mais fortes. No caso obser-
vado, por se tratar de um ancião de idade avançada e ter sido sua
morte decorrente de um AVE, os presentes interagiam menos so-
lenemente, i.e., contando histórias, brincando, aproveitando para
mitigar a saudade dos parentes que residem em outros lugares. O
clima era, portanto, de certa descontração, com ressalva para os
parentes próximos que estavam visivelmente abatidos.

A maior ou menor proximidade social do morto determina a expres-


são dos sentimentos da assistência. De uns, aqueles diretamente
atingidos pela morte, espera-se demonstração de sobriedade,
maior ou menor segundo o grau de parentesco; dos socialmen-
te distantes, a presença, por si, é tida como suficiente e um sinal
de crédito em termos de reciprocidade futura. Gilmara Sarmento
(2006), ao estudar os rituais funerários na pequena comunidade

148
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

rural de Ladeira das Pedras, no extremo norte fluminense, também


registrou o caráter socializador dos velórios, através de conversas,
lanches e histórias diversas ali relatadas, compartilhadas e (re)
lembradas. Estar presente é, para os não parentes, um sinal de soli-
dariedade que não será negligenciado pela parte diretamente atin-
gida (os donos do morto), nos termos da dádiva Maussiana (1974).
Muito provavelmente, quanto maior o status social do presente,
maior será o sentimento de prestígio que a sua presença trans-
mitirá. Reciprocamente, quanto maior o status do morto, maior o
interesse de marcar presença ou ser visto pelos “donos do morto”.

Isso quer dizer que a morte não cancela ou suspende as convenções


e hierarquias sociais. Os povos indígenas não constituem exceção,
nesse plano, notadamente no âmbito cerimonial. Um excelente
exemplo é o dos Kamaiurá, no Parque do Xingu, que possuem diver-
sos níveis de distinção social, a mais visível das quais incide sobre os
descendentes de famílias de chefes, “homens que ostentam o status
hereditário de Morerekwat e mulheres Nuitu, e as pessoas comuns
denominadas kamara” (JUNQUEIRA; VITTI, 2009, p. 136). Se na vida
diária as diferenças são, praticamente, imperceptíveis, na esfera
cerimonial a diferença torna-se bastante visível, marcando a dis-
tância que os separa. Por ocasião da morte, por exemplo, apenas os
Morerekwat e as Nuitu têm direito à realização do Kwaryp, o grande
ritual kamaiurá, os demais podendo aproveitar a festa para homena-
gear seus mortos. Mas apenas o falecimento de um Morerekwat ou
uma Nuitu torna possível a ocorrência do cerimonial Kwaryp.

Por outro lado, há que se considerar que as cerimônias e toda sorte


de reverência dirigida ao morto e aos seus parentes têm como obje-
tivo tentar neutralizar a eventual ação malévola dos mortos. Entre
os Kiriri, assim como em outros contextos indígenas das Terras
Baixas da América do Sul (TBAS), eles são dotados de agência e
representam um perigo iminente, sobretudo para aqueles que ao
morto se vinculam mediante laços de consanguinidade e afinidade.
A morte provoca desarmonia na comunidade, como bem observou
Sarmento (1996), o ritual funerário tem o claro objetivo de (re)esta-
belecer o estado anterior ao falecimento.

149
BREVES NOTAS SOBRE O RITUAL DE MORTE ENTRE OS KIRIRI
Jardel Jesus Santos Rodrigues

Suponho que, entre os Kiriri, certas distinções devam existir, em-


bora não devam ser tão marcantes, contemporaneamente, quanto
entre os Kamayurá. No único caso de morte que tive a oportuni-
dade de registrar, em campo, o velório ocorreu na casa do ancião
falecido, um amplo terreno que permitia a criação de galinhas e a
presença constante de cachorros, além de uma área arborizada,
compondo um ambiente agradável. Ao fundo do terreno, ao ar livre,
houve a preparação da comida que seria servida. A assistência era
formada por diversos grupos, dispersos. Pude identificar uma dis-
creta interseção de gênero em sua formação, o que, contudo, não
impediu que um grupo fosse composto de homens e mulheres.

Um dado importante diz respeito aos diversos grupos políticos


presentes no velório, no cortejo e no sepultamento do falecido. Os
Kiriri estão seccionados8 e seu Nino pertencia ao grupo político vin-
culado ao cacique Lázaro, mas identificamos indígenas ligados aos
grupos dos cacique Manuel, Marcelo e Agrício, o que permite su-
por que os laços de consanguinidade e afinidade podem subverter,
nessas situações, as questões políticas. Membros de uma mesma
família podem afiliar-se a diversos grupos políticos, razão pela qual
é quase inevitável que eventos dramáticos, como a morte, reúnam
atores sociais ligados a caciques distintos.

Por volta do fim da manhã e o início da tarde do sábado (13/07/2019),


uma série de preces e cantigas foi entoada – vale notar que Arnold
Van Gennep tratou as cantigas e preces como ritos de separação ou
despedida (GENNEP, 1977 apud SARMENTO, 2006, p. 115) –, após o
que os familiares próximos se aproximaram do morto e se despe-
diram, em momento de muita comoção.

Bandeira (1972) identificou a presença de um rezador especial, res-


ponsável pela condução do morto – trajando a mortalha de ma-
drasto de cor escura própria para os homens – da sua casa até o
cemitério, ao longo de cujo traslado as orações são pronunciadas.
Vinte e quatro anos depois, Sarmento (1996) identificou a presença

150
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

do mesmo ator social. Da minha parte, lembro-me de ter identi-


ficado um kiriri que iniciou o uso da cachaça, lavando o caixão e
distribuindo a zuru para os presentes, ao longo do trajeto. Tal ação
foi repetida, conforme descrevo abaixo.

Imediatamente após a despedida, o caixão foi disposto na parte


externa da casa, sobre o chão, despejando-se-lhe cachaça9. Alguns
dos presentes se aproximaram e ingeriram aguardente, derra-
mando-a também no solo e nos pés. Aqueles que não a ingeriram,
entornaram sobre o solo e os pés. “A bebida não é ingerida de qual-
quer forma, mas sim ritualmente, submetida a regras específicas
ditadas pelo costume e pela crença” (SARMENTO, 1996, p. 70).

O morto foi deslocado para o carro da funerária e então seguimos


da aldeia de Marcação, local da casa do falecido, até o cemitério
da aldeia de Araçás, um trajeto de cerca de 3 quilômetros. O aces-
so entre as duas aldeias dá-se principalmente pela BA-388, o que
levou à formação de uma fila de tamanho mediana composta por
carros, motos, bicicletas e pessoas, interditando uma das faixas da
pista. O sol estava escaldante, afinal o relógio marcava quase 14 h
quando o cortejo foi iniciado.

Quem não estava acompanhando o cortejo até o cemitério estava


apoiado no peitoril de janelas e portas observando, um ato de res-
peito e consideração para com o falecido e seus familiares.
O carro da funerária deteve-se quatro vezes10, quando, então, os
familiares levantavam o caixão e o dispunham ao chão, mais ca-
chaça sendo consumida e despejada sobre o caixão e o chão. Os
presentes também molhavam os pés com a bebida.

Após algum tempo, chegamos ao cemitério, tendo sido o morto


retirado do carro e conduzido por algumas índias até a cova. Mais
aguardente foi despejada e a primeira pá de terra jogada. Por fim,
todos os presentes se dispersaram e eu os acompanhei, deslo-
cando-me para a casa de Suely, minha anfitriã. Estava exausto da
caminhada e do sol forte.

151
BREVES NOTAS SOBRE O RITUAL DE MORTE ENTRE OS KIRIRI
Jardel Jesus Santos Rodrigues

Dona Lenita, mãe de Suely, que havia acompanhado o sepultamen-


to, também para lá se dirigiu. Já na casa, onde nos encontramos,
ela relatou que as paradas feita ao longo do trajeto da casa do fa-
lecido até o cemitério foram as mesmas que a zabumba e a flauta
fazem durante os festejos da primeira noite dos caboclos11, ocasião
em que os Kiriri também ingerem cachaça e molham/lavam os pés.
Ainda segundo nossa interlocutora, o ritual é para agradecer aos
antepassados e se lembrar dos que já se foram, os invisíveis. Se
tais práticas não forem observadas, os Kiriri, sobretudo os familia-
res mais próximos, podem ser acometidos de afecções. De acordo
com dona Lenita: “eles veem durante o sono e ‘surram’12 os índios e
põem doença até levar à morte”.

O uso ritual da cachaça e as interrupções ao longo do percurso são,


pois, práticas ritualizadas que evidenciam a conexão dos Kiriri com
sua cosmologia, fundamentalmente através de agências não hu-
manas, neste caso os invisíveis. Francisco Barbosa (2016) e Roberto
Da Matta – no prefácio à edição brasileira de Ritos de passagem, de
Gennep (2011) – enfatizam a ritualização da vida social.

As obrigações feitas pelos Kiriri para os invisíveis são uma maneira


de demonstrar respeito pelos antepassados. Ademais, o ritual fune-
rário, como temos visto, é a maneira pela qual eles tentam escapar
das consequências negativas das agências não humanas, a exemplo
das afecções. Mais uma vez, Gennep (2011, p. 138) lançará luz sobre
esse aspecto, a partir da conclusão de que “os ritos funerais são ao
mesmo tempo ritos utilitários de grande alcance, que ajudam a livrar
os sobreviventes de inimigos eternos”. Os invisíveis podem vir a se
constituir em inimigos “mortais” caso as obrigações que lhes são de-
vidas não sejam observadas. A morte não encerra a comunicação com
os vivos, prossegue preferencialmente em sonhos (BANDEIRA, 1972).

Os ritos vitais – nascimento, puberdade e morte –, conforme


Gennep (1960), “acompanham qualquer mudança de lugar, estado,
posição social ou idade” (GENNEP, 1960 apud TURNER, 2005, p. 138).

152
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Seguindo a mesma perspectiva, Victor Turner (2005), ao estudar os


rituais de passagem entre os Ndembu, localizados na região cen-
tral do continente africano, concluiu, entre outras coisas, que toda
alteração de estado13 é considerado um rito de passagem.

Há um aspecto que requer ainda ser ressaltado. A morte kiriri não


tem, aparentemente, causa natural. Como as doenças, o nascimen-
to e a vida, ela tem origem sobrenatural, prevalecendo a crença
de constituir um castigo infligido pelos sobrenaturais14. Mesmo
nos casos de afecções aparentes e/ou reconhecidas, a morte é
imputada à ação dos encantados. Em casos excepcionais, ela po
de ser creditada a efeito de feitiço ou bruxaria15 (BANDEIRA, 1972).

A chamada perda da língua – ou a ausência de uma língua veicular


plenamente eficaz – implicou radical mudança na comunicação
com os encantados, o que os deixou mais vulneráveis aos infortú-
nios. Ao contrário dos antepassados, que falavam com os encan-
tados e com os espíritos dos mortos, os Kiriri contemporâneos só
se comunicam em português, do que decorre redução da eficácia
comunicacional com os encantados. Os iniciados, denominados en-
tendidos, conversavam com os espíritos dos mortos “e sabiam co-
mo as almas viajavam” (BANDEIRA, 1972, p. 83). A comunicação foi
interrompida devido ao deslocamento de muitos entendidos para
Canudos: ali morreram os últimos pajés, “dois dos quais bastante
famosos na época” (BANDEIRA, 1972, p. 83).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um tipo de corte, nas sociedades, em que são representadas todas
as categorias de idade e de status, traduz-se em comportamen-
to diferenciado no decorrer das cerimônias ou honras fúnebres
(CANEIRO DA CUNHA, 1978, p. 2). Meyer Fortes diz algo similar
quando afirma que o status de uma pessoa é proclamado do modo
mais conspícuo à sua morte, quando sua personalidade social tem

153
BREVES NOTAS SOBRE O RITUAL DE MORTE ENTRE OS KIRIRI
Jardel Jesus Santos Rodrigues

de ser cancelada por rito ou cerimônia (FORTES, 1969, p. 55 apud


CARNEIRO DA CUNHA, 1978, p. 2).

Neste despretensioso artigo, suponho haver apresentado ao leitor,


não obstante apoiado em apenas um ritual funerário, um pequeno
conjunto de dados etnográficos sobre a atenção conferida pelos
Kiriri aos seus mortos. Aqui, como entre os Krahó estabelecidos no
nordeste do estado do Tocantins, talvez seja possível afirmar-se o
lugar prioritário que cabe, entre os índios das terras baixas sul-a-
mericanas, à oposição vivos-mortos, “um operador classificatório
primário”. Os mortos encarnariam a alteridade máxima – outros du-
plos, i.e., estrangeiros e inimigos – vivendo em uma antissociedade,
que nega “em seus fundamentos a sociedade dos vivos e a hostiliza,
roubando-lhes os seus mortos (CARNEIRO DA CUNHA, 1978, p. 3).

Hanna Limulja (2019), ao estudar os sonhos entre os Yanomami


da aldeia de Pya’u, uma das 10 comunidades Yanomami próximas
do rio Toototopi, identificou a presença constante dos Poré (mor-
tos) entre o povo etnografado. Os Poré veem-se como pessoas
Yanomami e identificam os vivos como seus espectros. Assediam-
nos, constantemente, para poder levá-los ao seu mundo, o mun-
do dos mortos, sob o argumento de que sentem saudade. Apesar
do forte assédio, os Yanomami não os identificam como inimigos.
Suponho que, entre os Kiriri, prevaleça uma relação similar entre
vivos e mortos, notadamente aqueles com os quais o vínculo de
parentesco é próximo.

Espero, também, ter evidenciado que os velórios e os sepultamen-


tos entre os Kiriri são marcados pela presença de práticas rituali-
zadas. A partir da literatura consultada, podemos concluir que os
sistemas tanáticos são marcados, entre outras coisas, pela pre-
sença de práticas ritualizadas.

154
PARTE 1 - Xamanismo, alteridades, práticas rituais e cosmopolíticas

Notas
1 Estava acompanhado por Fernanda Lima Almeida.

2 Ação Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS), ministrada pelo


professor Marco Tromboni. A ACCS é uma modalidade de disciplina que
tem por objetivo desenvolver atividades extensionistas junto a comuni-
dades externas à universidade.

3 “Há três formas de neutralizar os males lançados pelos encantados. A


principal é a defesa (obrigação ou despacho). Esta, além de neutralizar,
predispõe os encantados em favor da pessoa” (BANDEIRA, 1972, p. 80).

4 O termo encantado morto não se aplica a pessoas mortas, mas aos es-
píritos dos antepassados, “os do outro tempo, caboclos gentios, os pri-
meiros, os do tronco de que são rama ou ponta de rama”. Distintamente,
os espíritos dos mortos estão vagando, comumente encostados em ár-
vores e animais (BANDEIRA, 1972, p. 82).

5 Unidade vinculada pela residência comum, por uma rede de parentesco


e laços de afinidade, cujos membros cooperam em muitas atividades.

6 Segundo Bruna Franchetto (2014, p. 2), “a revitalização linguística con-


siste na pesquisa e desenvolvimento de metodologias de manutenção
e propagação do uso de línguas ameaçadas. O trabalho é desenvolvido
por linguistas em parceria com comunidades falantes de línguas mino-
ritárias, ameaçadas ou extintas. Cada situação exige pesquisa, aborda-
gens e metodologias específicas, de acordo com dados sociolinguísticos
sobre cada população, e também de acordo com os objetivos de cada
comunidade envolvida”.

7 Há uma vasta bibliografia disponível sobre ritual de passagem, mas que


não será esgotada aqui, uma vez que não é o objetivo do presente texto
realizar uma exaustiva revisão da literatura disponível.

8 A partir de 1988, ocorreu uma cisão faccional dos Kiriri em dois grupos.
O conceito de faccionalismo foi por eles interpretado pejorativamen-
te, como sinônimo de facção criminosa ligada ao crime organizado. Em
substituição a esse conceito, adotamos o de seccionalismo, conforme
sugestão de Cardoso (2018).

9 A bebida foi servida em pequenos recipientes feitos de coco seco, simi-


larmente aos usados para distribuir a jurema e outros líquidos no Toré.

155
BREVES NOTAS SOBRE O RITUAL DE MORTE ENTRE OS KIRIRI
Jardel Jesus Santos Rodrigues

10 As quatro paradas acima referidas ocorreram em frente à casa de Derni-


val, no terreiro de Toré vinculado ao cacique Manoel, em frente à estrada
que dá acesso à aldeia de Canta Galo e, por fim, em frente ao cemitério.

11 “No mês de maio realiza-se, em Mirandela, a festa do Senhor da Ascen-


ção. Reza a tradição que a primeira noite da novena fica a cargo dos ca-
boclos” (BANDEIRA, 1972, p. 105).

12 “‘Surrar’ tem a conotação de infiltrar doença, castigar o corpo com mal-


-estar, provocando dores físicas, judiar, empatar, atrasar” (BANDEIRA,
1972, p. 79).

13 “Por ‘estado’ entenda-se ‘uma condição relativamente fixa ou estável’


[...] Estado, em suma, é um conceito mais abrangente do que status ou
cargo e se refere a qualquer tipo de condição estável ou recorrente cul-
turalmente reconhecida” (TURNER, 2005, p. 137).

14 Os sobrenaturais de grande influência são os encantados, seres invisí-


veis que podem, “quando querem”, tomar a forma material variável, tal
como a de animais e aves, cujos poderes podem ser acionados para pro-
teger os índios ou para lhes lançar malefícios (BANDEIRA, 1972).

15 A crença, entre os Kiriri, de que a morte resulta de causas sobrenatu-


rais parece tão firme quanto à dos Azande em relação a uma qualida-
de intrínseca de certas pessoas bruxas que lhes infligem mal. “Eles [os
Azande] crêem ainda que os feiticeiros podem fazê-los adoecer através
da realização de ritos mágicos que envolvem drogas maléficas” (EVANS-
-PRITCHARD, 1978, p. 37).

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159
RETOMADAS,
PARTE 2

CONFLITOS
E DISPUTAS
COSMOPOLÍTICAS

figura 2: Tupinambá de Olivença durante “Caminhada Tupi-


nambá em Mártires do Massacre do Rio Cururupe”, 2015

Fonte: Ernenek Mejía Lara


XAMANISMO E COSMOPOLÍTICA:
“CULTURAS” E ETNICIDADE
NO POVO KIRIRI
Gabriel N. Cardoso*
Vanessa C. Moraes**

INTRODUÇÃO
Neste trabalho, buscaremos elaborar uma reflexão so-
bre o que poderíamos chamar de uma cosmopolítica
(STENGERS, 2018) Kiriri em suas dinâmicas de distinção
inter e intraétnicas. Para tal, buscaremos entender o pa-
pel da cultura enquanto cervo irredutível (CARNEIRO DA
CUNHA, 2009) na construção da distinção étnica Kiriri,
bem como suas categorias nativas nesses processos.
Operacionalizando as categorias de cultura – e “cultura”
– para pensar as dimensões de relações e distinções inter
e intraétnicas e sua complementaridade dialética, onde

* Mestrando em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia


da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Bacharel em Ciências Sociais com área
de concentração em antropologia pela UFBA. Realiza pesquisa junto ao povo Kiriri
(com território localizado no município de Banzaê/BA) desde 2016, cujos principais
interesses são organização política, ritual e xamanismo Kiriri. Integra um projeto de
revitalização e “retomada” da língua indígena do povo Kiriri, que, além do trabalho
técnico com o material linguístico, realiza oficinas de formação em linguística para
professores indígenas, objetivando o protagonismo destes em todo o processo.
E-mail: cardoso.gabriel6@gmail.com.

** Bacharel em Ciências Sociais (UFBA), com ênfase em antropologia, especifica-


mente em etnologia indígena. Mestranda do PPGA da UFBA. Desenvolve pesqui-
sa junto ao povo Kiriri. Também participa de projeto de fortalecimento da língua
indígena desse povo, com objetivo de ampliar o léxico através de pesquisa e re-
uniões com a comunidade, buscando desenvolver autonomia desta para análise
linguística da própria língua. A pesquisa de mestrado tem como foco processos
educacionais, escolares, epistemológicos e ontológicos que perpassam o forta-
lecimento linguístico Kiriri.
E-mail: vanessa_c.m009@hotmail.com.
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

uma unidade, “o povo Kiriri”, pode conviver com uma multiplicidade


de identidades, também Kiriri: as secções e suas distinções intraét-
nicas sob os mesmos termos operados na distinção interétnica
(CARDOSO, 2018; CARNEIRO DA CUNHA, 2009).

É nesse ponto onde entramos no debate sobre cosmopolítica en-


quanto estratégias de integração, mediação e remanejamento en-
tre os sistemas de distinções. Além disso, busca-se compreender
como essa dimensão se articula com o Toré e a ciência do índio
(NASCIMENTO, 1994). Correlacionaremos isso com os debates que
perpassam os índios do Nordeste através da categoria de regime
indígena (CARVALHO, 1994), conjunto de práticas étnicas que reafir-
mam a identidade de um grupo a partir de diacríticos que são res-
saltados no processo rearticulação política para garantia de direitos.
Isso, por um lado, implica a demarcação de territórios e o reconhe-
cimento oficial dos povos indígenas; por outro lado, altera toda a
dinâmica interna destes, podendo causar conflitos, cisões políticas
e processos de distinção intraétnica.

Por fim, buscaremos fazer uma breve análise acerca do xamanismo


específico a essa área etnológica que, nos termos de Carneiro da
Cunha (2009), seria ferramenta cosmopolítica de tradução e rema-
nejamento dessas múltiplas identidades contextuais: que possibi-
litaria ao caboclo sua operação e reconstrução enquanto índio, ou
seja, permitiria sua distinção étnica frente ao Estado nacional. Sendo
os traços diacríticos ligados à distintividade étnica retirados do que
se entende por “tradição indígena”, essa teria como núcleo por ex-
celência o ritual (CARVALHO, 1994, p. 12). É neste campo xamanís-
tico que esses mesmos traços expressivos de um povo Kiriri frente
ao Estado nacional são remanejados semântica e funcionalmente
visando à marcação criativa da distinção interna. A ciência do índio
seria um operador cosmopolítico possibilitando a distinção entre
diferentes grupos Kiriri, quanto à unidade do povo Kiriri.

162
XAMANISMO E COSMOPOLÍTICA: ‘CULTURAS’ E ETNICIDADE NO POVO KIRIRI
Gabriel Cardoso e Vanessa Morais

O POVO KIRIRI: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO


O Território Kiriri se localiza no nordeste da Bahia, no município
de Banzaê, ocupando 12.320 hectares, com cerca de 13 aldeias e
uma população de aproximadamente quatro mil índios, segundo
lideranças locais. Essa etnia faz parte do contexto etnológico do
Nordeste. Para Dantas et al. (1992), os povos indígenas dessa re-
gião se assemelham por uma série de fatores como a associação
desses grupos ao ambiente geográfico específico e sua articulação
com a sociedade colonial e suas frentes de expansão agrícola – e,
especialmente, pecuária. Entre outros aspectos, essa área é defini-
da por ser aquela, no Brasil, de mais intenso e duradouro contato
entre comunidades indígenas e sociedade colonial após a costa e
as regiões litorâneas. Além disso, há entre eles o compartilhamen-
to de uma série de símbolos e diacríticos étnicos em comum, que
advêm de um complexo ritual mais amplo – o da Jurema, que fun-
damenta e perpassa todas as concepções de identidade, território
e modo de vida desses povos (NASCIMENTO, 1994).

O povo Kiriri é ligado à família linguística Kariri, termo pelo qual são
denominados em alguns documentos mais antigos, e que se supõe
pertencer, por certas afinidades, ao tronco Macro-Jê (BANDEIRA,
1972). Os Kariri foram uma grande nação, como ficou conhecida em
alguns registros históricos mais antigos, que se espalhava desde o
Ceará e a Paraíba até as regiões mais ao sul do sertão baiano; seus
contornos não são bem delimitados, pois muito pouco se documen-
tou sobre toda essa nação ou família linguística, tendo nos resta-
do conhecimento apenas de quatro línguas que a compunham: o
Kipeá, o Dzubukuá, o Sapuya e o Pedra Branca ou Kamuru (DANTAS
et al., 1992), dos quais apenas o primeiro foi razoavelmente descri-
to pelo padre jesuíta Vicencio Mamiani em uma arte da gramática
publicada em 1698, além de um catecismo na língua, são eles: a
Arte de Grammatica da Lingua Brasílica da naçam Kiriri (MAMIANI,
[1699] 1877) e o Catecismo da Doutrina Christãa na Lingua Brasílica
da Nação Kiriri (MAMIANI, [1698] 1942).

163
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

Macêdo (2009) afirma que os primeiros contatos entre essas po-


pulações do Nordeste com os portugueses se deram ainda no sé-
culo XVI, com as primeiras incursões do colonizador aos interiores
em busca de especiarias, minérios e mão de obra indígena. Mas
é somente a partir do século XVII que o contato se firmará mais
constante e problemático. É nesse século que, devido a uma série
de incidentes e conflitos dos curraleiros – sob comando da casa
da Torre da família D’Ávila – com os missionário e índios, que che-
gam ao ápice em um episódio em 1699 envolvendo um aldeamento
localizado em Rodelas, que, em 23 de novembro de 1700, o rei de
Portugal, via Alvará Régio, doa terras na medida de uma légua em
quadra partindo do centro dos aldeamentos, para todas as aldeias
com 100 ou mais casais. Boa parte do povo Kiriri concentrava-se no
Aldeamento Missionário Saco dos Morcegos, um dos aldeamentos
doados pelo Rei e que hoje é o atual Terra Indígena (TI) Kiriri.

Dentro desse contexto colonial, ficaram cercados pela sociedade


envolvente que impede o seu livre deslocamento e, consequente-
mente, suas relações tradicionais com o ambiente, o que Ana Magda
Carvalho (2004, p. 36) vem a chamar de “reterritorialização”, e as-
sim passa a originar a noção de um território fixo entre esses gru-
pos, que outrora “perambulavam entre as bacias do rio Itapicuru,
Vaza-Barris e Real, entre as praias e o sertão” (CARVALHO, 2004).

REGIME INDÍGENA, SECCIONALISMO E A CIÊNCIA DO ÍNDIO


O século XX é marcado pelos processos de luta pela retomada do
território e pelo reconhecimento desses grupos, que, por muito
tempo, foram discriminados enquanto caboclos, tendo seus direi-
tos e reconhecimento como indígenas negados, por um lado, e seu
acesso à cidadania não indígena plena rejeitado, por outro. Assim,
esses contingentes claramente diferenciados, seja nas suas práti-
cas culturais, seja na sua organização social, passam a se articular
internamente: reavivando diacríticos de distintividade étnica, dan-

164
XAMANISMO E COSMOPOLÍTICA: ‘CULTURAS’ E ETNICIDADE NO POVO KIRIRI
Gabriel Cardoso e Vanessa Morais

ças e rituais, reorganizando a vida social da comunidade a partir


de ideias notadamente coletivistas, baseadas num regime indígena
(CARVALHO, 1994). Além disso, buscam maior articulação externa
com ONG’s, religiões e pesquisadores que poderiam lhes auxiliar.

Por “regime indígena” se entende o modelo de organização coletiva,


construído por esses povos em processo de rearticulação étnica, on-
de uma série de diacríticos são elencados e enfatizados na (re)ela-
boração de uma nova organização sociocultural fundamentada no
contraste distintivo frente à sociedade nacional. O estabelecimento
desse regime centralizador, em suas fases finais, tende a se acen-
tuar, com a radicalização da observância dos comportamentos que
passam a ser considerados indígenas, mas, paralelo a isso, também
surgem tensões que geram disputas na definição do que é ser índio e
como se deve proceder à reorganização da vida social no interior dos
grupos em retomada étnica e territorial (CARVALHO, 1994, p. 13-14).

No caso Kiriri, essas discordâncias são resolvidas com a institucio-


nalização do que se veio a chamar na bibliografia de faccionalismo
(BRASILEIRO, 1996): grupos que, embora continuem se afirmando
Kiriri, enquanto uma totalidade integrada – principalmente em re-
lação à sociedade nacional –, passam a se organizar com distinções
internas, que envolvem não só diferentes grupos políticos autôno-
mos, mas também processos de distinção intraétnica entre esses.

Ressaltamos que o termo faccionalismo não será utilizado, dado o


incômodo que causa entre os Kiriri. Assim, propomos um termo que
acreditamos melhor se adequar: seccionalismo, do inglês sectio-
nalism, remete a uma tendência a lealdade e sentimento de per-
tença mais forte a uma região ou segmento social, ainda que haja
reconhecimento da unidade do grupo1.

Retomando a conceituação de Carvalho (1994, p. 4-9) sobre a


construção do regime indígena entre povos indígenas no Nordeste,
pode-se falar num processo marcado pela retomada da tradição,

165
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

que não se trata de um revivalismo nostálgico, mas numa rearti-


culação da organização social de todo o grupo sob o estandarte da
especificidade étnica. Assim, são instrumentalizados diacríticos
fundamentais nas lutas e estratégias de rearticulação étnica desses
povos. A partir de uma liderança que incorpore simbolicamente o
tradicional; o estabelecimento de alianças e contatos que permitam
ao grupo indígena um maior conhecimento institucional da reali-
dade nacional, permitindo-o autonomia em sua luta por direito e
reconhecimento e a retomada e reconstrução de uma dimensão
que perpassa a dimensão cosmológica (PIMENTEL, 2012), que se dá
entre os Kiriri com a institucionalização da ciência do índio a partir
do Toré enquanto ferramentas cosmopolíticas.

Em outras palavras, retomadas, que se configuram na retomada


da possibilidade de um mundo possível. Onde relações sociais se
estendem para o campo do “natural” – em concepções ontológicas
“ocidentalizadas” – e onde encantados são agentes políticos pri-
mários e determinantes na relação com a terra/território – por si
só (cosmo)políticas.

Essa dimensão cosmológica – aquele conjunto de procedimentos


que possibilitam mais do que uma visão de mundo integrada e es-
pecífica, mas ferramentas conceituais que permitem a integração
e reintegração coerente do mundo sob uma ótica específica: a indí-
gena, a Kiriri – é facilmente localizada na esfera ritual, neste caso,
no Toré2 (NASCIMENTO, 1994), de que fazem parte os mitos, len-
das, contos, lições e experiências que expressam a vida indígena:
a maneira correta de organização social; a sua ligação histórica e
ontológica com seu território; as suas relações e os conhecimentos
com plantas e animais; as técnicas particulares e os conhecimen-
tos sobre seu próprio passado, sempre reatualizado hoje.

A questão que defendemos nesse ponto é que esses diacríticos de


distinção interétnica não seriam meras ferramentas “inventadas” do
nada tendo por principal propósito um interesse utilitário nas rela-

166
XAMANISMO E COSMOPOLÍTICA: ‘CULTURAS’ E ETNICIDADE NO POVO KIRIRI
Gabriel Cardoso e Vanessa Morais

ções interétnicas. Ao contrário, seriam extraídos de uma cosmologia


Kiriri, marcada pelas relações com os encantados, implicando outra
ontologia. Ou seja, concebemos aqui cultura enquanto cosmovisão3,
ou o sistema de realidades específicos de um povo que, em constan-
te contato com “outros” diversos, não é “perdido”, mas se ressignifica
e se transforma, integrando o evento histórico a um sistema cosmo-
lógico específico que se transforma, mas que, ainda assim, permite a
manutenção das diferenças, que se dão em níveis distintos.

Como aponta Carvalho (1994) em seus exemplos etnográficos, cada


etapa da elaboração desse regime indígena é marcada pela relação
com essas agências não humanas reconhecidas quase generaliza-
damente por “encantados” entre os povos indígenas no Nordeste.
Assim, a liderança tradicional é impulsionada pelos encantados para
promover o processo de retomada territorial (CARVALHO, 1994, p. 4).

Um exemplo disso acontece, na década de 70, entre os Kiriri. Lázaro


é eleito como cacique, distinguindo-o dos antigos capitães de al-
deia. Ele haveria sido “incitado” pelos encantos a retomar o territó-
rio de seu povo. Em 1974, vai também aos Tuxá, em busca do ritual
do Toré, que logo é adaptado aos modos Kiriri, com um processo de
elaboração dos seus próprios toantes, “originais”, que são também
“tradicionais” dos Kiriri, além de retomar contato com seus encan-
tados específicos – não compartilhados com os Tuxá, por exemplo.4

Nesse processo de luta pela terra e por direitos, por um lado, vol-
tam-se para o reconhecimento da identidade étnica por parte do
Estado nacional, visando à luta pelo território. Por outro lado, a
presença da relação entre encantados e esses “caboclos” é men-
cionada precedente e fundamental em todos os casos etnográficos
apontados por Carvalho (1994). Se a construção de um regime indí-
gena se dá a partir do domínio da tradição e da seleção de diacríti-
cos desta visando à distinção interétnica e à configuração de dado
povo enquanto “indígena” – dialogando diretamente com as ima-
gens sobre “ser índio” do Estado nacional –, antes disso existe uma

167
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

dimensão de relação dos “caboclos” com seus encantados, uma


dimensão da qual são retirados esses diacríticos que, num siste-
ma interétnico, passam a ter intensificada sua função contrastiva
(CARNEIRO DA CUNHA, 2009).

É a partir da interação com os encantados, possibilitada pelo


entendimento da “ciência do índio”, que práticas “tradicionais” são
recriadas, retomadas e “traduzidas” visando à afirmação da espe-
cificidade indígena do povo em suas relações interétnicas. Mas é
também, na própria intensificação dessas relações com os encan-
tos, que esses grupos se fazem distintos: se na ciência se vê aquilo
que faz do índio, índio frente ao “branco”5, é nessa mesma ciência
que se constroem distinções entre outros povos indígenas e, mes-
mo internamente, entre os distintos grupos políticos do povo Kiriri.

Desenvolvendo um pouco mais da argumentação: temos povos in-


dígenas num contexto histórico de séculos de relações assimétricas
com o governo colonial, imperial e republicano. Onde, para sua
própria sobrevivência, muitas vezes aceitam e articulam suas
próprias identidades enquanto “caboclos”, ainda que não sejam
integrados socialmente, principalmente por distinções étnicas
negativas6. Parte dessas distinções étnicas negativas se referem
à “feitiçaria” desses caboclos, e sua reconhecida eficácia curativa,
procurada mesmo pelos “brancos” (BRASILEIRO, 1996).

A CIÊNCIA DO ÍNDIO COMO XAMANISMO DOS


ÍNDIOS NO NORDESTE
Se partimos da ideia de Carneiro da Cunha (2009, p. 8) de que:

o crescimento do xamanismo parece ter coincidido com o


enfraquecimento ou o desmoronamento das instituições
políticas e econômicas de tipo dito “tradicional”, num con-
texto de relações assimétricas e coercivas. E que é esse

168
XAMANISMO E COSMOPOLÍTICA: ‘CULTURAS’ E ETNICIDADE NO POVO KIRIRI
Gabriel Cardoso e Vanessa Morais

xamanismo que operacionaliza as “traduções” entre siste-


mas ontológicos conflitantes, mediando as distinções en-
tre os sistemas e fornecendo “inovações tradicionais”.

Poderíamos avançar no entendimento da “ciência do índio” – categoria


de grande difusão entre os povos no Nordeste – enquanto um “xama-
nismo” específico a essa área, que permitiria a “continuidade cultural”
de um povo – ou vários povos em constante contato – entendendo
essa continuidade enquanto manutenção de acesso, sempre reatuali-
zada, a uma cosmovisão ou ontologia próprias, que, num contexto de
perseguição a indígenas, seguido de um contexto de proteção dos “co-
nhecimentos tradicionais”, passa por um processo de “esoterização”
(CARNEIRO DA CUNHA, 2009) se convertendo no “segredo”7.

Assim, a “ciência do índio” seria esse mecanismo de acesso a um


mundo próprio aos “índios”, definido pela presença e relação com
encantados, que estabelecem uma outra dimensão de relações
com o mundo: para um “entendedor” da ciência – ou “xamã” como
aqui se pretende –, uma “grota” ou uma “dor de barriga” não são,
respectivamente, acidentes naturais ou motivados por “causas na-
turais”, mas possuem uma dimensão social muito mais importante,
são, respectivamente, habitações dos encantos e consequências da
falta de trato com essas entidades – são fenômenos sociopolíticos.

É na tomada de consciência – e na manutenção – dessa potencial


dimensão social ou “encantada” no mundo indígena que se tornam
possíveis as “curas xamânicas”, por exemplo. Essas curas se vol-
tariam para as “doenças de índio”, que não se referem a “[...] essas
coisa de bactéria que trata com remédio e injeção”8, mas surgem a
partir das relações – consideradas incorretas – com os encantados.

Esses encantos se apresentam como animais “mágicos”, “bichos”,


ou mesmo como “vultos” em árvores – os “pé-de-pau” – ao se
revelarem para qualquer um que não seja “entendido na ciência”.
Ser entendido na ciência significa, entre outras coisas, poder ver

169
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

os encantados “como eles realmente são”. É nessa possibilidade de


apreensão dessas agências – a priori – não humanas que se faz
possível a compreensão dos ensinamentos destas e do estabeleci-
mento das relações “corretas” com essas entidades – o que define,
justamente, o “ser Kiriri”. A não manutenção da correta “ordem so-
cial”, harmônica, entre índios e encantados implica não só a perda
de acesso a esses – e a consequente perda da “força”, do próprio
vínculo e continuidade dos indígenas no território – como também
riscos à própria integridade física, ao próprio corpo do índio9.

A própria formação – se assim pudermos chamar – do “pajé” ou do


“entendido” entre os Kiriri, em muito se assemelha à noção mais ge-
neralizada de que o indivíduo é “escolhido” – nesse caso, pelos en-
cantos – para a atuação xamânica, sendo acometido por doenças e
distúrbios diversos. Assim se deu no caso de Adonias, pajé de Araçás,
ou no caso de Josinete, mestra do Toré, também da aldeia de Araçás.
Essa última relata toda sua trajetória de vida marcada por doenças,
julgamentos relativos à loucura e à “feitiçaria pro mal”, bem como
sons e sonhos com formas animalescas. É só quando “cooptada”
por um antigo “entendido” que passa a lhe “explicar” os significados
de seu sofrimento – ela havia sido escolhida como “carnal”10 pelos
encantos – que Josinete é reintegrada positivamente na vivência co-
letiva, como mestra no Toré. Como se observa, a própria trajetória do
“entendido” é marcada por intenso contato com os encantados, que
é apreendido inicialmente como doença, assombração.

Assim, o entendido na ciência seria aquele indivíduo com potências


xamânicas capazes de operar traduções cosmopolíticas que per-
mitem o reestabelecimento de uma ordem social “indígena mesmo”
– e que garante a própria integridade dos corpos. “Ordem social”
essa entendida aqui como derivada do “modo de vida indígena”, de-
finido pelas relações “corretas” com os encantados.

Um exemplo disso foi relato por Miro, marido de Suelí. Este havia se
tornado “tocador do sino” na primeira noite, há cerca de dois anos
e contava como se deu sua iniciação nessa função, marcada por

170
XAMANISMO E COSMOPOLÍTICA: ‘CULTURAS’ E ETNICIDADE NO POVO KIRIRI
Gabriel Cardoso e Vanessa Morais

um “arraiamento” que o acamou. Ele diz que o antigo tocador ha-


via falecido e que um substituto teve que ser arranjado às pressas,
assim Miro foi o escolhido. Ele relata ter se sentido indisposto no
dia e que, no dia seguinte aos festejos, se encontrava completa-
mente acamado. Nesse ponto, Suelí o interrompe, dizendo que ele
não ficou mal de doente não, que era “coisa de índio”. Perguntamos
se seria alguma “doença de índio”, o que ela confirma e explica: por
ter ocorrido uma mudança imprevista no ritual, os encantos podem
não ter gostado ou simplesmente não entendido o que estava se
operando. Desse modo, os encantos poderiam ter, pelo simples
fato de se aproximar demais de Miro – por pura curiosidade de por
que aquele indivíduo e não o de sempre –, se “arraiado” provocan-
do a doença decorrente. A cura se dá com a mediação de um “en-
tendido”, nesse caso o próprio pajé Adonias, que parece mediar e
traduzir essa nova situação, o que permite que, no ano seguinte, os
encantados “já entendessem” que era ele. Miro nunca mais voltou
a ter problemas desse tipo ao “tocar o sino”.

Essas reflexões parecem servir de exemplo das possibilidades de,


sim, se compreender a “ciência do índio” enquanto campo xamanís-
tico onde opera os xamãs/“entendidos”, que (re)elabora um cons-
tante processo de tradução entre níveis distintos de diferenças e
mesmo de diferentes ontologias – seja dos encantos Kiriri, seja
“dos brancos” – que garantem a manutenção da própria “condição
Kiriri”. Condição que tem por base a relação diplomática com os
“encantos” e o “entendimento” do que eles dizem e fazem.

Levando em consideração as limitações do escopo deste trabalho,


pensamos que essa exposição contribui para se pensar nas possibi-
lidades e especificidades de um “xamanismo dos índios no Nordeste”.
Na sessão seguinte, partimos para a dimensão cosmológica nos
processos de distinção (intra e inter) étnicas – focando o povo Kiriri
– operacionalizando as categorias “cultura” e “regime indígena”.

171
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

TORÉ ENQUANTO FERRAMENTA COSMOPOLÍTICA E AS


DINÂMICAS DE ETNICIDADE KIRIRI
Se pensarmos a diferença cultural enquanto diferença de ontolo-
gias (FONTES, 2017, p. 391 apud VIVEIROS DE CASTRO, 2013 p. 6),
assumimos que a “ciência do índio” é um mecanismo rearticulação
de uma cosmovisão específica, dos meios de se relacionar com
esse “outro mundo”. Assim como ferramenta de “tradução” que
permite o remanejamento e a convivência lógica dessas diversas
dimensões de distinções étnicas, que, nesse caso, parecem tam-
bém se fundamentar em dimensões de diferenças cosmológicas.
Então, cremos que poderíamos avançar no entendimento do Toré
enquanto ferramenta cosmopolítica.

Visto que esses diversos povos, ainda reconhecidos enquanto “cabo-


clos”, são incitados pela presença dos encantos à retomada. Nesse
caso, a ciência ou o “entendimento” já se faria presente, passando a
ser institucionalizado no Toré, que permitiria um duplo movimento:
o estabelecimento de um ritual que é valorizado no reconhecimento
do estado nacional em relação à “indianidade legítima” e que permite
também um acesso mais sistemático aos encantados, que, conse-
quentemente, fortalecem as relações dos índios com seu território.
Assim sendo, o Toré parece operar como ferramenta cosmopolítica11
– se focarmos o caso Kiriri: uma cosmovisão específica presente na
ciência passa a ser “institucionalizada” enquanto ritual que marca a
indianidade desse povo frente à sociedade nacional, mas também,
permite um remanejamento da organização social desses grupos a
partir de uma orientação étnica, legitimada pelo campo xamanístico
– que é também reformulado nesse processo.

Esse momento de remanejamento mais intenso e reorganização da


vida social de um povo a partir do Toré marca o que Carvalho (1994)
chama de “radicalização da identidade étnica”, onde se apresenta
uma força centrípeta em prol da reorganização da vida do grupo

172
XAMANISMO E COSMOPOLÍTICA: ‘CULTURAS’ E ETNICIDADE NO POVO KIRIRI
Gabriel Cardoso e Vanessa Morais

baseada em modelos coletivistas e “indígenas”, orientados direta-


mente pelos encantos. Assim como uma força centrífuga, onde in-
terpretações distintas sobre essa “indianidade” e os modos corre-
tos de se viver no território surgem e passam a buscar legitimidade
cosmopolítica a partir do Toré.

Um grande exemplo disso é o “coador” e a primeira divisão seccional


dos Kiriri. Num processo de imposição do “regime”, tendo por funda-
mento o Toré – como modelo indígena “legítimo” –, às práticas tidas
por não indígenas – como a apropriação individual das roças ou os
“trabalhos particulares”12 –, muitos indivíduos são expulsos do terri-
tório, tendo, em muitos casos, sua indianidade Kiriri negada. É nesse
mesmo contexto que Lázaro propõe a eleição de um “pajé geral”, que
deveria ser eleito não “como na política dos branco, com isso de vo-
to”, mas por quem realmente teria essa autoridade, “os encantados”
– uma “eleição” mediada por agências outras, que não humanas.

Depois de uma série de Torés realizados com esse intuito, um gran-


de “Toré geral” é convocado. Se o que parece, à primeira vista, é
uma tentativa de manipulação do campo xamanístico em prol de
interesses políticos do cacique Lázaro, a dimensão realmente cos-
mopolítica do Toré logo se revelaria.

É Adonias, um indivíduo já reconhecido por certas aptidões xamânicas


e por algumas “curas de poder” realizadas, que – mesmo doente e
sendo carregado num carrinho de mão para o terreiro – é escolhido,
após severa sabatina por parte dos “encantados”, o que iria de en-
contro aos supostos interesses de Lázaro em eleger um índio de sua
parentela e influência.

Com a legitimação por parte dessas agências não humanas – que,


como visto, estabelecem as próprias dinâmicas e possibilidades do
“ser índio” –, nem mesmo o cacique Lázaro se contrapôs, ainda que
manifestasse sua discordância em termos xamânicos, não aderin-
do ao Toré geral de Adonias13.

173
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

A eleição de Adonias passa a representar uma modificação no ce-


nário cosmopolítico interno, onde, tendo a legitimidade garantida
pelos encantos, o novo pajé passar a servir de canal de expressão
dos descontentamentos com a liderança de Lázaro. Sem que esse
descontentamento seja automaticamente interpretado como desa-
cordo com o regime indígena, novos modelos de ocupação do terri-
tório começam a ser articulados e defendidos, o que, enfim, leva a
primeira cisão do povo Kiriri, entre os de Cantagalo e os de Mirandela.

A partir dessa primeira divisão, uma série de diacríticos utilizados


na distinção interétnica volta a ser ressignificada num sistema de
distinção intraétnica14. E o Toré, seguindo a mesma lógica, passa a
legitimar as distinções internas e as secções políticas discordan-
tes. Operando, portanto, como ferramenta cosmopolítica que per-
mite a transição – com a manutenção da coerência – entre o “uno”
e o “múltiplo” nas diversas dinâmicas étnicas do povo Kiriri: o Toré
permite o fortalecimento da “ciência”, que possibilita uma relação
mais sistemática com os encantos que ensinam e cobram – com
risco de se “arraiar” caso contrariados – os “modos corretos” de
se habitar e se relacionar com o território, que, retroalimentativa-
mente, fortalece a relação com os encantos, que permite o enfren-
tamento do povo frente aos “branco”, bem como o reconhecimento
de sua especificidade. Mas essas relações de tradução xamânicas
estão abertas a interpretações distintas, que legitimam divergên-
cias internas e distinções entre as secções que dificilmente seriam
aceitas por outras vias15. Ainda assim, por mais que essas secções
disputem uma maior “legitimidade indígena”, confirmada pelos seus
modos específicos de executarem o Toré e se relacionarem com os
encantos, ambas acabam por se reconhecer enquanto “povo” Kiriri,
dado que lidam com os mesmos encantos específicos a esse povo.

Outro exemplo disso é o Toré e “os nossos encantos” serem tam-


bém utilizados para distinguir “índios do sertão” dos “índio lá do
Matogrosso e amazonas”16. Bem como um Kiriri de um Tuxá, já que,
ainda que se fale de um mesmo ritual, modos distintos de interpre-
tação e mesmo encantados distintos são convocados – por toantes
distintas – diferindo, pelo campo xamanístico, esses dois povos.

174
XAMANISMO E COSMOPOLÍTICA: ‘CULTURAS’ E ETNICIDADE NO POVO KIRIRI
Gabriel Cardoso e Vanessa Morais

Em suma, o desenvolvimento de um “regime indígena” perpassa a


instrumentalização de sinais e práticas distintivas, unificadas sob
uma base de interpretação e tradução – que garante coerência
entre esses diacríticos – fornecida pelo campo xamanístico, assim
como a performatização desses símbolos para a sociedade nacio-
nal, visando à conquista da terra que, por outro lado, mobiliza, sob
uma única bandeira étnica, todo grupo. É o que conclui Carvalho
(1994, p. 12), após explorar alguns casos de rearticulação étnica e
luta pelo território entre povos indígenas do Nordeste: “[...] Parece
evidente que o pré-requisito fundamental para o reconhecimento é
dominar a ‘tradição indígena’, cujo núcleo por excelência é o ritual,
do que parecem também muito conscientes os índios”.

“REGIME INDÍGENA” ENQUANTO “CULTURA”


Se tomarmos cultura – enquanto categoria analítica – como “um
complexo unitário de pressupostos, modos de pensamentos, há-
bitos e estilos que interagem entre si, conectados por caminhos
secretos e explícitos com os arranjos práticos [...]” (TRILLING, 1972
apud CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p. 357), não nos parece um gran-
de “salto em distância” concebê-la, resumida e grosseiramente,
para o propósito deste trabalho, como a “cosmovisão” de um povo,
que implicaria – como já mencionado – conceber diferença cultural
como diferença ontológica. Aqui a “ciência do índio” aparece como
ferramenta de acesso e mobilidade a essas dimensões cosmológi-
cas, mantendo a continuidade de um “modo de ver o mundo Kiriri”,
justamente por permitir sua constante transformação e ressignifi-
cação a partir do(s) contato(s) e do evento histórico.

Essa ressignificação é clara nos processos de retomada étnica


desses grupos a partir da elaboração de um “regime indígena”,
que, como demonstrado por Carvalho (1994), tem por fundamen-
to o “domínio da tradição”, que teria por “núcleo” o ritual, coisa da
qual os índios se mostram conscientes. Nessa linha argumentati-

175
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

va, pensamos que o “regime indígena” – concebido nativamente como


“tradição” – é o próprio processo de seleção consciente e reflexivo de
diacríticos visando à distinção interétnica – e que é a cultura categoria
“irredutível” (CARNEIRO DA CUNHA, 2009) na distinção especificamen-
te étnica. Pensamos ser possível aproximar as categorias de “regime
indígena” à “cultura” de Carneiro da Cunha (2009), que concebe esta úl-
tima justamente como uma “metalinguagem” nativa; uma objetivação
da cultura: “como o que se fala sobre si mesmo”; enquanto discurso
elaborado sobre a cultura – sem aspas (CARNEIRO DA CUNHA, 2009,
p. 358-359). Assim, a partir de um modo específico de compreender e
se relacionar com o mundo – mediado pelos encantos e pela “ciência”
–, uma ideia de “tradição” é construída e passa a operar numa outra
lógica, num outro nível de distinção: o interétnico.

Por outro lado, essa ideia se relaciona com as dinâmicas internas


da cultura e interfere diretamente nelas, como a introdução do Toré
com a construção do “regime”, que passa não só a ser um grande
demonstrativo de “indianidade” para fora, como altera muito da
dinâmica da “ciência do índio”, “purificando-a” das entidades não
indígenas – que são também as “não vivas”17. Modificações nas rela-
ções com os encantados, portanto, na própria dimensão cosmológica,
por sua vez, alteram também as concepções sobre ser índio – e os mo-
dos de produzir essa diferença – que passam a operar internamente,
levando a um outro nível de cisões e distinções intraétnicas. Em suma,
isso parece atestar essa dimensão de reflexividade da cultura en-
quanto “cultura”, ou como propomos, do “regime indígena” enquanto
objetivação da cultura entre esses povos. Uma metalinguagem sobre
o que se é, para quem não o é, ou seja, voltada para a distinção in-
terétnica que, por conseguinte, acaba por alterar a própria dimensão
cosmológica, que configuraria a cultura – novamente, sem aspas.

Assim, um modo de produzir um mundo Kiriri, uma cosmovisão


específica e suas estruturas se atualizam e se ressignificam nas
relações – quase sempre assimétricas – com um “outro”, portanto,
no próprio processo de seleção de diacríticos e estabelecimento de
fronteiras para a distinção interétnica. Que, nesse caso, retornam e
passam a operar enquanto distinção intraétnica.

176
XAMANISMO E COSMOPOLÍTICA: ‘CULTURAS’ E ETNICIDADE NO POVO KIRIRI
Gabriel Cardoso e Vanessa Morais

Ainda dentro da linha argumentativa pensada por Carneiro da


Cunha (2009, p. 359-361) para abordar cultura e “cultura”, vale res-
saltar que as “reificações êmicas” sobre a cultura e como essas são
articuladas na distinção intraétnica operam num outro nível que o
“regime indígena” – que aproximo de “cultura” – ou da “tradição” –
enquanto a categoria nativa equivalente a “cultura” – operados na
distinção interétnica. Se, internamente, os diacríticos marcariam
distinções entre as secções, e as ligariam às suas origens nos an-
tigos “núcleos” antes da retomada do território, expressando uma
heterogeneidade do grupo, externamente, “a cultura é homoge-
neizada, estendendo-se democraticamente a todos algo que é, de
um outro ponto de vista, uma vasta rede de direitos heterogêneos”
(CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p. 363).

A questão que vem se desenvolvendo com essas aproximações, em


relação ao contexto etnológico aqui enfocado, é: ainda que operem
sistemas em níveis distintos, a elaboração nativa da “cultura” ou o
“regime indígena” tem efeitos práticos, seja nas conquistas de terri-
tório e direitos étnicos específicos, seja na própria transformação da
organização social e da própria dimensão ritual Kiriri. Levando isso
em conta, o que permitiria uma mobilidade entre essas duas dimen-
sões e sua intercomunicação, sem que se perdesse a coerência lógi-
ca em expressões do tipo “somos um pra vocês e muitos pra gente”?

REFLEXÕES FINAIS: XAMANISMO COMO FERRAMENTA


COSMOPOLÍTICA DE INTEGRAÇÃO E MEDIAÇÃO ENTRE
CULTURA E “CULTURA”
Acreditamos já termos avançado parte dessas questões nas sessões
anteriores. Pensamos que é no campo xamânico que essas identida-
des ora múltiplas, ora “unas” são remanejadas e operacionalizadas
cosmopoliticamente, sem que percam seu sentido ou caiam em con-
tradição ao afirmar a multiplicidade no uno e vice-versa.

177
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

Aqui vale citar, brevemente, o ilustrativo exemplo do índio Truká


Acilon Ciriaco da Luz: após ser incitado pelos encantados, entre
eles o primeiro capitão da aldeia (CARVALHO, 1994, p. 4), Acilon ini-
cia o processo de retomada e luta pelo território que tem por condi-
ção o “domínio da tradição”. É nessa busca que vai aos Tuxá, onde é
orientado por uma mestra do Toré a “redescobrir o nome da aldeia/
tribo” a partir do contato com os encantos, sem o qual não seria
possível convencer o Marechal Rondon da indianidade “legítima”,
da especificidade e da continuidade daquele povo que veio a se
redescobrir – ou se “retomar” (CAYÓN, 2014) – Truká.

A própria mediação com representantes do governo e do estado


exige uma mediação prévia com os encantados, que fornecerão
ferramentas “legítimas” na luta pelo reconhecimento – mais que
pelo convencimento – e, aparentemente, modos de tradução que
permitem que tipos de “socialidade” específicas (WAGNER, 2010) a
cada um desses povos no Nordeste – marcados e perpassados por
imposições, violências e mesmo o genocídio por parte dos “bran-
cos” – possam ser instrumentalizados (cosmo)politicamente.

A manutenção da coerência, portanto, entre cultura e “cultura” Kiriri,


ou seja, entre uma cosmovisão própria a esse povo – em constan-
te transformação, o que justamente permite a continuidade – e
suas objetivações daquela enquanto “regime indígena”, visando à
distinção interétnica, é decorrente de uma atividade cosmopolítica
de “tradução” e remanejamento dessas realidades distintas e em
constante comunicação. O centro dessas operações cosmopolíti-
cas seria o campo xamanístico desses povos, ou a “ciência do índio”,
“institucionalizada” no complexo ritual do Toré.

Por fim, a própria instituição do Toré, e os decorrentes processos


de “purificação” da ciência do índio – no caso Kiriri – por outro
lado, já demonstram como essa “cultura” interfere no sistema
interno da cultura, reatualizando o próprio campo xamanístico
Kiriri, que, a partir do Toré, passa a representar a ancestralidade e
a continuidade dessas “pontas de rama” em relação aos “troncos

178
XAMANISMO E COSMOPOLÍTICA: ‘CULTURAS’ E ETNICIDADE NO POVO KIRIRI
Gabriel Cardoso e Vanessa Morais

velhos”. Parece ser a possibilidade de produzir, hoje, a “tradição”


de sempre – assim como continuar produzindo, futuramente – que
garante essa continuidade e a identidade Kiriri, bem como sua dis-
tinção de outros povos indígenas do Nordeste. É nessa dimensão
cosmopolítica dos processos de distinção étnica que parece ser
produzida a coerência de noções como: produzir tradição hoje;
“inovar” em toantes “de sempre”; e, por fim, ser, simultaneamente,
um e muitos, a depender do sistema de relações evocados.

Notas
1 (SECTIONALISM, 2018).

2 E, por tabela, na ciência do índio.

3 Trataremos melhor dessa conceituação nas sessões seguintes.

4 Ainda sobre a importância da inserção do Toré na comunidade Kiriri, uma


fala de Suelí (liderança), também é marcante: “[...] foi o Toré que deu for-
ça pros índio lutar [...], e os encanto proteção, né, protegendo e abrindo
os caminho”.

5 “[...] a ciência do índio que é o que dá a identidade dos índios” (BATISTA,


1991, p. 123 apud CARVALHO, 1994, p. 7).

6 Ao caboclo faltariam os diacríticos de indianidade; por outro lado, sua


não integração social parece ter caráter étnico, dado que são diacríticos
étnicos negativos (e não detentores de direitos) que são elencados para
a distinção (REESINK, 1983).

7 É o entendimento na “ciência” que possibilita a uma pessoa – necessaria-


mente – indígena acessar mais integralmente o “segredo”: “A defesa do se-
gredo parece recorrente no nordeste. No segredo, espaço de convergência
da experiência religiosa com a experiência de ser índio, reside a presumida
especificidade cultural” (CARVALHO, 1994, p. 7, grifos da autora).

8 Parte da resposta de um interlocutor Kiriri para a pergunta sobre o que vi-


ria a ser “doença de índio” e a diferença dessa para outros tipos de doença.

9 Bem como do não indígena que, se encontrando no território, por acaso


estabeleça – mesmo sem o perceber – um contato direto e “não traduzi-
do” com algum encanto.

179
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

10 As mestras ou “carnais” são aquelas pessoas, geralmente mulheres, que


incorporam ou “enramam” os encantos que se manifestam no Toré.

11 Como uma espécie de institucionalização da “ciência do índio” enquanto


ferramenta cosmopolítica coletiva, ou seja, retirada do plano da ação in-
dividual dos “trabalhos” pelos entendidos e rearticulada como símbolo
étnico direcionada às relações e distinções interétnicas. Que passam a
operar alterações nas relações internas ao povo. É o que se observa, no
caso dos Kiriri, com o “coador” (CARVALHO, 1994).

12 De caráter individual, que misturariam os encantos – vivos – dos “espí-


ritos de morto” que “não são coisa de índio”.

13 Ao afirmar que, no local onde foi escolhido para sediar o terreiro geral,
ele havia enterrado uma “doença”, correndo sério risco de recontrai-la
se lá retornasse.

14 Temática aprofundada melhor em monografia de conclusão de curso


(CARDOSO, 2018).

15 Exemplo disso é o tratamento, dado por muitos índios, aos caciques


mais novos que, com poucas famílias sob sua “liderança”, não conse-
guem organizar um Toré próprio: “caciques sem Toré”.

16 Segundo o Pajé Adonias, quando confrontado por um desses “índios


do Amazonas ou Mato Grosso” sobre a legitimidade de sua indianida-
de, ele retruca: “somos índio, sim, rapaz, temos nossa ciência também,
nossos encantos”.

17 Que leva à proibição dos já mencionados “trabalhos” particulares que en-


volvessem entidades tidas por não indígenas. A desobediência dessa nova
normativa podia vir a ser punida com a expulsão e consequente não reco-
nhecimento da condição de índio Kiriri do indivíduo que desobedecesse.

180
XAMANISMO E COSMOPOLÍTICA: ‘CULTURAS’ E ETNICIDADE NO POVO KIRIRI
Gabriel Cardoso e Vanessa Morais

REFERÊNCIAS
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PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

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182
CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGE-
NAS NO NORDESTE BRASILEIRO,
UM ESPELHO INFINITO
Amiel Ernenek Mejía Lara*

CATEGORIAS COMUNS
Este capítulo é parte de uma reflexão maior que faço há
algum tempo sobre perguntas que podem ser apresen-
tadas para este ensaio da seguinte maneira: o que os in-
dígenas e seus movimentos – entendendo movimentos
no sentido amplo e não apenas político – estão questio-
nando às sociedades envolventes? E o que esses indíge-
nas estão nos propondo quando incluem nas suas locu-
ções categorias comuns às usadas pela antropologia?

As repostas às perguntas anteriores levaram já a disci-


plina a reflexões próximas do consenso. Nelas, afirma-se
que, quando os movimentos indígenas usam conceitos
comuns ao indigenismo, à antropologia ou ainda à lega-
lidade, como podem ser “cultura”, “etnia”, “tradicional”,
“indígena”, “território” etc., essas categorias experimen-
tariam uma transformação, adquirindo, no refluxo, novos
usos e significados.

*. Graduado em antropologia social pela Escuela Nacional de Antropología e Histo-


ria (ENAH) - México (2008), com mestrado (2012) e doutorado (2017) em antropo-
logia social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente, faz
pós-doutorado (2018) na UFBA, como bolsista do PNPD/CAPES, onde desenvolve
a pesquisa “Sangue misturado: uma análise antropológica das relações de alteri-
dade entre os Tupinambá de Olivença”. Trabalha com temas como a comparação, o
pensamento crítico latino-americano, as epistemologias indígenas, os movimen-
tos políticos indígenas na América Latina, assim como os processos de contrain-
venção indígena.
E-mail: ernenek13@gmail.com.
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

Na antropologia, essas reflexões abririam caminhos importantes


para refletir além da semântica e dar o lugar de relevância à prag-
mática. Essa virada se pode perceber, por exemplo, no entendido
da categoria de apropriação, a qual aduze, em um sentido, que os
termos exógenos penetram – colonizam – com conteúdos externos
os sentidos e as línguas indígenas transformando-as, mas também
que os pensamentos indígenas internalizam e transformam os
sentidos iniciais tornando-os próprios.

Outro caminho tomado pela antropologia para analisar as práticas e


os usos divergentes das categorias mencionadas entre os povos indí-
genas é o entendido de que elas são um resultado residual de relações
sociais que levam à produção de contrastes que forjam as identidades
dos grupos étnicos em processos que tornaram a cultura, por exem-
plo, locuções políticas na demanda por direitos e instrumentos de
afirmação nas disputas por recursos materiais e simbólicos.

Porém, essas posições levaram também a algumas conclusões ge-


neralistas que diluem a complexidade das relações nas quais esses
povos indígenas, e seus movimentos, capilarizam o nosso mundo.
As reflexões anteriores tornam os processos de autoconsciência
coletiva em sua relação aos Estados Nacionais, a produção de uma
ideologia ou organização fundada nos agenciamentos das diferen-
ças, apagando que o centro desses contrastes políticos se produz
entre formas de viver, entender, experimentar e pôr em prática o
mundo. Também, apagam os árduos processos de entendimento e
tradução produzidos pelos indígenas e objetivados em figuras da
linguagem como metáforas, metonímias ou mesmo catacreses, as
quais imbuem, nas novas categorias, não apenas transformações
linguísticas e de significados, mas também a proposição de outros
mundos possíveis.

Com isso quero dizer que, nesse tipo de reflexões antropológicas


próximas ao consenso sobre como os indígenas capilarizam os
mundos que lhes foram alheios, é recorrente que se apresentem

184
CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO, UM ESPELHO INFINITO
Ernenek Mejía Lara

em nossos termos as relações que esses povos nos propõem. Se


seguimos os caminhos do consenso, os usos das categorias co-
muns imbuídas com os sentidos dados pelas locuções indígenas
seriam movimentos formais e gerais da transformação discursiva
na vernaculização das categorias ocidentais e na sua adequação
aos desiguais contextos interétnicos, e não o movimento radical de
proposição de novos sentidos e práticas de mundo.

NÃO É PRECISO IR MUITO LONGE


Não é preciso ir muito longe para ver as consequências que levam a
generalizar o intuito de contraste dado pelos indígenas na contesta-
ção das relações que compartilhamos – regularmente desiguais. Na
mesma reunião em que foi apresentada a comunicação em que se
baseia este capítulo, um grupo de pessoas colaborou para convidar a
Célia Tupinambá como uma das oradoras de abertura do congresso.
A inciativa foi, por um lado, para abrir espaço à denúncia sobre as
condições adversas em que os Tupinambá do sul da Bahia, e em geral
os indígenas do país, atravessam a virada conservadora e anti-in-
dígena do Brasil. Mas, o alvo principal foi dar espaço para que um
público amplo de antropólogos escutasse o que tinha a nos dizer es-
sa jovem mulher indígena, professora do Colégio Estadual Indígena
Tupinambá, impulsora de um projeto de universidade indígena na
região, presidente da Associação dos Índios Tupinambá da Serra do
Padeiro (AITSP), representante indígena do Brasil na Entidade das
Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das
Mulheres e, também, estreitamente relacionada com os encantados1
que, como ela diz, “iluminam e abrem o caminho”2.

Na apresentação, Célia relatou como o cerceamento de direitos e a


aversão à diversidade na virada conservadora do país – denúncia
enfática nas intervenções que lhe precederam – eram conhecidos de
longa data pelos Tupinambá na experiência de serem alvos do “ódio
e a raiva contra os povos indígenas” na sua região. Contou que foi em

185
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

condições similares às atuais que eles perderam, no século passado,


a maior parte de seu território, quando novas leis sobre a proprie-
dade e uma onda de discriminação contra os indígenas na região
levaram a que suas terras fossem reivindicadas como próprias por
alguns não indígenas, sem que eles pudessem recuperá-las.

Falou para a plateia que essa longa experiência sobre a violência


e o tênue limite entre legalidade, ilegalidade e legitimidade levou
os Tupinambá a saberem que, para eles, nada chegava “de mão
beijada”. Afirmou ainda que foi essa reflexão a qual os levou, pre-
cisamente, a determinarem que só “retomando o território” conse-
guiriam melhorar suas vidas. Uma árdua luta que foram tecendo
por décadas, criando parceiros fora do território, entre eles os
antropólogos, para ecoar sua voz e responder mais forte quando
seus direitos fossem perseguidos, o que hoje conseguem com mais
facilidade, garantido suas próprias vidas.

Explicou que a luta dos Tupinambá, como parte dos povos indíge-
nas no Nordeste, que conhecem “melhor que outros o que chega
com o branco, por ser os primeiros no contato”, não é apenas por
seus direitos, mas também pelos dos povos indígenas em geral, in-
clusive daqueles que nem imaginam o que pode vir para eles, como
os índios isolados.

Além dessas reflexões sobre como os Tupinambá veem a história


de sua luta e a de outros povos indígenas no Brasil, expondo sua
posição ante a adversa conjuntura política, Célia dedicou tempo
para indicar que a “luta e resistência” para eles vão “muito além da
vida e da origem da vida”.

Explicou para ao público que seu movimento contra o “extermínio


dos indígenas” passa pelo direito de “poder se alimentar”, pela sua
“soberania” como povo e por poder “continuar na terra”. Exemplificou
essa fala com a oposição que fazem às atividades de mineração e
exploração dos recursos naturais na sua região, a qual não é apenas

186
CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO, UM ESPELHO INFINITO
Ernenek Mejía Lara

contra as práticas que visam o lucro em detrimento da vida dos indí-


genas, mas também para “evitar que morram os lugares onde está a
cultura” e de onde tomam “o que precisam para os rituais”.

Elucidou ainda sobre os contrastes do que é para eles “terra” ex-


pondo o caso de um consórcio hoteleiro que tentou fazer um resort
no território Tupinambá com apoio do governo. O argumento das
autoridades e da empresa transacional a favor do empreendimento
dizia, aos indígenas, que atrairia empregos com a obra e o grande
hotel e que eles não seriam afetados nem no território nem em su-
as vidas, pois não morava ninguém no lugar proposto.

De fato, como Célia contou na apresentação, o lugar onde preten-


diam levantar o resort era uma zona de mangue onde não há mo-
radias Tupinambá, mas ela explicou que o motivo do vazio humano
e da oposição ao empreendimento era porque o mangue tinha o di-
reito de viver, assim como suas águas, seus animais e os encanta-
dos que ali moravam. Um argumento de preservação que, nas suas
palavras, tinha um fundo político já que “as matas e rios são como
o casco da tartaruga para um povo”, garantindo proteção, alimento
e acesso aos lugares onde apreendem a cultura que lhes permite
seguir vivendo como indígenas3.

O argumento de Célia foi assim uma tradução. A estratégia de fa-


la foi a de retomar as posições que, como movimento indígena,
compartilhava com os outros personagens da abertura e, desse
lugar-comum, tecer uma explicação para mostrar os motivos e
as relações presentes nas suas lutas. Tradução que, na sua busca
por ampliar sentidos e propor outras relações, terminou com um
canto para os encantados, uma prática comum entre os Tupinambá
quando se quer “abrir o caminho” de um encontro.

Porém, esse árduo esforço de explicação e tradução ao qual Célia se


dedicou para mostrar a complexidade das relações nas quais eles
fundam sua “luta” e “resistência” ecoou na plateia de antropólogos

187
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

no arcabouço de suas próprias explicações. Nas conversas sobre a


fala de Célia, os intercâmbios foram desde categorias como as de
“território”, “legalidade”, “Estado”, “natureza”, “cultura”, “cosmovisão”,
“cosmopolítica” até mesmo “ecologia”4.

Atribuiu-se à Célia uma fala em defesa dos “territórios tradicionais”


e contra o avanço, no Brasil, das “empreitadas neocoloniais que vi-
sam o lucro”. A sua intervenção também levantou debates sobre a
“ilegalidade” das políticas governamentais atuais e a “apropriação”
indígena do “modelado territorial de Estado fundado na constituição
de 1988” o qual “ainda garante suas culturas”.

Por outro lado, atribuiu-se à exposição de Célia ser um exemplo de


“culturas em equilíbrio com a natureza”, com princípios “ecológicos”
e “coletivistas” contrários ao mundo ocidental “individualista” base-
ado no “consumo e crescimento econômico capitalista”. Foi notado
também que suas afirmações concordavam com as de outras lutas e
povos tradicionais do continente que buscam reconhecer “os direitos
da natureza” e o “bom viver” como “princípios de mobilização política”.

Ainda, outros enfatizaram a importância de uma reflexão sistemáti-


ca trazida pelas “cosmovisões indígenas holísticas que questionam
o mundo moderno ocidental” e falaram da sua relevância para “des-
colonizar o nosso pensamento”, destacando como a potência das
práticas “políticas e cosmopolíticas” desses povos mantém “princí-
pios que não separam o mundo natural e o mundo social”.

Contudo, as diversas interpretações5 da fala de Célia não eram in-


teiramente o que ela estava propondo, porém, não eram afirmações
equivocadas. Eram de fato uma conexão de mão dupla na qual ela
interpelava e traduzia as posições Tupinambá para uma plateia de
antropólogos – disciplina familiar aos indígenas no Brasil; do mesmo
modo que as recepções da sua fala por esses antropólogos, e suas
antropologias, se basearam nos decorreres de interpretações e re-
latos etnográficos de pesquisa, sustentados em práticas e retóricas
indígenas como as de Célia.

188
CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO, UM ESPELHO INFINITO
Ernenek Mejía Lara

O que essas interpretações obscureciam, e é isto que busco res-


saltar, era a desconsideração da relação que aí se estava produ-
zindo, dissipando o esforço de Célia em propor outros caminhos
interpretativos e a proposição de outras relações ao utilizar a plê-
iade de categorias usadas pelo seu movimento, mas também pela
antropologia.

ANTROPOLOGIAS EM CONTRAMÃO
Esforços como os de Célia Tupinambá na abertura do congresso, os
quais nem sempre são prestigiados por uma plateia atenta como
essa, levaram também já a antropologia a nutridos debates que
questionam as posições de uma disciplina imaginada autossufi-
ciente em suas teorias e suas práticas de saber.

Os questionamentos dessas antropologias em contramão a uma


antropologia disciplinar propõem alguns princípios – a partir de dife-
rentes posições teóricas e políticas – dos quais sublinho os seguin-
tes: por um lado, que a antropologia é em grande medida autoria dos
seus colocutores de pesquisa, já que “[n]ossos pretensos objetos
de estudo estão nos ensinando. Não estamos fazendo perguntas a
eles; eles é que estão nos fazendo perguntas” (FERRARI et al., 2011,
p. 969); por outro lado, que o saber da disciplina é simétrico ao dos
seus interlocutores, posto que antropologia é “um tipo específico de
atividade cultural e é precisamente esta atividade que define a dis-
ciplina” (RABINOW, 1992, p. 26, tradução do autor); e, um terceiro, em
que a antropologia não pode partir mais do princípio de observação
participante neutral – no sentido político e epistemológico – já que
“sua ‘participação’ social se tornou ao mesmo tempo condição e en-
quadramento de sua pesquisa de campo” (ALBERT, 2014, p. 133).

Nas antropologias dedicadas aos povos indígenas no Brasil, esses


princípios são destacados por duas grandes abordagens que reto-
mo aqui apenas para fins elucidativos e de sínteses, já que não pre-

189
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

tendo dar a elas o lugar de centro das viradas, como os afilhados


dessas posições tendem a fazer, mas apenas o de caminhos aber-
tos entre outros tantos mais que fora do Brasil fazem percursos
críticos paralelos ou análogos.

Uma dessas abordagens é a chamada “antropologia engajada” que


tem como causa pôr seu conhecimento ao serviço dos interesses e
dos problemas dos indígenas, desenvolvendo “atividades de me-
diação”, de “documentação”, de “orientação para ação” e de “etno-
grafias didáticas”, se retomamos a categorização de Bruce Albert
(2014, p. 132-133), mas podemos ainda dizer de produtos de divul-
gação e de comunicação de sua realidade e problemas.

A antropologia “engajada” inverte – ou busca inverter – os termos


canônicos da disciplina nos quais os indígenas, em campo ou em
gabinete, são pacientes das descrições e interpretações. Nos ter-
mos dessa outra antropologia, os interlocutores de pesquisa pas-
sam a ter o lugar ativo da relação na qual os indígenas esperam que
“o trabalho que encomendaram ou incentivaram o antropólogo a
desenvolver conduza à legitimação de seu próprio projeto de em-
poderamento cultural e político” (ALBERT, 2014, p. 134

Essa alteração das relações canônicas da antropologia conduz


também a uma transformação epistemológica que “induz a um
deslocamento radical do foco através do qual a configuração e a
temporalidade dos espaços sociais eram apreendidas” (ALBERT,
2014, p. 136), levando o antropólogo que se engaja com seus anfi-
triões em campo – muitas vezes obrigado por eles – a compreender
que os sujeitos com quem pesquisa

[…] têm suas próprias pistas de desenvolvimento, eles sa-


bem o que querem fazer, eles querem transformar sua si-
tuação em vários aspectos, mas não para se transformarem
em brasileiros, americanos ou em homens do Ocidente, de
jeito nenhum. (LIMA; SMILJANIC; FERNANDES, 2008, p. 142).

190
CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO, UM ESPELHO INFINITO
Ernenek Mejía Lara

Outra abordagem que se destaca por propor princípios em con-


tramão da antropologia convencional é a chamada “antropologia
reversa” ou “reversível”, a qual defende uma dialética criativa entre
a insistência do antropólogo encontrar em campo as correspon-
dências dos seus debates acadêmicos e a produção dos seus inter-
locutores ao elaborar entendidos para as questões postas por ele
(WAGNER, 2010).

A “antropologia reversa”, associada, no Brasil, à noção de uma “an-


tropologia simétrica”, dá espaço para relações de mediação que
levam a uma coinvenção do saber antropológico nas reflexões que
os pesquisados fazem com a antropologia como fundo, daí sua
reversibilidade. Mas também reconhece a legitimidade e a equiva-
lência relativa entre os saberes trocados pelos interlocutores no
momento da pesquisa, daí sua simetria.

Os dois caminhos destacados representam, nas suas expressivas


diferenças, abordagens que dão um lugar ativo aos árduos pro-
cessos de entendimento e tradução feitos pelos indígenas quando
eles nos propõem outras relações. Caminhos que também permi-
tem, para este ensaio, mostrar os dois espelhos em paralelo que se
refletem mutuamente criando um efeito sem fim um do outro que
representa as proposições indígenas e as da antropologia.

As convergências epistemológicas que permitem esse espelho in-


finito podem ser enumeradas nos seguintes pontos:

1) que há uma intencionalidade dos povos indígenas para intervir


e mesmo controlar a antropologia em seu lugar de agente político
(na mediação de conflitos), jurídico (como um saber/poder legal e
de Estado) e de saber (como conhecimento legítimo dedicado ao
entendimento dos outros);

2) que o conhecimento da antropologia e os conhecimentos indíge-


nas têm a mesma legitimidade e uma equivalência relativa;

191
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

3) que a antropologia é atravessada criativamente pelos saberes


indígenas na coprodução do seu debate disciplinar.

CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS NO
NORDESTE BRASILEIRO
Como sínteses das epistemologias que defendem as antropologias
engajadas, reversíveis e simétricas, pode-se explorar a alegação
de que há uma antropologia indígena. Um dos motivos inegáveis
da afirmação é porque os pensamentos indígenas, mesmo sem as
pretensões da disciplina, se sobrepõem às questões da antropo-
logia ao elucidar, por exemplo, sobre as relações entre humanos e
não humanos, entre nós e outros, entre alteridades e diferenças.
É um assunto trabalhado com o mesmo cuidado e dedicação nos
debates teóricos da etnologia e nas reflexões e práticas xamânicas
(CESARINO, 2014; VIVEIROS DE CASTRO, 2014).

Entretanto, esses percursos epistemológicos também dão motivo


para defender outro caminho que pode ser definido como contra-
-antropologias indígenas, compreendidas não apenas como a exis-
tência de uma antropologia outra, isto é, uma antropologia possível
“do ponto de vista dos índios” (VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 157),
mas como uma antropologia indígena que, a partir de seus pró-
prios termos de relação e comparação, produz práticas e reflexões
sobre os “pontos de embate cruciais entre seu mundo e o nosso”
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 542).

Entender as contra-antropologias indígenas como uma trama


possível para acompanhar as intencionalidades e os termos dos
embates que os indígenas pretendem estabelecer ao capilarizar o
mundo que compartilhamos permite uma importante crítica para
responder – desde essa generalidade relativa – às perguntas ini-
ciais do capítulo, sem com isso embaçar os árduos processos de
tradução indígena, nem apagar as emaranhadas relações que há
entre esses povos e a antropologia disciplinar.

192
CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO, UM ESPELHO INFINITO
Ernenek Mejía Lara

Não obstante, esses percursos críticos podem atingir uma condição


ainda mais densa quando acompanhamos as contra-antropologias
no Nordeste indígena. O motivo é porque esse universo de relações
torna evidente que as proposições deles não são apagadas por
equívocos, mas num quadro de relações coloniais e de colonialida-
de6 das quais tanto os indígenas como o saber/poder da antropo-
logia são parte. Assim, as contra-antropologias no Nordeste indí-
gena nos arrastam a estender as críticas dos caminhos abertos por
antropologias críticas como as engajadas, reversíveis e simétricas.

No percurso dessa intensificação contra-antropológica, é preciso


partir de alguns supostos: um deles é que no Nordeste indígena se
produz de fato uma antropologia outra. A afirmação, aparentemente
sem grandes alcances, é central para quem busca acompanhar o que
os movimentos indígenas estão nos propondo, já que a condição de
alteridade para os povos indígenas nessa trama de relações é negada
de forma recorrente como parte da colonialidade do saber e do poder7
nos processos históricos de invenção dos outros (MEJÍA LARA, 2017).

Por outro lado, é preciso supor que as contra-antropologias indí-


genas no Nordeste encontraram, parafraseando a Albert (2014),
pontos de embate nos lugares onde se objetiva o controle sobre
as alteridades indígenas nessas relações interétnicas como são
as categorias de “cultura”, “terra indígena”, “etnia”, “mistura” etc.
Categorias que deveriam levar a decifrar os movimentos indígenas
como processos de proposição de relações outras, e não apenas a
apropriação de locuções políticas que instrumentalizam demanda
por direitos baseados na afirmação de identidades sob a diferença
indígena – a propósito, sempre questionada no Nordeste.

Assim, a crítica a qual nos arrastam as contra-antropologias indí-


genas no Nordeste brasileiro acompanha, mas também contesta,
as questões das antropologias que retomei antes para fins eluci-
dativos e de sínteses. Ampliando os exercícios críticos, pode-se
contestar as posições reversíveis que, ainda quando seus saberes

193
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

estão abertos à relação e à coprodução sob o princípio de simetria,


seu interlocutor oculto é a análise antropológica. É uma questão
driblada em parte pela antropologia engajada ao tornar seu saber
um tipo de conhecimento técnico que se abre à relação para seguir
os termos que os indígenas lhe sugerem – ou impõem –, median-
do a seu favor nas condições postas pelos diversos agentes que
afrontam as existências objetivas e subjetivas indígenas.

Do mesmo modo, ao pôr como fundo os movimentos indígenas


no Nordeste, pode-se fazer um exercício crítico às posições en-
gajadas. O questionamento aqui é que elas voltam à antropologia
apenas de forma reflexiva e como um produto residual e indepen-
dente elaborado nas regras da disciplina, subestimando a política
das/nas epistemologias e o seu lugar nas práticas antropológi-
cas na constituição de sua participação em campo, como sugere
a reversibilidade.

Os pontos cegos em abas das epistemologias dessas antropolo-


gias críticas aparecem pelo contraste que obriga a trama histórica
dos indígenas no Nordeste e suas contra-antropologias. O motivo
é porque, nesse universo de relações, não se pode adjudicar ao sa-
ber antropológico ser um conhecimento independente, com regras
próprias e sem importância para os indígenas. Pelo contrário, a dis-
ciplina antropológica é aí constitutiva das experiências indígenas
com a sociedade envolvente, objetivadas, por exemplo, no lugar
de um saber/poder de Estado que acompanhou as práticas indige-
nistas de assimilação e, décadas depois, os laudos que conferem a
eles direitos como indígenas.

Os espelhamentos provocados pelas contra-antropologias no


Nordeste indígena às antropologias críticas aparecem também
porque, nesse lugar, elas não se revertem à antropologia como su-
posições teóricas e epistemológicas, mas nas contestações diretas
dos movimentos indígenas às práticas disciplinares e às categorias
usadas pela antropologia, executadas num vocabulário comum a

194
CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO, UM ESPELHO INFINITO
Ernenek Mejía Lara

índios, antropólogos, leis, funcionários públicos, políticos, políticas


governamentais, entre outros tantos.

UMA CONTRA-ANTROPOLOGIA NA TRAMA HISTÓRICA


DOS TUPINAMBÁ DE OLIVENÇA
Para acompanhar o movimento de contestações das contra-an-
tropologias indígenas à antropologia disciplinar, é importante
conduzir suas possibilidades críticas seguindo suas tramas8, sob
pena de aparentar uma generalidade que confere omnipresença à
antropologia, e não apenas uma relação específica que, em outras
tramas, pode ser operada por outras práticas e saberes, contesta-
das e contrainventadas do mesmo modo pelos indígenas.

A trama histórica que trago aqui é a dos Tupinambá de Olivença a


qual acompanho já algum tempo. Desde esse lócus, podem-se ree-
laborar as perguntas iniciais do capítulo na seguinte questão: o que
o movimento tupinambá do sul da Bahia está propondo sobre as
práticas e as definições das alteridades indígenas no Brasil?

Para quem não conhece o processo, o movimento indígena dos


Tupinambá surgiu no sul da Bahia na década de 1990, alcançando
um dos seus ápices organizativos em 1999 ao demandar ao Estado
brasileiro a demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença;
em 2001, os Tupinambá foram oficialmente reconhecidos como
indígenas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e, dez anos
depois, em abril de 2009, concluiu-se a primeira etapa de demar-
cação do seu território com a publicação do resumo do relatório
de identificação e delimitação da Terra Indígena no Diário Oficial da
União (MEJÍA LARA, 2017; VIEGAS, 2018). Mas, o processo político
e legal foi acompanhado pelo conflito e rodeado por fortes ques-
tionamentos à autenticidade indígena dos Tupinambá, este último
é um dos motivos para manter paralisada a homologação do ter-

195
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

ritório, ainda sem existir nenhum obstáculo técnico ou legal para


isso. As autoridades argumentam até hoje estudar como demarcar
a terra aos Tupinambá de Olivença para evitar um grande conflito
fundiário, marcado pelas acusações de posseiros e fazendeiros
não indígenas de ser uma demanda ilegítima por essa população
estar “misturada”.

O processo do movimento tupinambá não é, porém, singular e se


insere nas lutas recentes dos indígenas no Nordeste9, as quais, ao
longo da segunda metade do século XX, e com maior intensidade
no seu fim, se tornaram uma questão. Para as autoridades, os pro-
blemas surgiram pelas demandas de Terras Indígenas em espaços
de conflito históricos marcados pela discriminação e pelo esbulho
aos indígenas, levantando fortes tenções e enfrentamentos de
todo tipo. Por sua parte, para um grande número de especialistas,
as questões surgiram pelo aparecimento de movimentos indíge-
nas entre populações consideradas “misturadas” com o resto rural
brasileiro nos aspectos sociais, culturais e/ou fenotípicos.

Foi assim que os movimentos indígenas no Nordeste abriram o


percurso de contestações às definições canônicas das alterida-
des indígenas no Brasil. As respostas, simultaneamente políticas
e conceituais, contestaram principalmente o senso comum que as
teorias antropológicas e as práticas indigenistas ajudaram a con-
solidar, no qual se entende que os povos indígenas sucumbiriam
irreversivelmente ao contato ocidental e/ou moderno.

O senso se baseia na leitura linear e unidirecional dos processos


históricos indígenas compreendidos como transcursos que come-
çaram numa originalidade prévia, seguida pela decadência e acul-
turação no contato com os não indígenas para, finalmente, serem
integrados ao resto da população e à vida social, econômica e cul-
tural nacional. Nesse entendido, o desaparecimento dos indígenas
e de seus “remanescentes” só poderia ser detido com políticas de
proteção de Estado, por governos ou pela própria sociedade.

196
CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO, UM ESPELHO INFINITO
Ernenek Mejía Lara

Darcy Ribeiro resume bem essa imagem na década de 1970, quando


escreveu sobre o tema e definiu os indígenas no Nordeste sob uma
fronteira ambígua marcada pela desigualdade social, mas diluída
pela diferença cultural com os não indígenas:

Embora convivendo com as populações sertanejas vizi-


nhas, delas estavam separados pela mais viva animosida-
de e pelo desprezo mais profundo. […] Malgrado as condi-
ções de penúria e de opressão e, provavelmente, por causa
delas, esses resíduos da população indígena do Nordeste
continuavam identificando-se como índios, mesmo depois
de esquecerem a língua tribal e a maior parte da cultura
antiga. (RIBEIRO, 1970, p. 57).

Já na virada dos movimentos indígenas na região, Pacheco de


Oliveira mostrou o quadro de “surgimento de novas identidades
indígenas” em um dos seus primeiros escritos sobre o tema, no
começo da década de 1990. A preocupação manteve as questões
da não distintividade, mas abriu as perguntas para a produção das
subjetividades étnicas que tomava conta do debate político e an-
tropológico do momento:

[...] surgiu na região uma alternativa étnica para alguns


setores ameaçados do campesinato, fato que decorre da
implantação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na região
[…] e do novo campo indigenista construído a partir do fi-
nal da década de 1980, com a atuação da Fnai, do Cimi e de
entidades não governamentais.

[…] reduzir o fenômeno étnico a sua dimensão territorial é um


equívoco, pois as lutas comuns e os rituais partilhados podem
ser suficientes para dar àquelas identidades uma grande im-
portância normativa, afetiva e valorativa, criando condições
para que surja em torno de aqueles sujeitos históricos uma
‘comunidade imaginada’. (OLIVEIRA, 1993, p. 32-34).

As questões levantadas pelos dois autores, que representam a pro-


dução de um saber antropológico aplicado, mostram os problemas
aos quais o indigenismo e a antropologia estavam sendo arras-
tados pelos movimentos indígenas no Nordeste. As elaborações

197
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

buscaram explicar o que estava acontecendo na região e definir,


nos termos de um debate disciplinar e legítimo, uma interpretação
política possível a favor dessas populações.

Nessa trama, a antropologia defendeu um universo específico de


relações em descompasso ao das alteridades indígenas canônicas
no Brasil, representadas pelos indígenas do Norte. A distinção do
Nordeste na antropologia e no indigenismo assentou, assim, a ava-
liação de uma distintividade difícil de enxergar nos termos de uma
cultura essencializada e estática, frisando um histórico colonial
onde se foi produzindo a falta de distinção e processos identitários
independentes aos de uma cultura ou língua ameríndia.

Para os índios no Nordeste, anotou-se pela antropologia, por um


lado, os processos históricos de perseguição e controle das popu-
lações indígenas, os quais explicavam a ausência dos diacríticos
comuns a outros indígenas na tríada de opressão/aculturação/
resistência, e, pelo outro, os processos de territorialização que tor-
naram os espaços ocupados por eles no decorrer colonial e de for-
mação nacional um caminho preponderante para expor e manter
direitos coletivos, na tríada esbulho/território/identidade.

Essa reinterpretação, puxada e tecida pelos movimentos indíge-


nas, se tornou um consenso na antropologia e no indigenismo ao
explicar o Nordeste indígena, mas também se converteu em um
importante argumento dos movimentos indígenas. Entre caciques
e lideranças tupinambá, é recorrente escutá-los dizer, igual ao que
Célia disse na abertura do congresso, que os índios do Nordeste
são os que melhor entendem as consequências do colonialismo
e da formação nacional brasileira por serem os primeiros a se
relacionarem com os brancos; também dizem que, sem o terri-
tório, não poderiam existir como indígenas por ser nesse espaço
onde conseguem se reproduzir como povo; ou ainda, ao primeiro
aviso de questionamento de sua pertença tupinambá, trazem o
arcabouço legal da autodeclaração citando a Convenção n° 169 da
Organização Internacional do Trabalho ou o Capítulo VIII, Dos Índios,
da Constituição de 198810.

198
CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO, UM ESPELHO INFINITO
Ernenek Mejía Lara

É nesse universo de relações onde se produzem, precisamente, as


contra-antropologias indígenas no Nordeste e onde os Tupinambá
de Olivença contestam, com seus árduos processos de tradução, o
lugar de fala da disciplina e a produção de suas reflexões. Assim,
a “luta” tupinambá pode ser lida, de um lado, como um processo
legítimo de afirmação étnica entre sujeitos coletivos marcados
pelas tramas históricas coloniais e de decorrente colonialidade,
onde faz sentido produzir contrastes de diacríticos para afirmar as
identidades indígenas nos termos impostos, em um transcurso de
apropriação do vocabulário que tornou a cultura e o território as lo-
cuções políticas preponderantes para demandar direitos coletivos.
Mas, pelo outro, pode ser lida como um movimento contra seu “ex-
termínio” em que sua “luta e resistência” vão “muito além da vida
e da origem da vida”, a qual passa por “poder se alimentar”, por ter
“soberania” como povo e por “continuar na terra” para “evitar que
morram os lugares onde está a cultura” e para manter “as matas e
rios [que] são como o casco da tartaruga para um povo”11.

A anterior afirmação é, sem dúvida, política – e cosmopolítica – e abre


a rota das contestações ao saber/poder da antropologia imbuído nas
práticas indigenistas estatais e não governamentais que definem o
que é e não é indígena. Mas, essa contestação poderia ser também
lida da seguinte maneira: podemos ser indígenas tupinambá inde-
pendentemente de estarmos misturados ou termos perdido parte do
nosso espaço vivido e temos, para isso, nossas próprias explicações.

SANGUE INDÍGENA, CULTURA INDÍGENA E MISTURA: UMA


CONTRA-ANTROPOLOGIA DOS TUPINAMBÁ DE OLIVENÇA
Pela ênfase dada no movimento tupinambá às reflexões sobre o
que os torna indígenas, uma parte importante da sua contra-antro-
pologia opera com a categoria de “sangue indígena”, recorrente ao
expor seus entendidos sobre a produção da pessoa e as relações
de parentesco, assim como para responder ao constrangimento de

199
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

se definir como indígenas nos termos esencialistas da legalidade e


da burocracia do indigenismo oficial.

A noção de “sangue indígena” permite também aos Tupinambá in-


terpretar e expor os transcursos voluntários e obrigados de “mis-
tura”. Percursos que, segundo seus relatos, aconteceram nos pro-
cessos de captura e aldeamento; de fuga e emancipação escrava
de africanos e indígenas às matas do sul da Bahia; e, mais recente,
pelo esbulho e confinamento dos indígenas a espaçosos cada vez
menores na expansão das plantações de cacau12 e fazendas de di-
versos tamanhos, as quais trouxeram pessoas de diferentes luga-
res do Brasil na busca de terra ou trabalho.

As noções “sangue indígena” e “mistura” incluem ainda a de “cultura


indígena”, uma tríada que, em conjunto, ajusta uma epistemologia
que pode ser descrita com a metáfora do espelho infinito: espelhos
em paralelo que se refletem mutuamente criando um efeito sem
fim uns dos outros, gerando a indistinção do lugar inicial do reflexo.

Os espelhamentos entre as categorias de “sangue”, “cultura” e


“mistura” ocorrem de diversas maneiras. Um deles acontece entre
as sustâncias indígenas internas, o “sangue indígena”, e a objetiva-
ção indígena externa, a “cultura indígena”. Aristeo, uma liderança
Tupinambá da Serra das Trempes, afirma o seguinte sobre como
alguém se torna indígena, ele diz: “O índio nasce conhecendo suas
coisas, é um dom; como dizem ‘o homem e a mulher vai fazendo
e a criança aprendendo’. Ele aprende vendo fazer uma cesta, uma
esteira, um mundel, um colar, porque o índio nasce conhecendo as
coisas dos índios” (Aristeo, Serras das Trempes, 2011)13.

A afirmação, relativamente simples, dá um lugar central ao apren-


dizado da cultura na (re)produção das formas de vida indígenas,
mas há um aviso que ele faz na sua fala e que não pode escapar
porque é aí onde se encontra o efeito dos espelhos em paralelo. A
sutileza está no aprendizado das práticas indígenas como conse-

200
CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO, UM ESPELHO INFINITO
Ernenek Mejía Lara

quências de um dom indígena, as quais, por sua vez, permitem a


eles se tornarem índios ao apreenderem a cultura indígena.

Em uma interpretação breve e sob o debate canônico de cultura na


antropologia, pode-se entender que o que torna a um Tupinambá
indígena é o dom de aprender a cultura ao seu redor no processo
de observar e fixar o conhecimento ao repetir sua elaboração como
aprendiz. Porém, o detalhe está em que essa cultura é singular e se
encontra aí exclusivamente para os indígenas, além de que ela não
é apenas material.

Gilmara, professora de ensino básico da escola Tupinambá em


Serra das Trempes, explica o seguinte: “Quem é indígena sabe disso
[das coisas de índio] porque ele fala com os parentes mortos que
moravam nesses lugares e nós aprendemos com eles, dos espíritos
[encantados] que se passam de uma pessoa para outra” (Gilmara,
Serra do Serrote, 2015)14.

Como Gilmara o expressa, a cultura indígena é também uma es-


pécie de repositório transmitido pelos “parentes mortos”, os quais
compõem um universo de não vivos que inclui “índios bravos”, “en-
cantados”, “donos” etc., os quais tramitem seus saberes aos índios
vivos. Um patrimônio imaterial que sustenta as relações nos espa-
ços vividos onde eles se podem manter Tupinambá.

Nesse caminho de explicações, o “sangue indígena” é um tipo de


chave à cultura tupinambá que garante o acesso ao universo in-
dígena, produzido nas tramas históricas dos lugares vividos por
humanos e não humanos indígenas, precisamente no espaço onde
hoje reivindicam a Terra Indígena do Tupinambá de Olivença.

O motivo de o “sangue indígena” ser essa chave é porque a cultu-


ra não é aqui apreendida de forma universal, como a antropologia
sugere. A diferença, que não é menor, se pode distinguir no efeito
do espelho infinito entre o “sangue indígena” e a “cultura”, o qual se

201
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

declara em expressões como a de “ser puxado pelo sangue”, uma


frase usada quando se quer explicar a conexão sensível da pessoa
com as formas de vida, objetiva e subjetiva, indígena. Isto é, a cul-
tura indígena se mostra para as pessoas indígenas, objetivando, no
reflexo, que alguém que vive na cultura indígena é uma pessoa com
sangue indígena.

Valdinete, uma das professoras de cultura indígena no colégio


Tupinambá em Sapucaeira, narra em uma entrevista a Patricia
Couto como é ser “puxado pelo sangue”. Ela diz ter experimenta-
do um chamado pouco antes de participar nos protestos contra a
“comemoração dos 500 anos do descobrimento” em Porto Seguro:

[…] eu sentei assim e fiquei pensando: antes a gente não


tinha assim um ritual que falasse assim da aldeia da gen-
te, aí eu fiquei pensando e dormi... aí quando foi de noite
passou assim aquelas coisas, aquela visão assim, sabe? Aí
quando foi no outro dia, dentro do ônibus, a gente tava via-
jando e de repente eu cantei aquela coisa que veio assim,
aquela visão que veio assim, e falou, aí eu cantei e deu cer-
to!! (COUTO, 2003, p. 76).

O espelhamento sem princípio nem fim entre o “sangue indígena” e


a “cultura indígena” decifra o porquê, sob a contra-antropologia tu-
pinambá, a descontinuidade da cultura indígena e novamente a sua
prática, não é um processo de perda/aculturação/resistência e de
apropriação/invenção/demanda, mas apenas um ato de atualização
de relações que os mantém e os distingue como indígena e Tupinambá.

Entretanto, a contra-antropologia tupinambá propõe ainda mais


num outro espelhamento infinito que há entre o “sangue indígena”
e a “mistura”, onde se dispõe um dos princípios de alteridade e de
constituição dupla da pessoa tupinambá: de um lado, o sangue do pai
e, do outro, o sangue da mãe. Um entendido do sangue ou, melhor di-
to, dos sangues que tem como princípio dado ser fluídos misturados.

202
CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO, UM ESPELHO INFINITO
Ernenek Mejía Lara

Contudo, a mistura, para os Tupinambá, não é uma proposição es-


sencialista na que se associa o corpo – objetivado como fenotípico
– à cultura, como sugere um senso comum que racializa as identi-
dades. É, pelo contrário, uma relação relativa de correspondências
que se tornam óbvias umas às outras num deslocamento de flui-
dos no qual o sangue indígena movimenta as forças que garantem,
no meio da multiplicidade interior e exterior, o vínculo das pessoas
indígenas ao que é indígena.

Essa possibilidade abre um dos caminhos de filiação de pessoa ao


coletivo indígena no qual a intensidade do seu sangue adquire valor
indígena ao garantir sua relação com as formas de vida e cultura
indígena. Isto é, o sangue indígena como um diacrítico da alteridade
indígena é importante apenas como o veículo de experiências que
os vincula ao entramado de relações indígenas, e não como a forma
de um corpo externo que expressaria sua pertença tupinambá.

Esses princípios de alteridade levam a afirmações como as de Day,


da Serra do Padeiro, quem defende que “o sangue limpo, limpo
mesmo aqui não tem, mas tem uns que é mais chegado” (COUTO,
2008, p. 71). Novamente, numa interpretação breve, pode-se ava-
liar que essa afirmação é parte da reflexividade história dos “índios
misturados” no Nordeste, levados a indistinção social, cultural e/
ou fenotípica e a uma emergência de identidades baseada no realce
de diacríticos contrastivos da sua diferença.

Porém, o entendimento do sangue e mistura para os Tupinambá


é radical e pode provocar, inclusive, fortes falas que mostram as
consequências do choque de entendidos, mesmo no desapreço pe-
lo indígena entre alguns Tupinambá que buscam evitar essa filia-
ção, consequência do desprezo por eles entre muitos não indígenas
da região. A fala que ajuda a mostrar essa relação é novamente de
Aristeo quem relata uma série de intercâmbios com seu sogro, con-
cluindo o seguinte: “cansei de escutar de meu sogro dizer que se ele
pudesse usaria uma seringa para tirar todo o sangue de caboclo, de
índio, que ele tinha” (Aristeo, Serra das Trempes, 2011)15.
A preocupação do sogro de Aristeo, um homem afastado da roça e

203
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

que mora numa cidade próxima no estilo de vida urbano, é – como


foi relatado – o anelo de não ser mais “caboclo, índio”. Contudo, o
pensamento acompanha os entendidos tupinambá dados ao san-
gue indígena como uma sustância que constitui o corpo indígena
e puxa essa relação da qual o sogro de Aristeo buscava se afastar
definitivamente, mesmo ele estando distante das práticas cultu-
rais e das formas de vida consideradas por ele mesmo indígenas.

Os caminhos contrastados até aqui, que se espelham mutuamente


e produzem alargamentos críticos uns dos outros, poderiam levar
a algumas conclusões que sintetizem o antes dito. Mas, parece-me
que os percursos devem dar lugar às próprias conclusões da con-
tra-antropologia tupinambá, e essas conclusões levantadas por
algumas décadas por esse movimento se podem apresentar, para
o propósito do capítulo e em um movimento de reversibilidade, da
seguinte forma: mesmo com corpos variados, somos indígenas por-
que nosso sangue indígena está nos puxando à cultura que está nos
lugares onde vivemos. Essa afirmação que os Tupinambá parecem
estar propondo-nos talvez possa ecoar e dar outros sentidos às tra-
mas históricas de existência e luta dos povos indígenas no Nordeste.

Notas
1 De forma geral, os “encantados” são entidades não humanas ou ex-huma-
nas que estão ao mesmo tempo em diversos lugares e temporalidades. Por
sua potência e agência, têm a possibilidade de intervir no mundo dos vivos,
comunicando suas intenções em elucidações, sonhos ou incorporações. A
pluralidade dos sentidos dados aos “encantados” pode referir a índios an-
tigos, donos de lugares ou animais, criadores de elementos naturais, mas
também pessoas que viveram e se “encantaram” transcendendo a morte.

2 Esta e as seguintes informações orais de Célia Tupinambá, referidas


com aspas, foram coletadas durante a fala de abertura da 6ª edição da
Reunião Equatorial de Antropologia, em dezembro de 2019.

3 A cultura tem uma relação direta como a produção do espaço e pode ser
entendida nesse sentido como as práticas que produzem certas formas

204
CONTRA-ANTROPOLOGIAS INDÍGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO, UM ESPELHO INFINITO
Ernenek Mejía Lara

de viver, as quais se fixam nos espaços vividos permanecendo no tempo


e as quais se objetivam pelas entidades não vivas e não humanas que se
mantêm ocupando esses lugares.

4 Esta e as seguintes informações orais, referidas com aspas, foram cole-


tadas no intercâmbio com diversos antropólogos durante a conferência
de abertura da 6ª edição da Reunião Equatorial de Antropologia, em de-
zembro de 2019.

5 Sem dúvida, estou fazendo aqui também um recorte, uma generalização


e uma interpretação, sob o esforço de tornar visível a relação.

6 No debate decolonial, faz-se uma distinção entre o colonial e a colonia-


lidade, esta última se refere aos sentidos e práticas coloniais imbuídos
em práticas pós-coloniais. Ver: Lander e Castro-Gómez, 2003.

7 Quijano propõe um entendido da diferenciação colonial e epistêmica onde


a colonialidade se transfere do âmbito do poder para o campo do saber,
construindo a colonialidade do saber que age de forma a manter a hegemo-
nia eurocêntrica como perspectiva superior do conhecimento relacionada à
colonialidade do poder que surge de um novo padrão de organização mun-
dial do trabalho que se baseia na classificação social mundial sob a ideia de
raça que ultrapassou o próprio sistema colonial (QUIJANO, 2003).

8 Entendo tramas tanto no sentido narrativo quanto no de trajetos sobre-


postos que tecem um entramado (STRATHERN, 2006, p. 44-51; p. 143-151).

9 Desde a década de 1970, esses povos iniciaram mobilizações políticas


que trouxeram postos indígenas à região constituindo um novo mo-
mento nos processos de movimentos indígenas na região. A partir da
década de 1980, foram ganhando corpo reivindicações como as feitas
por “os Pitaguary no Ceará, os Tumbalalá, os Pipipã em Pernambuco. Os
Tupinambá na Bahia, os Kalancó (1998), os Karuazu (1999), os Catókinn
(2001), todos em Alagoas, e mais recentemente tornou-se público o res-
surgimento dos Koiupanká também naquele Estado” (SILVA, 2003, p. 43).

10 Na Constituição de 1988, os direitos dos índios estão nos Título VIII, Da


Ordem Social, e no Capítulo VIII, Dos Índios.

11 Estas informações orais de Célia Tupinambá, referidas com aspas, foram


coletadas durante a fala de abertura da 6ª edição da Reunião Equatorial
de Antropologia, em dezembro de 2019.

12 O cacau se tornou o maior produto na região de Ilhéus pelo preço que


adquiriu na Europa no fim do século XIX e início do século XX. O sistema

205
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

de plantações extensas num sistema de monocultura, principalmente


para exportação, empregava o trabalho assalariado da mão de obra ba-
rata, que foi amalgamada nessa região para um sistema social e político
acompanhado do coronelismo.

13 Informação oral coletada em entrevista com Aristeo Amaral, realizada


em Serras das Trempes, BA, em 2011.

14 Informação oral coletada em entrevista com Gilmara Batista, realizada


em Serra do Serrote, BA, em 2011.

15 Informação oral coletada em entrevista com Aristeo Amaral, realizada


em Serras das Trempes em 2011.

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208
TRANSFORMAÇÕES, HISTÓRIA
E CULTURA NA ETNOLOGIA DOS
POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE
José Glebson Vieira*

CAMPO INTELECTUAL, “VIRADA CULTURALIS-


TA” E POLÍTICA LINGUÍSTICA
Este capítulo tem como objetivo discutir o campo inte-
lectual aqui denominado Etnologia dos Povos Indígenas
do Nordeste. A reflexão partirá do controverso conceito
de aculturação e de seu papel na formação do referido
campo intelectual, para, em seguida, apontar as ela-
borações e os deslocamentos conceituais produzidos
a partir dele. A crítica aos estudos de aculturação e ao
conceito de assimilação e o relativo abandono de tais
conceitos por parte da etnologia pela crítica à ideia de
cultura e dos efeitos da aculturação foram importantes
para a superação da chamada “fase pessimista” que
caracterizou a etnologia no Brasil, notadamente aquela
cujo interesse incidia nos povos indígenas do Nordeste,
tidos então como desaparecidos ou misturados e, con-

*. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (1999), mes-


tre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná (2001) e doutor em
Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (2010). É Professor Adjunto do
Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Desenvolveu pes-
quisa junto aos Potiguara da Paraíba e, atualmente, realiza pesquisa junto às comu-
nidades indígenas dos Caboclos (Açu/RN) e dos Potiguara do Sagi/Trabanda (Baía
Formosa/RN). Tem experiência na área de antropologia, com ênfase em etnologia
indígena, antropologia política e antropologia das populações afro-brasileiras.
E-mail: jglebson@gmail.com.
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

sequentemente, destituídos de interesse etnográfico e teórico. A


intenção é refletir sobre o conceito de aculturação e as implicações
da gramática de assimilação nos estudos etnológicos sobre mu-
dança cultural, nos projetos étnico-políticos de grupos indígenas
do Nordeste e nas políticas indigenistas.

Trazer essa discussão para compreender o campo de estudos et-


nológicos no Nordeste é motivado pelo fato de que, no contexto
atual, nos vemos diante da utilização frequente do conceito de
aculturação por parte de diversos grupos indígenas para pensar a
cultura e, assim, fundamentar projetos étnico-políticos. A reflexão
aqui proposta procura então problematizar o uso de conceito de
cultura nas mobilizações contemporâneas, notadamente nos pro-
jetos de resgate da língua indígena desenvolvidos pelos Potiguara
da Paraíba (PB) e do Rio Grande do Norte (RN), a partir da experiên-
cia dos Potiguara do Catu (Canguaretama e Goianinha).

1.1 Aculturação e assimilação


O conceito de aculturação tornou-se relevante nas análises et-
nológicas a partir de 1936 com a publicação do Memorandum for
the Study of Acculturation (REDFIELD; LINTON; HERSKOVITS, 1936),
embora, como afirmou Schaden (1965), o interesse científico vol-
tado aos fenômenos de aculturação indígena surgiu no Brasil em
princípios do século XX. Tal conceito foi acionado para explicar as
mudanças decorrentes do contato entre diferentes grupos indíge-
nas e entre estes e a sociedade nacional. Os interesses se voltaram
para demonstrar as influências recíprocas das culturas tribais,
reconstruir o caráter original dos respectivos sistemas ou então
determinar os centros de dispersão e as rotas migratórias de seus
portadores, bem como para interpretar os processos de transfor-
mação em termos de culturas (SCHADEN, 1965).

Naquele contexto, mesmo evitando usar o conceito de aculturação,


Baldus (1937) foi um dos primeiros a falar da mudança cultural de

210
TRANSFORMAÇÕES, HISTÓRIA E CULTURA NA ETNOLOGIA DOS POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE |
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indígenas do Brasil, deslocando, para o primeiro plano, o proble-


ma da aculturação, como assinala Schaden (1965). Baldus (1937)
fornece elementos para uma melhor compreensão etnológica do
papel desempenhado pelo índio na formação cultural do país, visto
que “a maior parte do caráter do povo brasileiro é o caráter do Tupí”
(BALDUS, 1937 apud SCHADEN, 1965, p. 18). O conceito de cultura
que ele adota nasce de uma combinação de fatores hereditários,
físicos e psíquicos, com fatores coletivos morais, e é a ação conjun-
ta de todos esses fatores que permite explicar a mudança cultural.
Porém, Baldus (1937) trata os diferentes fenômenos de mudança
atentando para os fatores ecológicos e socioculturais que atribui
incontestável preponderância em lugar de se aventurar a remon-
tá-los a quaisquer disposições hereditárias, de duvidosa identifica-
ção, como o conceito de raça (SCHADEN, 1965).

Para Schaden (1965, p. 19), a relação entre aculturação e assimilação


aparece em Baldus (1937) por meio da distinção entre dois efeitos al-
ternativos do processo: o primeiro compreende a “mudança parcial
de cultura” no interior do sistema através da assimilação recíproca
do novo em relação à cultura existente e desta ao novo e a manu-
tenção e continuidade do sistema cultural no espaço e no tempo. O
segundo efeito envolve a “mudança total de cultura” de um sistema
para outro, resultado do “acolhimento unilateral do novo” e, con-
sequentemente, da destruição do sistema cultural. A conclusão de
Baldus (1937) foi a de que as tribos perderiam completamente a sua
cultura se a relação com os brancos fosse permanente.

Baldus (1937), Schaden (1965) e Galvão (1957), dentre outros, acio-


nam uma noção de cultura através da perspectiva das perdas, mas
também ressaltam, de maneira relevante, a ideia da transformação.
Eles estão indicando como o Estado tem que se posicionar diante do
contexto de perda, ou do que eles chamam de inevitável processo
assimilatório. Como o próprio Schaden (1965) sugere, os estudos dos
fenômenos aculturativos inicialmente foram direcionados à contri-
buição à etnologia, posteriormente, os resultados etnológicos pas-
saram a ser relacionados com questões de ordem prática.

211
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

Para eles, a aculturação se manifesta como processo heterogêneo


através de diferentes modalidades, que se apresentam segundo as
situações de contato de alguns grupos. Está sendo suscitada a busca
pelas prováveis causas de alguns grupos se “aculturarem” com maior
facilidade que outros. Galvão (1957) afirma a existência de uma apa-
rente resistência dos Timbira e dos Karajá e uma receptividade dos
povos de língua tupi “para nossos traços culturais” (GALVÃO, 1957, p.
72). Assim, é possível refletir sobre o modo pelo qual os processos
de mudança são refratários de uma certa percepção desses próprios
coletivos e de como estão reagindo às relações com outras culturas
e se apropriando do próprio contato interétnico.

É importante destacar a menção sobre os Fulniô de Águas Belas/


PE: “apesar de profundas transformações em sua cultura, [os
Fulniô] mantêm ciosos a consciência da identidade tribal e ex-
cluem mesmo de determinados ritos nativos o membro do grupo
que tenha casado com elementos de fora” (SCHADEN, 1965, p. 26-
27, grifos meus). Nessa mesma linha, mas com diferenças sutis,
Amorim (1970), ao aplicar a teoria da fricção interétnica, apresenta
os Potiguara da Paraíba a partir de um processo de acamponesa-
mento, decorrente da expansão do capital e da proletarização e
mostra que, pela integração com o mercado regional, os Potiguara
podem ser considerados como “índios camponeses”, cujo diferen-
cial em relação aos regionais é a consciência da identidade étnica.

Outra dimensão presente nos estudos da aculturação, especial-


mente em Baldus (1937), é o problema da preservação das culturas
tribais. A preservação da cultura, e no caso específico aqui discu-
tido, o da língua ancestral, traduz a concepção de que o resgate
poderá promover a preservação e a política indigenista deverá se
pautar nos termos científicos de tal problema. Há todo um esforço
cognitivo e intelectual no intuito de relacionar os resultados etno-
lógicos com questões de ordem prática, como indicado por Schaden
(1965). Para o caso específico, o próprio conceito de aculturação
traduz essa dimensão prática, na medida em que projeta um tipo
de atuação indigenista. Schaden (1965, p. 21) ressalta que, ao órgão

212
TRANSFORMAÇÕES, HISTÓRIA E CULTURA NA ETNOLOGIA DOS POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE |
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indigenista e aos missionários cristãos, faltavam orientação etno-


lógica e pesquisas que “dita[ssem] normas gerais para regular a
situação interétnica do índio face aos caboclos e civilizados” e que,
a esses grupos, restavam a proteção do Estado guiada pela política
de assimilação, que deveria ser conduzida pelo órgão indigenista
oficial e acompanhada pelos etnólogos.

Para que os estudos de mudança cultural ou de aculturação pu-


dessem ser realizados e produzissem o efeito necessário à política
indigenista e às ações de resgate e preservação da cultura tribal,
ou a própria assimilação cultural, Galvão (1957) estabeleceu uma
série de requisitos básicos, dentre os quais estava a realização de
estudos intensivos visando à reconstituição da história, no intui-
to de compreender a “situação cultural” e recompor as mudanças
culturais ocorridas. Assume-se uma perspectiva eminentemente
diacrônica para o registro e a documentação de traços culturais
que caracterizaram os distintos grupos indígenas, os quais seriam
caracterizados e agrupados a partir de áreas culturais seguindo
uma distribuição geográfica de um conjunto de traços e padrões e
da relação desses traços ao meio ambiente.

Em última instância, a proposição de Galvão (1957) indica um mo-


vimento que começa com um inventário dos traços de cultura para
uma análise de interação de configurações culturais. Buscava-se,
assim, o reconhecimento das diretrizes socioculturais dessas áre-
as regionais que atuavam como fatores condicionantes da “acul-
turação”, ou da assimilação do índio. Na leitura de Oliveira (1986),
Galvão (1957) faz uma formulação crítica ao conceito de acultura-
ção ao considerar que uma abordagem em termos de aculturação
deveria “abranger fatores extralocais que condicionam a existência
de uma comunidade indígena, como sejam as características da
cultura cabocla, a natureza e os fatores que determinam os avan-
ços e recuos das frentes pioneiras” (OLIVEIRA, 1986, p. 496).

Ao tratar especificamente do Nordeste como uma das áreas cul-


turais no país, Galvão (1979 apud OLIVEIRA, 1998, p. 48) asseverou
que, dados os efeitos de aculturação à sociedade nacional, tinha

213
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

dúvida em incluir todos os povos ali existentes em uma única área,


decorrente do fato de que a maior parte vivia integrada no meio
regional, apresentava considerável mesclagem e perdas de ele-
mentos culturais tradicionais, inclusive a língua.

Estão muito claros os propósitos dos estudos sobre mudança cul-


tural que se voltam ao estudo das interações, empréstimos, dentre
outros aspectos a partir de uma percepção assimilacionista, que se
utilizava da ideia de transformação cultural para explicar e justifi-
car as mudanças culturais e o distanciamento cada vez maior das
culturas tribais de sua cultura original. Retornarei a essa questão,
tendo em vista que os projetos de resgate ou revitalização linguís-
tica acionam categorias como resgate, preservação, cultura indíge-
na original e autêntica.

1.2 Distintividade cultural e etnicidade

Os estudos etnológicos que estavam ancorados no paradigma


aculturativo, em que vigiam as ideias de integração e assimilação,
promoveram uma “etnologia das perdas e das ausências culturais”
(OLIVEIRA, 1998, p. 48) e configuraram um quadro pessimista no qual
enquadravam os povos indígenas existentes no nordeste brasileiro
como grupos que não possuíam distintividade cultural e étnica. Por
se tratar de populações que se diziam misturadas, caboclas, a atri-
buição de ausência de tal distintividade decorrente das históricas e
contínuas perdas culturais e as mobilizações para o reconhecimento
étnico provocaram redefinições nos estudos acadêmicos e configu-
ração de um campo político indígena muito significativo.

As questões enfrentadas por pesquisadores vinculados a diferen-


tes instituições (como a Universidade Federal da Bahia – UFBA – e
o Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
–) suscitaram problematizações advindas dos próprios coletivos
indígenas e que se tornaram cruciais no deslindamento de temas

214
TRANSFORMAÇÕES, HISTÓRIA E CULTURA NA ETNOLOGIA DOS POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE |
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sensíveis à teoria antropológica como o conceito de mudança cul-


tural, traduzida pela noção de aculturação e seus efeitos na iden-
tidade indígena, mas também nas formas de identificação étnica,
nos vínculos territoriais e nas interfaces com o Estado nacional,
na intenção de compreender os regimes de produção das “novas”
indianidades e as práticas político-territoriais.

A dimensão da mistura ganhou centralidade para o entendimen-


to da “resistência” de grupos que se pensavam como diferentes e
elaboravam, para si e para outros, uma contrastividade social, cul-
tural e étnica. Os camponeses, que, em geral, se reconheciam como
“caboclos”, estavam se colocando na perspectiva da reivindicação
identitária e articularam-se étnica e politicamente numa reação a
uma leitura acadêmica e um enquadramento político por meio da
gramática da assimilação cultural, expressa pela classificação “ín-
dios misturados” como sinônimo de “índios aculturados”.

As diversas mobilizações étnico-políticas que ocorreram de modo


mais incisivo no fim dos anos de 1970 apontaram para o intenso
“levantamento das aldeias” (expressão muito disseminada e co-
mum, assim como as “retomadas de terras”) que colocava aquelas
populações em um movimento político nacional importante e se ro-
bustecia com as conquistas de direitos diferenciados assegurados
pela Constituição Federal (CF). Essas mobilizações foram pautadas
no sentido de garantir a regularização fundiária em decorrência
das invasões e sucessivas perdas e esbulhos de seus territórios
tradicionalmente ocupados, bem como de assegurar o acesso às
políticas públicas diferenciadas em áreas como educação, saúde e
segurança alimentar.

Essas mobilizações – que possibilitaram um nível de articulação


intra e interétnica, tendo a cultura como um dos seus aspectos
mais relevantes – e as incursões científicas de pesquisadores
nas comunidades rurais nordestinas confrontaram fortemente
o modelo aculturacionista. Em recente conferência na UFRN, em

215
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

outubro de 2019, Rosário Carvalho, ao delinear as motivações


dos/as pesquisadores/as do Programa de Pesquisas sobre Povos
Indígenas do Nordeste Brasileiro (PINEB), afirmou que ao grupo de
pesquisadores o desafio foi entender o desenvolvimento da etnici-
dade nativa ou do uso da etnicidade como um instrumento político.
Desenvolvia-se, naquele contexto (anos de 1970), uma expectativa
de se fazer uma ciência social interessada, para usar a expressão
de Peirano (1992, p. 79), sendo decisivo para fixar nossa etnologia
no estudo de índios dentro do território brasileiro.1

A economia tornou-se um tema central dentro da perspectiva,


como se observa nos trabalhos de Bandeira (1972) sobre os Kiriri,
de Carvalho (1977) sobre Pataxó e, como já indicado anteriormen-
te, de Amorim (1970) sobre os Potiguara, este vinculado ao Museu
Nacional e a Roberto de Cardoso de Oliveira. Bandeira (1972) e
Carvalho (1977) estavam tratando de certas dimensões da econo-
mia, porém já indicavam a relevância da dimensão religiosa na aná-
lise dos índios do Nordeste, sendo posteriormente desenvolvidas
diversas pesquisas sobre o ritual do toré. Já Amorim (1970) utiliza
a teoria da fricção interétnica, proposta por Cardoso de Oliveira
(1967)2, e “reinscreve suas observações na teoria dos sistemas in-
terétnicos ao caracterizar a situação dos índios do nordeste como
um caso limite de potencial de integração” (OLIVEIRA, 1986, p. 497)

As pesquisas partiram da condição histórica do campesinato nor-


destino e da questão agrária para compreender as dinâmicas polí-
ticas e identitárias. Como Cardoso de Oliveira (1970, p. 28) assina-
lou, a revalorização das “sociedades parciais”3 visa contribuir “para
a avaliação da política indigenista, na medida em que a noção de
campesinato indígena integra a ‘questão indígena’ na problemática
nacional, já agora com uma ‘questão agrária’”.

No fim dos anos de 1980 e início da década de 1990, é produzido


um conjunto de dissertações de mestrado no Museu Nacional/
UFRJ, sob a orientação de João Pacheco de Oliveira, as quais apre-

216
TRANSFORMAÇÕES, HISTÓRIA E CULTURA NA ETNOLOGIA DOS POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE |
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sentavam uma convergência temática, apoiadas pelos mesmos


pressupostos teóricos e se voltavam para compreender as cha-
madas etnogêneses e a persistência dos grupos étnicos a partir
de um número expressivo de grupos que estavam reivindicando
seu reconhecimento como comunidade indígena.4 As situações et-
nográficas acompanhadas pelos pesquisadores apontavam para
a emergência de novas identidades, assim como a reinvenção de
etnias já reconhecidas (OLIVEIRA, 1998), cujo processo de mobili-
zação étnica e política foi verificado em grupos que, segundo a li-
teratura etnológica, eram considerados extintos e outros afetados
pelo histórico de políticas que visaram à desorganização do ponto
de vista sociocultural. Promoveu-se, assim, uma profunda descon-
fiança em relação aos modelos antropológicos, os quais estavam
sendo desafiados a se posicionar teórica e conceitualmente, mas
também politicamente, acerca das estratégias de persistência e
emergência de grupos que contrariavam o instrumental até então
vigente, baseados em perspectivas culturalistas (aculturação) e
assimilacionistas (indigenismo oficial).

As evidências etnográficas davam conta dos processos de trans-


formação histórica e identitária de “camponeses” para “índios”, de
“caboclos” para “índios” e de “índios misturados” em índios “regima-
dos”, isto é, índios possuidores de um regime, que possa ser consi-
derado como “de índio” (CARVALHO, 2011).5 Essas transformações
reforçaram, por um lado, a importância da categoria “camponês”
e da dimensão agrária na configuração de um campo de atuação
étnico-político em que se produziram “novas” identidades, graças
aos vínculos desses grupos com seus territórios. Por outro lado, as
transformações reiteraram a falácia do discurso do desapareci-
mento dos índios, numa clara intencionalidade de negar a existên-
cia de índios identificados nas aldeias e de querer se apoderar de
suas terras (CARNEIRO DA CUNHA, 1992b, p. 21).

Sahlins (1997) arremata todo esse “pessimismo sentimental” que


pairou sobre a antropologia através da incorporação do tema da mu-
dança (SAHLINS, 1990, 2008) e da reformulação das relações entre

217
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

estruturas socioculturais e transformação histórica que leva ao que


ele chama de indigenização da modernidade (SAHLINS, 1997). A cha-
mada antropologia tradicional, para usar os termos de Sahlins (1997,
p. 58), se interessava em estudar “mônadas culturais, ou anunciada
nas sombrias predições de perdição que acompanham o Sistema
Mundial”. A constatação de Sahlins (1997) é que essas populações
participam de um processo global de aculturação, mas continuam
dentro desse processo a se distinguir entre si pelos modos específi-
cos por assim dizer tradicional, produzindo projetos de retradiciona-
lização marcados por um autonomismo “culturalista” e étnico.

Se, de um lado, os conceitos de cultura e de mudança cultural


apontavam para o desaparecimento gradual e sistemático de tais
populações, sendo corroborados com a falta de distintividade, de
um outro, os próprios indígenas os acionaram como um contradis-
curso marcado por uma ideia de contra-aculturação ou uma ideia
de resistência cultural à teoria antropológica e à política indigenis-
ta e o imaginário nacional.

Aqui podemos perceber a dissolução de grandes divisores como


tradição e mudança, pureza e mistura, ou a compreensão de tais
antinomias noutra chave de interpretação, baseada, sobretudo nos
termos e regimes nativos e na mediação das próprias antinomias.
O protagonismo indígena, notadamente a partir da presença po-
lítica dos povos indígenas nos cenários nacional e internacional,
promove uma outra dissolução que compreende aquela entre o
discurso do sujeito e o do objeto, a qual se tornou uma assimetria
marcante e constitutiva do pensamento antropológico. Podemos
ainda incluir a participação mais efetiva dos indígenas na academia
decorrente das políticas de ações afirmativas que têm permitido o
diálogo em outro nível da academia com os indígenas e vice-versa
e a produção qualificada e desafiadora aos cânones científicos dos
chamados antropólogos/as indígenas.

A quebra de assimetrias possibilita-nos refinar a visão sobre


os povos indígenas do Nordeste, tentando apreender as mul-

218
TRANSFORMAÇÕES, HISTÓRIA E CULTURA NA ETNOLOGIA DOS POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE |
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tiplicidades de experiências e práticas políticas e territoriais,


constituídas segundo uma nova gramática – distante, de certo
modo, daquelas da assimilação e próxima das apropriações e
transformações – bem como um novo modo de agir, focados na
autonomia e na autodeterminação.

Interessa-nos avançar na compreensão desses coletivos indíge-


nas, através do tema da transformação e a partir de suas próprias
histórias. Como sugere Carneiro da Cunha (1992a, p. 22), é preciso
“restabelecer a importância da memória indígena, transmitida por
tradição oral, recolhendo-a, dando-lhe voz e legitimidade em justi-
ça”, visto que “A história dos índios não se subsume na história indi-
genista”. O interesse por essas histórias dos índios é indissociável
da “presença crescente na arena política nacional e internacional
e a crescente utilização dos mecanismos jurídicos na defesa dos
seus direitos [que] tornam a história indígena importante politi-
camente [e que] tem também um caráter de resgate de dignidade”
(CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p. 126).

É no sentido de reforçar o direito das sociedades indígenas em


recuperar sua própria história em seus próprios termos, já que “Ter
uma identidade é ter uma memória própria” (CARNEIRO DA CUNHA,
1992a, p. 20), que o projeto de resgate da língua tupi será compre-
endido, o que inclui a retomada do sentido forte de tradicional que
considera a historicidade da cultura e da experiência historicamen-
te vivida (VIEIRA; VIEGAS; AMOROSO, 2015). A exemplo do que é a
ideia de “apego a seus territórios”, que é muito presente na tradição
oral e nas práticas políticas de diversos grupos indígenas, as ela-
borações, apropriações e transformações de categorias coloniais,
como a de caboclo, e de instituições, como a escola, podem impli-
car não apenas o que seriam estruturas e equipamentos essen-
cialmente ameríndios, mas também aqueles que, na sua origem,
podem até ter sido criados para subjugação dos índios – como por
exemplo as próprias sedes das missões ou as igrejas. Traz-se en-
tão a ideia de historicidades entrelaçadas entendidas a partir de
um escopo transformacional, em que é preciso compreender essas

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PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

elaborações dentro de um movimento que denomino “virada cultu-


ralista”, por meio da redefinição de idiomas simbólicos da “mistura”
das relações transformacionais com a história e dos usos políticos
e cosmológicos da cultura, a partir da experiência da escolarização
e da constituição de uma política linguística.

1.3 Retomada das escolas e resgate da língua tupi

Para pensar a esfera da política linguística, é preciso destacar


o processo de resgate da “língua ancestral” indígena. O resgate
da língua, como observo entre os Potiguara da Paraíba e do Rio
Grande do Norte, é uma dentre outras possibilidades para pautar
a distintividade cultural, a configuração de uma memória própria
e, portanto, uma identidade singular e descontínua. A condição de
distintividade, ao mesmo tempo em que é relativizada pelos pró-
prios indígenas a partir do reconhecimento de descontinuidades
históricas e culturais com os antepassados, é potencializada em
ações estratégicas que têm, como objetivo central, a afirmação de
sua especificidade e a reiteração da diferença.

A cultura, que até bem pouco tempo foi substituída pela ideia de sis-
tema de relações sociais, como propõe Cardoso de Oliveira (1967)
quanto à fricção interétnica em substituição à ideia de assimilação,
numa clara contraposição à noção-chave de aculturação6, é “reto-
mada” pelos coletivos indígenas como uma “arma” especialmente
eficaz de agenciamento de grupos e comunidades em um mundo
globalizado (SAHLINS, 1997).

O projeto de resgate da língua tupi na PB e RN revela processos reais


de apropriação crítica e transformação criativa da cultura, tendo,
na categoria de “retomada”, uma de suas expressões mais signifi-
cativas. A “retomada” possui uma semântica política e traduz uma
potência no plano da “[...] vontade da reconquista de suas terras,
seja pela vontade de reconquista de suas línguas, e consequente-

220
TRANSFORMAÇÕES, HISTÓRIA E CULTURA NA ETNOLOGIA DOS POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE |
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mente, da sua história [ou como] o princípio da posse” (COSTA, 2011


apud DURAZZO, 2019, p. 74). Ela ainda revela um caráter descolo-
nizador ou de contestação ao processo colonial, que evidencia flu-
xos de opressão e violência, resistência e reelaboração (DURAZZO,
2019, p. 76).

Nesses projetos e no campo discursivo da política interétnica, os


Potiguara reportam-se ao fato de terem perdido sua cultura e esta-
rem misturados à população regional e, ao mesmo tempo, mobili-
zam-se numa busca constante para assumir um estatuto descontí-
nuo, através da reinvindicação de identidades diferenciadas, como,
dentre outras, reações ao esbulho de seus territórios, concorrendo
para tanto seus vínculos territoriais, relações de parentesco etc.,
como promovendo, por conseguinte, a elaboração de sua própria
distintividade cultural. A reivindicação da identidade e a elaboração
da distintividade cultural apontam para uma politização da cultura,
como propõe Susan Wright (1998), e também se relacionam com a
coexistência da cultura (com aspas), enquanto recurso e arma para
afirmar identidade, dignidade e poder diante de Estados Nacionais
ou da comunidade internacional, com a cultura (sem aspas), en-
quanto rede invisível na qual estamos suspensos, seguindo os ter-
mos de Carneiro da Cunha (2009).

Ao longo da primeira década dos anos 2000, os Potiguara da Paraíba


retomaram algumas escolas existentes nas aldeias, no intuito de
serem reconhecidas como escolas indígenas, adotando o ensino
diferenciado e bilíngue, expresso numa estrutura curricular com-
posta de disciplinas específicas voltadas às temáticas indígenas.
Como mostra Simas (2013), pelo menos cinco escolas foram reto-
madas entre os anos 2004 e 2010, revelando duas situações: três
escolas estavam sob a esfera administrativa municipal e passaram
à administração do governo estadual7; duas escolas mudaram seus
projetos pedagógicos a fim de adotar os princípios da educação es-
colar indígena, mas se mantiveram sob a administração estadual.8
A esse quantitativo, incluem-se outras 22 escolas municipais que
se tornaram indígenas9 e outras quatro escolas estaduais que fo-
ram construídas para a oferta de educação escolar diferenciada10.

221
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

Ao passo que as escolas foram sendo “retomadas”, foi delineada uma


política linguística, por meio da implantação da língua tupi, sendo
objeto de forte investimento na luta política e educacional, que con-
sistiu no “resgate da língua dos antepassados”, visando ao aprendi-
zado da língua indígena e à introdução do bilinguismo nas escolas
indígenas. Contou com a iniciativa de um grupo de professores indí-
genas que participaram de um curso de formação em Tupi Clássico,
ministrado pelo professor Eduardo Navarro da Universidade de São
Paulo (USP), em 2000, que teve a duração de dois anos e formou 17
monitores bilíngues para atuarem como professores nas escolas
potiguara. A ideia era que se multiplicasse o conhecimento sobre a
língua tupi e implementasse o projeto de resgate da língua ancestral
dos Potiguara. Quatro professores indígenas11, juntamente com o re-
ferido professor, produziram duas cartilhas para ensino do tupi, que
hoje são utilizadas nas escolas de ensino fundamental em todas as
aldeias potiguara (NAVARRO, 2005, 2010).

Anualmente, a prefeitura municipal de Baía da Traição oferece


um curso de formação em língua tupi destinado a professores da
sua rede. Há outro curso ofertado pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB), aberto ao público geral (SIMAS; SILVA, 2018). É nes-
ses cursos que participaram indígenas do Catu (Canguaretama e
Goianinha/RN) e de onde pode-se perceber as trocas linguísticas
entre os Potiguara da Paraíba e os Potiguara do Catu/RN.

Na aldeia do Catu/RN, a educação escolar indígena tornou-


-se parte precípua da luta política pelo reconhecimento étnico.
Correspondendo ao que, na Paraíba, foi chamado de “retomada”,
as lideranças indígenas se mobilizaram no sentido de assegurar
uma educação escolar diferenciada como estratégia de fortaleci-
mento da luta política; essas mesmas lideranças e outras pessoas
da aldeia mantiveram um diálogo com professores indígenas da
Paraíba, os quais passaram a trocar experiências pedagógicas, em
torno das práticas educacionais diferenciadas.

222
TRANSFORMAÇÕES, HISTÓRIA E CULTURA NA ETNOLOGIA DOS POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE |
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Em 2012, por solicitação das lideranças indígenas do Catu, ocorreu


uma audiência pública na Câmara Municipal de Canguaretama para
tratar da educação escolar indígena. Após o aceite do presidente
do legislativo municipal, os indígenas e outros parceiros chegaram
para o evento, mas o prédio da câmara estava fechado e nenhum
dos vereadores compareceu: houve um “boicote”, segundo Luiz
Catu (cacique da aldeia e professor de Etno-história das duas esco-
las do Catu). Os indígenas ocuparam a rua que dá acesso ao prédio,
formaram uma grande roda e dançaram o toré. Com os “gritos dos
indígenas e das maracas no asfalto” (Luiz Catu) e a repercussão do
ato, os vereadores chegaram e a audiência aconteceu. Esse evento
deu uma maior visibilidade à mobilização em torno da criação da
escola indígena na aldeia. No mesmo ano, a Escola Municipal João
Lino da Silva tornou-se a primeira escola indígena do RN, com uma
proposta de educação diferenciada, específica, bilíngue e a “fazer a
língua ancestral se tornar currículo” (Luiz Catu).

É importante ressaltar que, antes da regularização da escola co-


mo indígena, algumas atividades relacionadas à chamada “cultura
indígena” já eram desenvolvidas na escola, a exemplo, as rodas
de toré e as oficinas de pintura. Em relação ao ensino do tupi, co-
mo nos informa Silva (2007), desde 2003, eram ofertadas aulas
de tupi nos fins de semana no Catu por um servidor da Fundação
José Augusto (FJA) do Governo do Estado do RN. Em 2005, após a
visita de pessoas integradas ao projeto de ensino de tupi e liga-
das ao servidor da FJA, as quais apresentaram o projeto Nhe em
Catu: Noções da Língua Tupi em Sala de Aula, a Secretaria Municipal
de Canguaretama acatou a sugestão e aprovou o projeto de tupi,
passando as aulas a integrar a carga horária na educação infantil
da escola municipal Catu; Silva (2007) afirma que essa experiência
durou até o fim de 2006.

Para o planejamento e a condução didático-pedagógica, os profes-


sores das Escolas João Lino da Silva e Alfredo Lima (localizada na
parte do Catu que pertence ao município de Goianinha e que ainda
não foi regularizada como escola indígena) utilizam parte do mate-

223
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

rial didático produzido na Paraíba e o livro Método moderno de tupi


antigo de Navarro (1998).

Simas (2013) afirma que os professores indígenas paraibanos con-


tinuam a ensinar uma língua fragmentada em vocábulos e frases
sem muita inter-relação entre si. Os exercícios continuam muito
centrados na memorização através de repetição escrita de um lé-
xico há anos explorado e na repetição oral de pequenos diálogos,
os mesmos livros, os mesmos exercícios. A autora conclui, a partir
de uma visão normativa e prescritiva, “que a proposta de implanta-
ção da língua tupi pode fracassar por terem escolhido uma língua
morta para ser implantada, não haver mais necessidade comuni-
cativa em tupi” (SIMAS, 2013, p. 205). Para ela, seria mais viável do
ponto de vista linguístico ter optado pela implantação da língua
nheengatu, que é uma língua geral amazônica com 3.000 mil fa-
lantes e possuir origem na língua tupi e ser atualmente falada em
regiões do Amazonas, também por possuir bases comunicacionais
e contextos de uso. A autora ainda afirma não ser possível falar em
nível de proficiência de tupi na escrita, na oralidade, na leitura e na
compreensão, pois o máximo que os estudantes e professores de
tupi sabem é pronunciar vocábulos isolados ou frases descontex-
tualizadas, o que não permite uma interação verbal. A oração do Pai
Nosso e algumas músicas que foram traduzidas para a língua tupi e
que são usadas no ritual toré refletem mais a memorização do que
a compreensão das letras das melodias.

Na leitura de Simas e Silva (2018), há alguns equívocos nessa po-


lítica, dentre os quais, o fato de que, a despeito de se reconhecer
como resgate da língua, o que se faz nas escolas potiguara é a im-
plantação da língua tupi, uma vez que os Potiguara constituem-se
como grupo indígena monolíngue em língua portuguesa. Logo, não
é possível resgatar, pois precisaria existir, pelo menos, um grupo de
falantes vivo. Segundo as estudiosas, o que efetivamente ocorre é
a implantação de uma língua indígena ou uma tentativa de ressus-
citar uma língua morta.12

224
TRANSFORMAÇÕES, HISTÓRIA E CULTURA NA ETNOLOGIA DOS POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE |
José Glebson Vieira

O manejo da educação escolar conduz a um processo de reela-


boração de uma instituição colonial que promoveu imposição de
conhecimentos estatais e que tem sido redefinida a partir de pro-
jetos coletivos específicos, que envolvem a valorização/resgate e
a preservação da cultura. No caso aqui discutido, observamos o
investimento político em torno de uma língua não mais falada em
contextos interacionais cotidianos e uma potencialização da práti-
ca de resgate linguístico como parte significativa do engajamento
político e étnico. Nos rituais de formatura que acontecem ao final
de cada etapa formativa, os estudantes indígenas de escolas parai-
banas, vestidos com os “trajes” do ritual do toré, rezam o Pai Nosso,
cantam linhas do toré, fazem juramento em tupi e nesse assumem
o compromisso de valorizar a cultura indígena.

Através de projetos políticos, pedagógicos e linguísticos vincula-


dos e realizados no contexto da escola, como também em dimen-
sões não escolares da vida indígena, grupos indígenas, como os
Potiguara, “[...] são capazes de reelaborar níveis de seu pertenci-
mento linguístico, buscando alternativas para o histórico colonial
que teoricamente legou ao território brasileiro a ‘doença do mono-
linguismo’ (Franchetto, 2013)” (DURAZZO, 2019, p. 309).

Os indígenas se apropriaram desse espaço para colocar em prática


iniciativas politicamente direcionadas à luta pela terra e à recupe-
ração de suas formas tradicionais e, nele, é realizado todo o debate
sobre as políticas culturais e sobre os regimes de conhecimentos
indígenas. A escola, pelo menos nas duas situações enfocadas (PB
e RN), pode ser entendida como fronteira intercultural (TASSINARI,
2001), na medida em que explicita a apropriação indígena e se
constitui em um ambiente de trânsito, articulação e troca de co-
nhecimentos. É na e pela escola que passa, quase que obrigatoria-
mente, o debate sobre as políticas culturais e sobre os regimes de
conhecimento indígenas. Essa apropriação remete ao que Sahlins
(1990) afirma ser a etnicidade um campo onde se pode confirmar
que o simbólico apresenta-se em sua dimensão pragmática.

225
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

Dentro do projeto de resgate da língua e de políticas educacionais


voltadas à escolarização indígena, observamos o acionamento de
conceitos e noções que revelam uma gramática aculturacionista.
Em determinadas políticas educacionais, como a da formação de
professores, por exemplo, é recorrente o uso do conceito de res-
gate cultural que pressupõe uma definição de cultura indígena
igualmente presente no âmbito escolar e no campo de disputas
simbólicas e políticas.

Sampaio (2006) assinala que o “resgate cultural” faz parte do pro-


cesso necessário à formação e implantação de escolas diferencia-
das, exprimindo-se e se concretizando em nível discursivo e nas
práticas enquanto valor. A cultura indígena aparece como o domí-
nio social por excelência, através do qual valores como diferença
e especificidade se expressam e a escola indígena torna-se a via
institucional para sua formalização e reprodução.

Diante do desafio em participar do chamado “resgate cultural” ou


de uma política centrada na escolarização, tendo como foco a “cul-
tura indígena”, o antropólogo se coloca ante questões cruciais que
envolvem concepções etnocêntricas de culturas indígenas, que va-
loram positiva ou negativamente a diversidade e a especificidade.
Sampaio (2006) salienta que, mesmo quando se valoriza positiva-
mente as culturas indígenas, as imagens mais fortes que circulam
e que implicam na definição de diversidade cultural recaem para
oposições como autenticidade cultural, que remete a algo ideal-
mente vivido, e degeneração cultural, que sugere contaminação,
deturpação, corrupção e ameaça cultural, assim como por colonia-
lismo cultural, dentre outras.

Portanto, a ideia de “resgate cultural”, além de trazer uma gramática


da aculturação (diz-se os índios são aculturados), revela um modelo
histórico e ideologicamente constituído que concebe as verdadeiras
e autênticas culturas indígenas como estados de encantamento, de
pureza, resultantes de isolamento que devem ser imutáveis e que

226
TRANSFORMAÇÕES, HISTÓRIA E CULTURA NA ETNOLOGIA DOS POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE |
José Glebson Vieira

produzem uma “visão lacunar a qual essas sociedades são per-


cebidas apenas como ‘sociedades da ausência’ ou ‘sociedades da
perda’” (SAMPAIO, 2006, p. 160). Se há um investimento das escolas
indígenas em se tornarem diferenciadas, interculturais, bilíngues e
específicas, essa concepção de “resgate cultural” pode acabar sendo
reduzida às representações sobre os povos indígenas como de “ín-
dios aculturados” a partir da noção de perda cultural.

Para Wright (1998), os antropólogos estão implicados na politiza-


ção da “cultura”, e esta tem sido mobilizada de maneiras diferentes
e com diferentes efeitos como uma espécie de ferramenta. Essa de-
finição remete à ideia de cultura com aspas proposta por Carneiro
da Cunha (2009), considerando que, em muitas dessas situações,
tal ideia é operada de forma objetivada e autoconsciente, chegando
a apresentar um aspecto performatizado ao assumir um papel de
argumento político.

A política linguística de resgate da língua tupi tem revelado a gra-


mática das perdas, da aculturação, mas também tem indicado uma
articulação maior em termos de uma política de valorização cultural,
que agrega conhecimentos indígenas, tradição oral enquanto his-
tória e testemunho transmitido oralmente de uma geração à outra,
formando um elo através de cada narrador, relator ou informante,
formas de transmissão de conhecimentos e aprendizado ritual.

Na experiência de educação escolar indígena no Catu, há uma


mobilização da comunidade no sentido de reiterar e reforçar a in-
dianidade, seja pela efetivação da própria escolarização, seja pelo
desenvolvimento de atividades como o etnoturismo, rituais como
o toré e a festa da batata13 e a criação de um museu indígena vin-
culado à escola. Não obstante, dentre os diversos investimentos
simbólicos dos Potiguara do Catu acionados na luta pelo reconhe-
cimento étnico, está a apropriação do ensino de tupi: inicialmen-
te “como um dado substancial, um traço da identidade indígena”
fornecido e estimulado por não indígenas e, posteriormente, como

227
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

exemplo de (re)apropriação da experiência “com uma nova língua,


que lhes foi apresentada como propriamente indígena, procuravam
estabelecer sinais demarcadores da diferenciação social” (SILVA,
2007, p. 220-221).

A política linguística sugere pensarmos a língua não como uma en-


tidade separada da cultura, mas pela possibilidade de criação e de
expressão de suas práticas culturais. As línguas “possuem nature-
za transversal” (GALLOIS; KLEIN; DAL’ BO, 2016, p. 40), designando a
dimensão pedagógica e educacional que abarca temas transversais
e áreas de estudos14 numa perspectiva que integra os conhecimen-
tos universais e os conhecimentos de cada povo indígena e também
possibilita a “atualização das sociocosmologias indígenas. Por isso,
não se pode pensar ações de fortalecimento cultural, sem valorizar
as línguas, que por sua vez, dependem de ações adequadas em ter-
mos de políticas educacionais” (GALLOIS; KLEIN; DAL’ BO, 2016, p. 40).

Quando lida pelo viés da “linguisticização” dos estudos sobre línguas


indígenas, a política linguística permite uma compreensão estreita
com relação aos usos possíveis das línguas indígenas e dos “con-
textos diversificados, sobretudo em cenários bi- ou multilíngues nos
quais o português se mostra” (DURAZZO, 2019, p. 312). A perspectiva
é de que “Uma política pública que estivesse preocupada com es-
sa questão estaria muito além do apoio a elaboração de [materiais]
didáticos escritos; estaria apoiando a realização dos rituais, lócus
privilegiado da expressão cultural plena” (LADEIRA 2014, p. 442 apud
DURAZZO, 2019, p. 312). Consequentemente, “as políticas linguísticas
teriam o potencial de equilibrar tanto políticas pedagógicas e cur-
riculares (na ‘elaboração de materiais didáticos’) quanto políticas
rituais e cosmológicas indispensáveis” (DURAZZO, 2019, p. 312).

A valorização da língua tupi tem promovido também uma mudan-


ça no uso de sobrenomes indígenas – tidos como “nomes nativos”
– por parte de pessoas engajadas no projeto de resgate da língua
(professores, estudantes universitários indígenas, dentre outros) e

228
TRANSFORMAÇÕES, HISTÓRIA E CULTURA NA ETNOLOGIA DOS POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE |
José Glebson Vieira

de lideranças indígenas que atuam nos contextos de relações com


o Estado, com a universidade e com outros setores da sociedade
civil, bem como nas mídias sociais e nos perfis públicos dos usu-
ários indígenas. Essa mudança indica a demonstração de projetos
sociais mais amplos de renascimento da linguagem, além de um
reforço dos compromissos étnicos e comunitários, nos níveis local
e intraétnico, bem como nacional, inter e extraétnico, o acionamen-
to da linguagem como característica diacrítica e a indicação de per-
fis públicos como marca de destaque de diferença e de etnicidade
(DURAZZO; VIEIRA, 2017).

Na escola indígena do Catu, o conhecimento de tupi tem sido acio-


nado nas disciplinas de conhecimento universal e nas atividades
das disciplinas específicas como Arte Indígena, Etno-história,
Rituais e Tupi, as quais possibilitam a integração com a comuni-
dade escolar e com a aldeia. A valorização cultural e da língua se
faz simultaneamente ao uso do termo etnicidade, que é uma das
chaves explicativas para a persistência no território, de resistência
e de contra-aculturação na política de enfrentamento da situa-
ção de alteridade. Essa valorização, na perspectiva dos indígenas,
equivale ao englobamento de um conjunto mais amplo de relações
complexas nas ações “[...] que embasam formas de existência, mo-
dos de conhecer, jeitos de fazer circular conhecimentos, ou seja,
sempre levar em conta as múltiplas relações sociais que conectam
todos esses atores [...]” (GALLOIS; KLEIN E DAL’ BO, 2016, p. 40), em
detrimento do isolamento de manifestações culturais, ou da visibi-
lização de produtos culturais.

Como sugere Durazzo (2019), a língua Dzubukuá não está morta


porque, para os Tuxá, ela é vivida. Caberia então aos estudos etno-
gráficos sobre línguas indígenas no Nordeste se manter atentos às
variadas valências e sentidos que assumem não apenas os idiomas
escolhidos – como o tupi antigo para os Potiguara – mas também
as próprias concepções indígenas de língua. Isso porque o projeto
de revitalização do Dzubukuá e o de resgate do tupi sustentam-se
sobretudo porque “perspectivas antropológicas refletem o fato

229
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

de que a revitalização linguística não é apenas um fenômeno lin-


guístico, mas também social, político e cultural, que abarca muitos
elementos complexos e entrecruzados das vidas das populações
afetadas” (SHULIST, 2013 apud DURAZZO, 2019, p. 310).

No contexto de produção e valorização cultural por meio da polí-


tica linguística, a autodeterminação apresenta-se menos como
um problema de independência e mais como um modo de gerir a
interdependência, de inverter as relações de poder desiguais e en-
contrar um espaço de manobra e articulação. No contexto da glo-
balização, presenciamos projetos de retradicionalização marcados
por uma busca constante de um certo autonomismo “culturalista” e
étnico, evidenciando o quanto as identidades podem se consolidar
em meio a um intenso processo de transformação.

Notas
1 A virada conceitual promovida no Nordeste ocorreu quase que simul-
taneamente ao que estava acontecendo no campo intelectual das Ter-
ras Baixas da América do Sul, dedicado especificamente às populações
indígenas amazônicas. Se, nesse campo, as noções de corpo e pessoa
evidenciavam formas singulares de produção de socialidade, através
das sofisticadas elaborações sociocosmologicas da alteridade, as pes-
quisas realizadas com as populações do Nordeste também problema-
tizaram conceitos como cultura, território, identidade etc., tendo, como
pano de fundo, noções como distintividade e mudança cultural.

2 A teoria da fricção interétnica se constituiu como uma das linhas funda-


mentais de pesquisa na etnologia brasileira, vindo a orientar de forma in-
tegrada um vasto conjunto de pesquisas sobre grupos tribais brasileiros
(OLIVEIRA, 1986). Essa teoria representou parte do esforço intelectual em
ultrapassar, em certa medida, a chamada “fase pessimista”, vindo a carac-
terizar a etnologia cujo interesse incidia nos povos indígenas do Nordeste.

3 A ideia de “sociedades parciais” é uma referência ao conceito de part so-


cieties de Kroeber (1948) e Redfield (1960).

230
TRANSFORMAÇÕES, HISTÓRIA E CULTURA NA ETNOLOGIA DOS POVOS INDÍGENAS DO NORDESTE |
José Glebson Vieira

4 O referencial acionado para entender a chamada etnogênese nordes-


tina, destacando, como um forte contraponto, a ideia de aculturação,
apagamento e desaparecimento, recai em referenciais africanistas, com
matiz francesa, como o conceito de situação colonial de George Balan-
dier (1951), e inglesa, mais precisamente da Escola de Manchester com
os estudos de Max Gluckman (1940) sobre situação social, e norueguês,
com a definição clássica e fundamental de etnicidade proposta por Fre-
drik Barth (1969).

5 Os trabalhos de Batista (1992) e Grünewald (1993) demonstram, respec-


tivamente, a relação entre os caboclos de Assunção e os índios Truká e os
caboclos agricultores que habitavam a Serra do Umã e os índios “regima-
dos” Atikum, reforçando as transformações históricas identitárias.

6 A fricção interétnica permitiu aos estudos etnológicos suplantar a ideia


de assimilação ao acentuar que as relações entre os grupos étnicos
ocorrem dentro de processo conflitivo e que envolveram muitas vezes
interesses e valores contraditórios (OLIVEIRA, 1986). A ênfase que re-
caía sobre a cultura, numa visão de aculturação, passa a considerar uma
visão mais sociológica e observa que, em sua perspectiva, “o fulcro da
análise não deve ser o aludido patrimônio cultural, mas as relações que
têm lugar entre as populações ou sociedades em causa” (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 1972 apud OLIVEIRA, 1986, p. 497).

7 Escolas localizadas nas aldeias Brejinho e Vau (Marcação/PB) e Jaraguá


(Rio Tinto/PB).

8 Escolas localizadas na aldeia Monte Mór (Rio Tinto/PB).

9 Escolas localizadas nas aldeias Alto do Tambá, Bento, Cumaru, Forte,


Lagoa do Mato, Laranjeira, Santa Rita, São Francisco, Silva da Estrada,
Tracoeira e Vila de São Miguel (Baía da Traição/PB), Caieira, Camurupim,
Estiva Velha, Grupiúna, Jacaré de César, Jacaré de São Domingos, Lagoa
Grande, Tramataia e Ybykuara (Marcação/RN) e Silva de Belém e Jaraguá
(Rio Tinto/RN).

10 Escolas localizadas nas aldeias Akajutibiró e São Francisco (Baía da Trai-


ção/PB), Brejinho, Tramataia e Três Rios (Marcação/RN); com exceção
desta última que recebeu recursos de uma ONG para a construção, as
demais receberam recursos do FNDE (SIMAS, 2013, p. 126-127).

11 Os professores foram Pedro Eduardo Ka’Aguasu, Manuel Eufrásio Poti-


guasu, Josafá Padilha Tataguasu e Almir Batista.

231
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

12 Para Simas e Silva (2018), os Potiguara eram falantes do tupinambá e de-


cidiram aprender ou reaprender não o chamado tupi moderno, que cor-
responde ao nheengatu ou língua geral Amazônica, mas a língua imagi-
nária criada pelos jesuítas. O tupi moderno foi uma língua criada pelos
religiosos e estudiosos a partir dos seus conhecimentos linguísticos, e a
língua real falada pelos indígenas não foi descrita (SIMAS; SILVA, 2018).

13 A festa da batata está em sua 17ª edição, sendo anterior à mobilização


étnico-política dos Potiguara do Catu, que teve seu ponto mais expres-
sivo na realização de audiência pública na Assembleia Legislativa do RN
em 2005. Segundo Luiz Catu, a festa da batata busca “revitalizar a cultu-
ra ancestral”, pois consiste na comemoração pelas colheitas. É com esse
propósito que outros eventos são realizados anualmente nas aldeias do
RN como: a festa da castanha no Amarelão (João Câmara/RN), a festa
do milho no Sagi/Trabanda (Baía Formosa) e a feira cultural na Lagoa
de Tapará (Macaíba/São Gonçalo do Amarante/RN). Tanto a audiência
pública de 2005 quanto essas festividades revelam dinâmicas sociopo-
líticas e étnicas de valor significativo para o movimento indígena do RN,
carecendo de estudos aprofundados.

14 Os temas transversais são: autossustentação; ética indígena; pluralida-


de cultural; direitos, lutas e movimentos; terra e preservação da biodi-
versidade; e educação preventiva para a saúde (BRASIL, 1998, p. 93). Por
sua vez, as áreas de estudos são: línguas, matemática, geografia, histó-
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236
DESCOBRINDO UM XAMÃ
Hugo Ciavatta*

INTRODUÇÃO
Debruçando-me sobre um dos períodos de campo,
no qual mantive diálogos praticamente diários com
Tatiarabu, entre alguns meses de 2017, ele que faleceu
em 2018, meu objetivo aqui é elaborar a relação desse
que se dizia um ex-Pajé Jamamadi: a relação com seu ir-
mão, o cacique Mamuré, as nuances do xamanismo dos
Jamamadi madiha, sua cosmopolítica, seja em relação
aos brancos, seja em relação aos próprios Jamamadi
de Massekury. Considero aqui o que Philippe Descola
(2018) aponta como característico de um estilo de co-
nhecimento da antropologia, ou seja, uma continuidade
entre descrição, compreensão e explicação.

Estávamos sentados na varanda de sua casa, em


Massekury, situada às margens do Purus, saindo de

* Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNI-


CAMP) e, com sua dissertação, cujo título é “Passagens pelas ruas de São Paulo em
narrativas (auto)biográficas” (2013), integrou as coletâneas “Vidas & Grafias” (KO-
FES; MANICA, 2015) e “Novas Faces da Vida nas Ruas” (RUI; MARTINEZ; FELTRAN,
2016). É doutorando no PPGAS-UNICAMP.
E-mail: hugociavatta@gmail.com.
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

Boca do Acre (AM) em direção à Sena Madureira (AC), diante de


uma palmeira de coco amarelo, e Tatiarabu, como faria repetidas
vezes naqueles primeiros dias, sem que eu perguntasse, contava-
-me de algumas das plantas que estavam em volta de seu quintal.
Havia ainda aquelas que, mesmo distante de sua casa, no roçado,
ou apenas encontradas na mata, ele se lembrava delas e de suas
respectivas capacidades, de suas propriedades terapêuticas.

É mofo, é fungo, é bicheira, seu Hugo? Se tiver, passa o


suco do limão galego, ou óleo de mumuru [outra espécie
de coco]; Está vendo este capim aqui na frente? É pachuri,
tenho tomado chá dele quase todos os dias, é bom se falta
fogo, se você não consegue respirar direito. Quem tem co-
ração-crescido, vocês brancos chamam de mal de Chagas,
como eu tenho, é bom tomar, ajuda. (informação verbal)1

Tudo isso ele dizia praticamente sem levantar os olhos, manten-


do a conversa, fosse apenas comigo, fosse com outros Jamamadi
que estivessem próximos, com seus próprios olhos voltados para
o chão, ou mirando ao redor. Tatiarabu raramente direcionava seu
próprio olhar a seus interlocutores.

Num daqueles primeiros dias, também, ao tomarmos café, Tatiarabu


chamou e trouxe junto de si um dos cachorros que circulava entre
as casas na parte de baixo, próximo à margem esquerda do Purus,
de Massekury. Leãozinho se chamava o cão. Tatiarabu me convidou,
iríamos pela mata, ele iria me apresentar parte da aldeia, trechos
dos igarapés e dos roçados. Ao sairmos, ele levava a espingarda e
um terçado, e nos acompanhava o mesmo Leãozinho. Subimos o
barranco e chegamos à escola da aldeia, mantida pela Prefeitura
Municipal de Boca do Acre. Em vez de tomarmos à direita em dire-
ção às demais casas da aldeia, ou às casas de Pra-Cima-da-Terra,
como se dizia em Massekury, seguimos reto, na direção contrária à
margem esquerda do Purus. Havia um pequeno pasto antes de en-
trarmos na região dos roçados, que intercalava roçados e mata de
capoeira, até chegarmos à casa de farinha de Tauaturá, irmã mais
velha de Tatiarabu. Entre a mata fechada, os igarapés e os campos,

238
DESCOBRINDO UM XAMÃ
Hugo Ciavatta

duas vezes Tatiarabu falou que seu roçado estava tomado, de que
ele precisava limpar, ou pedir que alguém limpasse o capim, a ca-
poeira que avançava. Desde que soubera do mal de Chagas, dois
anos antes, Tatiarabu deixara seu roçado. Ao redor, os cultivos de
seus irmãos e sobrinhos, pelo contrário, seguiam a rotina dos cui-
dados, a dedicação à limpeza, não deixavam que a mata encobrisse
o roçado, o cercado e o plantio de macaxeira e de cará.

No nosso caminho, ainda, encontramos algumas crianças e ado-


lescentes seguidos de Mauani, umas das inecuré (mais velhos) de
Massekury. Mauani levava um cesto com macaxeira, e Tatiarabu
aproveitou para lembrar que iria me levar à casa dela, pois era
Mauani quem me ensinaria “as coisas dos Jamamadi”.

Ao lado do plantio abandonado de Tatiarabu, deparamo-nos com


uma espécie de marimbondo, Mangagá. Eram inúmeras as casas
do inseto pelo solo, eram pequenos buracos em volumes de terra
acumulados, semelhantes aos formigueiros. O zunido dos marim-
bondos era intenso e Tatiarabu percebeu meu incômodo. Eu recua-
va, procurava me afastar, manter distância da nuvem de Mangagá
que voava sobre o solo, e buscava uma maneira de não cruzar as
casas dos insetos pelo mato ao redor, já que os marimbondos es-
tavam em nosso caminho. Tatiarabu perguntou se eu estava com
medo, e eu disse que sim, questionando se ele também não tinha
receio. Tatiarabu riu bastante, dizen

do que não, já em tom sério, que ele não tinha medo de Mangagá.
Durante o percurso, também, Tatiarabu destacava nossa passagem
por algumas das árvores, por algumas plantas, como as castanhei-
ras que havia naquela área. Eram como uma referência para ele,
se estávamos mais próximos da casa de farinha de Tauaturá, se do
igarapé Boágua. Mas estas eram ainda referidas pelo tempo, ou pe-
la idade, como aquela logo depois do pasto, uma castanheira ainda
jovem, dizia-me, questionando se eu sabia reconhecer ser uma cas-
tanheira. Não, eu lhe falei, apenas aquelas muito altas, com a copa

239
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

arredondada fazendo-se notar no céu, no horizonte, eu era capaz


de reconhecer. Sim, ele confirmava, mas havia as mais novas, as
mais jovens. Tatiarabu, inclusive, um ano depois, iria escolher uma
daquelas castanheiras, mais próxima ao barranco do rio, como seu
túmulo. Debilitado por hepatite, como diagnosticaram os médicos
em Rio Branco (AC), antes de falecer, Tatiarabu pediu às irmãs que o
enterrassem no pé próximo daquela castanheira especificamente.

Da mesma forma, acontecia quanto a outras plantas, que Tatiarabu,


de terçado em punho, demonstrava profundo zelo, ele apenas as pu-
nha para o lado ao atravessar o caminho se elas lhe estivessem na
frente, enquanto que outros galhos, ou mesmo pequenos troncos,
eram cortados sem pudor. A árvore de Ucubá, cujo tronco era muito
fino, Tatiarabu parou para me explicar, era também jovem, ainda no-
va, mas nós, os brancos, vínhamos apanhando muito daquela árvore,
pois do caule se extraia um leite para tratamento médico.

Caminhar com Tatiarabu naqueles primeiros dias em Massekury foi


como Karen Shiratori (2018, p. 20-23) descreve suas primeiras im-
pressões e o cuidado de Berinawa, na aldeia de São Francisco, dos
Jamamadi orientais. À minha descrição, por este arranjo que aqui
apresento, chamo atenção então para a associação que estabele-
ço, compreendendo Tatiarabu pelo “olhar envenenado” (SHIRATORI,
2018), porém, com o qual eu nunca me deparei explicitamente. Faço
de minha descrição, à luz de Descola (2018), assim, uma compreensão
aproximada dos Jamamadi madiha de Massekury, contextualizando-
-os em relação aos demais povos arawá da região. Não empreendo,
contudo, o movimento final sugerido por Descola, o da explicação
dedutiva, criando um modelo explicativo para os Jamamadi madiha.
Minha hipótese procura enfrentar a questão de Tatiarabu denomi-
nar-se um ex-Pajé, mas, ao mesmo tempo, estar em relações que
lhe fazem um xamã. A partir dessas relações, entendendo-as como
a experiência de pesquisa ao seu lado, a circulação pela cidade, pela
aldeia, e a estadia ao lado de sua casa em Massekury como “as co-
nexões, as práticas de aprender a viver e morrer bem um com o outro
em um presente espesso” (HARAWAY, 2016, p. 1, tradução minha).

240
DESCOBRINDO UM XAMÃ
Hugo Ciavatta

SEU HUGO, PROFESSOR


Conheci o cacique Jamamadi de Massekury em 2016, Mamuré, ir-
mão de Tatiarabu. Naquele mês de setembro, durante a campanha
a vereador, na eleição municipal de Boca do Acre (AM), ou mesmo
no ano seguinte, quando eu permaneci na aldeia, ele me apresenta-
va através de meu nome, seguido de “antropólogo vindo fazer sua
pesquisa” e, no caso da eleição, ajudando na sua candidatura. Já
com Tatiarabu, eu era “professor vindo de São Paulo para ensinar”,
fosse na cidade, fosse na aldeia, e ele dizia isso seca e resumida-
mente. Tatiarabu talvez respondesse aos olhares, aos apontamen-
tos pelas ruas da cidade que se dirigiam a mim quando eu caminha-
va com adolescentes de Massekury, ou quando eu, sozinho pelas
ruas, vestia um uniforme da equipe de futebol da comunidade es-
tampado na frente com um “Aldeia Massekury”.

Ao “professor” eu só não acrescentei o “antropólogo fazendo minha


pesquisa” na primeira vez em que Tatiarabu se referiu assim à mi-
nha presença. Eu acabava de chegar a Massekury e, naqueles dias
de abril, fomos a um dos lagos próximo ao Purus. Pescávamos num
canto sombreado pelas árvores, Tatiarabu, um de seus sobrinhos,
Risi, e eu, todos dentro da pequena e estreita canoa. Já havíamos
deixado a malhadeira do outro lado, mais ao fundo do lago, do lado
oposto à entrada que subimos, e então levantamos nossos caniços
à sombra. Cortando o barranco sobre as folhas na terra, escorreu
uma canoa maior, feita de um único tronco de árvore, da lama para
a água. De pé, dentro da embarcação, caminhando lentamente do
canto que por último tocou a água ao centro da canoa, um senhor
branco, corpulento e vagaroso, com calças pretas rasgadas, chapéu
de palha, camisa branca aberta, sem botões e com marcas de terra,
dirigiu-se espaçadamente a Tatiarabu, “ô, compadre!”. Tatiarabu
lhe devolveu a saudação e, depois das tratativas sobre a quantida-
de de peixe no lago, ouvimos daquele homem, já sentado no centro
de sua canoa, parada diante de nós, e que separava e enrolava seu
cigarro nos mirando, com o mesmo vagar na fala:

241
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

Aqui só tem pai de família, só gente trabalhadora, e vem


multar... Querem tirar da gente, atrapalhar o sustento, só
prejudica, só faz mal a pai de família. Aqui já não tem mais
derrubada, eu mesmo já parei tem muitos anos, nem deixo
que façam nesta beira do lago. (informação verbal)2

Tatiarabu, pois, apresentou-me: “Esse aqui é o seu Hugo, compa-


dre, ele veio lá de São Paulo, é professor, veio ensinar, vai ficar lá
com a gente”. Eu apenas assenti, tentando sorrir.

Estava eu trazido às mesmas sentenças do ano anterior, quando nas


proximidades do porto de Boca do Acre, no encontro das águas do
rio Acre com o Purus, enquanto esperava por Mamuré em um fim
de tarde, ouvi: “Só prejudicam pai de família, o trabalhador vai fazer
seu roçado, vai limpar o terreno para suas cabeças de gado, e vem
multar, vem dizer o que pode e o que não pode fazer”, quase como
um aforismo vindo do vendedor de salgados na beira do barranco. Eu
pedira um refresco, não havia mais ninguém debaixo do toldo, sen-
tara-me, e diante do meu questionamento, “Mas quem é que vem?”,
ele só me ofereceu um salgado. Entendi que ele estava falando de
“gente como eu” sem necessariamente querer dialogar comigo, ainda
que trocássemos algumas palavras a respeito do que ele me vendia.

No ano seguinte, então, na conversa à beira do lago, Tatiarabu não


queria que eu fosse confundido “com quem vem multar”, ao mesmo
tempo, não queria que eu fosse entendido como quem eu era, um
antropólogo. Tatiarabu sabia que, se eu não estava ali “para multar”,
meu trabalho poderia dizer “o que pode e não pode fazer” naquelas
áreas. Era sua maneira de me introduzir àquela região, na qual “a
fronteira amazônica tem sido brutalmente rearticulada por uma po-
lítica em grande escala de ocupação demográfica, de redistribuição
espacial promovida pelo Estado” (ALBERT, 1995, p. 2, grifos do autor).

Mesmo assim, alguns dias depois, Tatiarabu voltaria a este ponto.


Na casa de Mauani, enquanto ela andava de um lado para outro
dentro de sua casa, gesticulando, esbravejando em língua arawá,
Tatiarabu, que me levara até ali, abaixara a cabeça e descera as

242
DESCOBRINDO UM XAMÃ
Hugo Ciavatta

escadas na frente da casa. Do lado de fora, ele mantinha o olhar no


chão, como quase sempre, mas claramente desconfortável. Mauani
seguia com o tom de voz elevado, vinha até a entrada de sua casa
próximo às escadas, apontava para o Purus, apontava para o baixo
curso do rio. Sentado na entrada da casa de Mauani, eu não soube
o que fazer, e esperei até que alguém me dirigisse a palavra. Eu mal
acabara de chegar à aldeia Jamamadi, Tatiarabu havia me dito que
Mauani era quem sabia contar as “histórias de antigamente”, ela
então iria me “ensinar as coisas de seu povo”, como quando a en-
contramos no caminho do roçado.

A única palavra que eu entendi diante de Mauani vinha em por-


tuguês, era o nome da então coordenadora do Grupo de Trabalho
(GT) para a demarcação de Massekury, impedida de voltar à aldeia
anos antes justamente por Tatiarabu. Quando Mauani parou, houve
silêncio por longos minutos. Tatiarabu, após isso, mais uma vez,
como fizera na primeira vez que nos vimos, no estádio de futebol,
em Boca do Acre, no ano anterior, questionou-me, ele não enten-
dia como eu poderia ser um antropólogo mas não ser da Fundação
Nacional do Índio (FUNAI); como eu poderia ficar ali, aprender com
eles, mas não fazer a demarcação; ele mesmo repetia, “você é an-
tropólogo também, mas não é da FUNAI” – “também”, para ele,
como a então coordenadora do GT. Tatiarabu e o filho de Mauani
conversaram, e este, por sua vez, em seguida, falou com sua mãe,
novamente em arawá. Por fim, Tatiarabu me pediu que fôssemos,
que mais para a frente, nos próximos dias, Mauani iria me ajudar a
“aprender as coisas dos Jamamadi”.

A então coordenadora do GT de demarcação para Massekury, con-


tígua à aldeia Apurinã mais abaixo no curso do Purus, entre 2014
e 2015, viera com a equipe da FUNAI. Três antropólogos mais uma
geógrafa fizeram uma expedição de alguns dias, estiveram nas al-
deias e, em acordo, a antropóloga coordenadora, doutoranda, volta-
ria depois para realizar sua pesquisa, terminando assim o Relatório
Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), documento
que fundamenta o reconhecimento das Terras Indígenas (TI) no

243
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

país desde a Constituição de 1988. Tatiarabu, contudo, rompeu es-


se acordo e impediu que a coordenadora voltasse posteriormente
para realizar sua pesquisa de doutorado. Desde o início de minha
pesquisa, eu sabia desse não retorno, afinal, foi com a coordenado-
ra o contato para que eu realizasse parte do meu doutorado junto a
Mamuré. Sabendo da negativa de Tatiarabu, o que eu desconhecia,
entretanto, contado pelo filho de Mauani, na tarde seguinte ao en-
contro ríspido de sua mãe e Tatiarabu, era que tal atitude resultara
em discussão, em briga, em um grande distanciamento, nas pala-
vras do rapaz, entre Mamuré e Tatiarabu. Mauani expunha então,
naquela tarde, explicava para mim, sem me dirigir a palavra, o que
passei a entender como rivalidade entre Mamuré e Tatiarabu.

Tatiarabu repetiu, ainda, em alusão à demarcação, à presença de


pesquisadores, depois que eu dizia quem eu era e o que estava fa-
zendo em Massekury, para os brancos que ali passavam. Brancos
como o marido da professora da escola, ou como o compadre
Tapioca, posseiro que vivia na margem direita do Purus, cuja casa
era praticamente em frente à de Tatiarabu, e cuja enteada era es-
posa de Risi. Tatiarabu me apresentava como “professor”, eu acres-
centava “antropólogo fazendo pesquisa”, ele então falava sobre as
derrubadas das fazendas ao redor:

Eu estou é cansado de receber gente aqui dizendo que


vai resolver, que vai parar a derrubada, que vai expul-
sar essas invasões aí [apontando para as fazendas vi-
zinhas] e ninguém faz é nada; eles vem, a gente fala,
as pessoas ficam aqui, a gente fala, eles vão embora, o
tempo passa, e continua a mesma coisa, ninguém re-
solve nada e a gente aqui”. (informação verbal)3

Desde os anos 1980, a FUNAI solicitava estudo e reconhecimento


da área de Massekury, e estava então em seu terceiro Grupo de
Trabalho, na feitura do RCID.

Naquele momento, no plano conceitual que sugere Jeanne Favret-


Saada (2005), eu não estava apenas “sendo afetado” por uma lin-

244
DESCOBRINDO UM XAMÃ
Hugo Ciavatta

guagem dos Jamamadi, fosse de parentesco, mítica ou xamânica,


eu também os estava afetando nas relações em que eles viviam,
afinal, eu era “mais um antropólogo”, e não um qualquer, era um
chegando através de uma pesquisadora que esteve ligada à FUNAI,
e que já estivera ali. Os Jamamadi de Massekury pareciam me inse-
rir numa “rede particular de comunicação”, que não se apresentava
como feitiçaria, mas era uma modalidade de “ser afetado” (FAVRET-
SAADA, 2005). Nos termos da autora, então, eu precisava elaborar
um dispositivo metodológico para também me relacionar naquela
linguagem das relações Jamamadi, eu precisava ocupar um lugar
na rede Jamamadi de comunicação que me era apresentada.

Tatiarabu faleceu em 2018, mas estive com ele em Massekury no


ano anterior, cheguei com Mamuré, e quando este estava na aldeia
naqueles meses de 2017, Tatiarabu colocava-se mais silencioso,
mais discreto, isso desde o primeiro dia foi claro. Mamuré disse
naquele início de abril, logo que desembarquei, “aqui na casa de
Tatiarabu, que foi da nossa mãe, você vai ficar aqui, Hugo”, algo que
só entendi depois. Era Mamuré querendo estabelecer os termos da
relação (STRATHERN, 2006), aquela que já havíamos começado no
ano anterior. Mamuré saía, ausentava-se, Tatiarabu mudava o tom,
punha-se expressivo e modificava os termos da relação, afinal,
na ausência de Mamuré, ela não era a mesma. E foi assim desde
aquele primeiro dia, Mamuré partiu, retornou para Boca do Acre, e
Tatiarabu pediu que eu fosse para a casa ao lado, a “igrejinha”, co-
mo chamavam a casa em que se hospedava um dos professores da
escola primária, mantida pela Prefeitura Municipal de Boca do Acre,
para os Jamamadi da aldeia, e que ocasionalmente servia de local
para a celebração de uma missa pelo padre da paróquia da mesma
cidade. Tatiarabu, em seguida, exigiu-me, “você vai ficar aqui, diz
que vai aprender com a gente, mas nós também vamos aprender
com você, seu Hugo; você trouxe seu computador, não é?, então
vai dar aulas de computação para a gente aqui na aldeia”. Não era
uma questão, não era uma possibilidade, não era um acordo, era
uma exigência. Não era um chamado à feitiçaria, mas me parecia
como modo de “ocupar um lugar” naquela “rede de comunicação”

245
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

Jamamadi (FAVRET-SAADA, 2005), que eu fosse professor e que eu


pudesse acrescentar, às vezes, a condição de pesquisador.

Nas primeiras semanas, Tatiarabu aparecia na varanda de sua casa,


às vezes, vestindo seus óculos, com papel e caneta, às vezes, lendo
um relatório sobre a BR-317, ou a Legislação Indigenista Brasileira.
“Eu também, como você, estou estudando”, fazia questão de frisar.
As aulas de informática eram esporádicas, aconteciam quando ele
me solicitava: ele queria digitar algumas linhas do que estava len-
do, algo das planilhas da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA)
de sua atividade enquanto Agente Indígena de Saúde (AISAN), ou
conferir se contas matemáticas que ele fazia estavam corretas.
Tatiarabu repetia, “eu sei, eu sei, eu sou esperto, eu aprendo rápido,
seu Hugo”, e me interrompia se minhas explanações se alongavam.
Depois das primeiras aulas, nas primeiras semanas, começamos
a caminhar por Massekury, Pra-Cima-da-Terra, quando Tatiarabu
estava oferecendo minhas aulas de informática, era quando eu
acrescentava o “antropólogo fazendo minha pesquisa”. Fosse para
mim, fosse comigo ao lado, falando apenas em parte de um “acordo
de pesquisa”, Tatiarabu me remetia ao chefe Nambiquara em seu
encontro com Claude Lévi-Strauss (1996), à necessidade de de-
monstrar controle, ou autoridade, alguma manifestação de poder,
fosse em relação aos seus ou, ao mesmo tempo, como um exercí-
cio de mostrar-se capaz das mesmas coisas que um branco, fosse
também se dirigindo a estes, como na beira do lago.

COMUNICANDO-SE COM UM EX-PAJÉ


Depois daquele primeiro mês, conversávamos na varanda da casa
de Tatiarabu, este, Mamuré, Risi, sobrinho de ambos, e eu, o céu foi
cortado por um feixe de luz incandescente. Era fim de tarde, mas
na outra margem do Purus já escurecia. Mamuré se sobressaltou:
“Olha ali, lá, lá! Mira ali, olha!”. A chama se apagou na altura da co-
pa das árvores. Antes de Mamuré, eu havia notado a luz cruzan-
do o céu e, naquele instante, esperava pelo estrondo de um fogo

246
DESCOBRINDO UM XAMÃ
Hugo Ciavatta

de artifício, de um rojão. Enquanto Mamuré apontava, chamando


nossa atenção, eu me desfiz de minha própria associação: quem,
em Massekury, atrás da casa de Tatiarabu, mata adentro, estaria
soltando um fogo de artifício. Risi foi logo dizendo, “Lá vai feitiço! Lá
vai cobra, lá vai bicho, lá vai envio de Pajé para outro canto!”. Pajé? –
eu perguntei –, mas não tem mais Pajé por aqui, não é? – continuei.

Era o que Tatiarabu dizia eventualmente, desde que eu chegara.


Tatiarabu inúmeras vezes questionou meu trabalho, como diante
de Mauani: por quê? Para que visitar, deixar-se em meio aos indí-
genas? Ele também se mostrava interessado sobre os parentes
Ticuna, com quem eu da mesma forma realizava pesquisa. Para
Tatiarabu, “os Jamamadi de Massekury não tinham mais cultura”,
“nós não fazemos mais festa”, dizia-me ele: sem festa, sem cul-
tura. Quando falava sobre isso, Tatiarabu, aquele quem conhecia
as plantas e suas propriedades terapêuticas, acrescentava, “aqui
também não tem mais Pajé”. Eram como que aforismos constan-
tes direcionados ao antropólogo que não era da FUNAI, “não temos
mais cultura; aqui não tem Pajé”.

Diante de meu questionamento, com o feixe de luz que acabara


de cruzar o céu, Risi então prosseguiu: “Tem não, aqui não tem
mais Pajé, mas aí acima desse rio, lá nos Kulina, tem!”, corrigiu-se.
Mamuré deu continuidade, “É, não tem, mas eu já fui Pajé, Hugo”, e
contou como lhe aconteceu. “Esperando na mata” – expressão que
os Jamamadi usam para se referir às expedições de caça –, muitos
anos atrás lhe apareceu, como que em “sonho”, durante a vigília do
sono, uma mulher, e permaneceu com Mamuré, acompanhando-o.
A “imagem de uma mulher”, um “espírito”, um “sonho”, como se re-
feria Mamuré ao seu katuhe4, era quem o fazia Pajé.

O katuhe passava a viver junto daquele para quem aparecia, “fazen-


do morada”, tanto interna quanto externamente a esse sujeito então
tornado Pajé, viajavam pelos lugares, caminhavam. Quando Pajé, in-
clusive, num jarro se guardam as construções, as criações feitas junto

247
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

ao katuhe. Entretanto, para os Jamamadi madiha de Massekury, assim


como aparecem, às vezes, os katuhe podem ir embora. Pajés estão su-
jeitos a “roubos” de katuhe, roubos feitos por outros Pajés, como numa
disputa: um Pajé pode “virar do avesso” outro Pajé, sem que este per-
ceba, comentava Mamuré. De um dia para o outro, finalizava Mamuré,
seu katuhe o deixou, fazendo com que ele mesmo não fosse mais Pajé,
“Tenho pra mim que foi roubo, mas nunca fui atrás disso”.

Tatiarabu, até então em silêncio, por fim, “Pois é, seu Hugo, isso eu não
te contei, mas eu também já fui Pajé...”. Diferentemente de Mamuré,
contudo, seu katuhe não lhe apareceu de repente, Tatiarabu foi “en-
sinado”, como ele dizia, ele passou por uma iniciação com outro Pajé
do Inauini, Terra Indígena Jamamadi no Médio Purus, mais próxima de
Pauini (AM) que de Boca do Acre. Apenas Tatiarabu, em Massekury,
conhecera aquelas áreas, aqueles outros Jamamadi, fosse por via-
gens pela FUNASA/Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), da
qual era funcionário, fosse pelo movimento indígena local e regional.
Tatiarabu falou rapidamente sobre o processo para se tornar Pajé:
foram dias sem banho, deitado, acordava, havia pedras sobre o pei-
to, katuhe era quem as trazia, guardava-as em seu jarro.

“O katuhe faz encantação tanto de doença, de feitiço, como de cura,


seu Hugo, o meu era um médico branco”, contava Tatiarabu. Curara
Tauaturá, por exemplo, sua irmã e mãe de Risi, mas não conseguira
curar Moratu, sua própria mãe, foi quando percebeu que também
perdera seu katuhe. Tivera embarcação grande, viajava e voava pela
região com seu katuhe. Tatiarabu acreditava que o mesmo Pajé que
o ensinara, roubara-lhe. Os katuhe poderiam ser como mulheres,
como homens, como onças, como cobras. Como Pajé, Tatiarabu ficou
“fraco” ao mesmo tempo em que adoecera, “foi quando descobri que
tinha coração crescido, seu Hugo”. Assim, como Mamuré, Tatiarabu
também deixara de ser Pajé. “Então é isso, seu Hugo”, levantara-se
Tatiarabu naquele início de noite, encerrando a conversa.

248
DESCOBRINDO UM XAMÃ
Hugo Ciavatta

Quando eu queria continuar sabendo sobre os katuhe, Tatiarabu e


Mamuré se limitavam a dizer que não sabiam, que só mesmo com
quem era Pajé para saber. Mas o “pois é” de Tatiarabu tornou-se
para mim como um eco em meio à conversa no fim daquela tarde,
funcionava como continuidade de uma maneira de se comunicar
dos Jamamadi; o feixe de luz cruzando o céu de forma incandes-
cente, quase um distúrbio de percepção (FAVRET-SAADA, 2005),
um aforismo, uma linguagem ao mesmo tempo xamânica, política,
enfim, uma cosmopolítica Jamamadi madiha.

Próximo do fim do primeiro período em que estive em Massekury,


numa tarde em que Mamuré estava derrubando uma capoeira
perto da casa de Tatiarabu, perguntei a esse último se não íamos
continuar as aulas de informática. Fazia tempo, então, ele sumira.
Tatiarabu abriu um sorriso, seguido de um ar grave: “vou não, só se
começar a entrar dinheiro, não preciso mais de saber disso, não, já
aprendi tudo; quero é saber, disso vocês não ensinam a gente, que-
ro saber é como derrubar a FUNAI”. Eu lhe disse que não estava en-
tendendo, ele queria dinheiro para que eu continuasse ensinando a
utilizar o computador? Por que ele queria derrubar a FUNAI, a única
instituição estatal, dos brancos, que poderia ajudá-los? Mamuré
apareceu entre a gente e foi falando sobre a demarcação. “Não,
Hugo, sabe, é que o relatório final da demarcação não foi entregue,
teve também o Tatiarabu, que não deixou a coordenadora voltar,
para ficar aqui, como você está hoje. Então ficou isso da FUNAI, a
demarcação, os antropólogos”. Tatiarabu ficou calado.

Perguntei diretamente a Tatiarabu por que ele negou o retorno:


“demoraram muito, é sempre a mesma coisa, ah, eu não deixei
mesmo”. Eu disse que era assim, que é demorado, que o meu tra-
balho, que seria o da coordenadora anos atrás, também demoraria
anos para poder ficar pronto. Mas Tatiarabu deu outras versões
para negar o retorno da coordenadora do GT da FUNAI no fim da-
quele período, quando o assunto retornava à pauta das conversa-
ções, sempre com Risi como interlocutor, e estando ou não Mamuré
presente. Tatiarabu, sempre muito enfático, elevando o tom de voz,

249
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

gesticulando, “não quero saber da FUNAI aqui, não, seu Hugo... era
pra eu ser a FUNAI aqui em Boca do Acre, mas os parentes não me
quiseram, não me elegeram”. Tatiarabu referia-se à criação da base
local da FUNAI na cidade de Boca do Acre, quando a então União das
Nações Indígenas (UNI), em sua vertente regional, em assembleia,
elegeu um Apurinã como técnico responsável pelo espaço.

Tatiarabu deixou claro, por fim, que à relação que me trazia ali, uma
relação eminentemente com Mamuré, Tatiarabu se opunha, eu era
uma extensão de sua rivalidade com seu irmão. O ex-Pajé e irmão
do cacique passou a dizer para seus sobrinhos, no fim de minha es-
tadia na aldeia, em 2017, que eu estava ali e não ia ajudar ninguém,
que eu não era “boa pessoa”. Foi o que veio me contar a merendeira
da escola, branca, esposa de um dos filhos de Risi e, portanto, “so-
brinho-neto” de Tatiarabu.

Após pensar o que fazer, decidi perguntar diretamente a Tatiarabu


por que ele estava dizendo aquilo. Ao lado de Mamuré, Tatiarabu
me acusou: “você mesmo disse, seu Hugo, aqui, olha – apontava
para a entrada de sua casa –, que não ia me ajudar, que não ia fazer
a carta que eu pedi para o senhor – e movimentava os braços, co-
mo se eu o tivesse empurrado –, para levar na FUNASA”. Tatiarabu
reproduzia uma cena segundo a qual eu teria dito aquilo, e ele tro-
cava de posição, repetindo o que ele teria me dito; o que teria me
pedido, e novamente trocava de posição, encenando minha reação
e o que eu teria dito: “‘se você quer, você mesmo que faça, que eu
não vou ajudar ninguém!’” – era o que eu teria dito, e mais uma vez
ele movimentava os braços, como se eu o tivesse empurrado; “eu
não preciso de você, seu Hugo, eu sei fazer, eu mesmo vou fazer!”,
completava, dessa vez se dirigindo a mim no instante daquele diá-
logo, comigo o questionando. Mas ele não me dirigia os olhos, pelo
contrário, claramente olhava apenas para Mamuré.

A carta que ele mencionara, que havia me pedido e eu fizera, esta-


va pronta, só não estava impressa pois não tínhamos ido à cidade

250
DESCOBRINDO UM XAMÃ
Hugo Ciavatta

nos últimos dias. Aquele diálogo não acontecera, eu não disse nada
do que Tatiarabu falava, tampouco havia feito o que ele simulava.
De nada adiantou dizer isso, ou mesmo de nada resolveram as mi-
nhas negativas de não ter dito nada do que ele dissera e encenava.
Tatiarabu encerrou a conversa com um “se eu estou falando, então
é isso, acabou”, e continuava mirando apenas seu irmão, sentado no
outro canto da varanda. Mamuré nada falou, retirou-se, e Tatiarabu
seguiu atrás. Eu estava devidamente “enfeitiçado”, ocupando um
lugar numa rede de comunicação (FAVRET-SAADA, 2005).

Nos dias que se seguiram a isso, mais do que se opor à relação que
comunicava a minha presença em Massekury, Tatiarabu chamava
as crianças que via próximas de mim, conversando ou somente
brincando perto da “igrejinha” onde estava a minha rede. Ele nunca
fizera aquilo naqueles quatro meses de minha presença na aldeia.
Onde eu estava, Tatiarabu passou a não estar, se eu entrasse em
sua casa, ele saía. Durante cerca de vinte dias, eu era como que
“contagioso”: ninguém poderia ficar perto de mim, Tatiarabu tam-
bém não ficava. Meus diálogos, naqueles dias, resumiram-se a
conversas rápidas com suas irmãs, Tauaturá e Zaqui, que pareciam
rir da situação, eu não sabia se de mim, se de Tatiarabu, ou, claro, se
de ambos. Minhas conversas também eram frutos dos encontros
na minha circulação em Pra-Cima-da-Terra.

Na última semana, contudo, para quando eu já avisara, desde o início,


minha partida, Tatiarabu simplesmente me procurou na “igrejinha” di-
zendo que queria que eu fizesse uma carta para a FUNASA, para fazer
pedidos de alguns equipamentos de que a aldeia precisava. Era o mes-
mo pedido que ele me fizera semanas antes, e o qual ele dissera que
eu lhe neguei, e para o qual ele me acusava, dada a representação vio-
lenta que realizara. Sequer mencionei nada disso, procurei esconder
qualquer tipo de hesitação, ou surpresa, naquele instante, e apenas
aceitei e pedi que ele passasse para dentro, eu ligaria o computador e
aprontaríamos imediatamente o que ele me pedia.

251
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

APENAS UMA IMAGEM NA TELEVISÃO


Já passado mais de um mês que eu estava na aldeia, quase um mês
de olhares de viés de Tatiarabu para mim, passou por lá Tasso, rapaz
jovem, branco, expansivo, eu o vi de longe quando ele subiu o barranco
do rio, foi cumprimentando todo mundo, bastante sorridente. Tasso
acompanhava a linha de transmissão elétrica que cruza parte da flo-
resta e leva energia para casas na beira do rio, na região, nas fazendas
e nas aldeias. Faz a mensuração do consumo de energia, nos relógios
distribuídos pela linha, mas não é todo mês. Quando fazia as visitas
naquela margem, na altura de Massekury, Tasso se hospedava na ca-
sa de Tatiarabu. O rapaz ficava duas noites, três dias. Naquela primeira
noite, em 2017, assistindo à televisão, ao Jornal Nacional da emissora
Globo, Tasso se empolgou quando apareceu o ex-capitão do exército e
deputado Jair Bolsonaro: “vou votar nele para presidente!”. Estávamos
Tatiarabu, seus sobrinhos Risi, Zuvirri e eu. Ficamos em silêncio. “Eu
vou votar nele pra presidente!”, insistiu Tasso indisfarçavelmente pe-
dindo interlocução, olhando, um depois do outro, Tatiarabu, Risi, Zuvirri
e eu. Dessa vez não era um aforismo. O três Jamamadi se levantaram,
saíram da frente da TV e foram para a cozinha, nos fundos da casa. Eu
abaixei a cabeça e me mantive em silêncio.

Eu só conseguia pensar em Amélia Teles5, nos filhos dela, pensava


que eu estava na Amazônia, entre os Jamamadi, e ouvindo alguém
entusiasmar-se com Jair Bolsonaro, o deputado que um ano antes
oferecera seu voto a favor do impedimento de Dilma Rousseff, en-
tão presidente da República, ao coronel Brilhante Ustra, reconhe-
cido pela justiça brasileira como torturador6. Mulher torturada na
cadeira-do-dragão e exposta aos filhos; “Vou votar nele para pre-
sidente!”; pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de
Dilma Rousseff: cada uma dessas sentenças se confundiam repeti-
damente para mim, enquanto ficamos Tasso e eu na sala.

Alguns minutos depois, Tatiarabu voltou: “olha o rancho, Tasso,


pode chegar; vem comer também, seu Hugo”. Comi repetindo para

252
DESCOBRINDO UM XAMÃ
Hugo Ciavatta

mim mesmo, você é só um pesquisador, é a vida dessas pessoas,


são as relações que eles vivem diariamente, não reaja, Bolsonaro
é só uma “imagem na televisão”. Tatiarabu era muito comunicativo,
contador de histórias, contador de causos. Com Tasso não era dife-
rente, eles passavam horas conversando, rindo, lembravam do pai
de Tasso. A noite terminou dessa forma.

Quando Tasso voltou à aldeia, cerca de dois meses depois, pensei,


lá vem novamente Amélia Teles em seus dejetos na cadeira-do-dra-
gão, exibida para suas crianças por um triunfante e covarde coro-
nel, só faltava novamente aparecer na televisão seu pretexto, para
Tasso deixar claro seu prazer. Insólito pensamento, horas depois
o destino veio como profecia, e foi uma repetição, Tatiarabu e seu
sobrinho Risi se levantavam e iam para a cozinha enquanto Tasso
dizia, “eu vou votar nele para presidente!”, lá estava Jair Bolsonaro no
Jornal Nacional de novo. Foi só nesta segunda vez que me dei conta:
Tatiarabu e seus sobrinhos não ofereciam escuta para Tasso naque-
le momento. Também me levantei, ia acompanhando-os, mas parei.
Sentei-me na frente de Tasso e o questionei sobre o então deputado.
A conversa se estendeu, e quando o assunto chegou à demarcação
das Terras Indígenas no Purus, Tasso disse: “Não, mas aqui o pessoal
nem é índio de verdade. Índio de verdade a gente só encontra lá para
baixo, lá para cima, tem que andar neste rio aí – apontava para fora –
aí, sim, são índios de verdade, andam tudo pelado, se pintam, fazem
festa. Aqui perto da cidade não tem índio de verdade, não, não tem
que ficar demarcando terra pra essa gente aqui, não. Ele tá certo!”.
Referia-se à contrariedade de Bolsonaro à demarcação das TIs.

Tauaturá, irmã de Tatiarabu, entrou com uma panela de comida,


olhando para mim. Tatiarabu veio logo atrás: “Olha o rancho, vamos
jantar, vamos comer, minha gente, pode chegar!”. Veio a novela na
televisão, comemos, conversamos sobre a novela, Tatiarabu contou
mais de suas histórias, de seus causos e a noite terminou como sem-
pre. Rimos. Na noite seguinte, felizmente, Bolsonaro não apareceu
na televisão. Veio o outro dia e no café da manhã, quando Tasso já
partira, enfim, notei o olhar de Tatiarabu, expressa e claramente

253
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

posto em mim, mirando-me nos olhos, dirigindo-me a palavra com


sua ênfase, seu agitar dos braços, seu nervosismo que percebera
desde o primeiro encontro: “É um safado, seu Hugo, por isso que de-
fende gente igual a ele! É um safado este Tasso!”. “É, sim, seu Hugo,
safado” – completava Zaqui, outra das irmãs de Tatiarabu.

Fiquei um pouco assustado, sem entender direito, e Tauaturá me


sorria. Zuvirri também sorria. Risi, por sua vez, pitava o cigarro rin-
do folgadamente. Tatiarabu prosseguiu:

A gente lá da cidade fala que esse Tasso vive pendurado no


dinheiro emprestado do pai: isso é um safado dos grandes,
eu tô te falando, seu Hugo, por isso é que fica defendendo
safado na televisão que nem o senhor viu, safado igual a
ele. Branco gosta de pensar, acha que índio é burro! (infor-
mação verbal)7

Não houve rapé, mas aquele que se dizia um ex-Pajé estava como que
“com os olhos se abrindo”. Oras, não para o mundo invisível (KROEMER,
1994, p. 143), tampouco ocorria uma passagem regressiva, já que au-
sente o tabaco, como que da posição de outro para a de presa, ou do
delicioso ao veneno (APARÍCIO, 2017, p. 21-22). A “explosão do olhar”
revelava um outro conjunto de relações (STRATHERN, 2006).

Fiquei com a expressão “gosta de pensar”, e com a minha surpresa


do olhar de Tatiarabu, ex-Pajé, decididamente sobre mim naquela
manhã. Olhar que não durou muito, pois na hora do almoço ele já
estava me olhando de lado outra vez. Mamuré também reapare-
cera na aldeia e comia conosco, Tatiarabu voltava a cultivar seu
silêncio, sua reserva. A minha relação primeira era com Mamuré, e
era sempre reposta por Tatiarabu.

Em 2019, também em Massekury, enquanto fumávamos na varan-


da, Risi e eu, um menino vestido todo de azul começou a descer o
barranco, saindo da mata, na mesma direção em que corria o fio
de transmissão de energia elétrica. Zuvirri nos apontou o rapaz,
“vieram ver a luz, fazia muito tempo que não vinham!”. Não era

254
DESCOBRINDO UM XAMÃ
Hugo Ciavatta

Tasso, reparei de longe. Esbaforido pela caminhada, pelo calor, o


rapaz chegou perguntando onde estava o relógio para fazer a me-
dição do consumo de energia elétrica. Risi lhe disse que atrás das
casas, próximo ao cajueiro e emendou a pergunta: “e cadê o Tasso
que nunca mais veio, por onde anda?”. “Ah, rapaz, e Tasso é besta?
Virou foi fazendeiro, agora só quer saber de bois, de fazer pasto e
de criar bois! Tasso está boiado!”, foi o que nos contou o rapaz que
o substituiu. “Boiado” é a expressão que se ouve na região do Alto
Purus para quem tem muitos bois, algo equivalente a ser conside-
rado rico, quem possui muitos bens materiais.

CONCLUSÃO
Seja na metafísica vegetal dos Jamamadi orientais, contados por
Karen Shiratori (2018), “na guerra mundial nos céus”, seja do mundo
perigoso, o qual descreve Fabiana Maizza, para os Jarawara:

[...] as relações Jarawara, as relações entre ‘seres vivos’,


são relações de predação, e isto faz com que os encontros
sejam sempre entre presas e predadores […] os relatos
falam sobre algo em comum: a violência do mundo. É jus-
tamente esta violência que impulsiona as transformações
dos seres e do território (MAIZZA, 2012, p. 47).

Esses povos arawá também estão em consonância com os


Jamamadi ocidentais, ou Jamamadi madiha, que podem “perder”
ou terem “roubados” seus katuhe, como os ex-Pajés de Massekury,
indicando que as relações, claro, visões de mundo aproximadas, às
vezes, estão ordenadas particularmente (GORDON, 2006).

Numa daquelas primeiras tardes em que Tatiarabu me apresentou


à Pra-Cima-da-Terra em sua aldeia, ficamos presos na chuva, uma
chuva fortíssima, que levou a tarde, a noite, foi madrugada aden-
tro. Enquanto esperávamos, eu não tinha atentado para algo que
aconteceu naquele dia. Depois que percebemos que a chuva não

255
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

daria trégua, deixamos minha mochila na casa de Mauani, a mesma


senhora que em seguida tornaria evidente muitas das tensões em
Massekury. Com nossas duas lanternas, entramos na chuva, vol-
tando à margem do rio.

Em nossa frente, na frente da casa de Mauani, estava um pasto e


um campo de futebol, e tudo, apesar de muito alto, estava enchar-
cado, a água cobrindo os pés. Depois de atravessarmos o pasto,
que se confundia com o campo de futebol, e já tendo contornado
a voçoroca, para descer o barranco, o caminho tornara-se intensa
correnteza de água, em trechos, mais rápida, noutros, mais empo-
çada. Óbvio, havia trilhas, todavia. A água cai, e cai intensamente, às
vezes, durante dias, encharca, molha, empoça, inunda, mas assim
que baixa, deixa ver trechos mais duros, secos, no solo, na terra,
e ali a água não para. É aí que se caminha mata adentro, é por ali
que se vai, que se volta, que se fica, que se faz moradia. Tatiarabu
mirou a correnteza da água no chão, em meio às nossas lanternas,
e disse: “pisa aqui, seu Hugo, vai por aqui que você não cai, não es-
correga”. Era assim mesmo, pisando onde a água corria, que íamos
caminhar naquela noite. Foi preciso pisar na correnteza, por mais
absurdo que me parecesse, para não cair. Talvez Tatiarabu estives-
se anunciando o transcorrer daqueles meses, isto é, num mundo
perigoso (MAIZZA, 2012), mesmo se dizendo ex-Pajé, portanto, sem
a dimensão ritual do xamanismo atravessando planos da vida so-
cial (CARVALHO, 2002), sua comunicação, suas relações eram e se
estabeleciam em meio a uma guerra (SHIRATORI, 2018) imanente.

Notas
1 Conversa com Tatiarabu, em Massekury, 2017.

2 Conversa com Tatiarabu, em Massekury, 2017.

3 Conversa com Tatiarabu, em Massekury, 2017.

4 Os Dení, também Arawá como os Jamamadi madiha, descrevem katuhe


como pedra xamânica, aquela inserida no processo de iniciação de um

256
DESCOBRINDO UM XAMÃ
Hugo Ciavatta

Pajé, “katuhe é uma substância consistente, amarelada, semelhante à


cera que se extrai das colmeias de abelhas na floresta; normalmente
o xamã mastiga essa substância antes de ter visões e de comunicar-se
com os espíritos” (KOOP; LINGENFELTER, 1983, p. 44).

5 COMISSÃO DA VERDADE. Arquivo CNV, 00092.000600/2013-19. Teste-


munho de Maria Amélia de Almeida Teles em Audiência Pública reali-
zada pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva
em parceria com a CNV, em 25 de março de 2013. 33 p. In: COMISSÃO DA
VERDADE. Relatório. Capítulo 10 – Violência sexual, violência de gê-
nero e violência contra crianças e adolescentes [Documentos]. Bra-
sília: CNV, 2014. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.
br/images/documentos/Capitulo10/Nota%2021%2030%20-%20
00092.000600_2013-19%20%20Maria%20Amelia%20de%20Almeida
%20Teles.pdf. Acesso em: 26 mar. 2020.

6 ARRUDA, R. Justiça de São Paulo reconhece Ustra como torturador. O


Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 ago. 2012. Disponível em: https://po-
litica.estadao.com.br/noticias/geral,justica-de-sao-paulo-reconhece-
-ustra-como-torturador,916432. Acesso em: 25 mar. 2020.

7 Conversa com Tatiarabu, em Massekury, 2017.

REFERÊNCIAS
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nica da economia política da natureza. Brasília: UnB, 1995. (Série
Antropologia, 174)

APARÍCIO, M. A explosão do olhar: do tabaco nos arawá do Rio


Purus. MANA, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 9-35, 2017.

CARVALHO, M. R. G. Os Kanamari da Amazônia Ocidental: História,


Mitologia, Ritual e Xamanismo. Salvador: Fundação Casa de Jorge
Amado, 2002.

DESCOLA, P. Sobre o conhecimento antropológico. Revista de


Antropologia da UFSCar, São Carlos, v. 10, n. 1, p. 316-328, jan./jun. 2018.

257
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

FAVRET-SAADA, J. “Ser afetado”. Tradução de Paula Siqueira. Cadernos


de Campo, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 155-161, 2005.

GORDON, F. Os Kulina do Sudoeste Amazônico: História e Socialidade.


2006. 154 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

HARAWAY, D. J. Staying with the trouble - making kin in the


Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.

KOOP, G.; LINGENFELTER, S. G. Os Dení do Brasil ocidental: um estudo


de organização sócio-política e desenvolvimento comunitário. Dallas:
Museu Internacional de Cultura, 1983.

KROEMER, G. Kunahã made: o povo do veneno – sociedade e cultura


do povo Zuruahá. Belém: Edições Mensageiro, CIMI, 1994.

LÉVI-STRAUSS, C. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

MAIZZA, F. Cosmografia de um mundo perigoso. Espaço e relações


de afinidade entre os Jarawara da Amazônia. São Paulo: Nankin, 2012.

SHIRATORI, K. O olhar envenenado: da metafísica vegetal Jamamadi


(médio Purus, AM). 2018. 413 f. Tese (Doutorado em Antropologia
Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2018.

STRATHERN, M. O Gênero da Dádiva. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.

258
RELAÇÕES DE ALIANÇA PODEM
SUBVERTER SECCIONALISMOS
HISTÓRICOS? UMA ANÁLISE
DO CONTEXTO KIRIRI
Fernanda Lima Almeida*

INTRODUÇÃO
Os estudos de parentesco foram considerados, durante
bom lapso de tempo, como a principal área de preocupa-
ção da antropologia (MORGAN, [1871] 1997; RADCLIFFE-
BROWN, 1973, 1978; FORTES; PRITCHARD, 1981; MURDOCK,
1949), seja através dos chamados sistemas terminológi-
cos, seja através dos sistemas de descendência.

O funcional-estruturalismo partia do suposto de que as


sociedades consideradas “primitivas” organizavam-se
sob o parentesco, isto é, usavam o parentesco para a
classificação e a organização social. Assim, a descen-
dência e a transmissão de status, direitos e deveres
eram tidas como estabilizadoras da vida em sociedade,
afastando a irrupção de conflitos e contradições. A an-
tropologia africanista, por sua vez, focou a descendên-
cia e as linhagens sob o suposto de que as afiliações
políticas e os interesses econômicos determinavam
a afiliação a esse ou àquele grupo de descendência. O
sistema de parentesco estava, ademais, diretamente
relacionado com o sistema político.

* Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Está


vinculada ao Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro
(PINEB/UFBA). Tem experiência na área de antropologia, com ênfase em etnologia
indígena, antropologia política, antropologia linguística e antropologia histórica.
E-mail: fernandaalmeida9715@gmail.com.
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

Já, no estruturalismo de Lévi-Strauss, a ênfase incidiu sobre os ca-


samentos e as alianças. A abordagem lévi-straussiana mostra, prin-
cipalmente, que o sistema de parentesco tem como função criar e
estabelecer alianças. Para ele, na origem das regras matrimoniais,
encontramos sempre um sistema de trocas, direto ou indireto (trocas
contínuas ou descontínuas); explícito ou implícito; fechado ou aberto
(quando a regra da exogamia se limita a um conjunto de prescrições
negativas). Seja qual for a sua forma, é sempre a troca que “emer-
ge como a base comum e fundamental de todas as modalidades da
instituição do casamento” (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 479). Assim, nas
sociedades elementares, os doadores e receptores, tomadores e
doadores de mulheres, são sobretudo grupos de troca, é a troca que
estrutura a sociedade elementar. Além disso, o casamento (troca de
mulheres) é apenas um dos aspectos de um sistema de prestações
totais entre categorias culturalmente definidas.

Neste texto, o meu intento é produzir um exame preliminar so-


bre as trocas matrimoniais entre os Kiriri, de modo a verificar se
o seccionalismo político que fraturou o grupo na década de 1980
mantém-se impermeável às novas motivações e determinações
ou se há possibilidades de contornar as fronteiras políticas, dando
espaço aos desejos e às expectativas individuais, notadamente no
que concerne aos estratos sociais mais jovens.

Para atingir o proposto, suponho necessário proceder a uma breve


contextualização dos Kiriri.

OS KIRIRI NO TEMPO E NO ESPAÇO


Eles habitam a região nordeste do estado da Bahia, entre os muni-
cípios de Banzaê, Quijingue e Ribeira do Pombal, a 300 quilômetros
da capital baiana (FIGURA 1). Vivem em uma área demarcada e ho-
mologada de 12.320 hectares e com aproximadamente 13 aldeias,
distribuídas ao longo do território e em torno de Mirandela. Essa
última e a de Araçás destacam-se devido ao maior contingente po-
pulacional e ao fato de as principais lideranças ali se concentrarem.

260
Figura 1 – Mapa da Terra Indígena Kiriri

Elaborado pela autora, por Neves Santos e por Jardel Rodrigues, 2020

261
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

A vasta documentação histórica demonstra a presença dos Kiriri


no Nordeste desde o século XVII (MAMIANI, 1877; LEITE, 1945;
NANTES, 1979; POMPA, 2003). Como é sabido, o Nordeste e o sertão
foram marcados pela expansão da pecuária e dos sesmeiros que
utilizavam da mão de obra indígena para abrir estradas, pastos e
construir casas e colégios jesuíticos. Foi desse modo que os povos
originários dessa região foram explorados e suas terras ocupadas
pelos sesmeiros e fazendeiros.

Para os séculos seguintes – XIX e até a metade do XX –, documentos


do Fundo de Documentação Histórica Manuscrita sobre os Índios
da Bahia (FUNDOCIN)1, tais como ofícios encaminhados da Província
da Bahia para o governo provincial, demonstram que, notadamente
a partir da Lei de Terras de 1850, são constantes as alusões à não
existência de índios na aldeia de Mirandela, falsas sugestões de
que todos já estão misturados, de que todos são caboclos, e que
suas terras doadas pela Coroa através do Alvará Régio de 17002
(BANDEIRA, 1972) deveriam ser arrendadas ou doadas.

Em outras palavras, os fazendeiros e os sesmeiros lançavam mão


das categorias misturado e caboclo para tentar negar aos índios
os seus direitos originários. Vale notar que a pretensa mistura re-
sultava de uma estratégia acionada pela própria Coroa mediante
o denominado Diretório Pombalino. Estimulava-se o ingresso de
colonos nos territórios indígenas através do intercasamento des-
tes com indígenas. Embora o usufruto das terras seguisse sendo
formalmente indígena, o seu efetivo controle progressivamente
deixou de sê-lo. Essa política serviu como pretexto para a alegada
progressiva indiferenciação indígena das populações em intera-
ção, um propalado forte processo de “desindianização” que favo-
receria ainda mais a intrusão de novos contingentes não indígenas
(DANTAS; SAMPAIO; CARVALHO, 1992).

Os intercasamentos eram realizados principalmente entre homens


brancos – classificados como mestiços, “alguns bem mulatos”

262
RELAÇÕES DE ALIANÇA PODEM SUBVERTER SECCIONALISMOS HISTÓRICOS? UMA ANÁLISE DO CONTEXTO KIRIRI
Fernanda Lima Almeida

(BANDEIRA, 1972, p. 37) – e mulheres indígenas, e creditava-se a sua


constituição, em geral, ao interesse masculino em usufruir e, crescen-
temente, se apossar das terras indígenas. Aproveitavam-se, assim, os
homens não indígenas da tradicional estrutura uxorilocal de residên-
cia e do sistema de descendência matrilinear (os recém-casados pas-
savam a residir nas terras da mãe da noiva) e, complementarmente, da
autoridade paterna sobre o núcleo familiar, o que assegurava aos ho-
mens dispor das terras, dando-lhes a destinação que lhes aprouvesse
(BANDEIRA, 1972). Essa “duplicidade” – autoridade sobre membros e
bens fazendo-se patrilinearmente e esfera de transmissão de bens
matrilinear – é considerada por Bandeira (1972, p. 40) “perfeitamente
explicável no contexto social resultante da interação dos grupos (não
indígena ou português e indígena ou caboclo)”, no qual prevalecia forte
discriminação sociorracial.

Esses casamentos não perduravam, em geral, pois os maridos, em


reduzido intervalo de tempo, vendiam as terras e partiam, deixan-
do as mulheres à mercê da sorte, em muitos casos grávidas. Ainda
hoje persiste, na memória social dos Kiriri, alguns episódios em que
“[...] os brancos casavam com as índias para roubar e vender as ter-
ras, e foi assim que perdemos as terras” (Suely Kiriri, 2019)3.

Atualmente, certas regras de casamento, estabelecidas após a


reconquista do território, em 19904, determinam que “homens
brancos não podem casar com mulheres indígenas porque eles
não sabem cuidar da terra e vão utilizar agrotóxico no cultivo e vão
querer vender as terras como antigamente” (Suely Kiriri, 2019). Nos
casos em que a norma for contrariada, mediante uma união inte-
rétnica (índia kiriri com não índio), a mulher indígena deve deixar o
território. Por outro lado, um homem indígena pode casar-se com
uma mulher não indígena e essa poderá morar no território, mas
possivelmente sofrerá sanções do grupo. Percebe-se, assim, que
os Kiriri criaram mecanismos de prevenção e controle da posse
da terra, através da proibição de casamentos interétnicos entre
mulher kiriri e homem não indígena, ao passo que alianças entre
homens kiriri e mulheres não indígenas são toleradas. É, pois, a

263
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

terra o fator de produção econômico-social e de relacionamento


com o mundo à volta que urge preservar sob o controle do grupo,
para o que se apresenta indispensável controlar a circulação das
mulheres, compelidas a um comportamento conjugal endogâmi-
co restritivo, do qual os homens escapam. É possível afirmar, de
acordo com Simone de Beauvoir, que, mediante esse ato egoísta,
a comunicação com o grupo é mantida. É por isso que, ainda que
a mulher seja outra coisa além de um signo, ela é, todavia, como
a palavra, uma coisa que se troca (BEAUVOIR, 2007, p. 187). É pos-
sível também supor, seguindo a Gayle Rubin, que a construção de
uma teoria implícita de opressão sexual por Lévi-Strauss, ao fazer
repousar a essência dos sistemas de parentesco na circulação de
mulheres entre os homens, encontra bom material etnográfico de
reflexão entre as várias aldeias kiriris (RUBIN, 1975, p. 160).

Os filhos da união entre índios e não indígenas são chamados, discre-


tamente no interior do grupo, de “braiados”, isto é, não considerados
índios puros, ou misturados com brancos ou negros. É perceptível
que essa categoria atua como um marcador diacrítico no interior do
grupo para distinguir quem é índio legitimo de quem não o é.

2.1 Do faccionalismo ao seccionalismo político

Na década de 1980, especificamente em 1988, irrompeu o primeiro


processo de faccionalismo político entre os Kiriri que deu origem a
dois grupos, o do cacique Lázaro, que foi constituído pelos núcleos
de Sacão, Cacimba Seca e parte da Lagoa Grande; e um outro com-
preendendo parte do núcleo da Lagoa Grande, Cantagalo, Baixa da
Cangalha e Baixa do Juá, mas cuja liderança mais destacada era, e
continua sendo, a do pajé Adonias, do Cantagalo. A divisão dos Kiriri
foi motivada por questões políticas e de caráter territorial, impli-
cando em grave cisão entre os seus núcleos (BRASILEIRO, 1996).

Para Sheila Brasileiro (1996), essa divisão pode ser entendida como
parte de um processo de excessiva centralização política e de poder

264
RELAÇÕES DE ALIANÇA PODEM SUBVERTER SECCIONALISMOS HISTÓRICOS? UMA ANÁLISE DO CONTEXTO KIRIRI
Fernanda Lima Almeida

nas mãos do grupo do cacique Lázaro, juntamente com a escolha de


um pajé geral para a comunidade indígena. A iniciativa da escolha de
um pajé único foi uma decisão do cacique, que a entendia como uma
maneira de consolidar sua figura política. “Lázaro em uma viagem pa-
ra Brasília encontra com índios Tuxá que dizem que para ser índio de
verdade deve ter um cacique e pajé único” (Adonias, 2019). O Toré era,
então, distintamente realizado em Lagoa Grande e em Cantagalo.

Na disputa pelo título de pajé, participaram três membros da comu-


nidade, Mauricio, Zezão e Adonias. Dos três, Zezão recebia o estímulo
do cacique, mas, ao final, Adonias foi o escolhido. Vangloriando-se,
ele declarou a mim, à época, ser “[...] o mais preparado para o cargo
e que tinha provado que era mesmo, tinha curado três pessoas e
respondido certo aos encantados” (Adonias, 2019).

Eleito, Adonias determinou algumas regras que deveriam ser ob-


servadas por todo o povo Kiriri, uma das quais a não realização do
Toré durante três semanas, o que não foi acatado por Lázaro e os
seus aliados próximos. O cacique estava insatisfeito com a escolha
do pajé geral haver incidido em Adonias, e esse, a seu turno, estava
indignado com a indiferença do cacique em face das suas determi-
nações. Ambos, por fim, estavam em clara disputa pelo poder polí-
tico local, para cuja hegemonia, o controle do campo cosmológico
seria de vital relevância. Adonias não era apenas um representante
desse campo, mas aparentava ter expectativas de ordem política.
Em minhas últimas visitas de campo, em 2019, pude presenciar sua
ação política e seu prestígio junto ao seu grupo, suas relações com a
sociedade regional e, notadamente, com o poder público municipal.

A partir de 1990, com a homologação da Terra Indígena, o cacique


Lázaro e seu grupo dão início a vários processos de retomada e ocu-
pação dos demais núcleos que estavam intrusados por regionais.
Em paralelo, o grupo do pajé Adonias também iniciou a ocupação
da parcela do território sob seu controle, de modo independente,
o que dá lugar a uma acirrada disputa, com eclosão de conflitos
(BRASILEIRO,1996) ainda hoje persistentes na memória dos idosos.

265
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

As dissensões entre os dois grupos foram amenizadas apenas com


a consolidação da divisão do território entre duas secções. Adotei o
termo seccionalismo (CARDOSO, 2018) devido à conotação negativa
conferida pelos Kiriri ao conceito de faccionalismo5. Gabriel Cardoso
(2018) registra que a primeira divisão seria seguida por novas sec-
ções dentro dos grupos de Lázaro e Adonias, havendo hoje oito ca-
ciques na TI Kiriri: Marcelo, Ozano, João, Andrelina, Manuel, Jailson,
além de Lázaro e Agrício, cujo pajé é Adonias. O autor apresenta
dados relativos ao conjunto das secções que eu julguei oportuno
sistematizar e organizar através do Quadro1 abaixo.

Quadro 1 – Seccionalismo Kiriri


Legenda: (≠) Indica a ruptura de um grupo. (=) Indica uma nova aliança de pajé ou cacique.

Anos Cacique e pajé (Cantagalo) Observações

1ª divisão
1988
Adonias (pajé) ≠ Lázaro (cacique)
Adonias = Manuel (cacique)

2ª divisão
2014
Adonias ≠ Manuel

Adonias = Agrício (cacique)

Manuel = Wilson (pajé)

Jailson é sobrinho de Adonias


3ª divisão e pertencia ao seu grupo, mas,
2016
Manuel ≠ Jailson (cacique) com a separação entre Manuel
e Adonias, deixou o grupo do tio.
A família de Andrelina rompeu
4ª divisão
+/- 2000 com Lázaro, constituindo um
Lázaro ≠ Andrelina
grupo independente.
5ª divisão O cargo de vice-cacique ocorre
2010
Lázaro ≠ Marcelo (vice-cacique) apenas no grupo de Lázaro.
No grupo de Marcelo, não há pajé,
Marcelo (cacique) = Manuelino mas as atribuições da pajelança
(conselheiro) são designadas ao conselheiro e
ao cacique.
6ª divisão
2015
Marcelo ≠ Ozano
7ª divisão
2016/2017
Marcelo (cacique) ≠ João

Fonte: CARDOSO, 2018, p. 95. Elaborado pela autora.

266
RELAÇÕES DE ALIANÇA PODEM SUBVERTER SECCIONALISMOS HISTÓRICOS? UMA ANÁLISE DO CONTEXTO KIRIRI
Fernanda Lima Almeida

O período mais grave do processo seccional teve lugar durante a pri-


meira divisão, que fraturou ao meio a comunidade indígena, quando
os conflitos tinham, simultaneamente, motivações de ordem territo-
rial, cosmológica e simbólica. Havia acusações de feitiçaria e castigos
físicos, sob a forma de disciplinamento, houve ao menos um caso de
morte, que foi denunciado à Polícia Federal. As rivalidades e as desa-
venças não permitiam aproximações entre os componentes dos dois
grupos, e os casamentos entre as secções eram praticamente im-
possíveis. Em conversas com alguns idosos da localidade de Araçás,
eles relataram que os conflitos entre os grupos de Adonias e Lázaro
foram muito severos, eivados de ofensas graves, mas que hoje, para
os jovens, a situação estaria superada, como comprovariam os casa-
mentos celebrados entre cônjuges oriundos dos grupos dissidentes.
Aparentemente, os homens e as mulheres jovens consideram que as
brigas não lhes concernem e que, assim sendo, esse passivo social
não lhes deve atingir. Eles estão atentos à redução do estoque de
potenciais cônjuges/esposos(as) casáveis e buscam, consequente-
mente, contornar as proibições e restrições de modo a não terem
reduzidas as suas chances de matrimônio.

2.1.1 Estar lá e estar aqui

Fui introduzida entre os Kiriri no segundo semestre de 2017 através


do componente curricular Educação Diferenciada e Revitalização
de Línguas Indígenas (FCHL47)6 ministrado por Marco Tromboni,
que buscava assessorar os professores indígenas no processo de
revitalização linguística. A disciplina ofertava vagas destinadas aos
estudantes de Letras, Pedagogia e Ciências Sociais, da Universidade
Federal da Bahia, e tinha, como avaliação final, a elaboração de ofici-
nas/aulas aos professores indígenas. Eu e Jardel Rodrigues (colega
de curso, hoje mestrando em Antropologia na Universidade de São
Paulo – USP –, e companheiro de campo) organizamos uma oficina
sobre A história do povo Kiriri e da língua Kipeá, que foi ministrada
no decorrer da nossa primeira viagem, em 11 de novembro de 2017.

267
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

Desde então, iniciei idas e vindas ao território Kiriri, acompanhando


a equipe liderada pelo professor Marco Tromboni e a turma.

A partir de 2018, eu e Jardel decidimos, a cada visita, permanecer na


TI, em Mirandela. Ficamos hospedados na casa de José Hamilton
ou, como gosta de ser chamado, “Barão”, cujo prestígio político é
notável, sendo até considerado um diplomata devido à sua boa re-
lação com caciques e pajés dos vários grupos políticos. Barão foi
fundamental para a nossa inserção e acolhida, apresentando-nos
aos demais membros da comunidade, sobretudo àqueles que não
frequentavam a escola, uma vez que a ACCS focava nas escolas
centrais de Mirandela, Araçás e Cajazeiras. Saliento a sua impor-
tância porque, posteriormente, um dos casos apresentados será o
de sua sobrinha do lado paterno, Jessica.

Por outro lado, durante o período em que permanecemos entre os


Kiriri, nunca nos instalamos no outro lado, no grupo de Adonias,
em Araçás, apenas efetuamos passagens esporádicas. No decor-
rer das férias de julho de 2019, decidimos, finalmente, permanecer
em Araçás. Tratava-se da nossa primeira experiência individual em
campo, e o estar lá suscitou vários questionamentos: como deverí-
amos nos comportar? Com quem falar? Aonde ir? O estranhamento
(MAGNANI, 2009) da cultura do outro em relação à nossa requereu
novas formas de olhar, ouvir e escrever (CARDOSO, 1996). Essas
inquietações continuaram no campo, durante e depois e, crescen-
temente, a elas nos acostumamos, ao concluirmos que são, simul-
taneamente, produtivas e inevitáveis.

Chegamos ao território indígena em 6 de julho, às 17 h 50. Suely,


nossa anfitriã, já estava à nossa espera, impaciente com a demora.
Ela ocupa o cargo de merendeira na Escola Florentino Domingos de
Andrade, é também conselheira do pajé Adonias e do cacique Agrício,
mãe de três rapazes, Maicon, Cassiano e Jony, e residente em Araçá.
Nossa estadia transcorreu sob fortes chuvas e poucos momentos
ensolarados, o que permitiu pouca mobilidade pela área indígena.

268
RELAÇÕES DE ALIANÇA PODEM SUBVERTER SECCIONALISMOS HISTÓRICOS? UMA ANÁLISE DO CONTEXTO KIRIRI
Fernanda Lima Almeida

Em uma sexta-feira, sob chuvas intensas e sem poder me deslo-


car pelo território, resolvo ir até a cozinha. O relógio marcava 9 h
00. Nesse instante, Jessica – uma jovem de 17 anos, cabelos lisos
e pretos e distinguível “fenótipo” indígena (olhos puxados) – carre-
gava um balde com feijão-verde para debulhar. Resolvi prestar-lhe
ajuda. Ao sentarmos ao chão de piso vermelho e desgastado pelo
tempo, instiguei-a a conversar um pouco. Perguntei-lhe quando
veio morar com sua sogra Suely. Como foi sua adaptação ao sair de
Mirandela para residir em Araçás e se as lideranças falaram sobre
sua saída do grupo liderado por Marcelo. Quase prontamente e com
certa tranquilidade, ela afirmou ter vindo morar com Suely em ja-
neiro de 2019, por ter se casado com Maicon (pertencente ao grupo
político de Agrício). Complementou, dizendo que Maicon deveria, de
acordo com o costume local, ter se deslocado para a casa da sogra,
mãe de Jessica, em Mirandela, mas não o fez por ter Suely, sua mãe,
pedido para o novo casal morar em Araçás porque não queria a ca-
sa vazia. O filho mais velho de Suely, Jony, não reside com sua mãe,
tendo saído da casa materna para morar com a esposa e a sogra,
mas o filho caçula ainda reside na casa.

A família de orientação de Jessica, composta de pais separados,


reside, pois, em Mirandela e está politicamente afiliada ao grupo
de Marcelo (dissidente do cacique Lázaro). A moça relatou que seus
pais, por ocasião do processo seccional entre Lázaro e Marcelo,
decidiram seguir a nova liderança, porém sua avó e tios paternos
continuaram leais a Lazinho, como carinhosamente é chamado o
cacique Lázaro. Os demais parentes maternos seguem Marcelo, ex-
ceto um tio que está afiliado a Lázaro. Ao decidir casar com Maicon
e morar em Araçás, Jessica deixou sua mãe e, por consequência,
o grupo de Marcelo ao qual seguia e cujo Toré frequentava. Nesse
sentido, vale notar que a afiliação política engloba a afiliação de
ordem cosmológica. O casamento e o posterior deslocamento de
Jessica para um novo grupo local representaram, de certo modo,
uma ruptura com o passado seccional dos Kiriri. Aparentemente,
as diferenças políticas que remontam à década de 1980 não teve
maior significado para a nova geração de jovens, conforme já sa-
lientei. O assunto, aparentemente, não lhes concerne.

269
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

Outro caso que merece destaque é o de Ênio, um jovem de 24 anos


“pertencente” ao grupo de Lázaro, que casou com a filha do cacique
Manoel (dissidente do pajé Adonias e do cacique Agrício) e deixou
sua família de orientação, em Mirandela, para morar em Cajazeiras,
com o sogro. Ao fazê-lo, afastou-se do grupo local de sua família,
ao qual até então se reportava, e, consequentemente, perdeu as
prerrogativas que, através desse grupo, poderia auferir, em troca
daquelas junto à sua família de procriação. A mudança efetuada
pode não ser positiva em termos econômicos ou mesmo sociopo-
líticos, mas não parece ser o fato mais relevante. Os jovens estão,
pois, subvertendo – ou contornando a regra estabelecida depois da
reconquista da terra – para atender às suas conveniências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pude captar sutilezas e distinções que os meus dois interlocutores
jovens estavam me apontando, ou seja, que eles não tomaram as
divisões políticas como obstáculos ao estabelecimento de relações
de afinidade através do casamento. Pelo contrário, as divisões e os
conflitos ocorridos no passado não refletem o atual momento des-
sa nova geração, que vê o passado dos pais e avós como distinto –
e distante – da sua realidade. De certo modo, os dados etnográficos
revelam que o conflito outrora desencadeado pelos mais velhos
não diz respeito aos mais jovens, como espero ter demonstrado,
ainda que provisoriamente, nos dois casos descritos.

As violências sofridas entre os grupos no período das retomadas


apenas persistem na memória dos “troncos velhos”, dos índios e
das famílias que as presenciaram ou participaram ativamente da
luta. Há até uma certa nostalgia entre os idosos quando se lem-
bram do passado e das estratégias de combate adotadas para
reconquistar o território e, simultaneamente, um certo desalento
ao suporem que os jovens não se sensibilizam com a história dos
conflitos, “com sua própria história”

270
RELAÇÕES DE ALIANÇA PODEM SUBVERTER SECCIONALISMOS HISTÓRICOS? UMA ANÁLISE DO CONTEXTO KIRIRI
Fernanda Lima Almeida

Por último, suscito algumas questões – ainda que disponha de


poucos elementos – acerca do que estou designando subversão
das fronteiras políticas erigidas entre os próprios índios. O que
predispõe os jovens a ignorarem as barreiras ainda vigentes, se-
guindo, aparentemente, suas próprias decisões? Teriam o apoio
dos pais e dos demais parentes? O que, por sua vez, motivaria os
pais a acolherem suas escolhas conjugais? A autonomia do pater
familias? Vale, no que concerne a esse aspecto, lembrar que um
dos fatores mais graves subjacentes à estratégia excessivamente
centralizadora do cacique Lázaro, na sequência da sua eleição, foi
compelir as famílias a cederem, a cada semana, mão de obra para a
reprodução das roças comunitárias, sem consulta prévia e anuên-
cia dos chefes de grupos domésticos. A medida causou dissabores
e motivou a saída de muitas famílias e indivíduos da Terra Indígena.

Teria havido, ao longo desses anos, uma reflexão crítica sobre os


danos provocados naquele período, no âmbito das relações sociais,
o que teria levado ao refortalecimento do valor da autoridade de
cada família de orientação e procriação, não obstante a afiliação de
ordem política e cosmológica, uma vez que as duas esferas estão
especialmente imbricadas? Estaria preponderando, simultanea-
mente, por parte dos estratos mais jovens e já crescentemente es-
colarizados, volição na escolha dos cônjuges em consonância com
novas expectativas e desejos?

Muito provavelmente, cada um desses fatores pode estar contribuin-


do, combinada e relacionalmente, para a inflexão que suponho que
esteja ocorrendo no plano da organização social e do parentesco Kiriri.

Notas
1 O Fundo de Documentação Histórica Manuscrita sobre Índios da Bahia é
um projeto do Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste
Brasileiro (PINEB), cujo objetivo é reunir documentação manuscrita sobre
índios depositada em arquivos públicos.

2 Doação às aldeias com mais de 100 casais.

271
PARTE 2 - Retomadas, conflitos e disputas cosmopolíticas

3 As informações verbais transmitidas por indígenas estão em itálico nes-


te texto.

4 A reconquista do território Kiriri, em 1990, antecedeu um conjunto de


ações coletivas adotadas pelo grupo, como reorganização política, ro-
ças comunitárias, autodemarcação, bloqueio de estradas e confrontos
com regionais (BRASILEIRO, 1996).

5 Faccionalismo como conceito antropológico ganhou outra conotação


entre os Kiriri, que associam facção ao crime organizado.

6 Disciplina da Universidade Federal da Bahia, cuja modalidade é exten-


sionista, i.e., Ação Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS).

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274
DEFININDO
PARTE 3

E REORDENANDO
RELAÇÕES COM
INTENCIONALIDADES
NÃO HUMANAS

figura 3: Tupinambá de Olivença durante “Caminhada Tupi-


nambá em Mártires do Massacre do Rio Cururupe”, 2015

Fonte: Ernenek Mejía Lara


A PERSPECTIVA INVERSA
YANONAMI DA EVOLUÇÃO
DAS ESPÉCIES
Mbo’esara Esãîã Tremembé*

SITUANDO O CHÃO DOS OUTROS

A proposta deste artigo é mostrar outra perspectiva, ou-


tro ponto de vista sobre a origem da humanidade, dife-
rentemente das explicações religiosas (criacionismo) e
das teorias científicas (especificamente, evolucionismo).
Para isso, trago, para dentro da nossa reflexão, uma das
teorias Yanonami1  sobre o surgimento do homem (ser
humano). Os primeiros insights e os rascunhos iniciais
deste artigo surgiram ainda quando eu fazia a pesquisa
de campo no rio Marauiá entre os yanonam no noroeste
do Amazonas, durante os estudos do mestrado.

Para ampliar os horizontes da proposta, colocaremos


uma síntese das duas vertentes mais conhecidas atu-
almente acerca do surgimento do homem, uma vez que
a sua origem é entendida de forma divergente entre as
áreas do conhecimento, tanto para o conhecimento re-
ligioso (criacionismo), o qual pensa o homem como uma

* Indígena Tremembé/CE (Paulo Roberto) e doutorando em Antropologia Social


do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade
Federal do Amazonas (UFAM).
E-mail: mboesara@gmail.com.
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

obra do divino, quanto para o científico (evolucionismo), que reduz


o homem a um aglomerado de processos biológicos.

As primícias científicas sobre o surgimento do homem têm seu ponto


marcante na teoria evolucionista de Charles Darwin, que foi um dos
mais célebres cientistas britânicos. Charles Darwin nasceu em 12 de
fevereiro de 1809 em Shrewsbury. Sua maior, mais importante obra
e, provavelmente, a mais conhecida, foi A Origem das Espécies, pu-
blicada em 1859. Darwin tinha um grande fascínio pelas ciências na-
turais. Esse fascínio o fez migrar da medicina, que era a base de sua
formação, para a área das ciências naturais, onde começou a estudar
os invertebrados marinhos e, posteriormente, ingressou, na referida
área, em Cambridge. Por volta de 1831, Darwin integra a viagem de
reconhecimento do HMS Beagle, como naturalista sem remuneração
(uma espécie de voluntariado), numa expedição científica. Nessa via-
gem, realizou importantíssimas e metódicas observações geológi-
cas e biológicas. Cinco anos depois, após o seu regresso à Inglaterra,
dedicou-se a reunir e desenvolver as suas ideias sobre a mudança
das espécies, observadas principalmente nos arquipélagos em que
pesquisara. Em 1859, após mais de 20 anos de estudo, publicou a sua
teoria A Origem das Espécies através da Seleção Natural. A publica-
ção da obra foi impactante não só para a comunidade religiosa (uma
vez que a ideia se punha radicalmente contrária à teoria criacionis-
ta), como também para a comunidade científica, pois gerava contro-
vérsia com as teorias vigentes na época.

Embora a opção pela teoria darwiniana seja o elemento norte-


ador nesta reflexão, vale ressaltar que existem teorias atuais e
mais complexas da evolução. Cientistas como Ernest Mayr (1998),
Thomas Henry Huxley ([1863] 1961), Theodosius Dobzhansky (1937),
George Gaylord Simpson (1964), entre outros, formularam novas
teorias que, tendo como base crítica as descobertas de Darwin,
passaram a ser chamada de Neodarwinismo, com uma substancial
contribuição das leis de Mendel e o fenômeno das mutações ge-
néticas. O Neodarwinismo é conhecido academicamente também
como Teoria Sintética da Evolução.

277
A PERSPECTIVA INVERSA YANONAMI DA EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES
Mbo’esara Esãîã Tremembé

A teoria básica da evolução consiste em uma alteração no perfil ge-


nético de uma população de indivíduos que vai tendo lugar através
de sucessivos estados temporais (gerações). Essas modificações
supõem a integração de novas vantagens competitivas em termos
de sobrevivência e podem levar ao surgimento de novas espécies,
à adaptação a diferentes ambientes ou à emergência de novida-
des evolutivas. No início do estudo da evolução biológica, Darwin
e Wallace2 (cor-fundador da teoria) propuseram a seleção natural
como principal mecanismo da evolução. E é justamente essa intro-
dução do motor da seleção natural que afasta Darwin da teoria de
Jean-Baptiste Lamarck (1908)3.

Na contraponta dessa teoria, está a vertente criacionista. De forma


bem sintética, essa teoria propõe uma base teológica para a compre-
ensão do surgimento do homem. O motor gerador do homem tem pro-
priedade teocêntrica. Entretanto, com o advento da ciência moderna,
o movimento criacionista rejeitou veemente a hipótese de que a evo-
lução tivesse seus princípios em um processo biológico, mas, antes de
qualquer processo, esta seria resultado de uma ação projetista4. As
questões aqui discutidas nos remetem a um amplo debate onde não
só o conhecimento científico, mas também a filosofia bem como a re-
ligião entram em cena5 para construir diferentes concepções sobre o
surgimento da vida humana. As teorias visavam esclarecer e apontar
características aparentemente únicas, enquanto espécime, ou seja,
seres potencialmente dados à linguagem, à religião, à cultura e ao so-
cial, que nos diferenciaria do restante dos animais.

No caso da teoria criacionista, o papel fundamental é sacralizar


a vida humana como um dom. A hierarquização do ser humano
diante da natureza o coloca em um ponto crucial no qual o mun-
do gira. Diferente dos animais, segundo a perspectiva criacionista,
o homem não foi criado, ele foi produzido à semelhança de Deus.
Enquanto os animais foram criados, a exemplo da teoria escolás-
tica do creatio ex nihilo, o homem foi moldado, fruto de um projeto
intencional e não tão somente de uma locução verbal. A diferença
entre criação e produção parece bastante pertinente.

278
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Neste aspecto, como também por força da tradição, a teoria criacio-


nista é a que tem maior aceitação (considerando o senso comum).
Vale ressaltar que, quando se fala em teoria criacionista, não nos
referimos apenas à da tradição cristã, mas de todas aquelas que
possuem uma entidade sobrenatural (ou mais), como as religiões
indianas, judaica, islâmica etc.. Ou seja, as religiões espalhadas
pelo mundo elaboraram uma versão própria de teoria criacionista.
Mas também poderíamos estender aspectos da teoria criacionis-
ta para as narrativas mitológicas de alguns povos. Por exemplo,
na mitologia grega, atribui-se a origem do homem aos feitos dos
titãs Epimeteu e Prometeu. Epimeteu teria criado os homens sem
vida, imperfeitos e feitos a partir de um molde de barro (o que será
visto na cultura religiosa judaico-cristã). Por compaixão, seu irmão
Prometeu resolveu roubar o fogo de Vulcano para dar vida à raça
humana. Outro exemplo vem da milenar cultura chinesa, em sua
mitologia atribui a criação da raça humana à deusa Nu Wa, entida-
de que vivia em plena solidão. Um dia, ao perceber sua sombra sob
o banzeiro de um rio, resolveu criar seres à sua  semelhança. No
cristianismo, a Bíblia é a base e fonte explicativa sobre a criação
do homem. Na narrativa bíblica, o homem foi concebido logo que
Deus criou os céus e a terra. Segundo esse relato, o homem, feito a
partir do barro, teria ganhado vida quando Deus soprou o fôlego da
vida em suas narinas6 “e Deus o fez a sua imagem e semelhança”
(BÍBLIA, 2015, Gênesis 1, 26-27), culminando na criação do homem.

Assim, podemos afirmar que o evolucionismo se apoia em evidên-


cias científicas advindas das descobertas paleontológicas, morfo-
lógicas, biogeográficas, embriológicas e bioquímicas, enquanto a
teoria criacionista se apoia em descobertas exegéticas, arqueológi-
cas, mas, principalmente, na fé de quem assume essa perspectiva.
Segundo Thomas Kuhn (1975), os dados não são inequivocamente
estáveis, o que nos abre espaço para reflexões e aprofundar o tema
sobre a origem do homem. Ainda segundo o autor, cada uma dessas
interpretações (necessariamente diferentes) pressupõe um para-
digma. E é nessa perspectiva que introduzimos a teoria Yanonami
sobre a origem do homem.

279
A PERSPECTIVA INVERSA YANONAMI DA EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES
Mbo’esara Esãîã Tremembé

O POSTULADO WÃNO DOS YANONAMI DE XITIPAPiWEI

Na cultura oral yanonami7, encontramos uma série de relatos


mitológicos, que se denominam de  wãnowãno. O wãno seria al-
go próximo da terminologia grega de mythós (narrativa). O  wã-
no  é polissêmico pode ser traduzido como história, mas também
é narrativa, informação, locução e do radical wã- derivam verbos
importantes como  wã  hai  (falar, comunicar, dialogar) e outros. É
importante salientar que a dinâmica e as variações das narrativas
efetuam diferenças significativas quanto a forma e personagens,
mas que convergem semanticamente, entre os diversos grupos da
família yanomami, cujo aspectos serviram de base para reflexões
de vários pesquisadores.

Durante o meu campo, na coleta e na auscultação8 dos wãnowãno


(mito), percebi vários conceitos que remetiam às origens9 do homem.
Utilizamos o termo no plural “origens” porque, diferentemente, na
percepção ocidental moderna, há um aspecto dicotômico de senso
comum, ou se acredita na ciência ou na fé/religião. Os Yanonami pos-
suem uma visão multifacetada da realidade, ou seja, um objeto ou
fato está relacionado a uma série de possibilidade de configurações
(a la Wittgenstein). Para um yanonami, um fato está aberto para uma
multiplicidade de vozes humanas e não humanas. Nessa dinâmica, é
possível se deparar com um wãno que diga o seguinte:

(1) Antigamente os homens copulavam na batata da per-


na um dos outros, a batata engravidavam e daí os homens
nasciam... não existia mulher, mas, por acaso um dia nas-
ceu um mulher da batata de um yanomami [...]

(2) Antes os yanomami não existiam só Horonami10, antes a


kurata (banana) também não existia. Um dia Horonami es-
tava andando e estava com fome e subiu em uma árvore e
se esticou para apanhar uma kurata [...]

280
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

(3) Horonami se encontrou com Irariwë, mas, Irariwe não


queria seguir as ordens de Horonami, então horonami criou
um yanomami para plantar mandioca e fazer festa porque
horonami queria cheirar paricá [...]

(4) Naqueles tempos não existia mulher, Hoaxoriwë passean-


do pela urihi (floresta) se encontrou em apuros porque estava
com muito desejo sexual, então ele olhou para cima de um
açaizeiro e viu uma mõkomõko (mulher jovem) ele derrubou o
açaizeiro e copulou com ela [...] (informação verbal)11

Dos fragmentos dos wãno acima, podemos observar que as coisas


surgem tanto de forma espontânea e, instantaneamente, como
fruto de uma ação que passam a existir conforme:

a) entram na intencionalidade12 da personagem mítica


(como disse um velhinho yanonami, ela – a kurata (bana-
na) – não existia, mas estava lá) [2 e 4] e;
b) as coisas são criadas, conforme a necessidade, volunta-
riamente ou não [1 e 3].

Desses fragmentos poderíamos fazer reflexões interessantes, en-


tretanto, o meu foco aqui é outro. Observei, e outros pesquisadores
também observaram, dos quais podemos citar Changon (1983),
Albert (1985), Lizot (1988), Guimarães (2005), entre outros, uma
abordagem diferente da origem do homem. Os dados aparecem em
frequentes wãno, não só do grupo que pesquisei, mas também em
outros grupos yanonami (Povos Yanomami), inclusive na Venezuela.
Observe um pequeno trecho13 do wãno HEWËRIWË, a seguir.

HEWËRIWË

A1 Hewëriwë Yanonami të pëni a kãi rë përionowehei.


Antigamente, Morcego vivia com os Yanomami.

A2 Ai të pë rë reahumouwei të pëniöyõno mo rë reahuaiwehei.


Seus parentes foram convidados para uma festa
para comer milho.

A3 Yami a nakai    ma mahei makui,  ihi  të pë pruka ma


nakaiwehei makui, Hewëriwëxo, pë yesi Tëpëriyomaxo

281
A PERSPECTIVA INVERSA YANONAMI DA EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES
Mbo’esara Esãîã Tremembé

yami kipi  rë hupirayonowei.


Morcego não foi o único convidado. E mesmo que muitos
foram chamados, Morcego, preferiu ia a festa sozinho com
Mulher-Tamanduá, sua sogra.

[...]

A11 öiha rë na yaweremai    ha he haruponi  ,   pei rë wexi


pëni ha rë moroxi pë tõwetamaiö rë he harunowei.
Foi lá que copulou incestuosamente com ela, toda noite. O
pênis ficava com o bálano descoberto, no meio dos pelos
pubianos de Mulher-Tamanduá.

[...]

A14 Yesi rë iha himo rë a rë huuawei a ha huhetireheni, pei


rë texina ka yakë ha, ëyëha rë, himo rë e pata ha tiwëhë-
yaheni: “kraxi!”, e pata himo ha tamaheni, e pata rë kare-
ramanowehei.  ihi    pë siohapiö  rë iha: “Ta!”. Xotokoma rë a
kuohorayopë ha a miö wërëa rë xoaketayonowei.
Em seguida, tiraram do telhado um cacete achatado e pon-
tiagudo e: “kraxi” o cravaram bem na base do traseiro de
Mulher-Tamanduá. É lá que ficou plantado. Voltaram-se de-
pois para o genro dela, batendo também nele. Logo, ele se
transformou em morcego e foi voando lá para cima duma
árvore xotokoma, onde se pendurou, de cabeça para baixo.

A15 tëpëriyoma pë yesi rë e pehi kai rë horeprarihërino-


wei.  Ihiöei pei rë texina hami, e himo no uhutipiö  xatia
kuyahi.  inaha ki  ha tapiprariheni, mo yono ha reahua-
riheni, tëpë matë waia ha xoaponi , pei hewëriwë a kai rë
përionowehei.
A sogra se tinha metamorfoseado em tamanduá e correu,
saindo fora da casa. A cauda dos tamanduás é aquele ca-
cete achatado que, desde aquele tempo, ficou no traseiro.
Foi assim que os Yanomami procederam. Depois, comeram
o milho e fizeram a festa. Aí, tudo ficou silencioso: a festa
tinha acabado. [...] (LIZOT, 1988, p. 120)

Os fragmentos (com tradução não literal) foram retirados


de  Heweriwë të wãno (LIZOT, 1988). Nele e em outros wãnopë, o
tema da trama se desenrola dentro de um contexto de proibição e
formação de tabu (o genro copula com a sogra), mas há outros as-

282
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

pectos, não sexuais, que fazem parte de um contexto mais amplo,


que são:
a) o tempo em que o acontecimento é desenrolado;

b) a dimensão ethossomático14: uma rede imbricada de


hospitalidade, comensalidade/hostilidade, dádiva e con-
tradádiva, predação e processos comunicativos; e

c) regras sociais, pautadas em uma estética do viver bem


(LEITE, 2013, p. 83).

Em vários wãno que eu pude escutar pessoalmente e ler em tra-


balhos de outros pesquisadores que estudaram a cultura do povo
Yanonami, uma parte da narrativa sempre me chamou atenção: a
transformação nominal e substancial que ocorre com as perso-
nagens. Temos, no trecho heweriwë, que é intraduzível no senti-
do do seu termo, mas poderíamos conceituar aproximadamente
como “homem-morcego” ou “morcego-gente”.  Heweriwë  sofre
uma mutação, transformação de gente para o animal, mediante o
rompimento com as normas éticas do grupo (causa incesto ao ter
relações sexuais com a sogra) a transformação tem, a princípio,
aqui um duplo sentido:

a) uma transformação simbólica baseada na moral e na


ética social do grupo; e

b) uma transformação substancial, ou uma transubstan-


ciação, já que a matéria e a forma do homem passam para
a forma animal.

As relações de alteridade/predação são um dos marcadores deste


mundo e, consequentemente, influenciarão a forma de perceber
a realidade, corpos diferentes implicam perspectivas diferentes,
Viveiros de Castro (1996). A compreensão dessa transubstanciação
e desse processo de formação de alteridades forma a chave de lei-
tura para a proposição estipulada aqui, em que,

Num certo sentido, pode-se mesmo dizer que foram estas


duas grandes tópicas – a da “alteridade” e a da “transfor-
mação” – que formaram, ao longo das últimas décadas, os
dois pilares centrais em torno dos quais muitas etnogra-
fias foram desenvolvidas e sobre os quais se edificaram as

283
A PERSPECTIVA INVERSA YANONAMI DA EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES
Mbo’esara Esãîã Tremembé

duas grandes construções teóricas do campo da etnologia


amazônica (TEIXEIRA-PINTO, 2018, p. 234).

Se, em Darwin, o processo parte do biológico, para os yanonami, o


processo é ético, quanto menos ético, menos humano. O ponto de
partida para a transubstanciação é o ethos yanonami. Vilaça (2000)
demonstra que as sociedades indígenas possuem uma perspectiva
diferente, levando em conta a produção etnográfica ameríndia, o
que nos faz denominá-las, grosso modo, de sociedades somáticas.

O que essas etnografias nos mostram é que a sociologia


indígena é antes de tudo uma “fisiologia”, de modo que, no
lugar de “aculturação” ou “fricção”, o que se tem é transubs-
tanciação, metamorfose [...] se a sociedade não é organis-
mo, no sentido de um conjunto de partes funcionalmente
diferenciadas, ela é um ente somático, um corpo coletivo
formado de corpos, e não de mentes. (VILAÇA, 2000, p. 66)

Ao contrário das teorias evolucionista e criacionista, a teoria ya-


nonami, pelo que é percebido nas suas narrativas, relembra cons-
tantemente que homem não tem uma posição privilegiada, nem na
ordem do racional, porque os animais se pensam entre si, nem na
ordem de uma sacralização antropocêntrica, uma vez que a natu-
reza está em um estado constante de permutação entre ser gente
e ser animal. No artigo Imagens da Humanidade: metamorfose e
moralidade na mitologia yanomami, Leite (2013), tecendo as re-
flexões a partir de diversas narrativas, principalmente as de Davi
Kopenawa, coloca que,

Fiéis a esse espirito, as narrativas Yaroripë desenham um


mundo no qual diferentes espécies de seres participam de um
fundo comum dado de subjetividade e socialidade: o que leva
à afirmação de que todos eram humanos (LEITE, 2013, p. 77).

O que se percebe nas narrativas dos xitipapiweitëri, longe de tecer


qualquer equívoco nas reflexões anteriores, é que, nas narrativas
dos Yanonami do rio Marauiá, não há diferentes espécies de seres,
com uma humanidade intersubjetiva em comum. O que ocorre, a

284
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

partir da narração, é a existência de seres da mesma espécie com


diferentes wãha (nomes15) e diferentes pei sikɨ (pele16), imersos em
um fundo temporal também comum. Por ter corpos comuns, em-
bora peles e nomes diferentes, partilham reciprocamente de um
mesmo ponto de vista. A metamorfose ou a sua transubstancia-
ção ocorre no corpo pelo motor ethossomático, transformando os
corpos e suas diferentes perspectivas iguais a eles mesmos. O que
torna compreensível a afirmação de Davi Kopenawa (2015), quando
afirma sobre a realidade dos xapiri.

[...] aqueles de nós que não são xamãs, do mesmo modo


que os brancos, não percebem nada disso. Os espíritos são
invisíveis para seus olhos de fantasma e eles só veem os
animais de caça de que se alimentam. Apenas xamãs são
capazes de contemplar os xapiri, pois tornados outros com
a yãkoana, podem também vê-los com olhos de espíritos.
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 118)

O que Kopenawa remete no livro A queda do céu diz respeito ao


ethos próprio dos xapiri, cujo motor transformador para o xamã
é a yãkoana. No trecho do wãno ilustrado neste artigo, o ethos
yanomami é a reahu e não a cópula com a sogra, como eu mesmo
supôs em outro momento (SOUSA, 2010), tanto quanto o ethos do
morcego é estar de cabeça-para-baixo.

Em Darwin, a origem do homem provém de uma espécie de ancestral


comum que sofreu variações biológicas acumulativas até culminar
no homo sapiens. Nesta proposição, equivale a dizer que, na teoria
yanonami, o  homo sapiens  já existia, mas os seus antecedentes
(australopithecus) não. Aqui há uma inversão antropológica da te-
oria darwiniana. O homem deixa de ser homem gradativamente se
tornando completamente animal quando o ethos deixa de nortear
o horizonte da vivência humana (é Heweriwë – homemorcego – se
transubstanciando em hewë –morcego). No capítulo 4 de A queda
do céu: palavras de um xamã yanomami, Davi Kopenawa (2015) vai
abordar o caráter dos ancestrais animais17. A consciência da tran-
substanciação não é metafórica ou ilustrativa, mas, tais como as

285
A PERSPECTIVA INVERSA YANONAMI DA EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES
Mbo’esara Esãîã Tremembé

especulações propositivas científicas ou das exegeses criacionis-


tas, remete a uma chave de leitura pertinente sobre como os jogos
de alteridades operam no nível das relações.
Há muito e muito tempo, quando a floresta ainda era jovem,
nossos antepassados, que eram humanos com nomes de
animais, se metamorfosearam em caça. Humanos-quei-
xadas se viraram queixadas; humano-veado viraram vea-
dos; humanos-cutia viraram cutias. Foram suas pelas qie
se tornaram as dos queixadas, veados e cutias que moram
na floresta. De modo que são esses ancestrais tornados
outros que caçamos e comemos hoje e dia. [...] é verdade.
No primeiro tempo, quando os ancestrais animais yarori se
transformaram, suas peles se tornaram animais de caça e
suas imagens, espirito xapiri. Por isso estes sempre con-
sideram os animais de caça como antepassados, iguais a
eles mesmos, e assim os nomeiam. Nós também, por mais
que comamos carne de caça, bem sabemos que se trata de
ancestrais humanos tornando animais. [...] são habitantes
da floresta, tanto quanto nós. Tomaram a aparência de ani-
mais de caça e vivem na floresta porque foi lá que se que
se tornaram-se outros. Contudo, no primeiro tempo, eram
tão humano quanto nós. Eles não são diferentes. Hoje, atri-
buímos a nós mesmos o nome de humanos, mas somos
idênticos a eles. Por isso, para eles, continuamos sendo
dos seus. (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 117-118)

Pelo que foi apresentado na mitologia yanonami não se trata da ori-


gem do homem, mas dos animais. E de fato é. Na teoria nativa apre-
sentada, não se explica como o yanonami (entendido como categoria
humana) surgiu, e sim como os animais surgiram. Essa objeção é uma
projeção da perspectiva dualista que separa radicalmente o humano
do animal. Entretanto, na perspectiva do mito yanonami, determinar
o mundo humano e o mundo animal é uma investida para apurar a
própria origem da humanidade. Mas, como a perspectiva yanona-
mi é múltipla, encontraremos várias explicações para a origem dos
primeiros yanonami yai (em uma narrativa, encontramos como uma
criação de um demiurgo; em outra nascem como fruto de cópula em
panturrilhas). Vale ressaltar que aqui, nesse contexto (na cosmolo-
gia yanonami), há uma separação radical dos tradicionais modelos
de concepção de humano. Como bem aponta Leite,

286
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

[...] Na Amazônia, adotar a perspectiva do outro não signifi-


ca necessariamente animalizar-se ou dessubjetivar-se; ao
contrário, a captura da perspectiva do Outro é muitas ve-
zes um meio de se fazer mais humano. (LEITE, 2013, p. 77)

Nessa perspectiva, o que entendemos como separação entre ho-


mem e animal não é uma questão biológica, mas uma dimensão
semiótica no nível das relações. É uma película tênue tecida na tra-
ma cultural, cuja característica principal é ser pragmática (LEITE,
2013), parecido com o transcrito por Teixeira-Pinto sobre a questão
do “outro” entre os ikpeng.

O que lhes marca a posição é uma relação de alteridade,


certamente, mas de um tipo bastante preciso: trata-se da
mútua equivalência entre dois “outros”. Uma equivalência
que, de modo claro, não quer dizer nem igualdade nem cor-
respondência exata, mas apenas a possibilidade de que,
em certas circunstâncias, os termos de uma relação de
alteridade possam ser intercambiáveis. (TEIXEIRA-PINTO,
2018, p. 241)

A inversão antropológica realizada pelos Yanonami nos remete a


uma reflexão profunda e pertinente: o que é ser homem e o que é
ser animal? Ou, nas palavras de Teixeira-Pinto, “afinal, quem são os
‘outros’, ou o que é, afinal, ser um ‘outro’ em situação etnográfica
precisas?” (2018, p. 237). Dentro de uma visão ocidental, a relação
que define quem é humano e quem é animal é problemática, à me-
dida que não se leva em consideração que o humano é um animal,
como diria Derrida (2002), tão semelhante ao animal que o olha. 
E baseando-nos na filosofia pragmática de Habermas, poderemos
apontar uma dessas dimensões multifacetadas, categorizando-o
como seres discursivos e, por isso, tornamo-nos para o outro o
discurso no qual nos encaixamos. Somos avaliados segundo o dis-
curso que nos é oferecido como verdadeiro. O que é então ser um
ser humano18?

Uma das características humanas é, entre as suas múltiplas vo-


zes, ser também um animal discursivo. Levar em consideração que

287
A PERSPECTIVA INVERSA YANONAMI DA EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES
Mbo’esara Esãîã Tremembé

somos um animal discursivo não é priorizar a linguagem  per  si,


mas definir um  locus  que, funcionando como ponto de inflexão,
podemos definir alguma coisa daquilo que indique o que é ser
humano. Em outras palavras, referir-se ao animal discursivo dentro
de um jogo de alteridades é acenar que o sujeito vai se determinar a
partir dessa linguagem-corpo e não mais a partir dos lugares onde
tradicionalmente é definido, ou seja, no biológico ou no teológico.
Conforme percebemos em Vilaça (2000, p. 60), citando Gow (1991)
e Da Matta (1976), “[é] importante ressaltar que o corpo amerín-
dio não é um dado genético, mas é construído ao longo da vida por
meio das relações sociais”. Ainda, analisando os Wari’, a antropó-
loga faz uma afirmação bastante pertinente quanto à perspectiva
da humanidade neste contexto da qual “a humanidade não é algo
inerente, mas uma posição pela qual se deve lutar todo o tempo”
(VILAÇA, 2000, p. 64).

Mas é justamente nessa ruptura que o dilema emerge. Pois, po-


deríamos abstrair disso que, se o ser humano é um ser discursivo,
então, à medida que estabelece seus discursos, ele ergue uma hie-
rarquia em que provavelmente se consolidará uma relação antagô-
nica e antiética.

O ethos emerge aqui como o lócus da transubstanciação ou efeito


que denominamos de ethossomático19. A narrativa impõe a clara
perspectiva de que não existe “humano” ou “animal” determinado
do qual se poderia reproduzir essa diferença, há na verdade uma
autorreprodução a partir das relações de um ethos tácito. Pérez-
Bravo dá uma contribuição pertinente quando sinaliza a centrali-
dade do corpo através da perspectiva ethossomático.

Esta manera de ver el cuerpo-objeto, lleva a pensar en un


ethos somático propio de cada sociedad, que hace de la bel-
leza un sujeto de acción, una finalidad cultural prioritaria.
Este ethos somático es definido como: “conjunto de normas
y de valores en materia corporal, que precisa los contornos
colectivos simbólicos (…) como la organización moral del
cuerpo y de su constitución dentro de los códigos del ‘bien’
y del ‘mal’” (Meidani, 2007: 27). (PÉREZ-BRAVO, 2012, p. 68)

288
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

A situação determina a transubstanciação ethossomático. Heweriwë


está, no decorrer da narrativa, sabendo que o seu ato poderá cau-
sar-lhe perigo. A transubstanciação ethossomática do homem para
o animal emerge na medida que heweriwë, ciente de sua condição,
sabe que medidas drásticas lhes podem ser aplicadas. Essa muta-
ção, essa transformação, ocorre não apenas em situação discursiva
entre si, mas em um dado momento daquilo que é vivido, ou seja, do
seu ethos. Quando Heweriwë se transubstancia em Hewë estamos
falando em uma mudança de identidade, segundo Vilaça (2000, p.
65), “a mudança de identidade caracteriza-se antes de tudo como
mudança de natureza”.

Essa forma de perceber a modelagem do corpo a partir de um ele-


mento ético ou estético já vem sendo trabalhada por alguns auto-
res, como Adriana Pérez-Bravo aponta.

Tanto en la mitología Wayuu, como en las sociedades occi-


dentales, el cuerpo es un objeto que se materializa en sig-
nos, que aportan identidade y expresan los valores de una
cultura, como un proceso intrasubjetivo, además permite
la interacción como un proceso intersubjetivo. “El cuerpo
es el primer producto social, en el que la sociedad se refle-
ja y se simboliza (…) El cuerpo no es solamente un objeto
natural, es igualmente un operador social”. (Meidani, 2007:
29). El aspecto corporal se dibuja como una verdadera in-
versión social, un capital que debe ser fructífero. En este
sentido, las prácticas somáticas de mantenimiento y de ri-
tual del cuerpo, se pueden considerar en relación a la cons-
trucción de cada sociedade y a la vez, ésta es construida
en relación a la belleza/sujeto (PÉREZ-BRAVO, 2012, p. 68).

Elementos do ethos yanonami, como comportamentos desviantes


(tomando emprestadas as categorias de Howard Becker), dentro
desse mesmo ethos, tais como nasinasi, tõmi tõmi, mi wareii, entre
outros, não remetem a si mesmos, como ação individual, mas como
desvio do ethos coletivo.

289
A PERSPECTIVA INVERSA YANONAMI DA EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES
Mbo’esara Esãîã Tremembé

Outro detalhe apresentado no trecho é que o comportamento


agressivo coletivo não transforma todos em animais e o fato de
o heweriwë, agora hewë, ficar de cabeça para baixo em um galho
o remete ao contexto do ethos desse novo corpo. A sua posição,
miö wërëa, remete ao seu local, de onde vê e é visto, o seu habitus,
condizente agora com o seu ethos, apazigua aquilo que seria con-
troverso ou contradesviante. Onde corpos diferenciados produzem
ethos diferenciados.

Eleger como categoria analítica o motor ethossomático das trans-


formações ou transubstanciações no interior das sociedades in-
dígenas, como propomos aqui com a sociedade yanonami e seus
wãnopë, implica, por um lado, assumir a mesma postura meto-
dológica das ciências e da exegese, isto é, deixar de lado “espe-
culações abstratas e meramente formais e, por outro, perceber
a necessidade de se ir de encontro dos regimes simbólicos e os
esquemas conceituais que podem nos fazer perceber o sentido de
certas práticas” (TEIXEIRA-PINTO, 2018, p. 250), uma vez que “no
estudo das cosmologias indígenas, é impossível situar a questão
da distinção natureza e cultura, humano e animal, em um nível de
generalidade tal que a diversidade interna a cada um desses ter-
mos perca sua relevância” (LIMA, 1999, p. 50). É justamente nesta
diversidade interna apontada por Lima em seu artigo que repousa
um dos aspectos do ethossomático do qual diz respeito aos jogos
de alteridades no seio desta dinâmica onde se desenrola o ethos
yanonami A dimensão da outridade que emerge no ethos yanonami
parte de um contraponto, que resulta em jogos de alteridades, e
que, por isso, necessita localizar-se dentro dos discursos sobre a
alteridade, como aponta Teixeira-Pinto.

Creio ser exatamente a mesma precaução que deve ser to-


mada em relação às ideias de “diferença” e de “alteridade”.
Se, como vimos Vernant e Agamben afirmarem, estas são
noções que importam à constituição das tradições culturais
ocidentais, isto não quer dizer que sua reiteração genérica
alhures seja suficiente para demarcar sua igual relevância.
Ao contrário, deveria, justamente, cobrar-nos seu enfrenta-
mento pela via da reflexão etnograficamente fundamenta-

290
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

da. Porém, o surgimento recorrente de um discurso genérico


sobre a “alteridade” embute em si mesma o perigo de sua
banalização e da perda de relevância, que apenas a contex-
tualização permitida por referenciais etnográficos precisos
pode garantir (TEIXEIRA-PINTO, 2018, p. 251).

O problema é que a alteridade é pensada entre pares e não entre


díspares, sendo assim, o que aconteceria se o conceito de “pesso-
as” fosse mais amplo e abrangente do que o que encontramos na
sociedade ocidental moderna, ou mais amplo do que o próprio con-
ceito de “humano”? Entre muitos grupos indígenas que têm suas
relações sociais construídas a partir de clãs, encontramos proibi-
ções e tabus alimentares, gente do clã do mutum (pauxi tuberosa.
sp), por exemplo, não pode comer mutum porque aqui o mutum não
está ligado ao sagrado, religiosamente falando, mas porque possui
uma humanidade, daí a necessidade de desumanizar, através de
um processo xamânico, as caças para consumi-las.

A leitura da cosmovisão yanonami denota uma reposição de local


de um determinado ethos no ancestral animal transubstanciando
o corpo, consequentemente, o seu ponto de vista. A degeneração
ética opera um deslocamento epistemológico no conceito de “ho-
mem”. O duplo, heweriwë-hewë, opera não em termo de homem,
entendido como um ser biológico ou ontológico, mas em termos
de corpos. Nessa perspectiva yanonami, a condição de pessoa não
está, nem é, intrínseca ao homem.

Para ampliar mais essa noção de pessoa que tratamos aqui, obser-
ve o trecho do Nativo relativo, de Viveiros de Castro (2002), onde
o autor faz um debate interessante sobre a afirmação indígena de
que os pecaris (porcos) são humanos.

A estreiteza intelectual que ronda a antropologia, em casos


como esse, consiste na redução das noções de pecari e de
humano exclusivamente a variáveis independentes de uma
proposição, quando elas devem ser vistas — se queremos
levar os índios a sério — como variações inseparáveis de
um conceito. Dizer que os pecaris são humanos, como já

291
A PERSPECTIVA INVERSA YANONAMI DA EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES
Mbo’esara Esãîã Tremembé

observei, não é dizer algo apenas sobre os pecaris, como se


‘humano’ fosse um predicado passivo e pacífico (por exem-
plo, o gênero em que se inclui a espécie pecari); tampou-
co é dar uma simples definição verbal de ‘pecari’, do tipo
“‘surubim’ é (o nome de) um peixe”. Dizer que os pecaris
são humanos é dizer algo sobre os pecaris e sobre os hu-
manos, é dizer algo sobre o que pode ser o humano: se os
pecaris têm a humanidade em potência, então os humanos
teriam, talvez, uma potência-pecari? Com efeito, se os
pecaris podem ser concebidos como humanos, então deve
ser possível conceber os humanos como pecaris: o que é
ser humano,  conseqüências disto?  Que conceito se pode
extrair de um enunciado como “os pecaris são humanos”?
Como transformar a concepção expressa por uma proposi-
ção desse tipo em um conceito? Esta é a verdadeira ques-
tão. [...] Os pecaris são pecaris  e  humanos, são humanos
naquilo que os humanos  não são  pecaris; os pecaris im-
plicam os humanos, como ideia, em sua distância mesma
diante dos humanos. Assim, quando se diz que os pecaris
são humanos, não é para identificá-los aos humanos, mas
para diferenciá-los de si mesmos — e a nós de nós mes-
mos. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 136, grifos do autor)

A inversão antropológica realizada pelos yanonami em seus  wã-


nopë nos causa certa inquietação, pois nos convida a ser sujeitos
éticos e lançar bases para se repensar o significado de ser humano.
Olhar para essa inversão na mitologia yanonami nos abre um espaço
para se pensar em uma construção de um modelo cosmológico mais
abrangente, tendo como base a ecologia simbólica da alteridade,
onde, mais que ideias, são propriamente relações entre sujeitos.
Uma vez que

[a] diferenciação entre “cultura” e “natureza”, que Lévi-S-


trauss mostrou ser o tema maior da mitologia ameríndia,
não é um processo de diferenciação do humano a partir
do animal, como em nossa cosmologia evolucionista. A
condição original comum aos humanos e animais não é a
animalidade, mas a humanidade. A grande divisão mítica
mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a
natureza se afastando da cultura: os mitos contam como
os animais perderam os atributos herdados ou mantidos
pelos humanos. Os humanos são aqueles que continuaram

292
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

iguais a si mesmos: os animais são ex-humanos, e não os


humanos ex-animais. Em suma, “o referencial comum a to-
dos os seres da natureza não é o homem enquanto espécie,
mas a humanidade enquanto condição” (Descola 1986:120).
(VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 119, grifos do autor)

As perspectivas apresentadas, resumidamente, no início deste ar-


tigo mostram como foram construídos os seus respectivos pontos
de vista sobre o homem, ora pelo processo biológico, pelo qual a
plasticidade neural na evolução toma as diretrizes diante das inte-
rações entre estímulos do ambiente e as respostas do organismo
a esses estímulos, determinando, de certa forma, as propriedades
que garantem as adaptações e a sobrevivência do indivíduo ao seu
meio; ora pelo processo exegético, pelo qual a transcendentaliza-
ção do homem o coloca dentro de uma dimensão que ultrapassa os
limites biológicos e o confere uma dimensão sui generis em relação
à natureza. Embora a evolução não discorra sobre o embate entre
natureza e cultura, a própria separação do ancestral comum se
desviando dos seus contemporâneos, partindo de uma aquisição
não biológica, mas de habilidades – o qual o polegar assume um
papel importante nessa diferenciação –, já mostra que a cultura é
a parte fundamental desse processo – daí a nomenclatura, mais do
que necessária, de Homo habilis, Homo sapiens etc..

Na teoria criacionista, do ponto de vista da religião cristã, a faculdade


do homem de nomear as coisas, as plantas e os animais define o seu
locus. A ideia de que é o homem, criado à semelhança de deus bíblico,
que nomeou as coisas, seres e natureza o coloca em uma posição
privilegiada em relação à natureza da qual faz parte, porque ele não
é fruto de um “nada” (ex nihilo). Essa posição antropocêntrica per-
mite que o homem domine a natureza, retirando-se dela ontologica-
mente a partir da linguagem (ato de nomear), “[a]ssim o homem deu
nomes a todos os rebanhos domésticos, às aves do céu e a todos os
animais selvagens […]” (BÍBLIA, 2015, Gênesis 2-20).

Tanto a perspectiva evolucionista da plasticidade neural quanto


a perspectiva criacionista da antropocentricidade do homem, en-

293
A PERSPECTIVA INVERSA YANONAMI DA EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES
Mbo’esara Esãîã Tremembé

quanto imagem divina e nominador, operam como um marcador de


divisória entre seres que não conseguem dialogar no mesmo hori-
zonte e que, portanto, não participam da mesma humanidade. Não
existe criatura com uma plasticidade neural tal qual o homem, cujas
características culminaram em uma “nova” espécie, bem como não
há nada criado tão à semelhança do divino. Essa sutil posição do ho-
mem em situação de desnivelamento da natureza da qual faz parte
apreende bem o que se pode entender como elemento etnocêntrico
da questão. Aqui nos referimos à separação entre o Homo sapiens e
o Australopithecus anamensis, bem como entre a criação ex nihilo e
a criação similitudinem nostram. As perspectivas anulam a possibi-
lidade de diálogo e postergam o posterior ao anterior, construindo
um discurso etnocêntrico das qualidades, que, aparentemente, anu-
lam os jogos de alteridade. É nesta dinâmica que Viveiros de Castro
(2002) discute a questão de humano e não humano e propõe um
campo de intersecção entre esses horizontes, longe dos aspectos
etnocêntricos e mais voltado para uma realidade cosmopolítica.

Os selvagens não são mais etnocêntricos, mas cosmocêntri-


cos; em lugar de precisarmos provar que eles são humanos
porque se distinguem do animal, trata-se agora de mostrar
quão pouco humanos somos nós, que opomos humanos e
animais de um modo que eles nunca fizeram: para eles, na-
tureza e cultura são parte de um mesmo campo sociocósmi-
co (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 124, grifos do autor).

Por fim, o wãno yanonami nos remete a uma ideia mais ampla da
inversão, a qual inclui os papéis sociais, identidades e substâncias,
onde é possível deslumbrar não um horizonte, mas vários. Tendo co-
mo proposta a dimensão ethossomática para se pensar essa inver-
são da evolução pelos yanonami, podemos pensar com eles, atra-
vés de mecanismos linguísticos e discursivos, que o novo habitus
miö wërëa resguarda a intersubjetividade entre os corpos (no caso
aqui o corpo de hewë) transfigurando-se, tomando de empréstimo
as palavras de Viveiros de Castro (2002), em hewë a qual se torna
humano naquilo que o humano não é um hewë. Quando um yanona-
mi afirma que o hewë foi um humano e que resguarda, portanto, a
sua humanidade como um outro, não é para identificá-lo como nós
humanos, mas diferenciá-lo de si mesmo e a nós de nós mesmos.

294
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Se o evolucionismo respalda a sua visão no processo biológico


e o criacionismo no horizonte da supranatureza, a perspectiva
yanonami procura estabelecer um olhar mais holístico dentro de
uma cosmopolítica onde a intersubjetividade, cujo pano de fundo
é a humanidade, engloba natureza, homem e própria humanidade.
Em um curto relato etnográfico, eu estava no Rio Negro quando
um adolescente da etnia Baré, aluno da rede estadual, comentou
comigo: “Professor, minha vó disse que antigamente a onça era
gente...eu fiquei pensando e perguntei se antigamente ela tinha
rabo e pinta e ela disse que sim! Como pode ser gente se ainda tem
rabo e pinta?” O trecho da conversa me remeteu à categorização
yanonami de diferenciação entre corpo (pei kë të), pele do corpo
(pei si ki) e imagem do corpo (pei uhutipi). No trecho etnográfi-
co, a onça-gente não é a mesma coisa do que homem-onça, sua
humanidade não é a sua pele, olhando do ponto de vista yanona-
mi, bem como a sua pele não é a sua imagem. A humanidade não
possui afins com a forma, mas com o corpo em relação. Ter cinco
dedos e um cérebro com plasticidade neural imensurável, bem
como ser criado similitudinem mostram, não se configura por si a
humanidade do homem. Talvez precisamos, à proposta yanonami,
ver o mundo de cabeça para baixo, mi wërëo, para entendermos,
afinal, a nossa humanidade.

Notas
1 Nota-se aqui a grafia YANONAMi, que é diferente do termo YANOMAMI.
A grafia com “na” e com a vogal média “ɨ” diz respeito a um grupo espe-
cífico com o qual eu trabalho. O termo Yanomami é uma categoria gené-
rica e de vulgata para falar sobre o povo yanomami ou da sua língua.

2 Os dados apresentados sobre Charles Darwin e a evolução não são ex-


plorados de forma prolixa, mas como base introdutória e referencial
para a teoria yanonami sobre o tema abordado. Os autores citados no
corpo do texto representam as principais críticas à concepção darwinis-
ta da evolução.

295
A PERSPECTIVA INVERSA YANONAMI DA EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES
Mbo’esara Esãîã Tremembé

3 O primeiro a pensar na evolução como um processo biológico de forma


mais coesa, apoiado em teorias anteriores sobre a possibilidade de uma
evolução, o qual chamou de teoria dos caracteres adquirido, portanto,
pré-darwinista.

4 A ideia de um projetista está ligada à categoria conhecida como Intelli-


gent Design, aparentemente, remete a vários momentos da história do
desenvolvimento do pensamento humano no processo de racionaliza-
ção dos argumentos, principalmente na filosofia grega antiga, como o
Demiurgo de Platão ou o Motor-imóvel de Aristóteles, não é necessaria-
mente teológico como pretende.

5 Aqui houve propositalmente uma inversão de ordem, o pensamento


criacionista é anterior ao evolucionismo, mas, como categoria de análi-
se, é posterior aos debates evolucionistas.

6 Em relação ao barro, é bastante interessante a relação nominal dos ter-


mos em outras culturas, uma vez que também usam o termo barro (ter-
ra/areia) e suas narrativas, mas com nomenclaturas distintas criando
um mosaico intrigante de relação e “coincidência” incríveis.

7 Os dados aqui apresentados são das minhas anotações durante o cam-


po. Xitipapiwei era como se chamava o xapono (aldeia) onde pesquisei.
Meu foco na pesquisa foi o ethos yanomami e suas mitologias, logo, este
artigo é mais uma contribuição das reflexões postas ali. Devido à gama
de informações nas narrativas e à aproximação da língua, eu pude me
deparar com outros temas importantes para a compressão da cosmovi-
são e da cosmologia do povo yanonami.

8 A minha fluência e o domínio razoável da língua yanonami me ajuda-


ram a compreender melhor os mitos e os costumes desse povo. A essa
dinâmica de contato, acrescento a participação nos rituais osteofági-
cos, que ocorrem na Reahu (festa ritualística dos mortos em que se
crema o corpo do falecido e se toma junto com um mingau de banana,
kurata u ki, no último dia da festividade), participação no amõamõu
(cantos noturnos), das reuniões, das festas e a inserção na vida coti-
diana, onde fui bem acolhido.

9 Na história da antropologia, os relatos, nas mitologias ameríndias, so-


bre as transformações animais em homens e vice-versa são bastante
produtivos.

10 Horonami é uma entidade criadora (pude registrar em alguns xaponos que


ele foi o primeiro “yanomami” que existiu). Mas, não equivalente à concep-

296
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

ção do Deus cristão, porque ele começou a existir junto com tudo o que já
existia, ele não é anterior ou posterior à natureza, ele é concomitante.

11 Informação verbal.

12 A intencionalidade aqui é tratada nos moldes de Husserl e Merleau-Pon-


ty, ou seja, é um direcionamento da consciência em uma relação com
objeto. O fenômeno aparece na consciência como uma unidade idêntica
a si mesma, pois a consciência tem a capacidade de realizar a síntese
necessária para efetivar uma existência.

13 Texto de Jaques Lizot utilizado na minha dissertação de mestrado (SOU-


SA, 2010).

14 O conceito de ethossomático proposto aqui será explorado melhor mais


adiante.

15 A relação nominal das coisas é um ponto importante na cultura yano-


mami. Falar o nome equivale a evocar a entidade que o possui. No Ma-
rauiá, antes das políticas públicas de certificação individual (RG, CPF,
certidão de nascimento, entre outros), o tabu sobre a pronúncia dos no-
mes dos mortos era mais evidente. Entretanto, a imersão na cultura do
documento está deixando essa prática cada dia menos óbvia.

16 Aqui pele e roupa possui uma característica: a de permutabilidade. Ku-


mararotawë “empresta” os pés para ɨrariwë, para que ande na mata sem
fazer barulho.

17 Observe que Davi Kopenawa trata de ancestrais animais e não de ani-


mais ancestrais, é um jogo dialético que aponta a direção da transubs-
tanciação.

18 Como disse Sr. Tiago, do antigo xapono do yabahana, sentado na rede


ajeitando o seu mokohiro para o epenamõu: exi kë të napëpë? Exi kë të
yaropë? Exi kë të yanonami? Kamiyë pëmakini ai të wã hai pëma taaimi
kunoha (tradução: o que é ser branco? O que é ser animal? O que é ser
yanomami? Se não deixamos o outro falar?).

19 Ethossomático é uma proposta conceitual que surge no interstício en-


tre o conceito de psicossomático criado por Johann Christian August
Heinroth (1918) e o conceito de Lebenswelt de Habermas, onde sujei-
tos chegam a um entendimento sobre as esferas da vida mediado pelo
processo comunicativo. Ethossomático diz respeito às transformações
em que o seu pano de fundo se caracteriza especificamente e obriga-
toriamente a partir do ethos do grupo. Esse ethos pode ser inferido a

297
A PERSPECTIVA INVERSA YANONAMI DA EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES
Mbo’esara Esãîã Tremembé

partir do processo comunicativo e remete a um contexto integral do


mundo da vida. É a dimensão onde o ethos integra a dimensão biológi-
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299
NA SOMBRA DA JUREMA
Clarissa Martins Lima*

JUREMA, MARIA E JESUS


A cidade da Jurema é quando eles vieram
para o Brasil: a jurema já veio de Portugal
mesmo, a semente. Aí a primeira juremeira
era Maria de Alcária, e aí a ciência da jurema
já veio dos ancestrais que viviam aqui den-
tro. A cidade da Jurema é dos ancestrais, que
não é cidade, é mato mesmo. E quando Nos-
sa Senhora andava com Jesus, ela descansou
debaixo de um pé de jurema, por isso que ela
é sagrada, que ela é muito poderosa. E tem
a Cabocla Jurema, que foi criada por Oxóssi,
que é São Sebastião e o caboclo Tupinambá,
que é tudo a mesma coisa. Que ela foi achada
na mata, foi morta por uma flechada. A Ca-
bocla Jurema já vem direto da semente da
jurema. Ela é tão forte que ninguém conse-
gue derrubar o poder dela [...]. Tem também o
jucá e o angico, que é dos pretos velhos e são
poderosos, mas a jurema está em primeiro

*. Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos


(UFSCar), onde também cursou a graduação em Ciências Sociais e o mestrado
em Antropologia Social. Trabalha, há mais de dez anos, na Vila de Cimbres, aldeia
Xukuru do Ororubá/PE, onde desenvolveu pesquisas sobre consumo de medica-
mentos psicotrópicos (graduação), relação entre humanos e objetos (mestrado)
e presença dos que morreram na aldeia (doutorado). Atualmente, tem como prin-
cipal tema de interesse a relação entre os vivos e os demais seres, outros-que-
-os-vivos, que habitam a Terra Indígena, bem como o efeito da presença destes
para o modo como os Xukuru pensam o território.
E-mail: clarissa.martins.lima@gmail.com.
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

lugar, porque ela é um pau que Jesus descansou, que deu


sombra a Nosso Senhor. A Cabocla Jurema nasceu da jure-
ma, ela é no mundo inteiro: os quilombolas, os assentados,
povo de terreiro, tudo gosta da jurema.

Dona Helena, médium da aldeia Vila de Cimbres,


Terra Indígena (T.I.) Xukuru do Ororubá1

Atualmente dispomos de um contundente conjunto de estudos res-


ponsáveis por iluminar a centralidade dos encantados ou encantos
de luz na vida cotidiana e ritual e, sobretudo, nas lutas mobilizadas
pelos grupos indígenas no Nordeste ao longo das últimas décadas
(ALARCON, 2013, 2019; ANDRADE, 2002; CARVALHO; REESINK, 2018;
UBINGER, 2012). Sabemos, também, da importância que o Toré e os
rituais análogos assumem para esses grupos, sobretudo como es-
paço, por excelência, de composição com a força dos encantados e
outros seres espirituais (GRÜNEWALD, 2005). Por fim, conhecemos
o lugar que o vinho da jurema ocupa nesses mesmos rituais, atuan-
do como uma espécie de condutor que facilita a comunicação entre
esses seres e os vivos (GRÜNEWALD, 2005).2

A minha intenção neste artigo não é negar a pertinência dessas con-


siderações, ou diminuir a relevância dos encantados nesses contex-
tos, mas chamar atenção para outros seres, outros-que-humanos,
esses que aparecem na fala de Dona Helena e que, via de regra, re-
ceberam menor ênfase nos estudos realizados entre os povos indí-
genas no Nordeste. Nossa Senhora, Jesus, Oxóssi, Pretos Velhos, ao
longo do texto, estes entes serão considerados a partir da Jurema
– uma opção que se deve menos ao seu lugar de “símbolo identitário”
do que à decisão de acompanhar Dona Helena, renomada médium
Xukuru do Ororubá, que faz da planta-vinho-entidade protagonista
de sua fala e convoca entidades e santos para agirem ao seu lado,
sem acionar os cortes e limites que, em geral, são impostos para
descrever mundos análogos. São as conexões efetuadas na fala de
Dona Helena, e o modo como ela nos convida a pensar para além e
aquém dos limites identitários, os temas deste artigo.

301
NA SOMBRA DA JUREMA
Clarissa Martins Lima

Dona Helena reside na Vila de Cimbres, aldeia Xukuru do Ororubá e


lugar a partir do qual as considerações que eu apresento ganham
vida.3 Rejeitando uma análise genealógica ou tipológica da presen-
ça dos seres considerados em sua fala4, proponho um diálogo com
passagens de outros trabalhos realizados na região para argu-
mentar que esses outros-que-humanos precisam ser igualmente
considerados pelas pesquisas para alargar a nossa compreensão
das lutas e do lugar que a terra ocupa entre esses povos. Ao longo
do texto, sustento que, ao falar de Nossa Senhora ou dos antepas-
sados, de Jesus ou do Caboclo Tupinambá, Dona Helena nos apre-
senta um modo específico de conceber a terra e seus habitantes,
evidenciando que o vínculo entre os povos indígenas e seus territó-
rios passa não apenas pelos encantados, tal como vem sendo dis-
cutido pela bibliografia, mas também por seres tradicionalmente
associados a outros universos, como o cristianismo ou as religiões
de matriz africana. Com isso, a minha intenção é problematizar a
natureza desse vínculo e apresentar uma reflexão etnográfica que
se, por um lado, desloca temas clássicos da antropologia, como o
sincretismo e a mistura, por outro lado, investe em uma aproxima-
ção com a imagética geológica das contingências: esta que susten-
ta o acúmulo sucessivo de estratos, em vez de sua substituição ou
fusão, e admite a coocorrência e/ou a influência permanente dos
estratos inferiores sobre os superiores e vice-versa.

1.1 Jurema e Nossa Senhora: do que é no mundo inteiro

A conversa com Dona Helena precisa ser situada. Eu já havia pre-


senciado diversos Torés na Terra Indígena Xukuru, todos acompa-
nhados do consumo do vinho da jurema, ingerido pelos participan-
tes ao final do ritual para limpar o corpo. Ainda durante os rituais,
eu havia notado que algumas entidades solicitavam o vinho da
jurema assim que baixavam nos médiuns.5 Também já havia sido
ensinada, ao topar com pés de jurema caminhando pelos arredores
da Vila de Cimbres na companhia de seus moradores, que se trata

302
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

de uma planta sagrada. Com isso, meus amigos e amigas me mostra-


vam que a importância da jurema dificilmente poderia ser restrita aos
Torés. Por fim, já estava ciente da recorrência do uso da jurema em
rituais indígenas no Nordeste, como pode ser conferido na bibliografia
produzida na região. Ainda assim, duas questões permaneciam e me
inquietavam: por que a jurema? Por que a jurema é sagrada?

Dona Helena foi enfática em sua resposta, mostrando que as minhas


duas perguntas eram, em verdade, uma só: a jurema é sagrada, ela
nos conta, porque “quando Nossa Senhora andava com Jesus, ela
descansou debaixo de um pé de jurema [...], ela é um pau que Jesus
descansou, que deu sombra a Nosso Senhor”. Dona Helena chegou
a mencionar outras plantas consideradas sagradas e poderosas,
como o jucá e o angico; mas foi contundente ao sublinhar os atri-
butos e a singularidade da jurema: a jurema é em primeiro lugar.

Entendo a fala de Dona Helena como uma narrativa que ilumina um


agenciamento estabilizado no ato do encontro entre uma planta,
Jesus e Maria, capaz de alterar cada um desses elementos e de
estabelecer uma superfície responsável por nutrir tudo o que nela
viceja. É uma superfície constituída de substratos cuja natureza
recusa a dicotomia sujeito-objeto: doravante, toda jurema é sagra-
da porque Maria e Jesus descansaram em suas sombras; por ser
sagrada, toda jurema foi e é o abrigo de Maria e Jesus. Uma relação
de mutualidade que – e talvez sobretudo – não é redutível ao mapa
cartesiano espaço-temporal: como nos lembra Dona Helena, ela é
no mundo inteiro. Não foi apagada com o tempo; e, se é espacial-
mente localizável, sua manifestação não corresponde à fixidez das
coordenadas geográficas dos mapas.

A cena relatada por Dona Helena, do repouso de Maria à sombra,


com Jesus em seu ventre, compõe a paisagem da Terra Indígena
Xukuru do Ororubá, manifesta em cada pé de jurema. Ao mesmo
tempo, trata-se de um evento e, com ele, de uma topografia que
não se encerra nos limites da T.I: é dos ancestrais e veio de Portugal,

303
NA SOMBRA DA JUREMA
Clarissa Martins Lima

nos explica Dona Helena; está presente entre os quilombolas, os


assentados, o povo de terreiro. Algo que não é exclusivo à jurema:
na aldeia Vila de Cimbres, por exemplo, é possível ver, impressas
em um lajedo, as pegadas deixadas pelos bichos do presépio em
sua caminhada para assistir ao nascimento de Cristo. É um lajedo
sagrado, sempre me diziam; sagrado porque tem, na sua constitui-
ção, os rastros divinos; sagrado por revelar, e sustentar presentes,
os passos dos quais foram testemunhas no passado. Portanto, um
evento cujos rastros estão localizados na T.I., mas que também po-
dem ser vistos em Poção, no Juazeiro ou em Jerusalém, as pessoas
me diziam. Analogamente, toda encruzilhada é vista como uma
obra do cão, coisa que ele deixou no mundo: as pessoas evitam
passar por elas e, quando não há outro caminho possível, solicitam
a proteção de Deus em sua travessia, seja nos limites da T.I., seja
quando estão na cidade de Pesqueira, por exemplo.

Esse mesmo princípio opera para tudo o que os Xukuru descrevem


como tendo no tempo da criação a sua condição de existência, tem-
po a respeito do qual algumas palavras precisam ser ditas. Como
eu mostrei em outro lugar (LIMA, 2019), o tempo da criação é ca-
racterizado pela presença simultânea de duas forças antagônicas
e igualmente criadoras, Deus e o cão, responsáveis por deixar no
mundo tudo o que não é feito pelas mãos dos homens: as matas, as
águas, a terra; as gentes e os animais; os sentimentos; a paisagem.
O que tem a sua origem em Deus é bonito, bom e tem futuro; o que
é do cão, por seu turno, é feio, ruim e sem futuro.

Sendo assim, o tempo da criação é o momento em que o plano da


existência é constituído, como também o é o surgimento de dois
princípios que ordenam o mundo a partir da “co-extensividade do
sentido de um contexto significativo para outro” que “aduz a varia-
ções de uma mesma potência” (VIEIRA, 2015, p. 331), que não é ex-
clusivo, do ponto de vista Xukuru, a eles apenas: é no mundo todo,
para retomar a formulação de Dona Helena. É um plano que, se é
remetido a um passado que ninguém alcançou, permanece atual,
presente em cada um dos elementos que com ele foram estabele-

304
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

cidos, estando ou não dentro dos limites da T.I. É um plano que é a


condição de vida e de morte (LIMA, 2019) e que é, por fim, comum a
toda a humanidade e também o limite a partir do qual ela passa a
diferir de si mesma.

Em artigos publicados recentemente, Coelho de Souza (2017, 2018)


problematiza, entre os Kisêdjê, de língua Gê, a existência de mais
de um nome para um único sítio, sugerindo que:

A instabilidade e variação dos nomes de lugar parece-me


função dessa implicação e dessa interanimação entre pes-
soas e lugares. Lugares que não são compostos de outra
coisa que de outros tantos corpos e de suas relações, elas
mesmas cambiantes, instáveis, imprevisíveis. (COELHO DE
SOUZA, 2018, p. 46)

Efeito das relações que condicionam a sua existência, um lugar


nunca seria um lugar, ensejando, assim, a variação de nomes pe-
los quais é conhecido. Retomando a potente formulação de Seeger
(1981), para quem a relevância dos topônimos entre os Kisêdjê po-
deria ser descrita como uma “história espacial”, Coelho de Souza
(2018, p. 16-17) acrescenta:

Talvez se deva falar também, correlativamente, em tempo-


ralização do espaço: pois cada ponto encontra aqui o seu
lugar apenas na medida em que se insere também numa
série temporal, como um acontecimento, seja antecipado
seja repetido, mas cuja (atualização na) extensão é sempre
inseparável de uma certa duração.

Existem, evidentemente, incontáveis diferenças entre os Kisêdjê


e os Xukuru do Ororubá, e a minha intenção aqui não é negá-las.
Antes, recorro às formulações de Coelho de Souza (2018) porque
elas me ajudam a iluminar um aspecto fundamental do meu argu-
mento, um princípio análogo que pode ser encontrado em ambas
as paragens etnográficas, ainda que com consequências diversas,
porque, assim como se passa entre os Kisêdjê, o espaço entre os
Xukuru não é um lugar vazio sobre o qual relações são erguidas;

305
NA SOMBRA DA JUREMA
Clarissa Martins Lima

antes, o espaço é um efeito das relações que nele precipitam, que


estabelecem uma extensão, para falar como Coelho de Souza
(2018). Para o que nos interessa aqui, e tal como eu o entendo, é
essa a mesma lição que podemos reter a respeito do que os Xukuru
falam dos elementos que têm no tempo da criação a sua condição
de existência: a formação de uma superfície que é indissociável dos
entes que dela brotam, sejam estes a terra, os animais, as plantas
ou as gentes. Assim como o caso Kisêdjê, são inseparáveis “de uma
certa duração”, tampouco cessam de existir: o tempo da criação,
entre os Xukuru, tem na morte de Cristo o seu limite; ainda assim,
tudo o que nele foi criado permanece sensível em cada um dos seus
elementos e, nesse sentido, permanece vivo.6

Se, entre os Kisêdjê, os nomes dos lugares são alterados quando


dão espaço a outras relações, é por uma razão análoga que, entre os
Xukuru, lugares supostamente diversos podem ser os mesmos – ou
no mundo inteiro: porque neles as mesmas relações estão assenta-
das. Lugares que, nesse sentido, são mais do que um e menos que
dois, para falar como De la Cadena: “[...] participam em diferentes
formações socionaturais, ainda que parcialmente conectad[o]s [...]”
sendo, assim, capazes de “complexamente aparecer um nos outros”
(DE LA CADENA, 2015, p. 205-206)7. Lugares que são e não são os
mesmos, para retomar o argumento de Coelho de Souza (2018).

O caso específico da jurema, nesse sentido, singularmente sinte-


tizado por Dona Helena, é particularmente revelador. A jurema é,
ao mesmo tempo, no mundo todo e dos ancestrais; da tradição dos
índios, como muitos me diziam, e dos quilombolas, dos assentados,
do povo de terreiro; a cidade dos ancestrais e a Cabocla Jurema. Ela
é, ainda, um vinho e uma planta e uma entidade.

1.2 O que difere de si mesmo: a multiplicidade da Jurema

O modo como Dona Helena apresenta a jurema sugere que a es-


tratificação promovida pelo encontro com Nossa Senhora e Jesus

306
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

estabelece um ambiente do qual brotam elementos que diferem


entre si, ainda que parcialmente conectados, cujo limite é a preci-
pitação de outros estratos, de outros mundos. Um mesmo tronco,
cujas ramas atualizam linhas de continuidade e de descontinuidade
(BARRETO FILHO, 2004; VIEIRA, 2015), para usar um idioma comum
aos grupos indígenas no Nordeste (ARRUTI, 1996, 2004; CARVALHO;
REESINK, 2018), e que é central para o que apresento nesta seção,
na qual me dedico, justamente, a aproximar o que nos diz Dona
Helena com o que aparece em outras etnografias da região.

Mas o que é esse ambiente? Dona Helena fala na cidade da Jurema


[...], que não é cidade, é mato mesmo; alternativamente, em outros
momentos, escutei moradores da T.I. e em linhas do toré que men-
cionam o reino do Juremá. Encontrei referências análogas entre os
Tumbalalá (NASCIMENTO, 2005, p. 44), os Potiguara (VIEIRA, 2010,
p. 300) e os Kiriri (NASCIMENTO, 1994). Grünewald (2018, p. 122)
afirma tratar-se de um “plano cosmológico, [...] um lugar (cidade ou
reino) no plano invisível, onde habitam os mestres e outros seres”.
Nesse sentido, trata-se de um ambiente que é o espaço cotidiano
e outro em relação a este habitado pelos humanos vivos: invisível
aos olhos, dotado de ciência e de força sagrada, residência de ou-
tros tipos de gente.

E o que floresce desse ambiente? Primeiro, uma entidade: a Cabocla


Jurema já vem direto da semente da jurema; a Cabocla Jurema
nasceu da jurema, nos conta Dona Helena. Vieira (2010, p. 293)
fala da “caboquinha da Jurema”, uma “entidade” presente no toré
Potiguara; Mota (2005, p. 181), por sua vez, menciona uma “divin-
dade conhecida como Jurema” entre os Kariri-Xocó. Entidade que
também aparece em um canto do toré Kanindé – “na jurema tem, na
jurema dá, caboclo bom pra trabalhar” (GOMES, 2012, p. 160) – e em
um canto do toré Potiguara – “caboquinha da jurema, eu dancei no
seu toré [...]” (PALITOT; SOUZA JÚNIOR, 2005, p. 195).

Entre a planta e a entidade, a relação é de fractalidade, e isso fi-


ca particularmente evidente na fala de Dona Helena, quando ela

307
NA SOMBRA DA JUREMA
Clarissa Martins Lima

alterna de uma à outra sem mudar o sentido de seu argumento:


não se trata de “[...] uma unidade em relação a um agregado, ou um
agregado em relação a uma unidade, mas sempre uma entidade
cujas relações integralmente implicadas” (WAGNER, 2011, p. 4). As
relações que efetuam a planta-jurema estão integralmente implica-
das na entidade-Jurema: se a planta-jurema está em primeiro lugar,
porque ela é um pau que Jesus descansou, a entidade-Jurema é tão
forte que ninguém consegue derrubar o poder dela. A sacralidade da
planta-jurema está contida na entidade, e a entidade está contida na
planta: a presença de ambas nos torés, como mencionado no pará-
grafo anterior, parece-me um exemplo dessa implicação recíproca.

Uma planta, um ambiente e uma entidade que são “como a água é na


água” (BATAILLE, 1992 apud OCHOA, 2007, p. 482): estamos em um
outro estrato, em um outro agenciamento, parcialmente conectado
ao anterior, no qual ramificam entidades de uma mesma natureza.
A Jurema é uma infinidade de guias, diziam-me os moradores da
Vila de Cimbres, a Cabocla Jurema, mas também Pena Branca, Seu
Zé Pilintra e as caboclinhas, que nasceram na cidade da Jurema.
Entidades que são como versões ou modulações da Jurema: coe-
xistem mutuamente e se afirmam simultaneamente (OCHOA, 2007,
p. 488). Portanto, uma outra superfície que é também uma outra
ecologia e que, se existe como possibilidade no mundo todo, é se-
dimentada apenas em alguns ambientes. Entre um estrato e outro,
existe uma fissura, implícita na fala de Dona Helena, responsável
por promover uma divisão: a que separa os brancos, estes que a
médium sequer menciona, dos ancestrais, quilombolas, os assen-
tados, povo de terreiro. Entre os Xukuru, é comum que esses grupos
sejam reconhecidos como irmãos, quando opostos aos brancos. É
uma irmandade que se realiza no reconhecimento de uma ecologia
conceitual e prática parcialmente conectada, como também ates-
tam os diversos trabalhos realizados na região que descrevem mo-
dos indígenas de reconhecer vizinhanças análogas entre mundos
“indígenas” e “afro” e que, nesse sentido, não supõem identidade
plena: tudo gosta da jurema; o que não quer dizer que tudo seja a
mesma coisa – o que também aparece nesses trabalhos, ainda que
com uma abordagem diversa da que eu proponho aqui, como eu
discuto adiante.

308
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Dona Helena fala dos ancestrais e afirma que a Cabocla Jurema foi
criada por Oxóssi, que é São Sebastião, e o caboclo Tupinambá, que
é tudo a mesma coisa. Essa diferença nos nomes não me parece for-
tuita: ela revela o encontro da Jurema com entidades que são e não
são as mesmas, uma vez que fazem parte de ecologias específicas,
apartadas pelos Xukuru justamente em função dos territórios diversos
que simultaneamente habitam e efetuam. Com isso, se já não estamos
no que é no mundo todo, tampouco estamos diante do que reúne
os ancestrais, os quilombolas, os assentados e o povo de terreiro. É
uma outra fissura, seguida de uma nova sedimentação, cuja extensão
coincide com a terra na qual estão os troncos dos quais ramificaram
as gerações atuais, sem por isso anular os estratos precedentes.
Parafraseando De la Cadena (2018, p. 107), uma terra com a qual os
povos, suas plantas, seus animais e, finalmente, suas naturezas são.

Assim, entre os Xukuru do Ororubá, a Jurema é considerada a guia


de frente da Terra Indígena e a árvore que deu sombra à Maria e
a Jesus. Uma coexistência que não é exclusiva aos Xukuru. Entre
os Tuxá de Rodelas, Salomão (2006, p. 125) afirma que os ances-
trais cultuados no ritual da jurema “são exclusivos do seu uni-
verso religioso”. Sem anular essa possibilidade, deparamo-nos
com a seguinte explicação de um conselheiro Tuxá: “a árvore da
jurema se tornou sagrada depois que a Virgem Maria a usou para
esconder o menino Jesus dos soldados romanos, enquanto fugia
de Herodes” (SALOMÃO, 2006, p. 101); e do cacique Tuxá ouvimos o
seguinte relato, a respeito de uma bebida utilizada em seus rituais:
“Existia uma cachaça limitada para fazer uma cura, para defender
das coisas ruim. O pajé sacramentando aquela cura. A jurema é
feita a cruz, também sacramentando ela [...]. Mal ali não entrava”
(SALOMÃO, 2006, p. 118). Dona Ana, mestra Kiriri, compara o “vinho
da jurema, símbolo mais sagrado do toré, e o ‘Sangue de Cristo’, nu-
ma clara referência à Eucaristia”, nos diz Nascimento (2005, p. 59).
Jurema que é um dos elementos que diferenciam o “trabalho de ín-
dio” do “trabalho de não índio”, este último englobando as práticas
dos “negros” e dos “brancos” (NASCIMENTO, 2005, p. 56). Entre os
Atikum-Umã, encontra-se o seguinte relato de um mestre de toré a
respeito do vinho da jurema:

309
NA SOMBRA DA JUREMA
Clarissa Martins Lima

O sangue de Cristo, porque quando mataram Jesus, um dos


apóstolos dele apanhou o sangue dele e mandou botar no
pé da juremeira, que era prá ficar a ciência para os índios. Aí
o civilizado não tem nada com a jurema, porque não tem o
sangue. (GRÜNEWALD, 2004, p. 163)

De acordo com Batista (2005), entre os Truká, a Jurema ocupa lu-


gar central na “ciência de índio” e nos “mistérios dos índios”. Sua
origem, por sua vez, ainda de acordo com Batista (2005, p. 88), es-
taria relacionada à existência do Velho U-ká, ancestral e um dos
principais encantados Truká. No entanto, o relato que a autora nos
apresenta, de um juremeiro Truká, sugere que duas estratificações
operam simultaneamente:

Porque esse negócio de tribo, ou essa corrente de aldeia


que tinha antes [...] porque na data que Jesus chegou a des-
cansar no pé de jurema, aí ele disse assim: Senhor, faz uma
sombra para nosso descanso, debaixo desse pau, de uns
quinhentos desses, disse o Santo Pedro, e desse pau vai se
tirar de tudo, de escada [...] um dia vai ter uma pessoa para
entender que a minha necessidade de homem, de mim para
o homem é sempre se apegar com a raiz desse pau, e esse
pau, quando nós sair daqui vai ficar diferente um dos ou-
tros, justamente é a jurema […] aí então, quando chegou
o tempo, Pedro veio aqui, aí quando ele chegou aqui disse:
nós temos que sair então. A gente chegando, eles dizem:
ah, senhor, lá naquela casa que nós andava tem um homem
lá com o nome de U-ká, que faz um trabalho maravilhoso,
aquele pé de pau que nós plantemo debaixo dele, ele ar-
rancou a raiz daquele pau e fez uma bebida e botou dentro
de um aribé [...]. [O Velho U-ká] foi quem formou a tribo, era
descendente daqui da terra. (Pedro Aliberto, Juremeiro, ci-
tado por BATISTA, 2005, p. 88-89)

Assim como ocorre com o velho U-ká, para muitos grupos na região, o
“reino da Jurema” ou “a cidade da Jurema” é também pelo menos uma
das moradas dos encantados ou encantos de luz. Entes “extra-huma-
nos” (ANDRADE, 2002) e ancestrais míticos ou históricos, os encan-
tados são indissociáveis da terra na qual se manifestam e da gente
que nela reside. São os troncos que restam plantados, como dizem os
Xukuru, dando origem às ramas dos dias atuais. Ou, ainda, uma gente

310
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

que era “descendente daqui da terra”, que “formou a tribo”, nas pala-
vras do juremeiro Truká. Em ambos os casos, uma gente responsável
por singularizar as terras que habitam, os que nela germinam e o que
a jurema é capaz de sedimentar: “o mistério”, o “segredo”, a “ciência”
particular de cada um dos grupos indígenas na região.

Minha intenção aqui não é anular as eventuais diferenças que as


semelhanças entre esses relatos podem talvez obliterar, sobretu-
do em relação aos limites distintos que cada grupo estabelece em
relação às entidades admitidas em seus rituais e suas origens (ver
adiante). O que eu gostaria de enfatizar é a possibilidade de uma
interpretação alternativa em relação à proposta pelos pesquisado-
res e pesquisadoras cujos trabalhos animam os parágrafos prece-
dentes, para os quais a presença da jurema entre grupos indígenas
é explicada como parte de um “complexo” ou de um “universo com-
partilhado pelo culto da Jurema” (SALOMÃO, 2006). Tal complexo
seria a “demonstração da mistura afro indígena no Brasil e da troca
entre elas em termos de seus sistemas de crença e cura, sistemas
de classificação botânica, representações e epistemologia” (MOTA;
BARROS, 1990, p. 171). Demonstração que, paradoxalmente, e como
nos mostram esses mesmos trabalhos, seria negada entre os pró-
prios grupos indígenas em função da pureza exigida pelos limites
identitários que a jurema é capaz de estabelecer e mobilizar.

Alternativamente, eu gostaria de propor uma reflexão para a ju-


rema que se coloca aquém e além do identitarismo e remetê-la ao
princípio das forças contidas na, e irradiadas por meio da, planta-
-entidade-ambiente, tal como eu busquei enfatizar na descrição
que eu fiz até este momento. Como argumenta Ubinger (2012, p.
38), em trabalho realizado entre os Tupinambá da Serra do Padeiro:

De fato, é imperativo procurar outros meios de interpretar


as modificações culturais e religiosas expressas na cultura
indígena do Nordeste e, neste caso, dos Tupinambá da Ser-
ra do Padeiro. Transformados ou não, os índios Tupinambá
existem, e, para eles, sua religiosidade é uma expressão de

311
NA SOMBRA DA JUREMA
Clarissa Martins Lima

como o índio sobreviveu em face do “contato” com o “outro”


e, por consequência, destas mudanças interétnicas e cul-
turais. É importante, em síntese, que procuramos entender
quem são os caboclos ou encantados para “eles”, e não, ne-
cessariamente, quem são para “nós”.

1.3 Tudo tem dois lados: forças na terra

Os moradores da Vila de Cimbres sempre me diziam que um dos


efeitos da demarcação da T.I. foi o aumento do número de médiuns
trabalhando na aldeia, seja no terreiro do toré, seja em suas próprias
casas.8 Uma constatação que vinha acompanhada de avaliações
divergentes em relação à natureza do trabalho que realizavam: a
depender do meu interlocutor, escutava que algum determinado
médium, considerado fino por outros, era catimbozeiro, categoria
acusatória usada para descrever a relação com forças e entidades da
parte do cão. Para muitos, todos os médiuns deveriam ser tratados a
partir dessa possibilidade – o que não impedia que, eventualmente,
realizassem consultas com essas pessoas e ainda que nunca tives-
sem testemunhado algum evento que justificasse tal cautela. Uma
prudência que era adotada tanto para os médiuns que participavam
do toré quanto para os que atuavam apenas em suas casas. Um úni-
co consenso aparecia nessas avaliações, materializado na figura do
dono do terreiro de candomblé da aldeia: para todos, ele era o ca-
timbozeiro por excelência da Vila – o que, mais uma vez, não impedia
que os moradores recorressem, vez ou outra, aos seus serviços.

Nesse cenário, gostaria de chamar atenção para um outro dado,


que desenvolvo a seguir: nenhum dos acusados de catimbó eram
considerados mais ou menos Xukuru, nem mesmo o dono do terrei-
ro de candomblé; tampouco me parece que a lógica identitária, se
se tratam de indígenas ou não, seja a melhor maneira de descrever
as críticas que eram dirigidas às suas práticas. Olhar para o que os
próprios médiuns dizem a respeito do que fazem é o caminho que
eu opto por iluminar essas considerações.

312
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Os médiuns da Vila desafiam qualquer possibilidade classificatória,


seja por gênero, idade, família ou trajetória de iniciação na mediu-
nidade. Os guias com os quais trabalham são igualmente diversos:
alguns são antepassados ou encantos que viveram nas terras
Xukuru em um tempo que ninguém alcançou; outros são antigas
lideranças já falecidas e que se tornaram encantados; outros, ain-
da, vieram de longe, da Bahia, da Amazônia. Recorro mais uma vez
à Dona Helena:

O guia que baixou da primeira vez é o mesmo até hoje, mas


agora ele já está domesticado, não está mais bagunçando.
Guia de frente, que baixou da primeira vez, era caboclinha,
chamada Laurinda. É um antepassado criança. Diz que an-
tigamente ela morava na Pedra do Dinheiro. Tem também
Zé Vaqueiro [...] que era um vaqueiro que morreu dentro da
caatinga, vaquejando o gado na Bahia. Tem o Zé de Buique,
que era cangaceiro de Lampião [...]. Tem Sertão das Matas,
um caboclo que é o que mais baixa. Tem vez que baixa um
que é da etnia da Amazônia – Guaranaci.

As entidades mencionadas por Dona Helena aparecem também co-


mo guias de outros médiuns da aldeia. Conversando com essas pes-
soas, tive a oportunidade de registrar outros guias: Cabocla Jurema,
Cabocla de Pena, São Cosme e Damião, Preta Velha, Oxóssi, Mestre da
Jurema Sagrada, Caboclinhas, Tupinambá, Iemanjá e Zé Pilintra, para
citar apenas alguns nominados. Existem também, como eu men-
cionei anteriormente, referências a antigas lideranças que fizeram
parte da luta do povo Xukuru do Ororubá e que, após a morte – ou
assassinato –, baixam no corpo dos médiuns com as mesmas carac-
terísticas que tinham em vida. Ainda, há outros guias que, conforme
os médiuns me explicavam, são antepassados ou encantos de luz
– pessoas que viveram nas terras Xukuru em um passado distante.
A presença de seres outros-que-humanos que, em geral, está as-
sociada às religiões de matriz africana, também foi descrita entre
os Tuxá (SALOMÃO, 2006) e entre os Tupinambá da Serra do Padeiro
(UBINGER, 2012). Esses autores mostram como, no primeiro caso,
eles aparecem reunidos na noção de “antepassados” e, no segun-
do, na de “encantados”. No caso Xukuru, algo diverso acontece:

313
NA SOMBRA DA JUREMA
Clarissa Martins Lima

antepassados e encantados são termos usados exclusivamente


para seres que são considerados exclusivos às suas terras, que
nela habitaram quando estavam vivos. Para os demais seres, estes
que, em geral, os Xukuru chamam de entidades, é possível acom-
panhar um movimento semelhante ao que descrevi para a Jurema:
estão, simultaneamente, assentadas em outras superfícies e nos
domínios Xukuru. Por vezes, como aparece na fala de Dona Helena,
vieram de longe e passaram a fazer da Terra Xukuru a sua morada,
sempre mantendo uma relação específica com determinadas su-
perfícies. Mas, na maior parte das vezes, são seres que, se estão
irremediavelmente implicados em domínios específicos do territó-
rio, são também no mundo todo:

Cada entidade tem uma origem. Virgem da Conceição, venero


ela de ano em ano, faço promessa. Ela é a rainha do mar, ela
é Iemanjá, que esse nome quem deu foram os índios. Ela é
uma das minhas guias. Precisa acender ponto para ela, por-
que é uma forma de retribuir o que ela dá [...]. Nossa Senhora
do Carmo, dona do ouro e da prata, é a dona da riqueza. Que
na língua dos índios ela é Oxum. Ela é boa, a Nossa Senho-
ra do Carmo. Tem também Santa Bárbara, que é a dona da
chuva, do raio e do trovão. Os índios quando viam o trovão, a
chuva, venerava ela. É ela que protege dos relâmpagos, dos
raios. Ela é Yansan. Santa Teresinha do Jesus de Praga. Ela é
a dona da luz. Ela ilumina os passos que a gente dá. Ela en-
caminhou Jesus, andava com a mãe de Jesus. Ela era amiga
de Nossa Senhora. Acende o ponto roxo. O outro nome dela é
Nana Boroco. Esses outros nomes tudo os índios que deram.
São Lázaro, que protege a nossa casa. Ele é Omolú. Ele foi
um grande homem [...]. São Sebastião é dono da natureza,
da mata, é Oxossi, dono do verde. Ele protege a humanidade
cuidando da natureza, das matas.

Foi assim que Dona Helena me apresentou os seus outros guias. Ao


afirmar que esses outros nomes tudo os índios que deram, Dona
Helena assenta, na terra dos índios, entes que não lhes se são exclu-
sivos; que estão em suas terras, brotam de sua superfície e que pro-
tege[m] a humanidade; que não são “tradição indígena”, mas “nasceu
na aldeia”, para usar uma formulação dos Pataxó para explicar a
Grünewald (2011,p. 379-380) a presença de Nagô em seus rituais.

314
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Grünewald (2011, p. 379-380) afirma que “[...] segundo os citados


informantes esse trabalho espiritual [com Nagô] nasceu espontane-
amente e lá mesmo [na aldeia] Pará, sem interferência de ninguém
e nenhum aprendizado no exterior”. Algo semelhante acontece entre
os Xukuru: para além das já mencionadas entidades que nasceram
da Jurema, outras tantas nasceram das águas ou de Iemanjá, das
matas ou de Oxóssi, e assim por diante. E, assim como entre os
Pataxó, a relação com essas entidades tampouco envolve entre os
Xukuru “aprendizado no exterior”: é bastante comum que médiuns
comentem que, antes da demarcação da T.I., quando as suas práti-
cas eram proibidas, recorriam aos centros espiritistas em busca de
tratamento; mas o que ocorria nesses centros era a doutrinação dos
guias com os quais já estavam em relação através de suas correntes.

Os médiuns da Vila demonstravam, em nossas conversas, que sabiam


das suspeitas ensejadas por suas práticas; por vezes, eles mesmos
levantavam suas dúvidas em relação às práticas uns dos outros. Não
era incomum que afirmassem, por exemplo, e mesmo sem eu ter nada
perguntado, que não trabalhavam com a esquerda ou que não cor-
tavam para a esquerda. Como uma médium afirmou-me certa vez:
todos os meus guias são de luz; eu não trabalho com espírito ruim.

A principal evidência que apresentavam para essas afirmações


coincide com as oferendas que propiciavam aos seus guias: mel,
tabaco, frutas, balas, flores, água, cocares e velas, sendo que estas
deveriam ser nas cores preferidas de suas entidades – verde, bran-
ca, azul e, mais raramente, amarela e roxa. Destacavam, também,
o local em que essas oferendas deveriam ser dispostas: as matas,
e não as encruzilhadas, por exemplo. Por fim, e talvez sobretudo,
eram categóricos em relação ao uso das cores vermelha e preta e
ao derramamento sacrificial de sangue de animais: isso, diziam, ja-
mais faziam; é coisa de catimbozeiro. Como uma médium sintetizou
em uma dada ocasião:

315
NA SOMBRA DA JUREMA
Clarissa Martins Lima

A diferença do que é natureza para o que é espiritista é que


não trabalha com bicho, com luz de cor. Às vezes acende
azul para Iemanjá, ou verde para Jurema. Mas não aceita
matar bicho. Faz oferenda para eles [os guias] nas matas,
de fruta. Em um pote de barro, agradecendo o que eles fa-
zem para a gente, em fruta, não em sangue. Quando sacri-
fica, é coisa mau. Sangue, matar um animal pelo sangue, é
coisa errada, oferece para coisa errada. Nós na natureza
trabalhamos com fruta.

Espiritismo é o termo que os moradores da Vila usam para se re-


ferir às práticas que consideram análogas às dos médiuns – o que
inclui, em geral, o candomblé, a umbanda, o espiritismo e os cultos
juremeiros com os quais entraram em contato no tempo em que os
seus rituais eram proibidos pelos fazendeiros que invadiram as su-
as terras. Quando questionados a respeito do que os diferenciava
dos espiritistas, os médiuns diziam “é tudo a mesma coisa” e acres-
centavam “a diferença é que a gente não corta para esquerda, não
derrama sangue”. Uma recusa que era sempre explicada a partir de
uma divisão bastante clara do mundo: entre o que é de luz, de Deus,
e o que é de trevas, do Cão. Noto aqui a semelhança entre o que
ocorre entre os Xukuru e o que Salomão (2006, p. 111-112) afirma a
respeito dos Tuxá de Rodelas:

Para os Tuxá, as práticas religiosas de origem afro-bra-


sileira, são consideradas práticas que lidam com “coisas
ruins”, que personificam na figura do exu. As pessoas, in-
dependente da cor ou origem, que trabalham nessa linha,
com o exu, são consideradas pessoas que trabalham na
“esquerda”, com o que chamam de “Quibanda”. Seus pra-
ticantes são conhecidos como “feiticeiros”, termo usados
por eles para se referirem às pessoas que se utilizam de
conhecimentos mágicos para praticar o mal alheio. Os ín-
dios fazem questão de esclarecer que não fazem parte de
“demanda”, não usam galinha preta, fita e velas de várias
cores nos seus trabalhos, elementos que identificam como
pertencentes ao universo religioso dos de “esquerda”. Os
de “direita” são índios ou descendentes de índios que tra-
balham somente com os “caboclos”, considerados como
entidades que trabalham para o bem dos outros.

316
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Portanto, aparentemente em ambos os casos, estamos diante de


uma modulação da diferença que não corresponde à natureza das
práticas ou à identidade dos praticantes, mas às forças que são pos-
tas em movimento por uns e outros.9 Assim, que se tem, na alteri-
dade, a sua manifestação por excelência, como de resto é bastante
frequente nas acusações de feitiçaria, não deixa de se manifestar
dentro dos próprios limites do grupo, vide as frequentes acusações
de catimbó. Nesse sentido, é preciso dizer que não trabalhar com a
esquerda não é o mesmo que negar a sua existência: tudo tem os dois
lados, diziam com frequência, o bom e o ruim. Reconheciam, inclusi-
ve, que, eventualmente, a esquerda precisava ser alimentada, para
que não atrapalhasse as suas práticas. Mas rechaçavam definitiva-
mente a composição com essas forças, embora estivessem sempre
suspeitando de que outros não adotassem prudência semelhante.

Quando olhamos para os trabalhos desenvolvidos entre os grupos


na região, é possível notar a persistência do problema colocado pela
composição com as forças imanentes à superfície, o que sugere não
se tratar de uma questão exclusiva aos Xukuru. É nesse sentido, por
exemplo, que entendo a recorrência das menções à Nossa Senhora
e a Deus nas aberturas dos torés que são relatadas sistematica-
mente.10 Ou, ainda, a recusa da composição com entidades e práticas
consideradas de esquerda (SALOMÃO, 2006; UBINGER, 2012).

Entre os Truká, Batista (2005, p. 93) destaca que uma das caracte-
rísticas de um bom Mestre do Particular é ser capaz de, “pelo balan-
ço do maracá, pela linha que se escolhe puxar e pelo uso do apito,
chamar ou impedir a aproximação [de] um encanto ou mesmo [...]
espírito”. Nas palavras de um Mestre, o que deve ser aproximado e o
que deve ser repelido fica evidente, ao mesmo tempo em que marca
a diferença entre as suas práticas e as que chamam de Xangô:

[...] a diferença entre o Particular e o Xangô é que nós faze-


mos um trabalho de caboclo, onde a força sai da jurema e
tudo é pela direita, e eles não, só trabalham com a esquer-
da, com as linhas do calombé, só fazendo o mal sempre,
enquanto que nós não. (Mestre do particular, citado por
BATISTA 2005, p. 94)

317
NA SOMBRA DA JUREMA
Clarissa Martins Lima

Nascimento (2005, p. 64) aponta para divisão semelhante en-


tre os Kiriri:

[...] chamemos atenção para as oposições encantado – vivo


– bom / coisa ruim – espírito de morto – mal, que deve-
mos correlacionar à oposição primária “o que é do índio”/ “o
que é de branco/negro”. Bem como toré/ mesa branca, que
também vale por candomblé, umbanda, espiritismo, pois,
na verdade, aparentemente não parecem se preocupar em
distinguir esses trabalhos entre si, usando os termos alter-
nadamente quando se referem a um determinado trabalho
diferente do “trabalho do índio”.

O caso Kiriri é particularmente interessante para análise que eu pro-


ponho porque é um dos exemplos que apontam para o modo como
essas mesmas categorias são mobilizadas de forma acusatória den-
tro do grupo, assim como acontece com o catimbó entre os Xukuru.
Nascimento (2005, p. 61) mostra como uma especialista ritual teve
as suas práticas desacreditadas por serem consideradas “coisa de
negro”. Práticas que, segundo o autor, não eram muito distintas das
empregadas por uma outra especialista que ocupa papel de destaque
no “trabalho de índio” (NASCIMENTO, 2005, p. 61). Esse não é o único
exemplo: Barbosa (2005, p. 106) mostra como a separação ocorrida
entre os Pipipã e os Kambiwá foi acompanhada por acusações recí-
procas de “catimbozeiros” e “xangozeiros”. Segundo Grünewald (2004,
p. 163), os Atikum-Umã “negam com veemência a presença do catimbó
no interior da área indígena, associando-o a coisas negativas e, em su-
ma, ao feitiço” e, em uma nota de rodapé, comenta:

[…] [n]uma contradição aparente, o certo é que o imaginá-


rio dos habitantes da Serra está repleto da ideia de feiti-
ço. Existem diversos exemplos concretos da presença de
feitiço na área, inclusive de um que gerou uma família da
mesma. No mais, falo em termos de contradição aparente
porque o feitiço não é visto como prática indígena. (GRÜNE-
WALD, 2004, p. 163)

Mas, como já advertia Andrade (2005, p. 121), “a etnicidade é apenas


uma das formas que categorias de identidade podem ser ordenadas”.

318
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

A partir do caso Tumbalalá e das disputas entre dois núcleos rituais,


o autor chama atenção para o modo como “moralidades” distintas
determinam “formas de pertença social” que podem sobrepor-se “às
categorias étnicas” (ANDRADE, 2005, p. 121). Para um Mestre tum-
balalá, “o maior insulto dirigido contra a sua competência ritual é a
incriminação de que ele é um ‘xangozeiro’ ou adepto do candomblé
de caboclo” (ANDRADE, 2005, p. 109); mais adiante, o autor mostra
como é igualmente nesses termos que a disputa entre os dois núcle-
os de toré, ou a disputa “intragrupo”, se manifesta:

[...] acusa-se o toré na Missão Velha de com encantados


que não são de luz ou de entoar linha propiciatórias de fei-
tiço, típicas de terreiros de umbanda, ou ainda de utilizar,
durante o toré, a jurema preta em conjunto com a ‘malagá’
(cachaça). (ANDRADE, 2005, p. 111)

Minha sugestão é a de que essas formulações não coincidem com as


preocupações antropológicas a respeito da etnicidade – ou mesmo
da lógica das identidades, sejam elas quais forem – e isso tanto no
que diz respeito às acusações entre grupos indígenas que se consi-
deram distintos quanto no interior desses mesmos grupos: quando
alguém é acusado de ser feiticeiro, esta acusação não questiona o
pertencimento étnico, mas a adesão a uma determinada modulação
de forças. Portanto, mais do que uma recusa identitária, o que me
parece estar em questão é o reconhecimento da presença e persis-
tência de forças que se acoplam às superfícies e que, por esse mo-
tivo, precisam ser tratadas com cautela, a partir de procedimentos
cuidadosos que visam potencializá-las ou repeli-las.

1.4 Na sombra da Jurema

Certo dia, durante a realização de um toré, perguntei a Seu Leandro,


um médium importante na aldeia, qual era a diferença entre a re-
ligião indígena e o catolicismo. Ele me respondeu: é tudo a mesma
coisa. A diferença é que essa nossa igreja é a céu aberto [o toré é feito

319
NA SOMBRA DA JUREMA
Clarissa Martins Lima

em terreiros que ficam no meio das matas], porque aqui é a morada


dos encantos de luz, para ficar perto deles. A fala de Seu Leandro
sublinha algo importante na existência dos seres espirituais na Vila
de Cimbres: um tropismo que faz com que eles tendam a se mani-
festar de maneira mais recorrente em determinados lugares do que
em outros, tal como eu tentei mostrar ao longo desse texto. Espíritos
ruins ficam em encruzilhadas, os santos, na igreja ou próximo às su-
as imagens, os mortos, no cemitério ou nos lugares que gostavam de
frequentar quando ainda estavam vivos, os encantados, nas matas,
e assim por diante – ver Andrade (2008, p. 244) e Alarcon (2013, p.
218) –, para considerações semelhantes a respeito dos Tumbalalá e
dos Tupinambá da Serra do Padeiro, respectivamente).

Mas, como vimos, não são apenas os encantos de luz que têm, nas
matas, a sua superfície privilegiada: existem entidades que brotam
da Jurema, das matas, das águas, e que também estão presentes
nos torés Xukuru. No mais, e à medida que o ritual caracteriza um
momento em que uma fenda se abre no mundo, colocando em con-
tato o canto habitado pelos vivos e o que é habitado pelos outros-
-que-os-vivos, existe sempre a possibilidade de outras entidades
se manifestarem: daí a importância dos cantos ou pontos que são
entoados no toré e que visam atrair determinadas entidades, como
já foi relatado para outros grupos na região. Ou, ainda, da adver-
tência, observada entre os Xukuru, a respeito do uso de roupas
vermelhas ou da presença de mulheres menstruadas no toré, uma
vez que são elementos capazes de atrair a esquerda.

A presença de elementos associados a outros mundos – como o cato-


licismo ou as religiões de matriz africana – entre os grupos indígenas
no Nordeste já foi problematizada por outros pesquisadores, seja no
que diz respeito ao “complexo da Jurema” ou em relação a outras situ-
ações que evocam a questão da mistura. Em comum, esses trabalhos
enfatizam, por um lado, o caráter inventivo da etnicidade e, por outro
lado, a sua dimensão histórica, que anularia a possibilidade de pensar
a etnicidade “livre de contatos com elementos culturais de outras po-
pulações” (GRÜNEWALD, 2011, p. 363) – o que, no caso específico dos

320
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

índios no Nordeste, implicaria ainda no reconhecimento das políticas


deliberadas de mistura empregadas pelo Estado brasileiro. Nesse
sentido, esses grupos seriam, de maneira incontornável, um efeito da
mistura, o que poderia ser atestado na maneira como eles mesmos
se dizem “misturados”, em oposição à “pureza” das gentes de anti-
gamente, por exemplo, ou justamente pela presença de elementos
afro-brasileiros e cristãos em suas cosmologias, agentes criadores
das suas próprias etnicidades.

Mas, em um certo sentido, ainda estamos aqui vinculados a uma


imagem histórica, seja para negá-la ou para subscrevê-la. E, como
outros estudos já mostraram, mesmo o que é considerado “mis-
tura” ou “pureza” precisa ser problematizado, levando em conta a
dimensão relativa dessas categorias e, talvez sobretudo, o modo
como elas não correspondem à lógica genealógica – e identitária –
através da qual estamos acostumados a compreendê-las.

O que eu busquei propor ao longo do texto foi uma imagem alterna-


tiva para o modo como a presença dos seres outros-que-humanos
é concebida entre os Xukuru especificamente e que poderia ser
válida para os outros grupos na região. Uma imagem que aposta
na composição entre gentes e lugares e entre superfícies. Uma
imagem que não necessariamente nega e que, em determinados
momentos, encontra pontos de aderência com a que nos é ofereci-
da pela história, mas que não atribuiu a esta qualquer prerrogati-
va. Nesse sentido, entendo a presença da jurema nos rituais como
uma forma de compor com as forças que nela estão contidas e uma
tentativa de orientar a qualidade das forças e entes que irão se ma-
nifestar. Que ela tenha sido alçada a símbolo identitário parece-me
um desdobramento do que contém em si e do que é capaz de atrair.
Como diz o mestre Truká, “a força sai da jurema e tudo é pela direita”.

321
NA SOMBRA DA JUREMA
Clarissa Martins Lima

Notas
1 Reservo o uso de itálico para termos e expressões Xukuru do Ororubá,
ou para as que são partilhadas por todos os grupos indígenas no Nor-
deste. O nome de Dona Helena foi alterado para preservá-la. No entanto,
gostaria de deixar registrada a minha profunda gratidão a essa senhora,
cujos prazer e a paciência que sempre dedicou para refletir e problema-
tizar os meus infindáveis questionamentos foram fundamentais para
que eu pudesse compreender – parcialmente, é claro – o universo Xuku-
ru do Ororubá. Este texto é dedicado aos seus ensinamentos.

2 Ao propor uma síntese do uso da Jurema entre grupos indígenas no Nor-


deste, Grünewald (2005, p. 43) apresenta a seguinte descrição: “A jurema
[...] pode ser uma planta, uma bebida e uma entidade. [...] Das cascas das
raízes dessas plantas são elaboradas beberagens usadas ritualmente
por grande número de sociedades indígenas no Nordeste. Os grupos in-
dígenas que não usam essa bebida fazem referência constante à planta
como dotada de forças mágicas ou cósmicas que são cultuadas ou, pelo
menos, reconhecidas enquanto portadoras de influências oriundas das
matas nativas. Há, por fim, a ideia de que a jurema é uma entidade, uma
personificação espiritual das citadas forças das florestas brasileiras.
Este último sentido é mais próprio às religiões afro-ameríndias (ou afro-
-brasileiras), que substituíram a planta bebida por uma representação
de forças nativas”. Como veremos ao longo do texto, as modulações das
quais fala Grünewald, “uma planta, e uma bebida, e uma entidade”, tam-
bém aparecem entre os Xukuru – ainda que, como a fala de Dona Helena
já sugere, os dados Xukuru resistam à associação proposta pelo autor
entre a “entidade” e as religiões afro-brasileiras.

3 A Terra Indígena Xukuru está localizada no município de Pesqueira/PE,


situado a 240 km de Recife. Contando com aproximadamente 27 mil
hectares, atualmente está dividida em 24 aldeias, nas quais residem
cerca de 10 mil pessoas. Os Xukuru são falantes exclusivos do portu-
guês e conviveram com invasores de suas terras desde os primórdios da
colonização, que ocuparam a região para a criação de gado. A situação
só foi alterada quando, a partir da década de 1980, o grupo conseguiu se
mobilizar e garantir seus direitos, com a demarcação da Terra Indígena.
Os anos entre 1990 e 2000 foram marcados por conflitos com fazendei-
ros, que se recusavam a deixar o território demarcado. Esses conflitos
culminaram no assassinato do cacique Xicão, considerado o principal
responsável pela luta Xukuru, e na criminalização de outras lideranças

322
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Xukuru. Hoje a T.I. encontra-se desintrusada, mas, como os Xukuru afir-


mam, a luta não tem fim: uma afirmação que diz respeito à contínua cri-
minalização das lideranças e às ameaças, por parte dos fazendeiros, de
voltarem a invadir o território, mas também às permanentes dificulda-
des que enfrentam, à resistência que encontram no Estado e na socie-
dade envolvente para garantir o seu bem viver. Para revisões históricas
que iluminam a luta Xukuru, ver Silva (2008) e Souza (1998); para o caso
do assassinato do Cacique Xicão e a criminalização de lideranças Xuku-
ru, ver Fialho, Figueiroa e Neves (2011). A minha relação com os Xukuru
começou em 2009, quando conheci o grupo e dei início a uma pesquisa
sobre o consumo de medicamentos psicotrópicos na Vila de Cimbres,
uma das maiores aldeias da Terra Indígena, a partir da qual escrevi mi-
nha monografia de conclusão de curso (LIMA, 2010). Foi também nessa
aldeia que conduzi as pesquisas que resultaram em minha dissertação
de mestrado (LIMA, 2013) e em minha tese de doutorado (LIMA, 2019).

4 Cf. GOLDMAN, 2015.

5 Entre os Xukuru, a jurema não é condição para o transe mediúnico.


Afirmação semelhante foi feita por Grünewald para os Atikum: “Embo-
ra efeitos visionários e outros de caráter alucinatório sejam relatados
com o uso dessas juremas, em geral, as alterações de percepção são
apreendidas enquanto fenômenos espirituais ou mediúnicos mais am-
plos – embora seja recorrente o alerta de que a jurema pode embebe-
dar” (GRÜNEWALD, 2018, p. 116). Também, entre os Xukuru, o risco está
sempre presente: mulheres menstruadas, por exemplo, cujos os corpos
estão abertos, não devem ingerir o vinho da jurema. Volto a esse ponto
adiante.

6 Cf. COELHO DE SOUZA, 2018, p. 46.

7 Tradução da autora. Ver também Coelho de Souza (2017); Haraway


(1991); Strathern (2004).

8 Diferentemente do que ocorre entre outros grupos, os Xukuru não dão


nomes distintos para essas duas possibilidades, ou mesmo para os to-
rés realizados publicamente e para os que são restritos para os de fora.
Em todos esses casos, as práticas dos médiuns são chamadas de tra-
balho. Isso não quer dizer, evidentemente, ausência de diferenças para
cada um deles, seja no que diz respeito à intenção do trabalho, seja nas
forças que são mobilizadas. Em um artigo que se encontra em prepara-
ção, abordo especificamente esse ponto.

323
NA SOMBRA DA JUREMA
Clarissa Martins Lima

9 Ver também Ubinger (2012, p. 83), para os Tupinambá da Serra do Padei-


ro, e Palitot e Souza Junior (2005, p. 201), para os Potiguara.

10 Para mencionar apenas alguns exemplos: Batista (2005), para os Truká;


Palitot e Souza Júnior (2005), para os Potiguara; Nascimento (2005),
para os Kiriri; Grünewald (2004), para os Atikum-Umã; e Salomão (2006),
para os Tuxá de Rodelas.

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1, p. 285-317, 2015.

VIEIRA, J. G. Amigos e competidores: política faccional e feitiça-


ria entre os Potiguara da Paraíba. 2010. 366 f. Tese (Doutorado em
Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

WAGNER, R. A pessoa fractal. Ponto Urbe, São Paulo, n. 8, p. 1-14, 2011.

328
INTERAÇÃO HUMANOS E NÃO
HUMANOS EM CONTEXTO DE
TENSÃO COSMOLÓGICA
Maria Rosário de Carvalho*

INTRODUÇÃO
Preliminarmente, informo ao leitor que lanço mão da
noção de cosmologia para buscar entender as relações
dos índios Kiriri com seres em geral designados invisíveis
ou encantados, que preenchem parte significativa do seu
pensamento e de sua ação prática1. Vale notar que a no-
ção de cosmologia mais recentemente tem sido pensada,
em larga medida, como uma cosmopolítica, i.e., o campo
das relações entre agentes humanos e não humanos.

Assim entendida, a cosmopolítica trata da interseção


de dois tópicos, i.e., a etnografia multiespécies e um
novo materialismo (KIRKSEY; HELMREICH, 2010) que
reavaliam a agência como um atributo distribuído entre
conjuntos heterogêneos de humanos e não humanos; e,
por outro lado, sob a denominação de virada ontológica
(HOLBRAAD, PEDERSEN; VIVEIROS DE CASTRO, 2014),

* Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), profes-


sora titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), bolsista de produtividade de
pesquisa 1 do CNPq e coordenadora do Programa de Pesquisas sobre Povos Indí-
genas do Nordeste Brasileiro (PINEB).
E-mail: mrgdecarvalho12@gmail.com.
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

reavalia a alteridade radical como uma relação de múltiplas onto-


logias ou mundos ao invés de múltiplas culturas. Cada um desses
tópicos coincide com uma política e um cosmo que são expandidos
pela cosmopolítica (BLASER, 2018, p. 18). Se no primeiro caso ten-
de a prevalecer maior relação com as ciências naturais, na virada
ontológica o peso parece incidir sobre os humanos, em detrimento
dos não humanos.

O CASO SOB EXAME


O que aqui buscarei reexaminar é o “campo cosmopolítico Kiriri” nas
décadas de 1970-1990, apoiada, notadamente, nas dissertações de
mestrado de Sheila Brasileiro (1996) e Marco Tromboni Nascimento
(1994), em um pequeno conjunto de registros etnográficos por mim
produzidos em interlocução com um índio tuxá, e de observações
de campo de dois bolsistas do Programa de Pesquisas sobre Povos
Indígenas do Nordeste Brasileiro (PINEB), Fernanda Almeida e Jardel
Rodrigues, com os quais compartilhei os meus registros. Por que o
interesse em reexaminar esse campo cosmopolítico após cerca de
50 anos? Trata-se menos de proceder a novas interpretações e mais
de tentar apreender humanos e não humanos em interação em um
evento que produziu grande impacto entre os Kiriri, i.e., a escolha de
um pajé geral a quem se atribuiria o papel de unificar as várias expres-
sões cosmológicas locais em torno do ritual do Toré. Trata-se, pois,
na medida do possível, de tentar tirar maior proveito da etnografia
multiespécies de acordo com as posições ocupadas pelos agentes
no chamado campo cosmopolítico e à luz das suas conexões.

Aparentemente, é mais usual o questionamento de registros etno-


gráficos entre antropólogos direcionados para um mesmo contex-
to empírico ou para contextos situados em uma mesma província
etnográfica do que um antropólogo proceder à revisão dos seus
próprios registros. Parece prevalecer um certo sentimento de oni-
potência do criador em relação ao tema investigado, que o leva a

330
INTERAÇÃO HUMANOS E NÃO HUMANOS EM CONTEXTO
DE TENSÃO COSMOLÓGICA | Maria Rosário de Carvalho

chancelar o que viu, ouviu e confiou ao caderno de campo. Essa


atitude discrepa, fortemente, das teorizações desenvolvidas sobre
a prática etnográfica, largamente considerada inexata, incompleta,
convencional e efêmera.

Vincent Crapanzano (2005, p. 371) chamou atenção para um as-


pecto que ele afirmou exigir reconhecimento crítico, ou seja, uma
dimensão iconoclasta importante para a etnografia seria reduzida
pela etnologia através da descrição tornada convencional, da in-
terpretação autorizada. Anteriormente, ele já havia observado que
a etnografia não é senão uma tradução aos significados de outras
línguas, culturas e sociedades, mas que o etnógrafo, ao contrário
do que é a tarefa do tradutor, não se limita a traduzir textos, deve
produzi-los. “Textos metafóricos para a aprendizagem de culturas
e de sociedades desconhecidas, das quais, porém, não é autor... É
um simples expositor a serviço de outros leitores. Nenhum dos seus
textos há de sobreviver-lhe” (CRAPANZANO, 1991, p. 91, grifo nosso).

Em quais situações mais frequentes ocorre a reanálise etnográfica?


Para Mariza Peirano, a reanálise costuma ser iniciativa de um ou-
tro antropólogo que identifica “um resíduo inexplicado nos dados,
que permite vislumbrar uma nova configuração interpretativa”, ou
quando ele aproxima dados alheios de questões novas. Em qual-
quer dos casos está em jogo, para ela, a incompletude ou abun-
dância etnográfica, “que incomodam menos que a análise fechada”
(PEIRANO, 1995, p. 51-52).

Não deixa de ser curioso constatar que o etnógrafo seja tão pou-
co motivado ao reexame dos seus próprios dados, embora pareça
consensual que a reflexividade de nossas pesquisas não começa, e
não se encerra, com a produção da etnografia (MARQUES; VILLELA,
2005, p. 39). Nesse sentido, eu estou confirmando a regra, ao me
propor a retomar dados e análises desenvolvidos por outrem em
duas excelentes dissertações de mestrado (NASCIMENTO, 1994;
BRASILEIRO, 1996). O fato de tê-las orientado pode estar funcio-

331
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

nando como um fator mobilizador para o seu reexame, por não


suscitar, estou segura, constrangimento entre as partes. Afinal,
não se trata de corrigir fatos ou interpretações, mas tão somente
de expandir percepções a partir de uma outra posição, i.e., de ob-
servadora externa voltada para o mesmo contexto etnográfico.

2.1 Os primeiros registros

Dois anos após a indicação do mais notório, e ainda em atividade,


cacique Kiriri, ele teria organizado uma caravana com cerca de cem
índios para uma visita à aldeia dos índios Tuxá, em Rodelas/BA. A
justificativa para o deslocamento era a participação em um jogo de
futebol entre os dois povos, subjacente à qual, contudo, haveria a
intenção de assistir ao ritual Toré dos Tuxá. Seria a partir dessa im-
portante visita que o então jovem cacique, à altura com cerca de 30
anos, predisporia o seu povo a adotar esse ritual, para o que conta-
ria com o decisivo apoio de pajés tuxás que permaneceram entre os
Kiriri durante o tempo considerado necessário ao seu aprendizado/
reaprendizado2 (BRASILEIRO, 1996, p. 102). O jovem cacique, então
afiliado aos Bahá í – uma religião monoteísta, de origem persa, que
enfatiza a união espiritual de toda a humanidade –, o que lhe facul-
tara uma viagem à Bolívia e a participação em assembleias Bahá í,
estaria, como os demais líderes indígenas do contexto etnográfi-
co do nordeste brasileiro, muito preocupado em comprovar a sua
identidade indígena, para o que o toré se mostrava muito adequa-
do, uma vez que outros povos já o praticavam. Ele afirmaria, anos
depois, que o toré “é coisa só de índio e nós estamos provando para
os brancos que temos costumes diferentes, que, portanto, somos
índios” (BRASILEIRO, 1996, p. 102).

Vale notar que, antes da introdução do toré, havia um grande nú-


mero de expressões que atestavam a vitalidade e plasticidade
cosmológica local, muito em conformidade com a sua configuração
espacial em núcleos ou grupos locais, anteriormente denominados
quarteirões ou aldeias. Esses “trabalhos” organizavam-se de acor-

332
INTERAÇÃO HUMANOS E NÃO HUMANOS EM CONTEXTO
DE TENSÃO COSMOLÓGICA | Maria Rosário de Carvalho

do com a tradição rural sertaneja, ou seja, constituiriam práticas


de caráter doméstico de incorporação xamanística, eventualmente
combinadas a símbolos da tradição africana Os donos de traba-
lho atendiam mediante consultas individuais e a clientela incluía
a população regional (BRASILEIRO, 1996, p. 102). Eu suponho que
o movimento do cacique para interditar os trabalhos locais tenha
sido inspirado pela religião Bahá í, na contracorrente do comporta-
mento dos demais povos indígenas no NE. Um bom exemplo da sua
posição dissonante são os Tuxá, que ainda hoje transitam entre o
centro – bastante afastado do centro da aldeia e sob a condução
do pajé – e os quartinhos, espaços rituais fechados, situados nos
fundos das casas de algumas famílias mais envolvidas com a ci-
ência, e onde os Tuxá se reúnem para as obrigações. São espaços
de inquestionável potência cosmológica e ritual, de acesso vedado
a não indígenas, mas cujas características de quartinhos torna-os
muito mais pontuais e localizados (DURAZZO, 2019, p. 148-149).

Nos grupos locais Kiriri – Lagoa Grande, Sacão, Cacimba Seca, Baixa
da Cangalha, Baixa do Juá e Cantagalo, aos quais se incorporaram
outros mais próximos e demograficamente menos expressivos –, lo-
calizavam-se parentelas que usufruíam de certa relevância econô-
mica e política, em torno das quais se agregavam outras, de menor
expressão demográfica e social3. Os chefes dessas parentelas eram
comparados a “sitiantes fortes” (WOORTMANN, 1989, p. 196 apud
BRASILEIRO, 1996, p. 171), que emulavam, em suas relações com a
população indígena em geral, os brancos regionais que compunham
o sistema clientelístico regional. Base fundamental de apoio político
ao cacique, esses chefes de parentelas se tornariam conselheiros
e representantes dos núcleos com a sua ascensão, rompendo, as-
sim, a sua independência em relação à esfera comunitária indígena.
Ocorreu, pois, a partir da década de 1970 uma reconfiguração socio-
espacial, que se por um lado promoveu certa articulação entre os
grupos locais ou aldeias, assegurando mais eficiente comunicação
entre as partes, por outro desencadearia um processo de crescente
perda de autonomia doméstica que se mostraria, em determina-
dos momentos, incompatível com a organização social e política

333
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

tradicional. Nos termos entendidos, à época, por Marco Tromboni


Nascimento, a reorganização política Kiriri sob a égide do novo ca-
cique reverteu, parcialmente, o processo histórico que os isolava
uns dos outros e fazia das lideranças dos grupos locais elos de uma
rede de lealdades no âmbito da política regional. O intento, agora,
era o fortalecimento de uma cadeia interna ao povo Kiriri, mediante
a composição política entre os chefes das parentelas que, nos anos
1970, se evidenciavam (NASCIMENTO, 1994, p. 260).

2.2 O projeto de unificação cosmológica

Ao ser introduzido na Terra Indígena Kiriri, na primeira metade dos


anos 1970, o toré tinha a sua apresentação limitada, nas primeiras
demonstrações organizadas com o auxílio de “entendidos” ou es-
pecialistas tuxás, ao mais populoso grupo local, a Lagoa Grande,
hoje não mais habitado devido ao assoreamento da antiga lagoa.
Aparentemente não por coincidência, uma das duas “donas de tra-
balho” mais importantes – Dalta – ali também residia. Ao contrário
da outra curadora que com ela rivalizava em importância, Romana,
Dalta se deixara convencer pela eficácia do “novo” ritual, tendo aban-
donado o seu trabalho e, em troca, se tornado a dona do terreiro do
toré. Marco Tromboni não hesita em afirmar que a sua participação
nesse processo foi fundamental (NASCIMENTO, 1994, p. 261-262).

Mas era preciso não limitar o ritual à Lagoa Grande, mas expandi-lo
pela Terra Indígena (TI). O toré passou, então, a ser realizado sob
a forma de um rodízio semanal em cada um dos núcleos, em ter-
reiros localizados sempre nas proximidades da casa do respectivo
conselheiro, para onde também se deslocavam pessoas de outros
núcleos, compelidas a percorrer longas distâncias, a pé, todos os
sábados. Por razões não sabidas, mas que eu presumo decorren-
tes, notadamente, da maior ou menor distância a ser vencida até o
terreiro, acabaram por firmar-se os terreiros de três dos núcleos,
i.e., os da Lagoa Grande, Sacão e Cantagalo, aos quais se limitou o
rodízio semanal (NASCIMENTO, 1994, p. 262).

334
INTERAÇÃO HUMANOS E NÃO HUMANOS EM CONTEXTO
DE TENSÃO COSMOLÓGICA | Maria Rosário de Carvalho

Os recalcitrantes às determinações oriundas do cacique e dos con-


selheiros que se perfilavam, aparentemente sem hesitação, ao seu
lado, foram severamente discriminados e, na sequência, impedidos
de trabalhar. A ordem era que todos deveriam “aliar os seus guias
aos guias do Toré” (BRASILEIRO, 1996, p. 102), e os que resistissem
seriam compelidos a migrar.

Foram muitos os que migraram. Eu estimo, talvez exageradamente,


haver ainda hoje fora da TI, por força do coador – termo que desig-
na o instrumento utilizado para medir a adesão dos índios ao toré
e a eventuais outras orientações advindas do poder político central
–, população superior à dos permanecentes. Romana foi, talvez, a
mais ilustre kiriri que não passou pelo filtro ou crivo do coador, não
lhe restando alternativa senão se retirar da TI.

Eu a encontrei nos anos 1990, após ser constrangida a sair. A sua


filha estimou que ela deveria ter, então, 80 anos. Causou-me for-
te impressão a sua altivez e, simultaneamente, o seu desalento.
Discreta, ela associou o abandono do trabalho à morte do marido,
que funcionava como seu auxiliar, sob a forma de “cabeceira da
mesa”: “ela sentava dum lado e ele sentava do outro, aí quando os
mestres dela chegavam, que baixavam nela, que davam o louvado,
se apresentavam, diziam que era o Jaguarará. Com a morte dele
[marido] o trabalho ficou fraco”. Os dois sempre trabalharam juntos,
“só que ele não se manifestava como ela. Ela recebia os mestres, e
ele tava lá só pra doutrinar os guia dela”. O pai de Romana, de acor-
do com Julieta, sua filha, era um entendido, mas não manifestava4.
Com a crescente adesão ao toré, as várias outras expressões de
incorporação xamanística foram alijadas, de modo a atender à
exigência de unidade. A justificativa para tal alijamento – descrito
como “flagelo” pela filha de Romana – é que esses trabalhos não
seriam trabalhos de índio, uma vez que trabalho de índio tinha que
ser feito “com jurema, tinha que pegar maracá, tinha que fazer uma
tanga de caroá [...] esse trabalho de Xangô não se dá bem com o
toré” (BRASILEIRO, 1996, p. 103).

335
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Eu suponho que a defecção de Dalta teria colaborado para enfra-


quecer o campo desses trabalhos de incorporação xamanística, em
face do que Romana e os demais viram-se, abruptamente, atingi-
dos em sua força e cerceados por uma onda de crescente deprecia-
ção e pressão, o que teria minado a sua resistência. Comentava-se,
à época, que os caboclos dissidentes haviam sido “acorrentados”.

Romana era irmã de um influente líder e conselheiro do grupo local


Baixa da Cangalha. A discriminação imposta à irmã e o seu subse-
quente abandono forçado da TI devem tê-lo contrariado, mas não se
sabe se houve, da sua parte, expressão pública de descontentamento.
Provavelmente não, salvo por alguma restrição discreta, o que
significa que ele teria recalcado qualquer manifestação pessoal em
nome do suposto interesse geral, ou que tenha decidido aguardar
momento mais favorável para manifestar o seu desagrado. De todo
modo, parece haver consenso de que ele permaneceu leal à liderança
política do cacique até o fim da vida.

Por cerca de doze anos, essa estrutura política funcionou, em


que pesem as claras dissidências punidas com a retirada da TI, e
discretos sinais de insatisfação creditados ao rigor do projeto de
unificação, compelindo os índios ao uso dos trajes indígenas coti-
dianamente, quando o usual era só vesti-los em ocasiões festivas,
e suprimindo, crescentemente, a autodeterminação das unidades
domésticas. Os homens Kiriri, a exemplo dos outros povos esta-
belecidos na porção norte do estado da Bahia, são muito ciosos do
poder do pater familias sobre mulher e filhos, o que pode ser inter-
pretado como influência de uma sociedade regional que se repro-
duziu sob a égide da pecuária e do mandonismo da oligarquia, cujos
coronéis ditavam e faziam cumprir a lei. Complementarmente,
constituía uma novidade o projeto essencialista em curso, que não
parecia observar limites. A implantação de roças comunitárias nos
grupos locais e de uma roça geral pode ter sido interpretada como
medida excessiva, já que invadia o domínio doméstico, ao requerer
a cessão de mão de obra para as atividades de uma e de outras. Os
sinais de insatisfação, todavia, permaneciam discretos, mas já se
anunciava um novo tempo.

336
INTERAÇÃO HUMANOS E NÃO HUMANOS EM CONTEXTO
DE TENSÃO COSMOLÓGICA | Maria Rosário de Carvalho

Um forte fator dissuasório a reações em contrário pode ter sido o


conjunto de relevantes conquistas para os Kiriri, no período, tais
como a retomada de sucessivas parcelas de terras, em um movi-
mento extraordinário de força política, e a saída, da TI, de alguns
fazendeiros politicamente expressivos na região e tidos como seus
adversários, quando os índios, em geral acatadores da ordem, de-
monstraram ânimo para usar a força física e até para enfrentar
a polícia militar do estado. Tentaram realizar a autodemarcação
do território indígena, um claro atestado da inércia da Fundação
Nacional do Índio (FUNAI), no que foram, entretanto, impedidos por
posseiros armados, mas celebrariam, no início dos anos 1990, a
homologação do território sempre reivindicado, conquista também
tributada ao período de unificação, embora tenha sido completada
posteriormente à divisão interna em dois grupos (NASCIMENTO,
1994, p. 265). Dois anos antes da homologação, portanto em 1988,
as pressões internas – a concessão de dois dias de trabalho, se-
manalmente, para as roças comunitárias, o uso sistemático de
roupas indígenas, talvez interpretado como um estado de mobi-
lização permanente para o confronto, e a imagem de um cacique
que aparentava ter-se destacado, excessivamente, do tecido social
e encarnado um poder de mando apenas compartilhado com o seu
séquito de conselheiros – levaram à eclosão de uma forte cisão sob
a forma de uma metade, política e territorial, que se contrapunha
ao cacique. Para essa metade, que até a ascensão do cacique se
reportava, difusamente, ao seu grupo local, a emergência de um
poder supralocal fortemente centralizado ter-se-ia afigurado into-
lerável. O cacique dissidente assim sintetizava o sentimento do seu
grupo: “[ele] castigava muito a gente. Sempre colocava a gente prá
viver debaixo dos pés dele” (BRASILEIRO, 1996, p. 125).

A divisão interna não implicou mudança de orientação por parte do


cacique, no sentido de reduzir os constrangimentos aos liderados
e, assim, evitar novas dissensões. Ele parecia convencido de perso-
nificar uma missão – restaurar as crenças, mitos e ritos do seu po-
vo (BRASILEIRO, 1996, p. 131) –, cuja concretização julgava requerer
unidade étnica e política, sobrepondo-se à tradicional organização

337
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

social e política assentada nos grupos locais. Em 1993, em meio


a novas defecções, ele declararia à Sheila Brasileiro: “eu trabalho
dentro do meu sistema, quem não quiser seguir pode sair” (1996,
p. 229). A declaração contrastava com a sua figura despojada, que
não exibia quaisquer signos exteriores de distinção. Mas o cargo
parecia tê-lo amplificado, mediante o empréstimo de atributos que
sugeriam ao observador estar desencaixados/deslocados. Como
ele e os conselheiros interpretavam os seus papéis no âmbito do
grupo étnico? Este parecia se apresentar como um símile da tota-
lidade mecânica durkheimiana que se deixava reger pelo que ema-
nava do comando centralizado. Cacique e conselheiros não faziam
jus a prerrogativas, tais como taxações ou oferta de bens materiais,
mas poderiam usar as suas posições sociopolíticas por ocasião da
distribuição de áreas retomadas, por exemplo, favorecendo paren-
tes e pessoas a eles afiliados, a malha ou cadeia foucaultiana – po-
der como uma relação de força em ação e não mera manutenção
e reprodução das relações econômicas (FOUCAULT, 1986) –, o que
resultava em certo prestígio e mais força política.

A obra de unificação deveria ainda completar-se no âmbito cosmo-


lógico. O não mais tão jovem cacique, muito seguramente, não previu
contrarreações, antes supôs a anuência dos conselheiros que, na prá-
tica, haviam se tornado seus conselheiros, abdicando da representa-
ção dos grupos locais. Essa suposição apoia-se no testemunho de um
interlocutor que o teria ouvido afirmar: “– nós tamo tudo unido nos
trabalho da comunidade, menos nesse trabalho do Toré [...] quem não
aceitar [o pajé único] e quiser balançar seu maracá sozinho, que vá ba-
lançar fora da área” (NASCIMENTO, 1994, p. 267).

Se no plano dos humanos a ideia não suscitaria resistências, por


parte dos não humanos parecia também improvável qualquer in-
surgência. Escolhido pelos encantados, que teriam feito o pronun-
ciamento da sua indicação, o cacique sugeria estar convencido da
sua concordância não só à escolha de um pajé geral, mas ao indica-
do da sua preferência.

338
INTERAÇÃO HUMANOS E NÃO HUMANOS EM CONTEXTO
DE TENSÃO COSMOLÓGICA | Maria Rosário de Carvalho

Desta vez, contudo, cacique e conselheiros teriam calculado mal as


consequências dos seus gestos. Havia, na TI, três pajés, relaciona-
dos aos grupos locais Sacão, Lagoa Grande e Cantagalo. A escolha,
segundo a posição do cacique – ele mesmo um cacique geral –, fi-
caria a cargo dos encantados. Dois dos pajés eram aparentemente
não tão expressivos em termos pessoais e políticos: não tinham
carisma, tampouco parentelas fortes. Mas tomei conhecimento,
recentemente, como já mencionei, de que o pajé Maurício detinha
um atributo que o tornava “o mais sabido” para manter os bichos
aprisionados, provavelmente os já referidos bichos antropófagos.
O terceiro, vivaz e dotado de certa eloquência, tinha como sogro
e tio paterno o conselheiro do Cantagalo, e em meados dos anos
1980 já dominaria a ciência e usufruiria de prestígio como curador.
Assim, ele já “balançava seu maracá”, ainda que com “umas pou-
quinha trabalhadora”, isto é, mestras, entre as quais sua própria
esposa (NASCIMENTO, 1994, p. 268). E, adicionalmente, teria bom
trânsito junto à Dalta, com quem reconhecia ter aprendido “muita
coisa”, mas de quem parecia fazer questão de sugerir independên-
cia. Dessa suposta independência, decorreriam problemas.

Por que decidira o cacique propor a escolha de um pajé único ou geral,


se ele já detinha significativa porção de hegemonia? Para Nascimento
(1994, p. 268), sua atitude teria relação com a tentativa de evitar o sur-
gimento de um terreiro de toré independente. Permito-me completar
o argumento de Nascimento. Especialmente perspicaz e arguto, não
teriam escapado ao cacique os movimentos do jovem terceiro candi-
dato a pajé, bem como a sua pretensão de independência. Os indícios
devem tê-lo levado a pressentir que ele “balançaria o seu maracá” à
sua revelia, se não agisse, e com certa intrepidez. E ele já demonstrara
que sabia ser intrépido, se bem que o lance que estava por desenca-
dear fosse suficientemente alto. Mas o cacique se acostumara a jogar,
não sem certa dissimulação, e seguiu em frente.

Como já salientei, a decisão quanto à escolha do pajé geral, conforme


determinação do próprio cacique, procederia dos encantados. Devo,
embora sinteticamente, acrescentar mais algumas informações so-
bre os encantados, à guisa de melhor apresentá-los ao leitor.

339
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Indaguei, em uma conversa, que detalharei mais adiante, travada


com o pajé Armando Apako Tuxá, com quem tenho uma relação de
certa proximidade em decorrência de um já longo conhecimento, o
que pode me permitir formular indagações no limite da impertinên-
cia, se os encantados têm aparência humana. Sem vacilar, ele afir-
mou que eles têm aparência de gente. Mas se apressou a enfatizar
que nada mais poderia revelar, por se tratar de tema relacionado à
ciência, que é oculta. Neto do grande líder tuxá João Gomes, por ele
designado pai velho, Armando Apako afirmou ainda ter suas revela-
ções na obrigação, após beber “a minha jurema”. Aí, então, tem a re-
velação: “ele [o pai velho] desce a mim, ele explica o que devo fazer”.

Para os Kiriri, os encantos ou encantados são mestres encantados.


As mulheres que os manifestam – denominadas mestras – compõem
um conjunto, aparentemente restrito, de seres que “já nasceram
com a ciência” (NASCIMENTO, 1994, p. 25). Nascidas com a ciência,
estariam predestinadas a praticá-la, nutrindo-se da sabedoria dos
encantados e, reciprocamente, sendo instrumentos da sua manifes-
tação, da sua possessão. Muitas dessas mestras têm vínculos – por
consanguinidade ou afinidade – com as lideranças masculinas, o que
as coloca em situação fronteiriça com o poder político.

Nascimento afirma – e explicita que o faz com segurança – que os


conselheiros das várias aldeias controlavam, efetivamente, o toré
na TI, repartindo entre si o controle do mesmo, e fazendo do ritu-
al uma instância, conquanto cosmológica, muito mais poderosa e
mobilizadora de sua própria ascendência política sobre a popula-
ção Kiriri em geral. Todavia, ele alerta que não se deve menospre-
zar, nesse controle, o imponderável representado pelos próprios
encantados que se manifestam através das mestras. Dito bem
sinteticamente, ele está advertindo que não se deve reduzir o toré
a um epifenômeno do político (NASCIMENTO, 1994, p. 264).

Nascimento diz mais. Em momentos cruciais, como quando há di-


vergência entre os conselheiros, os encantados tornam-se atores

340
INTERAÇÃO HUMANOS E NÃO HUMANOS EM CONTEXTO
DE TENSÃO COSMOLÓGICA | Maria Rosário de Carvalho

políticos posicionados acima dos primeiros, e nenhuma situação


em campo lhe permitiu duvidar da crença das lideranças nessas
entidades ou em sua (dos conselheiros) capacidade de constran-
ger a sua própria ação. O máximo que eles podem fazer é ques-
tionar a interpretação das falas dos encantados, espaço passível
de ser identificado como podendo ensejar certa manipulação
– ele usa “barganha” – entre a esfera do profano e a do sagrado
(NASCIMENTO, 1994, p. 264-265).

O cacique, agindo como agiria qualquer nativo em situação, diga-


mos, normal, não considerou a distinção dos papéis de conselhei-
ros e mestras/encantados, e ao não o fazer, confiou que a escolha
do pajé geral lhe seria favorável, como já havia sido sua própria
escolha como cacique. Não admitiu qualquer imprevisibilidade, in-
correndo em uma atitude temerária e, de certo modo, pretensiosa.
Os encantados, por sua vez, postergaram a decisão, permanecendo
inescrutáveis ao cabo de alguns torés, embora tenham sido adre-
demente convocados para esse fim. Segundo o terceiro candidato a
pajé, “vieram 15 encantados nas meninas jovens e elas entraram na
casa de Dalta [a dona do terreiro]”. Ele também teria confidenciado
que Dalta o chamara para conversar, quando lhe teria dito que de-
veria ser ele o pajé geral e que unificaria o povo.

Finalmente, após sabatinar, publicamente, os três candidatos sobre


os seus conhecimentos, os encantados aprovaram o terceiro candi-
dato, do Cantagalo, em torno do qual um grupo de parentelas, cuja
expressão não é possível dimensionar, estaria propensa a se opor ao
cacique, de acordo com os desdobramentos5. Este, por seu lado, teria
anunciado acolher a decisão, o que, na sequência, se revelaria um ardil.

O pajé recém indicado aproveitou bem a decisão favorável para se


jactar, com entusiasmo, e constranger os que não haviam aprovado
a sua escolha. Ele se considerava, de fato e de direito, o pajé geral, e
não perdia ocasião para lembrar que resistira em aceitar a indicação.

341
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

[...] todas as coisas eu tinha. Fez uma pergunta [o encanto],


eu respondi. Nós não pode nem pedir mais, ele tem tudo
[disseram os encantos]. O trabalhador é ele, os outros não
são trabalhadores. Os encantos pedem as provas do tra-
balho que os outros pajés fazem com a luz. Não tinham as
provas. [...] Eu tinha as provas. Três coisas que deixaram na
história (BRASILEIRO, 1996, p. 134-135).

O cacique, através de sucessivos atos de relutância às recomen-


dações do pajé indicado, desconsiderou, na prática, a decisão dos
encantados, o que provocou nova divisão, mais uma vez com re-
percussões no contexto cosmológico. A gravidade da nova divisão
pode ser medida pela intervenção da Polícia Federal.

[...] quando e em que circunstâncias o processo, deflagrado


pelo cacique [...], teria escapado ao seu habitualmente rigo-
roso controle? Dever-se-ia então, à luz dos fatos narrados
acima, considerar seriamente a hipótese da existência de
uma certa imponderabilidade do campo religioso, quando em
ação, frente ao político? Mas, e essa é já uma outra questão,
ao conferir integral crédito ao relato do pajé [...] – que apre-
senta pouquíssimas variações, frente a outros recolhidos
entre diversos adeptos do seu segmento faccional –, utilizan-
do-o como peça-chave para a compreensão do processo, não
estarei incorrendo no risco de ultrapassar os limites explica-
tivos dos cânones científicos, conferindo ao religioso uma au-
tonomia que aparentemente escapa ao próprio controle dos
agentes sociais em ação? Estas questões, indubitavelmente,
merecem certa reflexão. (BRASILEIRO, 1996, p. 138)

O questionamento formulado por Sheila Brasileiro (1996, p. 138) re-


vela, muito genuinamente, um certo aturdimento diante da imponde-
rabilidade do campo cosmológico e da chave interpretativa que ela
concentrou, quase exclusivamente, no pajé indicado. Intuitivamente,
ela manifestava um certo incômodo, punha em dúvida o desfecho
do caso, como se admitisse que algo restava incompleto, talvez “um
resíduo inexplicado nos dados, que permitia “vislumbrar uma nova
configuração interpretativa” (PEIRANO, 1995, p. 51-52).

342
INTERAÇÃO HUMANOS E NÃO HUMANOS EM CONTEXTO
DE TENSÃO COSMOLÓGICA | Maria Rosário de Carvalho

2.3 Os novos registros produzidos em 2007

Na conversa registrada em áudio, anteriormente referida, com


Armando Apako, em Salvador, em 2007, eu assinalava a relevân-
cia cosmopolítica dos Tuxá para outros povos indígenas na Bahia,
“entre os quais os Kiriri”, quando ele observou: “Olha, Kiriri, quando
começaram a andar pra lá, era Seu Gino, que era pai [do pajé indi-
cado]. Seu Flor ... [tio do pajé indicado]”. Eu estranhei a menção ao
sobrinho do Seu Flor, que eu não identifiquei, prontamente, e ele
explicou tratar-se do “pajé de Mirandela”.

Ele prosseguiu: “Lá eles iam, passava até a semana lá em casa. Às


vezes... quinze pessoas, até mais. Aí nos dancemos o Toré. Aí uns
dias eles foram e falaram pra gente...”

Meio abruptamente, provavelmente estranhando não ter havido


nenhuma menção ao cacique, eu o interrompi, para indagar: “o ca-
cique?” Ao que ele, sem se perturbar com a minha ansiedade, retru-
cou: “Não, o pai do [pajé indicado]”, mas completou que o cacique
“também estava”. Higino, o pai do pajé indicado, queria saber se os
Tuxá poderiam ensinar-lhes, porque, segundo o pajé Apako,

eles [os Kiriri] não sabiam de nada nessa época. Não sa-
biam dançar Toré, não sabiam de nada [...] Aí nesse dia
mesmo fizemos o trabalho. Demos todas as instruções a
eles. Aí eles passaram uma semana lá dançando o toré6.
Aí quando chegaram na aldeia deles, eles continuaram
fazendo aquilo que nós mandemo e daí pra cá, pronto, eles
ficaram feito. Na sequência, cerca de 04 tuxás se desloca-
ram para Mirandela, para treinar com eles. Teve gente que
casou na família deles.

Nessa conversa, Apako ainda observou, com muita ênfase, que os


Tuxá não trabalhavam com espírito.

Nós trabalha com encantado vivo. Vivo como eu estou. Eu


vi muitos. Eu vi índio e meu avô conversando com eles [en-
cantados] de dia. Passando o que queria passar pra eles, e

343
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

eles procurando. Eu me lembro de um dia mesmo, ele [avô


João Gomes] sentado assim num banco, fumando e conver-
sando com eles, né?

Esses registros foram transcritos e permaneceram intocáveis até


setembro de 2019. Eu resolvera verificar um conjunto de transcri-
ções resultantes de vários trabalhos de campo efetuados, e que
permaneciam à espera de atenção. A primeira pasta de uma grande
pilha foi, justamente, a referente a Apako. Na sequência, em uma
conversa com dois bolsistas do PINEB, comentei que me chamara
atenção a posição marginal do cacique kiriri no relato do pajé tuxá,
em contraste com as posições protagonistas de Higino, pai do pajé;
Florentino, tio paterno do pajé; e o próprio pajé kiriri. Como Apako é
um homem sumamente experiente e observador, com larga expe-
riência xamanística, e a quem, quase seguramente, não passariam
desapercebidas as posições hierárquicas de um pequeno conjunto
de atores sociais – desde criança ele convivia na “ciência com os
mais velhos”, a casa onde as obrigações eram feitas era vizinha da
casa do seu avô, com quem ele residia, “até que chegou o ponto de
eu me tornar pajé” –, eu confiei aos bolsistas que as suas observa-
ções seriam plenamente confiáveis.

Prontamente, Fernanda Almeida e Jardel Rodrigues, os dois bolsis-


tas que, no período, visitavam, com certa frequência, a TI Kiriri, en-
volvidos que estavam com um projeto de revitalização linguística
coordenado por Marco Tromboni Nascimento, comentaram que, em
conversa recente com o pajé kiriri, este lhes relatara que aprendera
os ensinamentos com seu pai, que sabia fazer remédios, com Dalta, a
quem auxiliava no trabalho, anotando os remédios prescritos e ben-
zimentos, e através de um senhor mais velho, cujo nome não reve-
lou, que lhe transmitira algumas orações7. E, ao se referir à escolha
do pajé geral, afirmou que ao chegar à Lagoa Grande, no dia em que
os encantados o indicaram, antes que os quinze encantados “vies-
sem nas meninas jovens”, Dalta o havia chamado para conversar e
declarara que ele deveria ser o pajé, e que unificaria o povo.

344
INTERAÇÃO HUMANOS E NÃO HUMANOS EM CONTEXTO
DE TENSÃO COSMOLÓGICA | Maria Rosário de Carvalho

Percebi, quase imediatamente, que retomar esse evento crítico po-


deria ser antropologicamente interessante. Assim surgiu a formu-
lação de uma proposta de comunicação para a VI Reunião Equatorial
de Antropologia (REA), que se transformou em um primeiro artigo
e, na sequência, neste segundo artigo aqui publicado.

Alertava-me o fato de que todos os atores envolvidos tinham po-


sições e interesses intersectados por relações de parentesco e
distintas posições na estrutura social, que, todavia, não costumam
ser desveladas, mas dissimuladas. Todas as evidências levavam
a supor que nunca houve entre os Kiriri, como, de resto, nas ter-
ras baixas da América do Sul, unificação cosmológica e política.
A ação política kiriri, tal como a ação ameríndia em geral, contém
mecanismos que impedem que pessoas e grupos, líderes e unida-
des políticas se estabilizem, se enrijeçam, congelem assimetrias
(SZTUTMAN, 2015). Parecia tratar-se, aquela visita aos Tuxá, de um
jogo com players que tinham o que Goffman chama de “sense of
one’s place” (GOFFMAN, 1975 apud BOURDIEU, 1989, p. 155).

O cacique parecia pressupor ser o principal jogador, mas os novos


fatos autorizam supor que não o fosse, embora figurasse como
uma peça importante em função da qual todos jogavam – os agen-
tes que ocupam posições semelhantes ou vizinhas estão dispostos
em condições semelhantes e submetidos a condicionamentos se-
melhantes, e “têm toda a possibilidade de possuírem disposições
e interesses semelhantes, logo, de produzirem práticas também
semelhantes. As disposições adquiridas na posição ocupada impli-
cam um ajustamento a essa posição. [...]” (BOURDIEU, 1989, p. 155).

Higino, pai do pajé indicado, estaria, por sua vez, aplicado em fazer do
seu filho um especialista cosmológico, para o que contava com o apoio
do irmão Florentino, influente líder do grupo local Cantagalo, cujos pa-
rentes, ainda hoje, detêm certa relevante posição econômico-social.
Vale notar que Higino era casado com Petronília, irmã do sogro do
cacique. Na Baixa da Cangalha, onde o toré jamais foi acolhido plena-

345
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

mente, o igualmente influente conselheiro Daniel, o irmão de Romana


ao qual já referi, há muito parecia se contrapor, muito veladamente,
à liderança do cacique e estaria apto a opor certo limite, juntamente
com Florentino e o pajé, aos excessos do cacique geral.

Ao ler o relato preciso e muito articulado do pajé tuxá, eu reconstituí


a cena daquela visita dos Kiriri, na década de 1970. Ali estavam líde-
res de uma expedição que estabelecia trâmites para o aprendizado
do toré, ou seja, Higino, pai do pajé indicado, Florentino/Seu Flôr, tio
do pajé, “tudo caboclo já velho quando eles começaram a andar lá
na aldeia com mais nós”. Trata-se do relato de um pajé referindo-se
a uma visita de velhos caboclos que pareciam diligenciar os seus
interesses em torno de um terceiro visitante, o então jovem pre-
tendente a pajé, que eles (o pai, o tio e o amigo dos dois) espera-
vam se tornasse o pajé dos Kiriri. Ao lado, estava o também jovem
cacique, eleito sob o seu patrocínio e, muito provavelmente, sob a
expectativa de com ele compartilharem o poder. Essa expectativa
se concretizaria, afinal, por decisão dos encantados que, mediante
as mestras, apontaram o terceiro candidato como pajé geral, mas
que seria frustrada pelo cacique, que lançou mão de vários estra-
tagemas para desvirtuar a decisão, fazendo irromper novos desen-
tendimentos que acirrariam a divisão ocorrida em 1988.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível que o projeto de unificação do cacique persistisse por mais
certo tempo, não fosse pela intransigência por ele demonstrada.
Afinal, a ele se creditavam significativas vitórias, entre as quais a
reconquista da TI e um maior controle sobre a síndrome de depen-
dência do álcool. Os índios suportaram os rigores do seu excessivo
disciplinamento – vigilância exercida entre os grupos locais para
reprimir ingestão de bebida alcóolica e o que se considerasse va-
diagem; para assegurar que se praticasse o toré em três grupos
locais, ao longo da semana; e para que todos, homens, mulheres

346
INTERAÇÃO HUMANOS E NÃO HUMANOS EM CONTEXTO
DE TENSÃO COSMOLÓGICA | Maria Rosário de Carvalho

e crianças, permanecessem em trajes indígenas, cotidianamente,


bem como a supressão do poder do pater familias e outras restri-
ções à sua liberdade individual –, mas rejeitaram a sua renúncia
à aliança política provavelmente firmada, formal ou tacitamente,
por ocasião da sua escolha como cacique, e renovada na visita aos
Tuxá. Os conselheiros mais velhos e detentores de certo poder lo-
cal – Florentino e Daniel – deram-lhe o crédito necessário para a
sua eleição, mas, provavelmente, se sentiram desautorizados por
ocasião da escolha do pajé geral. Nem sequer se pode supor que o
novo indicado fosse refratário ao toré. Das suas ações e declara-
ções, infere-se justamente o contrário.

No primeiro dia que eu vi a dança, fiquei assim abisma-


do, eu um jovem. Quando foi [em determinado momento],
dançaram aí uns Toré, na Lagoa. Fiquei de fora, olhando. Aí,
aquela vontade... e o cacique explicando, os conselheiros
explicando, e eu tempos atrás e via assim, escutava meus
avôs (NASCIMENTO, 1994, p. 280).

É também surpreendente a falta de observância aos desígnios dos


encantados, sobrepostos por suas determinações – “quem não
aceitar [o pajé único] e quiser balançar seu maracá sozinho, que vá
balançar fora da área” (NASCIMENTO, 1994, p. 267).

Dalta, a seu turno, não obstante transformada pelo cacique em


“dona do terreiro”, mantinha boas relações com o pajé indicado e
aparente interesse em preservá-las, discretamente, e deveria es-
tar convencida de que ele fosse o mais preparado entre os candi-
datos a pajé. Ademais, ela tinha um trunfo que poderia revelar-se
determinante: sua filha Edelzuíta, mestra do grupo local da Lagoa
Grande e considerada por Brasileiro “a mais prestigiosa entre os
Kiriri, tendo sido preparada desde a adolescência para suceder à
mãe Dalta” (BRASILEIRO, 1996, p. 184). O fato de ela ser casada com
Ivan, filho do sogro do cacique e chefe da grande parentela que ain-
da hoje lhe dá sustentação, se mostraria um detalhe incidental ou
acessório, a demonstrar ser o parentesco kiriri muito fluido com-
parativamente aos compromissos cosmológicos, como o artigo de
Fernanda Lima Almeida, nesta coletânea, sugere muito fortemente.

347
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Há mais longo prazo, porém, suponho que a radicalidade do projeto


cosmológico unificador se defrontaria com inevitáveis resistências. A
maior evidência para tal suposição é a explosão de expressões cos-
mológicas e de novas divisões que tem ocorrido, sob a égide de dis-
tintas concepções mitológicas, de uma panóplia de novos encantados
e, sobretudo, de uma extraordinária disposição dos Kiriri para novas
experiências, como se estivessem recuperando o tempo perdido...

Tenho buscado acompanhar, à distância, apelando para os jovens


interlocutores aqui citados, essa efervescência representada por vá-
rios caciques, ou seja, 04 do grupo local Mirandela, 01 do grupo local
Cajazeiras, 01 do grupo local Araçás e 01 do Pau Ferro. Resta ainda re-
ferir ao sobrinho do pajé indicado que lidera a própria família também
estabelecida em Araçás, onde o tio é o pajé do grupo.

Um dos 04 caciques de Mirandela é evangélico, e não tem pajé9, assim


como um segundo, por razão que desconheço. Todos os demais têm
pajés e mestras. Os artigos de Vanessa Morais e Gabriel Cardoso, nes-
ta coletânea, atestarão, com riqueza de detalhes, o que acima afirmo

A persistência do cacique no cargo, embora com aparente menor nú-


mero de liderados, atesta uma longeva e significativa experiência,
hoje limitada a Mirandela. Tenho tentado refletir sobre o que o teria
mobilizado ao longo desses quase cinquenta anos e não encontro
uma pista convincente. Cheguei a referir, no artigo para os Anais da
VI REA, à sua voracidade de poder, mas admito ter incidido em uma
avaliação apressada. A experiência como cacique assegurou-lhe li-
derar um povo indígena que adquiriu muita visibilidade regional, da
qual ele soube bem extrair o justo proveito, frequentando espaços
de poder e mantendo interlocução com uma tecnocracia de impor-
tância mediana, com a qual sempre cultivou boas relações, assim
como com agências não governamentais. Inteligente e perspicaz,
mantinha abertos os canais de negociação enquanto, simultane-
amente, impulsionava os liderados ao confronto. A retaguarda,
e não o front, foi sempre o seu lugar preferencial, onde agia com

348
INTERAÇÃO HUMANOS E NÃO HUMANOS EM CONTEXTO
DE TENSÃO COSMOLÓGICA | Maria Rosário de Carvalho

astúcia, surpreendendo o oponente. Foi, à sua maneira, um grande


líder que, todavia, se impôs e sobrepôs excessivamente aos lidera-
dos, subtraindo-lhes, sucessivamente, mecanismos de expressão
subjetiva e objetiva, e desafiando até os encantados. Mas soube
conservar a lealdade da sua parentela, que nunca lhe faltou, e o
tem perenizado no cargo.

Não tenho, finalmente, elementos que permitam avaliar o impacto da


morte de Dalta sobre o seu projeto. De acordo com informações co-
lhidas em campo, sob a minha sugestão, por Fernanda Lima Almeida,
os seus xerimbabos teriam sido soltos – guardo dela a vívida imagem
de uma mulher miúda, longos cabelos trançados e, sobre o ombro, um
dos saguis –, e a sua corrente passada para José Perninha, cuja alcu-
nha alude a uma sequela causada por paralisia. Residente no grupo
local Marcação e afiliado ao grupo do cacique, ele atende consultas.

Notas
1 Os encantados recobririam três gêneros, i.e., os encantados propria-
mente ditos, “vivos”, de acordo com a designação local; os espíritos dos
mortos (parece haver pressuposição de que esses mortos teriam parti-
cipado da luta enquanto vivos (WEBER, 1991, p. 23-24); e as macumbas
ou encantados feitos (“coisas feitas”). Os primeiros são seres invisíveis
mas podem materializar-se, geralmente disfarçados em animais e aves
e, mais raramente, em seres inanimados que passam a ter mobilidade.
Agem como humanos – comem, bebem e fumam – e podem mobilizar os
poderes tanto para proteger quanto para castigar. Requerem a ação de
intermediários, que trabalham sob a sua orientação (BANDEIRA, 1972, p.
79-80). Haveria um subgênero – o dos bichos – que, muito significati-
vamente, Bandeira não incluiu na classificação devido “ao desencontro
dos informes” (1972, nota 6, p. 79). O pajé Maurício, que abandonou a TI
há cerca de 20 anos, por motivação pessoal, era considerado o mais “sa-
bido” no trato com esses bichos (inf. pessoal da bolsista Fernanda Lima
Almeida), que eu suponho sejam equivalentes aos bichos sobrenaturais
ou antropófagos – atacam as pessoas à noite e comem-nas –, de origem
não identificada e portadores de deformações físicas, entre outras carac-
terísticas (BANDEIRA, 1972, p. 88).

349
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

2 Suponho necessário observar que os Kiriri dispõem também de um siste-


ma de práticas e representações mediante o qual estabelecem conexão
com os humanos e os não humanos, a exemplo de augúrios advindos de
pássaros e outras espécies de aves dos quais “tira[m] incontinenti pres-
ságios do que lhes devia acontecer” (NANTES, 1979). Um importantís-
simo ritual denominado cururu, referido pelos mais velhos como a sua
base ritual teria desaparecido em decorrência da morte dos velhos pajés
na guerra de Canudos.

3 Cada grupo local/aldeia teria seus próprios encantados que permane-


ceriam confinados (inf. pessoal da bolsista IC Fernanda Lima Almeida).

4 Suponho que, entre os Kiriri, a manifestação seja uma prerrogativa das


mulheres.

5 Sobrinho materno do cacique e, durante certo período, previsto para


ser iniciado como pajé, acompanhou o partido do pajé indicado e seus
apoiadores.

6 Nessa época, os Tuxá já teriam rememorado o Toré aos Atikum da Serra


do Umã, no município de Carnaubeira da Penha, em Pernambuco.

7 Esse senhor mais velho deve ter sido o antigo capitão Josias, através de
quem o pajé indicado ouviu uma versão do mito Kariri (tronco Macro-Jê,
que também abarca a família Kipeá ou Kiriri) do gavião e da arara (REE-
SINK, 1999), duas entidades sobrenaturais por eles classificadas como
“encantados fortes”, i.e., entidades sobrenaturais consideradas benéfi-
cas, algumas das quais tiveram existência humana, após o que se teriam
encantado. A pretexto de justificar “a sua missão de se tornar um pajé”,
o pajé indicado transmitiu a versão a Marco T. Nascimento, que, diligen-
temente, a registrou (1994, p. 262-267), demonstrando assim o extraor-
dinário ouvinte e narrador que é o pajé, bem como o excelente trânsito
que ele lograva estabelecer com os Kiriri mantenedores da tradição. A
narrativa é uma prova inquestionável de que ele estava, genuinamente,
em missão para se tornar pajé.

A posição de um cacique evangélico suscita certas questões de pesquisa


interessantes. Se ele não dispõe de pajé, não disporia também de mes-
tras e encantados, o que parece querer dizer que o grupo por ele liderado
não mais compartilha do sistema de crenças local. Quais consequências
adviriam dessa nova posição para a cosmologia Kiriri e, sobretudo, para
a identidade étnica do cacique e dos seus seguidores, considerando-se
o que Maria de Lourdes Bandeira afirmou, ou seja, que as crenças “exer-

350
INTERAÇÃO HUMANOS E NÃO HUMANOS EM CONTEXTO
DE TENSÃO COSMOLÓGICA | Maria Rosário de Carvalho

cem influência preponderante nos diversos níveis de cultura, em forma


e conteúdo, dando-lhe organicidade...” (BANDEIRA, 1972, p. 75).

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352
OS CURUPIRAS NÃO FORAM
EMBORA? OS ENCANTADOS
NA RESISTÊNCIA INDÍGENA
NO BAIXO RIO TAPAJÓS
Florêncio Almeida Vaz Filho*

INTRODUÇÃO
Desde os anos 70, chegaram ao Oeste do Pará milhares
de colonos vindos de outras regiões do país, que ocupa-
ram as margens das rodovias Transamazônica (BR-230)
e Cuiabá-Santarém (BR-163). A agricultura e a pecuária
foram tomando o lugar da floresta. E mesmo na região
do Eixo Forte, entre a cidade de Santarém e a vila de Alter
do Chão, a agricultura passou por uma intensificação,
para atender à crescente demanda do mercado regional,
principalmente pela farinha de mandioca, cuja produção
também exigia o avanço das roças sobre a floresta.

O Governo Militar criou, em 1974, entre a BR-163 e o rio


Tapajós, a Floresta Nacional (FLONA) do Tapajós, com o ob-
jetivo de impulsionar e organizar a exploração madeireira
nos moldes do manejo florestal científico (IORIS, 2008). A

*. É indígena do povo Maytapu (Pará), graduado em Ciências Sociais pela Universida-


de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e
doutor em Ciências Sociais/Antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Professor no Programa de Antropologia e Arqueologia na Universidade Federal do
Oeste do Pará (PAAUFOPA). Estuda temas como povos indígenas e comunidades tra-
dicionais no baixo rio Tapajós, ações afirmativas, identidade indígena e pajelança.
E-mail: florencioalmeidavaz@gmail.com.
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Flona Tapajós enfrentou a resistência dos moradores das comunidades


ribeirinhas1, que se recusaram a desocupar a área, como ordenava a le-
gislação da época. Eles queriam que o governo desmembrasse a Flona
Tapajós e deixasse de fora a faixa de terra das suas comunidades, en-
quanto o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), depois
substituído pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais (IBAMA), envidava esforços para manter a integridade da área
(VAZ FILHO, 1997; 2010). Só em 2000, com a criação do Sistema Nacional
de Unidades de Conservação (SNUC), a legislação passou a permitir a
presença de “populações tradicionais” em Flonas. E assim, os ribeirinhos
e indígenas continuam ali até hoje, e a Flona Tapajós é uma das poucas
áreas de floresta que restam ao sul de Santarém. Ao seu lado, a paisagem
é dominada pela plantação de soja, que chegou no início do século XXI.

Ainda entre 1976 e 1978, Tatiana Lins e Silva (1980) fez pesquisa
na zona rural de Santarém, nas áreas cultivadas pelos caboclos e
cearenses2, aproveitando categorias autodescritivas que os dois
grupos de camponeses mais representativos na região usavam
para se distinguir uns dos outros. Os caboclos ocupavam as áreas
próximas aos rios, por oposição aos cearenses, que se instalavam
nas áreas mais elevadas do Planalto Santareno: “Para os migran-
tes cearenses, o critério fundamental na escolha dos terrenos é
a qualidade do solo, enquanto o caboclo exige a mata e os rios”
(SILVA, 1980, p. 1). Os moradores que resistiram na Flona Tapajós
estão entre os classificados pela autora como caboclos.

Estudando as representações desses moradores, inclusive sobre o


que chamou de “medicina popular”, Silva (1980) percebeu uma especi-
ficidade na cultura desse “grupo social”, ligada à relação de dependên-
cia que mantém com a mata, que o alimenta e o inspira na construção
do sentido do grupo. Por isso, admitiu que era difícil encaixá-lo na ca-
tegoria de campesinato com a qual trabalhava naquela época.

Para melhor compreender a especificidade do grupo, a autora pas-


sou em revisão o processo de colonização da Amazônia e concluiu

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OS CURUPIRAS NÃO FORAM EMBORA? OS ENCANTADOS NA RESISTÊNCIA INDÍGENA NO BAIXO
RIO TAPAJÓS | Florêncio Almeida Vaz Filho

que a relativa autonomia desse grupo se expressava não apenas


no grau da sua inserção no mercado regional (mais limitada), mas
também nas suas características culturais: “Os caboclos estão in-
seridos num sistema cultural que conserva muitos padrões herda-
dos dos grupos tribais nativos da região” (SILVA, 1980, p. 68). Mais
tarde, em 1998, os supostos caboclos de Takuara3, dentro da Flona
Tapajós, se assumiram como indígenas, porém já nos anos 1970,
para Silva, era visível a distinção entre eles e outros, como os cea-
renses. E tal distinção se fundava num “sistema cultural” herdado,
em parte, dos antigos índios da região.

A partir dos relatos dos seus informantes, Silva (1980) concluiu


que conforme avançam as estradas, o barulho dos carros e da vi-
da urbanizada, e as grandes plantações, os Curupiras vão embora
da área. A autora expressou muito bem no título da sua obra – “Os
curupiras foram embora” – a ideia da incompatibilidade dos encan-
tados4 com as áreas de floresta devastadas. Acreditava-se, na re-
gião, que os indígenas haviam sido extintos em meados do século
XIX (VAZ FILHO, 2010). Nos anos 70, os Curupiras, entidades míticas
que compunham o “sistema cultural” herdado “dos grupos tribais
nativos da região” (SILVA, 1980, p. 68), teriam abandonado o entor-
no de Santarém. Parecia o fim do que restava dos indígenas. Mas a
história teve outro desfecho.

Em 1998, os ribeirinhos de Takuara (área da Flona Tapajós), dentro


de um processo de enfrentamento com o IBAMA e em defesa do
seu território e de seu modo de vida, passaram a se autoidentificar
como indígenas do povo Munduruku. Logo foram seguidos pelos vi-
zinhos de Bragança e Marituba5, todos reivindicando a demarcação
das suas Terras Indígenas (TI). Passaram a chamar de aldeias6 suas
antigas comunidades e iniciaram um processo de aprendizado da
língua munduruku7 e revalorização das suas crenças nos encanta-
dos e na ação dos seus pajés.

O reaparecimento político dos povos indígenas deu visibilidade também


a uma cosmologia que estava ali bem viva – mas de forma discreta –

355
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

nas mentes e nas práticas daqueles que até então haviam sido chama-
dos de caboclos. Chamo de pajelança a este “sistema cultural” distinto
já identificado por Silva (1980), dentro do qual tem destaque um encan-
tado chamado de Curupira. É o mesmo “sistema cosmológico” próprio,
onde seres humanos e não humanos possuem iguais faculdades, que
Wawzyniak (2008) constatou trinta aos depois de Silva (1980) entre os
moradores da Flona Tapajós, inclusive aqueles de Takuara, ao estudar
os ataques de encantados. O Curupira é, seguramente, o mais conhe-
cido deles. Defensor dos animais silvestres, ele é um dos seres míticos
que passaram a estar mais presentes nos discursos dos indígenas, em
seus rituais, e até em um programa de rádio8. Então, os Curupiras não
haviam ido embora?

A TEIMOSIA DO CURUPIRA
Depois da emergência política dos Munduruku de Takuara, vieram
muitas outras aldeias e povos, formando o que chamam de mo-
vimento indígena, articulados hoje no Conselho Indígena dos rios
Tapajós e Arapiuns (CITA). São aproximadamente 70 aldeias per-
tencentes a 12 povos indígenas na região do baixo rio Tapajós9, que
compreende os municípios de Aveiro, Belterra e Santarém. O CITA,
junto com o Grupo Consciência Indígena (GCI), realiza regularmen-
te grandes encontros, reunindo até mais de 400 participantes. No
início desses eventos, e de outras atividades públicas, inclusive na
cidade de Santarém, os pajés e líderes indígenas costumam reali-
zar rituais, quando pedem licença aos espíritos de pajés falecidos
e aos encantados das águas e das matas (LIMA, 2019). E o Curupira
é citado com enorme familiaridade. Antes de 1998, eles tinham ver-
gonha de admitir publicamente a crença nesses espíritos. Porém,
atualmente, ostentam sua crença em Curupira, Cobra Grande, Boto
ou Mãe de igarapé, pois isso parece reforçar o seu projeto de afir-
mação política e cultural como indígenas.

Os indígenas hoje no baixo Tapajós expressam abertamente suas


crenças nos encantados, mas isso não significa que seja um objeto

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OS CURUPIRAS NÃO FORAM EMBORA? OS ENCANTADOS NA RESISTÊNCIA INDÍGENA NO BAIXO
RIO TAPAJÓS | Florêncio Almeida Vaz Filho

postiço. Se a forma dos rituais é uma invenção recente, ela envolve


também uma tradição preexistente (LIMA, 2019). Entre 1995 e 1997,
fiz pesquisa de campo em comunidades ribeirinhas na Flona Tapajós,
realizando incursões também em Takuara, onde, em 1993 e 1994, eu
havia feito entrevista com o conhecido pajé Laurelino Floriano Cruz
(VAZ FILHO, 2016), e pude constatar a força desse “sistema cultural”
ou “sistema cosmológico” próprio onde se destacava a crença em
seres ligados à natureza, que contribuía decisivamente para o uso
sustentável dos recursos e a preservação da floresta (VAZ FILHO,
1997). Porém, naqueles anos os moradores de Takuara e seus vizi-
nhos ainda não se autoidentificavam como indígenas.

Entre os encantados mais lembrados pelos moradores, estava o


famoso e temido Curupira10, o protetor dos animais, que ataca caça-
dores que matam demasiadamente uma determinada espécie. Eles
garantiram que a Curupira não gosta de muito movimento, barulho
de carros e de luz elétrica, algo próprio dos vilarejos ou cidades. Suas
aparições nunca ocorrem na beira do rio, nas capoeiras e nos povo-
ados. Ela prefere a mata densa. O seu assobio característico é um
aviso de que o caçador não matará nada naquele lugar. Os que ten-
taram desafiá-la foram esbofeteados e lambados por algo invisível,
sem que pudessem se defender. Idosos contaram que ficaram per-
didos na mata, pela ação da Curupira11. Vários homens afirmaram já
ter escutado seu assovio ou sabiam de colegas que o escutaram ou,
pior ainda, sabiam histórias de outros que apanharam do Pretinho12.

Fugir das áreas devastadas e das vilas é uma característica que a


Curupira compartilha com o Jurupari13, porém este prefere as par-
tes ainda mais inacessíveis da selva. Como nas últimas décadas os
moradores estão se fixando mais nos povoados, na margem dos
rios, e quase não entram na mata densa (ou esta desapareceu),
agora já não se ouvem relatos de ataques do Jurupari. Em 2007, a
benzedora e parteira Dona Maria Santana me contou de um jeito
até melancólico, na aldeia de Nova Vista (rio Arapiuns), que havia
muitos anos um Jurupari vivia em uma serra por trás do povoado e
assustava os seus moradores, com seu grito. Mas fazia tempo que

357
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

ela não mais escutava aquele grito. Ela disse que, com a devasta-
ção da mata, ele foi embora (VAZ FILHO; CARVALHO, 2013).

Mesmo reconhecendo que, com abertura das estradas, da inten-


sificação da agricultura e da urbanização dos vilarejos, os encan-
tados se afastaram um pouco, os relatos dos moradores da Flona
Tapajós, nos anos 90, garantiam que eles não despareceram de
vez. Continuavam ali próximo nas matas e nos igarapés. O avanço
dos empreendimentos capitalistas que engoliram parte da floresta
não os expulsou totalmente. Mães de igarapés, Cobras Grandes e
as Curupiras estavam ainda bem presentes, e continuavam vigilan-
tes para punir os atentados contra a natureza. Ouvi vários relatos
sobre os seus ataques contra moradores, alguns desses relatos
foram feitos pelas próprias vítimas (VAZ FILHO, 1997).

Como vimos, a imagem apresentada da Curupira pelos moradores


do baixo Tapajós é bem diferente daquela visão muito difundida
nos livros de “lendas”: um menino com cabelos longos e averme-
lhados e com os pés para trás, montado em um porco do mato. Os
moradores da região acreditam, como já referido, que a Curupira se
parece com um menino negro, donde vem a denominação Pretinho,
tão comum quanto o termo Curupira, como vemos neste relato
(VAZ FILHO, 1998, p. 105):

Eu falei com eles. Eles responderam, mas não me olharam.


Eram dois pretinhos bem deste tamanho [apontando para
uma criança]. Eu fui com eles daqui do Norato até aquele
piquiazeiro virado. Eu fui conversando com eles, mas eles
não me olhavam. Fiquei assim... “Mas, quem são esses dois
rapazinhos?” Quando chegou lá na encruzilhada, eles dis-
seram: - É para lá que o senhor vai, né? Eu respondi, “é”, e
eles disseram: - Então ‘tá, que nós vamos por aqui. Eu per-
guntei: “Cadê o pai de vocês?” Eles responderam: -Tá vindo
aí. Depois é que eu fui me lembrar de que era Curupira. Não
mexendo com eles, não fazem mal a gente. Agora, mexen-
do com eles, eles malinam da gente, fazem a gente se per-
der no mato, andar sem rumo.

(Seu Júlio, São Pedro – Rio Arapiuns)

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OS CURUPIRAS NÃO FORAM EMBORA? OS ENCANTADOS NA RESISTÊNCIA INDÍGENA NO BAIXO
RIO TAPAJÓS | Florêncio Almeida Vaz Filho

É muito mais comum os caçadores se referirem a ela como a


Curupirinha (HENRIQUES, 2018), a velha, minha avó, meu avô, com-
padre, comadre, titia e titio, evocando relações de muita familiari-
dade, de parentesco mesmo (WAWZYNIAK, 2008). Ouvi relatos de
um senhor idoso na aldeia de Muratuba (do povo Tupinambá), rio
Tapajós, de que quando mais jovem ele caçava e fazia trocas com
uma Curupira que morava em uma árvore grande samaumeira. Ele
sempre passava por lá e conversava com ela, deixando cachaça e
cigarro como presentes. Mas ele passou muitos anos trabalhando
fora e, um dia, quando ele voltou, a árvore tinha morrido, apodreci-
do, e tudo estava com ar de abandonado. Ele falava com uma certa...
saudade de uma pessoa querida que se foi. Ele se referia a ela na
forma feminina. Esse sentimento com algo de terno explica muito
sobre a relação dos indígenas do baixo Tapajós com a Curupira, co-
mo uma avó querida ou uma velha amiga.

Os seus ataques são temidos, mas ela tem também um jeito diverti-
do, pois gosta de fazer as pessoas se perderem na floresta, quando
andam em várias direções sem encontrar o rumo certo, mesmo que
estejam ao lado do caminho. A recomendação, conforme os indíge-
nas, é fazer um cesto ou qualquer tecido de palha ou tala, deixan-
do escondida a ponta da palha, e deixar ali. A Curupira vai tentar
desmanchar o cesto e, enquanto isso, as pessoas aproveitam para
escapar do seu encantamento. Ter tabaco e cachaça também ajuda,
pois é o presente que os caçadores dão a ela em troca da caça.

No entanto, além desse lado brincalhão, infantil e até maternal, a


Mãe do mato tem também um aspecto malino. São poucos os rela-
tos desse tipo, mas sabe-se que ela pode também maltratar e sur-
rar as pessoas. Na comunidade de Cametá, rio Tapajós, ouvi o único
relato de um ataque ocorrido nos anos 70 que resultou em morte.
Um caçador contou que um amigo seu, no meio da mata, na região
da Transamazônica, perseguiu alguns pássaros inambu, mas eles
escaparam, e talvez o caçador tenha dado tiros contra eles. Depois,
ele voltou para o barraco com dores de cabeça muito fortes e alu-
cinações, vindo a morrer no dia seguinte. Mais tarde, um pajé teria
dito que a aparição dos inambus, e a consequente morte do rapaz,
foi ação da Mãe do mato.

359
PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

É necessário esclarecer, com relação a esse caso, que o termo Mãe


na região também tem um sentido amplo de entidade protetora ou
dona de um certo lugar na natureza. Assim, quando o pajé disse “foi
a Mãe do mato”, poderia estar falando de um ataque do espírito do-
no daquele lugar específico da floresta, e não necessariamente da
Curupira, que é chamada de forma genérica a Mãe do mato e dona
de todas as florestas. Além disso, a ave inambu é conhecida por
ter parte com um bicho que gosta de malinar das pessoas. Ou seja,
provavelmente esse caso de morte não foi uma ação da Curupira,
pois, no baixo Tapajós, predomina a visão de uma Curupira do bem,
diferente do que ocorre entre os Tembé, onde existe uma Curupira
“do mal” e outra “do bem” (MORAES, 2016).

No entanto, a maioria dos relatos se trata de caçadores que ape-


nas escutaram o assovio da Curupira e de pessoas que ficaram
perdidas na floresta, por algumas horas, um dia ou até três dias,
gerando grande comoção. Nesses casos, já até existe um modo de
proceder: os moradores se organizam em grupos de busca na flo-
resta e chamam o Corpo de Bombeiros, sediado em Santarém. Logo
ao chegar ao local, os soldados escutam dos nativos que a explica-
ção é um possível ataque da Curupira. Quando os moradores per-
didos reaparecem, normalmente, dizem que se perderam depois
de encontrar uma pessoa que julgaram ser um conhecido seu, que
os levou para o meio da mata de onde não conseguiram voltar. E o
suposto conhecido desapareceu misteriosamente. Então, a pessoa
(a verdadeira) que os perdidos pensaram ter visto na mata diz que
naquela hora ela estava em casa ou em outro lugar, o que confir-
maria que se tratou de mais uma ação da Curupira.

É uma constante nos relatos daqueles que ficaram perdidos na floresta


dizer que andavam várias vezes na direção que julgavam correta como
o caminho de volta, mas, após muito andar, notavam que haviam
retornado ao lugar de onde haviam tentado sair. É como se estivessem
sob efeito de um encantamento. A lógica nativa: “foi a Curupira!”

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OS CURUPIRAS NÃO FORAM EMBORA? OS ENCANTADOS NA RESISTÊNCIA INDÍGENA NO BAIXO
RIO TAPAJÓS | Florêncio Almeida Vaz Filho

A OUSADIA DA CURUPIRA
A Curupira também se fez notar mais ostensivamente em uma sur-
preendente manifestação, que teria ocorrido quando uma estudante
de Engenharia Florestal da Universidade Federal do Oeste do Pará
(UFOPA) se perdeu e ficou desaparecida por mais de 16 horas dentro
da Flona Tapajós durante uma aula prática. O caso ocorreu nos dias 1º
e 2 de abril de 2016, quando a Curupira parece ter desafiado a raciona-
lidade dos acadêmicos, que não conseguiram encontrar a jovem estu-
dante. O fato foi surpreendente porque a jovem já havia atuado como
monitora, liderando o trabalho de outras equipes na mesma área de
floresta. Também porque o fato ocorreu a apenas 72 quilômetros da
cidade de Santarém (LIMA, 2016) e a uns 8 quilômetros da BR-163,
além de envolver professores pós-graduados que normalmente não
se pautam pela crença em espíritos, como a Curupira.

Se os professores da UFOPA ficaram durante algum tempo sem en-


tender o que aconteceu, para os estudantes indígenas, que conhe-
cem bem a cosmologia nativa, não houve surpresa: foi a Curupira!
Os cientistas não contavam com esse fator para atrapalhar sua
aula de campo na floresta. Aqui fazemos um relato etnográfico do
caso14, associando-o à teimosia do sistema da pajelança, à emer-
gência do Movimento Indígena na região e à presença dos estudan-
tes indígenas na própria UFOPA.

A UFOPA conta com aproximadamente 670 estudantes indígenas


que entraram pelo Processo de Seleção Especial (PSE) Indígena e
pelas cotas dos estudantes oriundos da escola pública. A grande
maioria deles vem do baixo rio Tapajós, onde é comum a crença
nos encantados, como a Curupira. A estudante que se perdeu na
floresta não é indígena, mas é filha de uma família oriunda de uma
comunidade ribeirinha vizinha às aldeias indígenas. No dizer de
Silva (1980), ela compartilharia aquele “sistema cultural” caboclo.

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PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

A estudante, que cursava o 8º semestre de Engenharia Florestal e


era monitora da disciplina Inventário Florestal, acompanhava uma
turma de aproximadamente 35 alunos e dois professores. A equipe
contava com o apoio de um grupo de moradores treinados ligados
à Cooperativa Mista da Flona Tapajós (COOMFLONA), que são cha-
mados de manejadores, porque atuam de forma especializada no
manejo florestal na área da Flona Tapajós. São tidos como muito
experientes em termos de caminhada na floresta.

Conforme os estudantes indígenas que faziam parte do grupo, no


dia do ocorrido, chovia bastante. A aula prática começaria às 7 h
30 min, mas a turma foi orientada pelos manejadores a não entrar
na mata enquanto a chuva não parasse. Mas as horas passaram, o
tempo continuou chuvoso, e já se aproximava do meio-dia quando
o grupo deixou o alojamento e seguiu para o local da aula. Observe
que os manejadores nativos eram contra essa entrada na mata,
que acabou sendo autorizada pelos professores. Já dentro da flo-
resta, a turma foi dividida em sete grupos, que foram distribuídos
em sete linhas paralelas (trilhas abertas previamente na floresta).
Cada grupo era acompanhado por um manejador.

Os professores e a estudante monitora se dividiram para auxiliar


e orientar os grupos, sendo que a monitora ficou responsável por
dois dos sete grupos. A distância entre esses grupos era de apenas
50 metros. No entanto, um desses grupos acabou, sem perceber,
passando para a outra linha, e a distância entre os grupos acabou
aumentando para 100 metros. Foi aí que a estudante monitora saiu
de um dos grupos e, quando estava se dirigindo para o outro, aca-
bou se afastando e se perdeu na floresta. A ausência da jovem foi
notada somente três horas depois, às 17 h 30 min, durante o retor-
no da turma para o alojamento, quando já estava anoitecendo. Foi
então que se iniciaram as buscas.

O caso assustou e intrigou muitos dos presentes. Teria a aluna passa-


do mal, caído e ficado inconsciente, ou foi atacada por algum animal

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OS CURUPIRAS NÃO FORAM EMBORA? OS ENCANTADOS NA RESISTÊNCIA INDÍGENA NO BAIXO
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peçonhento ou uma onça? Mas não tiveram respostas. Os manejado-


res, outros moradores do local e, depois, os bombeiros ainda fizeram
buscas na área, mas tiveram que as interromper, com o avanço da noi-
te. Os familiares e amigos da estudante desaparecida foram ao local
e estavam apreensivos, temendo pelo pior. Para os cinco estudantes
indígenas da turma, as perguntas e reflexões os remetiam para as his-
tórias escutadas tantas vezes na infância e na adolescência sobre os
bichos do mato, os mistérios e poderes da floresta.

Durante aquele longo momento do desaparecimento da


colega, em meio àquela angústia, aflição, preocupação e
medo - entre outros sentimentos - nós chegamos a co-
mentar histórias parecidas relatadas por antepassados
pelo nosso povo. Falamos sobre o Curupira e a Matinta-
-pereira. Lembramos de alguns detalhes que nos fizeram
refletir sobre o acontecido. A nossa turma sempre antes
das viagens se reúne e faz correntes de oração, pedindo
a proteção, benção e licença para adentrar na mata, mas
dessa vez não fizemos isso. Outra coisa, ouvimos um dos
manejadores do local nos chamar de “teimosos” porque
adentramos na floresta enquanto chovia, sendo que a
orientação era não entrar. Uma das colegas indígenas co-
mentou que já havia participado de outra aula prática com
um dos professores que nos acompanhava e lembrou que
ele acredita nos espíritos da floresta, e que sempre antes
das aulas pedia aos seus alunos o respeito, licença e prote-
ção ao entrar na mata. Mas desta vez ele não fez isso, o que
causou estranheza na colega. (Ádria Fernandes – Indígena
do povo Tupinambá, estudante da UFOPA)

Esse mesmo professor já frequentava aquela região há alguns


anos e era conhecido pelos moradores das proximidades. Na ma-
drugada, sem nenhuma notícia da estudante, ele e um dos mane-
jadores seguiram para uma comunidade vizinha, para pedir ajuda a
um senhor pajé. Voltou ao alojamento, em companhia do pajé, que
viu a irmã da jovem desaparecida com os olhos cheios de lágrimas.
Então, o pajé disse a ela, de forma muito assertiva, que a estudante
estava viva e que iria aparecer na hora certa. Tais palavras foram
recebidas com muito alívio, claro.

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PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Amanheceu o dia, e os professores da UFOPA e todos no local esta-


vam abatidos e aflitos, apesar da esperança de reencontrar a estu-
dante. Às 7 h da manhã, as pessoas já estavam mobilizadas nova-
mente nas buscas. A notícia já era conhecida em toda a região. Mas
só às 9 h 30 min, a estudante monitora apareceu sozinha na guarita
da Flona. Estava viva! Mas também, assustada e abatida. Depois do
ocorrido ela relatou um pouco como se perdeu e como conseguiu
passar a noite na floresta e encontrar o caminho de volta.

Segundo seu relato, feito em áudio e divulgado amplamente em


grupos de WhatsApp, na tarde do dia 1º, ela se afastou do grupo e,
mesmo estando “superperto da trilha”, não encontrou o caminho de
volta. Ela disse:
Eu não sei o que aconteceu. [...] a floresta tem dessas coi-
sas, né?! São coisas que não têm explicação mesmo. O
incrível é que, logo que eu me perdi, eu andava bastante e
sempre parava no mesmo lugar, não importava o tanto que
eu andasse, eu sempre voltava pro mesmo local.

Isso bastou para que os moradores da região, os estudantes indí-


genas e até jornalistas associassem imediatamente o fato à ação
da Curupira (CARDOSO, 2016).

Algumas coisas chamaram bastante atenção dos estudantes in-


dígenas. Primeiro, a monitora contou que, quando percebeu que
estava perdida, tentou encontrar o caminho, mas notou que ela an-
dava em círculos e sempre parava no mesmo lugar, não importava
o quanto ela andasse. Segundo, ela disse que entrou numa linha,
chegou até o fim, onde viu que estavam marcadas todas as delimi-
tações das parcelas que seriam inventariadas, mas não encontrou
nenhum grupo de alunos, sendo que eram os alunos que delimita-
vam e marcavam as parcelas. Era estranho ela não ter encontrado
ninguém ali. Ainda segundo os indígenas, era como se, enquanto a
monitora andava perdida no fim da tarde, os demais alunos esti-
vessem nos mesmos lugares onde ela disse ter passado. Como ela
não via o grupo, e o grupo não a via? Como foi possível as pessoas

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OS CURUPIRAS NÃO FORAM EMBORA? OS ENCANTADOS NA RESISTÊNCIA INDÍGENA NO BAIXO
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procurarem a monitora no lugar onde ela disse estar e não a encon-


trarem? Era como se a monitora estivesse encantada.

Os estudantes indígenas só conseguiam concluir que, conforme os


ensinamentos dos seus avós, como eles mesmos disseram: foi al-
guém que brincou com a estudante, mas que a protegeu até o fim.
Só assim se explica ela ter passado a noite na mata escura, e no
dia seguinte aparecer bem, sem estar machucada. Esse alguém só
podia ser a Curupira. E ela fez isso porque a turma não pediu licen-
ça ao adentrar na mata naquele dia 1º de abril.

POSSÍVEIS LIÇÕES DA CURUPIRA


O que dizer, mesmo de forma provisória, sobre essa insistência e
teimosia da crença na Curupira? Mesmo com o pessimista diagnós-
tico feito nos anos 70 de que essas entidades da floresta haviam ido
embora, vemos sinais de que, na verdade, assim como os indígenas,
elas continuam bem próximas da cidade de Santarém, a moderna
metrópole do baixo Amazonas, com mais de 300 mil habitantes. E
essa resistência já vem de pelo menos cinco séculos. Afinal, o/a
Curupira já era conhecida pelos Tupinambá do litoral brasileiro
desde 1560, conforme relato de José de Anchieta:

[...] a respeito daquellas coisas, que costumam assustar os


indios, em apparições nocturnas, ou antes demônios. Coisa
muito sabida é, corre pela bocca de todos, que há certos
demônios, que os Brazis chamam Corupira, que muitas ve-
zes atacam os índios, nos bosques, açoutam, atormentam,
e matam. Deste facto são testemunhas alguns de nossos
irmãos, que algumas vezes tiveram occasião de vêr os as-
sasinados por elles. Por esse motivo, os índios costumam
deixar pennas de aves, abanicos, flechas, e outras cousas
como estas, em qualquer parte da estrada que leva ao ser-
tão, através de cerradas mattas, ou de alcantiladas serras,
quando passam por lá; como um offerenda, e humildemen-
te imploram ao corupira que lhes não faça mal” (ANCHIETA,
1900, p. 47-48, grifos do autor).

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PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Esse foi o primeiro documento a atestar a existência da Curupira


entre os indígenas no Brasil, e aí já vemos alguns dos principais
elementos ainda hoje presentes entre os indígenas no rio Tapajós
com relação à crença nesse encantado: o temor ou respeito dos
indígenas em relação à Curupira e os presentes em troca de uma
relação harmoniosa com ela. Ainda que com o exagero na demoni-
zação da Curupira, o que era comum na visão daqueles primeiros
missionários em relação às crenças nativas, esse documento tem
um enorme valor histórico, por atestar o quanto ela era significa-
tiva para os Tupinambá da Costa. Provavelmente, com a migração
desse povo para a Amazônia, veio também a crença na Curupira
que, com a expansão do Tupi como Língua Geral, se popularizou em
toda a região. É claro que tal crença deve ter se somado às crenças
similares dos povos que já estavam aqui na região, em um lento
processo de apropriação e reinterpretação. O também jesuíta João
Daniel (2004) atestou que, em meados do século XVIII, os indígenas
no Pará conheciam e temiam a Curupira. Parte da literatura produ-
zida no século XIX sobre os indígenas na região mostra como era
forte a crença na Curupira, a exemplo da obra O Selvagem, escrita,
em 1876, por de Couto de Magalhães (1935).

É óbvio que a Curupira, tal como descrevemos atualmente no baixo


Tapajós, não é a mesma da crença dos Tupinambá no século XVI.
Mesmo admitindo a persistência de um padrão central nessa cren-
ça, temos que nos ater à forma como ela se apresenta entre os ín-
dios no Tapajós no início do século XXI. Não falamos de uma crença
imutável e única ao longo de cinco séculos. Mudou a Curupira, como
mudaram os povos indígenas ao longo desse processo de coloniza-
ção, catequese, resistências, recriações e reinvenções. Se entre os
Tembé, há a ênfase em uma Curupira “do mal” (MORAES, 2016), no
baixo Tapajós se acentua o seu aspecto brincalhão e familiar (mi-
nha avó). Mesmo entre os indígenas na Amazônia contemporânea,
há diferenças no caráter da Curupira.

O que fica evidente é que o mito da Curupira é altamente significativo


na constituição atual da cultura, da identidade e da vida social dos

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OS CURUPIRAS NÃO FORAM EMBORA? OS ENCANTADOS NA RESISTÊNCIA INDÍGENA NO BAIXO
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indígenas no baixo Tapajós. Daí a força dessa crença, a ponto de ser


o espírito mais citado pelos moradores (WAWZYNIAK, 2008). É ele
que mais causa mau-olhado nas pessoas. É também aquele que de-
monstra enorme plasticidade para incorporar diferentes caracterís-
ticas e formas físicas. Pode se apresentar no aspecto de um parente,
amigo ou conhecido, convencendo mesmo que se trata daquela pes-
soa, quando, na verdade, é só mais uma das suas brincadeiras. O que
a Curupira quer mesmo é se relacionar, dar e receber presentes.

Tal mito simboliza a reciprocidade dos indígenas com a natureza. A


Curupira dá a caça como presente, a ser retribuído. E, se o caçador
não retribui, ela se vinga, punindo-o de várias formas. Ora, a prática
da reciprocidade entre os indígenas e ribeirinhos no baixo Tapajós
ainda é algo muito forte. A Curupira é o mito que os relembra a cada
dia que esse é um valor que precisa ser mantido, na relação hu-
manos-humanos e na relação humanos-natureza. “Os mitos trans-
mitem e preservam paradigmas” (MORAES, 2016, p. 47), são como
modelos exemplares que buscam ordenar as ações das pessoas.
As Curupiras são as “entidades morais” (WAWZYNIAK, 2003) que
cumprem a função, junto aos indígenas e ribeirinhos, de manter
e atualizar o seu protocolo da reciprocidade. Quem caça além do
necessário nega tal relação e sofre a malinesa da Curupira, um re-
forço na defesa dessa ordem. “O Curupira configura-se, assim, co-
mo a defesa contra a fome, o egoísmo e o consumismo capitalista”
(MORAES, 2016, p. 68-69).

Sobre reciprocidade, vale dizer que os indígenas usam um termo


para o costume de distribuir gratuitamente entre parentes e ami-
gos a carne de caça ou o pescado: putáua. É uma palavra do Tupi,
ainda presente no Nheengatu – Língua Geral Amazônica (LGA) –,
que quer dizer algo que se dá ao outro. Quem recebe uma putáua
sabe que deve necessariamente retribuir, mais tarde, o presente. É
uma instituição muito antiga, que estimula a partilha de alimentos
com os próximos. Há comércios nas aldeias, alguns inclusive ven-
dem carne e frango, mas a troca ritualizada da putáua se mantém
de forma paralela. Apesar do mercado, os dons continuam sendo
trocados de forma tradicional.

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PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Todos os homens que andam na mata contam histórias da sua con-


vivência com a Curupira, expressando muito respeito e lealdade.
É preciso conversar com ela e dar presentes. É uma troca ao nível
sobrenatural, mas no estilo daquela que os indígenas mantêm com
os vizinhos ou com o santo de devoção, pelo pagamento de promes-
sas. A lógica dessa putáua sobrenatural reforça a putáua social do
cotidiano: pediu, recebeu; recebeu, retribuiu. Não é casual que, com
a expansão da prática da venda de carne e peixe, a putáua se en-
fraqueceu um pouco. Com a diminuição das caçadas e das caças, a
putáua com a Curupira também se enfraqueceu. Mas a Curupira não
foi embora mesmo assim, e suas manifestações mais ousadas, como
no caso do desaparecimento da universitária, estão aí para demons-
trar que o simples ato de lhe pedir licença ainda é uma regra válida.

É preciso respeitar a floresta e os rios. Eles têm a sua dimensão


encantada, da qual faz parte a Curupira. A harmonia e a convivência
pacífica entre humanos e a natureza são possíveis, mas a base será
sempre o respeito recíproco.

Por fim, o mito da Curupira, como o vemos no baixo Tapajós, fala


principalmente dos povos indígenas, das suas tradições, resis-
tências e reinvenções contra a colonização e a catequese cristã
que negou e ainda nega as suas cosmologias. Por isso, quando os
indígenas reapareceram politicamente, a Curupira ganhou mais
visibilidade. A Curupira não foi embora, porque os indígenas que
sustentam tal crença teimam em não desaparecer, apesar dos
prognósticos mais pessimistas que já foram feitos sobre a sua
extinção. Como a Curupira, os indígenas no Pará se refugiam no
que resta das florestas, pois sua vida depende da existência dessas
florestas e de todos os recursos a elas associados: animais de caça,
frutos silvestres, materiais para suas artes, remédios para a cura
das doenças, igarapés, lugares de memória dos seus povos etc.

Se a Curupira tem uma enorme capacidade transformacional no


tempo e no espaço, se adaptando a diferentes contextos e se ma-
nifestando com rostos de diferentes pessoas, esta também é uma

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OS CURUPIRAS NÃO FORAM EMBORA? OS ENCANTADOS NA RESISTÊNCIA INDÍGENA NO BAIXO
RIO TAPAJÓS | Florêncio Almeida Vaz Filho

forma que os indígenas encontraram para sobreviver sob vários


constrangimentos e se reinventar, modernizando-se e até urbani-
zando-se. Sim, o desaparecimento da estudante em Santarém ga-
nhou a repercussão e a associação a uma suposta manifestação da
Curupira porque essa crença entrou no espaço da UFOPA, através
das centenas de indígenas oriundos do baixo Tapajós que são obri-
gados a viver na cidade de Santarém durante os cinco ou seis anos
de seus cursos. Eles trouxeram consigo a lógica da putáua e do
necessário respeito para com a Curupira. A Curupira, mesmo a con-
tragosto, teve que vir para a universidade, junto com os indígenas.

Professores e gestores da UFOPA e das demais universidades na


Amazônia precisam se acostumar com as cosmologias que os in-
dígenas trazem ao entrar no ensino superior. Aliás, mais que se
acostumar, precisam respeitá-las. Se as Curupiras andam com os
indígenas, elas agora estão também nas universidades, pois este
é um dos espaços conquistados por esses povos nas duas últimas
décadas. E parece que chegaram para ficar.

Outro recado que a Curupira da Flona Tapajós talvez quis transmitir


pode ser direcionado aos próprios estudantes indígenas, para que
não esqueçam suas raízes e não se deixem dominar apenas pela
lógica da razão ocidental, segundo a qual floresta é principalmente
sinônimo de madeira e recursos genéticos. Ao menos os indígenas
estudantes de Engenharia Florestal da UFOPA devem ter entendido
bem a lição: a Curupira não foi embora, e é necessário continuar
pedindo licença para entrar na floresta. Aliás, é necessário
continuar existindo floresta para que as Curupiras, ou melhor, nós
os indígenas, possamos viver e ter futuro como indígenas. Pois nós
indígenas somos como as Curupiras. Ou, por trás do mito, no fundo
no fundo, nós indígenas somos as Curupiras.

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PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Notas
1 Comunidade é uma categoria nativa que, a partir dos trabalhos da Igreja
Católica nos anos 60, passou a ser usada amplamente pelos moradores
na Amazônia para se referir aos seus povoados no interior. O termo se
refere não só ao lugar geográfico, mas também às relações sociais ali
estabelecidas e à sua organização: igreja, barracão de reuniões e festas,
campo de futebol, cemitério, diretoria da comunidade etc.

2 Na região, o termo “caboclo” é polissêmico e usado por estudiosos (os


moradores falam caboco) para classificar a população que habita a zona
rural ribeirinha. Entre outros sentidos, a categoria significa descendente de
indígenas, que tem traços indígenas e indígena miscigenado sem a pertença
a um grupo étnico específico. Tem também um sentido pejorativo: matuto,
rude, não urbano e inculto. A categoria cearense descreve os descendentes
dos cearenses que chegaram à região desde o final do século XIX.

3 Silva (1980) não fez pesquisa de campo em Takuara, porém como o lu-
gar dista poucos quilômetros ao sul do Eixo Forte (área estudada pela
autora), e seus moradores estão entre o grupo social que ela chamou de
caboclos, nos parece adequado estender para eles o que foi dito sobre
os moradores do Eixo Forte. Os moradores de Alter do Chão, região do
Eixo Forte, também se assumiram como indígenas em 2003.

4 Segundo a crença dos indígenas e ribeirinhos no baixo rio Tapajós,


os encantados são seres que vivem no fundo das águas e na floresta,
e eventualmente podem se manifestar aos humanos, provocando
enfermidades e em alguns casos até a morte. Eles são também referidos
pelo termo bichos. Os mediadores entre encantados e humanos são os
pajés, chamados para restaurar a saúde da vítima dos encantados.

5 No início de 2018, parte dos moradores da comunidade de Marai, vizinha


de Bragança, também se assumiu como indígena, elevando para quatro
o número de aldeias indígenas dentro da Flona Tapajós.

6 Após os moradores se identificarem como indígenas, eles passam a usar


o termo aldeia para designar seus povoados, provavelmente porque essa
palavra, no senso comum, está mais associada a um lugar de habitação
de indígenas, ainda que sua origem histórica no Brasil esteja ligada aos al-
deamentos missionários do período colonial. Trata-se de ressignificação
de um termo, em favor do projeto indígena de distinção étnica.

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OS CURUPIRAS NÃO FORAM EMBORA? OS ENCANTADOS NA RESISTÊNCIA INDÍGENA NO BAIXO
RIO TAPAJÓS | Florêncio Almeida Vaz Filho

7 Nos primeiros anos, o grupo iniciou o estudo da língua Nheengatu, como


as demais aldeias na região, mas logo passou ao ensino da língua Mun-
duruku, com professores mundurukus vindos do alto rio Tapajós.

8 Nos referimos ao programa de rádio “A Hora do Xibé”, que é apresentado


desde 2007 na Rádio Rural de Santarém, tendo como coordenador este
autor. Seu objetivo é valorizar a memória, a cultura e as identidades dos
povos do interior do Baixo amazonas, e divulga relatos dos moradores
indígenas, quilombolas e ribeirinhos sobre suas crenças. Assim, são co-
muns as histórias a respeito da ação dos encantados, como a Curupira,
por exemplo. O programa A Hora do Xibé faz parte das ações do projeto
de extensão (Ufopa) que tem o mesmo título, e envolve estudantes indí-
genas e quilombolas, entre outros.

9 São 12 os povos indígenas que vivem nas 70 aldeias no baixo Tapajós.


Mas o CITA afirma representar 13 povos na região, porque inclui o povo
Tapuia, formado por pessoas que, oriundas de comunidades ribeirinhas,
vivem em Santarém. Alguns tapuias são estudantes na Ufopa, tendo en-
trado pelo Processo de Seleção Especial (PSE) Indígena. Mas os estudos
antropológicos feitos na região ainda não registraram dinâmicas mais
objetivas de um coletivo étnico tapuia.

10 As pessoas falam “o” Curupira, “a” Curupira, “a” Mãe do mato e “o” Pre-
tinho para se referir a este espírito. Quando insistimos numa definição
de gênero do/da Curupira, as pessoas não apresentam uma resposta
definitiva. E nem isso constitui um problema para elas. Simplesmente se
fala do e da Curupira. Uma vez que é mais comum o uso da forma femi-
nina, é esta que neste texto vamos usar daqui para a frente.

11 “[Ele] Tem mais ou menos esta artura [como a de um menino], magri-


nho, pelado. Ainda ia me carregando, me levou [até] uma distância...Que
a gente não enxerga ele, ele vai passando na frente, vai só [falando] “prá
cá, prá cá!”. A gente vai no rumo daquela voz, mas a gente não enxerga
ele. Foi o que me aconteceu. Andei, andei... [...] Que quando disseram que
não era gente que ia me levando, já [estava entre] aqueles pau grande
de sapupema, por onde ele senta, parece os banquinhos dele, aquilo ali...
Bem limpinho, eu digo: “é bicho!...” Passei a mão no terçado, cortei uma
vara e cortei outra mais fina e fiz uma cruz, e afinquei, e dobrei de volta.
Foi prá mim acertar, que com cruz ele não quer nada. Eu já vi Curupira, eu
já vi. [Hoje não se vê mais, pois] o mato que eles pode andar não encon-
tra. Tá tudo feio, tudo acabado, que aquilo é da mata. É da mata. [...] Do
jeito que está [destruição da floresta]... o bicho não pode nem mais arriar
prá beira [...]” (Relato de “seu Manoel” citado em VAZ FILHO, 1997, p. 61).

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PARTE 3 - Definindo e reordenando relações com intencionalidades não humanas

Obs. Sapupema são as raízes da árvore chamada samaumeira (Ceiba


Pentandra), que são chatas como tábuas, formando entre elas espécies
de compartimentos, que os caçadores identificam como os quartos da
casa dos curupiras. Falam que o terreno lá é muito limpo, como se esti-
vesse varrido. Com isso, querendo dizer que alguém mora lá.

12 Eles acreditam que a Curupira se parece com um menino de pele escu-


ra, daí a denominação Pretinho, que em alguns lugares chega a ser mais
usada do que a tradicional Curupira. Entre os Tembé também o Curupira é
“pretinho”, e é alguém com quem se pode brincar (MORAES, 2016).

13 Os moradores se referem ao Jurupari e ao Mapinguari como se tivessem


as mesmas características, ou como se fossem o mesmo ser. Porém, usam
mais o termo Jurupari, descrito como um bicho gigantesco e peludo, com
apenas um olho na testa e a boca no lugar do estômago. Tem a pele tão
resistente, que as balas de chumbo não o atingem. O medo maior dos mo-
radores é ser devorados pelo bicho. Como ele se aproxima dando gritos as-
sustadores, as pessoas sempre conseguem tempo para fugir e escapar.

14 Essa síntese dos fatos foi elaborada a partir de áudios gravados pela
própria aluna perdida e divulgados pelas redes sociais naquela ocasião,
de matérias publicadas na imprensa local e dos relatos de alguns es-
tudantes indígenas que estiveram na aula prática. Aproveitei principal-
mente o relato escrito a meu pedido pela aluna indígena Ádria Fernan-
des, poucos dias após o ocorrido.

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