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A ESTÉTICA KANTIANA

A ESTÉTICA DE KANT

Podemos viver experiências estéticas ao contemplar uma paisagem ou um


objecto natural, ao ler um poema ou um romance, ao ouvir uma peça
musical, ao observar um quadro, uma escultura ou uma obra de arquitectura,
ao assistir a um filme, a um concerto, a uma representação teatral ou a um
bailado, etc. Muitas são as ocasiões que podem estar na origem de uma
vivência estética, mas esta não é uma experiência vulgar. Com efeito,
envolve prazer e satisfação, mas não se trata de prazer ou de satisfação
meramente sensoriais.
Comecemos por caracterizá-la de uma forma ainda vaga: a experiência
estética é uma vivência emocional que resulta da contemplação de
determinados objectos sensíveis e provoca uma satisfação muito peculiar.
Os objectos sensíveis capazes de suscitar experiências estéticas – e que por
isso recebem o nome de objectos estéticos – são de dois tipos:
1 – Objectos artísticos – são criações humanas, objectos artificiais, que,
produzidos pela actividade do artista, são capazes de despertar emoções e
sentimentos que os avaliem como belos, horríveis ou sublimes. Exemplos:
uma pintura, uma sinfonia, uma peça teatral.
2 – Objectos naturais – são produtos da natureza e não criações humanas;
descobrimo-los e são capazes de despertar emoções e sentimentos que os
avaliem como belos, horríveis ou sublimes.
Assim quer a natureza quer a arte podem proporcionar prazer estético.
Na experiência estética dá-se assim a relação entre um sujeito que observa
e contempla e um objecto – natural ou artístico – sobre o qual se projecta
essa atitude contemplativa. Ora, é precisamente na atitude do observador
que reside o segredo, o carácter especial da experiência estética. Quer isto
dizer que só há prazer ou satisfação estéticos se nos relacionarmos com os
objectos naturais ou artísticos de uma determinada forma, se os
observarmos e apreciarmos de um certo modo. Só uma determinada atitude
torna possível o prazer característico da experiência estética. Essa atitude
tem o nome de atitude estética e, analisando-a, iremos esclarecer quais as
características próprias da experiência estética, lançando luz sobre conceitos
como contemplação e prazer estético.

1. A Atitude Estética

A experiência estética, com o prazer que a acompanha, só é possível se na


relação com os objectos adoptarmos uma atitude desinteressada. Em que
consiste esta atitude? Consiste numa relação que não se interessa pela
utilidade do objecto observado, não o transforma em meio ao serviço de um
fim. Na atitude estética, apreciamos o objecto por si mesmo afastando
quaisquer considerações relativas ao proveito que nós ou alguém teríamos
em possuí-lo, aos valores morais que promove ou não, e pondo “fora de
circuito” a vontade de ampliar conhecimentos.

Como se vê, a caracterização da atitude estética faz-se essencialmente pela


negativa, ou seja, sabemos o que é a atitude própria de quem tem uma
experiência estética indicando as atitudes que a impedem ou lhe retiram
intensidade.

Trataremos agora de aprofundar o que foi sublinhado: a atitude estética — a


forma estética de relação com os objectos naturais e artísticos.

a) Não é uma atitude prática ou utilitária.


A atitude estética é alheia a qualquer consideração sobre a utilidade do
objecto, não é determinada pelo desejo de posse, ou pelo eventual valor
monetário ou comercial do objecto contemplado. A contemplação é, no caso
da atitude estética, um fim em si mesma. A atitude utilitária impede que nos
“aproximemos” de forma pura e desinteressada das produções artísticas e
naturais, prende-nos aos nossos interesses e inclinações materiais ou
sensíveis, isto é, não permite uma satisfação livre.

Podemos dar como exemplo o caso do agente imobiliário que, quando


observa as paisagens do Gerês, não consegue evitar pensar no seu valor
monetário, no excelente negócio que seria construir um aldeamento naquele
local ou o caso de uma pessoa que, num museu, imagina o que seria ter um
determinado quadro em sua casa, se ele combinaria com os móveis e
tapeçarias da sala. Comprar uma pintura ou uma escultura considerando
esse acto como um investimento com o qual se pretende obter benefício
económico e social é também uma negação da atitude estética ou pelo
menos um obstáculo à fruição das obras artísticas em todo o seu esplendor.

b) Não é uma atitude cognitiva (de conhecimento).


A relação com os objectos naturais e artísticos na contemplação estética não
é motivada primordialmente pela vontade de adquirir e de ampliar
conhecimentos.

Imaginemos que estudantes de História de Arte visitam vários monumentos e


se revelam capazes de identificar os vários estilos arquitectónicos, as
características de cada um e as diferentes épocas a que pertencem. Nada
há de negativo neste comportamento porque o conhecimento permite
desfrutar com mais prazer a contemplação das obras artísticas (é importante
educar o gosto e neste sentido o conhecimento artístico é um auxiliar muito
valioso de uma atitude — a estética — que não é em si mesma cognitiva).
Contudo, se contemplam esses monumentos para consolidar conhecimentos
adquiridos ou para os pôr à prova, não podemos dizer que a sua atitude seja
estética. Se gostamos de arte mas predominam objectivos profissionais e
sociais na nossa relação com as obras de arte corremos o risco de nos
afastarmos da forma de contemplação pura e desinteressada que caracteriza
a atitude estética.

Pode-se também dizer que o biólogo que estuda um bosque de árvores


milenares para verificar o estado da sua flora manifesta uma atitude cognitiva
e não estética, tal como o antropólogo que estuda a arquitectura e a
cerâmica de uma comunidade para conhecer os seus costumes.

c) Não é uma atitude subordinada, em si mesma, a princípios e objectivos


morais.
Se uma pessoa sente prazer na contemplação de um dado objecto estético
(filme, poema, romance, conto…) somente por lhe reconhecer valor moral, a
sua atitude não é estética. A nossa atitude só terá forma estética se dermos
atenção ao objecto contemplado por si mesmo e não à relação do objecto
com os nossos conceitos e princípios morais.

PARA PENSAR
1 – Qual a condição que torna possível a experiência estética?
2 – Que diferenças pensas existirem entre as obras de arte e as “obras”
da natureza?
3 – Poderemos considerar semelhante a emoção estética provocada pela
observação de um quadro (pintura) e de uma paisagem natural?
4 – O que significa dizer que a atitude estética não é condicionada nem
por interesses teóricos nem por interesses práticos?
5 – Se gostas de ouvir uma canção ou uma melodia porque te recorda os
tempos da infância ou uma relação amorosa, estás a ter uma experiência
estética?
6 – Uma comida apetitosa e um banho reconfortante são experiências
agradáveis. Serão por isso experiências estéticas?

Em suma, a atitude estética é desinteressada, não porque seja indiferente ou


passiva, mas porque na contemplação do objecto o sujeito se comporta
como se ele não tivesse qualquer utilidade. A contemplação do objecto não
tem qualquer finalidade situada fora de si própria. Por isso, a atitude estética
é puramente contemplativa, isto é, livre de qualquer forma interessada de
relação com objectos naturais ou artísticos. O prazer estético é uma
satisfação puramente desinteressada em que nos distanciamos, ao
contemplar o objecto, de interesses, desejos e de convicções morais e
ideológicas.

2. O Juízo Estético
A experiência estética, possibilitada pela atitude anteriormente descrita,
envolve uma avaliação do objecto estético, mais precisamente da relação
com ele estabelecida. Tal avaliação traduz-se num juízo (este enuncia o que
o objecto vale — se é belo ou feio, horrível ou sublime).
O que é, em termos gerais, um juízo? É uma proposição que atribui uma
determinada qualidade a um objecto: “Este cavalo é rápido”. Ao acto
mediante o qual formulamos esta proposição dá-se o nome de acto de julgar
e à proposição formulada o nome de juízo.
O que é um juízo estético? Um acto mediante o qual formulamos uma
proposição que atribui determinada qualidade estética (beleza, sublimidade,
fealdade) a um objecto: “Este palácio é belo”.
Parece simples, mas temos de aprofundar a noção de juízo estético. Ao fazê-
lo iremos reencontrar características fundamentais da experiência estética
porque tal juízo exprime, na medida do possível, o que se passa nessa
experiência. Seguiremos de perto a reflexão que Immanuel Kant efectuou
sobre o tema.
Quando eu digo que algo é belo estou a transmitir uma satisfação, um
sentimento de prazer que acontece na contemplação de um objecto. À
primeira vista, ao atribuir a esse objecto o predicado “belo”, parece que estou
a referir-me à beleza como propriedade que “está” nesse objecto. Contudo,
segundo Kant, dizer que algo é belo é traduzir um sentimento, é expressar
algo que acontece em mim. A beleza é um sentimento de prazer, algo que se
dá na consciência do sujeito e não algo que seja propriedade do objecto.
A beleza não é uma coisa nem uma propriedade das coisas. É um
sentimento que é vivido no interior do sujeito e do qual este tem consciência.
Como se traduz esse sentimento? Dizendo de uma forma não muito correcta
que o objecto contemplado é belo.

O Juízo Estético não se refere nem ao Agradável nem ao Bom

Como exprime o que se passa na experiência estética, o juízo estético


comunica uma satisfação desinteressada e pura. O juízo estético ou de
gosto implica que o objecto julgado belo cause satisfação
independentemente de qualquer desejo, interesse ou utilidade.
Para Kant, julgar que um dado objecto é belo é muito diferente de dizer que
ele é agradável ou moralmente valioso (bom).
O agradável é algo que desperta os nossos apetites e desejos: é desejável
por ser a promessa de um eventual prazer sensorial. O agradável está ligado
ao nosso corpo, quer às suas necessidades quer aos seus desejos. É por
ser desejável ou apetecível que uma coisa é agradável.
PARA PENSAR
1 – Por que razão é o juízo estético aparentemente objectivo?
2 – Imaginemos um importante palácio construído unicamente com materiais
preciosos e à custa de imenso trabalho de escravos.
a) Se disser que o palácio é magnífico pelo conforto que oferece aos seus
habitantes e pela sua boa exposição ao Sol, estarei a formular um juízo estético?

b) Se disser que o palácio é belo, mas é uma inadmissível ostentação de luxo


num meio em que reina a miséria, estarei realmente a formular um juízo estético?
c) Para Kant é logicamente possível um juízo como este: «Esta obra é bela, mas
não me agrada»?
d) E quanto a um juízo como «Esta obra agrada-me, mas não é bela», qual seria
a posição de Kant?

O bom ou moralmente valioso está também ligado à faculdade de desejar,


embora a satisfação decorrente da sua eventual realização seja, não
sensível, mas racional. O que julgamos moralmente valioso (uma acção,
uma decisão) é avaliado como tal porque está em conformidade com
determinados valores morais, isto é, com o que deveria ser sempre feito e
muitas vezes não o é.
O juízo estético exprime, em palavras e conceitos, uma satisfação
puramente contemplativa: tenho prazer na observação do objecto sem que
tal prazer esteja condicionado por um desejo de posse ou de consumo ou
pela sua ligação ao que julgamos moralmente válido.
Segundo Kant, para julgarmos a qualidade estética de um objecto devemos
contemplá-lo abstraindo-nos da consideração da sua possível utilidade e
também da sua moralidade.

PARA PENSAR
1 – Que relação existe entre experiência estética, atitude estética e juízo
estético?
2 – Segundo Kant ao dizer «Isto é belo» quero dizer que todas as
pessoas estão de acordo com o meu juízo ou que todas deveriam estar
de acordo com ele?

O Problema da Universalidade do Juízo Estético

Expressão de um sentimento de prazer (puro e desinteressado), o juízo


estético é subjectivo. Significa isso que, segundo Kant, o juízo estético não
tem validade universal, que vale para mim, mas não vale para os outros?
Kant não admite que juízos como “Este quadro é belo” ou “Esta tempestade
sobre o mar é sublime” sejam meras opiniões pessoais. No seu entender,
quando atribuímos beleza a um dado objecto, estamos convictos de que
assim deve ser também para os outros sujeitos. O que torna legítima esta
pretensão? O que me dá direito a julgar assim não só em meu nome como
também em nome dos outros?
Se digo que um certo objecto é belo, implicitamente afirmo que ele é, de
direito, belo para todos. Como o meu juízo não se baseia em inclinações ou
interesses (por mais elevados que sejam) que me são peculiares
(unicamente meus) posso julgar-me no direito de que os outros reconheçam
também a beleza do objecto, isto é, experimentem o tipo de satisfação que
eu sinto. Nesse sentido, o juízo estético é subjectivamente universal. Livre de
qualquer interesse ou particularismo do sujeito que julga e sem demonstrar
aos outros que o objecto é belo, o juízo estético tem direito à validade
universal.
Embora não possamos demonstrar por que razão algo é belo (como diz
Kant, o belo é o que satisfaz universalmente sem conceito), não podemos
resignar-nos a aceitar que as nossas avaliações sobre a beleza sejam meros
gostos pessoais como, por exemplo, gostar de futebol ou de arroz de
tamboril. Há uma exigência de universalidade do nosso juízo. Esta exigência
fundamenta-se na existência ideal de um sentido do gosto comum a todos os
seres humanos, que permitiria avaliar os objectos estéticos da mesma forma.
O sentido do gosto asseguraria a universalidade dos juízos estéticos, o
consenso em questões de gosto: tais juízos não seriam o fruto de opiniões
arbitrárias.
«Ao afirmar que o belo satisfaz universalmente, Kant não quer dizer que de
facto todos dizemos que são belas as mesmas coisas, mas sim que só
chamamos belo ao que consideramos ter direito e mérito suficiente em si
mesmo para ser reconhecido como tal por toda a gente, ao passo que tal
exigência de universalidade não se verifica a respeito de outros tipos de
gosto: seria de uma ridícula falsa modéstia dar a entender que algo é belo só
para mim».

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