Você está na página 1de 144

o que os filósofos pensam

sobre as mulheres
Maria Luísa Ribeiro Ferreira

(Org.)

o que os filósofos pensam


sobre as mulheres
© Entre Trópicos Ed. (2021)
© Autores (2021) SUMÁRIO

Editor Responsável: Kassyus Rodrigues Teófilo


NOTA 07
Capa: João F.
Diagramação: João F. PREFÁCIO 09
Organização e negociação: GEIMF
APRESENTAÇÃO 15

O QUE OS FILÓSOFOS PENSAM SOBRE AS


MULHERES: PLATÃO E ARISTÓTELES 25

DE CULTU FEMINARUM: TERTULIANO E A


RETÓRICA DO CORPO 49
O62 O que os filósofos pensam sobre as mulheres / Organização:

Maria Luísa Ribeiro Ferreira – Teresina (PI):


EX HOMINE UNO: UMA LEITURA DA CONDIÇÃO
FEMININA EM AGOSTINHO DE HIPONA 77
Entre Trópicos Ed., 2021.
A MULHER E O FEMININO NA OBRA DE SANTO
ANSELMO 105
ISBN 9788574313658

1. Mulheres – Filosofia. 2. Papel sexual – Filosofia.


DESCARTES, AS MULHERES E A FILOSOFIA 125
I. Ferreira, Maria Luísa Ribeiro.
SPINOZA, HOBBES E A CONDIÇÃO FEMININA 147
CDD 100
HUME E A TRIVIAL DIFERENÇA 175
CDU 1

www.entretropicos.com.br
@entretropicosed
Teresina - PI - 2021
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

NOTA À PRESENTE EDIÇÃO

Com o desejo de conhecer mais sobre feminismos,


mulheres filósofas e pensamentos filosóficos que explicassem
a condição feminina de hoje, surgiu o Grupo de Estudo
Mulheres e Filosofia em 2018, a partir da demanda das alunas
do Ensino Médio e do Ensino Superior do Instituto Federal do
Piauí – Campus São João do Piauí. Percebendo que os
conteúdos previstos pelos currículos escolares eram
insuficientes (ou até mesmo omissos) e que a própria
formação acadêmica das docentes não contemplava tais
temas, decidimos colocar em prática um grupo de estudos,
com reuniões semanais para a leitura do livro A
Representação das Mulheres no Discurso dos Filósofos, de
Adília Maia Gaspar. Participaram do grupo, inicialmente,
alunas e alunos dos cursos de Ensino Médio, Licenciatura em
Ciências Biológicas, Bacharelado em Administração, e as
professoras Claudânia Santos (arte), Ângela Silva (português),
Lair Liberato (psicóloga do campus), sob a coordenação da
professora Lenise Almeida (filosofia).
Em 2020, já no contexto pandêmico e sem qualquer
vínculo institucional, o grupo se reinventou através de novas
propostas e horizontes. Atualmente estamos nas redes sociais
com o nome Grupo de Estudo Independente Mulheres e
Filosofia (GEIMF) e temos como principal objetivo articular
uma rede de apoio ao trabalho de professoras e pesquisadoras
da filosofia (graduadas e pós-graduadas) que lecionem no
Ensino Básico público e/ou privado, no Ensino Superior
privado, no Ensino Superior a distância público e/ou privado,
mestrandas, doutorandas e pós-doutorandas, ou
pesquisadoras sem vínculos institucionais. Nosso grupo
pretende acolher todas essas mulheres que têm um interesse
em comum: produzir conhecimento filosófico que contemple
a temática mulheres e filosofia, suas múltiplas abordagens e
possibilidades inter/transdisciplinares. Para isso, estamos
abertas para as diversas propostas de projetos (com ou sem
vínculo institucional) que possam ser desenvolvidos por
membros do grupo. Acreditamos que os diálogos
interdisciplinares são enriquecedores para as discussões
acerca da temática mulheres e filosofia, por isso o grupo
também é aberto à participação de mulheres que tenham
formação em outras áreas do conhecimento.
No que se refere aos projetos desenvolvidos pelo

6 7
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

grupo, contamos com um projeto intitulado Jovens filósofas PREFÁCIO


em diálogo, que tem como intuito incentivar o diálogo entre
pesquisadoras em filosofia, divulgar suas pesquisas e
oportunizar as discussões sobre o nosso contexto atual. Além
da realização desse projeto, dispomos de dois grupos de
leitura: o primeiro coordenado pela professora Lenise Em janeiro de 2021 o GEIMF deu início ao Grupo de
Almeida, no qual procedemos a leitura do livro organizado Leitura O que os filósofos pensam sobre as mulheres. Este
por Maria Luísa Ribeiro Ferreira, intitulado O que os filósofos grupo de leitura foi idealizado ainda em 2020, durante o
pensam sobre as mulheres, e o segundo grupo coordenado isolamento social imposto pela pandemia da COVID-19, por
pela professora Karla Sousa no qual estamos realizando a isso, o meio escolhido para as nossas reuniões foi o virtual.
leitura da obra O segundo sexo, Vol. I, de autoria da Simone Este formato possibilita, em detrimento do inestimável
de Beauvoir. “contato humano”, reunir mulheres e professoras de diversos
Fazem parte do nosso grupo: Dra. Alexandrina Paiva estados e municípios do extenso território brasileiro,
(IFSP), Esp. Ângela Viana (IFPI), Ma. Aryane Araújo (SEDUC- aproximando inclusive continentes em uma mesma leitura. O
PI), Esp. Claudânia Santos (IFPI), Grad. Daniely Honorato nosso objetivo inicial era compartilhar a leitura de uma
(UFGD), Ma. Esmelinda Fortes (SEMECT/Caxias-MA), Ma. importante obra, publicada originalmente no Brasil no ano de
Halanne Fontenele (IFPI), Dra. Hellen Lopes (IFMA), Ma. 2010, mas que se encontrava com exemplares esgotados e, por
Karla Sousa (UFBA), Esp. Lair Liberato (IFPI), Dra. Laiz Fraga isso, com difícil acesso ao público em geral. A nossa intuição
(UFBA), Ma. Lenise Almeida (SEMECT/Caxias-MA), Ma. original nos dizia que, mesmo que o texto não fosse acessível
Lorena Moura (Pitágoras ICF), Dra. Nayara Barros (UFSC), a todos, aquele conteúdo deveria ser compartilhado e
Dra. Priscila Cupello (UFRJ), Ma. Rosangela de Almeida debatido de alguma maneira. Após nosso primeiro encontro,
(SEMEC-SE), Ma. Solange Sobreira (IFPI), Ma. Tainah Gualter estimuladas pelo interesse dos (as) participantes, fomos
(SEMEC-PI) e Ma. Thaline Fontenele (IFAL). instigadas a buscar uma solução para que o texto pudesse se
tornar acessível ao grupo. Nos contatos que, por mera
formalidade, chamaremos aqui de burocráticos, percebemos a
possibilidade de tornar o texto acessível não apenas aos (às)
participantes do grupo de leitura coordenado por nós, mas ao
público brasileiro no geral. Embora fosse uma ideia ousada e
distante do que alçamos inicialmente, essa possibilidade só foi
cogitada graças ao acolhimento e disponibilidade de todos
que estiveram envolvidos nesse processo. Por isso, nos
dedicaremos agora aos agradecimentos que narram por si o
percurso realizado para que esta reedição se tornasse um
projeto concreto.
Agradecemos ao editor chefe da Editora Unisinos,
Carlos Gianotti, pelo pronto acolhimento e apoio para a
reedição deste livro, concedendo-nos o arquivo diagramado;
à professora organizadora da obra Maria Luísa Ribeiro
Ferreira pela gentileza, disponibilidade e cessão dos direitos
autorais além da concessão da entrevista que atualiza e amplia
esta nova edição; ao curador da presente obra, João Farias, e
aos editores da Editora Entre Trópicos, pela parceria e
generosidade para a concretização deste projeto, reeditando e

8 9
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

distribuindo gratuitamente esta obra no formato e-book; desigualdade histórico-social2. Isso demonstra que a mulher
também aos que contribuíram direta ou indiretamente nas na história da Filosofia ocidental sempre foi delegada a um
mais diversas formas para esta reedição. espaço no qual ela não podia escolher, apagando seu
A relevância e a atualidade da obra O que os filósofos protagonismo e sua voz. Podemos perceber isso, por exemplo,
pensam sobre as mulheres precisa ser compreendida a partir a partir da universalização do conceito homem a todas as
da situação das mulheres nas instituições e espaços públicos categorias de seres humanos; quando as mulheres não são
brasileiros, mas principalmente compreendida a partir do inseridas na história da Humanidade como protagonistas,
ensino de Filosofia nas universidades e escolas, que ainda é como mestres, como filósofas; quando sentimos a necessidade
constituída por uma maioria do corpo docente formado por de pensar a mulher como categoria filosófica.
homens brancos. Mesmo com um grande aumento das Dessa forma a temática que envolve este livro
mulheres nas universidades, a realidade na área de Filosofia é organizado pela professora Maria Luiza Ribeiro Ferreira, nos
ainda precária, pois o curso ainda é procurado permite pensar sobre o lugar que foi dado à mulher a partir
predominantemente por pessoas do sexo masculino. As da filosofia canônica, reconhecida e estudada nas
mulheres somam algo em torno de 36% (trinta e seis por cento) universidades, bem como, compreender de que maneira as
na graduação dos cursos de Filosofia no Brasil e esse número opressões e desigualdades foram sendo naturalizadas nas
diminui na medida em que vai avançando na carreira vozes e pensamentos dos filósofos em diferentes períodos
acadêmica1. A partir desses dados surgem alguns históricos. E, também, como isso recai sobre nossas próprias
questionamentos: Por que a baixa presença de mulheres na vidas no contexto atual, seja representado pelas baixas
carreira acadêmica de Filosofia? E que consequências essa oportunidades de trabalho, seja pelas condições sociais que
falta gera para a nossa formação? Será que a baixa presença de nos limitaram a espaços privados e dificultaram o acesso e
mulheres na academia, nas pesquisas e oportunidades não permanência a espaços públicos e institucionais.
repercutem também no conhecimento e na produção filosófica Além disso, entendemos que como professoras e
feita por mulheres? pesquisadoras da filosofia, devemos buscar uma formação
Os dados mostram a distorção do lugar da mulher contínua que nos prepare para as demandas reais sobre as
atuando na área de Filosofia e as consequências dessa
2É importante enfatizar que a condição de gênero se agrava quando pensada em
relação aos marcadores raciais e étnicos. Não há uma informação detalhada
acerca do curso de Filosofia, já que somente em 2015 foi obrigatório a declaração
da raça para o ingresso acadêmico, porém, os últimos estudos do Censo da
¹ Araújo, Carolina. Quatorze anos de desigualdade: mulheres na carreira
Educação Superior (2019) afirmam um grande aumento do ingresso nos últimos
acadêmica de Filosofia no Brasil entre 2004 e 2017. São Paulo: Cadernos de
anos da população indígena e negra em instituições públicas e privadas, mas não
Filosofia alemã (Crítica e Modernidade), vol.24, n.01, jan-jun 2019. De acordo
de forma equitativa. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
com a professora e pesquisadora Carolina Araújo (2019) existe no Brasil uma
- IPEA(2020), o estudo Ação Afirmativa e População Negra na Educação
desigualdade de gênero nos cursos de filosofia, no qual, as chances de mulheres
Superior: Acesso e Perfil Discente de Tatiana Dias Silva, “a população negra
chegarem ao topo da carreira acadêmica na área de Filosofia é 2,5 vezes menor corresponde a apenas cerca de 32% dos habitantes com nível superior, ao passo
que para os homens. Nessa pesquisa, ela pontua a existência de um déficit de que somente 9,3% dos negros completaram esse nível educacional (versus 22,9%
mulheres no corpo docente das pós-graduações de filosofia no país, comparando da população branca, com 25 anos ou mais)”(p.36). Essa equivalência é ainda
inclusive com o quantitativo de outros cursos. E apresenta: “Nossa população é menor para a população indígena, mesmo com a expansão das políticas
de maioria feminina: 51,04% (IBGE, 2010). Dos cidadãos com 25 anos ou mais afirmativas no Brasil nos últimos anos. Por essa razão, reforçamos que o
com ensino superior completo, 12,5% são mulheres, em contraste com 9,9% de apagamento no curso de Filosofia vai além das mulheres, omitindo o
homens (IBGE, 2012, p. 62). Ademais, as mulheres são maioria dos estudantes do protagonismo epistemológico de diferentes vozes e grupos sociais. Cf. em SILVA,
ensino superior, 57%, e da pós-graduação strictu sensu, 53,46% (idem, p. 97). Tatiana Dias. Ação Afirmativa e população negra na educação superior: acesso e
Portanto não há no cenário nacional geral justificativa para a baixa presença de perfil discente. Rio de Janeiro, junho de 2020. In: Texto para discussão / Instituto
mulheres em carreiras acadêmicas.”(IBGE apud Araújo, 2019, p.30). Com base de Pesquisa Econômica Aplicada.- Brasília : Rio de Janeiro : Ipea , 1990. Cf.
nisso, Araújo(2019) defende a hipótese de ser esse um padrão sexista mantido INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS
pela comunidade profissional, alertando inclusive para o agravamento dessa ANÍSIO TEIXEIRA. Sinopse Estatística da Educação Superior 2019. Brasília: Inep,
situação de desfavorecimento de gênero para os próximos 14 anos. 2020. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/basica-censo-escolar-sinopse-
sinopse>. Acesso em: 01/06/2021.

10 11
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

mulheres e a filosofia. Nossas formações acadêmicas, contribuir para a reedição, divulgação, leitura e crítica da obra
sobretudo nos currículos das graduações, não nos prepararam O que os filósofos pensam sobre as mulheres.
para essa demanda e, por isso, atentas ao mundo que nos
rodeia e às suas mudanças, devemos criar oportunidades de Ângela Viana
estudos em grupos, eventos, publicações e as mais diversas Aryane Araújo
formas de produzir/reproduzir esse conhecimento excluído Karla Sousa
das grades curriculares em todos os níveis de ensino. Laiz Fraga
Que as mulheres sempre fizeram filosofia não é uma Lenise Almeida
novidade. Vale destacar que a história da filosofia ocidental Thaline Fontenele
surgiu com Sócrates e ele teve como professora duas
mulheres: Diotima e Aspásia. Em uma pesquisa mais
aprofundada, poderíamos enumerar diversas filósofas ao
longo da história, mas o que nos inquieta, desde a primeira
formação do grupo, é o fato de a maioria dessas mulheres
terem sido apagadas e silenciadas na história da filosofia
ocidental. É inegável que é uma tarefa árdua e vagarosa
restituir e dar visibilidade a essas vozes das filósofas do
passado, mas isso não quer dizer que devemos nos eximir
dessa tarefa; pelo contrário, precisamos cooperar uma com a
outra em uma escala internacional. Sabemos que é impossível
modificar a invisibilidade que essas mulheres tiveram no seu
tempo. O que está em nosso encargo é fazermos com que
nossa presença não seja ocultada no presente e no futuro, e
lutarmos para que sejamos respeitadas, em qualquer âmbito.
Em consequência disso surgiu a necessidade de nos últimos
anos a mulher pleitear o seu lugar no campo de estudos
filosóficos. Apesar dessa enorme e persistente desigualdade
de gênero na academia, tanto simbólica, quanto material, no
último ano, em meio a uma pandemia ocasionada pelo vírus
Sars-Cov-2, redes e grupos de estudos formados por
pesquisadoras e professoras vindos de diferentes espaços
públicos e institucionais proporcionaram a divulgação de
cursos e trabalhos produzidos por mulheres. O movimento se
fortaleceu no que pode ser considerado uma nova era em
termos de estudo sobre gênero, feminismos e, principalmente,
mulheres à frente da produção de conhecimento filosófico.
Nesse contexto é que o GEIMF tem sido construído,
esperando que nossos trabalhos sejam vistos, lidos e que seus
resultados possam contribuir para modificar a estrutura da
sociedade e, quem sabe, proporcionar a construção de novas
perspectivas pensadas por grupos sociais que foram
delegados a um lugar inferior dentro do pensamento e da
história da Filosofia. Dessa forma, temos a satisfação de

12 13
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

APRESENTAÇÃO
MARIA LUÍSA RIBEIRO FERREIRA
(Universidade de Lisboa)

Um projeto

Os filósofos e as mulheres é o primeiro de um


conjunto de quatro livros que pretendem debruçar-se
sobre o papel/lugar da mulher na filosofia ocidental.
Trata-se de uma investigação interdisciplinar que
decorreu de 1997 a 2003, no Centro de Filosofia da
Universidade de Lisboa, sob a designação geral de
“Uma filosofia no feminino”. Dela participaram cerca
de vinte e cinco colaboradoras e colaboradores
permanentes que, com alguma regularidade, se
encontraram para partilhar informação, para discutir
(muito) as teses mais ou menos polêmicas que
acaloradamente defendiam, para sobretudo descobrir
algo que no início (sobretudo para os mais céticos)
parecia inexistente e que progressivamente foi
ganhando consistência – a presença das mulheres na
filosofia.
O trabalho foi crescendo, liderado por um
núcleo de base. Assim, o dinamismo do processo foi
assegurado por quatro pesquisadoras: eu própria,
professora na Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa; Fernanda Henriques, da Universidade de
Évora; Maria José Vaz Pinto, da Universidade Nova
de Lisboa; e Maria Antónia Pacheco, ligada ao
GAVE (Gabinete de Avaliação do Ministério da
Educação). A partir desse “núcleo duro”, que
assegurou o andamento da investigação e que
simultaneamente tomou parte ativa nela, reuniu-se
um leque mais amplo de colaboradores, dos quais o
maior número está ligado à filosofia mas que inclui
gente de outras áreas, como a sociologia, a
antropologia, a literatura, a história. O objetivo era
levantar questões, equacionar problemas, cruzar
diferentes perspectivas. A proveniência dos
pesquisadores foi diversa, congregando estudiosos
de várias instituições, motivados pelos mesmos
intuitos: questionar o feminino nas suas diferentes
expressões, numa verdadeira atitude de
interdisciplinaridade, tendo a filosofia como
perspectiva dominante. Os colaboradores do

14 15
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

presente volume pertencem à Faculdade de Letras caráter histórico, sociológico, literário, legal, etc.2
da Universidade de Lisboa, da qual são professores
e/ou pesquisadores, à Universidade Nova de
Lisboa e à Universidade de Évora. Nos volumes que Um livro
se seguem o grupo alargou-se, integrando pessoas
de outras instituições, bem como colaboradores
estrangeiros. A temática “Os filósofos e as mulheres” surgiu
A ideia de trabalhar uma filosofia no feminino como ponto de partida. Ao querer justificar a
partiu de uma provocação/desafio. Instada a pergunta acima referida – por que é que as mulheres
participar de um ciclo de conferências sobre a filosofia não fizeram/não fazem filosofia? –, verificamos que
na rádio, coube-me responder a uma questão os próprios filósofos são responsáveis por sua
capciosa: por que será que não há mulheres filósofas? formulação e que a inverdade nela contida muito se
Por que é que as mulheres não fizeram (ou não fazem) deve aos “cultores da verdade”. Assim, o presente
filosofia? Confrontada com esse problema e lançada estudo pretende explicitar de modo que como alguns
num tema que até então não me interessara filósofos ocidentais pensaram a mulher, que
particularmente, verifiquei, em primeiro lugar, a conceito tiveram da natureza feminina e até que
inverdade da pergunta. Trata-se de uma interrogação ponto esse conceito se integra de maneira
cuja falsidade facilmente se demonstra em relação aos consistente nos sistemas globais que construíram.
dias de hoje, mas que também pode ser verificada no Procuramos, nessa tentativa inicial, reorientar para a
tocante a outras épocas. Pela investigação que então temática da mulher investigações já realizadas.
desenvolvi, tomei consciência de que, no que respeita Assim, aos colaboradores do presente volume foi
a essa temática, reinava a maior das ignorâncias e que colocado o desafio de repensarem os “seus” filósofos a
urgia tornar conhecidas certas vozes partir de uma chave para eles pouco usual. E as
inexplicavelmente silenciadas. Essa foi uma das surpresas foram grandes, pois, apesar de
finalidades do projeto. A partir dela desenhou-se uma especialistas, poucos conheciam o que seus autores
proposta de trabalho em várias frentes. Assim, a tinham escrito sobre a condição feminina. Como um
investigação processou-se em três linhas, podendo grupo de amigos que se encontram e partilham
cada uma delas servir de resposta à questão saberes tentamos, sem qualquer pretensão de
formulada inicialmente. exaustividade, recolocar problemas e rever
A primeira parte da investigação, tratada no soluções. Começamos por nos interrogar sobre a
presente livro, diz respeito ao modo como os posição de cada um desses pensadores acerca da
filósofos representaram as mulheres. Uma segunda mulher. Numa primeira incursão, a resposta era
frente procurou divulgar textos de filósofas, do quase sempre negativa – ou não tinham pensado
passado e do presente, mostrando que elas nisso, ou o que pensavam era quer secundário, quer
realmente existiram e continuam a existir, irrelevante, quer banal. Por vezes, as teses que
manifestando-se de variadas formas, desde a carta defendiam sobre a natureza humana e a condição
ao romance, desde o ensaio ao tratado1. É feminina contradiziam mesmo o sistema global que
importante que esses textos venham a público e que tinham edificado. Num segundo momento, a
a presença da mulher na filosofia ocidental seja situação alterou-se. Em primeiro lugar, porque a
relevada. A terceira linha investigativa debruça-se omissão ou a negatividade começavam a fazer
sobre a própria condição feminina, analisando em sentido; ou seja, verificamos que cabia aos próprios
termos filosóficos temáticas já clássicas dos estudos filósofos a responsabilidade relativa à divulgação de
sobre mulheres, como, por exemplo, a relação determinados estereótipos sobre a mulher. Depois,
sexo/gênero, sexo/natureza, ou mesmo a própria porque a própria negatividade causava problema:
especificidade de um pensamento feminino: Será como aceitar que indivíduos inovadores, ou
que o fato de ser mulher e de ser filósofa dá um defensores dos oprimidos, ou combatentes dos
cunho especial aos textos produzidos? Sendo a preconceitos, no que respeita às mulheres fizessem
filosofia um exercício intelectual que exige certos coro com a época, usassem os mesmos slogans e
requisitos, aceitaremos nela a determinação do partilhassem a mesma ideologia? A questão
sexo? Trata-se aqui da vertente mais orientadora passava agora a ser esta: como explicar
interdisciplinar, englobando investigações de que os filósofos tivessem silenciado a mulher? Como

16 17
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

compatibilizar essa omissão com suas outras teses, em ameaça de simplificação, de anacronismo ou mesmo de
que defendiam a liberdade e os direitos humanos? ridículo. Tomando consciência do constante perigo de
Um pequeno livro de Nancy Tuana3 alertou- trivialização e deturpação, a autora optou por enfatizar
nos para o problema da não neutralidade sexual dos nesses filósofos o modo como encararam o binômio
textos filosóficos, quer por parte de quem os escreve, igualdade/diferença, integrando-o nas preocupações
quer por parte de quem os lê. Para essa professora da relevantes de ambos, obviamente outras. Evitando
Universidade do Texas, a mulher tem dificuldade de questões anacrônicas como, por exemplo, a do
identificar-se com a maior parte dos textos da feminismo ou antifeminismo dos filósofos em causa,
tradição filosófica, na medida em que explícita ou procurou antes relevar as contribuições por eles
implicitamente neles aparece excluída. A proposta prestadas à representação da mulher, nomeadamente a
de Tuana é a de uma releitura da história da defesa platônica de um estatuto cívico para as guardiãs
filosofia a partir da situação da mulher na da cidade, baseada na igualdade das almas masculina e
economia dos diferentes sistemas. Segundo ela, o feminina, e a relegação das mulheres ao foro do privado,
estatuto atribuído à natureza feminina não pode ser empreendida pelo estagirita com base no
considerado um pormenor irrelevante no reconhecimento de diferenças biológicas e psíquicas.
pensamento de um filósofo. Há de se verificar a Se a abordagem a esses dois pensadores
consistência interna das várias temáticas abordadas, gregos se manteve numa prudente neutralidade, a
verificando até que ponto as diferentes reflexões se perspectiva que presidiu aos artigos de Paula Oliveira
compatibilizam mutuamente. E o problema da e Silva sobre Tertuliano e Agostinho de Hipona é
mulher aparece quase sempre como um espinho, valorativa, sendo esses autores apreciados em função
pela reformulação que obriga a fazer no que da fidelidade (ou infidelidade) que mantêm à
respeita à coerência global do pensamento de certos antropologia bíblica que lhes serve de referência. Em
autores. “De Cultu Feminarum: uma versão do feminino pela
Motivada pela perspectiva de Tuana, a retórica do corpo”, analisa-se o escrito de Tertuliano,
investigação prosseguiu essencialmente em duas profundamente marcado pelo sentido da
linhas: reconstituir o modo como certos filósofos proximidade de um final dos tempos. A mulher é
pensaram as mulheres e perceber por que o fizeram. associada ao princípio da materialidade e da sedução,
Tratava-se de evitar a fácil acusação de misoginia e de não sendo reflexo do divino, mas sim espelho do
procurar, seguindo o conceito spinozano do Tratado homem. A imagem do feminino apresenta-se, assim,
Político, ter “cuidado em não ridicularizar as ações deformada, considerando-a Paula O. Silva
dos homens [nesse caso, o pensamento dos incompatível com o esplendor da Criação. Em “Ex
filósofos], não as lamentar, não as detestar, mas homine uno: uma leitura da condição feminina em
adquirir delas verdadeiro conhecimento”. (T. P. I, § Agostinho de Hipona”, a mesma autora analisa o
4). comentário histórico literal que faz Agostinho ao
Fizeram-se algumas paragens, ao sabor dos relato bíblico das origens (De Genesis ad Litteram, libri
interesses do grupo, bem como das ofertas de duodecim). Nele o filósofo estabelece os elementos de
colaboração. A primeira é justamente dedicada a sua metafísica da criação, à luz dos quais concebe a
Platão e Aristóteles. De fato, neles encontramos igual dignidade do ser humano, varão e mulher, ante
muitas das teses que enformam o inconsciente um mesmo princípio criador. O domínio do varão
filosófico da filosofia ocidental no que respeita à sobre a mulher corresponde a uma degradação da
condição feminina. No artigo “O que os filósofos realidade, não sendo nem fundamental, nem
pensam sobre as mulheres: Platão e Aristóteles”, definitivo, podendo superar-se no tempo pela posse
Maria José Vaz Pinto analisa o pensamento desses da sabedoria. Para Agostinho, o acesso à sabedoria
“pais fundadores”, respondendo ao desafio que é reler não supõe qualquer discriminação, indicando
textos clássicos de um modo rigoroso, simultaneamente mesmo a figura de uma mulher, Mônica, como
atento à fidelidade e à inovação. No dizer da autora, “ler paradigma da realização desse ideal.
Platão e Aristóteles à luz de uma compreensão A Idade Média continua a ser um ponto de
adequada, ou seja, de uma hermenêutica correta, referência em “A mulher e o feminino na obra de Santo
significa o que diz Platão em Platão e o que significa o Anselmo”, de Maria Leonor Xavier. Nesse artigo
que diz Aristóteles em Aristóteles”, é um trabalho difícil, confrontam-se algumas teses suscetíveis de favorecer
pois se constrói numa convivência com a permanente o predomínio masculino com outras que militam a

18 19
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

favor de uma paridade entre os sexos. Se a perspectiva comportamentos sexuais femininos e masculinos,
anselmiana de considerar que no pecado original Hume não só recusa todo e qualquer princípio
Adão foi mais culpado – porque mais responsável – transcendente, como também afasta a possibilidade
pode ser entendida como uma secundarização da de uma natureza humana dual. A castidade e a
mulher, a tônica dominante é de franca modéstia são prezadas nas mulheres e não nos
complementaridade, equivalendo-se as virtudes homens apenas porque respondem às exigências da
femininas e masculinas, exemplificadas vida em sociedade. Desse modo, os privilégios
respectivamente na “pietas” e na “justitia”. masculinos da “sociedade de corte” são
Os três filósofos seiscentistas que este desmistificados, explicando-se a sua existência quer
volume contempla foram por mim trabalhados, por critérios pragmáticos, quer por convenções
num aproveitamento de investigações já feitas. Em sociais, quer pela simples imaginação.
“Spinoza, Hobbes e a condição feminina”, tento Em “Kant e o feminismo”, Pedro Alves
mostrar como cada um desses pensadores justificou interroga Kant não a propósito de uma “representação
diferentemente um mesmo posicionamento frente kantiana” qualquer do feminino, mas antes a respeito
às mulheres, interditando-lhes a esfera política.
Embora a condição feminina seja um tema de pouco de um modo kantiano de pensar a questão do
peso na economia dos sistemas em causa, sua análise feminino. No desenvolvimento mostra como, na
leva a um aprofundamento das temáticas éticas e doutrina kantiana sobre a essência do político, a
políticas, questionando a consistência destas com as questão do feminino pode ser circunscrita e tratada por
teses restantes. Inseridos num contexto alheio às referência aos conceitos de liberdade e de dominação.
questões do feminino, Hobbes e Spinoza tomaram Por fim, visa a mostrar como, no horizonte kantiano, a
posições paradigmáticas relativamente a problemas questão do feminino não investe valores
que mais tarde seriam reperspectivados, privativamente “femininos”, mas se subsume em
nomeadamente no que concerne à igualdade e à
diferença, à natureza e à cultura, ao público e ao imperativos de humanidade, reivindicáveis por todo o
privado. gênero humano, dentro de um programa de progresso
Em “Descartes, as mulheres e a filosofia”, civilizacional.
pretendo mostrar a presença das mulheres na obra do Em “Rousseau e a exclusão das mulheres de
pensador francês. As três figuras femininas que com uma cidadania plena”, Fernanda Henriques
ele mantiveram correspondência – Sofia de Hanôver, considera esse filósofo um dos grandes responsáveis
Cristina da Suécia e Elisabeth da Boêmia – são pelas dificuldades sentidas pelas mulheres no que
reveladoras não só de um Descartes permeável à respeita ao reconhecimento da sua autonomia e
galanteria, mas de alguém que leva a sério uma liberdade. As teses rousseaunianas sobre os direitos
maneira feminina de levantar questões. É do homem e do cidadão são contrastadas com a
particularmente na correspondência com Elisabeth secundarização por ele atribuída à mulher,
que se torna patente a presença da mulher na gênese circunscrevendo-a aos problemas domésticos e
do pensamento cartesiano. De fato, é devido às afastando-a definitivamente de uma participação
insistências da Eleitora Palatina que o filósofo francês ativa na cidade. A análise hermenêutica de textos do
repensa certos conceitos fundamentais, que burila Émile nas suas diferentes versões torna patente a
algumas teses e que direciona seus interesses para a identificação de feminilidade e imprecisão,
relação corpo/alma, diluindodicotomias. aparecendo a análise da personagem Sophie como
O tema das virtudes femininas é central no negativamente representativa, porque obscura, da
artigo de João Paulo Monteiro “Hume e a trivial condição feminina. Como diz a autora, é uma
diferença”. Tomando como referência o texto do análise que torna patente a “influência direta e
filósofo escocês “Sobre a castidade e a modéstia” subterrânea que as ideias pedagógicas de Rousseau
(Tratado da Natureza Humana, livro III, ii), João Paulo sobre as mulheres tiveram na definição do modelo
Monteiro procede primeiro a um levantamento dos de educação feminina nos alvores da sociedade
temas dominantes da moral humana, selecionando moderna”.
depois os aspectos concernentes à mulher. Em “Lévinas e a alteridade no feminino”,
Procurando encontrar uma explicação para a Cristina Beckert reflete sobre os modos lévinasianos
diferença que a sociedade estabelece entre os de dizer o feminino, realçando três metáforas

20 21
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

enfocadas por esse filósofo: a morada, a volúpia e a (muitas) lacunas funcionassem como estímulo ao
maternidade. Sua intenção, ao analisá-las, é prosseguimento da investigação. A que então
detectar como cada uma articula o mesmo e o outro, empreendemos só foi possível devido a uma
e como sobre elas se aprofunda progressivamente a convergência de esforços: é tributária, em primeiro
identificação entre feminino e alteridade. O artigo lugar, da boa vontade, interesse e empenho de todos os
termina confrontando o pensamento do autor com que nela colaboraram. Deve-se sobretudo às condições
certas críticas feministas contemporâneas, de trabalho proporcionadas pelo Centro de Filosofia da
concretamente as de Luce lrigaray, Catherine Universidade de Lisboa e, muito particularmente, ao
Chalier e Tina Chanter. prof. Cerqueira Gonçalves, seu diretor, que sempre
Com “A queda de Adão: o papel da mulher no reconheceu e estimulou a investigação sobre “uma
'ceticismo ético' de Russell”, Teresa Ximenez pretende filosofia no feminino”. Não obstante ter sido ele o autor
dar a conhecer algumas linhas gerais do pensamento da pergunta deliberadamente provocatória: “Por que é
russelliano sobre a mulher e o seu papel na que não há mulheres filósofas?”
comunidade. Esse pensamento brota do interior de
uma ética social inovadoramente proposta para se
contrapor às morais tradicionais, em que instituições Notas
como o casamento foram determinantes na formação
de uma ética sexual que reduziu a mulher a um plano V. nessa linha de investigação Maria Luísa Ribeiro Ferreira,
inferior. O texto evidencia o papel reconhecido por Também há mulheres filósofas, Lisboa, Caminho, 2001.
Russell à mulher e à sua luta pela liberdade na V. os volumes já publicados por Maria Luísa Ribeiro Ferreira,
passagem de uma ética cristã para uma nova ética, Pensar no feminino, Lisboa, Colibri, 2002 e As teias que as mulheres
mais livre e audaciosa. tecem , Lisboa, Colibri, 2003.
Nancy Tuana, Woman and the History of Philosophy , New York,
Não é por acaso que o presente volume se Paragon House, 1992.
encerra com um artigo sobre Michel Foucault. Como
refere José Arêdes em “Foucault e a questão da
identidade”, a mulher não ocupou grande lugar
nem na vida, nem na obra do filósofo francês.
Contudo, seria grave lacuna ignorá-lo pelo impacto
que o pensamento foucaultiano teve em certos
setores dos movimentos feministas
contemporâneos. No artigo em causa, José A.
propõe-se pensar a questão da identidade à luz das
categorias foucaulteanas da disciplina e da norma,
pedras-de-toque de Vigiar e punir, considerando que
a identidade moderna foi construída no quadro dos
jogos entre sexo, verdade e poder. A
conceitualização de Foucault é aplicada à análise do
texto autobiográfico de um/uma hermafrodita
francesa do séc. XIX, publicado sob o título Adelaide
Herculine Barbin, dite Alexina B. Ao analisar a perspectiva
de Foucault sobre a identidade, J. A. torna patentes
algumas insuficiências dessa perspectiva, propondo-
nos um modelo mais alargado. Está traçado, pois, o
caminho para o questionamento de uma “natureza
feminina”, tema que foi desenvolvido noutros
volumes.
Finda a apresentação desses doze filósofos,
confirma-se algo já mencionado – o critério que presidiu
à escolha dos autores não foi de modo algum o da
exaustividade nem o da sistematicidade, mas sim o do
aproveitamento pragmático. Desejaríamos que as

22 23
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

O QUE OS FILÓSOFOS PENSAM SOBRE AS


MULHERES:
PLATÃO E ARISTÓTELES
MARIA JOSÉ VAZ PINTO
(Universidade Nova de Lisboa)

1.A leitura dos textos antigos à luz das interpelações


feministas contemporâneas

A questão preliminar com que nos deparamos


constitui uma complexa teia de problemas
hermenêuticos. Se é certo que os estudos relativos às
mulheres e à sua condição na sociedade se
desenvolveram com espetacular exuberância a partir
da década de 1970, sem parar de crescer1, a dinâmica
desse interesse mostra-se avassaladora em diversos
planos, arrastando consigo a transmutação dos temas,
dos métodos e das linguagens. Poder-se-ão apontar,
antes de mais nada, o incremento das próprias
pesquisas ditas “feministas”, marcadamente
interdisciplinares, e o manancial de documentação em
que tais investigações se corporizam. Mas o que
sobressai é a interrogação perene - qual a natureza da
mulher e qual a sua função? – e o enquadramento
dessa interrogação numa problemática
contemporânea, a nossa, que de certa forma a
transubstancia.
Assumimos como pressuposto fundamental
na abordagem dessas temáticas uma dupla convicção:
em primeiro lugar, que, numa medida muito
matizada e muito rica, “toda verdade é filha do seu
tempo”2; em segundo lugar, que o desafio que se nos
levanta é um desafio de lucidez e de reexame dos
parâmetros, mais ou menos rígidos, do que se nos
tornou “habitual”3.
Na tarefa que nos propomos, a de reconstituir a
representação das mulheres em Platão e em Aristóteles,
tentar ver claro é um pouco como que “perder o pé”,
sendo-nos exigida uma releitura que envolve
certamente um imperativo de “desconstrução”. Parece-
nos particularmente interessante a referida abordagem
dos textos clássicos, tendo como guião um questionário
específico determinado pelas preocupações atuais.
Julgamos, no entanto, que a interpelação das fontes não

24 25
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

pode, de forma alguma, ser levada a cabo à margem do relativa às mulheres se pode concretizar em múltiplas
que se nos apresenta como requisito imprescindível: o de modalidades. A fim de sistematizar os itens nos quais
ler Platão e Aristóteles à luz de uma compreensão os vários modos de ver se congregam, será vantajoso
adequada, ou seja, do que significa o que diz Platão em nos atermos ao esquema proposto por Prudence Allen
Platão e do que significa o que diz Aristóteles em que distingue, na especulação dos pensadores mais
Aristóteles. antigos, quatro grupos centrais de questões: o estudo
Obviamente, apelar para uma “hermenêutica do “masculino” e do “feminino” no contexto da
correta”, num caso e noutro, está longe de ser ponto oposição de contrários; os problemas relativos à
pacífico. Em todas as eventualidades, impõe-se optar geração e à criação dos filhos; o acesso da mulher ao
por uma proposta de leitura e justificá-la. Que Platão e saber; o estatuto da mulher no que toca à realização
Aristóteles se possam situar no campo dos “feministas” moral9. Obviamente que essas matérias remetem a
ou dos “antifeministas” – para lá de nos suscitar, disciplinas diversas, de caráter predominantemente
porventura, o sorriso pelo anacronismo manifesto dos filosófico ou de cunho mais científico. Enquanto o
epítetos – envolve, concomitantemente, a conveniência concernente à reprodução se insere no domínio das
de esclarecer o que se entende por tais designações. ciências da natureza, os outros temas são de teor
Qual a caracterização operacional dos filosófico: o estatuto dos opostos reporta-se à
conceitos em causa? Como se equacionam os temas metafísica, e a situação da mulher, quanto ao
relativos aos interesses feministas no que respeita conhecimento e quanto à virtude, prende-se
aos antigos, nomeadamente a Platãoe a Aristóteles? respectivamente à epistemologia e à ética10.
Gregory Vlastos, no ensaio intitulado Mas as dificuldades não ficam resolvidas com a
expressivamente “Was Plato a Feminist?”4, evoca eventual ordenação e categorização dos temas. Na
algumas definições do que se pode entender por descrição e na avaliação dos traços que se conectam ao
“feminismo”, estabelecidas num domínio muito feminino, representado numericamente por “metade do
genérico e assaz consensual: “a advocacia das gênero humano”11, deparamo-nos com obstáculos de
reivindicações e dos direitos das mulheres” (OED, 1895) índole diversificada: as fontes, além de escassas, são
e, nos termos da Emenda à Constituição dos EUA., o esmagadoramente masculinas; os materiais de que
princípio segundo o qual “a igualdade dos direitos não dispomos são elaborados, conservados e triados em
pode ser negada ou reduzida tendo em conta o sexo”5. função de um “cânone” construído culturalmente; na
Mas, num plano mais estrito, resulta difícil reduzir a padronização do que se considera plenamente humano,
uma bitola comum os diversos “feminismos”, pelo que avulta o modelo de “razão” assente na equiparação entre
se tem de admitir que há maneiras muito distintas de humanidade, racionalidade e masculinidade12.
alinhar no dito “feminismo”. Julie Ward diferencia, nas Com efeito, a caracterização da natureza
colaborações reunidas para a obra antes citada6, duas feminina é feita de acordo com critérios aferidos a
orientações principais: os estudos que se caracterizam partir de um cânone instituído com base em
pela dimensão descritiva, visando a reconstituir, elementos biológicos e psicológicos constitutivos e em
mediante o exame rigoroso dos textos primários em seu traços comportamentais decorrentes de determinados
próprio contexto, “os argumentos e as passagens hábitos e de práticas sociais consolidadas em moldes
concernentes às mulheres ou ao gênero"7; e os estudos diversificados. O que, no entanto, avulta é a
que manifestam uma dimensão mais avaliativa, impossibilidade de abrir mão de um ideal de
buscando aqueles aspectos das concepções antigas “humanidade” em que os conceitos antropológicos
suscetíveis de encontrar eco nos atuais feministas. Se fulcrais, nomeadamente os de razão e de justiça,
na primeira vertente enfocam-se principalmente as associam-se intimamente a um modelo masculino13.
doutrinas que tratam da natureza e das capacidades Uma constatação desse tipo acarreta repercussões em
das mulheres, na segunda perspectiva relevam-se cadeia no domínio hermenêutico: o cânone do que se
tópicos particulares de estreita ligação com as entende por filosofia, representado por um conjunto
preocupações feministas de maior impacto em de obras masculinas tidas como “clássicas”, resultaria,
estudos filosóficos recentes, tais como a relação da afinal, do que foi designado por “uma história seletiva
razão com as emoções, aspectos específicos da ética, a da tradição”14. A modificação desse estado de coisas
ligação entre o logos e a dinâmica do desejo, etc.8 teria de passar pelo recurso a outras fontes, pela
De certa maneira, o que se pretende sublinhar recuperação de textos alternativos e por um exame
é o fato irrecusável de que o empenho na reflexão atento e discriminativo “das razões pelas quais tais

26 27
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

vozes foram silenciadas”15. primeiro, as diferenças corpóreas são menosprezadas,


Ao recorrermos a uma linguagem desse tipo, uma vez que toda a sua doutrina se centra na
entramos desde logo numa esfera que resultaria relevância da alma18.
“bárbara” aos pensadores que nos propomos Certamente há linhas gerais de
estudar. Pois quê? A razão enquanto tal caracteriza- enquadramento que ressaltam desde o início o
se em termos de “gênero”? Admite-se uma clivagem conflito entre o modo de ver dos antigos e as nossas
essencial entre homem e mulher, suscetível de óticas de cidadãs/cidadãos em trânsito para o
dicotomizar sua definição respectiva? terceiro milênio. Constituem como que os
Foi nossa intenção, nessas observações pressupostos da inteligibilidade das próprias
introdutórias, alertar para a delicadeza da problemática perguntas, condicionantes da possibilidade de
abordada, sublinhando, por um lado, a exigência de significação destas. O que pretendemos tratar são as
objetividade que deve ter todo estudo enquanto tal e semelhanças e as diferenças entre homem e mulher e
reconhecendo, por outro lado, o cunho normativo dos discutir a questão da sua identidade de natureza e
ideais almejados. Aceitamos, não obstante, o desafio de de função. Mas o que nos parece crucial analisar é o
rever nossas ideias feitas. Por conseguinte, julgamos modo como o binômio igualdade/ desigualdade se
pertinente e decisiva a referida “releitura” de Platão e de põe para Platão e para Aristóteles. Para nós,
Aristóteles, o que tencionaremos fazer adiante. herdeiros das conquistas liberais, a negação da
igualdade e das liberdades individuais resulta-nos
atentatória da mais elementar dignidade humana;
2.Pressupostos da leitura de Platão e de Aristóteles: na ordem de prioridades e de preocupações dos
uma determinada hermenêutica relativamente a Platão e pensadores antigos, as questões significativas eram
outras. O que cobrava maior peso seria uma
a Aristóteles problemática única, a da essência e do fim do
homem, formulável porventura numa dupla face:
Na sequência do anteriormente dito, por um lado, a questão da aretê, da excelência
consideramos inadequado levar a cabo a leitura humana, e o que isso implica no plano cognitivo e no
isolada desse ou daquele texto filosófico, sem ter em plano ético, no que toca à razão e no que toca à
conta o plano global que lhe dá significado. justiça; por outro lado, a questão da eudaimonia, da
Assim, Platão e Aristóteles nos são apresentados, felicidade individual e coletiva, e o que isso implica
grosso modo, como paladinos de posições paradigmáticas no plano da conquista da unidade, na articulação
no que respeita à natureza e ao estatuto das mulheres, funcional do uno e do múltiplo. Os problemas
evocando-se determinadas passagens das respectivas equacionavam-se em termos de oposição, no jogo
obras, devidamente localizadas e tornadas marcos de sempre presente da dialética de eris e de eros, no
referência para os interessados nesses temas16. Platão quadro conceitual onipresente da relação entre physis
seria um “feminista” avant la lettre ao afirmar, no que e nomos.
respeita às mulheres, uma identidade de natureza com Propomo-nos fazer a releitura dos textos
os homens e ao reivindicar para as guardiãs igual feministas/antifeministas de Platão e de Aristóteles,
participação nas tarefas cívicas, o que impunha e procurando lê-los com a fidelidade possível e sem
legitimava a igualdade na educação. Aristóteles menosprezo dos princípios que assumimos como
representaria o “antifeminismo”, argumentando, a garantidores dessa mesma fidelidade. Nosso único
partir das diferenças biológicas das mulheres e de sua objetivo, tornamos a frisar, é o de restabelecer o
contribuição desigual para a geração dos filhos, o modo como nos legaram uma determinada
estatuto de inferioridade do gênero feminino, no plano representação das mulheres.
cognitivo e no plano ético-político. Ele sustentaria ser a
mulher uma versão deficiente de uma certa
humanidade que apenas alcançaria realização plena no 3.A natureza, o estatuto e a função das mulheres
plano do masculino. Assim, Platão e Aristóteles
protagonizam duas metodologias diversas: na
perspectiva do segundo, “as diferenças biológicas são a 3.1. Em Platão
causa fundamental das variações nas naturezas e
capacidades das mulheres”17; na perspectiva do

28 29
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

À pergunta que encabeça o estudo antes de conflito, sugerindo a organicidade de um todo


referido “Was Plato a Feminist?”19, Vlastos responde, regido por uma normatividade hierárquica,
tendo em conta as devidas reservas quanto ao uso segundo a qual o inferior tem de obedecer ao
anacrônico de tal conceito, “sim” e “não”, sustentando superior25.
com vigor a coerência filosófica das posições Quer ao nível da alma, quer ao nível da
aparentemente incoerentes de Platão. Importa estrutura da cidade ideal, o que sobressai é a
distinguir, antes de tudo, o que é dito no plano fáctico manifestação flagrante da desigualdade, é a
da realidade tal como ela é dada e o que se afirma no experiência das diferenças. E o que pode constituir
plano ideal de uma polis “construída” em logoi20. Por um matéria problemática é a articulação das
lado, nas suas apreciações das mulheres que integram desigualdades com uma certa forma de igualdade, a
a sociedade do seu tempo e que fazem parte do compossibilidade das dessemelhanças e a afirmação
quotidiano ateniense, Platão não se desvia dos juízos da identidade que define o ser humano como tal.
mais difundidos nessa época: as mulheres são Noutros termos, o que se pretende fazer ver é que a
diferentes dos homens, são inferiores aos homens, e questão da igualdade/desigualdade não se põe
isso justifica sua situação de subordinação. Essa é para Platão nos mesmos moldes que para nós.
também a crença subjacente ao mito da criação do Para entender melhor o que está em xeque,
homem apresentado no Timeu: primeiramente, foi podemos retomar as alegadas incongruências de
criada a raça humana, constituída apenas por seres Platão. O modo como representa a mulher no livro V
masculinos, e os que se comportaram com menor da República não corresponde à caracterização das
correção foram submetidos a um segundo mulheres suas contemporâneas feita noutras
nascimento, sob a forma de seres femininos21. Por passagens da mesma obra26; ademais, o que defende
outro lado, na descrição que no livro V da República para as guardiãs está vedado às mulheres-escravas e
faz das guardiãs, com vistas a uma cidade tão justa e às que pertencem à classe produtiva. A desigualdade
tão feliz quanto possível22, avança com uma proposta impera entre as mulheres, como a desigualdade rege
revolucionária: dada a identidade de natureza entre o que é próprio das diversas componentes da alma
homens e mulheres no que respeita à alma, defende humana e o que é próprio das classes que compõem a
que a algumas mulheres, as melhores dentre as cidade-estado. Cada elemento tem uma função
guardiãs, seja dada partilha nas tarefas cívicas, o que peculiar, a que corresponde um estatuto também
envolve, concomitantemente, o acesso igualitário a peculiar. Com efeito, o que se destaca numa das
uma educação adequada. Para explicitar o que tem formulações da justiça é isso mesmo: cada um fazer o
de inédito e de complexo uma proposta desse que deve, cada um receber o que lhe pertence27. Torna-
gênero, precisamos deter-nos em alguns aspectos se patente, a partir daí, uma certa categoria de
que se prendem a tal promoção, e esse exame só igualdade que podemos designar isonomia e que é algo
adquire nexo tendo presente toda a filosofia de familiar ao povo grego, no percurso conducente à
Platão23. democracia. Mas a igualdade perante a lei ou a
Admitindo o dualismo de corpo e alma como igualdade assegurada pela lei não anulam outras
constitutivo do indivíduo humano, o que desigualdades, julgadas naturais por Platão, por
caracteriza o homem, em si mesmo, é a alma, de Aristóteles e por muitos outros sábios ilustres que
sorte que as diferenças biológicas não alteram a compartilhavam seu universo espiritual28. No plano
identidade essencial do masculino e do feminino: o da physis, existem incontestáveis diferenças. Não
“eu” autêntico de cada ser humano é a alma, e esta, obstante, se se atende ao horizonte de referência de
sendo espiritual, não tem sexo. Numa primeira Platão, o que mais conta não são as desigualdades
aproximação, a unidade e simplicidade da alma físicas, biológicas, pois a physis do anthrôpos em sentido
justificam que o processo de conquista do forte é a psyché que está para além dessas
conhecimento e da virtude se reconduza a uma particularidades: a perfeita realização da identidade
espécie de libertação24 relativamente às influências pessoal define-se no domínio da aretê. O que importa
negativas que são da ordem do sensível. Numa salientar é a disparidade de funções das partes da
segunda aproximação, o caráter tripartido da alma alma e das classes da polis e o princípio segundo o qual
humana, fixado em paralelismo com a estrutura cada elemento deve buscar sua virtude específica: as
ampliada da tripartição das classes sociais da polis, desigualdades são inerentes à harmonia que comanda
permite uma melhor compreensão dos mecanismos o paradigma da cidade justa e, nessa medida, são

30 31
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

encaradas como condições necessárias à realização afirmações antes evocadas, e as aporias detectadas são
das metas buscadas. Aí ressalta a vinculação claramente debatidas no diálogo em curso:
constitutiva entre a areté dos cidadãos e a estrutura “Concordamos que uma natureza distinta carece de
objetiva da polis, possibilitante de uma vida feliz29. função distinta, e que a da mulher é diferente da do
Tentaremos ver em que termos isso se aplica homem. Porém, agora afirmamos que naturezas
ao que Platão nos diz acerca das mulheres, no texto diversas devem executar as mesmas tarefas”35. Como
famoso que nos propomos reler. conciliar as aparentes contradições e superar o
Num primeiro momento, e fazendo uso da impasse? Impõe-se analisar o que se disse,
metáfora dos cães de guarda, machos ou fêmeas que, “distinguindo os diferentes aspectos” e assim
independentemente do sexo, exercem idênticas esclarecer em que sentido os indivíduos de sexo
funções de vigilância junto ao rebanho, Platão oposto têm e não têm a mesma natureza36. Ora as
defende que, na classe dos guardiões, as mulheres diferenças de fato, se bem que incontestadas, são
desempenhem de forma igualitária tarefas políticas minimalizadas em relação a seu alcance efetivo. Tal
de proteção e de chefia e que, com vistas à paridade como os homens não são afetados na sua essência
nos trabalhos cívicos, sejam sujeitas a uma educação específica pela circunstância de serem calvos ou
semelhante30. cabeludos37, também as diferenças físicas associadas
Num segundo momento, preconiza-se que ao sexo não põem em causa a identidade de natureza
seja abolida a família nuclear tradicional e que, para da espécie humana. Da unidade de natureza decorre,
incrementar a desejada unidade da classe dos pois, a referida equiparação de funções: “Não há, na
guardiões, institua-se a comunidade da administração da cidade, nenhuma ocupação própria
propriedade dos bens, bem como a posse comum das da mulher enquanto mulher nem do homem
mulheres e das crianças31. enquanto homem”38. O preço a pagar pelas mulheres
Num terceiro momento, estipula-se, como guardiãs parece-nos, contudo, bastante elevado: para
condição da viabilidade de concretização desse além das “reservas” antepostas de que, sendo capazes
projeto, a educação filosófica dos governantes32. Os de fazer o mesmo que os homens, nunca o farão tão
que se destinam ao exercício do poder político devem bem39, o modelo imperante, enquanto unissexo, é
ser iniciados numa technê muito elaborada, a ciência espoliado daquelas características que na sequência
política, denominada technê basilikê. Esta supõe o de toda uma tradição eram habitualmente associadas
conhecimento dos fins que se põem na esfera ao “feminino”40. Além disso, o comunismo
individual e coletiva, o que na perspectiva de Platão só preconizado para salvaguarda da unidade dos
se alcança com a aprendizagem da filosofia, com uma guardiões representa a politização do privado,
morosa e difícil educação que, para além de um tornando-se comum, num certo sentido, o que era
prolongado currículo de estudos específicos, exige marcado pelo particular: koinon versus idion. Essa
uma conversão de vida e a reorientação radical do invasão da privacidade pelo impacto do público
olhar e do desejo. Importa salientar a premência de tinha, na ótica platônica, importantes razões
selecionar os melhores, definindo rigorosamente a filosóficas a seu favor. Mas pode ser objeto, e foi, de
clivagem entre os que são chamados a exercer o poder objeções profundas e sérias: significava, numa certa
político e os restantes, pois “a uns compete por acepção, a neutralização dos afetos, a aniquilação das
natureza dedicar-se à filosofia e governar a cidade, e diferenças, a padronização excessiva dos elementos
aos outros não cabe tal estudo, mas sim obedecer a intervenientes no jogo social41.
quem governa”33.
Obviamente, a instituição desse programa
mobiliza elementos heterogêneos que só fazem 3.2. Em Aristóteles
sentido se apelarmos para o contexto da doutrina de
Platão. No plano do prisma deste estudo – o que
Platão pensou das mulheres –, resulta inequívoco que Contrariamente a Platão, Aristóteles parte de
ele admite que algumas mulheres, as mais dotadas, uma concepção do ser humano como unidade
equiparem-se aos homens no acesso ao saber e no substancial, não considerando a alma em separado do
domínio da aretê, desde que lhes seja reconhecida uma corpo42, e destaca as diferenças entre homens e
mesma natureza34. Mas uma iniciativa desse tipo não mulheres. “Macho” e “fêmea” surgem como contrários,
deixa de suscitar dificuldades se confrontamos as na sequência da tradição arcaica que organizava a

32 33
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

realidade em pares de opostos43: no plano metafísico, plena nem à maturidade no plano da moralidade
o “masculino” e o “feminino” opõem-se como justificar-se-ia talvez à luz dessas limitações que fazem
contrários dentro de uma mesma espécie, daí dos elementos do sexo feminino formas imperfeitas de
decorrendo que um se constitua como privação do humanidade53.
outro e, nessa ordem de razões, o feminino se Mas poder-se-á sustentar que o ideal de
apresente como a privação do masculino44. Uma racionalidade que se depreende da leitura de
descrição desse tipo serve de base à dicotomização dos
sexos – por um lado, radicalizando as dessemelhanças Aristóteles exclui os elementos afetivos e emocionais?
e, por outro, sublinhando a tônica da inferioridade A unidade que Aristóteles julga necessário introduzir
associada à noção de “privação”45. Segundo Aristóteles, na vida política trará consigo a anulação das
o macho e a fêmea diferem em três aspectos biológicos diferenças a partir da generalização de um padrão
muito significativos: em primeiro lugar, o princípio dito masculino? Dada a identidade essencial que
(archê) de um animal determina o respectivo sexo, abrange ambos os sexos, para além das referidas
pelo que o gênero é determinado antes do diferenças que os particularizam, importa ver com
aparecimento das partes sexuais46; em segundo lugar,
a posse de orgãos sexuais masculinos ou femininos maior detalhe a ideia que Aristóteles faz do gênero
constitui de modo efetivo os dois gêneros47; em humano54 e os traços que lhe são genericamente
terceiro lugar, o macho e a fêmea distinguem-se nas imputados, para aí situar sua representação das
suas funções reprodutivas: enquanto o macho procria mulheres. O homem nos é apresentado como um
noutro, a fêmea gera em si mesma48. animal com um estatuto singular entre os demais: ele
As características atribuídas, no âmbito “deseja por natureza saber”55 e, para além da vocação
metafísico, ao masculino e ao feminino refletiam-se
nos aspectos biológicos, com especial incidência no sapiencial que o define especificamente, é-nos
modo de explicar a desigual contribuição do macho descrito56, cumulativamente, como animal politikon e
e da fêmea na geração49. O papel do primeiro era como animal logikon. Assim, o homem é, por
determinante na transmissão da forma, sendo o da natureza, um animal gregário que só consegue a
segunda confinado à da matéria, conotando-se a forma almejada autarcia vivendo em comunidade, mais
com “atividade” e com tudo o que constitui o superior, e precisamente integrado na polis57. Por outro lado, a
a matéria com “passividade” e com o que representa os
elementos menos elevados50. O masculino aparecia, referida polis é também caracterizada como uma
assim, ligado à alma, mais precisamente à alma realidade social que existe por natureza, constituída
sensitiva, enquanto o feminino se associava ao corpo e à por uma pluralidade de elementos que a integram e se
alma nutritiva ou vegetativa. É de notar que essa agrupam em diversos estratos. Dessa maneira, a polis
dimensão corpórea se situava na primordial ligação do define-se por uma unidade compósita e pela íntima
feminino ao elemento “terra”, em oposição ao elemento interdependência do todo e das partes. Mas o homem
“fogo”51. As diferenças estabelecidas nessa ordem é também, no plano mais radical de sua condição, um
justificavam as subsequentes posições assumidas quanto
ao estatuto das mulheres: Aristóteles atribui-lhes uma animal politikon, o que significa que é dotado de logos,
inferioridade que se manifesta na desigualdade das ou seja, de uma discursividade que se traduz na
capacidades cognitivas e no domínio da ação. As linguagem por meio da qual, diferentemente dos
mulheres não ultrapassam o plano das opiniões e restantes seres vivos, ele se torna capaz de distinguir
mostram menor aptidão no domínio da sabedoria “o benéfico e o prejudicial, assim como o justo e o
prática. Na realidade, embora sejam capazes de injusto”58.
deliberar, não têm autoridade nas decisões que Estabelece-se, assim, uma relação muito
assumem52, dada a facilidade com que se deixam guiar, próxima entre a definição do homem e a definição
e dominar, pelas emoções e pelos sentimentos. Mas o seu da política, entre a ordem especulativa da razão e a
papel social define contornos positivos noutros campos ordem prudencial da justiça e da vida humana bem
– no da vida doméstica, em que se afirmam as suas vivida. Com efeito, a política é encarada por
qualidades na gestão da economia da casa e no âmbito Aristóteles como a ciência das coisas humanas,
privado das relações familiares. Que a mulher deva como saber prático relativo ao telos, que é o bem do
obedecer ao homem e não tenha acesso à cidadania

34 35
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

homem59, sendo justamente designada como “a concebida como um modelo harmonioso de


filosofia das coisas humanas”60. No entanto, dada a equilíbrio.
forma como Aristóteles se depara com essas Se é certo que a felicidade consiste “no
realidades, os matizes de que se revestem os “muitos” exercício e no uso perfeito da virtude”63, é corrente
sujeitos humanos que compõem as várias admitir que os homens conseguem ser bons e
populações, as variáveis intervenientes nas dignos graças a três fatores determinantes, “e estes
diferentes comunidades e a contingência que lhes é são a natureza, o hábito e a razão”64. Ora, enquanto os
inerente, a política não tem para Aristóteles o outros animais vivem guiados pelos impulsos
mesmo estatuto que lhe atribui Platão: trata-se de inscritos na sua índole específica, e alguns também
uma ciência prática, irredutível a procedimentos pelos hábitos, no caso do homem a razão reveste-se
discursivos que relevem do dedutivo e do de hipertrofiada importância, e, na dialética do
apodítico61. patrimônio inato e das competências adquiridas, a
educação assume um papel central.
Postas essas premissas de caráter genérico e
4.Balanço sumário das contribuições das reflexões assaz consensual, procuraremos salientar algumas
platônica e aristotélica para os estudos feministas diferenças significativas nas posturas dos dois
grandes pensadores clássicos, com reflexos
atuais importantes no que toca às suas opiniões
respeitantes às mulheres e à temática que nos
Platão e Aristóteles, embora divergindo na interessa.
maneira como representam as diferenças entre os Para Platão, a admissão da igualdade cívica
homens e as mulheres, convergem em alguns das mulheres na classe das guardiãs pretendia
princípios básicos que constituem como que o esteio instituir, entre os “melhores”, a disciplina perfeita
fundante do universo espiritual helênico. suscetível de anular os eventuais obstáculos
O ser humano é caracterizado como uma derivados das divergências de opiniões e de
realidade complexa e dividida, com uma natureza sentimentos65. O imperativo da unidade era
híbrida, na tensão que o situa entre a terra e o céu, encarado como algo de primordial e justifica o
entre os demais seres vivos mortais e os deuses. Na duplo papel da educação e da persuasão na utopia
bela imagem do Timeu62, “o deus deu a cada um de nós platônica. Dada a clivagem introduzida entre
como presente um gênio divino” que habita a parte governantes e governados, a educação, em seu sentido
mais elevada de nossa alma, e “podemos afirmar com pleno, só interessava aos primeiros. A estes cabiam a
verdade que essa alma nos eleva acima da terra, inteira adesão ao interesse comum, a correta orientação
devido à sua afinidade com o céu, pois somos não do desejo no sentido da justiça; aos outros cumpria
uma planta terrestre, mas sim celestial”. Nessa dupla obedecer, e os papéis não eram reversíveis. A unidade
condição, a realidade do anthrôpos é constantemente preconizada impunha-se como requisito inadiável, na
confrontada com o modelo animal, por um lado, e medida em que surgia como o fundamento por
com o modelo divino, por outro. excelência da estabilidade da polis. Daí a apologia da
Como foi repetidamente acentuado, o homem “nobre mentira”, nos vários contextos em que o recurso
só se pode desenvolver plenamente no seio de uma a ela se apresentava como vital: em primeiro lugar, no
comunidade, na inter-relação com os outros homens e mito da gênese das diferentes classes sociais, nascidas de
mulheres: a interdependência do indivíduo e da polis uma mesma Mãe Terra, marcadas desde o nascimento
constitui o âmago de toda a reflexão antropológica e por uma “mistura” de elementos que determina seu
política. Nessa ordem de ideias, o telos ou o fim da polis destino particular e simultaneamente chamadas a
é o telos do homem – a felicidade, o viver bem. Mas a respeitar a fraternidade dos laços que as prendem entre
conquista dessas metas tem como condição a si e as vinculam a salvaguardar seu estatuto unitário; em
realização de uma determinada forma de unidade que segundo lugar, como instrumento ao dispor dos
se configura como o fundamento da aretê, da governantes, a fim de persuadir os demais no sentido
excelência suscetível de ser alcançada no plano das opções julgadas convenientes para o bem da
individual e no plano coletivo, e que assume o rosto cidade66. Para Aristóteles, as mulheres revelam-se
da justiça. Em outras palavras, o fim almejado na inferiores em diversos registros, que vão desde o da
constituição da cidade ideal será sempre a unidade ordem física e fisiológica da reprodução ao do exercício

36 37
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

acabado das funções intelectuais e das ações éticas. A contribuição para a geração dos filhos, seu estatuto
princípio, ficam relegadas à intimidade da casa, sem de inferioridade, tanto no plano cognitivo como no
poder de intervenção no governo da cidade, e não se lhes plano ético-político.
atribui capacidade para uma educação filosófica Mas se, por um lado, Aristóteles extrai das
equiparada à dos homens. inferioridades apontadas justificações para o estatuto
Mas se, por um lado, Aristóteles extrai das das mulheres e o tratamento que lhes é concedido, por
múltiplas inferioridades supramencionadas, outro, valoriza as diferenças como condição sine qua
justificações de facto relativamente ao estatuto das non da genuína comunidade humana. Acautela, de
mulheres e ao tratamento que lhes é concedido, por certa maneira, o que Platão menospreza no caso
outro lado valoriza positivamente as reconhecidas exemplar das mulheres guardiãs promovidas a
diferenças como condições sine qua non da viabilização filósofas e a eventuais governantes. A especificidade
da justiça e da genuína comunidade humana. da mulher decorre dos elos que a prendem à oikia e à
Acautela, de certa maneira, o que Platão sacrifica no esfera do privado. Sob o ponto de vista da estrutura
caso exemplar das mulheres guardiãs promovidas a compósita preconizada para a polis, Aristóteles
filósofas e a hipotéticas governantes. A especificidade defende que a estereotipada identidade assente no
da mulher decorre dos elos que a prendem à oikia, à desaparecimento das diferenças é algo destrutivo, pois
esfera do privado. Na dialética de interesses que a verdadeira comunidade é uma comunidade de
comanda o confronto das duas esferas67, o universo da sentimentos e a diversidade é o suporte da pretendida
vida doméstica constitui como que um baluarte do unidade. Num certo sentido, a concepção aristotélica
direito à diferença, da proliferação dos cuidados salvaguarda o que Platão aniquila: a possibilidade de
norteados por afetos radicados em circunstâncias uma padronização do humano que não faça tábua rasa
muito concretas. Sob o ponto de vista da estrutura do “feminino” em função de criterios redutores de
compósita preconizada para a polis, Aristóteles sobrevalorização do “masculino”.
defende que a estereotipada identidade assente no
desaparecimento das diferenças é algo de destrutivo: Notas
a autêntica comunidade é uma comunidade de
sentimentos e a diversidade, mais do que a semelhança,
dá lugar à pretendida unidade. Numa determinada Ver a introdução de Julie K. Ward à colectânea de que é
editora, Feminism and Ancient Philosophy , New York and
perspectiva, a concepção aristotélica salvaguarda o que London, Routledge, 1996, XIII-XV. Salientando a expansão, no
Platão aniquila – a possibilidade de uma padronização âmbito acadêmico anglo-americano, dos estudos feministas
do humano que não faça tábua rasa do “feminino” em no campo da filosofia antiga, refere que, contrariamente ao
função de critérios redutores de sobrevalorização do que muitas vezes sucedia antes, “uma nova classe de
intérpretes emergiu que inclui mulheres preparadas em
“masculino”68. filosofia antiga que são também feministas”; o que se irá
refletir na forma cuidadosa como são analisados os textos
primários, com a preocupação de os explicar “em relação com
o resto da obra pertencente a um pensador ou a uma corrente
Resumo filosófica” (ibid ., p. XIV ). É de assinalar que os temas
feministas foram a princípio mais focados em obras literárias
da Grécia Antiga e de Roma do que propriamente em textos
O que os filósofos pensaram das mulheres: filosóficos.
Platão e Aristóteles Como refere Natalie Harris Bluestone, em Women and the
Ideal Society, Plato's Republic and Modern Myths of Gender,
Platão e Aristóteles nos são apresentados Oxford, Berg, 1987, p. 7. A autora centra sua análise no livro V
da República de Platão e realiza um estudo exaustivo da
como paladinos de posições paradigmáticas no que recepção relativa às controversas posições platônicas sobre
respeita à natureza e estatuto das mulheres: Platão as mulheres. Os admiradores e os detratores de Platão
seria um feminista avant la lettre, ao atribuir às fazem reviver os famosos argumentos, digladiando-se
mulheres uma identidade de natureza em relação quanto ao seu sentido efetivo, e a “visita guiada” que nos
introduz nos meandros dessa hermenêutica ilustra bem a
aos homens e ao reivindicar para as guardiãs contínua releitura das fontes a partir dos condicionalismos
igualdade de participação nas tarefas cívicas e no do presente. Depois de um longo capítulo dedicado a “The
acesso à educação; Aristóteles representaria o Prevalence of Anti-Female Bias in Plato Scholarship”,
antifeminismo, argumentando, a partir das assinala “The Resurgence of Interest in Philosopher-
Queens”, para concluir enfatizando a atualidade das
diferenças biológicas das mulheres e de sua desigual questões postas por Platão.

38 39
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Paul Ricoeur, numa sugestiva conferência proferida em Ibid ., pp. 75-77.


Lisboa em 1994 (cf. “La crise de la conscience historique et Cf. Aristóteles, Política ,I 1260 b 16.
l'Europe” in João Lopes Alves ed., fítica e o futuro da Nancy Tuana é uma representante ilustre dessas
democracia, Lisboa, Colibri, 1998, pp. 29-35), destacava o preocupações, a que dá voz de forma eloquente e vigorosa em
importante princípio hermenêutico que nos foi ensinado Woman and the History of Philosophy, New York, Parangon
pelos historiadores de métier: “é preciso, antes de maisnada, House, 1992. Ver, de muito especial, a obra de Geneviève
aceitar a ideia de que é sempre possível contar Lloyd, The Man of Reason , Male and Female in Western
diferentemente os mesmos acontecimentos” (ibid., p. 32). Philosophy, London, Routledge, 1993 (1ª ed. 1984). Cf. Natalie
Publicado pela primeira vez em Times Literary Supplement, Harris Bluestone, Women and the Ideal Society, Plato's Republic
nº4, 485, March 17, 1989, pp. 276, 288-89; incluído em Daniel and Moderns Myths of Gender, op. cit., supra nota 2.
W. Graham ed., Gregory Vlastos, Vol. III, Socrates, Plato, and Cf. Nancy Tuana, no prefácio mencionado, op. cit. , p. IX : “Se o
Their Tradition , Princeton/N. Jersey, Princeton Univ. Press, “homem de razão” tem de aprender a controlar ou a
1995, pp.133-43. Representativo do afinco em rotular Platão
com epítetos de ressonâncias hodiernas, ver Dorothea ultrapassar traços identificados como “femininos” – o corpo, as
Wender, “Plato: Misogynist, Paedophile and Feminist”, in emoções, as paixões –, então o domínio da racionalidade será
John Peradotto e J. P. Sullivan eds., Women in the Ancient reservado prioritariamente aos homens, com entrada
World: The Arethusa Papers, Albany, State University of New contrafeita para aquelas poucas mulheres que sejam capazes
York Press, 1984, pp. 213-228. de transcender à sua feminilidade”.
Referido no mencionado ensaio de G. Vlastos, p. 133: “A Ibid., p. X.
igualdade de direitos prevista por lei não pode ser negada ou Idem , pp. X-XI: “O processo de transformaçãodo 'cânone'
reduzida, pelos EUA ou por qualquer Estado, por motivo de exigiria a recuperação dos textos 'perdidos' e um exame
sexo.” cuidadoso das razões pelas quais tais vozes teriam sido
Cf. Julie K. Ward, Feminism and Ancient Philosophy, op. cit., p. silenciadas. Junto com o processo de redescoberta da
história filosófica feminina, temos também de começar a
XIV . analisar o impacto das ideologias relativas ao gênero
Na literatura feminista a partir de meados da década de sobre o processo de 'canonização'. Importa realçar a
1970, passou a ser uma constante a distinção entre “sexo” e premência de 'uma releitura' que canalize nossa atenção
“gênero”: o primeiro diz respeito a uma entidade biológica para os modos como a mulher e o papel do feminino são
(a do masculino ou do feminino), enquanto o segundo 'construídos' nos textos de filosofia. Ou seja, se a ideia do
corresponde a um constructo psico-social (incluindo as feminino que temos resulta de uma construção filosófica,
características ditas “femininas” ou “masculinas”). Ver, nesse chegarmos a uma renovada captação do que é a mulher e
sentido, o prefácio de Prudence Allen à 2ª edição de The de qual é o seu papel passa por uma necessária
Concept of Woman – The Aristotelian Revolution, 750 B.C.-A.D. 'desconstrução'”.
1250, Michigan/ Cambridge, William B. Eeerdmans Nancy Tuana, em Woman and the History of Philosophy , op.
Publishing Company, 1997 (1ª ed. 1985), p. XX. Cf. Alison M. cit., pp. 31-32, indica como principais fontes primárias os
Jaggar and Susan R. Bordo eds., Gender/ Body/Knowledge, seguintes textos: Platão: República, em especial o livro V,
Feminist Reconstructions of Being and Knowing , New 450-470; Timeu , 41 d-52 e, 69 b70 e, 76 d-e, 90 a-91 d; Leis, VI,
Brunswick/New Jersey, Rutgers Univ. Press, 1992. 780 d-781 d, 785 b; VII, 805 d-807 c; XII, 944 d-945 b;
Cf. Julie Ward, Feminism and Ancient Philosophy, op. cit., pp. Banquete, em especial 201 c-212 c. Aristóteles: Geração dos
XIV-XV: “Uma seg u nda apro x imaçã o caract eríst ica de animais, 716 a 1-716 b 15, 723 a 20-732 a 10, 736 a 25-739 b 35,
alg u n s escrit o s n est e volume [reporta-se à coletânea de 763 b 20-767 a 30; Política, 1252 a 25-1252 b 15, 1253 b 1-25,
que é editora], não é apenas descritiva, mas avaliativa. 1259 a 35-1264 b 25; História dos animais, 608 a 30-608 b 20;
Esses estudos tentam indicar modos segundo os quais Econômica, 1343 a 15-20; Poética, 1454 a 15-25.
alguns aspectos das concepções antigas podem ser de Cf. Nancy Tuana, Woman and the History of Philosophy , op. cit. ,
interesse para as feministas contemporâneas: se bem que pp. 13-14. A comparação das concepções de Platão e de
comecem com uma análise histórica dos textos Aristóteles é reveladora de dois procedimentos antagônicos
pertencentes a um autor ou a uma escola específicos, “para defender a premissa da inferioridade da mulher”, ibid .,
sugerem também modos segundo os quais as concepções p. 12. Não obstante as divergências patentes, concordam num
apresentadas são proveitosas para a teorização feminista. princípio fundamental: “o masculino é a forma verdadeira de
Essa segunda aproximação é especialmente evidente nos humanidade”, ibid ., p. 13.
ensaios que se ocupam com assuntos que têm emergido Ibid ., p.12: de acordo com essa ordem de razões, as
dos trabalhos feministas anglo-americanos em Ética e diferenças corpóreas, incluindo o sexo, são irrelevantes
Psicologia Moral, tais como a relação da razão com as para Platão.
emoções, a origem e natureza do pensamento moral e a
construção do desejo”. Gregory Vlastos, “Was Plato a Feminist?”, op. cit. , nota 4.
Cf. Prudence Allen, The Concept of Woman. The Aristotelian Que se trata de uma cidade ideal, enquanto projeto
Revolution, 750 B.C-A.D. 1250, op. cit., p. 2. A autora elenca edificada em logoi, isso é claramente afirmado em diversas
as principais interrogações em torno das quais se centrou o passagens da República: cf. 369 c, 379 a, 472 c-e, 473 a, 592 a-
interesse dos antecessores de Aristóteles no concernente às b. Sobreleva-se que um tal modelo é construído
mulheres: 1. De que maneira são opostos o homem e a poieticamente como um artefato, mediante logoi, vocábulo
mulher? 2. Quais as respectivas funções da mãe e do pai na polissêmico que nesse contexto se poderá traduzir por
geração? 3. A mulher e o homem relacionam-se com a palavras/discursos/argumentos. O objetivo primordial
sabedoria da mesma maneira? 4. As mulheres e os homens desse diálogo platônico permanece objeto de controvérsia,
têm as mesmas virtudes ou diferentes?” vendo uns nele a apologia de um modelo de paideia e

40 41
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

salientando outros a indissociável relação entre um O interesse prevalecente é sempre o da realização da aretê – da
determinado modelo prático ético-político e a excelência da alma individual –, tal como, no âmbito da polis,
argumentação em prol de uma ideia de filosofia. Ver, a consideração da excelência e do bem-estar da totalidade
dentre os muitos estudiosos de Platão, Eric Havelock, domina a das classes. Nessa ordem de ideias, “libertação” não
Preface to Plato, Cambridge/Massachusetts/London, The significa qualquer tipo de “emancipação”, na acepção
Belknap Press of Harvard Univ. Press, 1983 (1ª ed. 1963) e moderna do termo. Segundo assinala Nancy Tuana (Woman
Stanley Rosen, The Quarrel Between Philosophy and Poetry , Studies and the History of Philosophy, op. cit., p. 21), “é importante
in Ancient Philosophy, New York/London, Routledge, 1988. E reconhecer que, ao longo da República, a preocupação de
também Holgen Thesleff. “Plato and In equalit y ” in Iiro Platão não está orientada para os direitos ou necessidades dos
K ajan t o ed., Equality and Inequality of Man in Ancient Thought, indivíduos, mas visa apenas ao bem do Estado”.
Helsinki, Societas Scientiarum Fennica, 1984, pp.17-29: “É Na tripartição da alma, transparece a associação do
extremamente importante entender que a teoria de Platão plano afetivo e apetitivo com o feminino e do elemento
acerca do homem e da sociedade não pode ser racional com o masculino, com o apelo à correta
devidamente captada sem ter em consideração sua ordenação que impõe que o inferior seja comandado pelo
estrutura filosófica genérica. (...) Poder-se-ia defender que superior. Cf., no Timeu , a descrição da criação da alma
as intenções de Platão quando escrevia a atual versão da mortal e sua localização no corpo humano, recorrendo
República eram especulativas, e não propriamente à metáfora dos gêneros, masculino e feminino: 69 c-70 a.
políticas” (ibid., p. 18). Aceitando que o Estado utópico de
Platão seja verdadeiramente “uma construção filosófica” de Cf. República , IV 431 b-c, 469 d, 563 b, 557 c, 605 d-e. São-lhes
índole teorética, delineada com uma certa dose de “espírito imputados traços e atitudes tidos como “negativos”:
lúdico”, então torna-se mais compreensível “o radicalismo ausência de autodomínio, permeabilidade aos apetites e
das soluções preconizadas” (ibid., p. 19). emoções, inconstância, sentimentos menos elevados
como a ganância e a covardia, excessos passionais, etc.
Cf. Timeu ,41 d-42 d. Não só a mulherteria surgidodepois Cf. ibid ., IV 433 a-b: “Cada um deve ocupar-sede uma função
do homem, como correspondia a uma forma inferior de na cidade, aquela para a qual sua natureza é a mais adequada.
humanidade. Se bem que todos os seres masculinos – Dissemos isso, efetivamente. – Além disso, que executar a
tivesssem sido feitos igualmente perfeitos, podiam tarefa própria e não se meter na dos outros era justiça”. Pelo
escolher seu modo de vida e aqueles que não dominassem que “esse princípio pode muito bem ser a justiça: o
suas paixões e impressões sensíveis seriam condenados a desempenhar cada um a sua tarefa”. Ver ainda 441 d, 443 b-e.
voltar a nascer sob a condição degenerada do sexo Cf. Wolfgang Kullmann, “Equality in Aristotle Political
feminino. Thought”, in Iiro Kajanto ed., Equality and Inequality of Man in
Cf. Holger Thesleff, op. cit. , pp. 17-29, p.18: “Proporia que a Ancient Thought, op. cit., p. 32: “Aristóteles não considerava
tese do Estado Ideal seja exatamente o que pretende ser: uma que todos os indivíduos são iguais por natureza, nem a
teoria da justiça ideal na sociedade humana, e uma teoria que maioria dos seus contemporâneos (tais como Platão e
surgiu da indignação moral frente a todas as espécies de Isócrates)” admitia essa igualdade.
egoísmo e de brutalidade, a partir da insatisfação com todas Cf. República V,472 c-d: “Foi para termosum paradigmaque
as espécies de governos existentes e a partir da busca de uma indagamos o que era a justiça e o que era um homem
estrutura filosófica para a autência ética social, isto é, um perfeitamente justo se existisse e, uma vez que existisse,
máximo de justiça e de felicidade para todos”. Nessa qual seria o seu caráter e, inversamente, o que era a injustiça
perspectiva, a utopia em questão implicaria “o equilíbrio e o homem absolutamente injusto, a fim de que olhando
entre desiguais, para a felicidade máxima de todos os para eles se nos tornasse claro que felicidade ou que
cidadãos” (ibid ., p. 21). Sobre a relação estreita entre “justiça” infelicidade lhes cabia”.
e “felicidade”, cf. República, IV 420 c; V 466 a, 472 c-d. Acerca
dessa temática, ver o estudo de G. Vlastos, “Justice and Cf. República V,451 c457 c.
Happiness in the Republic”, in Platonic Studies (Second Edition), 31 Ibid .,457c471 e.
Princeton Univ. Press, 1981, pp. 111-139. Ibid ., pp. 472 a e ss., em particular:“Enquantonão forem os
Cf. G. Vlastos, “Was Plato a feminist?”, op. cit. , p. 136: “O mais filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis
inovador é o seguinte: a rejeição fundamental do velho e soberanos filósofos genuínos e capazes, e se dê esta
dogma, nunca antes questionado em prosa ou em verso, de coalescência do poder político com a filosofia, (...) não
que as diferenças de sexo determinam as diferenças na haverá tréguas dos males (...) para as cidades, nem sequer,
distribuição do trabalho”. A mesma tônica é acentuada por julgo eu, para o gênero humano, nem antes disso será
Natalie H. Bluestone, op. cit., p. 3: “Considerando que jamais possível e verá a luz do sol a cidade que há pouco
algumas mulheres possuíam a necessária capacidade para descrevemos”.
raciocinar e filosofar, introduziu a proposta surpreendente Ib id ., 474 b-c.
de que idênticos cargos de chefia exigiam uma educação Susan B. Levin, “Women's Nature and Role in the Ideal Polis:
idêntica para os membros mais capazes dos dois sexos”. Republic V Revisited”, in Julie K. Ward ed., Feminism and Ancient
Essa “libertação” surge como uma forma de “purificação”, Philosophy, op. cit., pp. 13-30, interessa-se de modo particular
encaminhando o olhar da alma para a verdadeira realidade pelo posicionamento de Platão no que toca à capacidade das
que é a do inteligível: cf. o Fédon , diálogo platônico exemplar mulheres ascenderem à aprendizagem da filosofia, como
dessa vertente, em especial 64 a-67 d. Na alma tripartida, a technê que se situa no topo da hierarquia dos saberes. Platão,
elevação da alma no sentido da perfeição traduz-se na ao criticar as mulheres, invoca em justificação dos defeitos
integração das suas partes na unidade do todo, submetida à apontados argumentos relativos a “hábitos”, e nunca à
ideia de bem e na prossecução do seu fim genuíno (República, “natureza” própria do gênero feminino, suscetível de inibir a
IV 436 e -444 e; cf., noutro contexto, Fedro, 246 a-b., 252c254 e). princípio uma boa conduta. Sobressai, assim, o contraste entre

42 43
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

as condições vigentes, eventualmente pouco propícias, e o (Aristóteles, Metafísica A 5, 986 a 22). Os opostos agrupam-se
contexto renovado de uma cidade ideal, a que se reporta a em duas colunas, sendo de notar que o “masculino” se coloca
proposta avançada no livro V da República. Admitindo que no do lado da “unidade”, do “limite”, do “ímpar”, da “luz”, do
plano da physis nada obsta à educação das mulheres para a “repouso”, do “bem”, enquanto o “feminino” se posiciona
filosofia, e consequentemente para o acesso ao poder político, respectivamente com a “pluralidade”, com o “indeterminado”,
resta a discrepância, nunca negada, que no plano individual com o “par”, com as “trevas”, com o “movimento” e com o “mal”,
separa os bem dotados dos menos apetrechados. Cf., sobre as sendo inegável a valorização díspar dos elementos de uma e
“naturezas filosóficas”, a obra de Monique Dixsaut, Le Naturel da outra.
Philosophe, Essai sur les Dialogues de Platon . Paris, Les Belles Cf. Aristóteles, De generationeanimalium (GA) , 766 a 21.
Lettres/Vrin, 1985.
Ibid., 453e. Cf. Aristóteles, Metafísica , I 9 158 a 30. As diferenças de sexo
Cf. ibid ., 454 a-b. Por conseguinte, “se se evidenciarque ou são materiais, e não essenciais. Sobre essa matéria, ver:
o sexo masculino ou o sexo feminino é superior um ao Marguerite Deslauriers, “Sex and Essence in Aristotle's
outro no exercício de uma arte ou de qualquer outra Metaphysics and Biology”, in Cynthia A. Freeland ed.,
ocupação, diremos que se deve confiar essa função a um Feminist Interpretations of Aristotle, Pennsylvania, The
deles. Mas se se viu que a diferença consistia apenas no Pennsylvania State Univ. Press, 1998, pp.138-167. Segundo a
fato de a mulher dar à luz e o homem procriar (...), autora, Aristóteles tinha uma crença argumentada (a reasoned
continuaremos a pensar que os nossos guardiões e as belief) nas semelhanças entre os sexos no que respeita à
suas mulheres devem desempenhar as mesmas funções” essência, junto com uma cren ça não refletida (unreflective
(ibid ., 454 d-e). belief) na deficiência da fêmea em relação ao macho, em vários
aspectos (cf. ibid ., p. 159).
Ib id ., 454 b-d.
Cf. GA 766 a 31-b4.
Ibid, 455d.
Ib id ., 766 b 5-6.
Ibid ., 455 b-456 a. Indicam-se como dotes reveladores dos
“melhores” a facilidade na aprendizagem, a capacidade de Ibid ., 716 a 14-15. Cf. Judith A. Swanson, The Public and the
inovar e de aplicar bem o aprendido, submeter “o físico” ao Private in Aristotle’s Political Philosophy, op. cit., p.46. Desta
serviço da inteligência, etc. Ora, “a mulher participa de todas forma, as partes sexuais e as funções reprodutivas seriam
as atividades, de acordo com a sua natureza, e o homem manifestação da masculinidade ou da feminilidade, e não
também, conquanto em todas elas a mulher seja mais débil do causa destas.
que o homem” (ibid ., 456 d-e). Prudence Allen ressalta a íntima relação entre a doutrina
Abrangia um leque de conotações positivas diretamente metafísica da oposição do “masculino” e do “feminino” e as
ligadas ao papel das mulheres na vida doméstica, como sua teorias relativas às características biológicas e psicológicas de
intervenção na criação dos filhos e na gestão da economia um e outro sexo: cf. na obra antes citada, The Concept of Woman
familiar, e às suas capacidades na ordem afetiva e nas relações – The Aristotelian Revolution, 750 B.C.-A.D. 1250, pp. 83-126. O
concretas da vida quotidiana. Sobre essa matéria, ler o ensaio papel atribuído ao “quente” e ao “frio” é determinante na
de Arlene Saxonhouse, “ The Philosopher and the Female in reprodução: “os dois opostos primários do calor e do frio
the Political Thought of Plato”, in Richard Kraut ed. Plato's constituíam as bases metafísicas aplicadas à teoria da geração,
Republic, Critical Essays, Lanham/N. York/Oxford, Rowman relacionando-se o masculino com o quente e o feminino com
& Littlefield Publishers, 1997, pp. 95-113; e também, da mesma o frio” (cf. GA 765 b 10-18). Desse modo, “a polaridade dos
autora, Women in the History of Political Thought – Ancient Greece sexos na teoria da geração de Aristóteles é perfeitamente
to Machiavelli, Westport/ Connecticut/London, Praeger, 1985, consistente com sua teoria da polaridade dos opostos
em especial o Cap. 3, “Pla to: Philosophy, Females and masculino e feminino, previamente mencionada. A fêmea era
Political Life”, pp. 37-62. O estatuto da mulher, à luz do inferior ao macho, como a mãe era inferior ao pai (ibid ., p. 95)”.
confronto do público e do privado, é objeto de amplo estudo A separação das funções dos sexos na geração reflectia o pano
na obra de Judith A. Swanson, The Public and the Private in de fundo da hostilidade dos opostos: “Aristóteles descrevia o
Aristotle's Political Philosophy, Ithaca and London, Cornell procedimento mediante o qual o sexo da criança era
Univ. Press, 1992, com particular destaque para o Cap. 1, “The determinado como uma espécie de batalha entre os pais. A
Household: a Private Source of Public Morality” (pp. 9-30) e semente masculina tentava dominar a material, que resistia a
o Cap. 3, “Women, the Public and the Private” (pp. 44-68). esse processo até um certo grau. Se o pai saísse vitorioso, a
criança era um macho semelhante ao pai. O grau de
Ver, sobre essa matéria, o pertinentee esclarecedorestudo resistência da mãe reflectia-se no sexo do feto, assim como nas
de Monique Canto-Sperber, “L'unité de l'état et les semelhanças da criança” (ibid .).
conditions du bonheur public (Platon, République, V;
Aristote, Politique, II)” in Pierre Aubenque dir., Alonso “A diferençamais proeminenteentre os aparatos masculinoe
Tordesillas ed., Aristote politique, fítudes sur la Politique feminino é a de que durante a procriação o macho fornece a
d'Aristote, Paris, PUF, 1993, pp. 49-71. E também Julia Annas, forma, o princípio do movimento, ou a alma, enquanto a
An Introduction to Plato's Republic, Oxford, Clarendon Press, fêmea fornece a matéria, o material, ou o corpo (GA 729 a 10-
1982, em especial o Cap. 7, “Plato's State”, em que faz uma 12, b 14-21, 735 a 9, 737 a 28-30, 738 b 20-27, 740 b 25, 765 b 9-
pertinente análise do papel atribuído às mulheres- 15); parece, pois, que o macho providencia o ser do filho,
guardiãs, pp.170-189. enquanto a fêmea meramente providencia o alimento para
este”: cf. Judith A. Swanson, op. cit., p. 57.
Cf. De anima , II 1 412 a 20. A alma é a forma do corpo e
todos os indivíduos são unidades indecomponíveis, Ver Lawrence J. Hatab, Myth and Philosophy , A Contest of
constituídas por matéria e forma. Truths, Illinois, Open Court, 1992. No pensamento grego
primitivo, o mundo demarcava-se em dois domínios
Ver a tábua de opostos atribuída aos pitagóricos, DK 58 B 5 divinos: o dos titãs, deuses da terra, ditos deuses ctónicos,

44 45
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

“inclinados à violência, à brutalidade e à paixão excessiva”; representação do bem público”. Assim, “a unidade maximal
o dos olímpicos, governados por Zeus, deuses radiosos do da cidade não é a unidade estabelecida entre todos os seus
céu, patenteando “beleza, inteligência e moderação”. A essa componentes, mas a unidade imposta por uma das
divisão corresponde a oposição dos arquétipos do classes que se encontra radicalmente unida” (ibid ., p. 61).
“masculino” e do “feminino”, em que o primeiro representa Cf. República III 414 d415 b. Para Platão, os deuses não
“brilho, inteligência e ordem” e o segundo, “escuridão, precisam mentir, mas os homens, imperfeitos e limitados,
instinto e excesso”, pelo que podemos “chamar os deuses não podem prescindir da mentira como instrumento que se
olímpicos deuses masculinos e os deuses subterrâneos, justifica por seu uso, em circunstâncias especiais: cf. ibid.,
deuses femininos” (ibid ., op. cit., p. 56). Sobre a associação entre II 382 a-e. Assim, como filhos de uma mesma mãe pátria,
o “feminino” e o elemento terra, cf. GA 716 a 9-17. importa servir e defender essa totalidade; na desigualdade
Cf. Política I, 1260 a 12-14,20-24; 1277 b 20 e ss. constitutiva que tal mito consagra, cabe à classe dos
Na eloquente formulação do GA 737 a 27-28, a fêmea é governantes, selecionada a partir da dos guardiões, o
descrita como “um macho mutilado”, sendo os embriões privilégio do recurso à mentira, a fim de convencer os
femininos formas degeneradas, resultantes de desvios, demais concidadãos do papel que lhes compete dentro de
carências, incapacidades: cf. ibid , 766 a e ss. Cf. Nancy Tuana, uma organização forjada sobre relações de
na obra já citada Woman and the History of Philosophy , o Cap. 2, interdependência e de subordinação do inferior ao
intitulado “The Second Sex”, pp. 13-33. superior. Sobre essa matéria, ver o estudo de Nicole Loraux,
Cf. o ensaio de Wofgang Kullmann, “L'image de l'homme Né de la terre. Mythe et politique à Athènes, Paris, Éd. du Seuil,
dans la pensée politique d'Aristote”, in P. Aubenque e A. 1996, e Maria José Vaz Pinto, “Realidade e ficção: alguns
Tordesillas eds., Aristote politique, fítudes sur la Politique aspectos do elogio platônico da mentira”, Revista da
d'Aristote, op. cit., pp. 161-184. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, nº 10, Lisboa, Ed.
Colibri, 1997, pp. 341-350.
Cf. Aristóteles, Metafísica A, 1 980 a 20: “Todos os homens por
natureza desejam saber”. Cf. Arlene W. Saxonhouse, Women in the History of Political
Thought, op. cit., pp.19-20: o conflito entre a família e a polis é
Cf. Aristóteles, Política I 1 1253 a e ss. radicalizado, desde os tempos mais remotos, no contraste
Formada a partir de um conjunto de cidadãos, a unidade entre os valores da família e os da cidade – encontramos “um
que lhe cabe não é a de uma entidade substantiva: sua conflito entre as necessidades da família como um mundo
realidade própria reconduz-se à dos indivíduos que a privado de sobrevivência e a polis como um mundo público
compõem e que são por natureza animais políticos. Nunca de guerra e de morte” (ibid ., p. 20).
será excessivo enfatizar esta dimensão segundo a qual o Cf. Marcia L. Homiak, “Feminism and Aristotle's Rational
homem apenas se realiza como tal integrado na polis: só esta Ideal” in Julie K. Ward, ed., Feminism and Ancient Philosophy, op.
pode alcançar a autarcia que permite o pleno cit., pp. 118-137.
desenvolvimento das potencialidades dos seus membros.
Cf. W. Kullmann, “L'image de l'homme dans la pensée
politique d'Aristote”, op. cit., pp.160-64.
Cf. Aristóteles, Política , I 2 1253 a: “A palavra é para
manifestar o conveniente e o prejudicial, assim como o
justo e o injusto. E isto é o próprio do homem frente aos
outros animais: possuir apenas ele o sentido do bem e do
mal, do justo e do injusto”.
Cf. Aristóteles, fíticaa Nicómaco ,I 1 1094. 60 Ibid ., X, 10 1181
b 15-16.
Ver o já referido estudo de W. Kullmann, “L'image de
l'homme dans la pensée politique d'Aristote”, in P. Aubenque
ed., Aristote politique, Essais sur la Politique, op. cit., sobretudo
pp.162-164.
Cf. Timeu , 90 a: o referido gênio, como daimôn ou ser
intermediário, assegura a “ponte” entre os dois mundos.
Aristóteles, Política VII, 1332 a 8-12. 64 Ibid ., 1332 a 38-40.
Ver a esse respeito o já citado ensaio de Monique Canto-
Sperber, “L'unité de l'État et les conditions du bonheur
public”, in Pierre Aubenque ed., Aristote Politique, op. cit., pp.
51-71, em especial pp. 61-62: “Os guardiões devem amar o
Estado, mas, uma vez que o homem só ama o seu próprio
interesse, é preciso fazer com que o interesse do Estado
coincida com o do indivíduo”. Por conseguinte, no caso dos
guardiões, a noção que cada um tem do bem público “não é
uma representação individual em relação à qual teria uma
parte de iniciativa. Esse dogma lhe é imposto do exterior, pelos
governantes ou pelos filósofos. A única parte de iniciativa
deixada aos guardiões é passiva – é de serem educados e de
viverem de maneira a que nenhuma representação pessoal,
nenhum laço privado (...), façam obstáculo a essa

46 47
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

DE CULTU FEMINARUM:
TERTULIANO E A RETÓRICA DO CORPO
PAULA OLIVEIRA E SILVA
(Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa)

1. A retórica do corpo

Na obra A Filosofia como uma das Belas Artes, D.


Innerarity evidencia como característica fundamental da
ars philosophiae aquilo que se poderia identificar com
uma peculiar forma de sensibilidade: a gentileza, arte de
contornar, de caminhar ou de ir pela vida com rodeios.
Sob essa perspectiva, e recorrendo a uma expressão
idiomática, dir-se-ia que a filosofia é a arte de andar com
contemplações. A atividade filosófica surgiria, nesse
contexto, ao abrigo de uma condição culturalmente
conotada com a feminilidade e, portanto, como encargo
que se deveria confiar, de modo peculiar, ao gênero
feminino. Curiosamente, lê-se nesse breve ensaio: “O
homem é um animal que anda sempre com rodeios
perante a realidade (…). Todo o comportamento
humano é retórico, num mundo que não se lhe impõe
inocentemente”1. Quando seria de esperar que o discurso
sobre a atividade filosófica incidisse sobre essa
característica específica da mulher, é-nos dito que a
condição artificial de todo discurso é inerente à
atividade humana. No dizer desse autor, isso acontece
precisamente porque nenhuma abordagem fenomênica
do universo é inocente, daí afirmar que não se acede à
verdade despindo-a do que quer que seja, mas vestindo-
a adequadamente. A realidade a pensar nos é dada
arroupada e toda linguagem – científica, técnica, artística,
filosófica – surge como forma de revestimento: um
artifício, ou representação simbólica, seja qual for a
forma de mediação pela qual se opte. Se a realidade
é dada na sua mediatez, buscar sua presença
imediata converte-se numa tarefa frustrada a
princípio.
Essas considerações de pórtico,
aparentemente marginais, têm uma dupla
finalidade. Em primeiro lugar, a de manifestar nossa
convicção acerca do caráter contemplativo do
espírito feminino. Se é verdade que as mulheres
costumam andar sempre com rodeios, a peculiar
sensibilidade para o cultivo da forma, inerente a toda

48 49
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

comunicação e, portanto, também à da sageza, diferencial. De fato, a realidade que se comunica


permite sublinhar o caráter essencialmente pela linguagem do corpo é a própria intimidade.
feminino da filosofia, na acepção original do étimo – Esta, por sua vez, há de ser entendida não apenas
amor de dileção pela Sabedoria, traduzido numa como reserva da dimensão física do “eu”, mas como a
predileção, que leva ao cultivo atento. Em segundo própria essência do núcleo pessoal. O sentido mais
lugar, elas atingem o cerne da questão que nos fundo da intimidade engloba, assim, não só a mera
ocupa, mediada a leitura de Tertuliano. Se a corporeidade, como também a vida emotiva, afetiva
essência da filosofia, enquanto peculiar forma de e amorosa que nela e com ela coabita. Contudo,
amor, está em íntima conexão com o espírito nenhuma forma de linguagem traduz essa
feminino, tudo o que respeita à mulher interessa à dimensão do “eu”, dada a sua condição
filosofia. Essa afirmação pode revelar, pelo menos absolutamente única e inefável. Uma reflexão sobre a
intuitivamente, de que modo uma obra como De finalidade das vestes femininas enquanto conjunto
Cultu Feminarum2 é, pela só enunciação, portadora de peças que integram a indumentária das
de um conteúdo que se configura num horizonte mulheres encontra-se, portanto, indissociavelmente
essencialmente metafísico, transcendendo ao unida a uma concepção do feminino enquanto
alcance, meramente cultural ou estético, de uma expressão do ser humano. É a existência de um
descrição sobre a moda feminina cartaginesa, núcleo pessoal que legitima um discurso sobre a
praticada nos alvores do século III. No caso do autor indumentária. A tarefa aqui assumida será a de,
que nos propomos abordar no que não pode ser pela leitura de De Cultu Feminarum, elucidar o que
mais do que um breve comentário, o opúsculo assim entende Tertuliano por esse núcleo pessoal e como
intitulado recolhe um exercício de reflexão dirigido nele se enquadram as notas que caracterizam o
sobre a veste das mulheres enquanto retórica do feminino.
corpo. Muito em particular, ao tratar-se de um Para quem convive de modo habitual com os
discurso sobre a roupagem feminina, transmite o escritos filosóficos do paleocristianismo parece
que o filósofo cartaginês entende ser a reta forma de desnecessário justificar a pertinência de uma peculiar
estabelecer a relação entre o corpo da mulher e
aquele conjunto de circunstâncias que a envolvem, atenção hermenêutica àqueles que mais diretamente
afetando-a de diversos modos. A esse conjunto de incidem sobre a mulher, independentemente do nível
relações podemos chamar mundo, o que permitirá em que se situe o seu discurso – parenético, ético,
refletir sobre a construção de uma peculiar psicológico, antropológico, metafísico, teológico ou
mundividência a partir do modo de estar feminino. religioso. De fato, o legado histórico destes escritos
Nos textos de Tertuliano que versam sobre as constitui, por si mesmo, um apelo à reflexão e dá
vestes da mulher tornam-se patentes os grandes conta da eloquência deles a quem se abeirar
desafios propostos a todas as gnosiologias, como impulsionado pela dilectio sapientiae. Contudo, porque
referia Innerarity em seu ensaio, extensivos a uma tais textos se encerram habitualmente em círculos
mundividência em que ser e cogito estão longe de se hermenêuticos que padecem de um certo hermetismo
identificar. Tal como hoje para Innerarity, outrora, na e porque são, hoje, para a grande maioria dos
peculiar situação histórica e cultural que caracteriza cidadãos, paradoxalmente, tão ignorados quanto,
o dobrar do século II, a reflexão de Tertuliano parte pelo seu conteúdo, profundamente ansiados, faz
da profunda convicção de que a relação corpo- sentido apontar as razões que movem a elaboração
mundo de nenhum modo é dada em estado de dessa reflexão e que predeterminam tanto o seu
inocência. Assim, a mente interroga-se, de modo estilo – a roupagem linguística – como a metodologia
imediato, sobre o lugar do corpo humano e o intento perseguido. É nosso objetivo tornar
sexualmente diferenciado no horizonte dos seres,
infinitamente diversos e distintos. acessível e, tanto quanto possível, inclusivamente
Os textos de Tertuliano forçam uma reflexão grata a percepção do conteúdo dos textos que ora
valorativa sobre a condição feminina a partir da nos ocupam. Do mesmo modo, existe a convicção
corporeidade. Essa dimensão axiológica inerente ao de que esses textos são portadores de um influxo
discurso desse filósofo não poderá, contudo, ser que configura em profundidade o pensamento
plenamente esclarecida senão quando se tiver ocidental. A isso se acresce, ainda, a certeza de que só
arraigado no âmago de uma antropologia a compreensão do passado lança luz sobre o

50 51
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

presente, permitindo, inclusive, unida à início, do mundo hebreu (tanto da Palestina como
desmistificação da pretensa originalidade de da Diáspora), embora se encontrem, também, desde
algumas posições contemporâneas, a recolha de um o primeiro momento, cristãos vindos da
sentimento de solidariedade histórica que dê lugar gentilidade. A esse último grupo pertence o próprio
a uma reflexão dinâmica, aberta ao acolhimento da Tertuliano, bem consciente dessa sua condição,
tridimensionalidade do tempo. Por último, quando afirma – com a vibração de quem tem
procurar-se-á construir sobre esses textos uma experimentado um processo de conquista e
maturação, em âmbito pessoal e comunitário – que os
argumentação um pouco à revelia das convicções cristãos não nascem, mas se fazem. A estes marcara-
comuns, entendendo por essas últimas tanto o os profundamente a herança do helenismo e do
conjunto de argumentos que poderíamos colher em tardo-judaísmo, quer em termos teóricos e
qualquer conversa informal quanto dos que, quer categoriais, quer no referente aos usos e costumes.
por uma leitura descontextualizada, quer por uma O cenário que, na Antiguidade, fora capaz de
interpretação fundada nas aparências, quer por traduzir, metaforicamente, a realidade fenomênica e
qualquer outra razão menos evidente, construíram fisicamente manifesta da diferença sexual recolhera-
em torno dessas posições intelectuais a convicção de se na concepção mitológica de uma grande divindade,
que a mundividência cristã é portadora de uma visão completa na sua essência, congregando em si mesma
negativa ou depreciativa da mulher, alicerçando-se os dois sexos3. Com efeito, o relato de um ser
numa metafísica que confere ao sexo feminino, no originalmente andrógino surge sob versões
plano pessoal, social ou até histórico, uma função polimorfas e, com o tempo, vem a decompor-se numa
peculiarmente onerosa. Desse modo, uma vez mais divindade feminina e noutra masculina, intimamente
alargando o âmbito das questões – assumindo, não associadas, interagindo de modo peculiar em âmbito
sem manifesto orgulho, o critério do rodeio, cosmológico, como justificantes da condição
previamente enunciado como nota característica do fenomênica dual em que parece inscrever-se toda a
realidade4. Esse relato – polifacético e amplamente
discurso feminino – antes de tomar contato com difundido – do homem originário como ser andrógino
Tertuliano e seus textos, torna-se imprescindível, fora disponibilizado por uma das grandes
para evitar erros de anacronismo, enraizá-los na autoridades da sábia Grécia, quando Platão faz com
cultura de seu tempo. Qualquer leitura dos textos que Aristófanes assuma a tese segundo a qual cada
de autores paleocristãos que procurasse entendê-los homem constitui apenas a metade de um todo
quer como atemporais, quer como absolutamente originário, desejando voltar a unir-se com a outra
subsumidos e determinados por seu metade5. O Fundador da Academia não se propusera,
enquadramento histórico padeceria dos dois contudo, mais do que uma compreensão do topos
excessos que queremos evitar: considerar natural do homem no cosmos, inscrevendo a sua
irrevogável aquilo que se disse, bloqueando a explicação da dualidade sexual no âmago de uma
condição, essencialmente dinâmica, do ser humano compreensão da physis. Hesíodo, por sua vez,
no tempo e, portanto, de todo o discurso, ponto de descrevera já a origem da primeira mulher, artefato de
partida da ontologia cristã; ou reduzir a causalidade todos os deuses do Olimpo, cuja finalidade é vingar
da ação humana livre às estruturas socioculturais, Zeus pela violação do fogo sagrado, levada a cabo
pelos humanos. A ela se reservam, entre outras, as
que são indissociáveis dos indivíduos. Assim, para seguintes qualidades: feita de terra e de água, detém
uma leitura integrada dos escritos de Tertuliano, a voz e a força de um ser humano, unida à imagem
importa considerar algumas coordenadas do das deusas imortais. Possui um corpo amável de
mundo antigo que se nos apresentam como virgem: toda a beleza de Afrodite, congregada num
preponderantes numa reta avaliação da contribuição espírito impudico e num coração cheio de artifícios6.
desse filósofo para aquilo que – cientes do paradoxo – Pandora é o nome daquela que foi trabalho de todos
poderíamos apelidar de antropologia do feminino. os Deuses para desgraça de todos os mortais7.
Antes de mais nada, é grato evidenciar que, Tanto a versão de Hesíodo como a de Platão,
como o seu fundador, os primeiros escritores circunscritas em mundividências de caráter
cristãos nascem e vivem nos limites do Império dualista, são, para uma concepção da condição
Romano. Como Cristo, procedem igualmente, de feminina, pouco favoráveis. No primeiro caso, a

52 53
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

humanidade do homem – valha a aparente veterotestamentário, lido na versão dos LXX ou –


redundância - só se realiza se este se apossar dessa quando a dedicação de Jerônimo a disponibiliza, já no
outra parte, sem a qual o gênero humano não está século V – na versão latina da Vulgata. Desde já, o que
completo. A diferença é, nesse horizonte cultural, podemos reter é o fato de que a especulação sobre a
entendida negativamente, uma vez que o ser humano diferenciação sexual está, desde agora,
é, originariamente, uno, e que da conquista dessa inseparavelmente unida à resposta que se dê à
situação primeva de unidade – entendida como questão da origem e, portanto, à concepção que se
dissolução e anulação de toda a diferença e, portanto, tenha sobre o Princípio e sobre o sentido do Tempo e
também da sexualidade – depende a sua semelhança da História10.
com o Bem, paradigma da perfeição, Uno, Perfeito e Momento importante da especulação
Idêntico. Dada a prepotência social e cívica do varão judaica sobre a constituição de uma antropologia
na Atenas de Platão, uma vez que a outra parte é sua diferencial parecem ser os relatos de Fílon de
pertença de iure e ex natura, é fácil deduzir a
instrumentalização da mulher que daí resulta. No Alexandria. Com efeito, ele opera uma distinção entre o
relato de Pandora, mesmo a esperança, símbolo da ser humano original (não já andrógino mas assexuado,
maternidade, única realidade que restou na sua caixa, imagem de Deus) e o primeiro homem e os seus
é entendida como causa do mal e da disseminação do descendentes11. Essa posição introduz de imediato a
ser8. Nada mais natural, num universo em que o Uno convicção da diferença entre uma situação original – um
e o Bem se identificam, do que conceder à mulher, tempo primitivo – e uma situação atual – um tempo
enquanto portadora de novos seres e, portanto, submetido à sucessão ternária dos ritmos da história.
incubadora de toda a multiplicidade, a causalidade do
mal. A maternidade surge, neste contexto, inclusive Nesse contexto, também a natureza humana é, para o
com uma conotação negativa, mais ainda quando o judeu alexandrino, uma na sua situação primitiva
fruto da parturiente, uma vez trazido à luz do dia, (indiferenciada sexualmente e, nesse sentido, Una,
verifica-se ser do sexo feminino9. Curiosamente, lida próxima e presente ao Deus Uno) e outra após a
de uma perspectiva dialética, essa mesma tradição introdução da sucessão dos tempos, efeito de uma
pode permitir uma interpretação em que se construa queda original: diferenciada, também sexualmente, ela é
uma ontologia baseada na dualidade do Princípio. De impura e incapaz de sustentar a Unidade divina. Assim,
fato, assim o hão de entender as múltiplas correntes
gnósticas que, na fusão do neoplatonismo com na mente de Fílon, o Uno e o múltiplo surgem em
mundividências orientais, hão de brotar nos dissociação, mediada a queda original. Essa leitura do
principais centros de cultura, emergindo onde quer relato de Gên.,1, 27 é particularmente significativa para
que se ensaie uma visão global do mundo e do os rumos que hão de determinar o contexto da
homem. Peculiarmente relevante se torna, para a concepção de Tertuliano.
questão que nos ocupa, o confronto entre a tradição De fato, Fílon fundamenta no texto bíblico
helênica e a tradição rabínica. Em diálogo com o texto uma valoração negativa da diferenciação,
da Antiga Aliança, concretamente no relato das
origens, os mestres ponderam com peculiar considerada como efeito de uma decisão livre e
precaução o risco de assimilação de uma ontologia alheia ao desígnio divino da criação. A diferença
fundada na dualidade do Princípio – Bem e Mal, sexual, bem como as peculiaridades do processo de
Espírito e Matéria, eternamente subsistentes – capaz geração da vida humana e da relação varão-mulher
de sustentar uma antropologia igualmente dual, em são, indiscriminadamente, consequência de uma
que o Masculino e o Feminino se encontram ação moralmente defectiva. As categorias de
eternamente em conflito. masculino e feminino e suas características
Com efeito, no magnífico poema do Princípio,
pode ler-se: “Deus criou o homem à sua imagem; à específicas emergem, assim, num contexto da
imagem de Deus os criou; varão e mulher os criou natureza mortal do homem, à margem da sua criação
“(Gên.,1,27). Desde o momento em que se cruzam na como imago Dei. A diferenciação sexual não cai sob a
História o mundo helênico e a tradição judaica, a direta responsabilidade do ato criador do Princípio
argumentação e a fonte de reflexão sobre a condição divino. Este teria tido como efeito primordial o
feminina passa pela interpretação desse texto

54 55
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

surgimento perfeito de uma humanidade perfeita, especificamente cristã do relato da criação e, em


inquebrantável e imortal. A diferenciação sexual surge particular, da criação do ser humano, uma leitura que
como desejo do homem, mais do que como vontade de vá ao encontro do sentir de Deus segundo o qual o
Deus, efeito de uma desobediência à Lei divina, cuja momento supremo da criação é o descanso do olhar
responsabilidade, numa interpretação simplista e divino naquele grau de ser, homem e mulher, criado à
literal, recai sobre a figura de Eva. Nesse contexto, sua imagem e semelhança, registado no assombro do
também é justo que o castigo recaia, de modo hagiógrafo – viditque D eus quod erat valde bonum –, carece de
peculiar, sobre o elemento feminino. A lei humana uma reflexão profunda sobre o sentido da
mais não deve fazer do que refletir a justa sentença temporalidade, desvendando progressivamente o
proferida por Deus cujo juízo punitivo, desde essa que significa a criação no Princípio, e o sentido da
linha hermenêutica, recai particularmente sobre a queda, a reclamar uma restauração do tempo e da
mulher12. matéria, e esclarecendo o que significa a criação de um
A peculiar influência da filosofia platônica ser no qual, indissociável e harmonicamente, unem-se
no discurso de Fílon de Alexandria leva-lo-á a o pó da terra e o espírito de vida. Porém, a
justificar a desvalorização do sexo feminino, ao complexidade de uma tal reflexão não está, ainda,
identificar o masculino com a dimensão noética da disponível a Tertuliano. Sua peculiar situação
humanidade genérica e o feminino com sua histórica e social, marcada por duas grandes
dimensão estética13. Tal concepção permitirá ainda perseguições dos Senhores do Império sobre as
operar uma dissociação, no interior da própria
atividade humana, entre o racional e o sensível, comunidades cristãs, confere-lhe uma extrema
desvalorizando a percepção estética e, portanto, sensibilidade para a percepção de um final dos
também a própria percepção do corpo, pessoal ou tempos, ante a permanente iminência da morte, bem
alheio, que se dá sempre como fenômeno visível. como uma aguda consciência da cercania de um juízo
Sendo um fato que essa tradição hermenêutica é de Deus, em boa parte justificada pela dureza dos
assimilada por Tertuliano, tal aspecto é tempos e pela crença milenarista, a qual padece de
peculiarmente importante para compreender o uma peculiar revivescência, então como hoje, nas
alcance de um texto como De Cultu Feminarum, ou De passagens de século14.
Spectaculis, em que a conotação moral negativa da
percepção sensível é peculiarmente manifesta. Os textos do cartaginês acerca da natureza
da mulher denotam, de fato, uma peculiar
Contudo, é essencialmente nas influência do tardo-judaísmo, sobretudo em
interpretações sincréticas próprias da gnose que o algumas interpretações inspiradas nos apócrifos
homem originário, concebido como figura veterotestamentários15. A mundividência judaica
andrógina, assume um papel de peculiar contida nesses relatos era particularmente rigorosa
importância, uma vez que a alienação do masculino na apreciação do feminino. Sendo o sagrado a meta
no feminino leva à causa da perda da gnose, final da vida do ser humano, dimensão ôntica
inviabilizando todo o processo de aperfeiçoamento absolutamente transcendente, cujo habitáculo
reside numa luz inacessível, afastada de toda a
humano. Na substância eterna não existe nem afecção material, a sexualidade aparta-se e
masculino, nem feminino. A imagem do homem desintegra-se do fim transcendente. Seu uso é quase
novo é a restauração da primeva androginia, isto é, a punitivo e seu exercício é necessário apenas na
recuperação de uma humanidade em que o Todo se condição histórica do homem caído, enquanto
realiza numa perfeita identidade que não comporta único meio de conservação da espécie. Por isso
a diferenciação sexual. Nesse contexto, a concepção mesmo, o exercício da sexualidade emerge num
da restauração da imagem do ser humano original no contexto de degradação vital da natureza e, em
horizonte de uma escatologia passa pela anulação da particular, da humanidade. Levado a extremo, esse
paradigma pode vir a conceder à diferença sexual o
corporeidade e, particularmente, da sexualidade. papel de fonte e origem de toda a impureza. No
Desse modo se pode antever como uma leitura plano religioso, seu exercício tornar-se-ia uma via

56 57
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

próxima e privilegiada para o afastamento ético- salvação, e cuja abordagem se integra, portanto, no
moral de Deus e, em termos escatológicos, a porta âmbito de uma escatologia.
franca para a condenação final. Esse ambiente Indubitavelmente, Tertuliano deduz a
intelectual que envolve a diferença sexual num condição da mulher a partir da sua relação com Deus.
horizonte de negatividade e que, mais do que trazer Contudo, trata-se de uma relação metafisicamente
à luz sua magnificência, inspira temor, é o que se decadente, que necessita da fé para aceder ao mérito, a
colhe da leitura de alguns textos de Tertuliano, de fim de viver de modo ajustado à sua atual situação
modo patente os que datam da sua passagem ao histórica. A mulher deve assumir a consciência do seu
montanismo16. protagonismo na intromissão do mal no mundo e
vestir-se em conformidade, submergindo sua
indumentária num ambiente de manifesta
2.A mulher, entre anjos e demônios humilhação. Só então o exterior corresponderá à sua
condição ontológica19.
Sendo a atual condição feminina reveladora
De Cultu Feminarum é um texto chocante. As de uma deficiência ontológica e, portanto,
expectativas, criadas pelo título, de aí poder encontrar necessariamente alheia aos planos de um Deus
um tratado sobre os usos e costumes femininos em onipotente e sumamente perfeito, ela manifesta-se
Cartago, no início do século III, se é que chegaram a em dois fenômenos universais, consequência do
brotar na mente, rapidamente se dissipam. Desde o estado de corrupção da natureza: as dores do parto
início, o autor assume uma posição clara e definida e a atração do homem pela mulher. Essa última
acerca da mulher, da sua origem e da sua condição: “Dás justifica o domínio do homem sobre a mulher,
à luz em dores e angústias, mulher, e serás atraída para realidade incontornável, cuja causa ultrapassa o
o teu marido e ele do minar -t e -á : e ainda igno ras que âmbito da vontade individual, atingindo a essência
és Ev a?”17 . É e ss a a interpretação que Tertuliano faz de da natureza humana. A par de sua interpretação de
Gên., 3,6. Por isso, qualquer gesto ou atitude, qualquer Gên. 1, 26-27, Tertuliano vai delineando os
sinal, pessoal ou social, da presença feminina recorda a fundamentos de uma antropologia diferencial, bem
condição miserável em que, por sua causa, encontra-se a como os elementos que sustentam sua concepção do
humanidade. Por isso se torna inclusive contraditório feminino. Desse modo disponibiliza um conjunto de
que a mulher procure embelezar ou adornar seu corpo. elementos suficiente para que possamos definir
Em coerência com essa interpretação, o cartaginês qual o lugar da mulher na ordem dos seres, bem
acrescenta: “A sentença de Deus vive sobre este sexo, como sua função, frente à totalidade da criação. A
neste mundo: é necessário que permaneça o castigo”18. agressividade da terminologia que o autor utiliza em
Porém, se essa crueza atribuída à condição feminina torno da definição do feminino parte, com efeito, da
causa alguma perplexidade, ela se exime, igualmente, de concepção hierática do relato veterotestamentário
afirmar que a sedução dos sexos e a submissão da da queda original, sobre o qual constrói uma
mulher ao homem sejam parte integrante do feminino. exegese muito próxima das leituras tardojudaicas,
Trata-se, antes, de duas realidades com as quais é embora não dissimule, igualmente, a filiação estoica
necessário conviver, mas que derivam de uma e cínica do seu pensamento. Essa genealogia instala
decadência, da desfiguração e corrupção de um projeto o paradigma mental de Tertuliano no horizonte de
original. uma ontologia dual, impregnada de um certo
A partir da metodologia que assumimos neste fatalismo histórico. De fato, a condição feminina
comentário é possível estabelecer uma trajectória está marcada por seu protagonismo na introdução
temática coerente, de acordo com a qual o primeiro livro do mal no mundo e, sobretudo, nas sequelas que tal
de De Cultu Feminarum disponibiliza o fundamento intervenção deixou na natureza humana. Sob esse
metafísico de uma antropologia diferencial, prisma, Tertuliano confere à mulher um conjunto de
enquanto o segundo propõe uma análise atributos não peculiarmente elogiosos: ela é a porta
consequente da função das vestes femininas, do diabo, a primeira a tocar na árvore proibida, a que
enquadradas num contexto mais genérico do que o persuade o diabo a atingir aquilo que ele não era
capaz de alcançar por si só; a que tão facilmente
do estrito costume: a virtude da pudicitia, que o autor expulsou do homem a imagem de Deus20.
considera ser a via de acesso obrigatória para a

58 59
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Seguindo uma antiga tradição hermenêutica evidenciando-o, o seu corpo. Com efeito, para que
alheia ao cristianismo, a gênese da humanidade caída haja acordo entre o exterior e o interior, entre as
atribui-se ao comércio carnal, ilícito ex natura, entre os vestes e sua condição de infelicidade, deve
seres angélicos e as filhas dos homens. Assim, o processo transparecer, na ornamentação e decoro do seu
de geração, início da multiplicação dos seres, o corpo, o tom da humilhação e da vergonha25. Nesse
cumprimento do mandato “crescei e multiplicai-vos” contexto, também o vestuário surge com uma
(Gên. 1, 28), está, desde o início, imbuído de origem marcadamente negativa, consequência da
negatividade21. obtenção de um saber indevido que permite
Se a geração é efeito da degradação dos anjos, desintegrar corpo e espírito. Nessa desarmonia
seres dotados de uma missão supraterrena, a radicam o desejo de concupiscência e a vaidade, sua
mulher é, de acordo com essa versão, não apenas manifestação extrínseca26. O vestuário é, de fato,
causa da queda do homem, mas a causa da perdição frente à atual condição, metafisicamente
dos próprios anjos, que, atraídos pela beleza indispensável. Contudo, é efeito de um mal menor e
feminina, abandonam a missão essencial junto ao não deve, por isso, despertar o desejo concupiscente,
divino22. O lugar ontológico da mulher padece, inerente à mútua atração entre os sexos27.
assim, de uma certa indefinição, situando-se, entre A morte a que aqui se refere o cartaginês,
os anjos e o homem, como causa instrumental do consequência da ruptura de uma aliança originária, é,
mal. Por outra parte, a maternidade, que é inerente efetivamente, a morte biológica que confina com o
à sua estrutura biológica e que instauraria sua termo da vida. Mas ela funda-se numa realidade mais
diferença específica, emerge, de acordo com a radical, que é a do próprio afastamento de Deus,
interpretação de Tertuliano, depois da queda. Ela se inerente à transigência da lei. Para além do efeito
segue, com suas consequências dolorosas, à corrosivo manifesto sobre a vida humana dotada de
corrupção, desfiguração e distorção da imagem de corporeidade, a morte é, essencialmente, expressão de
Deus – isto é, do homem –, de que a mulher é causa, que algo interrompeu a essencial harmonia em que
precisamente pela arte do rodeio, que lhe confere uma fora criado o ser humano: o desejo de afastamento e a
linguagem polimorfa, associada à beleza do corpo, cisão do primitivo compromisso existencial. Depois
permitindo-lhe estabelecer diálogo com a serpente, da queda original, esse desejo mortal manifesta-se
símbolo do anjo perverso. Desse modo, o selo de fundamentalmente pelo afã de posse. Esse último
Deus no homem, que parecia inacessível ao concretiza-se na fabricação e no uso de toda espécie de
maligno, encontra, na mediação feminina, a ornamentos, tendo como finalidade o corpo, objeto de
possibilidade de sua corrupção23. Se por um lado é ambitio. A ilicitude desses atos – a arte de fabricar
verdade que o texto não é explícito quanto à ornamentos, a extração do ouro e das pedras
definição do modo de participação da mulher na preciosas, a tinturaria, a aplicação de pinturas sobre o
imagem de Deus, por outro ele afirma a convicção rosto e o cabelo – não deriva da malícia dos próprios
de uma modelação inicial do homem à imagem de elementos, mas da deturpação do seu sentido original
Deus, bem como a da existência de uma condição que decorre quando, livremente, ele é deslocado para
primeva de pureza e simplicidade originais, na qual um lugar inferior àquele que, por natureza, ocupa na
harmonicamente se integraria, em particular, a ordem dos seres28. Assim, tal como o vestuário é
beleza feminina, que Tertuliano considera ser um consequência da queda original, também o
atributo natural24. Em qualquer caso, o que parece ornamento, derivadamente, vem a sê-lo. Entre esse
particularmente relevante para a coerência interna saber do bem e do mal, que Eva – e com ela toda mulher –
de DeCultuFeminarum éofatodesepoderafirmaruma aprendeu no comércio com os anjos, está o saber
diferença ontológica entre a situação original do ser perverso das técnicas e artes de fabricação de todo
humano antes do pecado – o qual, segundo a versão ornamento do corpo, tão pernicioso que parece
de Tertuliano, dever-se-ia chamar, mais preparar para a mulher um enxoval de morte29. A
propriamente Eva, e não Adão – sua situação depois desordem na posse destes bens manifesta-se, na
da queda. Esse ato livre, contrário ao sentido da lei mulher, em dois níveis: o desejo de posse e o desejo de
divina, inaugura uma nova situação metafísica, ser sujeito passivo de atração. Ambos convergem num
marcada pela dor e pela morte. Esse é, afinal, o único movimento, contrário à natureza: o desejo de
motivo essencial de vergonha para a mulher e uma possuir a atração, aquele que está, afinal, na origem de
das razões pelas quais ela não deve ornamentar, todo mal. O alcance metafísico da vida e da morte,

60 61
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

unido ao conhecimento do desejo de concupiscência – supra-histórico, comum a ambos os sexos, que faz
abandono do amor-dom, essência da criação, pelo supor a afirmação de uma idêntica natureza. Mas, em
amor-posse, efeito da queda –, torna-se explícito nas consonância com a convicção inicial segundo a qual a
afirmações a propósito da atração da mulher pelos diferença sexual é efeito da queda e, portanto,
espelhos, pelo ouro, pelas pedras preciosas e pelos extrínseca à natureza humana genérica, a
tecidos finos30. Do mesmo modo, o processo de vida- concretização desse destino, no qual a perfeição
morte-revivescência – ritmo trinitário em que se original é restaurada, há de supor, igualmente, a
compõe a vida da humanidade – terá de passar, anulação da diferença36. A condição de acesso a esse
essencialmente, por uma reordenação do desejo, no tribunal em que os anjos, porque degradada a sua
esforço por recuperar uma harmonia primeva. Nesse natureza, são réus de um juízo humano é a
projeto, a um tempo cósmico e histórico, a mulher tem antecipação desse juízo no tempo presente37, por uma
um papel essencial. Por um lado, ela está dotada ex prática de vida alheia a toda a vinculação com o
natura de uma peculiar capacidade de atração. Só corpo.
assim se explica que, mesmo sem nenhum cuidado do Tertuliano fundamenta esses elementos de
seu corpo e arranjada de modo rude, ela fosse capaz sua antropologia diferencial na leitura do Livro de
de afastar os anjos do plano divino, pelo bem natural Enoch. Texto de canonicidade controversa desde os
da beleza31. No entender de Tertuliano, ela há de alvores do cristianismo38, rejeitado por judeus,
lograr o agrado dos homens sem o esplendor dos
materiais nobres e sem o engenho do decoro. como reconhece o cartaginês, pelo seu conteúdo
Inversamente, os anjos – que, curiosamente, surgem messiânico, e por cristãos, como facilmente se deduz
como dotados também de uma dimensão libidinosa de sua leitura, pelo caráter negativo e dual de sua
na sua vontade e, portanto, capazes de um desejo ontologia, aí encontramos as principais teses
concupiscente32 – exercem uma espécie de vingança explanadas pelo filósofo em De Cultu Feminarum. O
sobre a mulher, por ter sido ela a causa da sua apócrifo abre com uma visão apocalíptica,
perdição eterna, impossibilitando-a de recuperar a prenunciando um final do mundo pelo terrífico
original pureza e ofuscando-a no seu bem próprio, de abalo das forças cósmicas, do qual apenas serão
tal modo que, pela sutil vaidade do corpo, afaste-se de libertos os justos e eleitos. Inversamente, os que não
Deus33. Assim, a vaidade feminina e o cuidado souberam sustentar a lei de Deus serão malditos e
ornamental do corpo têm a sua última origem na
inveja e vingança dos anjos. O cuidado do corpo, que castigados com a ira e a rejeição divina. Aí surge
produz de si prazer à mulher e que fomenta a atração claramente exposto, como complemento do relato
do homem, é essencialmente perverso34. Nesse da criação, um conjunto de afirmações cuja
horizonte de negatividade, contudo, não deixa de veracidade Tertuliano assume sem discutir: a tese
causar alguma perplexidade o fato de Tertuliano da fornicação entre os anjos e as filhas dos homens,
reconhecer que a mulher está chamada a exercer o que daria origem à procriação40; o segredo da
mesmo ofício divino que o homem, no final dos relação concupiscente entre o homem e a mulher,
tempos, partilhando um mesmo projeto salvífico. Se revelado pelos anjos caídos, para os quais não mais
assim não fosse, esse texto exortativo e parenético – haverá paz41; o anúncio de um final dos tempos,
um entre muitos cuja autoria se atribui a Tertuliano – quando reinarão por mil anos a paz e a justiça, uma
careceria de sentido. Por isso se dirige a ela em plano
de igualdade, como irmã muito amada, aquela com vez anulados a violência, o domínio dos anjos maus
quem comunga de um mesmo projeto vital, cujo e a concupiscência, consequência da sua
sentido em comum se determina. A ambos está prevaricação42; a morte e a dor, consequência da
reservada a tarefa de julgar os anjos, mas essa relação dos anjos com as filhas dos homens43; a
dignidade superior, fruto de uma conquista (uma vez existência de espíritos malvados, filhos da união de
que ex natura a natureza angélica é superior à anjos feitos para o céu e decaídos pela união
humana), exige um combate. De fato, às mulheres carnal44. Sendo o Livro de Enoch a fonte mais próxima,
como aos homens está prometida uma mesma por vezes quase literal, de De Cultu Feminarum I, é
substância angélica: a partilha de um mesmo sexo35. natural que Tertuliano tenha dedicado todo um
Contudo, essa afirmação não é inócua. Por um lado, capítulo a garantir sua canonicidade45.Como
ela revela a convicção da existência de um destino

62 63
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

prevendo a dificuldade de aceitação de sentenças própria extração dos materiais preciosos.


sustentadas numa tão frágil autoridade, o filósofo Igualmente, deve a mulher optar por eles para
apresenta outra possibilidade de conceber a origem edificar solidamente seu percurso de santidade52.
Apesar da carga negativa que envolve o
das vestes femininas: e se esta não fosse a discurso do cartaginês, Tertuliano foi sensível a essa
prevaricação dos anjos, argumentação de fácil condição perfectível da realidade criada, aberta à
empatia com a mitologia greco-romana46? Num ensaio dinâmica que nela possa inscrever qualquer
de resposta, o filósofo entrega-se a uma hermenêutica liberdade. Toda atividade humana, o trabalho como o
fundada numa fenomenologia do porte feminino, adorno, interfere na criação, dignificando-a ou
direcionada não a uma concepção meta-histórica da degradando-a53. Se é verdade que todo esse tipo de
natureza humana, mas prestando atenção às coisas materiais deriva do criador, o mesmo não acontece
mesmas: ut consilia quoque concupiscentiae earum com suas possibilidades de uso, que permanecem por
deprehendamus47. definir. Contudo, o autor não leva ao limite as
consequências dessa tese, nem retira toda a força
argumentativa que ela poderia exercer sobre o sentido
dinâmico do real, eventualmente por se fixar
3.O pudor, porta de salvação demasiado na dimensão extrínseca e fenomênica da
criação, na qual parece fixar-se o conceito de natura.
O arranjo feminino manifesta-se sob duas Pelo ato criador, Deus estabeleceu as condições para a
formas: o cultus e o ornatus. O primeiro engloba o uso realidade, e aquilo que ele próprio não produziu não
dos materiais de que se compõem os adornos. Ao vício lhe é agradável54. Por isso, toda ação contra a
que lhe está subjacente Tertuliano confere o nome de natureza, se não parte de Deus, parte do seu rival, o
ambitio, oposto à virtude cristã da humildade. O demônio55. Assim, num universo onde os bens estão
segundo reporta-se ao cuidado dos cabelos, da pele e dados de modo determinado e fixo, quer em
das partes do corpo que atraem o olhar48. O seu efeito quantidade, quer em extensão, a atitude humana em
pernicioso é a prostitutio, claramente adverso à virtude face da constituição do real só pode ser de
da castidade, porque a afeta na sua condição de submissão56. Com efeito, os bens de cultus estão
possibilidade, ou seja, a pudicitia, em torno da qual distribuídos por Deus segundo um plano prévio, de
Tertuliano constrói as traves mestras de todo o projeto modo determinado no espaço e no tempo57. Todo
salvífico, individual e comunitário49. desejo de alteração desse plano de distribuição inicial
De acordo com o cartaginês, uma análise do gera o tremendo vício da posse desmesurada58. O
cultus poderá desvendar o sentido originário dos desejo de concupiscência manifesta-se precisamente
elementos nele empregados e permitirá compreender no que se refere à posse de bens materiais a fim de
até que ponto seu uso com vistas ao ornatus é embelezar o corpo e tem um nome próprio: vaidade. A
degradante e contraditório. Por sua vez, a concupiscência é definida como um desejo in crescendo
compreensão do alcance do ornatus esclarece o modo que valorizou desmesuradamente um bem,
como a atividade humana pode instrumentalizar o deslocando-o na ordem do ser59. O apelo ao pudor
corpo, utilizando-o de forma contrária à sua surge, então, como condição necessária para erradicar
finalidade própria, definida pela natura. Desse modo, do mundo essa desordem essencial, inerente ao uso
opor-se-ia à castidade, por omissão da pudicitia. Na instrumentalizado que se pode fazer do corpo
análise dos elementos materiais que servem ao cultus feminino. Contudo, o que o cartaginês não nos revela
Tertuliano reconduz, habilmente, sua natureza ao é o valor que lhe é próprio. Ao centrar-se na
elemento terra, uma vez que dela todos provêm: ouro, concupiscência como contravalor e na dimensão caída
prata, pedras preciosas, ferro ou bronze. O que da humanidade, obscurece o brilho que nela ainda
dignifica o ouro é o trabalho humano de escravos e resta e não nos permite uma visão integrada nem da
cristãos, condenados à morte nas minas50. Por esse matéria, no caso do cultus, nem do corpo feminino, no
mesmo fato, seu uso para fins corruptos, entre os caso do ornatus. Obtém-se, assim, uma visão
quais se conta o adorno do corpo, é, precisamente, desfocada, incapaz de perspectivar validamente o
um abuso sobre o trabalho dos mártires51. Por outra sentido da diferenciação sexual60.
parte, o ferro e o bronze são materiais essenciais, Tertuliano considera também a estreita
tanto na construção de qualquer edificação como na vinculação entre a expressão externa do pudor e a

64 65
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

castidade. Para o exercício dessa última, na qual, em mulher – divinae plasticae accesio70. Contudo, nela reside,
seu entender, radica a salvação, não bastam as simultaneamente, sua temível arma de fogo. Uma vez
realidades de domínio interno. Com efeito, o que que seu brilho é acidental frente à conquista da
viria a distinguir o pudor cristão da mesma verdadeira vida, onde quer que exista o pudor pode
qualidade moral vivida por um pagão seria sua dispensar-se a beleza, porque esta só diz respeito à
manifestação por intermédio da indumentária, e luxúria do corpo71. De fato, a proposta antropológica
não sua presença como qualidade da alma61. O de Tertuliano é clara: eritis sicut angeli, em substituição
pudor deve ser, para Tertuliano, ostensivo – a ao convite da serpente72. Dissociando a beleza corporal
mulher cristã deve distinguir-se socialmente pelo e o pudor, emerge uma imagem desfigurada da
modo como se veste62. Essa atitude parece poder mulher73. Projetando a beleza para um mundo de
justificar-se por dois tipos de argumentos. Um, de seres puramente espirituais, reflexo e ideal de
caráter cultural, incide sobre o contexto hedonista perfeição humana, rejeita o valor da diferença
da sociedade cartaginesa contemporânea de sexual74. Confundindo humildade com humilhação,
Tertuliano63; o outro, de caráter antropológico, glória humana com o resplendor da imagem de Deus
relaciona-se com a dificuldade que o filósofo tem de no corpo feminino pela obtenção, que se há de refletir
integrar a sexualidade quer no horizonte da criação, na indumentária, de uma figura harmônica, em que
quer na experiência da espiritualidade, inerente a espírito e corpo confluam na mais feliz consonância,
toda prática cristã64. Para o cartaginês, o cuidado do Tertuliano descreve uma trajetória do pudor pouco
porte externo deve salvaguardar a qualidade interna atraente. O resultado final é a emergência de um ideal
da alma, a tal ponto que temos dificuldade em da condição feminina que não pode deixar de trazer à
aceitar que o interno – o valor da virgindade e a memória figuras do imaginário infantil, tipicamente
retidão do desejo – seja superior ou possa valer-se por conotadas com o infortúnio, de que a famosa Gata
si próprio, independentemente da postura externa. Borralheira é paradigma. O filósofo cartaginês usa um
Todo o sentido dessa exortação ao pudor modelo que lhe é mais próximo – a carne dilacerada
reside, de fato, na prevenção do desejo libidinoso, de Cristo padecente –, para mostrar que esse é o
pessoal e alheio. A contribuição positiva do texto de modelo a seguir pelo cristão no trato com o próprio
Tertuliano parece residir no fato de afirmar que o ser corpo75. Ainda que o autor – profetizando sobre nosso
humano, homem e mulher, não está, por natureza, imaginário – afirme não pretender, com essa
vocacionado à posse desmedida do outro por meio do exortação, que as mulheres andem desalinhadas,
desejo65. Contudo, uma vez mais é por via negativa sujas, vestidas de modo grosseiro e selvagem, a
que o filósofo exorta à prática da virtude. É o temor verdade é que dificilmente poderiam fazer outra coisa
que leva ao estado de alerta, à permanente vigília as que quisessem assumir as indicações concretas
sobre a conduta, porque o temor conduz à precaução. divulgadas em De Cultu Feminarum76. De fato, está
Esta, por sua vez, impele ao rigor na prática da contido no agrado de Deus todo um conjunto de
virtude66. O temor que leva ao pudor há de exercer-se proibições: pintar o rosto, os cabelos e os olhos, já que
em benefício próprio, uma vez que o prazer desmedido assim manifestam o desagrado para com os dons do
do corpo leva ao desejo de possuir, e alheio, uma vez Artífice divino. De que modo respeitarão a lei divina
que a imagem do corpo feminino constitui um perigo se não respeitam os traços divinos na matéria, no rosto
para o outro67. Essa responsabilidade na condenação de cada uma?77
do outro é punida como cumplicidade e, portanto, Nesse opúsculo há ainda tempo para referir
deve ser temida. Nesse contexto, a referência feita ao um conjunto de argumentos que se prende com a
mandatum novum é pouco convincente, já que o autor
a remete para o domínio próprio, reduzindo o amor função social da mulher. Com efeito, são as mulheres
de benevolência a uma visão estreita da justiça68. pagãs que se dirigem aos lugares públicos. A mulher
Nesse sentido, o apelo de Tertuliano ao pudor cristã deve ponderar muito bem suas saídas78, já que sair
feminino parece mais um apelo de misericórdia de casa é expor-se ao olhar dos outros. E uma vez que as
sobre a fragilidade masculina no domínio da saídas devidas são ou por motivos religiosos ou de
percepção e do desejo do que uma exortação caridade, elas não necessitam do luxo; antes exigem a
reveladora de um interesse imparcial pelo destino
final das mulheres69. sobriedade. Mas o argumento que parece justificar e
Tertuliano considera a beleza um privilégio da lançar alguma luz sobre esse rigorismo e extremado

66 67
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

cuidado pela salvação parece ocultar-se entre as últimas para o cartaginês, na relação com Deus. Por isso
linhas do texto: é necessário preparar-se para suportar a Tertuliano descreve com traços firmes o ideal de
severidade e a violência dos acontecimentos, uma estranha mulher, que diz ser a cristã83. Nesse
processo, todas as mediações devem ser deixadas de
enfrentando, a cada hora e em cada instante, os sinais lado, em particular aquelas que se relacionam com a
dos tempos e a proximidade da morte79. Importa ter sexualidade. Contudo, tal dimensão pessoal está
presente a recomendação do Apóstolo dos gentios: o irremediavelmente submersa na região das trevas.
tempo está próximo – nos sumus in quos decucurrerunt fines Assim, se por um lado são compreensíveis os fortes
saeculorum80. apelos do filósofo de Cartago, reveladores de uma
O que causa uma certa perplexidade na leitura sensibilidade profunda, de difícil gestão ante a
desse opúsculo é o divergente ponto de partida da dimensãofenomênica, extremamente agressiva, das
argumentação presente no primeiro e no segundo livro circunstâncias, por outro não é possível deixar de
de De Cultu Feminarum. No livro primeiro, a posição de verificar que uma proposta de perfeição fundada
Tertuliano é claramente negativa e incompatível com num conjunto de negações é avessa à
uma metafísica cristã da criação material e, portanto, inteligibilidade do cristianismo. Com efeito, a Nova
da sexualidade. No segundo, o autor afirma a Aliança centra-se na perfeita e harmônica
positividade do pudor como valor que preserva a completude entre a figura de Cristo, Homem-Deus,
excelência da mulher, templo do espírito santo, cujo e a Mulher Vestida de Sol (Apóc.12,1): uma versão
ideal de perfeição é a paternidade de um Deus de que negativa da corporeidade não pode sustentar-se
seu corpo é morada81. Se a mulher é, em De cultu numa metafísica que defende, contra todas as
feminarum I, ianua diaboli, já no livro segundo o pudor gnoses, o resplendor e a positividade da matéria.
surge como o valor – quase material, porque necessita
de uma comprovação factual, fisicamente visível – que
revela a qualidade da alma como habitáculo do Notas
divino. A pudicitia é a qualidade dos corpos que
franqueia o acesso aos valores espirituais. A D. INNERARITY , A Filosofia como uma das Belas Artes, Teorema,
intimidade, que Tertuliano reconhece como
Lisboa, 1995, p. 87.
característica essencial do núcleo pessoal, direcionada TERTULIANO , De Cultu Feminarum [DCF]. Seguimos a edição do
à posse de bens eternos, depende, se não corpus Agobardinum , reproduzida em Sources Chrétiennes, 173.
exclusivamente, pelo menos de modo taxativo, da Texto, trad. Comentário de Marie TURCAU . Cerf, Paris, 1971,
administração dos bens materiais e de seu uso pp. 42-171. Na Introdução pode-se ler o estado da discussão
mesurado sobre o corpo do homem ou da mulher. A sobre a composição do texto crítico. Turcau opta por
considerá-lo um único tratado, dividido em dois livros (I De
pudicitia, valor que se refere ao resguardo do corpo, é Habitu muliebri; II De Cultu Feminarum ), e atribui a composição
portal de mediação indispensável à obtenção de uma da obra ao período da evolução de Tertuliano antes de sua
qualidade espiritual, própria da vida depois da morte passagem ao montanismo [Existe uma tradução portuguesa:
– a castidade, em que a atração sexual será anulada, Tertuliano, A moda feminina, trad. Fernando Melro e João
Maia, ed. Verbo, Lisboa, 1974. Inclui também a tradução de De
porque a prática do amor anulará a mediação do sexo. Sptactaculis].
Se a concepção feminina de Tertuliano não é O enquadramento histórico desta questão – o
particularmente atraente, ela manifesta, todavia, a fundamento antropológico da pudicitia, integrado numa
convicção de que o núcleo pessoal se configura pela hermenêuticadadiferenciaçãosexual – obriga ao confronto
intimidade. Ainda que esse conceito não esteja com as diferentes versões do problema, culturalmente
disponíveis a Tertuliano, nos alvores do século III. Nessa
claramente balizado pelo autor, ele aporta-nos a abordagem, assistiremos ao diálogo intelectual do cartaginês,
consciência clara da relação entre um processo de na esteira dos primeiros que procuraram inteligibilidade
maturação físico e biológico e o desenvolvimento da para as teses inerentes à nova religio, inseparável de uma
percepção da intimidade, capaz de permitir um reflexão sobre o Livro do Geneses. Como critério de destrinça
sobre a autoridade dos mitos, é útil recordar a dimensão
acréscimo de intensidade psicológica e afetiva82. funda dessa noção, tal como no-la propõe, no seu contexto
Esta, por sua vez, comporta características próprio, Ricoeur: “Le mythe est autre chose qu’une explication du
específicas tanto no âmbito das relações monde, de l’histoire et de la destinée; il exprime, en terme de monde, voire
d’outre monde ou le second monde, la compréhension que l’homme prend de
intersubjetivas como no das relações matrimoniais, lui-même par rapport au fondament et à la limite de son existence (…). Il
dimensões que Tertuliano não logra desenvolver. exprime, dans un langage objectif le sens que l’homme prend de sa
A maturidade do amor só pode alcançar-se, dépendance à l’égard de cela qui se tient à la limite et à l’origine de son

68 69
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

monde” (P. RICOEUR, Le Conflit des Interprétations, Paris, Seuil, A tese será objeto de atenção particular em Ad Uxorem , I. A
1969, p. 383). instituição do matrimônio, sem dúvida de origem divina,
Cf. “Hermaphroditus”. Danamberg-Saglio, Dictionnaire é indispensável à ordem da criação (cf. Gên . 1, 28 e 2, 24).
des antiquités grecques et romaines [DAGR], III-1, pp. Mas se trata da opção por um mal menor, de uma
135-139 [http://dagr. univ- concessão, necessária mas deplorável, aos mais vis
tlse2.fr/sdx/dagr/index.xsp: acessado em instintos do homem, de acordo com a leitura
descontextualizada que Tertuliano faz de 1 Cor. 7. O
24/03/2009]. matrimônio não é um bem em sentido pleno, uma vez
Cf. PLATÃO, Banquete, 186c-193d. que é apenas permitido por Deus e não obrigatório.
HESÍODO , Les Travaux et les Jours, trad. P. Mazon, Paris,Belles- Nesse caso, trata-se de um bem de mediação, claramente
Lettres,19862, v. 60 e ss. instrumental, e, no entender do autor, de um bem
estabelecido por referência a uma falha ou queda (cf. Ad
Ibid., vv. 80-82. Uxorem , I, 3-4). Como faz notar P. GRAMAGLIA, a ideia de
8 Ibid., vv. 90-100. uma incompatibilidade entre a santidade e o exercício da
Referindo-se à peculiar situação da mulher, sobretudo sexualidade tem sua matriz cultural num conjunto de
em Atenas, P. A. GRAMAGLIA escreve: “Già alla nascita le elementos inerentes às mundividências estoica e hebraica
(cf. Tertuliano..., pp. 105-107, n. 18-20).
bambine ritenute di troppo non erano riconosciute dal padre e venienano 22 Cf. DCF, I, 2, 1.
esposte molto più facilmente che non imaschi; chi le raccoglieva, le allevava Esse texto torna imediatamente presente à memória o
in genere come etere e come cortigiane”, Tertulliano. De Virginibus conteúdo de De Opificio Mundi, § 156, em que Fílon afirma
Velandis. La condizione femminile nelle prime comunità cristiane. Borla, que a mulher do primeiro homem, sem reflexão e com
Roma, 1984, p. 8, n. 3. base num juízo instável e superficial, consentiu em comer
do fruto da árvore proibida. Como a união sexual entre o
O estudo de G. DELLING disponibiliza um conjunto de macho e a fêmea se deu depois desse ato, ela tem
dados, completo e fundamentado, sobre a origem da necessariamente como guia o prazer: por ele se realizam a
diferenciação sexual segundo a mitologia pagã, a tradição fecundação e a procriação, razão pela qual o prazer é a
judaica e o cristianismo (cf. Geschlechter, Reallexikhon für primeira afinidade entre os seres gerados (cf. De Opif.,
Antike und Christentum , 10 [1978], pp. 780-786). §161).
Cf. FÍLON DE ALEXANDRIA , De Opificio Mundi , §134; §153 O texto padece de uma certa ambiguidadequanto ao sentido
(Introd., trad. e notas R. ARNALDEZ, Paris, Cerf, 1961). – gênero ou dif eren ça esp ecíf ica? – do t erm o “h o m inis”.
Cf. P. GAMAGLIA , op. cit. , pp. 28-29, n. 13, onde, por Co n t u do, uma inferência possível é a que afirmaria que
comparação com o direito romano, já de si bastante apenas o homem-varão teria sido criado à imagem de Deus.
desfavorável para a condição feminina, mesmo na época A ser assim, a mulher teria sido criada à imagem do varão,
imperial, relata a especial dureza da lei judaica nas penas interpretação que permite um universo de sentidos
impostas às mulheres e nas formas de execução. polimorfo, quase caleidoscópico. Nesse caso, sua dependência
Cf. FÍLON DE ALEXANDRIA , Legum Allegoriae , II, 34-38 em relação ao homem seria natural, mas Tertuliano não nos
(Introd., trad. e notas MONDÉSERT, Paris, Cerf, 1962). autoriza semelhante dedução, uma vez que afirma que tal
Comentando o texto de Gên . situação é decorrente da queda e, portanto, de um vício da
2.22, Fílon afirma que o nome exato e conveniente para a natureza (cf. DCF, II, 8,1). Nessa medida, a pudicitia é uma
sensibilidade é “mulher”, uma vez que ela foi feita do sono qualidade que se exige a ambos. Em DCF, II, 8, 2, o autor tece
de Adão, isto é, de uma outra dimensão alheia, extrínseca e algumas críticas à falta de gravidade que revela o homem
diversa à da racionalidade, cujo uso, enquanto dormia, quando cuida excessivamente o próprio corpo: “barbam
naturalmente suspendera. acrius caedere, intervellere, circumradere, capillum disponere etiam
O édito de Sétimo Severo que, no ano 202, proíbe a colorare, canitiem primam quamquam subduceretotius corporis lanuginem
conversão ao cristianismo e ao judaísmo e a violenta pigmento quoque muliebri distringuere… ”. Para um apuramento
perseguição de Caracala no ano 212 (Nouvelle Histoire de crítico do vocabulário de Tertuliano, ver R. BRAUM , Deus
l’fíglise, I [dir. R. AUBERT], Paris, Seuil, 1963, pp. 174-176). Christianorum. Recherches sur le vocabulaire doctrinal de Tertullien,
Paris, 1962.
Um estudo detalhadoda concepçãojudaica do feminino e de Cf. DCF , I, 1: A mulher sensata deve cobrir a sua vergonha,
sua peculiar influência em Tertuliano pode-se ler em P. chorar a sua condição e redimir-se de ter sido a causa da
GRAMAGLIA , Tertuliano. De Virginibus Velandis. La condizione perdição do gênero humano de modo particular procurando
femminile nelle prime comunità cristiane. Borla, Roma, 1984. que a sua atitude externa seja reveladora dessa condição
Cf. NouvelleHistoire... ,pp.184-190. infeliz. E acrescenta o autor: “Propter tuum meritum, id est morte,
17 Cf. DCF, I,1,10. etiam filius Deimorihabuit:et adornari tibimentem est super pelliceas tuas
DCF , I, 1, 2: “Vivit sententia Dei super sexum istum in hoc saeculo: vivat et tunicas?”
reatus necesse est.” De acordo com o relato bíblico,o conhecimentodo bem e
É uma constante desse pensador a preponderânciado do mal, inerente à desobediência original, leva Adão e Eva
exterior sobre o interior, de tal modo que não pode haver a tomar consciência da nudez, recorrendo aos elementos
retidão de alma sem que, quase com razão de imediatos que a natureza lhes proporcionava para se
anterioridade, ela se manifeste no corpo (cf. DCF, II, 9, 8; cobrirem. Deus, misericordiosamente, tece para eles
II, 12, 3; II, 13, 2). túnicas de pele (cf. Gên , 3, 21). Que sentido faria, escreve
Tertuliano, enriquecer e valorizar as vestes femininas,
20 Cf. DCF, I, 1, 2. que são, afinal, a manifestação de tão misérrima condição

70 71
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

(cf. DCF, I, 2)? em que se afirma, interpretando o caso da sucessiva morte


O cuidado das vestes com o fim de evidenciara beleza é dos maridos, uma vida ulterior na qual “sereis todos
entendido em si mesmo como prostituição e lenocínio (cf. semelhantes aos anjos”.
DCF, II, 9,4). 37. Cf. DC F , I , 2 , 5 : “N isi e rgo hic ia m pra e dica ve rimus res eo rum
Cf. DCF II, 10, 5: Odiscernimento do programadivino para praedam nandum quas in illis tunc damnaturi sumus, illi potius nos
o uso conveniente e justo das realidades criadas é a pedra iudicabunt atque damnabunt”. O combate é pelos anjos,
de toque da sabedoria. Contudo, Tertuliano não confere prevaricando, ou contra eles, praticando a lei divina.
nesses textos outro critério para além do dado fenomênico
do cuidado das vestes – que, encobrindo a verdade da Tertuliano não consegue encontrar formas de mediação,
miséria com a aparência da beleza, atrai o homem como concretamente explorando o modelo de relação entre Deus
ímã irresitível do desejo concupiscente – e da certeza da e o homem, instaurado desde a criação.
proximidade de um final dos tempos. 38. Cf. Libro di Enoch (P. SACCHI, Apocrifi dell’Antico Testamento,
DCF , I, 1, 3. Cf. I, 2, 1; II, 10, 1-2: Os anjos revelaram saberes trad. L. Fusella, Torino, 1981). Sobre o Livro de Enoch na
ocultos, como são o da extração dos minérios e, tradição cristã, v. pp. 429-430.
concretamente, do ouro, o conhecimento das propriedades
das plantas, a força dos encantamentos e a interpretação 39 Cf. Enoch, I, 1, pp. 468-470.
dos astros. Tertuliano estabelece uma especial relação entre 40 Enoch, I, 2, 6.
as forças do mal e estes níveis de realidade: o trabalho das 41 Cf. Enoch, 19, 1-2.
minas, a exploração dos recursos das plantas e a astrologia. 42 Cf. Enoch, 10, 16-17.
No primeiro caso, a condenação de morte de escravos e, 43 Cf. Enoch, 12, 4.
posteriormente, de cristãos, mediante a realização desse
tipo de trabalhos, tornava-os especialmente indignos (DCF, 44 Cf. Enoch, 15, 3, 9-10.
I, 5, 1-2); no segundo, Tertuliano aduz um argumento que, Cf. DCF I, 4; II, 10, 4. Para além desse apócrifo,
sendo dificilmente conciliável com uma metafísica da encontramos referências sobretudo a passagens
criação, não deixa de ser curioso: o trabalho artificial de veterotestamentárias (Isaías; Thamar, no livro II ), a
tinturaria – tanto no caso dos tecidos como no dos próprios algumas passagens evangélicas (p. ex., Mt, 15, 5, em DCF,
cabelos – contraria a intenção natural do Criador. Supõe, II, 13, 2) e a alguns textos paulinos referentes à escatologia
portanto, uma rejeição da natureza e do plano de Deus que, ou à condição feminina, numa hermenêutica que não
se quisesse obter tecidos de lã policromada, teria permite uma compreensão harmônica do corpus paulino.
diversificado a cor dos elementos originários (assim, Com efeito, em Cartago,a concepçãode uma divindade
poderia ter criado ovelhas de várias cores, mas não o fez). andrógena se tinha enraizado entre os cultos pagãos (cf.
Do mesmo modo, tarefas como a pintura dos cabelos, DAGR, pp. 136-137).
tendo em vista uma certa metamorfose do corpo, só podem Cf. DCF I, 4, 1-2. Para Tertuliano, o que permanece
ter origem no Princípio do Mal, fonte de toda a incontestável é a impossibilidade de um olhar inocente,
metamorfose do espírito (DCF, II, 5, 3-4: “Quod nascitur opus Dei à margem da concupiscência, assumindo a condição
est. Ergo quod infingtur diaboli negotium est”). Curiosa é a crítica desordenada da percepção como parte da dimensão
do autor ao costume de pintar o cabelo, que interpreta como fenomênica do real.
uma revolta feminina sobre o desígnio divino em relação à C f . D C F I, 4 , 2 .
nação de origem. Tais atos seriam conotados com um desejo Cf. DCF II, 1, 1. A salvação é indissociável,para os homens
de deserção da pátria e da religião (cf. DCF, II, 6,1). Por como para as mulheres, da exibição do pudor, expressão que
último, a magia e a astrologia, ciências ensinadas pelos por ser contraditória é, de si mesma, sobejamente
anjos perversos (DCF, I, 2,2), eram artes especialmente eloquente. Tertuliano considera a castidade guardiã da
conotadas com as forças do mal e, portanto,punidas por lei santidade que reside na morada interior do cristão. O
(cf. GRAMAGLLIA, Tertuliano..., sobre a gravidade das pudor é a porta da salvação, tal como a mulher é a porta
penas para as mulheres surpreendidas em delito de do diabo. Assim, a santidade depende em boa parte do
magia, p.49). pudor. O que parece estar na origem dessa tese é uma
Cf. DCF, I, 3. incapacidade de entender a integração do corpo e do
31 Cf. DCF, I, 3-4. espírito, em perfeita harmonia na dinâmica da natureza
Cf. DCF,I,4. humana, um e outro a necessitar de uma permanente
DCF , I, 4: “Certi erant omnem et gloriam et ambitionem et affectionem per integração no percurso de santificação (cf. DCF, II, 1,1).
carnem placendi Deo displicere”. Dessa perspectiva, Tertuliano entra em dissonância com
Tertuliano define a beleza do corpo como atributo a dimensão mais profunda de toda a metafísica cristã,
natural da mulher, mas não explicita em que consiste essa para a qual o discurso de Paulo é clarividente: a santidade
identifica-se pela caridade (cf. 1 Cor 13,1-7). De algum
pulcritude. Assim, cabe a possibilidade de que o autor modo, Tertuliano se contradiz, pois também ele sabe que
identifique a beleza com essa capacidade de atrair o assim é. Se a salvação dependesse do pudor, o martírio
homem pelo corpo que, mais do que uma condição das virgens defloradas ou desnudadas, como era costume
natural da mulher, é uma característica própria do entre os romanos, seria, em termos escatológicos, o mais
modelo masculino de percepção. absoluto fracasso.
DCF , I, 2, 5: “Nam et vobis eadem tunc substantia angelica repromissa, C f . D C F I, 5, 1.
idem sexus qui et viris, eadem iudicandi dignitatem pollicetur”. 51 Cf. DCF I, 5, 1-2.
Essa afirmação de Tertuliano, uma vez mais, tem suporte DCF I, 6, 1-2. A superioridadedos materiais preciosos vem
escriturístico. Em causa está a interpretação de Mc.12, 25, a ser justificada, em I, 7, 1, de raritate et peregrinate, por serem

72 73
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

raros e exóticos. Mas Tertuliano contorna o argumento, purificação do abuso anteriormente praticado (cf. DCF II,
mostrando a relatividade do critério: onde não sejam raros 9, 7).
nem exóticos, seu valor depende, uma vez mais, do uso que DCF II, 2, 2: “Debemus quidem ita sancte et tota fidei substantia incedere
deles se faça. ut confisae et securae simus de conscientia nostra optantes perserverare id in
C f . D C F I, 5 , 2 . nobis, non tamen praesumentes”.
DCF I, 8, 12: “Non placet Deus quod non ipse producit; nisi si non potuit DCF II, 2, 1: “Perfectae autem id est christianae pudicitiae appetitionem
purpureas et aerinas oves nasci iubere. Si potuit ergo iam noluit; quod Deus sui non tantum non appetendam sed etiam exsecrandam vobis sciat”.
noluit utique non licet fingi”. Cf. DCF II, 2, 2, em que se afirma que o temor é o
Cf. DCF I, 8, 1-3. Essa concepção dualista da realidade é fundamento da salvação.
incompossível com uma metafísica cristã, cuja Cf. DCF II, 2, 4. Nesse caso, o outro é o homem e, mais
especificidade é o fato de se compor em compasso ternário, concretamente, Tertuliano, o homem que escreve. Uma análise
partindo do princípio de que toda realidade criada, à metalinguística desse texto permite antever o inquieto autor
margem da qual nada é, é boa, mesmo excelente. De fato, que, tendo construído um universo onde a matéria e a
assim foi contemplada por seu Autor desde o Princípio e, percepção sensível têm uma conotação demasiado
se assim não fosse, seria efeito de um Deus deficiente. negativa, vê-se a braços com a dificuldade de alcançar a
Cf. I, 9, 1. Esse é o sabor de um texto como De Patientia . paz eterna, num mundo onde a imodéstia e a impudicitia (a
Igualmente, em De fuga in Persecutiones, a tese central é a da idolatria da imagem e do espetáculo) emergem por toda
sua ilicitude. Por último, a polêmica em torno do casamento parte. Se acrescentarmos a esse conjunto de dificuldades
em segundas núpicas, presente em textos como De uma certa superstição de origem milenarista, teremos uma
Exhortationem ou Ad Uxorem , identifica este entre os noção mais completa da angústia de Tertuliano (cf. DCF II,
argumentos contra a sua moralidade. 9, 8).
É difícil dissociar essa tese determinista das influências DCF II, 2, 4: “Perit enim ille simul ut formam concupierit et admisit iam
estoicas e cínicas que terá sofrido o pensamento de in animo quod concupiit (…)”.
Tertuliano. Igualmente, é difícil dissociar esses escritos DCF II, 2, 4 . Tertulianoconfirma, assim, uma das teses da
do cartaginês da situação histórica real das primitivas psicologia contemporânea: a percepção masculina detém-
comunidades cristãs, contemporâneas do autor, se, de imediato (in appetendo: DCF II, 2, 1), na imagem
permanentemente ameaçadas de perseguição e de corpórea, na dimensão externa do que capta, enquanto a
morte. feminina fixa-se peculiarmente na percepção imediata da
Cf. DCFI, 3. pessoa como totalidade, conjunto corpo-espírito. Na
DCF I, 9, 3: “Nam tanto maior fit consupiscentia quanto magno fecit verdade, interroga-se o autor, em que concorre o adorno
quod concupiscit”. dos cabelos para a salvação? “Não podeis deixar em paz os
Inversamente, uma metafísica positiva da criação, para vossos cabelos que ora vemos atados, ora soltos, ora
levantados, ora caindo?” (Cf. DCF, II, 7, 1). Por outra parte,
além do olhar contemplativo de um Deus que se recreia revela-nos, também, a convicção de que, no relacionamen-
no final do labor criativo (Gên . 1, 31), considera, ainda, o
resplendor da matéria redimida e destinada a edificar, no to social mais elementar, está implicada a percepção da
tempo, a Jerusalém celeste. diferença sexual e, portanto, a mútua atracção
concupiscente (cf. DCF II, 8, 1-2).
DCF II, 1, 3. Tertuliano não esclarece as propriedades do
corpo e da alma na constituição da pessoa humana. Tal Cf. D C F II, 2, 6.
indefinição é responsável por uma certa equivocidade, Cf. DCF II, 3, 1.72 Cf. Gen . 1, 5.
inerente à sua proposta antropológica. Assim, em De Carne DCF II, 3, 1: “Sufficit quod angelis Dei non est necessaria”. Tertuliano
Christi afirma-se que todo o existente é corpo (corpus sui projeta uma visão etérea da mulher, de modo a coincidir, no
generis). Se Deus existe, então é corpo, etsi spiritus est (Adversus tempo, com a concepção que tem da ressurreição final: uma
Praxeas, 7), ainda que corpus possa significar, aqui, substantia. visão espiritualizada, em que as qualidades morais vêm a
Por outra parte, atribui à alma, substância espiritual, transformar-se numa proposta mística. No plano religioso, de
propriedades corpóreas (cf. De Anima, 7-9). Essa acordo com essa proposta, a sexualidade surge desvinculada
diversidade de sentidos, eventualmente espelho da da natureza humana.
multiplicidade indiferenciada de autoridades em que o Cf. D C F II, 3, 2.
autor se sustenta, reflete-se diretamente sobre a concepção Uma vez mais é necessáriocontextualizare ter em conta
de pudicitia. que a realidade dos homicídios coletivos sobre os cristãos
Cf. DCF , II, 1, 2; II, 13, 1. A castidade perfeita não exige é vivida por Tertuliano de modo muito próximo.
apenas que se queira não ser desejada, mas inclui o desejo Contudo, nesse texto o autor assume a realidade cristã
de ser desprezada. pela via negativa, fixando-se na condição sofrida da
O próprio autor refere, em tom de certa redenção mais do que nos elementos disponíveis para
condescendência, as dificuldades que a conversão ao uma reinterpretação da realidade circundante.
cristianismo poderia supor na mudança de costumes DC F II, 5, 1: “N on supergrediendum ultra quam quod simplices et
por parte das mulheres. Cf. DCF II,9, 4, em que refere, ssufficientes munditiae concupiscunt, ultra quam Deo placere”. A
sobretudo, o caso de posição social anterior à conversão recomendação reduz-se à expressão mais simples: mais do
exigir uma administração prudente desses conselhos. De que ao marido, importa agradar a Deus, puro espírito.
algum modo, fica-nos a convicção de que, na mente do DCF II,5,5.
autor, a conversão exigiria uma mudança de estado. Esta
dever-se-ia evidenciar pela extrema austeridade no uso DCF II, 11, 1: “Propter istos enim conventus proferuntur aut ut luxuria
das vestes e adornos, inclusive como caminho de negotietur aut gloria insolescat. Vobis, autem nulla procedendi causa non

74 75
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

tetrica”.
Cf. DCF II, 13, 5.
DCF II, 9, 8. Tertulianoidentificaoseu tempo com o Final EX HOMINE UNO:
da História. 81 Cf. DCF II, 1, 1; 1, 4.
Cf. De Virginibus Velandi 11, 1-4. Tertuliano refere que a UMA LEITURA DA CONDIÇÃO
mulher há de praticar o dever de se cobrir, não só nas
cerimônias religiosas, mas de modo habitual, uma vez FEMININA
que esse costume não releva do domínio religioso mas da
condição humana degradada. Contudo, há de velar seu
EM AGOSTINHO DE HIPONA
rosto apenas a partir do momento em que começa a PAULA OLIVEIRA E SILVA
sentir-se mulher, o que significa uma percepção clara de (Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa)
sua sexualidade feminina. Saindo do estado de jovem, a
virgem dever suportar o novo fenômeno fisiológico que
indica a passagem para uma novidade da vida.
Tertuliano tem clara convicção de que o crescimento
biofísico do homem e da mulher é acompanhado por
uma progressiva tomada de consciência da intimidade e, A posição de Sto. Agostinho sobre a condição
portanto, exige um diferente modo de relacionamento feminina encontra-sedesenvolvida essencialmente nos
entre ambos os sexos, que considera dever manifestar-se Comentários literais ao Livro do Gênese1, redigidos entre
externamente, pela cobertura do rosto (v. também DCF os anos 388 e 415 com o objetivo primeiro de desmontar
II, 9, 1-4). as teses maniqueístas sobre a natureza do Princípio.
DCF II, 13, 7: “(…) Curvai submissas a cabeça diante dos Contudo, as intuições fundamentais neles explanadas
vossos maridos e estareis suficientemente embelezadas; encontram-se já delineadas nos Livros X a XIII das
ocupai as mãos em fiar e havereis de agradar mais do que o Confissões2. Nessa obra, o filósofo disponibiliza as
ouro. Vesti-vos com a seda da honestidade, com o linho da
santidade, com a púrpura da castidade. Desse modo coordenadas essenciais da sua concepção do tempo e
ataviadas, tereis Deus por amante”. da memória, as quais lhe permitirão defender a
condição histórica da razão humana, nomeadamente
enquanto produtora de discurso e capaz de
interpretação. Ao mesmo tempo, expõe uma sinopse
das interrogações e respostas que interpelam
qualquer leitor do relato bíblico das origens. Com
efeito, nas Confissões, a versão agostiniana sobre a
natureza da mulher parece afirmar-se taxativamente
no sentido de uma descarada misoginia. No Livro XIII,
lê-se: “Assim como na alma há uma parte que impera
pela reflexão e outra que se submete para obedecer,
assim também a mulher foi criada, quanto ao corpo,
para o homem. Ela, possuindo uma alma de igual
natureza e de igual inteligência, está, quanto ao sexo,
dependente do sexo masculino (…). Essas são as coisas
que contemplamos e que, tomadas de per si, são belas.
No seu conjunto são ainda mais belas”3. Uma versão
simplista e descontextualizada desta e de outras
passagens similares, existentes no conjunto da obra
de Agostinho, obrigar-nos-iam a comprovar nele mais
um testemunho da negatividade que a tradição
ocidental parece atribuir à concepção patrística do
feminino, bem como a ajuizar da suscetibilidade de
uma concepção de divindade que, na sua onipotência
– fazedora dos seres e legisladora universal –,
discrimina ab ovo a natureza humana pelo sexo. Porém,
uma leitura mais diligente e apurada das razões de

76 77
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Agostinho permite alargar esse horizonte De fato, para Agostinho a razão é aquela
hermenêutico e obter, para tais afirmações, a faculdade que opera a distinção entre o ser humano e
plenitude de sentido em que se inscrevem. os quadrúpedes, sendo a atividade da mente aquela
pela qual lhes é superior na hierarquia dos seres.
Contudo, para o filósofo a dimensão mais funda da
1.A condição feminina no Princípio razão coincide com a percepção da condição temporal
dela. Por isso, na psicologia agostiniana, a memória
Uma análise da condição feminina baseada assume características peculiares entre as funções da
mente. Com efeito, ela pode recordar muitas coisas, e
na interpretação agostiniana do Livro do Gênese sua atividade admite diversos graus de interiorização,
obriga, antes de mais nada, a uma reflexão de caráter mas seu domínio mais penetrante transcende à
metodológico, a fim de verificar qual a viabilidade apreensão da realidade sensível, registrada pela
de uma proposta de análise literal do relato fantasia, supera o terreno psicológico do
genesíaco. A tradição alexandrina propusera uma autoconhecimento e da apreensão da totalidade da
leitura alegórica que parecia adequar-se existência como conjunto de experiências realizadas
magnificamente ao caráter místico-poético desse no decurso do tempo e ascende à possibilidade de
texto. Agostinho tentou-a, mas comprovou que a captar o próprio modo de existência como a de um ser
metáfora não fixa a interpretação, envolvendo-a em que, na fugacidade do múltiplo, não pode negar a
obscuridade. No esforço por tornar clara a percepção da constância do uno8. Essa percepção da
amplitude de sentido contida numa metafísica da persistência do ser que dá consistência à própria forma
criação, Agostinho ensaia um comentário histórico- de um ente – no caso do ser humano, a de um ser que
literal4. Contudo, deixa constância do exercício de é, vive e pensa – denota, para Agostinho, a marca do
liberdade em que consiste toda interpretação, ao Princípio no íntimo da mente humana e presencia-se
escrever que não faz apanágio da sua própria, ela na memória. Nas Confissões, ao analisar a misteriosa
mesma polimorfa5. De fato, várias hermenêuticas natureza do tempo, escreve: “Os tempos não são
são compossíveis, ainda que Agostinho esteja futuros nem passados, e só impropriamente se usa a
convicto do caráter abrangente de sua expressão:‘os tempos são três, passado, presente e
interpretação6. futuro’; seria talvez mais correto dizer: ‘os tempos são
A proposta de um comentário literal da três: presente do passado, presente do presente,
versão veterotestamentária do mito das origens parte presente do futuro”9.
da convicção da historicidade do próprio texto. É ao recôndito da alma que o autor entrega a
Contudo, essa não é, para Agostinho, uma percepção da continuidade da existência como
característica peculiar do discurso bíblico, mas uma suporte de toda a experiência humana, sempre
condição de toda palavra, seja qual for sua forma de temporalmente determinada. Essa continuidade
transmissão. Por isso dificilmente se poderá entender identifica-se com a captação do presente, pela
o sentido da exposição agostiniana sobre o Gênese constância da existência inerente à experiência do
prescindindo de sua reflexão sobre a categoria tempo, medida do movimento. Procurando superar
metafísica do tempo enquanto afecção de todas as essa concepção, herdada da cultura antiga, o filósofo
formas de existência. Uma hermenêutica que se exerça de Hipona interroga-se sobre a medida do próprio
sobre expressões como “In principio fecit Deus caelum et terram tempo. Ao remetê-la à eternidade, define-o como
“ ou “ non est bonum esse hominem solum: faciamus ei adiutorium uma certa distensão. Esta, a partir da percepção de uma
secundum ipsum“ supõe a possibilidade de percepcionar o existência sempre presente e permanente, permite
tempo da narrativa. narrar o passado e programar/profetizar o futuro10.
Este, como o da própria história, está A memória, enquanto função unificadora da
cadenciado por três advérbios de tempo: tunc, nunc, tridimensionalidade do tempo, capta a própria
usque ad7. Por isso, todo texto que se reporte à consistência ontológica do ser humano, adquirindo,
consideração do Princípio assume a historicidade para Agostinho, um alcance metafísico mais do que
da própria atividade reflexiva como condição de estritamente gnosiológico. A recordação de si como
possibilidade do discurso. subsistência ou permanência no tempo converge para a

78 79
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

percepção de Deus, cujo atributo é, por excelência, a nada se pode formar a si mesmo, porque nada pode
eternidade11. A partir dessa dimensão profunda da ser causa daquilo que não possui por essência,
memória torna-se então possível compreender a Agostinho concluíra que toda forma de existência
contingente depende de uma Forma cuja
realidade a partir do próprio Princípio de totalidade, característica é a imutabilidade14. Essa Suprema
cuja característica é a eterna presença e subsistência. Essa Existência, caracterizada por seu completo
perspectiva de totalidade, caso se consiga transmitir por antagonismo frente a todos os seres, recolhe-se num
palavras, seja qual for o tema sobre o qual verse, confere termo único: eternidade. fí e permanece estável no seu
ao discurso características de universalidade. Se a movimento15.
realidade em causa é, agora, o texto que narra a origem Agostinho foi sensível à dificuldade de
do universo, o exercício da dimensão mais funda da compor um texto como o Gênese, bem como à causa
memória torna-se não apenas necessário, como das angústias de todo ensaio de interpretação. Com
potenciador do sentido da interpretação. Assim, o efeito, trata-se do relato de uma ação
necessariamente intemporal sobre uma realidade
comentário sobre o mito bíblico das origens levado a que, seja qual for a sua natureza e o modo como se
cabo por Agostinho não se centra na peculiar situação venha a organizar, dá-se no tempo. O projeto da
existencial do filósofo, nem se circunscreve aos Criação é, do ponto de vista do Criador, uma
condicionamentos históricos que a envolvem, para realidade plena e eterna que, de algum modo e para
obter, por dedução, um sistema capaz de explicar a além da aparente contradição, está acabada no
facticidade do mundo. No entender de Agostinho, a Princípio16. Este, entende-o Agostinho, nos Comentários
percepção da existência de “coisas que vêm a ser mas antes literais ao Livro Gênese, como Palavra concriadora que
não eram” mostra clamorosamente que o mundo não se ressoa eternamente em ordem à feitura da obra, sem
que isso suponha qualquer relação com a sucessão
autofundamenta. Sua condição de factum impele a das sílabas longas e breves, isto é, com a presença dos
mente a inquirir acerca do modo de fabricação12. seres no tempo. Essa palavra originária tem uma
Contudo, para o filósofo, o mundo não é apenas um natureza dinâmica, cuja mais fiel reprodução no
artefato, caso em que, pela observação dos produtos tempo será, porventura, a forma imperativa do
fabricados, revelar-se-ia a essência do Princípio verbo latino facere: fiat17. Ela vibra numa dimensão
operativo. Para o hiponense, a atividade criadora é ontológica diferente da que corresponde à sua
essencialmente Verbo e por isso, na compreensão do pronunciação temporal, precisamente porque o
universo, o recurso ao dito é indispensável. A criação do conteúdo do seu enunciado não depende de uma
mundo segue o modelo do discurso, e sua essência necessidade divina, mas é tão-somente efeito de
uma expansão gratuita da liberalidade do
manifesta-se preferentemente pelos signos verbais, Princípio18. Nesse sentido, como o filósofo não cessa
tornando imperativo o recurso ao texto. Por isso, o de repetir, a criação é simultânea: no querer
trabalho exegético é, para o filósofo, o que constitui mais operativo do Princípio tudo está, desde sempre, dito
solidamente qualquer mundividência. efeito.Porém,seconsiderarmoso início do tempo,é-nos
dito que no agir primordial, quando todas as coisas
foram feitas simultaneamente, o Criador imprime
2 . Varão e mulher In Principio nos seres, ao criá-los, nullo intervalo, uma ordem de
conexão causal, íntima e anterior a todo movimento
De modo condensado mas elucidativo, que necessite de tempo para sua medição.
Agostinho há muito deixara claro que todo existente O tempo é, dessa perspectiva, efeito da criação
depende de um princípio cuja natureza é Ser por e assinala a diferença ontológica. Por outra parte, no
essência13. Criação é, no âmbito da metafísica que se refere a seu curso, o tempo respeita a ordem da
agostiniana, o termo específico empregado para conexão causal. Uma vez introduzida essa distinção
identificar uma peculiar atividade que consiste em
dar forma à indigência ontológica dos seres. Esta entre a ação simultânea da vontade criadora e a
verifica-se no fato de todos eles serem perfectíveis. sucessão causal da realização das criaturas no tempo,
Todo ser mutável é também necessariamente Agostinho considera possuir a chave para a
formável,escreverano Diálogo sobre o livre arbítrio.Como compreensão da estranheza do hagiógrafo, quando se

80 81
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

trata de interpretar a passagem de Gên.1, 26, que relata é, quanto à situação intra-histórica da humanidade e
a criação do ser humano: Faciamus hominem ad imaginem ao mandato divino “crescei e multiplicai-vos”, inerente
et similitudinem nostram. Aí, depoisde expor o reino sobre à criação sucessiva, Agostinho entende que, na ordem
o qual o homem havia de dominar (no qual não se das causas, visivelmente, no tempo, primeiro foi feito
o ser humano–varão23. Fiel ao seu propósito de busca
inclui a mulher), a narrativa enuncia o mandato da do sentido histórico-literal, confrontado com a
multiplicação da espécie19. Articulando essa iteração da narrativa em Gên. 2, 5-25, o filósofo
passagem da narração com a tese anteriormente considera que aí se pretende explicar mais
exposta sobre a eternidade do Princípio e a diligentemente o modo como se adequa o processo da
temporalidade do factum, Agostinho toma posição: criação causal à realidade visível. Obteríamos, assim,
“Potencial e causalmente o homem foi feito então [tunc] dois níveis de atuação no processo da criação que
na obra que pertence à criação simultânea de todas as afectariam diferentemente a criação visível do ser
coisas(…).Mas agora [nunc] visivelmente, nas obras que humano, varão e mulher. Um primeiro, potencial
causal, em que se recolhe a razão de ser (o projeto) da
pertencem ao curso dos tempos do mesmo modo como própria obra. Nesse nível, eterno, a finalidade da
[Deus] continua agora a agir”20. doação de ser ao gênero humano seria a de, para além
A esse primeiro relato da criação do ser da infinita diferença que separa o tempo da
humano o filósofo faz corresponder a condição eternidade, revelar, de um modo simultaneamente
principial daquele na potência operativa do ato fiel e acessível, a própria essência do Criador como
criador. Assim se compreende que o autor do relato unidade na diferença. Com essa finalidade criou um só
proto-histórico sentisse necessidade de recapitular, gênero humano, integrando nele uma diferença real:
em Gên., 2, 8, a criação específica do ser humano, masculino e feminino24. Num segundo nível,
visivelmente e no tempo. Anteriormente, retrospectivamente, frente ao passar do tempo e já
perspectivando desde o Princípio, apenas indicara o totalmente mergulhado nele, o ser humano, dotado de
gênero humano, evidenciando que nele se contém a razão, poderia compreender a ordem da sucessão
diferença entre o masculino e o feminino: só desse causal. Agostinho distingue, portanto, por referência
modo se assemelha ao Princípio. Com efeito, o à dinâmica do tempo, duas dimensões do ato criador,
propósito de interpretação literal obrigara o filósofo identificando-as pelo uso dos advérbios de tempo:
a integrar, como característica da imagem de Deus tunc, de modo invisível, causal, potencial, como se
refletida no gênero humano, a diferenciação sexual. fazem os futuros não feitos; nunc, visivelmente, como
Enquanto imago Dei, a Humanidade tem de integrar a constituição da espécie humana é conhecida25.
a própria diferença corpórea, tal como a divindade, Na passagem da dimensão eterna da
absolutamente imaterial e incorpórea, reúne, na
diferença das pessoas, a unidade da substância21. O narrativa, recolhida na obra dos seis dias, para a
resultado dessa interpretação é a concepção do gesta histórica (a passagem da razão de criar para o
gênero humano não já como um universal amorfo, fato da criação), Agostinho encontra a característica
mas como uma realidade dotada de uma dinâmica específica da relação do ser humano com o mundo:
intrínseca à própria diferença que nela converge e ela é histórica, dá-se no curso dos tempos. Contudo,
que, na substância humana, manifesta-se, também, porque as realidades criadas não contêm em si uma
corporalmente. Pertencendo à potência causal da
criação, essa dinâmica é inerente ao mandato inicial razão necessária, a razão do seu sentido e do seu ser
do Princípio e há de manifestar-se igualmente na antecede à sua presença no tempo. E porque sua
conexão causal em ordem ao curso dos tempos. causa eficiente decorre de uma vontade eterna, a
Situado no Princípio, Verbo Eterno, o texto de Gên.1, ação de criar persiste no tempo e prossegue para além
26 referir-se-ia, no entender de Agostinho, ao que é da sucessão temporal26.
perene na fundação do género humano, permitindo
concluir que, para o hiponense, a imagem e Para o filósofo de Hipona, a causa final da
semelhança do Princípio sempre estará recolhida na criação revela-se na expressão de um mandato que
masculinidade e feminilidade da diferença corpórea: engloba o ritmo ternário do tempo, sobrepondo-se,
sem ela, o reflexo de Deus não estaria presente na simultaneamente, a essa tridimensionalidade, que
humanidade22. No que se refere ao curso dos tempos, isto só o ser humano pode apreender27. Na ordem do
discurso filosófico, essa parece ser uma justificação

82 83
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

capaz de fundamentar a dimensão escatológica do atividade reflexiva no enunciado do desejo universal


universo. Com efeito, o universo contém em si esse de felicidade: “todos os homens querem ser felizes”31. Por
germe de eternidade, e se está, aqui e agora, sua vez, reconduzido à sua expressão mais simples,
disponível à nossa apreciação, é porque se constitui este identifica-se com a própria intencionalidade da
como realidade intermédia entre uma causa vontade: querer-ser32. Na tranquilidade de Cassicíaco,
eficiente e uma finalidade que, pelas suas desde o início de sua reflexão filosófica, Agostinho
características próprias, dele se diferenciam interrogara-se sobre a essência do ser humano e, em
essencialmente. Uma vez que contém, em cada diálogo com a pequena comunidade de familiares e
expressão de ser, toda a virtualidade da criação amigos, ou no recôndito da alma, encontra como sua
causal, ela mesma impulsiona cada um e o Todo para condição última e residual esse infinito e
a máxima expressão das suas possibilidades, seja incomensurável desejo de plenitude. Curiosamente, é
qual for a etapa da história em que o possamos uma mulher, Mônica, quem, no Diálogo sobre a
considerar. Dessa perspectiva, a atividade dos seres felicidade, melhor consegue exprimir essa intuição33.
no tempo é, afinal, a recondução de toda a Anos mais tarde, no comentário literal ao relato proto-
causalidade do universo a um único Princípio, Alfa histórico, seu filho, refletindo sobre a aparente
e Ômega, para o qual convergem toda a expressão de circularidade da narração, exprime a convicção de que
existência e a essencial bondade de tudo o que é. o conteúdo intencional do juízo teleológico, para os
Contudo, o Princípio não coincide com o Fim, primeiros homens como para seus descendentes, está
porque a este se acresce toda a densidade ontológica intimamente vinculado ao mandato: “crescei e
adquirida no tempo28. Assim, a multiplicidade e a multiplicai-vos”. Na criação potencial (Gên.,1, 26), esse
diversidade dos seres não se explicam em função de mandato sucede a fundação da imagem e semelhança
uma causa material, mas pelo fato de nelas estar divina no ser humano, varão e mulher. Por sua vez, na
impressa a intencionalidade de uma vontade narrativa da sucessão das causas (Gên.,2, 5), ele só vem
criadora, sendo esta essencialmente difusora de a cumprir-se depois da introdução da desordem
bondade, porque quer pôr a serviço de uma original34. Por isso, conclui Agostinho, o mandato da
comunidade de seres sua própria felicidade, de si procriação, intrinsecamente unido ao desejo de
mesma incompreensível e oniabarcante29. O filósofo beatitude, refere-se claramente ao curso dos tempos,
de Hipona estabelece nesses pressupostos a isto é, à situação intra-histórica da espécie, e não à
possibilidade de uma leitura capaz de conferir mais realização essencial da forma do ser humano, varão e
sentido ao próprio universo e à situação do homem mulher. Esta, que inclui o corpo humano diferenciado
na História. Definindo como causa eficiente do sexualmente, dá-se na relação pessoal com o
projeto criativo a iniciativa de uma vontade Princípio, razão eficiente e final do próprio gênero.
expansiva de ser e inteiramente livre na sua Respeitando seu propósito de interpretação literal, o
atividade, compreende-se como dela resulta uma autor assume e reitera a criação primitiva de Adão,
realidade essencialmente dinâmica, incoativa30, não que identifica com a expressão do gênero humano
porque lhe falte algo, caso em que teríamos de dotado de mente intelectual35. Todavia, Adão é, para
duvidar da consistência ontológica do Princípio, Agostinho, nome de ambos, cuja missão é tornar
mas porque ela tende essencialmente a um presente no cosmos um modo de ser inteiramente
exponencial mais denso dos modos de existência e novo e diferente frente aos outros seres que o
porque essa potência causal, condensada na creatio povoam36.
simultanea, só pode realizar-se, por definição, na 3.Um auxílio oportuno
própria sucessão das causas. Esta, ao instaurar a
diferença ontológica entre o Princípio e as
multíplices realidades criadas, estabelece como De acordo com a interpretação agostiniana da
afecção indissociável dessas últimas a relação entre criação potencial, o gênero humano engloba, por
a eternidade, que as faz ser, e o tempo, que essência, a diferença real manifesta visivelmente no
caracteriza sua forma própria de existência. corpo sexuado, e só a ela corresponde, como causa final
Para além da autoridade do Livro Sagrado, o intra-histórica, o cumprimento da ordem ou mandato:
ser humano também reconhece, pela autoridade da “crescei e multiplicai-vos”. Ao analisar o relato de Gên.,
razão, o caráter dinâmico da existência, mediante 2, 5, Agostinho centra-se na interpretação do mandato
análise do juízo teleológico. Este apresenta-se à para esclarecer, à luz da causa final, a criação da

84 85
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

expressão feminina do gênero. Considerada a solidão de existência do ser humano feminino, a criação estaria
Adão, Agostinho empenha-se no esclarecimento da incompleta e a história dos homens careceria de
expressão “auxilium oportunum secundum ipsum”, insistindo sentido. A solidão de Adão, contendo a
até à exaustão na razão final da criação do sexo impossibilidade radical de cumprir o fim próprio do
feminino: auxiliar o ser humano na realização do fim gênero, revelaria a irrazoabilidade da causa final,
primordial e próprio da missão histórica do gênero. À fazendo duvidar da excelência do Princípio criador.
pergunta – “por que razão teria Deus criado, in tempore Sob essa luz é possível compreender o alcance
suo, o sexo feminino?” – Agostinho reitera, por exclusão ontológico da miséria adâmica, quando verifica que
de partes, a resposta: a geração, a fim da prole. Por um lado, nada faz sentido sem um auxílio oportuno. Na ausência
sendo a criação efeito de uma vontade livre, e não de desse último recolhe-se à mais plena indigência
uma carência ontológica do Princípio, o sentido da metafísica, que não se refere àquele homem concreto,
criação da mulher na sucessão dos tempos não pode mas a todo o gênero humano e, portanto, à dinâmica
derivar de uma necessidade divina de da criação. A consequência de uma tal incompletude
autoconhecimento. O Criador não padece de nenhuma seria a impossibilidade de acrescentar ser ao mundo
crise de identidade, não necessita de suas obras para se pela adesão voluntária à ordem do universo. Pela
autorrevelar, uma vez que se conhece a si mesmo na primeira vez na poiética da criação surge a
plenitude de atividade do seu Verbo, eterno e exclamação “non est bonus”, proferida pelo próprio
consubstancial. A criação do ser humano feminino não fazedor e dirigida à solidão de Adão. Essa ausência de
se justifica, também, pela necessidade de o indivíduo bondade não se refere ao indivíduo nem à sua
Adão se conhecer a si próprio: bastar-lhe-ia a visão de si presença no mundo, mas se esclarece plenamente,
na Presença Eterna do Princípio. Mesmo considerando uma vez mais, por referência à intencionalidade do
sua situação histórica, vocacionada ao diálogo, a universo, em cuja hierarquia o ser humano se situa
presença de outro ser humano masculino seria, como ponto culminante, já que só ele pode dotar de
seguramente, um auxílio oportuno. Considerando o sentido o próprio real. A exclamação “non est bonus”
mandato do domínio sobre a natureza física, quer pela segue-se à verificação de que da incompletude do
razão, quer pela força de trabalho, não se vê, também, a gênero, manifesta na ausência da diferença, emerge
razão necessária da criação de um ser humano um entrave à expansão de ser e, portanto, à essência
sexualmente diferenciado. Adão pode, por si próprio, do ato criador. Porque para Agostinho o ser é
levar a cabo a finalidade extrínseca da sua existência no portador e potenciador do bem, essa solidão ante o
confronto com o mundo – dominar a terra. Contudo, mundo, tornando o ser humano incapaz de
nenhum ser do universo criado o pode auxiliar na comunicar seu próprio modo de existência,
realização da ordem: “crescei e multiplicai-vos”. inviabiliza visceralmente todo o projeto criador.
Dentre os que viu e nomeou, nenhum pode completar Quando compõe esse seu comentário ao
sua indigência metafísica, a fim de justificar sua Gênese, Agostinho tem plenamente assumida a
presença no mundo e na história. A finalidade histórica argumentação exposta noutros textos nos quais
da espécie humana, impressa na totalidade do ser de igualmente confronta a concepção maniqueísta do
Adão, não pode cumprir-se37. Assim, ele mesmo se mundo e do homem. O pecado, afirmara o filósofo, é
encontra numa absoluta carência ontológica, uma diminuição da ordem. Integrando-se nela, ele é
despojado de sentido. Identificando o universo, torna- precisamente um certo entrave a essa intencionalidade da
se incapaz de reconhecer o modo de relação com o criação que tende à máxima expressão de ser.
mundo que lhe permite colaborar intrinsecamente na Verdadeiramente, só a radical impossibilidade de ser,
expansão da superabundância de ser que o rodeia. o nada, poder-se-ia identificar com o mal, e é nesse
Interpretando o relato de Gên. 2, 5, Agostinho apenas contexto que o filósofo interpreta o sentido da
encontra razões de conveniência para o fato de o exclamação: “non est bonus”40. A sua contrária, no interior
criador ter feito desfilar cada uma das suas obras ante do relato genesíaco, é a afirmação da bondade
Adão, permitindo-lhe identificar cada ser pela intrínseca do ser humano feminino. De fato, só depois
atribuição do nome38. Não encontra, também, da criação da mulher – cujo ser, tal como o do homem,
justificação racional para uma interpretação literal do depende diretamente do Princípio – estaria
sopor do primeiro homem39. Mas para a criação da potenciada a realização da ordem inicialmente
mulher encontra uma razão necessária, que obriga o proferida, em que se expressa a finalidade do ser
hagiógrafo a recomeçar a narrativa: com efeito, sem a humano. A incapacidade metafísica de Adão, sem

86 87
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

auxílio para cumprir o mandato cujo fim potenciaria vontades, efeito da difusão do gênero em ordem à
o acréscimo de ser na história, seria, com efeito, algo paz e unidade no relacionamento histórico, são
intrinsecamente perverso. Tal indigência tornaria inalienáveis do ser humano e só poderiam ser levadas
contraditória a ordem do ser e não poderia, portanto,
ser efeito de um Princípio excelente. a cabo pela geração, sendo essa a causa final da
criação do ser humano feminino46. Recorrendo ao
princípio da excelência da causa sobre o efeito para
4.Ex homine uno: a construção da comunidade humana interpretar o dificultoso passo – “quod mulier viri de latere
facta est” –, Agostinho afirma que a mulher é, quanto ao
Pretendendo respeitar o sentido literal do texto, sexo, infirmior. Assim é porque ela precede o homem,
a resposta à pergunta – Ad quem rem? Ad quod adiutorium? – na sucessão causal, do mesmo modo que, no seio da
é, da parte de Agostinho, taxativa. Regredindo na Trindade, o Pai precede ao Filho, em razão da
sucessão das causas, o sexo feminino, enquanto auxilium especificidade da relação; assim é porque na ordem
secundum ipsum, foi feito para o gênero humano, que cronológica, in tempore suo, o homem precede ao
inclui, desde o Princípio, a diferença sexual. Por isso o
mandato “crescei e multiplicai-vos” dirige-se a ambos surgimento da mulher. Contudo, Agostinho não faz
mas, na ordem cronológica das causas, o ser humano incidir em nenhuma dessas razões o sentido pleno da
varão surgiu primeiro. criação. O ser humano feminino comporta em si e
Assim, na natureza da mulher, se atendermos desvela um especial modo de presença do criador – a
ao sexo, Agostinho responde: “foi feita, portanto, a ação divina usque nunc, inerente à conservação da
fêmea para o varão, a partir do varão, nesse sexo e espécie humana47. Mas a causa eficiente da criação é a
nessa forma e distinção dos membros, que são plenitude do amor, que Agostinho define
evidentes nas fêmeas”41. O filósofo reconhece essencialmente como força unitiva, efeito da
abertamente a excelência do sexo feminino em ordem convergência das vontades. E porque a essência
à procriação, isto é, à execução da finalidade histórica divina consiste nesse vínculo que une os diferentes e
da criação. Sendo essa a atividade que dá sentido não faz deles um só, de igual modo apenas pela união
já ao indivíduo-varão, mas à espécie humana e à de diferentes a imagem divina se torna presente no
totalidade do universo criado, torna-se evidente que mundo. A densidade ontológica potenciada pelos
a finalidade da condição sexuada de ambos se orienta primeiros humanos e projetada in crescendo reside,
ao bem comum, em cuja posse reside a felicidade. O portanto, não no uso da sexualidade, mas sim na
sexo feminino, no corpo animal com que, tal como o fruição do bem que resulta da união. Só esse bem,
sexo masculino, foi criado, é, de algum modo, o efeito de uma comunhão de vontades, é comum,
centro da história42. Só a partir da multiplicação de porque se dirige à comunicabilidade do gênero. A
seres livres o indivíduo singular pode dar razão necessária da criação do ser humano feminino é
cumprimento à finalidade da sua existência: agir, em o cumprimento da ordem segundo a qual, pela união
ordem ao bem comum. De igual modo, o filósofo da vontade de ambos, é possível um acréscimo de ser
identifica o conteúdo intencional do bem comum, de no mundo. Só assim se tornará visível, de modo
que a procriação é fim, com o estabelecimento de peculiar, a característica do ato criador: expandir ser,
vínculos de unidade, cadeias de relações humanas pela unidade na diferença48.
através dos tempos, pela difusão dos graus de Se é verdade que, na ordem da sucessão das
parentesco43. O primeiro elo causal dessa imensa causas, o autor confirma certa inferioridade do
sucessão é precisamente a relação dos primeiros homens feminino em relação ao masculino, tal inferioridade
na caro una. Dessa união, de que resulta a completude diz respeito apenas à conexão cronológica das causas.
do gênero44, viria a proceder a imensa diversidade de Porém, não é nesse nível que o autor identifica a
relações entre seres humanos de todas as raças, tribos, especificidade do ser humano e, portanto, não é nesse
patamar de compreensão que virá a entender a
línguas e nações45. Os vínculos de união entre as

88 89
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

condição feminina. Por outra parte, na medida em que dos primeiros humanos, tendo sido escrito, como refere
o uso da sexualidade a fim da procriação está Agostinho, para os descendentes, condensa, sob a
circunscrito e condicionado pela duração temporal do forma de um pequeno texto, o sentido da dimensão
universo, e o ser humano, na sua masculinidade e de toda ação inteligente sobre o mundo, isto é, de toda
feminilidade, realiza-se, como toda a criação, numa obra de cultura. Os comentários de Agostinho ao
dimensão trans-histórica do tempo, uma Gênese, extensos e esforçados, pretendem evidenciar
mundividência que procure compreender a essência esse mesmo fato – o ser humano, na sua
do ser humano por referência ao sexo redundará masculinidade e feminilidade, se se diferencia do
sempre, na ótica de Agostinho, numa expressão de mundo, também a ele está intrinsecamente unido,
insciência, por seu caráter parcial e desgarrador49. A como aquele que é capaz de o transformar e de, pela
conexão causal do feminino e do masculino refere-se transmissão da potência unitiva contida no gênero e
a uma finalidade concreta no curso dos tempos. Por indissociável da geração, intensificar as expressões de
isso, não se inscreve na intencionalidade do próprio sentido. Contudo, se a mulher, enquanto auxílio
ato criador – ser mais –, senão quando considerada a oportuno e princípio potenciador de toda a
ordem intra-histórica das causas. Uma e outra se concriação, foi feita “nonnisi causa prolis, ut per eorum stirpem
reportam, como à sua essência, no caso dos seres terra impleretur“, tal relação dar-se-ia “tunc non eo modo quo
dotados de liberdade, ao exercício da vontade50. nunc” – então não como agora52. Por isso, a exegese
Quando Agostinho referencia a existência da mulher agostiniana obriga a refletir sobre uma outra
dimensão do tempo, cuja origem não é o próprio
à possibilidade de uma criação continuada, bem como criador, reinterpretando, sob essa luz, o sentido do
o caráter sucedâneo da criação dela em relação ao ser relato.
humano varão, pretende sublinhar a necessidade da
união com vistas à subsistência do gênero no que ele
tem de essencial: a proliferação dos vínculos de
parentesco entre os homens, no tempo. É por meio da 5.Não como agora
difusão da família humana que se inscreve
progressivamente na história o Uno transcendental, Um dos objetos da reflexão agostiniana mais
imutável e comum, revelador da natureza do intensa é a procura da inteligibilidade para o fato de
Princípio. Com essa proposta sobre a condição essa versão equilibrada e harmônica do ser humano
feminina, o filósofo evidencia a insuficiência não ser coincidente com a experiência comum. De
ontológica de qualquer âmbito de realidade que não fato, por toda parte, na relação entre os sexos como
possa comunicar seu modo específico de ser51. Dela em qualquer expressão de atividade humana
depende a multiplicação dos vínculos de unidade experiencia-se a vontade de domínio. Integrando
entre as vontades humanas, isto é, a construção nesse contexto aquilo que a consciência cultural no
progressiva, em todo domínio de atividade, da paz de Ocidente identificou com a ideia de “pecado
todas as coisas que, como plenitude da ordem, é original”, poder-se-ia dizer que uma tal ação consistiu,
essência da Cidade Celeste. Esse é, afinal, o sentido frente à atividade do Princípio, contratempo. Desse
originário da diferenciação sexual e da procriação. modo, não a afetou no que ela tem de próprio, a
O resultado do comentário agostiniano ao eternidade, mas apenas na sua dinâmica temporal.
relato bíblico das origens coloca ante o leitor uma Definindo a razão essencial desse movimento
interpretação do mundo e do homem intimamente defectivo como uma atividade livre, mas de
unida à cadência estabelecida entre a ação, seja qual intencionalidade contrária à direção impressa pelo ato
for sua forma de expressão, e o tempo. Se Agostinho criador, Agostinho centra-se na análise do ato
suspendesse nesse ponto o seu comentário, teríamos humano ocorrido na vontade dos primeiros homens
um mundo onde Deus-Trindade se manifesta na para aí investigar a causa desse entorpecimento do
história pela perfeita harmonia na qual se edifica a
atividade do ser humano, varão e mulher. Esta, ser. Sua possibilidade reside na incidência da vontade
fundada na união com vistas à expansão do gênero, sobre os bens criados, atividade que é absolutamente
exprime-se numa ordem cuja intencionalidade é inalienável da ordem e que Agostinho identifica com
proporcional à diversidade e abundância das formas o amor53. Para que o agir humano reitere a essência do
de vinculação que se venham a estabelecer entre os ato criativo, colaborando na ordem da criação, ele
homens. O relato do Gênese sobre a condição originária deve realizar, no âmago da vontade própria, a

90 91
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

dimensão do bem comum. Assim, esse último tornar- peculiar na dimensão sexuada do ser humano e
se-á público e estará, portanto, à disposição de todos também no uso do próprio corpo, uma vez que ele se
na comunidade dos humanos. Como o agir humano é insere no cosmos.
essencialmente histórico, o germe que inverta essa Perdida a perspectiva de conjunto que
ordem derramar-se-á no tempo, contrariando o seu integra a diferença sexual na harmonia do curso dos
sentido. Essa análise do ato humano, que fora já objeto tempos e da intencionalidade da criação, rejeitada a
da particular atenção do filósofo no Diálogo sobre o livre
arbítrio, pode agora lançar luz sobre a condição ordem instaurada pela Sabedoria, esquecida a
feminina, de modo a situá-la corretamente no relação ao Princípio vital de existência, surge
confronto com a ordem da procriação. A desordem apenas à mente a ordem da sucessão causal. A
intrínseca gerada no interior da mente do ser humano, visão do mundo e do humano descontextualiza-se
varão e mulher, consistiu em querer possuir como quando se perde a referência ao Princípio
algo próprio o princípio comum do qual emana toda a ordenador. O efeito dessa visão restrita é a fixação
Sabedoria. A vontade de ambos pretendeu apropriar- de ambos no domínio corpóreo e desintegrado da
se não apenas da contemplação-fruição dos bens, mas diferença55. Sobrepondo a ordem de conexão causal
da própria causa eficiente da diferença ontológica, a
fim de se apossar da essência do ato criador e de se física à metafísica, emerge o império matérico do
tornar Princípio de Criação. A perversão originária da varão, cronologicamente criado antes da mulher56.
atividade humana viria, assim, a consistir no desejo de Esse predomínio físico, inerente ao tempo, reflete-
cada um criar seu próprio mundo, demitindo-se de se quer no agir de ambos em ordem à procriação,
colaborar na expansão de um mundo já constituído, quer no seu efeito imediato, a fundação da
cujo princípio é alheio e cuja finalidade, como projeto comunidade dos humanos nos vínculos de
em construção, está imersa num horizonte de parentesco. Assim, se nos Comentários literais ao Livro do
indeterminação. O efeito imediato dessa pretensão a
separar-se do princípio de causalidade eficiente – Gênese todo o esforço de Agostinho se orienta na
querendo cada um ser causa de si mesmo – é a compreensão do que era no Princípio, nas Confissões
incompreensão da ordem exposta no universo. O ele quis deixar patente a situação atual do ser
filósofo identifica essa perda da visão de conjunto ou humano ante si mesmo, tornando possível uma
do sentido do universal com a ignorância, cuja leitura contextualizada das afirmações
primeira manifestação é a incapacidade de agostinianas que, numa primeira apreciação,
percepcionar a ordem dos bens de modo integrado e parecem dirigir-se no sentido de uma proclamação
com completude. Da mesma forma, a recuperação da da inferioridade do sexo feminino. Mas o que não
ordem inicial terá de passar necessariamente pela
adesão à Sabedoria, sendo esta definida por ocorre a Agostinho é identificar o ser humano nem
Agostinho como a posse do bem comum ou, numa com a dimensão sexual inscrita na sua
outra versão, como a posse da vida eterna em paz54. corporeidade, nem com o estado de degradação que
Se existe uma especificidade do feminino, para afetou toda a realidade como efeito da culpa
o filósofo esta não passa pela fixação na dimensão original. Do mesmo modo, não dissocia o uso da
sexuada, mas pelo modo de conceber essa realidade corporeidade humana e da atividade inteligente,
corpórea no confronto com a totalidade dos bens. A expressa na harmonia das faculdades mentais que
reta compreensão do feminino vincula-se, assim, ao especificam o ser humano. Definindo a substância
exercício da sabedoria, o qual, por definição, humana pela íntima unidade corpo-alma, a
ultrapassa a casuística, inserindo-se num horizonte de restauração da harmonia na relação entre o varão e
universalidade. Como a finalidade da criação está de a mulher passa por uma assunção da corporeidade
modo particular confiada ao ser humano, a
continuidade da ação divina no tempo surge no contexto da própria identidade. Esta só se revela
intrinsecamente unida, in esse et in fieri, à procriação. A a cada um pelo exercício da Sabedoria a fim de
inversão de valores verificada no começo da história, recuperar a memória de si, em que reside o
ao radicar no íntimo da atividade humana, afeta todas chamamento inicial à existência, contido na criação
as suas concreções, vindo a manifestar-se de um modo potencial causal. Partindo do indiscutível estado de

92 93
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

disformidade da natureza animal, na qual se universalidade se pode restabelecer a ordem inicial


integra a corporeidade do ser humano, resta apelar em que a identidade da comum situação de seres
à restauração da ordem viabilizada por aquelas diferenciados se manifesta ante a radicalidade do
faculdades pelas quais o ser humano se sobrepõem mesmo Princípio. Por isso, a reta compreensão da
aos animais. Se o princípio da desordem residiu condição feminina, como de toda a realidade,
num ato de ignorância, sua recuperação deve seguir reside, para Agostinho, na posse da Sabedoria. Esta,
o caminho inverso. Este, depositado na uis identificada nos primeiros diálogos, por influência
memoriae, igualmente acessível a homens e estoica, com a capacidade de resistir às provações e
mulheres, permitirá à razão redescobrir a sua força com o desprendimento do mundo até o
original, uma vez que a posse da Sabedoria é recurso enfrentamento destemido da própria morte, é
necessário para a redescoberta, no tempo, de uma atribuída, por excelência, aMônica.
versão contextualizada do ser humano no mundo. De fato, entre os convivas de Cassicíaco, a mãe
Só de uma perspectiva de sapiência se pode de Agostinho é tomada como paradigma da
recuperar a fruição dos bens na liberdade original, plenitude de realização da mulher mediante o amor
à sabedoria. No Diálogo sobre a Ordem, Agostinho tece-
utilizando-os em conformidade com a ordem lhe um amplo encômio59. O percurso existencial de
instaurada no Princípio. Mônica torna acessível a revelação da imagem
Se a ação defectiva dos primeiros homens feminina do divino, como providência e como
afetou degradativamente a harmonia do universo e, expressão da ordem do amor. Nas páginas que
no caso peculiar da condição feminina, daí resultou, dedica à biografia da mãe, Agostinho dá conta de
respeitando a ordem cronológica das causas, uma sua vida exemplar antes de conhecer Patrício, sem se
certa submissão dela ao masculino, de igual modo eximir de nela incluir as limitações próprias de toda
realidade perfectível, descrevendo uma trajetória
pela aquisição de uma perspectiva de conjunto pode de acréscimo de qualidades vinculada ao
o ser feminino – como qualquer ser humano – desenvolvimento da mente de Mônica,
reconquistar a harmonia primordial a que aspira e reconhecendo-a particularmente vocacionada para
que é parte integrante do desejo universal de a filosofia60.
felicidade. Para recuperar essa perspectiva o filósofo Pelos diálogos de Cassicíaco, sabemos que
exige, antes de mais nada, o restabelecimento da Mônica era assídua na leitura e meditação do texto
ordem do amor no interior da vontade humana. bíblico e que conhecia, igualmente, os escritos dos
Sendo a Sabedoria o melhor dos bens, a ordem exige filósofos, tendo desenvolvido as propriedades da
que a ela se dirija o esforço essencial da vontade. Só sabedoria até à posse da beatitude. A visão de Deus,
nela e a partir dela é possível reintegrar o uso da fim último de cada ser humano e termo convergente
corporeidade na dinâmica da união sexual com da Cidade e Celeste, é, para Agostinho, consequência
vistas à prole - recuperando a condição originária natural da posse da sabedoria, e Mônica dá provas
desse ato humano, integrando-o na comum união de a possuir junto ao porto de Óstia61. Anos mais
das vontades que permite restaurar a transparência tarde, escrevendo a Paulina, Agostinho reafirma que
do agir e do olhar, correspondente à situação da não se pode ver Deus e permanecer sobre o corpo
nudez original57. Seja qual for o nível em que se corrupto62. De fato, a morte de Mônica ocorre nove
inscreva, a atividade humana só se realizará dias após a experiência de Óstia. Como prova da
harmonicamente pelo acordo das vontades. Esse posse plena da Sabedoria, correspondente à firme
horizonte da ação é igualmente aplicável à convicção da ressurreição dos corpos in saecula futura,
procriação e só a partir dele é possível reorientar essa Mônica despreocupa-se quanto ao lugar material da
última atividade na direção do bem comum, deposição dos seus restos mortais. Ao passar os
contrariando, assim, a dimensão reativa e últimos anos de sua vida na Península Itálica, era seu
dominadora em que, segundo Agostinho, ela agora desejo ter sepultura junto de Patrício, em Tagaste63.
se encontra58. Só numa perspectiva de

94 95
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Contudo, pouco tempo antes de morrer, desprende- 459-503; De Genesi contra Manicheos PL 34, 173-220; De Genesi
ad litteram libri duodecim [CSEL 28/1 (J. Zycha, 1894), pp. 3-
se desse modo ainda restrito deentender sua própria 435].
humanidade, definindo-a pela união a uma função Confessionum libri tredecim [Corpus Christianorum Series
histórica64. Tal compreensão do sentido da Latina (CCL) 27, L. Verheijen, 1981]. As citações em
português seguem o texto da versão portuguesa: Sto.
sexualidade não significa, porém, para o filósofo de Agostinho, Confissões, trad. e notas de Arnaldo ESPIRITO
Hipona, que sobre ela se projete qualquer sombra de SANTO, J. BEATO, M. C. CASTRO PIMENTEL, INCM, Lisboa,
negatividade. Agostinho opõe-se claramente aos que 2001].
inscrevem a dependência ontológica dos sexos no Conf. XIII, 32, 47 (CCL 27, p. 270).
horizonte da física e afirmam que a ressurreição das Cf. Gen ad Litt., 1, 19, 38; 5, 8, 23 (CSEL 28-1, pp. 28-29;
mulheres se dará em corpo masculino, por 152). Quando a tentação de interpretar o texto em
projectarem neste último o princípio da sentido figurado emerge com mais violência, o autor
feminilidade65. O argumento do filho de Mônica para resiste-lhe, reiterando seu propósito inicial de encontrar
a ressurreição dos corpos como para a afirmação o sentido da letra, partindo da inconcussa certeza de que
taxativa de que as mulheres hão de ressuscitar no seu a letra tem sentido.
Cf. Conf. XII, 24, 33 (CCL 27, 233-234); Gen ad Litt., 1, 20,
corpo feminino é a fidelidade do Princípio à ordem 40; 9, 1, 1; 12, 1, 1 (CSEL 28-1, 30; 268-269; 379-380). Nos
inicial da criação. A bondade dos seres expressa-se no trechos bíblicos em que o filósofo verifica que várias
seu modo específico configurado na criação interpretações são compossíveis afirma explicitamente
potencial, e nenhuma força pode alterar essa que se há de remeter a sua ao âmbito das “sentenças
vontade eterna. A vontade de domínio a que se segue prováveis”. Abrindo-se a um infindo universo de
leituras, desafia o exercício da liberdade, de modo a que
a escravidão, bem como a corrupção do corpo, são cada leitor decida o que pode entender ou construa uma
expressões deficitárias de ser, circunscritas ao curso melhor explicação.
dos tempos. Contudo, a dinâmica do ser realizar-se- Cf. Conf. XII,17-18; XII, 23, 32; XIII, 24 (CCL 27, 228-229;
á sempre para melhor, porque esse é o sentido do 233; 263-264). Depois de esclarecer quais são as
tempo histórico. Nada pode alterar a forma de cada interpretações impossíveis (as que afirmam a identidade
ser, da qual a diferença sexual é parte integrante. Mais entre a substância divina e a natureza criada), o filósofo
afirma que pretende desvendar o sentido último do
do que considerar a especificidade da condição discurso bíblico. Sendo este distinto da intenção do
feminina, para Agostinho é a humanidade que nela hagiógrafo, permite separar a verdade sobre a criação,
se evidencia, como sede de uma vontade livre. É a capaz de ser desmitificada por qualquer leitor, do
própria humanidade que, exprimindo um Princípio propósito do redator, que residirá para sempre no seu
universal pela diferença corporalmente visível, não se íntimo sem que daí advenha grande prejuízo para a
humanidade.
compadece com qualquer forma de discriminação. A
7 Cf. Gen ad Litt., VI, 4, 6 (CSEL 28-1, 176-178).
paz de todas as coisas, a tranquilidade na ordem, 8 Cf. Conf. X, 16, 25 (CCL, 27, 167-168).
edifica-se progressivamente no ajuste das realidades 9 Cf. Conf. IX, 20, 26 (CCL 27, 207).
iguais e desiguais, quando cada uma ocupa o seu 10 Cf. Conf. XI, 17, 22; 19, 25 (CCL 27, 205-206). Só desse modo
essas dimensões, de si “inexistentes”, adquirem uma certa
lugar66. O discernimento do lugar de cada um consistência.
corresponde à arte de viver e coincide com a própria 11 Cf. Conf. X, 17, 26-18, 27 (CCL 27, 168-169).
definição de virtude, que é identificada pelo filósofo 12 Cf. Conf. XI, 4, 6 (CCL 27, 197).
de Hipona com a ordem do amor e que está De Libero Arbitrio (LA) II, 16, 42: “Repara no céu, na terra, no
mar, em tudo o que brilha lá no alto, ou rasteja no solo,
disponível a todos os seres humanos sem distinção67. no que voa nos ares ou nada nas águas. Tudo tem
formas porque tem números. Retira-lhas e nada serão.
De onde retiram, portanto, a existência, a não ser
Daquele aquemdevemonúmero?”(Sto.Agostinho, Diálogo
Notas sobre o livre arbítrio [DLA], Introd., trad. e notas de Paula
OLIVEIRA E SILVA, INCM, Lisboa, 2001, p. 223).
De Genesi ad litteram imperfectus liber [Corpus Scriptorum LA , II , 17, 45: “toda a realidade mutável é também
Ecclesiaticorum Latinorum (CSEL) 28/1 (J. Zycha, 1894)], pp. necessariamente formável. (...) Mas nenhuma realidade se
pode formar a si própria, porque não pode dar a si própria

96 97
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

o que não tem” (ibid., p. 227). Gen ad Litt , IV , 17, 29: “Sicut ipse non ideo beatus est, quia haec fecit;
Cf. Gen ad Litt. , IV , 12, 22; VI , 8, 13 (CSEL 28-1, 108; 180). sed quia etiam factis non egens, in se potius quam in ipsi requievit (…);
Agostinho adota uma peculiar concepção de Ser que lhe quia non haec faciendo, sed eis quae fecit non egendo, se beatum intimavit”
(CSEL 28-1, p. 114).
permitirá identificar o máximo grau de ação com a
Cf. Gen ad Litt , VI , 11, 18-19; 12, 20 (CSEL 28-1, pp. 183-
perene quietude. Nesse passo refere-se à relação
187).
permanente dos seres ao Ser, que identifica com o caráter LA II , 9, 26: “Portanto,como é certo que todos queremos
providente do Princípio. ser felizes, também é certo que queremos ser sábios, pois
Cf. Gen ad Litt. ,6, 11, 18 ( CSEL 28-1, 183-185):as criaturas ninguém é feliz sem a sabedoria” (DLA, p. 193).
estão, por uma parte, terminadas e, por outra, incoadas. LA III , 7, 20: “Considera, então, quanto possas, o imenso
Cf. Gen ad Litt. , 1, 4, 9 ( CSEL 28-1, pp. 11-13). O Verbo bem que é o próprio ser, que é o que querem tanto os que
pelo qual Deus eternamente diz todas as coisas está são felizes, como os que são infelizes” (DLA, pp. 283-284).
sempre imutavelmente unido ao Princípio, não pelo Cf. De Beata Vita 2, 10-11; 3, 19; 3, 21; 4, 27 (CCL 29 [ed.
som da voz nem pelo transcurso do pensamento no
tempo, mas pela Sabedoria gerada eternamente por W. M. Green, 1970], pp. 70-71; 76-77; p. 80).
aquele. Agostinho indaga o motivo pelo qual o primeiro par
18 Cf. Conf., XIII, 4, 5 (CCL 27, 244); Gen ad Litt., IV,16, 27 (CSEL original só se uniu depois do pecado original, deixando
patente que desse fato não se pode concluir a intrínseca
28-1, pp. 112-113). desordem da união conjugal. No âmbito da sentença
19 Cf. Gen ad Litt., III, 19, 29 (CSEL 28-1, 85-86). provável, justifica-o em função da presciência divina
sobre a vontade do ser humano primordial, no qual
20 Cf. Gen ad Litt., VI, 4, 5; IX, 16, 29 (CSEL 28-1, pp. 174-176; engloba sempre varão e mulher. A condição ontológica
289-290). Tradução nossa. dos primeiros seria a transmitida geneticamente a todos.
21 Cf. Gen ad Litt., II, 6, 10-7, 15 (CSEL 28-1, pp. 39-42). Se ela viria a ser de desordem na natureza, então essa
22 Cf. Gen. ad Litt., VI, 8, 13 (CSEL 28-1, pp. 179-189). mesma deveria ser transmitida a todos. Como a
transmissão da natureza é inerente à união dos sexos,
23 Cf. Gen ad Litt., VI, 4, 6 (CSEL 28-1, 173-174). esta só haveria de ocorrer depois do pecado (cf. Gen. ad
24 Cf. Gen ad Litt., VI, 7, 12; XI, 11, 19 (CSEL 28-1, 178; 343- Litt., IX, 4, 6-7, CSEL 28-1, pp. 272-273). O que resplandece
344). Na criação simultânea contém-se a diferenciação de modo coerente ao longo da obra agostiniana é a
bondade essencial quer da diferença sexual, quer da
sexual corpórea do ser humano. Se assim não fosse, a união conjugal.
narrativa estaria incompleta e, com ela, a própria Gen. ad Litt , VI , 12, 22: “Sed hoc excellit in homine, quia Deus ad
atividade do Princípio. Na ordem sucessiva das causas, imaginem suam hominem fecit, propter hoc quod ei dedit mentem
o ser humano varão e mulher foi criado in tempore suo: intelectualem, qua praestet pecoribus”. (CSEL 28-1, p. 186).
visivelmente no corpo, invisivelmente na alma, Civ. Dei, 15, 17: “Unde non ambigitur sic appellatam fuisse Evam
constando de alma e corpo. proprio nomine, ut tamen Adam quod interpretatur homo, nome esset
amborum”. (CCL 47, 479).
25 Gen. ad Litt., VI, 5, 8: “(...) nunc, autem secundum operationem
praebendam temporibus, qua usque nunc operatur, et oportebat iam Essa totalidadesignifica,quantoà criaçãocausal,o gênero
tempore suo fieri Adam de limo terrae, eiusque mulierem ex viri latere”. humano e, quanto à criação temporal, a substância
(CSEL 28-1,p.176).Oautor passa a explicar esse passo obscuro individual em que se unem um corpo e uma alma. Embora
ao longo dos dois capítulos seguintes do texto. O mesmo Agostinho não tenha esclarecidas para si próprio a origem
homem, masculum et femina, foi feito tunc et nunc, mas não do e a natureza das almas, tem claramente definido que, sem
mesmo modo, o que permite distinguir claramente duas a união da alma e do corpo numa substância una, não há
dimensões do ato criador. ser humano (De Trinitate, XV, 7, 11: “Homo est substantia
26 Cf. Gen ad Litt., IV, 16, 27; VI, 9, 16; VI, 16, 27 (CSEL 28-1, pp. rationalis constans ex anima et corpore” [CCL 50A, p. 474]). Esse
113; 180-181; 190-191). A ratio creandi é distinta do ato de modo de subsistir é específico da natureza humana,
criação. Como a criação nada acrescenta à plena beatitude comum ao gênero e, portanto, igualmente presente em
do criador, não há nenhum motivo fora da pura ambos os sexos. Daí que a interpretação alegórica que
gratuidade que justifique a passagem da ratio creandi à pretende elucidar a origem da diferenciação sexual com
ação de criar. Assim, Deus não cria porque pode, o que base na diferença entre a dimensão superior e inferior da
justificaria apenas a sublimidade da sua potência. Fá-lo razão não seja do agrado de Agostinho. Conhecendo a
porque quer, o que manifesta a potência da sua vontade, e interpretação neoplatônica de tradição judaica e tendo
não por nenhum outro fim senão o de tornar outros feito uso dela tanto em Conf. como em Gen. cont. Manich.,
participantes da sua própria beatitude, o que revela a o filósofo acaba por reconhecer-lhe as limitações.
intensidade da sua benevolência. Cf. Gen. ad Litt. , IX , 12, 20 (CSEL 28-1, pp. 281-283).
Cf. Conf. , XI , cc. 20-23 ( CCL 27, 207-209). Cf. Gen ad Litt. , IX ,15, 26 (CSEL 28-1, pp. 286-288).
Gen ad Litt. , IV , 18, 31: “Perfecta quippe creatura habet quoddam LA II , 20, 54: “Esse movimentonão derivará,portanto,de
initium suae conversionis ad quietem Creatoris sui, sed illa non habet Deus. Qual será então a sua origem? (…) De fato, não se
finem quasi terminum perfectionis suae, sicut ea quae dacta sunt. Ad per pode saber aquilo que nada é. (…) na medida em que é
hoc requies Dei non ipsi Deo, sed rerum ab eo conditarum perfectioni um movimento de defecção e que toda decadência vem
inchoatur, ut in illo incipiat requiescere quod ab illo perficitur (…)” do nada, repara bem naquilo a que ele se refere, e não
(CSEL 28-1, p. 115). duvides que não pertence a Deus” (DLA, p. 243).

98 99
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Agostinho é insistente neste aspecto: a primeira finalidade possibilidade de, no Paraíso, haver procriação sem
da criação da mulher como completude para o homem é morte, explica como o corpo tenderia a um estado de
“propter filios procreandos/ generandi causa” (cf. IX, 2, 4; 5, 9; 7,12; melhoramento, diferente do que terá no final do mundo,
9,15: CSEL 28-1, pp. 271; 273; 275; 280-281; 272).
mas melhor do que o que teria tido à nascença e do que
Cf. Gen. ad Litt. VI , 25, 36 – VI , 26, 37 (CSEL 28-1, pp. 197-198);
atualmente possui.
De Civ. Dei. 19, 17 (CCL 48, 684-685). A questão da criação
Cf. Civ. Dei , XV , 17; XV , 21 (CCL 48, 479-480; 486-487).
do corpo humano animal ou espiritual prende-se à
Agostinho exprime claramente que a procriação,
dimensão escatológica do mundo e à introdução da morte
entendida como fim em si mesma, é fundamento da
na história. Essa última é contra-natura, uma vez que o
Criador fez o mundo para um acréscimo de ser e a morte cidade terrena. Nessa medida, faz sentido identificar
evidencia a degradação do ser humano, refletida também genealogias, porque o seu efeito termina no tempo. Mas
na corrupção do seu corpo. A morte foi introduzida porque os que concebem visando ao bem comum, imprimindo
era uma possibilidade do ser e, por isso, deduz-se que o na sua vontade uma direção terminada e,
corpo humano dos primeiros homens era animal, mas simultaneamente, como a criação, incoada, esses não
com a possibilidade de melhorar o seu modo de ser, encontram sua plena identidade no decurso do tempo,
espiritualizando-se pela repetição de atos livres. Com a mas na paz que se busca pela união. Suposta uma
queda original, tudo piorou: o corpo, em vez de se regeneração do próprio tempo e do homem,
espiritualizar, corrompe-se. permanecem a diferença sexual e a força unitiva do amor,
Cf. Gen. ad Litt. , IX , 11, 14 (CSEL 28-1, pp. 280-281). mas a finalidade da geração corporal é abolida.
Cf. Civ. Dei , XII , 22 (CCL 48, 380). Ex homine uno é a expressão Cf. Gen. ad Litt. , I , 5, 10 ( CSEL 28-1, pp. 8-9). Agostinho
aí utilizada para referir a união da primeira parelha explicita que a forma dos seres espirituais em que inclui a
humana. Tendo mostrado que, só a partir da criação da natureza humana só se obtém pela livre conversão da
mulher é possível a transmissão do gênero humano, vontade própria na direção do Ser de que dependem.
Agostinho refere-se sempre a essa primitiva união como à Cf. Gen. ad Litt. , XI , 37, 50 ( CSEL 28-1, p. 372): os cônjuges
união “dos primeiros homens”. Evita o emprego dos devem servir um ao outro por caridade. Agostinho
termos que se referem à diferença porque, suposta esta, reitera que S. Paulo não admite que a mulher domine o
quer sublinhar a sua finalidade unitiva. No esforço de homem. Esse domínio do homem sobre a mulher não
manter o propósito de interpretação literal do texto, o deriva da natureza, mas da culpa. Porém, acrescenta
filósofo quer sublinhar a unidade de natureza que garante Agostinho, se não for preservado, mais se deprava a
a igual dignidade do ser humano, para além da natureza e se aumenta a culpa.
diferenciação sexual. Agostinho pretende garantir, Cf. Gen. ad Litt. , IX , 11, 19 ( CSEL 28-1, 280-281).
simultaneamente, a humanidade de todos os seres Cf. Gen. ad Litt. , XI, 30, 39 (CSEL 28-1, pp. 262-264); Civ. Dei ,
descendentes dos primeiros homens e a transmissão da
qualidade moral dos primeiros a toda a geração. Essa XV, 22: “Ita se habet omnis creatura. Cum enim bona sit, et bene amari
questão, que o filósofo une à da natureza e origem das potest et male: bene scilicet ordine custodito, male ordine perturbato”.
almas, não deixa de permanecer para ele próprio envolta (CCL 48, 488). Aoaprofundar a noção de ordo, Agostinho defende
em mistério. que a raiz da expressão da ordem no tempo é a qualidade da
Cf. Gen. ad Litt. , IX , 9, 14 ( CSEL 28-1, 276-278). vontade.
Gen. ad Litt . IX , 9, 14: “ut autem per duos homines terra impleretur,
quomodo ipsi, nisi gignendo, officium societatis implerent?” (CSEL 28-1, Cf. LA II , 14, 37 ( DLA , p. 215); Civ. Dei , XIX , 11 (CCL 48,
277); Gen. ad Litt, IX, 7, 12: “Non itaque video ad quod aliud 674-675).
adiutorium mulier facta est viro, si generandi causa subtrahitur: quae “Viram que estavam nus”: Nesse limite original da visão
nihilominus quare subtrahatur ignoro”. (CSEL 28-1, 275). corporal que confina com a origem do pudor, emerge a
Imediatamente depois de afirmar que a mulher e o homem imposição do impulso animal sobre o racional, origem da
são obra direta de Deus sem mediação de nenhuma criatura, concupiscência. Essa conversão do universal ao particular é
o que lhes confere idêntica situação metafísica, Agostinho a causa de toda ignorância. Sendo a vontade o princípio
acrescenta: “Non operatus est et dimisit, sed ita continuantur operatur, desse movimento, o seu efeito chama-se malícia. Nesse
ut nec ullarum aliarum rerum nec ipsorum angelorum natura subsistat sentido, observa Ferrisi: “L’affermarsi del male à allora un vero e
si non operetur”. (Gen. ad Litt., IX , 15, 28. CSEL 28-1, p. 288). Nessa proprio processo di depotenziamento ontologico che ha la sua prima
medida, a mulher seria, enquanto imagem e semelhança de tappa nella ‘caduta’ delo spirito dall’universale alparticolare e che vede il
Deus, a expressão da providência que, tal como a sabedoria suo esito ultimo nella dissipazione e dispersione dell’unità”. “Male,
divina, abrange a existência do ser humano a fine usque in misticismo e sessualità” in Il misterio del male e la libertà possibilie,
finem fortiter et disponit omnia suaviter. SEA 48 (1995), p. 176.
Cf. Gen. ad Litt. , IX , 10, 18 ( CSEL 28-1, pp. 278-280). A situação descrita em Gen. ad Litt. , XI , 39, 42 é efeito da
Agostinho não exclui a possibilidade da união corporal desordem do amor e por isso não se refere à identidade do
ser humano varão e mulher: “Hoc enim viro potius Dei sententia
antes da queda, nem a identifica com a essência do detulit, et maritum habere dominum meruit mulieris non natura, sed
pecado, considerando essa hipótese absurda. Tal culpa: quod tamen, nisi servetur, depravavit amplius natura, et
relação, a exercer-se antes do pecado original, teria augebitur culpa”. (CSEL 28-1, p. 372).
como princípio operativo não a atração pela diferença Cf. Gen. ad Litt. , X , 31, 40; XI , 34, 46 (CSEL 28-1, 364-365;
corporal, mas o império da vontade. Sobre a

100 101
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

368369). O autor discute se antes da introdução da Cf. Ep. 147, 8, 20; 9, 22 ( CSEL 44, 293-297).
desordem não viam sua condição sexuada e toma Cf. Conf. IX , 11, 27 ( CCL 27, p. 149).
posição. A visão do corpo integrava-se então numa Conf. IX , 11, 28: “Admirados [os amigos de Agostinho]
compreensão de si próprios e do mundo na qual a visão com aquele valor de uma mulher, perguntaram-lhe se
do corpo sexualmente diferenciado se integrava na não temia deixar o corpo tão longe da cidade.
Respondeu: “Para Deus não é longe, nem devo temer que
harmonia da identidade ante o Princípio. Esta, por sua no fim dos séculos não saiba onde me há de ressuscitar”
vez, irradiava luz sobre a finalidade do próprio corpo e (CCL 27, 149).
do mundo na ordem universal. A queda original, ao Cf. Civ. Dei , XXII , 17 ( CCL 48, 835-836).
radicar na dimensão desiderativa da vontade, teria Cf. Civ. Dei , XIX , 13 ( CCL 48, 678-680).
implicado uma redução da intencionalidade do ato livre, Civ. Dei, XV , 22: “Definitio brevis et vera virtutis ordo est amoris ” (CCL
conduzindo à fixação do olhar naquilo que 48, 488).
imediatamente se percebe pelo órgão da visão,
desintegrando-o de uma perspectiva de globalidade. A
concupiscência, porque assenta na alma, une-se
estreitamente à ignorância e tem como efeito essa
restrição intencional do ato livre, manifesta também na
percepção sensível (cf. Gen. ad Litt., X, 12, 20: CSEL 28-
1309-311).
Em causaestáa espinhosaquestão acercadatransmissão
de uma natureza enfermiça a todo o gênero humano.
Para a compreender, Agostinho procurará
salvaguardar, por uma parte, contra todas as expressões
de maniqueísmo, a bondade do criador, manifesta na
criação de um ser cuja natureza inclui a possibilidade de
uma liberdade defectível; por outra, contra os
pelagianos, a necessidade de um auxílio saneante,
proporcional à culpa original, que permita a
recuperação da primitiva liberdade.
De Ordine I , 11, 31-32: “Nem faltará, acreditaem mim, um
tal gênero de homens a quem este mesmo fato – que tu
tenhas filosofado comigo – agrade mais do que se
encontrasse aqui algo de prazenteiro ou sério. Na
verdade, também para os antigos as mulheres fizeram
filosofia e a tua filosofia agrada-me muitíssimo. (...)
Portanto, menosprezar-te-ia nestes meus escritos se não
amasses a sabedoria; ora, não te havia de menosprezar se
a amasses mediocremente e muito menos se a amasses
tanto como eu. Mas agora, na verdade, como tu a amas
muito mais do que a mim próprio – e como eu conheço
quanto me amas; e uma vez que progrediste tanto nela
que já nem te atemorizas por receio dos infortúnios do
acaso nem da própria morte, coisa muito difícil mesmo
para os homens mais doutos e que todos confessam ser o
vértice supremo da filosofia –, não me hei de eu confiar a
ti, de bom grado, também como discípulo?” (Sto.
Agostinho, Diálogo sobre a Ordem , Introd., trad. e notas de
Paula OLIVEIRA E SILVA, INCM, Lisboa, 2000, p. 137). A
propósito das virtudes de Mônica e do seu talento para a
Sabedoria, v. t. Paula OLIVEIRA E SILVA , “Sobre a virilidade:
Cícero e Mónica”, in Luísa RIBEIRO FERREIRA (org.), Pensar
no feminino, Colibri, Lisboa, 2001, pp. 175-189.
Apesar de educadana temperançapor uma velha escrava,
quando jovem “insinuou-se-lhe pouco a pouco o gosto
pelo vinho”. Advertida pela escrava, “reprovou-o e
corrigiu-o” (Conf., IX, 8, 18). (CCL 27, 144).
Conf. IX , 10, 24: “Ali, a vida é a própria sabedoria (…).
Enquanto assim falávamos, anelantes pela sabedoria,
atingimo-la momentaneamente num ímpeto completo do
nosso coração”. (CCL 27, 147).

102 103
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

A MULHER E O FEMININO
NA OBRA DE SANTO ANSELMO
MARIA LEONOR L. O. XAVIER
(Universidade de Lisboa)

Não é decerto uma novidade do final do séc.


XX que haja mulheres interessadas no saber, mas há
um fato novo, que é o acesso de mulheres, em
porcentagens equiparáveis às dos homens, a
instituições de ensino superior e de investigação
científica. Esse fenômeno não pode deixar de trazer
consequências, que já se vislumbram, quais sejam,
o significativo aumento de bibliografia produzida
por mulheres e a afirmação de uma literatura
feminista em múltiplas áreas, entre as quais se
incluem a filosofia e a teologia.
Considerando essas duas áreas de tradição
milenar, cabe notar que as mulheres que fazem hoje
sua formação intelectual em filosofia ou em teologia
instruem-se num legado escrito quase
exclusivamente produzido por homens. Ora,
suspeitando de que a diferença de gênero
(masculino e feminino) não seja irrelevante para a
produção literária nessas áreas, como encaramos
nós, mulheres, uma formação intelectual em
saberes de tradição marcadamente masculina? Não
será essa formação inelutavelmente configurante da
nossa maneira de pensar? A que distância nos
colocamos dela? Poderemos criar alguma distância
crítica? Não ficará inevitavelmente comprometida
por essa formação a possibilidade de afirmação de
virtualidades do feminino no desenvolvimento
destas áreas? Tais perguntas, que põem em questão
as referências masculinas de nossa formação
intelectual, são aquelas que estão na origem do
presente estudo.
Dessas referências masculinas, escolhemos o
caso de Santo Anselmo, pela influência que sua obra
exerceu em nossa formação. O processo de
questionamento da obra anselmiana, neste estudo,
divide-se em dois momentos principais, ou dois
níveis distintos de análise: o primeiro questiona
diretamente o valor da mulher no pensamento de
Santo Anselmo; o segundo examina mais
profundamente o modo como a

104 105
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

complementaridade dos princípios masculino e à mulher, as do feminino.


feminino afeta o pensamento filosófico-teológico do Importa, entretanto, salientar que o
autor medieval. masculino e o feminino, embora determinem ampla
O primeiro nível de análise é óbvio e e multimodamente a vida da natureza, não são
incontornável. Nele, pergunta-se qual a posição de princípios estritamente naturais e muito menos
Anselmo, filósofo e teólogo, sobre as mulheres. imutáveis. Na vida humana, os dois princípios não
Correndo o risco de algum simplismo na formulação, são mais naturalmente determinantes do que
trata-se de apurar o maior ou menor grau de culturalmente configurados. Ambos nos
machismo, ou de feminismo, que se reflete na obra determinam desde a origem, não só no concernente
teológico-filosófica de Santo Anselmo. O que é que ele à natureza, como também à cultura, pela maneira
pensava acerca da diferença e da relação entre homem como esta os representa. Aliás, não poderemos
e mulher? Pensava acriticamente o que sua formação tentar alguma caracterização ou definição desses
cultural lhe transmitia, ou assumiu alguma posição princípios senão por representações quer
refletida sobre o assunto? simbólicas, quer conceitualmente elaboradas, mas
A posição anselmiana não sobressaiu ao sempre culturalmente constituídas.
longo das primeiras abordagens que fizemos de sua Ora, o propósito do presente estudo, no
obra: por um lado, não começamos a lê-la com o segundo momento de análise, é detectar, na própria
propósito de apurar essa posição; por outro, a linguagem anselmiana, sinais de associação, mais ou
própria sobriedade da obra a esse respeito não nos menos mediata, de temas da filosofia moral e da
chamou desde logo a atenção para tal recanto da teologia filosófica quais sejam, a perseverança, a
mundividência anselmiana. De fato, só muito piedade e a justiça – com aspectos e figuras do
pontualmente e na medida do necessário é que masculino e do feminino. Desse modo,
Anselmo se ocupa do tema da mulher em sua obra. compreenderemos como é que Anselmo acusa e
Como interpretar esse fato? Anselmo não herdou representa a complementaridade desses dois
categorias que lhe permitissem valorizar a diferença princípios na sua obra.
da mulher, embora alguns motivos de sua reflexão Assim, julgamos poder compreender
teológica o tenham conduzido a integrá-la de certa também por que razão o machismo mais ou menos
maneira. Veremos como isso se deu procurando declarado de muitos filósofos e teólogos não é um
discernir a resposta anselmiana à seguinte pergunta: obstáculo decisivo à influência de suas respectivas
paridade ou hierarquia entre homem e mulher? obras na formação intelectual das mulheres que
O segundo nível de análise é menos óbvio e, acreditam no valor de sua contribuição própria em
inevitavelmente, mais conjectural, pelo que não áreas de tradição preponderantemente masculina.
deixa também de constituir, para nós, um desafio
filosófico mais interessante. Trata-se do desafio de
identificar, para além da face masculina, a face 1. Homem e mulher: paridade ou hierarquia?
feminina da filosofia moral e da teologia filosófica de
Santo Anselmo.
Assume-se a esse nível que a distinção entre Comecemos pelo tema da mulher em Santo
masculino e feminino não confina com a diferença Anselmo. O tratado que mais explicitamente aborda
esse tema intitula-se De conceptu virginali et originali
entre homem e mulher, sendo aquela distinção mais peccato.
primitiva e abrangente do que esta. Por essa razão,
referimo-nos, acima, ao masculino e ao feminino A questão de fundo que dá lugar a esse
tratado é cristológica e concerne à imunidade de
como “princípios”. Na verdade, é hoje plausível Jesus Cristo ao pecado original: como é que a
admitir que o masculino e o feminino são princípios assunção da natureza humana não afeta Deus feito
complementarmente constitutivos tanto do homem homem com a marca do pecado original?1 Jesus só
como da mulher. Homem e mulher são lugares de poderia receber essa marca de Maria, por
experiência da complementaridade dos dois intermédio de quem Ele assume a natureza humana.
princípios, cabendo ao homem desenvolver A questão desloca-se então do foro da cristologia
privilegiadamente as potencialidades do masculino e para o da teologia mariana: por que razão Maria não

106 107
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

transmite a Jesus a marca do pecado original? Porque instituída por criação; ser pessoal (persona) é ser um
essa marca transmite-se por via da natureza e Maria indivíduo, por meio de propriedades distintivas
não concebe Jesus de forma natural, donde sua relativamente aos demais indivíduos; ser adâmico
concepção não é afetada pela ordem da propagação (filius Adae) é pertencer ao tronco humano dos
natural2. Essa é, em breves palavras, a resposta de descendentes de Adão, por propagação ou geração
Anselmo, a qual exige naturalmente uma reflexão natural4, o que supõe a possibilidade de criação
sobre a índole do pecado original – pecado original divina de outros troncos humanos além do adâmico.
que é realmente o tema forte e central do tratado Os três nomes latinos homo, persona e filius Adae
anselmiano. significam, pois, três diferenças em cada um de nós:
É também a propósito do pecado original e do homo significa a diferença específica da natureza;
par que o protagoniza na narrativa bíblica, Adão e persona significa a diferença própria do indivíduo; e
Eva, que ressaltam algumas considerações, e filius Adae significa a diferença de estirpe, ou a
omissões, sobre o tema da mulher. diferença relativa à origem comum de um tronco
É claro que a narrativa do Gênese sobre Adão humano. E, quanto aos nomes próprios Adam e Eva,
e Eva era tomada pelos teólogos medievais como ou aos nomes comuns masculus e femina: que
uma narrativa histórica, embora esta suportasse diferenças significam eles? É notório que Anselmo
outros níveis de interpretação. Por tal razão, a não ignore que esses nomes significam diferenças,
transgressão de Adão e Eva é, segundo Anselmo, mas ele não as valoriza nem as tematiza enquanto
um pecado pessoal cometido nos primeiros tempos tais.
da história humana. Esse primeiro pecado pessoal Por um lado, Anselmo distingue
causara na natureza do par originário uma carência perfeitamente entre as noções associadas a homo e a
de justiça, que se propagou aos descendentes de masculus, pois homo significa a natureza comum a
Adão como uma herança natural, a que a teologia homens e mulheres, pelo que Adão e Eva podem ser
chamou “pecado original”3. chamados conjuntamente homines5, enquanto
É hoje plausível interpretar as narrativas masculus não se aplica a ambos. Os nomes masculus e
sobre as origens da humanidade não já em termos femina significam diferenças inerentes à natureza
de história, mas de mito, o que não nega o teor nem o humana, que os nomes Adam e Eva conotam, mas que
valor de tais narrativas; antes as torna mais não mereceram de Anselmo uma tematização
significativas acerca do presente das civilizações do positiva análoga à das diferenças acima
que acerca de uma origem histórica da humanidade. discriminadas.
Nessa medida, a consideração da narrativa sobre Por outro lado, Anselmo empenha-se muito
Adão e Eva como mito não invalida tudo o que a mais em salientar o que há de comum entre Adão e
teologia disse sobre esse par mítico ao tomá-lo Eva do que aquilo que os distingue. O que poderá
como um par histórico, apenas que a própria significar esse empenho, ou essa tendência? Reduzir
teologia requer ser reinterpretada como proposta a diferença de Eva a uma redundância ou equipará-
de compreensão da mundividência do mito. Assim la à dignidade de Adão? Encontramos alguma
entendemos a teologia anselmiana do pecado ambiguidade nas respostas dadas pelo tratado
original, construída na linha da forte tradição anselmiano, sobretudo acerca da responsabilidade
agostiniana nessa matéria. dos dois membros do par originário na origem do
É nosso intuito destacar agora as alusões ao pecado humano.
tema da mulher, no âmbito da teologia do pecado É certo que as palavras de Anselmo são claras
original, em Santo Anselmo. Antes, porém, ressalta quanto à imputação da responsabilidade do
uma omissão: a ausência de categorias positivas para primeiro pecado pessoal da humanidade: Adão e
tratar a diferença de ser mulher. Eva são ambos pessoalmente imputáveis6. Há, pois,
Anselmo debate-se de fato com essa uma corresponsabilidade pessoal na quebra
dificuldade, que se faz sentir como uma omissão humana da ordem divina, pelo que o primeiro
entre as distinções iniciais do tratado sobre o pecado pecado humano é, desde logo, um pecado coletivo.
original. Nesse tratado, distingue-se desde logo e Mas a que se deve a responsabilidade em ambos,
claramente entre ser humano, ser pessoal e ser Adão e Eva, pelo pecado? Àquilo que é comum a
adâmico: ser humano (homo) é ter uma natureza ambos, não àquilo que os distingue quer como
especificamente determinada e divinamente pessoas, quer como varão e mulher. Ora, aquilo que

108 109
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

é comum a ambos é a natureza humana, em especial adere a essa suposição? Por um lado, Anselmo não a
a vontade natural ou originalmente dotada de comenta criticamente; por outro, sua teologia não
justiça e, portanto, inteiramente soberana na decisão obriga a admiti-la.
quer de guardá-la, quer de rejeitá-la. A rejeição da A segunda explicação da maior
justiça original da vontade, ou seja, o pecado pessoal imputabilidade de Adão não consiste, na realidade,
de Adão e Eva, é, assim, imputável à natureza, que é senão em fundar a suposta relação hierárquica entre
comum a ambos. Segundo a natureza, Adão e Eva homem e mulher na letra da própria narrativa
são iguais e igualmente responsáveis pelo primeiro bíblica sobre Adão e Eva, segundo a qual Eva foi
pecado humano. A noção anselmiana de natureza formada a partir do lado de Adão. Nessa medida,
na constituição do ser humano não dá razão para Eva é originariamente uma parte de Adão, pelo que
negar uma relação paritária entre os dois membros pode receber o nome do todo a que pertence9. Adão
do par arquetípico do Gênese. é mais do que a parte principal, dado que é o todo de
Todavia, no Capítulo IX de De conceptu virginali que Eva procede. A hierarquia acentua-se. Embora a
et originali peccato, Anselmo questiona o hábito igual dependência de Adão e Eva relativamente ao
doutrinal, com fundamento bíblico, de atribuir uma Criador milite sempre a favor da paridade dos dois
desigual responsabilidade a Adão e Eva pelo membros do casal originário, a formação de Eva a
partir de Adão não deixa de favorecer a hierarquia
primeiro pecado. Por que razão, pergunta o teólogo, entre ambos e, nesta, a posição subordinada de
o pecado original é mais habitual e especialmente Eva10. Anselmo, que tomava o par mítico por um
imputado a Adão do que a Eva, não obstante ter esta par histórico, não questionava aquilo que a história
pecado antes daquele, em conformidade com a das origens supostamente estabelecera de forma
narrativa do Gênese?7 irreversível, a saber: a condição menor de Eva na
À primeira vista, esse costume de relação com Adão.
responsabilizar mais Adão do que Eva pelo pecado Prova disso é a terceira explicação da maior
original pode parecer uma suavização do papel de imputabilidade de Adão. Aí, Anselmo elabora uma
Eva na origem do mal; portanto, um favorecimento razão consequente da própria condição menor de
desta e, com isso, da diferença de ser mulher. Sem Eva na relação com Adão. Admitindo, por hipótese,
prejuízo dessa diferença, tal costume não é que só Eva pecasse, seu pecado pessoal seria quase
sancionado pela teologia anselmiana do pecado irrelevante; só afetaria a ela e não se transformaria
original, como acabamos de ver. No entanto, esse num pecado original para o resto da humanidade –
costume não é inexplicável, e Anselmo admite três Deus poderia até formar outra mulher a partir do
razões para sustentá-lo, todas, curiosamente, em mesmo Adão, para substituir Eva e desempenhar
desfavor ou em desprimor da diferença de ser melhor o seu papel. Que papel? Não o papel
mulher em Eva. substancial de Adão, como semente da
Em primeiro lugar, Adão é mais imputável humanidade, mas um papel instrumental no
do que Eva porque o nome de “Adão” pode ser desenvolvimento da humanidade adâmica,
atribuído ao próprio par originário, na sua segundo o propósito do Criador11.
totalidade, de acordo com o processo, comum na Por essa razão, isto é, pela condição
linguagem natural, de nomear o todo pelo nome da instrumental de Eva, o pecado pessoal de Adão é
parte principal8. À luz dessa explicação, relativa à muito mais grave para o destino da humanidade do
ordem da linguagem, Eva não é realmente menos que o de Eva. Adão e Eva podem ser igualmente
imputável do que Adão, mas ambos são igualmente responsáveis pelo primeiro pecado humano, como
imputáveis sob o nome da parte principal, que é Anselmo preconiza claramente, mas podem não
Adão. Essa primeira explicação não colide ser igualmente responsáveis pela repercussão do
obviamente com a teologia anselmiana do pecado primeiro pecado no destino da humanidade. Essa
original, mas obriga a supor uma relação hierárquica desigualdade não colide, de fato, com as teses
entre Adão e Eva e, desde logo, entre homem e expressas da teologia anselmiana do pecado
mulher, na qual a primazia pertence àquele. Desse original, embora esta não obrigue a afirmar tal
modo, Anselmo supõe que a distinção entre homem desigualdade.
e mulher dá naturalmente origem a uma relação De qualquer modo, a terceira explicação,
hierárquica entre ambos. Mas até que ponto ele para o hábito de atribuir o pecado original menos a

110 111
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Eva do que a Adão, encerra a página mais machista também uma mulher é causa material no processo
que encontramos no conjunto da obra de Santo da Encarnação, ou seja, Maria é a matéria de que
Anselmo. Jesus Cristo é feito. Esta interpretação do papel de
Há, no entanto, ainda em De conceptu virginali et
originali peccato, uma interessante e apreciável Maria na Encarnação pode ser criticada como
sugestão de paridade entre homem e mulher. Essa teologicamente pobre. Note-se, porém, que a
sugestão emerge não já da teologia do pecado original, redução de Adão e de Maria a causas materiais,
mas da analogia entre Criação e Encarnação. segundo a teologia de Santo Anselmo, é
A analogia entre o Antigo e o Novo perfeitamente solidária com a tese fundamental da
Testamento, proporcionando uma leitura não literal eficiência exclusiva de Deus, tanto na Criação como
do primeiro à luz do segundo, era um procedimento na Encarnação. Tal redução não é, ademais,
recorrente na tradição medieval da exegese bíblica.
Santo Anselmo aplica e desenvolve esse filosoficamente irrelevante acerca da condição de
procedimento no próprio tratamento teológico de ser mulher.
temas fundamentais do Antigo e do Novo Mais habitual do que aproximar Maria e
Testamento, quais sejam, respectivamente, a Criação Adão é contrapor Maria a Eva: enquanto por Eva
e a Encarnação. Da analogia anselmiana entre esses veio a perdição aomundo, por Maria veio a salvação.
dois temas no tratado em foco ressaltam duas Nessa contraposição, Eva e Maria são causas
prioridades dominantes: por um lado, acentuar a instrumentais de efeitos contrários, em
transcendência da ação divina tanto na Criação conformidade com os quais, respectivamente, Eva é
como na Encarnação; por outro, equiparar os papéis depreciada e Maria, exaltada. Mas Maria é uma
do homem e da mulher na causalidade dos dois mulher escolhida para desempenhar uma missãona
processos ad extra da ação divina12. história da salvação, pelo que a exaltação de sua
Antes de mais nada, Anselmo acentua a pessoa, em nome de sua missão única e decisiva, não
concerne propriamente à condição comum de ser
transcendência da ação divina nos dois processos, mulher e não permite valorizar essa condição senão
reservando para Deus exclusivamente o papel de acidental ou indiretamente. Em contrapartida, Eva
causa eficiente tanto na Criação primordial do é a mãe de todas as mulheres, ou o símbolo
homem e da mulher quanto na manifestação arquetípico da condição comum de ser mulher, pelo
sobrenatural de Deus na história humana por meio que a negatividade de seu papel na história mítica
da Encarnação. Que papel desempenham, então, os das origens não pode deixar de afetar essa condição.
outros elementos que integram os dois processos? A associação, por contraposição, entre Eva e Maria
não favorece, pois, a diferença comum de ser
Que papel cabe ao limo da terra na criação do mulher.
primeiro homem e a este na criação da primeira Tal associação também não aparece
mulher? Analogamente, que papel cabe à natureza sublinhada na obra de Santo Anselmo, o que é
e à vontade do homem na iniciativa divina da compreensível à luz da teologia anselmiana do
Encarnação e a Maria na origem de Jesus? São as pecado original, no âmbito da qual Eva não pode
respostas a tais perguntas que acusam uma singular
ser entendida como meio da perdição do mundo:
defesa de paridade entre homem e mulher, segundo
por um lado, porque Eva e Adão são igualmente
Santo Anselmo. A analogia anselmiana estabelece
corresponsáveis pelo primeiro pecado pessoal da
uma semelhança entre o limo da terra, Adão e Maria:
humanidade; por outro, porque, a admitir
os três desempenham a função de causa material
desigualdade, é quanto à responsabilidade pela
nos processos em que respectivamente intervêm.
herança do pecado original, no que Eva pode ser
Na Criação, tal como o limo da terra é a matéria de
que é feito o primeiro homem, assim também este é a considerada menos responsável do que Adão.
matéria de que é feita a primeira mulher. Tal como Como vimos acima, esta menor responsabilização
o limo da terra e o primeiro homem são causas de Eva também não beneficia a condição comum
materiais no processo da Criação primordial, assim que ela representa.

112 113
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Entretanto, a analogia anselmiana entre os configura e representa, mais ou menos


papéis de Adão e de Maria como causas materiais, refletidamente. Santo Anselmo também não pode
respectivamente, na Criação e na Encarnação provê escapar a essa regra. Julgamos, aliás, não ser de
à equiparação da mulher ao homem na causalidade forma irrefletida que tais princípios repercutem na
integrante da ação divina. Tal como de um homem, sua obra. Enfocando essa repercussão, destaquemos
Adão, Deus fez, por Criação, uma mulher, Eva, as figuras e as ideias que representam o masculino e
assim também de uma mulher, Maria, Deus fez, por o feminino na obra anselmiana.
Encarnação, um homem, Jesus. De acordo com essa Para esse efeito, algumas sutis variações e
analogia, tanto um homem pode ser a matéria de preferências terminológicas podem revelar-se
que é feita uma mulher quanto uma mulher pode prestimosos sinais condutores. Em particular,
ser a matéria de que é feito um homem. Assim Anselmo dispunha de dois pares de termos para
sendo, o homem não é o todo de que a mulher é significar as diferenças de ser homem e de ser mulher:
apenas uma parte, nem o homem é a parte principal masculus e femina; vir e mulier. Ambos os pares são usados
de um todo de que a mulher é a parte menor, mas em De conceptu virginali et originali peccato. Todavia, o
homem e mulher são duas totalidades equiparáveis autor prefere as combinações de vir e femina, ou de vir e
entre si, que podem desempenhar a mesma função mulier, a respeito da semelhança entre Adão e Maria,
na origem um do outro, qual seja, a função de causa isto é, no âmbito da analogia que promove e equipara
material. o papel do feminino humano ao do masculino
Nessa semelhança entre Adão e Maria, humano em ações sobrenaturais de Deus13. O uso dos
encontramos, sem dúvida, um forte indício da termos femina e mulier aparece, assim, associado a uma
teologia anselmiana a favor da paridade entre afirmação de valor da diferença que ambos os termos
homem e mulher. Um forte indício, não por ser significam. Algo similar acontece, especialmente, com
insistentemente explícito, mas por ser sutilmente o termo vir: por um lado, vir é o termo que Anselmo
elaborado e integrado, como uma ideia prefere empregar para significar a diferença comum
naturalmente decorrente dessa teologia. Como tal, de gênero que se estende à natureza humana de Jesus;
a semelhança entre Adão e Maria produz o por outro, o uso do advérbio derivado viriliter
equilíbrio, que, segundo Santo Anselmo, o Novo respeita, na linguagem anselmiana, a uma qualidade
Testamento permite aduzir ao Antigo, na relação moral da maior relevância filosófica e teológica, a
entre as diferenças de ser homem e de ser mulher. O perseverança.
cristianismo constitui, pois, na teologia anselmiana, A virilidade moral, interior e espiritual, é a
um passo decisivo na promoção da condição perseverança. A estreita associação entre as ideias de
feminina. virilidade e de perseverança nos foi sugerida pelo
epistolário anselmiano. Neste, destacamos quatro
cartas de fases diferentes da vida de Anselmo, as
2.Masculino e feminino: a complementaridade quais mantêm, como uma constante, o uso do
advérbio viriliter associado à significação de
Embora as diferenças de ser homem e de ser qualidades da vida espiritual que integram ou
mulher sejam determinadas, respectivamente, pelos supõem a perseverança.
princípios do masculino e do feminino, esses Na carta de Anselmo prior do mosteiro de Bec,
princípios não confinam com aquelas diferenças, a dois monges de Cluny, Odo e Lanzo, aliam-se
pois que os princípios são mais primitivos do que as contiguamente, no progresso da vida espiritual, as
diferenças por eles constituídas e são ideias de mais forte insistência (fortior instando), de mais
complementares entre si na constituição de cada alegre perseverança (laetius perseverando) e de viril
uma delas. Entretanto, como cada um de nós não fortalecimento (viriliter confortatus)14. Não se trata de
pode abstrair da diferença constituída de ser três ideias aleatoriamente reunidas, mas de um
homem, ou da diferença de ser mulher, investida crescendo de estados, desde a esforçada insistência até
em determinada circunstância cultural, nenhum de a consolidada fortaleza, que integram o exercício
nós pode apurar os princípios constitutivos dessas espiritual da perseverança, não obstante Anselmo
diferenças, o masculino e o feminino, senão pela utilize o verbo perseverare para significar um estado
maneira como nossa cultura coletiva e individual os intermédio, tomando o todo pela parte.

114 115
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Na carta de Anselmo abade do mosteiro de Atendendo à relevância moral dessa qualidade,


Bec, a Ermengarda, essa destinatária, nobre e casada, visto que a questão do bem ou do mal se traduz, em
que renunciara à vida conjugal de comum acordo com Santo Anselmo, pela questão de perseverar ou de
o marido, é referida como alguém a quem foi dado não perseverar na retidão da vontade, a
sofrer tão virilmente tantas tribulações por guardar perseverança é uma qualidade superiormente
castidade (tot tribulationes pro tuenda castitate tam viriliter representativa do masculino.
sufferre)15, isto é, como alguém a quem foi dado Da masculinidade da perseverança não
perseverar na castidade. decorre, porém, que esta seja uma qualidade
Na carta de Anselmo já arcebispo de Cantuária negada às mulheres. A virilidade dos anjos não é
a Guilherme, monge de Chester, todos – leigos, uma qualidade física, mas espiritual, pelo que
clérigos e monges – são incentivados, cada qual no seu constitui também um valor para a diferença de ser
estado, a progredir virilmente e sempre (viriliter semper mulher. Em conformidade com o próprio
proficere)16, isto é, perseverantemente, no caminho da testemunho de Anselmo nas cartas a Ermengarda e a
perfeição. Guilherme, todos – homens e mulheres, leigos,
Noutra carta de Anselmo como arcebispo de clérigos e monges – são chamados à virilidade
Cantuária, ele dirige-se ao destinatário, Rainaldo, espiritual, que é a perseverança. O valor comum da
exaltando suas fundamentais escolhas, como a de perseverança acusa, portanto, a
superar virilmente a pobreza (viriliter paupertatem complementaridade do masculino na afirmação da
superanti)17. Não se trata certamente de ultrapassar a diferença de ser mulher: uma mulher perseverante
pobreza com a riqueza, mas de perseverar no voto de é melhor do que uma mulher não perseverante.
pobreza. Resta saber se Anselmo considera algum
De acordo com esses testemunhos do outro valor comum que acuse a complementaridade
epistolário anselmiano, todas as expressões de do feminino na afirmação da diferença de ser
virilidade espiritual são permutáveis com o exercício homem. Julgamos que sim. De fato, há outro valor
da perseverança. comum, que Anselmo assume em estreita união com
Entretanto, a perseverança é um tema central uma figura do feminino. O valor comum é, de novo,
da filosofia moral de Santo Anselmo: por quê? Por uma qualidade moral: a piedade (pietas). A figura do
causa do descentramento do tema da liberdade na feminino associada é a de mãe. A associação entre
questão da origem do pecado e do aprofundamento piedade e maternidade, em Santo Anselmo, inspira-
dessa questão a respeito da queda dos anjos. Para se expressamente no célebre episódio ilustrativo da
Anselmo, o pecado não é uma escolha livre, mas sabedoria de Salomão, narrado em 1 Rs 3, 16-28:
uma traição ao próprio exercício da liberdade, que entre as duas mulheres que reclamavam a mesma
é a preservação da retidão da vontade. Essa traição criança, aquela que provou ser mãe foi aquela que
é um abandono sem constrangimento do dom manifestou piedade, renunciando à posse da criança
original de retidão da vontade, segundo De libertate mas salvando-lhe a vida. Da interpretação
arbitrii 18. Tal é o pecado pessoal dos humanos. Ora, o anselmiana dessa piedade materna resulta, a nosso
abandono da retidão da vontade não é senão uma ver, a noção de uma qualidade superiormente
falta de perseverança nessa mesma retidão. A falta de representativa do princípio feminino.
perseverança é, por sua vez, o abandono sem Em que consiste, então, a piedade para
constrangimento do dom de perseverança na Anselmo? A piedade consiste numa renúncia: a
retidão da vontade, segundo De casu diaboli 19. Tal é o renúncia à vontade própria pelo bem de outrem.
pecado dos anjos caídos. Desse modo, Anselmo converte em definição geral
Assim como o abandono da perseverança é o da piedade a atitude paradigmática da mulher que
pecado dos anjos caídos, a perseverança é o dom prova ser mãe pela capacidade de tal renúncia. Na
tornado inseparável dos anjos confirmados. Como a medida em que essa renúncia é sinal inequívoco de
perseverança vem por vezes conotada com uma maternidade, a piedade por ela definida não pode
ideia do masculino, a virilidade, cabe dizer que ela é deixar de afirmar-se como qualidade
um dom masculino de Deus aos anjos. A essencialmente materna; logo, como qualidade
perseverança é a virilidade dos anjos. Estes são representativa de uma figura crucial do feminino.
confirmados pela inerência de um dom que é uma Da configuração maternal da piedade não se
qualidade representativa do princípio masculino. segue, porém, que esta seja uma qualidade exclusiva

116 117
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

das mães biológicas. Pode haver mães biológicas significativa a esse propósito. A hipótese do primado
desprovidas de tal piedade, assim como pode haver da misericórdia relativamente à justiça, na ordem
homens literalmente viris, mas desprovidos dos atributos divinos, permite conceber a salvação
daquela virilidade espiritual conotável com a sem redenção; logo, sem a necessidade da
perseverança. A piedade materna é, tal como a viril Encarnação para realizar essa redenção. Mas a
perseverança, uma qualidade espiritual que possibilidade de relevar um pecado não remido é,
constitui um valor comum para ambas as diferenças, em si mesma, uma injustiça. Deus não pode, então,
a de ser mulher e a de ser homem. A piedade ser tão misericordioso a ponto de lesar sua própria
materna denuncia, em particular, a justiça. Donde a necessidade de redenção para a
complementaridade do feminino na afirmação da salvação e, com ela, a necessidade da Encarnação. A
diferença de ser homem: um homem piedoso é justiça condiciona, pois, a misericórdia divina21.
melhor do que um homem sem piedade. Essa afirmação do primado da justiça
Disso mesmo nos dá testemunho, uma vez relativamente à misericórdia, na teologia de Cur deus
mais, o epistolário anselmiano. Na carta de homo, significa, sem dúvida, um imperativo de
Anselmo arcebispo deCantuária ao abade Geronto, ordem: em primeiro lugar, aquela que determina a
aquele apela à piedade maternal deste para resolver inconveniência do perdão sem a remissão da falta;
o problema delicado de certo monge, feito clérigo e em última análise, aquela que determina a
feito monge, respectivamente, em mosteiros conveniência de completar, ou de conduzir à
distintos, que se via impedido por esse fato de firmar perfeição, a Cidade Celeste, expressão última da
sua pertença a um dos dois mosteiros, a menos que Criação22. Essa conveniência é, na verdade, a razão
fosse libertado dos votos feitos no outro. mais fundamental pela qual Deus não pode deixar
Parafraseando 1 Rs 3, 26-27, Anselmo exorta de se empenhar na regeneração de sua obra. É
Geronto a ser genuinamente mãe, para renunciar à discutível que seja ainda por imperativo da justiça
jurisdição sobre esse monge, por ele feito clérigo, em que Deus queira completar a obra da Criação, ou
favor da plena assunção de sua vida monástica realizar a perfeição da Cidade Celeste. De qualquer
noutro mosteiro20. modo, a exigência de tal completude ou perfeição é
Com esse apelo à maternidade de um abade, ainda um imperativo de ordem: a ordem dos fins
Anselmo manifesta não ter uma visão redutora do últimos. Ora, não encontramos, na teologia filosófica
feminino, reconhecendo em aspectos ou figuras do de Anselmo, atributo que exprima melhor do que a
justiça algum imperativo de ordem na vontade e na
feminino não dimensões menores do humano, mas ação de Deus.
fatores de humanidade. Admitindo que a justiça represente, em
Em suma, é possível admitir que, na filosofia
anselmiana da moralidade, a renúncia (piedade) é qualquer caso, um imperativo de ordem, como
feminina, porquanto é uma representação ideal ou interpretar o relevo da justiça na teologia
superior do feminino, bem como a perseverança é anselmiana? Por um lado, é claro para nós que a
masculina, porquanto é uma representação ideal ou dominância do tema da justiça em Santo Anselmo
superior do masculino. Feminino e masculino são, assinala uma concepção de Deus contida nos
como Anselmo supunha de fato, dois princípios limites, isto é, subordinada às condições de uma
complementares do ser humano, mulher ou varão, ordem racional. Por outro lado, nos é menos claro,
no tocante a seu melhor desempenho. mas questionável, que a justiça represente uma
Todavia, nem a piedade, nem mesmo a ideia do masculino, o domínio da ordem, na
perseverança têm um relevo comparável àquele que teologia filosófica. Nesse caso, a justiça
obtém a justiça na filosofia e na teologia de Santo representaria uma feição masculina de Deus, que
Anselmo. Na filosofia de De veritate, a justiça revelaria, então, ser predominante na teologia
identifica-se com a retidão da vontade e constitui a filosófica de Anselmo.
principal especificação da noção de verdade. Na Não nos parece, contudo, que a noção
teologia de Cur deus homo, a justiça é o atributo divino anselmiana de justiça seja exclusivamente
determinante da necessidade da Encarnação para a masculina. Considerando a justiça definida em De
salvação da humanidade adâmica. veritate, não é difícil articulá-la com as noções já
A tensão entre justiça e misericórdia é, aliás,

118 119
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

analisadas de perseverança e de piedade, para especialmente representativa da figura materna. A


encontrar nela a complementaridade de duas ideias noção anselmiana de justiça, na medida em que
representativas, respectivamente, do masculino e supõe a piedade, não deixa, afinal, de incluir, na sua
do feminino. constituição, um elemento representativo do
Ora, segundo De veritate, a justiça é a retidão da feminino.
vontade guardada (servata) por si mesma, isto é, A aplicação teológica da noção de justiça
observada e conservada por causa, unicamente, de também não põe em causa esse estreito vínculo entre
si mesma23. A justiça é a retidão da vontade, e a justiça e piedade. A justiça divina é naturalmente
perseverança é a guarda indefectível da retidão da não condicionada pela vontade própria, pois em
vontade. A afinidade é óbvia: a perseverança Deus não há vontade própria conflitante com a
participa da definição da justiça como condição de vontade justa. Por isso mesmo não há também
seu cumprimento e manutenção. Sem perseverança, necessidade de discernir a piedade da justiça no
a justiça perderia sua relação essencial com a domínio dos atributos divinos.
vontade. Não há justiça sem perseverança. O Em virtude da acuidade da reflexão
abandono da perseverança é, concomitantemente, o filosófico-teológica de Santo Anselmo, sua obra não
abandono dajustiça. Dado que a perseverança é viril, podia deixar de sugerir, no âmbito de seus temas
nos termos da filosofia moral de Anselmo, a justiça dominantes, a complementaridade dos dois
comporta, em sua definição, uma ideia princípios estruturantes do real, o feminino e o
representativa do masculino. masculino, mesmo que estes não se encontrem nela
A aplicação teológica da noção de justiça como tematizados.
atributo divino não põe em causa esse estreito
vínculo entre justiça e perseverança. Como a justiça é
inseparável da vontade divina, Deus não pode ser Notas
senão perseverante. Por isso mesmo não há
Cf. De conceptu virginali et originali peccato (DCV), c.1, in : F. S.
necessidade de destacar a perseverança como um Schmitt (ed.), S. Anselmi Cantuariensis Archiepiscopi Opera
atributo divino distinto da justiça. Omnia, II, StuttgartBad Cannstatt, 1968, p. 140.
Resta, por fim, ponderar se a noção de justiça Cf. DCV, c.11, in Schmitt, II, pp. 153-154.
comporta igualmente, na sua definição, uma ideia Cf. DCV, cc.1-2, in Schmitt, II, pp. 140-142.
representativa do feminino. Segundo a definição “Licet enim in unoquoque homine simul sint et natura qua est homo, sicut
anselmiana de justiça, esta é a retidão guardada por sunt omnes alii, et persona qua discernitur ab aliis, ut cum dicitur iste vel
ille, sive proprio nomine, ut Adam aut Abel (…)”, DCV, c.1, in Schmitt,
causa de si mesma (propter se), isto é, II, p. 140; “Est quidem unusquisque filius Adae et homo per creationem, et
incondicionalmente. A justiça é, portanto, a retidão Adam per propagationem, et persona per individuitatem, qua discernitur
incondicional da vontade. A justiça é incondicional ab aliis”, DCV, c.10, in Schmitt, II, p. 151.
porquanto não é condicionada por algum outro “Siquidem Adam et Eva originaliter, hoc est in ipso sui initio mox ut
homines extiterunt, sine intervallo simul iusti fuerunt”, DCV , c.1, in
motivo da vontade, qual seja, algum interesse Schmitt, II, p. 141.
egoísta do sujeito de vontade. Em Santo Anselmo, “Ergo Adam et Eva si iustitiam servassent originalem: qui de illis
qualquer interesse desse gênero cai no âmbito da nascerentur, originaliter sicut illi iusti essent. Quoniam autem personaliter
noção pejorativa de vontade própria. A justiça não peccaverunt, cum originaliter fortes et incorrupti haberent potestatem
semper servandi sine difficultate iustitiam: totum quod erant infirmatum
será incondicional, pois, sem a renúncia à vontade et corruptum est”, DCV, c. II,
própria, que abrange qualquer interesse egoísta. in Schmitt, II, p. 141.
Como a justiça é, por definição, incondicional, “Ad quod videtur mihi quaerendum in primis, cur saepius et specialius
ninguém pode ser justo sem renunciar a essa peccatum quo damnatum est humanum genus, [magis] imputetur Adae
vontade, ou a esse gênero de interesse. A renúncia à quam Evae, cum illa prior peccaverit et Adam post et per illam. Dicit enim
apostolus: 'Sed regnavit mors ab Adam usque ad Moysen, etiam in eos qui
vontade própria é a eliminação de uma condição non peccaverunt in similitudinem praevaricationis Adae' (Rom. 5, 14).
obstante à justiça. Desse modo, a renúncia à vontade Multa quoque alia leguntur quae magis Adam quam Evam criminari
própria participa da negação de todas as condições, videntur”, DCV, c. 9, in Schmitt, II, p. 150.
o que define a diferença da justiça como retidão “Quod ideo fieri existimo, quia illa duorum copula tota intelligitur in
nomine principalis partis, sicut saepe per partem totum solet significari”,
incondicional. Mas a renúncia à vontade própria é, ibid.
como vimos, aquilo que Anselmo entende por “(…); aut quoniam Adam cum costa sua quamvis aedificata in mulierem
piedade, e esta é feminina, na medida em que é dici poterat Adam, sicut legitur quia deus 'masculum et feminam fecit eos et

120 121
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

benedixit illis, et vocavit nomen eorum Adam in die quo creati sunt' (Gen. 5, quisque sibi trahendo scindatis, sed in vobis esse maternam pietatem et plus
2)”, ibid. vos diligere animam proximi quam propriam voluntatem ostendatis. Ille
O que não elimina a possibilidadede leituras favoráveis a enim se magis ostendet esse matrem, qui dicet alteri: habeto tu solus
Eva e à condição da mulher, como a que segue: “De facto, infantem vivum, ne ambo eum occidamus; ut cum venerit verus Salomon,
[Deus] criou o homem neste mundo vil, e da lama, e a dicat: 'date huic infantem vivum', 'haec est enim mater eius' (1 Reg. 3, 27).
mulher num segundo tempo, no paraíso e da nobre matéria Nam vera mater mavult filium suum in alieno sinu vivere, quam in suo
humana. E não a formou dos pés ou das entranhas do corpo mortuum fovere. Notum autem sit sanctitati vestrae quia, sicut cognoscere
de Adão, mas da costela”. U. Eco, O nome da rosa (1980), trad. potui, magis expedit propter plures causas eum Carnoti remanere quam ad
M. C. Pinto, Lisboa, Difel, p. 248. vos remeare. Unde si auderem, religioni vestrae consulendo suggerem,
“(…); aut idcirco,quia si non Adam sed sola Eva peccasset,non necesseerat quatenus vos non falsam, sed veram matrem esse probaretis”, Epistola ad
totum genus hominum perire, sed solam Evam. Poterat namque deus de Gerontem abbatem, in Schmitt, IV , Ep. 302, pp. 223-224.
Adam, in quo semen omnium hominum creaverat, aliam facere mulierem, Cf. Cur deus homo (CDH ), I , c. 12, in Schmitt, II , pp. 69-70.
per quam de Adam propositum dei perficeretur”, DCV, c. 9, in Schmitt, Cf. CDH , II , cc. 4-5, in Schmitt, II , pp. 99-100.
II, pp. 150-151.
“Sicut namque limus terrae non acceperat naturam aut voluntatem, qua “Iustitia igitur est rectitudo voluntatispropter se servata”,
operante vir primus de illo fieret, quamvis esset de quo a deo fieri posset: sic De veritate, c. 12, in Schmitt, I, p. 194.
non est facta mulier de costa viri aut vir de sola muliere operante natura aut
voluntate hominis, sed deus propria potestate et voluntate fecit virum
unum de limo et alterum de sola femina, et feminam de solo viro”, DCV ,
c. 11, in Schmitt, II, p.153; “Pariter tamen verus est homo et Adam de
non-homine, et Iesus de sola muliere, et Eva de solo viro, sicut est verus homo
quilibet vir aut mulier de viro et muliere”. Ibid ., p. 154.
V er nota12.
“Esto itaque, amice mi, sollicitus, ut spatium vitae quod tibi restat – quai
nescis quam breve est – sic expendas, ut de die in diem sanctum mentis
propositum ad meliora extendas. Quatenus si quid te gravat bene vivere,
quanto magis laborem tuum ad finem festinare et te ad requiem et coronam
appropinquare consideras, tanto fortius instando et laetius perseverando
viriliter confortatus proficias”, Epistola ad Odonem et Lanzonem , in
Schmitt, III, Ep. 2, pp. 100-101.
“Audivi, carissima domina, qualiter sit inter virum vestrum et vos,
quoniam nobilitas vestra non hoc patitur occultari, sed longe lateque facit
publicari. In qua re primum gratias ago deo, a quo est omne bonum, qui
eidem viro vestro dedit tanta constantia temporalem gloriam pro aeterna
contemnere, et vobis concessit tot tribulationes pro tuenda castitate tam
viriliter sufferre; ita tamen ut ille in ipso mundi contemptu non plus
diligat se ipsum quam vos, nec vobis aliquid in hoc mundo sit carius illo”,
Epistola ad Ermengardam , in Schmitt, III, Ep. 134, pp. 276-277.
“Nam etsi omnes ad perfectionis summam pariter pervenire non possimus,
non tamen erimus extra numerum bonorum, sicut scriptum est:
'imperfectum meum viderunt oculi tui, et in libro tuo omnes scribentur', si
ad eandem perfectionem incessanter et fortiter conari velimus. Conentur
igitur laici in suo ordine, clerici in suo, monachi in suo viriliter semper
proficere, ut illi qui superioris propositi sunt, eos qui inferioris sunt,
humilitate – in qua quantum homo magis proficit, tanto magis sublimatur
– et aliis virtutibus excellere”, Epistola ad Willelmum monachum
Cestrensem, in Schmitt, IV , Ep. 189, p. 75.
“Anselmus, archiepiscopus Cantuariae: Rainalmo, sapienter veritatem
vanitati praeponenti, fortiter gloriam transitoriam pro honestate
contemnenti, viriliter paupertatem superanti, salute et gratia dei semper
protegi et confortari”, Epistola ad Raimalmum episcopum Herefordensem
resignatum, in Schmitt, V, Ep. 343, p. 280.
Cf. De libertate arbitrii ,c. 3, in Schmitt, I , p. 212.
Cf. De casu diaboli , cc.1-4, in Schmitt, I , pp. 233-242.
“Quidam monachus, sicut ab illo didici, alligatus ecclesiae vestrae per
quandam professionem, quam in habitu clericali vobis fecit, et similiter
monasterio Sancti Petri, quod Carnoti situm est, ubi habitum monachi
assumpsit per aliam professionem: dicit se nullatenus posse habere
solutionem a vobis neque ab abbate Carnotensi, ut vel in Carnotensi
monasterio vel in vestro animam suam salvet; quod facere nequit, nisi aut
a vobis aut ab abbate Carnotensi absolutus fuerit. Consideret igitur
prudentia vestra quia non expedit nec decet vos abbates, ut animam eius

122 123
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

DESCARTES,
AS MULHERES E A FILOSOFIA
MARIA LUISA RIBEIRO FERREIRA
(Universidade de Lisboa)

1.As mulheres e a filosofia

A relação de Descartes com as mulheres


interessou a alguns filósofos do começo do século XX.
Foucher de Careil, Charles Adam e Ernst Cassirer,
entre outros, investigaram o impacto do
cartesianismo nas mulheres do seu tempo,
centrando-se exatamente nos mesmos casos que irão
ser considerados1. Contudo, a perspectiva que
seguiremos difere da dos autores referidos,
podendo-se mesmo dizer que é contrária à que
defendem. Assim, não é nosso objetivo mostrar que
Descartes influenciou o pensamento feminino da
época, mas sim considerar no filósofo as marcas
deixadas por certas mulheres. Pretendemos
também provar que a relação do filósofo francês com
as intelectuais de seu tempo é significativa da
presença feminina na tradição filosófica ocidental,
bem como do modo próprio como as mulheres
praticavam/praticam filosofia. Embora se citem três
figuras, a tônica é colocada naquela que tem maior
relevância filosófica, ou seja, a princesa Elisabeth da
Boêmia.
Para uma melhor compreensão do universo
significativo em que nos colocamos, afloraremos,
com a devida brevidade, dois pontos: em primeiro
lugar, a presença da mulher no pensamento
moderno; em seguida a misoginia dos filósofos da
modernidade.

A presença da mulher no pensamento moderno

É habitual dizer que não houve mulheres


filósofas e que só agora, no século XX, começamos a ver
despontar uma produção filosófica feminina com
alguma continuidade. Dado que a filosofia se tem
empenhado na luta contra os preconceitos, é justo que se
derrube esse falso lugar-comum – o que imediatamente

124 125
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

acontece se atentamos aos fatos. Na verdade, há muitos do Tratado Político, exclui as mulheres de uma
textos filosóficos seiscentistas escritos por mulheres. possível participação ativa nesse regime, tal como
Limitamo-nos a referir alguns/algumas sobre os/as exclui os servos, as crianças, os pupilos, os
quais nos temos debruçado: Margareth Cavendish, criminosos e todos aqueles que sejam portadores de
duquesa de Newcastle e suas Philosophical Letters; Anne desonra. A perplexidade que tal posição nos levanta
Conway e The Principles of the Most Ancient and Modern num filósofo que declara guerra a todos os “praejudicia”
Philosophy; Catherine Cockburn e A Defense of Mr.Locke's é reforçada quando vemos o modo como justifica tal
Essay of Human Understanding; a princesa Elisabeth da rejeição, pois, para ele, não é pelo costume (“ex instituto”)
Boêmia e a correspondência que manteve com Descartes; que se nega tal direito, mas sim “ex natura”2. Os
Lady Masham e as cartas que escreveu a Leibniz; Mary homens não apreciam as mulheres pela inteligência
Astell e A Serious Proposal to the Ladies; etc. ou pela virtude, mas pela beleza. Tirante as ilações
A primeira questão que logo surge prende- éticas e políticas dessa tese, somos obrigados a
se àsrazões que levaram à pouca ou nula divulgação concluir com o filósofo que, na medida em que
de tais textos. Em alguns casos, como o de Catherine desencadeiam paixões, as mulheres são
Cokburn e o de Elisabeth da Boêmia, foram as desestabilizadoras, justificando-se, desse modo, sua
próprias autoras que expressamente negaram sua supressão enquanto membros ativos num processo
publicação. Em outros, como o de Margareth democrático.
Cavendish, a obra foi apenas editada no século XIX. Aparentemente contrária é a posição de
Também Anne Conway, que escreveu na mesma Hobbes. Este sustenta, no Cap. XX do Leviathan, que
época, só em 1982 foi redescoberta e reeditada. E Lady a menoridade das mulheres é algo de
Masham, que publicou anonimamente alguns convencionado; portanto, de artificial. Elas estão
livros, viu-os ser atribuídos a Locke. submetidas aos maridos porque as leis são feitas
As histórias da filosofia são feitas por por homens, nada havendo na natureza destas que
homens. O mundo da filosofia é um mundo de determine tal situação. Assim, advoga que no
filósofos. Se nos lembrarmos de que os pensadores estado de natureza, no qual não há leis
da modernidade encaravam as capacidades matrimoniais, o direito de domínio dos filhos
intelectuais das mulheres com arrogância ou, na pertence à mãe3. No entanto, há inúmeras passagens
melhor das hipóteses, com condescendência, não em que o filósofo inglês demonstra sua displicência
espanta que o preconceito que pretendemos para com o sexo fraco, comparando as mulheres às
derrubar tenha feito carreira com a cumplicidade ou crianças, pela propensão que têm para o choro,
mesmo com a ajuda dos filósofos. O que nos leva ao criticando-as pelas histórias absurdas que contam
segundo ponto: aos filhos quando lhes explicam o seu nascimento e
recomendando que não deverão falar nas
assembleias religiosas4.
A misoginia dos filósofos da modernidade Lembremos também que, na Resposta à pergunta:
que é o Iluminismo?, Kant convida seus
Os filósofos modernos têm em pouca conta as contemporâneos a abandonar a menoridade
mulheres, podendo-se mesmo qualificá-los de
misóginos. E isso tanto no plano prático quanto no intelectual a que uma posição de preguiça e
teórico. Se atendermos a uma lista dos maiores, na comodismo os tinha relegado. Mas enquanto
qual incluímos Descartes, Pascal, Malebranche, admite que haja alguns homens que pensem por si
Hobbes, Spinoza, Leibniz, Locke, Hume e Kant, mesmos, afirma que todas as mulheres são
verificamos, em primeiro lugar, que todos são intelectualmente menores, aceitando de bom grado
solteiros. Depois, vemos que de nenhum deles a orientação alheia:
conhecemos uma relação amorosa estável.
Finalmente, constatamos que o modo como se É porque a imensa maioria dos homens (inclusive
referem às mulheres é depreciativo. O que nos leva todo o belo sexo) considera a passagem à
maioridade difícil e também muito perigosa que
a falar de sua misoginia teórica. E isso acontece os tutores de boa vontade tomaram a seu cargo a
mesmo com aqueles que mais se empenharam na superintendência deles5.
defesa dos direitos civis e políticos. Assim é que
Spinoza, ao analisar a democracia no capítulo final Poder-se-á justificar essa passagem como um

126 127
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

desabafo, uma cedência à linguagem da época, pouco dos designados “Women Studies” e da qual resultam
reveladora do modo profundo de pensar do filósofo alguns trabalhos originais sobre o pensamento do
prussiano. No entanto, se considerarmos outros textos filósofo. Relevamos particularmente o livro de
em que o autor analisa a diferença caracterial entre os Geneviève Lloyd, The Man of Reason, bem como os
sexos, verificamos que neles reitera a mesma opinião. artigos que essa filósofa tem publicado sobre
Veja-se o seguinte extrato das Observações sobre o Descartes. As teses defendidas por Lloyd sustentando
sentimento do Belo e do Sublime: que Descartes é responsável por um estreitamento do
conceito de razão, circunscrevendo-a a uma faculdade
A meditação profunda e a contemplação abstrativa e espartilhando-a num método, levam-na a
prolongada são nobres, mas são difíceis e não acusar o filósofo de ter construído uma razão
convêm a uma pessoa de quem os estímulos predominantemente masculina, intolerante perante
espontâneos não devem mostrar outra coisa que outras instâncias que não ela própria, secundarizando
não uma bela natureza. O estudo laborioso ou a o corpo, a imaginação, a paixão e a sensibilidade8.
especulação penosa, mesmo que uma mulher Embora a polêmica suscitada por Lloyd constitua um
neles se destaque, sufocam os traços que são marco incontornável para uma investigação sobre
próprios do seu sexo; e, não obstante dela façam, Descartes, ela interessa sobretudo a quem se dedique
pela sua singularidade, objeto de uma fria ao estudo das implicações da filosofia cartesiana nos
admiração, ao mesmo tempo enfraquecem os
estímulos por meio dos quais exerce seu grande estereótipos conceituais sobre a mulher moderna. Por
poder sobre o outro sexo. A uma mulher que tenha ora não é esse o tema de que nos propomos tratar.
a cabeça entulhada de grego, como a senhora Também seria possível desenvolver dentro
Dacier, ou que trave disputas profundas sobre desse título o impacto provocado pelo pensamento
mecânica, como a marquesa de Châtelet, só pode cartesiano nas mulheres cultas de seu tempo. Na
mesmo faltar uma barba, pois com esta talvez verdade, a maioria das intelectuais suas coevas
consiga exprimir melhor o ar de profundidade a elegeu o filósofo como ponto de referência. Quer o
que aspira6.
critiquem, como Anne Conway e Margareth
Cavendish9, quer o apreciem, como Elisabeth da
Boêmia e Cristina da Suécia, Descartes é a pedra de
2.Descartes e as mulheres toque das reflexões que empreendem, podendo ser
considerado o grande impulsionador da
Um título desses poderia pressupor participação feminina nas lides filosóficas.
considerações sobre as referências feitas pelo filósofo Qualquer das três linhas de investigação
a algumas figuras femininas com as quais lidou de mencionadas é pertinente. Avançaremos, no
perto, referências essas relatadas pelo seu biógrafo entanto, com uma perspectiva com a qual, como
Baillet. É o caso da jovenzinha estrábica que amou em referimos no início, pretendemos mostrar que
criança e que lhe determinou para o resto da vida uma devemos a certas mulheres uma melhor
atração inexplicável por mulheres vesgas7; ou da filha compreensão do pensamento cartesiano. Justifica-se
Francine, cuja morte prematura o mergulhou num então que num primeiro momento tenhamos presente
estado depressivo; ou da criada com quem viveu o modo como o filósofo encara a condição feminina –
poucos anos e de quem se separou sem escrúpulos o que faremos recorrendo ao material que sob esse
nem mágoa, embora ela fosse mãe de sua filha. É aspecto nos parece mais significativo: as cartas.
verdade que a interferência dessas experiências A análise da correspondência de Descartes nos
emotivas no sistema cartesiano está ainda por ser mostra que, relativamente às mulheres, a posição do
estudada, mas deixemos para outros a exploração filósofo está longe de ser clara. É verdade que ele as
de tais tópicos. considera menos preconceituosas do que os homens10.
Uma outra possível linha investigativa seria Contudo, essa tese convive com outras atitudes que
aprofundar o impacto da filosofia cartesiana no vão da galanteria ao paternalismo, da adulação à
conceito de razão que a modernidade difundiu, condescendência. Assim, é uma superioridade
analisando até que ponto uma filosofia no feminino foi benevolente que leva o filósofo a justificar o uso do
por ela beneficiada ou prejudicada. Trata-se de uma francês em certos textos. O Discurso do Método,
tarefa interessante, que tem sido desenvolvida dentro destacado por sua facilidade, é apresentado como “um

128 129
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

livro em que quis que até as mulheres pudessem pelos calvinistas é um dos motivos que a aproxima de
perceber alguma coisa”11. Há quem veja nesse trecho Descartes, pois lhe agrada sumamente a autonomia da
uma manifestação de abertura ou mesmo uma razão proposta pelo filósofo francês. Os intelectuais de
intenção de acessibilidade filosófica. Contudo, para sua corte parecem-lhe pouco arrojados, pouco
validarmos uma interpretação que encare tal extrato profundos. Ora, é precisamente depois de ouvir
como um indício de democraticidade, teríamos de Freinsheim dissertar sobre o supremo bem, e sentindo-
ignorar expressões tais como “les femmes mêmes” e “entendre se descontente com a ligeireza de sua abordagem, que
quelque chose”. A mesma demarcação sexista é ela manifesta o desejo de convencer o filósofo francês a
corroborada numa carta a Chanut, na qual Descartes vir pessoalmente à Suécia, para a instruir e aconselhar.
sugere à rainha Cristina a leitura prioritária dos Mas Cristina está dividida entre as obrigações políticas,
Principia, em detrimento das Meditações. Estas, os interesses filológicos e o combate ao calvinismo. A
decididamente, não seriam um livro para mulheres12. relação entre os dois é por vezes conflituosa. A rainha
nem sempre se subordina aos conselhos do filósofo,
debruçando-se sobre o estudo das línguas antigas, por
Descartes, Sofia e Cristina este consideradas absolutamente inúteis. Descartes, que
debalde tenta orientá-la, desespera-se com a volatilidade
Consideremos, em primeiro lugar, as cartas à com que depara. Daí uma certa decepção que demonstra
princesa Sofia. Destituídas de interesse filosófico, elas nas suas últimas cartas. A Elisabeth queixa-se do
importam por revelar como um filósofo entusiasmo excessivo da rainha pelo estudo do grego e
habitualmente comedido pactua com os mais do ardor com que ela coleciona livros antigos16. A Bréguy
exagerados galanteadores do seu tempo. Assim, reitera tais queixas, admitindo que a pouca atividade
escreve Descartes a Sofia, em dezembro de 1646: “Os filosófica em sua estada em Estocolmo se deve ao clima
Anjos não deixariam mais admiração e respeito no nórdico, “em que os pensamentos dos homens gelam, tal
espírito daqueles a quem se dignam aparecer do que como as águas”17.
deixou no meu [espírito] a vossa carta...”. A metáfora Na verdade, o encontro de Descartes e
angélica prossegue quando o filósofo exalta a beleza Cristina ficou aquém das expectativas de ambos.
física da princesa, comparando seu rosto ao dos anjos Contudo, mais do que acentuar incompatibilidades,
e exortando os pintores a que nele se inspirem. Só que, interessa-nos salientar as implicações filosóficas
para além dessas graças físicas, Descartes elogia “as
graças do espírito” da princesa, delas dizendo que “são dessa relação. O que é visível na troca epistolar que a
tais que os filósofos têm por obrigação admirá-las [ont preparou – inúmeras cartas a Chanut e duas missivas
sujet de les admirer] e considerá-las semelhantes a esses diretamente endereçadas à rainha: a 20 de
gênios divinos que apenas são levados a fazer o bem novembro de 1647 e a 26 de fevereiro de 1649.
e que não desdenham obsequiar os que lhes são Vejamos a primeira. Nela Descartes propõe-se falar
devotos”13. do soberano bem. Situando-se num registro laico,
As outras duas cartas que conhecemos a essa especificamente humano, o filósofo constrói sua tese
princesa (datadas de setembro de 1646 e
outubro/novembro do mesmo ano) confirmam a de uma “beata vita”, centrada num bem suscetível de ser
vertente encomiástica, retomando-se na última a adquirido por todos os homens, ou melhor, por cada
comparação de Sofia aos anjos e de Elisabeth à homem. A realização total é identificada com “uma
soberana divindade14. vontade firme de bem fazer e no contentamento que
Mais relevante em matéria de conteúdo é a ela produz”18. À primeira vista, parece tratar-se de
correspondência mantida com Cristina da Suécia. uma tese pacífica. Contudo, se nos lembrarmos do
Descartes refere-se à soberana em termos elogiosos, dela pendor fortemente racionalista do cartesianismo,
dizendo a Brasset que “tem mais saber, mais inteligência
e mais razão do que todos os doutos dos claustros e dos vemos que há nela algo de insólito. De fato,
colégios”15. Mas não se pense que a devoção à rainha é contrariamente ao que é mais comum no filósofo,
cega e isenta de críticas. Os interesses de Cristina são não se trata de destacar a dimensão intelectual, mas
eminentemente práticos. Preocupam-na problemas de sim a vertente ativa e intervencionista, bem como a
cunho religioso e moral. A forte antipatia que sente afetividade que dela decorre. A vontade livre é

130 131
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

enaltecida como um bem maior, decisivo para a total a tomar partido.


realização do homem. É uma tese argumentada com Sintomaticamente, foram duas mulheres que
as seguintes razões: os bens do corpo e da fortuna o levaram a explicar-se num domínio em que,
segundo as próprias palavras do filósofo, era
escapam-nos e não podemos controlá-los. Também habitualmente reservado. De fato, as solicitações de
o conhecimento as mais das vezes ultrapassa nossas Cristina (tal como as de Elisabeth) levam o filósofo a
forças, colocando-se como uma exigência excessiva pronunciar-se sobre pontos que talvez não tivesse
para a maioria dos homens. Dentre os bens da alma, desenvolvido, caso não tivesse sido instado. Pontos
só podemos responder absolutamente pela nossa mais obscuros, ou mais controversos, ou mais
vontade. O que leva à seguinte conclusão: é a problemáticos. Pontos que nem sempre se encaixam
vontade que comanda a atividade intelectual. E é pacificamente em suas teses mais divulgadas, mas
que constituem acréscimos determinantes para a
também ela que determina a virtude e que construção de seu pensamento. Daí dizermos que a
estabelece o mérito e o louvor. A tese que provocação feminina foi essencial para o
ironicamente Descartes defendera no Cap. I do completamento do sistema cartesiano. Sem ela,
Discurso do Método, a de uma razão acessível a todos e ficaríamos circunscritos a um Descartes
realmente partilhada por todos, visto ninguém se espartilhado em ideias claras e distintas. Com ela
queixar de sua falta, pode ser agora transferida com verificamos que o filósofo questiona suas próprias
seriedade para a maioria dos homens. O soberano teses e que, também para ele, elas são por vezes
problemáticas. E isso é por demais visível na
bem é algo que todos, sem exceção, podem alcançar, relação epistolar com Elisabeth, da qual
pois está diretamente subordinado a uma vontade enfocaremos alguns pontos.
firme. A virtude define-se como “a resolução e o
vigor com que nos propomos fazer as coisas que
acreditamos serem boas”19. Um bem avalia-se pelo 3.Descartes, as mulheres e a filosofia
modo como se relaciona conosco, e não em si
mesmo. Porque não nos é dito que as coisas são boas, A relação privilegiada com a princesa Elisabeth da Boêmia
mas que, por acreditarmos que o são, devemos agir
de acordo com nossas crenças. E é essa coerência As vinte e seis cartas que Elisabeth escreve a
entre a crença e a ação dela decorrente que permite Descartes englobam temas tão díspares quanto a
valorizar positivamente uma conduta. É o livre- geometria, a metafísica, a medicina, a física, a
arbítrio que confere a tonalidade moral aos nossos psicologia, etc. Atravessa-as, no entanto, uma
temática recorrente: a preocupação manifestada
atos. E assim a vontade firme impõe-se como pela princesa sobre suas doenças e seu estado de
princípio moral, igualando-se ao “cogito” como saúde. O que talvez tenha começado como uma
critério de humanidade. É verdade que o homem se mera troca de queixas e conselhos transforma-se
define como ser pensante. Mas é uma modalidade num verdadeiro tratado de psicossomática que, em
desse pensamento, a vontade, que abre a todos a última instância, leva o filósofo a repensar o dualismo
possibilidade de ser felizes. estrito que professara. Elisabeth recusa-se a seguir as
Num pensamento em que a razão prescrições de seu médico antes de o filósofo se
recorrentemente desempenha um papel pronunciar. Admite que o espírito tem parte ativa nas
privilegiado, seria lógico que a investigação desordens corporais e recorre a seus estados de alma
intelectual se apresentasse como o supremo bem. A para justificar certos padecimentos: “Sabei que tenho
carta a Cristina, ao valorizar a vontade, dá à moral o corpo imbuído de grande parte das fraquezas do
um lugar determinante no sistema20. À rainha meu sexo, que se ressente muito facilmente das
Cristina interessou sobremaneira a vertente ética de afecções da alma e não tem força para se recompor
um filósofo que ela encara eminentemente como um com elas”22. Descartes corrobora essas teses,
“sage”. Interpelado de um modo frontal sobre empenhando-se em estabelecer relações entre os
temáticas éticas que gostaria de manter ocultas21, o pensamentos, o caráter e a saúde. Apela para os
filósofo é obrigado a comprometer-se, a revelar-se, pensamentos positivos e aconselha-a a cultivar a

132 133
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

felicidade, o riso e as imaginações agradáveis, que Descartes de se despojar das paixões, de modo a poder
constituirão verdadeira cura para os males do corpo. ter uma perspectiva correta dos acontecimentos,
A saúde e a alegria são para ele dois bens essenciais, e responde que tal prática lhe é impossível. Acusa o
compraz-se com Elisabeth quando ela os detém. corpo de se ressentir com tudo o que de desagradável
Apresenta uma terapia inovadora, que trata o corpo a lhe acontece, ficando doente como reação às
partir de exercícios da mente. Cito, a título de contrariedades. Admite mesmo que sua condição
exemplo, a carta de 18 de maio 1645. Nela o filósofo feminina a impede de experimentar certos aspectos
explica a febre pelas muitas vicissitudes positivos, atraindo-a para a melancolia: “A maldição
desagradáveis que sua correspondente tem de meu sexo impede-me o contentamento que me
suportado. E desenvolve uma hipótese segundo a qual provocaria uma viagem a Egmond”27. E exorta o
“a causa mais comum da febre lenta é a tristeza”23, filósofo a aprofundar com mais seriedade as relações
exortando Elisabeth a cultivar pensamentos positivos. corpo/mente.
Na carta de outubro/novembro de 1646, o
filósofo chega a ponto de dizer que há uma espécie de
força secreta na alegria interior que atrai os “Une personne stupide comme moi”
acontecimentos fastos. Admite que não pode partilhar
essa tese com a generalidade das pessoas, sob pena de Se os males de Elisabeth são dissecados ao
ser acusado de superstição. Mas, observando que sua longo da correspondência, paralelamente a essa
interlocutora é uma pessoa culta, permite-se análise terapêutica surgem questões de outra ordem,
exemplificar tal crença recorrendo a experiências sobretudo no que respeita à metafísica, à antropologia
pessoais e à autoridade de Sócrates. Assim, refere as e à moral cartesianas. Assim, no tocante a Deus, as
vezes em que ganhou ao jogo quando estava numa dúvidas que a princesa formula demarcam-na da
disposição feliz. E explica o “daimon” socrático clássica perspectiva dos teólogos de seu tempo,
identificando-o com um secreto sentimento de alegria tornando-a mais próxima de nossas próprias
que levava o filósofo grego a optar por determinadas interrogações28. Ciente do caráter arrojado de tais
atitudes24. dúvidas, recomenda a Descartes que seja discreto e
Para Descartes, a demarcação entre as mentes não tome por heresia aquilo que apenas pretende ser
fortes e as vulgares25 está na capacidade que as uma busca de esclarecimento. A princesa admite ser
primeiras têm de dominar as paixões – portanto, o culpa sua – “une personne stupide comme moy”29 – o fato de não
corpo –, de modo a não se deixarem afetar por elas (por ter percebido as provas da existência de Deus
apresentadas por Descartes. Também pergunta ao
ele). Aceitando a dificuldade dessa prática, o filósofo filósofo que razões justificariam a encarnação num
desenvolve uma teoria curiosa, na qual defende as determinado planeta, quando há uma infinidade de
propriedades terapêuticas do psicodrama. As almas outros em que ela seria possível. Por fim, põe em
fortes poderão ultrapassar as vicissitudes da fortuna a causa a conciliação da onipotência e bondade divinas
que são sujeitas, considerando-as como se estivessem com a liberdade humana.
a atuar num teatro. Os fatos desagradáveis serão É em especial sobre esse último ponto que nos
vividos como se fossem ficções. Devemos ter perante interessa a resposta de Descartes. Instado a
eles o distanciamento de quem representa num palco. pronunciar-se sobre o tema, ele opta por uma
E de tal modo essa encenação resulta que a própria posição dúplice. Na carta de 3 de novembro de 1645,
sustenta que para resolver a dificuldade há de
dor que suportamos pode ser agradável, tornando- recorrer a duas perspectivas: uma vivencial, pela
se ocasião de mostrar nossa capacidade de a qual detectamos que somos livres; outra intelectual,
suportarmos26. dizendo-se nesse registro que Deus, devido à sua
Embora reconheça que as missivas de onipotência, tem de ser responsável pelas ações
Descartes são sempre um antídoto para sua humanas. A solução está em reconhecer a
melancolia, Elisabeth não se mostra muito convencida dualidade de planos e distingui-los com clareza.
com tais conselhos. Na carta de 22 de junho de 1645, Estamos lidando com problemas diferentes,
confessa ser-lhe difícil separar relativos respectivamente ao homem e a Deus. Há
sensação/imaginação/representação. À sugestão de de se considerá-los em separado, respeitando como

134 135
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

diferentes as perspectivas em que se colocam30. debruçado mais sobre o primeiro ponto,


Obviamente, essa explicação não contenta a esquecendo o último. Em segundo lugar, considera
princesa, que retoma suas dúvidas, forçando o que as poucas noções primitivas que possuímos se
filósofo a explicar-se. Na carta de janeiro de 1646, o reduzem essencialmente aos conceitos de extensão,
problema do livre-arbítrio é revisitado nas suas pensamento e união da alma e do corpo. A extensão
duas modalidades aparentemente incompatíveis de nos permite pensar os corpos. O pensamento nos
liberdade do homem e de sua dependência frente a orienta para tudo o que concerne às almas, e a união
Deus. Tentando responder-lhes, Descartes reitera a diz respeito às relações entre corpo e alma, na qual se
dupla solução anteriormente proposta. Atribui a inscrevem os atos voluntários. Cada uma dessas
Deus dois tipos de vontade: uma absoluta e outra noções circunscreve um território dentro do qual
relativa31. Pela vontade absoluta, Deus determina o atua sem problemas. Cada uma tem, portanto, seus
curso dos acontecimentos; pela vontade relativa, próprios limites, não devendo ultrapassá-los, sob
deixa aos homens a capacidade de decisão quanto a pena de engano. Assim, a extensão não se aplica ao
seus atos. Tal como um rei que proibiu os duelos pensamento, nem a mente sozinha resolve o
pode proporcionar ocasião para que seus súditos se problema da união, nem da noção de uma alma
envolvam em situações deste tipo, mas que de modo unida ao corpo podemos fazer ilações para o que é
algum interfere diretamente nas opções de cada do exclusivo domínio do corpo. É abusivo, pois,
um, também Deus dispõe os acontecimentos de pretender explicar a ação da mente sobre o corpo
modo a provocar as reações humanas. E é em face como se se tratasse da força de um corpo qualquer
desse cruzamento de ocorrências predeterminadas sobre outro. Igualmente incorreto é projetarmos
que os homens são levados a escolher, escolha essa para os corpos o esquema que rege as mentes,
previamente conhecida por Deus, devido à sua pressupondo que os corpos tendem para o centro da
multisciência, mas na qual não interfere terra, ou que são atraídos para um determinado
diretamente. fim, ou quaisquer outras explicações do mesmo teor.
Essas e outras dúvidas do mesmo teor O objetivo de Descartes é criticar a causalidade
levantadas por Elisabeth levaram a um alargamento aristotélica, bem como sua teoria dos lugares
no conceito de Deus cartesiano. A princípio naturais, enveredando pela valorização da causa
entendido com um estatuto epistemológico, o eficiente que seu mecanicismo irá relevar. Só que
conceito de Deus vai progressivamente ganhando Elisabeth não fica convencida e retoma as dúvidas.
características que o tornam mais pessoal, mais Na carta de 10 de junho, admitindo que é por
próximo do homem e mais preocupado com seus estupidez (é exatamente esse termo que a princesa
atos. utiliza) que não percebeu a explicação33, Elisabeth
Também no tocante à antropologia,
nomeadamente às relações alma/corpo, as missivas confessa que lhe é mais fácil aceitar uma alma
trocadas entre maio e julho de 1643 são esclarecedoras. material e extensa do que perceber como é que um ser
A 6 de maio Elisabeth equaciona os dados do imaterial consegue mover um corpo. A firmeza de
problema: “como é que a alma do homem (sendo Elisabeth e sua honestidade intelectual levaram à
apenas uma substância pensante) pode determinar os resposta decisiva do filósofo, emitida a 28 de junho
espíritos do corpo a realizar ações voluntárias?”32. do mesmo ano. E digo decisiva porque ela surge
Dado que o movimento se explica por causas e que a como complemento da temática desenvolvida na VI
ação causal exige contato e extensão, a princesa pede
ao filósofo uma definição de alma compatível com Meditação, ao mesmo tempo em que antecipa teses
essas exigências. Só assim seria possível à alma mover que mais tarde defenderá nas Paixões da alma.
o corpo. Vejamos um pouco mais detalhadamente as
O pedido de Elisabeth tem como resposta a razões do filósofo. Na sequência da clarificação que
carta de 21 de maio de 1643, na qual se explicam empreendera na carta anterior, Descartes retoma as
alguns tópicos. Em primeiro lugar, o filósofo três noções básicas que referira – alma, extensão e
considera como pertencendo à natureza da alma união de ambas –, determinando agora a faculdade
não só o pensamento, mas também o fato de ela estar que melhor convém a cada uma delas. A alma e tudo
unida ao corpo, podendo agir e padecer com ele. o que lhe diz respeito alcança-se pelo entendimento.
Admite, no entanto, que sua filosofia tem-se Pelo recurso ao entendimento e à imaginação,

136 137
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

estudamos o corpo e os corpos. A união da alma e faculdade cognitiva. A sensibilidade nos permite
do corpo é do domínio dos sentidos. Assim, a apreender claramente situações que oentendimento
metafísica deverá ser cultivada com o recurso é incapaz de alcançar. As vivências nos conduzem a
exclusivo ao entendimento puro, cabendo nela o uma realidade a que nunca a metafísica nem a
estudo da alma. As matemáticas resolvem-se com a matemática permitiriam aceder. Assim, instado
ajuda da imaginação, pois é simultaneamente pelas dúvidas da princesa, Descartes se vê obrigado
imaginando e inteligindo que podemos adquirir um a reconhecer explicitamente as insuficiências de sua
conhecimento válido sobre figuras, movimentos e metafisica e de um pensamento puramente
corpos. Mas, se queremos perceber a união da alma racional. De igual modo, reconhece a necessidade de
e do corpo, temos de nos abstrair de todo o elemento recorrermos ao senso comum para recuperarmos
intelectual. Este nos faz ver a distinção e não a união. nosso corpo, concluindo que o pensamento
A união vive-se. Daí concluir Descartes que é pela filosófico, quando excessivamente cultivado, pode
v i d a e p e l a s c o n v e r s a s c o m u n s ( “l a v i e & l e s constituir obstáculo ao conhecimento de certas
conversations ordinaires”) que algumas vezes podemos zonas do real. Foi Elisabeth que nos permitiu uma
alcançar a união. Concluindo com esta tese visão mais nuanceada do dualismo cartesiano,
extraordinária: “temos de nos abster de meditar e de levando-nos a concluir que é possível defendê-lo se
estudar (...) para aprendermos a conceber a união nos colocarmos num plano metafísico, a que
da alma e do corpo”34. chegamos pela razão e que, como tal, devemos
É natural que a princesa tenha ficado assumir como verdade. Contudo, se nos ativermos à
surpreendida. O próprio Descartes reconhece a experiência quotidiana que nos permite uma
estranheza de suas asserções, dizendo: “T enho adaptação eficaz à realidade em que nos situamos,
quase medo de que V. Alteza pense que não estou torna-se inevitável uma perspectiva de união e
falando a sério”35. Mas a carta prossegue nessa interação. O monismo antropológico, embora não
linha, aconselhando Elisabeth a estudar menos e a ultrapasse o estatuto da crença, é algo que
viver mais. Como interpretar esse conselho constatamos, que vivemos, e cuja
indispensabilidade se manifesta se, como é
insólito? desejável, pretendemos estabelecer relações com o
Uma primeira solução seria admitir que mundo. A insistência da princesa em perceber o
Descartes considerava a princesa incapaz de mecanismo da vontade nos faz compreender
trabalhar com profundidade temáticas metafísicas, melhor a diferença da posição cartesiana
sugerindo-lhe delicadamente que se dedicasse a relativamente a outras posições coevas,
entretenimentos mais próprios do seu sexo e da sua nomeadamente ao papel do “conatus” defendido por
condição. É uma solução que contraria toda a Hobbes e Spinoza. Ora, para Descartes os
atuação do filósofo que sempre elogiara as comportamentos voluntários não podem explicar-
capacidades de Elisabeth, nunca se furtando a se mecanicamente. Há neles uma especificidade que
explicar-lhe os meandros mais complexos de sua implica a participação simultânea da mente e do
filosofia. Uma segunda hipótese seria que, com essa corpo.
resposta, Descartes estaria corroborando a
inevitabilidade de uma antropologia dualista,
mostrando que, ao colocarmos a tônica na união da A causadora das paixões
alma e do corpo, estamos sujeitos a consequências
absurdas. O interacionismo seria algo de Também no que respeita à moral, a
inconsistente e com peso mínimo dentro do correspondência com Elisabeth obriga Descartes a
cartesianismo. Trata-se de uma hipótese absurda, aprofundar e enriquecer seu pensamento, levando-
pois não tem sentido que o próprio filósofo levante o a abordar temáticas que sucessivamente adiara por
problemas aos quais não consegue responder. A sua extrema dificuldade. Na carta de 3 de novembro
interpretação mais consistente será pensar que com de 1645, promete dedicar-se de modo mais
essa carta Descartes pretende valorizar a sistemático ao estudo das paixões. Na de maio de
sensibilidade, depurando-a e dando-lhe finalmente 1646, já depois de ter apresentado à princesa um
espaço dentro de sua filosofia. Na verdade, trata-se esboço de As Paixões da Alma, admite que nunca tinha
de uma recuperação da sensibilidade enquanto estudado anteriormente tal tema. Na verdade, os

138 139
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

pontos essenciais da ética cartesiana abordados no particular. É na relação com o mundo e com os
tratado são ensaiados nas cartas. Além de alguns outros que as paixões se manifestam.
aspectos já por nós referidos, como é o caso do As paixões constituem a chave da moral
distanciamento crítico dos eventos ou da cartesiana, na medida em que a ação moral passa
necessidade de cultivar sentimentos positivos, pelo controle e transformação da paixão38. É o
realçamos três constantes que se destacam na moral estudo das paixões que leva à substituição de um
cartesiana e que se desenham ao longo das cartas. ponto de vista descritivo, psicológico, por uma
Uma de caráter biológico, que coloca a saúde como perspectiva normativa, moral.
um bem maior e procura agir de acordo com o bem- A virtualidade moral da paixão é pressentida
estar do corpo. Outra, de base hedonista, pela qual a por Elisabeth. Ela intui que as paixões “não são meras
felicidade, ou melhor, a beatitude, coincide com o perturbações da alma”. Compreende que possuem uma
supremo bem. E finalmente, uma tônica força que pode ser canalizada para a obtenção de uma
voluntarista que releva a vontade, considerando-a a ação racional e livre39. É por isso que a princesa interroga
faculdade moral por excelência e atribuindo-lhe a Descartes sobre a força passional, sobre sua utilidade e
responsabilidade maior na gestão das paixões. sobre sua possível aliança com a razão. Interrogações
Na impossibilidade de considerarmos toda a que levam Descartes a definir-se na carta de 6 de
correspondência em que a temática moral é outubro, avançando nela com as traves mestras que lhe
trabalhada, selecionamos quatro cartas – emitidas de permitirão construir uma teoria ética.
agosto a outubro de 1645 –, por nos parecer que nelas A carta aborda uma variedade de temas,
respondendo às dúvidas anteriormente levantadas.
se encontram os instrumentos conceituais Interessa-nos sobretudo o modo como apresenta a
determinantes da moral cartesiana, ou seja, a paixão, paixão, na medida em que o que aqui se sustenta
a vontade, o entendimento e o modo como tais antecipa as teses ulteriormente desenvolvidas. Diz-
elementos se conjugam de modo a alcançar a nos Descartes que a paixão pode ser considerada
beatitude. quer num sentido lato, quer num sentido estrito. No
Instado pela princesa a revelar seu primeiro caso, inclui todos os pensamentos
pensamento próprio, o filósofo abandona a excitados na alma sem o concurso da vontade40.
perspectiva estoica em que se escudara36. De fato, Assim, tudo o que se passa em mim e do qual a
Descartes sugerira a Elisabeth a leitura de Sêneca, minha vontade não é responsável pode ser
mas a princesa desinteressa-se dos textos antigos e considerado paixão. Estão, nesse caso, as percepções
quer saber o que Descartes realmente pensa. O que provocadas pelos objetos exteriores, ou pelas
ele faz sem rodeios na carta de 15 de setembro de disposições internas do nosso corpo, ou pelas
164537. Nela procede a um inventário dos conceitos marcas/imagens gravadas no cérebro que atuam
que permitem ao homem fortificar o entendimento quando sonhamos e divagamos. No sentido estrito,
e agir corretamente. E os conceitos que releva são os a paixão reveste-se de um tônus emotivo,
mesmos que colocara como base de sua metafísica. identificando-se com o que habitualmente
Deus, alma e mundo são assim revisitados e designamos por sentimento, emoção ou afeto. Em
recuperados para o plano ético, revestindo-se de um ambos os casos, a paixão é um processo que ocorre
dinamismo que os leva a concretizar-se em atos. Da na alma, em função de uma ação do corpo. Interessa
perfeição divina é extraída uma consequência também relevar que, em qualquer dos sentidos, a
prática: tudo o que nos acontece decorre dos paixão é desprovida de negatividade. As paixões
desígnios de Deus e tem por objetivo louvá-lo. não são boas nem más; ocorrem inevitavelmente
Como tal, o próprio sofrimento pode ser numa alma que habita um corpo. Há que delas tirar
gratificante. No que respeita à alma, verificamos que, todo o proveito possível. A carta aponta para o
por ser ela “muito mais nobre que o corpo”, não se cultivo das paixões alegres, dado que a alegria,
realiza totalmente nesta vida. O que nos leva a viver quando devidamente esclarecida, beneficia o corpo.
de um modo distanciado as vicissitudes do Reconhece-se, portanto, explicitamente, o caráter
quotidiano e a concluir que não devemos temer a catártico de certas paixões. Donde a necessidade de
morte. Do mundo devemos saber que é vasto e bom conhecermos seu mecanismo para as controlarmos
e que dele somos parte. É essa consciência que nos e delas tirarmos dividendos. Está traçado o
obriga a salvaguardar o interesse geral sobre o caminho para uma verdadeira pedagogia das

140 141
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

paixões, que se concretizará posteriormente no do modo peculiar como ela se afirma, numa troca de
tratado. Assim, o trajeto moral que se iniciara no ideias veiculada pelo diálogo. Este processa-se num
Cap. III do Discurso do Método é reorientado e registro intimista, envolvido em problemas banais do
concretizado devido às perguntas da princesa, quotidiano mas nunca se reduzindo a eles. São as
podendo-se atribuir à sua insistência o ter vivências comuns de uma mulher que servem de
transformado algo que se definia pela pedra de toque a um pensamento já elaborado e
provisoriedade e que dizia respeito a um eu maduro como é o de Descartes. E, curiosamente, são
puramente intelectual numa conquista progressiva os problemas ligados ao seu corpo que ocupam um
de autonomia, empreendida por um sujeito que se lugar central, pois é a partir deles que se analisam
define simultaneamente como mente e como corpo. certos estados de alma. É ela que restitui ao homem
cartesiano sua dimensão natural. Foram suas objeções
# e dúvidas que nos permitiram compreender e
reavaliar uma das teses fundamentais do filósofo, a
Para além das vertentes terapêutica, qual, de certo modo, constitui um dos pontos
antropológica e moral, a correspondência com convergentes do percurso das Meditações: o
Elisabeth nos interessa genericamente, na medida reconhecimento de que “não estou apenas alojado em
em que Descartes se vê obrigado a explicar-se, a meu corpo como o marinheiro no navio, mas muito
justificar-se, a ampliar suas teses e muitas vezes estreitamente ligado a ele e tão misturado que
mesmo a retificá-las. A princesa da Boêmia toca nos componho com ele como que uma unidade”43. Com os
pontos essenciais do cartesianismo e o abala nos pedidos de esclarecimento de Elisabeth, o
seus fundamentos, pois não se contenta com o que o cartesianismo reconquista o corpo, estabelecendo-se
filósofo considera já demonstrado. Podemos dizer definitivamente uma ponte entre o homem que pensa,
que ela provoca no filósofo uma atitude zetética, de o homem que padece e o homem que age.
perturbação constante e de permanente revisão de
posicionamentos. Nas trinta e duas cartas que
obteve como resposta, verificamos que o Notas
pensamento cartesiano perde alguma rigidez,
tornando-se mais matizado, menos dogmático. Ora, Fo u ch er de C areil, D escartes et la P rincesse P alatine, ou de
como em cada carta se combate uma tese (ou pelo l'influence du cartésianisme sur les femmes au XVII siècle, Paris,
Auguste Durand, 1862; Charles Adam, Descartes. Ses Amitiés
menos se levantam objeções), o que no texto do Féminines, Paris, Boivin & Cie, 1937; Ernst Cassirer, Descartes,
filósofo se afigurava adquirido, transforma-se em Corneille, Christine de Suède, trad. Madeleine Francès e Paul
algo de questionável e de aberto. Desse modo, Screcker, Paris, Vrin, 1942.
podemos afirmar que Elisabeth transforma os Spinoza, Tractatus Politicus, Cap. 11, § 4 in Spinoza Opera,
problemas em questões. É ela que leva o filósofo a ed. Carl Gebhardt, (G) Heidelberg, 1972, vol. III, pp. 359.
Examinaremos o posicionamento de Spinoza no capítulo
confessar as insuficiências de seu sistema e as seguinte, “Spinoza, Hobbes e a condição feminina”.
limitações de sua metafísica. É ela que determina o
que é compreensível, o que deverá ser ulteriormente Leviathan , Cap. XX in The English Works of Thomas Hobbes of
Malmsbury, collected by William Molesworth, London, John
desenvolvido e, mesmo, o que deverá ser Bohn, 1839-45, rep. Aalen, 1962 (EW), III, 1, p. 187.
abandonado. É a ela que Descartes confidencia algo Elements of Law , Cap. 9, §14, EW IV , p. 47; Leviathan V , EW III, 1,
que nos deixa atônitos: que passeia muito, que p. 36; Leviathan XXXVI, E.W. III, 1, p. 413.
reserva algumas horas por dia à matemática e “Das der bei weitem groesste Teil der Menschen (darunter das ganze
apenas algumas por ano à filosofia41. schoene Geschlecht) den Schritt zur Muendigkeit, ausser dem dass er
Esse diálogo epistolar que se processou ao beschwerlich ist, auch fuer sehr gefaehrlich halte: dafuer sorgen schon jene
Vormuender, die die Oberaufsicht ueber sie guetigst auf sich genommen
longo de anos mostra-nos como a contribuição de haben.” Kant, “Beantwortung der Frage: Was ist Aufklaerung?”
Elisabeth pesou no pensamento de Descartes. No in Immanuel Kant. Werke in zehn Baenden , hersg. von Wilhelm
dizer do filósofo, as observações da princesa são Weischedel, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft,
1981, B 9, p. 53. (sublinhados nossos).
engenhosas, judiciosas e sólidas42, nelas encontrando “Tiefes Nachsinenn und eine lange fortgesetzte Betrachtung sind edel aber
estímulos para repensar certas teses e aprofundar schwer, und schicken sich nicht wohl fuer eine Person, bei der die
certos problemas. Para nós, essa relação é sintomática ungezwungene Reize nichts anders als eine schoene Natur zeigen sollen.
da presença feminina na filosofia da modernidade e Muehsames Lernen oder peinliches Gruebeln, wenn es gleich ein

142 143
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Frauenzimmer darin hoch bringen sollte, vertilgen die Vorzuege, die ihrem 20 de novembro de 1647, A. T. V, p. 89).
Geschlechte eigentuemlich sind, und koennen dieselbe wohl um der “Sachez donc que i’ay le corps imbu d’une grande partie des foiblesses de
Seltenheit willen zum Gegenstande einer kalten Bewunderung machen, mon sexe, q’uil se ressent tres facilement des afflictions de l’ame et n’a point
aber sie werden zugleich die Reize schwaechen, wodurch sie ihre grosse la force de se remettre auec elle...” Carta de Elisabeth a Descartes,
Gewalt ueber das andere Geschlecht ausueben. Ein Frauenzimmer, das 24 de maio de 1645, A. T. IV, p. 208.
den Kopf voll Griechisch hat, wie die Frau Dacier, oder ueber die Mechanik “La cause la plus ordinairede la fiévre lente est la tristesse.”
gruendliche Streitigkeiten fuehrt, wie die Marquisin von Chastelet, mag Carta a Elisabeth, 18 de maio de 1645, A. T. IV, p. 201.
nur immerhin noch einen Bart dazu haben; denn dieser wuerde vielleicht Carta a Elisabeth,novembro de 1646 , A. T. IV, pp. 528-533.
die Miene des Tiefsinns noch kenntlicher ausdruecken , um welchen sie sich “les plus grandes ames & celles qui sont basses & vulgaires...” Carta a
bewerben.” Kant, “Beobachtungen ueber das Gefuehl des Elisabeth, 18 de maio de 1645, A. T. IV, p. 202.
Schoenen und Erhabenen” in Immanuel Kant. Werke in zehn Carta a Elisabeth,maio/junhode 1645 , A. T. IV, p. 218 e
Baenden , B 2, p. 852.
ss.
A. Baillet. La Vie de Monsieur Des-Cartes, Paris, 1691,
“Avec cela la malediction de mon sexe m’empesche le contentement que me
informação corroborada em textos do próprio Descartes donneroit un voyage vers Egmond...” Carta de Elisabeth a
(vide Carta a Chanut, 6 de junho de 1647, A. T. V, p. 57). Descartes, 22 de ju nho de 1645, A. T. IV, p. 234.
Geneviève Lloyd, The Man of Reason. Male & Female in Western Ver por exemplo,a carta de Elisabetha Descartesde 28 de
Philosophy, London, Routledge, 1984, bem como “Maleness, outubro de 1645, A. T. IV, p. 322 e ss.
Metaphor and the 'Crisis' of Reason” in A Mind of One’s Own.
Feminist Essays on Reason and Objectivity, ed. de Louise M. 29 Ibid. p. 322.
Anthony e Charlotte Witt, Boulder, Westview Press, 1993. Carta a Elisabeth,3 de novembrode 1645 , A. T. IV, p. 330
Também nessa linha de “masculinização” da razão a partir de e ss.
Descartes, citamos o artigo de Susan Bordo “The cartesian
masculinization of thought” in Sex and Scientific Inquiry , ed. de Carta a Elisabeth,janeirode 1646 , A. T. IV, p. 353 e ss.
Sandra Harding e Jean F. O’ Barr, Chicago, University of “... comment l’ame de l’homme peut determiner les esprits du corps, pour
Chicago Press, 1987. De interesse sobre a mesma temática, faire les actions volontaires (n’estant q’une substance pensante).” Carta
com uma visão fortemente crítica quanto a uma razão de Elisabeth a Descartes de 6-16 de maio de 1643, A. T. III,
“sexuada”, ver Margaret Atherten “Cartesian Reason and p. 661.
Gendered Reason” in A Mind of One’s Own..., pp. 19-34. “... qui seruira comme i’espere, d’excuse a ma stupidité, de ne pouuoir
Anne Conway, The Principles of the Most Ancient and Modern comprendre l’idée par laquelle nous deuons iuger comment l’ame (non
Philosophy, London, 1692, reedição Peter Lopston, The estendue et immaterielle) pe ut m o uuo ir le co rps...” C ar t a de
Hague, Martinus Nijhoff, 1982; Margareth Cavendish, E l isab et h a D escart es, 10 de junho de 1643, A. T. III, p. 684.
Philosophical Letters, London, 1664. “... c’est (...) en s’abstenant de mediter & d’etudier aux choses qui exercent
l’imagination, qu’on apprend à conceuoir l’union de l’ame & du corps.”
A. Baillet op. cit. , parte II , 1. VIII , Cap. VI , p. 500. Carta a Elisabeth, 28 de junho de 1643, A. T. III, p. 692.
“un livre où i’ay voulu que les femmes mesmes puissent entendre quelque “I ’ay quasi peur que vostre Altesse ne pense que ie ne parle pas icy
chose.” Carta a Vatier, 22 de fevereiro de 1638, A. T. I, p. 560. serieusement”, ibid.
Carta a Chanut, a 26 de fevereirode 1649 , A. T. V, p. 291. Vide cartas a Elisabeth de 21 de julho e de 4 e 18 de
Carta à princesa Sofia, dezembro de 1646 , A. T., IV, p. agosto de 1645.
592. Carta a Elisabeth 15 de setembro de 1645 , A. T. IV, pp.
Carta à princesaSofia, outubro/novembrode 1646 , A. T. 290-296.
IV, p. 533. Vide, As paixões da alma I, nomeadamente os artigos 79 a
“(…)elle a plus de savoir, plus d’intelligenceet plus de raison 83.
que tous les doctes des cloîtres et des collèges.” Carta a Carta de 3-13 de setembro de 1645 , A. T. IV, pp. 288-290.
Brasset de 23 de Abril 1649.
“En suyte de quoy, on peut generalementnommer passions toutes les pensées
Carta a Elisabethde 9 de Outubro de 1649 , A. T. V, p. 430. qui sont ainsy excitées en l’ame sans le concours de sa volonté...” Carta
Carta a Bréguy, 15 de Janeiro de 1650 , A.T. V, A. T. V, p. a Elisabeth, 6 de outubro de 1645, A. T. IV, p. 310.
467. Carta a Elisabeth,28 de junho de 1643 , A. T. III, pp. 692-
“(...) une ferme volonté de bien faire & au contentement qu’elle produit.” 693.
Carta à rainha Cristina, 20 de novembro de 1647, A. T. V, p. Carta de 21 de maio de 1643 , A. T. III, p. 664.
82. “(...) me non tantùm adesse meo corpori ut nauta adest navigio, sed illi
I b id e m , p. 83. arctissime esse conjuntum & quasi permixtum, adeo ut unum quid cum
As teses morais que apenas afloram nessa carta são illo componam.” Descartes, Meditação VI, A. T. VII, p. 81.
aprofundadas na correspondência paralela com Chanut,
bem como nas cartas a Elisabeth. Descartes propõe-se
enviá-las à rainha da Suécia, como complemento deste
estudo.
Descartes considera a moral um tema perigoso (carta a
Chanut, 20 de novembro 1647) e confessa que é
habitualmente reservado quando se trata de escrever sobre
esse tema : “i’étois fort retenu à écrire de telles matires” (a Elisabeth,

144 145
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

SPINOZA, HOBBES
E A CONDIÇÃO FEMININA
MARIA LUÍSA RIBEIRO FERRERA
(Universidade de Lisboa)

Quanto à política, a diferença entre mim e Hobbes


acerca da qual me interrogas consiste nisto: é que
dou larga cobertura ao direito natural e considero
que, em qualquer cidade, não cabe ao Supremo
Magistrado mais direito sobre os súditos do que a
justa medida do poder, pela qual supera os
súditos; o que tem sempre lugar no estado de
natureza1.
A afinidade entre Spinoza e Hobbes no que
respeita à política tem dado azo a inúmeros
comentários. Instado por Jarig Jelles a demarcar-se
do filósofo inglês, Spinoza reage aproximando-se
dele explicitamente e parecendo mesmo subestimar
as diferenças ao supervalorizar as semelhanças.
Num outro artigo, tentei demonstrar que a sintonia
é mais aparente do que real2. Não há dúvida de que
o autor da fítica admirou Hobbes pela ousadia de
suas propostas, tendo usado o aparato conceitual do
filósofo inglês e trabalhado a partir de seus conceitos
básicos. No entanto, há divergências profundas que
não se podem ignorar3. Com o presente texto,
pretendo dar realce a uma dessas diferenças, a saber:
o modo específico como cada um dos filósofos
encarou a natureza feminina. Não obstante tratar-se
de um tópico menor na economia dos seus sistemas,
é um tópico que os questiona, que põe em causa sua
consistência interna e que, como tal, desestabiliza
algumas certezas que um estudioso da filosofia
moderna poderia considerar adquiridas.
Depois de uma breve apresentação do que
entendo por uma filosofia no feminino, começarei
trabalhando as representações spinoziana e
hobbesiana da mulher. Levantarei, para cada
filósofo, alguns problemas quanto à
compatibilidade entre as concepções que defendem
sobre a natureza feminina e outras temáticas por eles
abordadas e, entre as quais eventualmente pareça
haver colisão. Resolvidas (?) as aparentes

146 147
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

inconsistências e solucionadas algumas função de seus interesses próprios.


dificuldades de percurso, a conclusão evidenciará Sendo objetivo imediato da filosofia
que, embora a condição das mulheres não tenha feminista uma intervenção social reivindicativa e
sido expressamente tematizada na modernidade, por vezes mesmo agressiva, perguntar-se-á se é
muitas foram as contribuições para seu ulterior legítimo entendê-la como uma disciplina filosófica.
aprofundamento, contribuições que podemos Minha resposta a tal interrogação é afirmativa, pois
buscar em filósofos que pouco escreveram sobre o a base que sustenta as teorias feministas é crítica,
assunto, que talvez não se interessassem por ele, mas argumentativa e racionalmente fundamentada. As
cujas abordagens, mesmo que fugazes, deverão ser pretensões defendidas assentam-se (ou deveriam
tomadas em consideração. Quem pretenda ter uma assentar-se) numa reflexão sobre problemas
visão global do pensamento de Hobbes e Spinoza, ou inequivocamente filosóficos, poderíamos mesmo
quem se interesse pela gênese de conceitos dizer problemas clássicos da tradição ocidental,
essenciais de uma filosofia no feminino, como, por como, por exemplo, a questão antropológica do que
exemplo, as noções de igualdade e diferença, é um ser humano, ou as temáticas metafísicas da
público e privado, sexo e gênero, não poderá essência ou natureza, ou da igualdade e da
ignorar o que esses filósofos explícita ou diferença.
implicitamente pensaram sobre a mulher. Uma filosofia no feminino, cruzando-se
muitas vezes com uma filosofia feminista, não tem o
caráter aguerrido desta, não se afirma como
1.A legitimidade de uma leitura feminina dos movimento, não visa imediatamente a uma
filósofos alteração do status quo. É certo que o trabalho que
desenvolve é o material consistente que as
feministas utilizam para dar força a seus
O interesse por uma filosofia no feminino tem argumentos e para racionalizar suas pretensões.
sido crescente. Iniciando-se com o desenvolvimento Contudo, os problemas a que remete e a
dos “Gender Studies” nos anos 1960 e 1970, ela foi muitas metodologia que utiliza são pautados pelo ritmo da
vezes identificada com uma filosofia feminista, com a biblioteca, e não da “ágora”, as águas em que se move
qual inegavelmente partilha alguns pontos. Contudo, privilegiam o ensaio em detrimento da notícia
para evitar ulteriores confusões, parece-me útil proceder jornalística. Sendo seu objetivo dar visibilidade às
a um esclarecimento prévio do modo como entendo mulheres num domínio em que aparentemente
ambos os conceitos. Assim, considero filosofia tiveram um estatuto de sombras, a sua tarefa é
feminista aquela que se debruça essencialmente sobre a eminentemente reconstrutiva, quer desvelando a
temática dos direitos da mulher, tendo como fim último presença oculta (porque indireta) da mulher na
denunciar abusos, identificar preconceitos e anular história da filosofia, quer destacando no território
injustiças. Trata-se de uma designação abrangente, pois filosófico coordenadas femininas que dele
inclui uma multiplicidade de perspectivas diferentes. Na estiveram afastadas, quer mostrando a produção
esteira de Janet Radcliffe Richards4, de las realço duas filosófica das mulheres pela divulgação de textos
vertentes: o feminismo igualitário e o radical. O primeiro que por várias razões se mantiveram
inclui teses que se organizam em torno dos direitos das desconhecidos. Numa palavra: uma filosofia no
mulheres, sustentando que deverão ser iguais aos dos feminino inclui todas as linhas que permitam
homens. Seu objetivo é detectar situações em que a relevar a presença da mulher na filosofia.
mulher é injustiçada ou menosprezada e procurar
corrigi-las. O segundo defende uma alteração do É minha intenção destacar neste artigo uma
status quo, propondo uma maneira especificamente dessas linhas, ou seja, a maneira como alguns
feminina de perspectivar os problemas e de resolvê- filósofos pensaram as mulheres, o que sobre elas
los. Muitos dos valores, conceitos e critérios escreveram e a possibilidade de interpretar esses
dominantes da cultura ocidental são postos em textos de modo a que eventualmente tragam uma
causa devido a seu pendor masculinizante. Há de se nova luz para o pensamento de seus autores. Passada
empreender uma profunda mutação na ciência, na a fase de misoginia, no âmbito da qual se têm feito
moral, na estética e noutros domínios filosóficos alguns estudos interessantes5, ingressa-se atualmente
tradicionalmente construídos por filósofos e em na fase da redescoberta, da reescrita da história da

148 149
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

filosofia perspectivada em função de uma ótica bem mesmo pelo pouco peso que tiveram no
determinada – a do papel das mulheres6. Papel que se pensamento do filósofo em causa. Não creio que
manifesta numa dupla hermenêutica, pois não só alguma mulher as possa ler sem se sentir
interessa perspectivar o tema do ponto de vista do perturbada. Tal fato em nada diminui o apreço pelos
autor dos textos, mas também interpretá-lo a partir de referidos filósofos, mas não é fácil nem pacífico
seu leitor, sobretudo quando este é uma leitora. O conjugar a consideração, o respeito e o amor que
problema é não só perceber o que os filósofos
pensaram das mulheres e porque o fizeram, mas nos habituamos a ter por eles com o modo como
também qual o eco previsível dessas concepções em encararam as mulheres. À busca das razões que
leitoras femininas. Trata-se de uma temática para a levaram alguns pensadores a escrever dessa ou
qual fui alertada por Nancy Tuana, em sua obra daquela maneira sobre a condição feminina junta-
Woman and the History of Philosophy7. Tuana questiona a se agora outro problema: a recepção desses textos
neutralidade sexual dos textos filosóficos, quer por por parte de um público não masculino, problema
parte de quem os produz, quer por parte de quem os que muito concretamente formulo na seguinte
recebe. Para esta filósofa a mulher tem dificuldade em interrogação: como ler certos textos de filosofia do
identificar-se com a maioria dos textos da filosofia ponto de vista de uma mulher?
ocidental, na medida em que neles aparece excluída,
quando não inferiorizada. A proposta de Tuana é de
uma releitura da história da filosofia a partir do lugar
da mulher no interior dos diferentes sistemas. 2.Spinoza e a desigualdade natural das mulheres
Segundo ela, o estatuto atribuído à natureza feminina
não pode ser considerado um pormenor irrelevante No contexto da modernidade, Spinoza impõe-
no pensamento de um filósofo. Há de se verificar a se como homem universal, defensor acérrimo da
consistência interna das várias temáticas abordadas, liberdade de expressão e das instituições
constatando até que ponto as diferentes reflexões se democráticas. Como acontece com a maior parte dos
compatibilizam mutuamente. E o problema da filósofos seus coevos, o tema da mulher não é nele
mulher aparece quase sempre como um espinho, pela relevante, manifestando-se em vagas referências,
reformulação que obriga a fazer no que concerne à todas elas pouco lisongeiras. Assim, na fítica explica a
coerência global do pensamento de certos autores. paixão da inveja pela associação da mulher amada
Independentemente das conclusões aos “pudenda” e “excrementa” de outros homens (fít. IIII,
alcançadas por Tuana sobre seis filósofos, prop. XXXV, schol.); fala com condescendência da
interessou-me o método proposto. Sempre defendi piedade feminina (“mulieribi misericordia”), à qual remete
determinadas superstições (fít. IV, prop. XXXVII);
uma apropriação pessoal dos pensadores de outras refere como dado frequente a inconstância das damas,
épocas, considerando que só uma leitura viva de característica relevada pelos apaixonados quando mal
suas obras lhes será fiel e lhes prestará a recebidos e logo esquecida no caso de reconciliação
homenagem devida. Respeitando-se embora o (fít. V, prop. X, schol.). O Tratado teológico político mantém
contexto, há de se ler um filósofo passado a partir do o mesmo olhar condescendente, assinalando a
presente que é o nosso, das inquietações que nos propensão feminina para o choro – “lachrimis mulieribus”
movem, dos pressupostos que nos en(de)formam, (TTP, Pref.) – bem como o falso dom da profecia que
da situação concreta que vivemos. Ora, a situação algumas dizem possuir (TTP, II). O tom pejorativo é
uma constante, concretizando-se no diminuitivo, por
concreta de uma leitora de filosofia não se identifica vezes usado, de “mulherzinhas” (“mulierculae”)9.
com a de um leitor, o impacto que certos textos Oparágrafofinaldo Tratado político,aopropor-
filosóficos têm numa mulher é inevitavelmente se analisar a eventual participação da mulher num
diferente daquele que têm num homem. Perante o governo democrático, detém-se mais nesse tema. As
mito platônico das almas caídas ou o conceito considerações que o autor nele tece sobre a mulher
aristotélico da fêmea como um macho imperfeito8, são esclarecedoras, revelando a existência de uma
é habitual que um homem reaja brandamente, reflexão sobre o assunto e impedindo que
justificando essas teses como fruto da atribuamos as expressões acima referidas à
mundividência em que surgiram, desculpando-as mentalidade seiscentista ou mesmo que as

150 151
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

entendamos como uma leviandade sem grandes A experiência, seja ela vaga ou “ex auditu”, leva o
consequências. E isso porque, ao analisar o regime filósofo a concluir que a coabitação governamental
democrático,o filósofo defende peremptoriamente a
exclusão da mulher de qualquer cargo governativo, entre homens e mulheres nunca existiu. E mesmo se
sustentando que sua ação é causadora de paixões e, atendemos ao caso das amazonas, a que Hobbes
como tal, disruptiva. Veremos na seção 3 que, parece ter dado credibilidade, verificamos que não
embora não mencione Hobbes, é a posição do filósofo há qualquer parceria, pois, ao matarem os machos,
inglês que está em causa. Limitamo-nos por ora a sempre governaram sozinhas, nunca partilhando o
analisar o texto spinoziano, seguindo-o a par e
passo. E o que nos diz ele? Em primeiro lugar, poder:
constatamos que Spinoza inicia o parágrafo com um Com efeito, em nenhuma parte da terra homens e
problema ainda hoje recorrente nos estudos sobre as mulheres reinaram conjuntamente, mas em toda
mulheres – o da igualdade e da diferença: parte onde se encontram homens e mulheres
vemos que os homens reinam e que as mulheres
Mas talvez alguns perguntem se as mulheres estão são governadas, e que, dessa maneira, os dois
por natureza, ou por instituição, sob a autoridade sexos vivem em boa harmonia; pelo contrário, as
dos homens. Se é por instituição, nenhuma razão amazonas, que, segundo uma tradição, outrora
nos obriga a excluir as mulheres do governo. Se, reinaram, não admitiam que os homens
contudo, apelamos para a experiência, veremos permanecessem em seu território, não
que isso provém de sua fraqueza (...)10. alimentavam senão os indivíduos do sexo
A resposta do filósofo é inequivocamente feminino e matavam os machos que tinham
gerado (...)13.
partidária da diferença, e para dar força à sua tese ele a
fundamenta na natureza(“ex natura”).Nãoéporconvenção A prática política exige determinadas
(“ex instituto”), portanto, que as coisas se passam desse características próprias da virilidade, ligadas à força,
modo; não se trata de um acordo provisório nem de um à afirmação de si ou mesmo à astúcia ou ao engenho.
costume ou de uma moda passageira. O pendor A natureza das mulheres não é propícia ao exercício
nominalista de Spinoza, que desconfia de Platão e de tais funções, essa natureza pela qual se
Aristóteles11, não o impede de nesse ponto aderir a uma distinguem dos homens e que as leva certamente a
perspectiva essencialista: é a essência feminina que outras ocupações que não as da governação:
determina as mulheres a colocar-se “sob a autoridade
dos homens”. A razão que mantém esse estado de coisas Se as mulheres fossem por natureza iguais aos
parece ser uma razão forte, natural. Daí sua homens, se tivessem no mesmo grau a força de
alma e o engenho em que consiste maximamente
inalterabilidade. a potência humana, e, consequentemente, o
Ao reforçar experiencialmente a tese da direito, com certeza, entre tantas nações
submissão, o filósofo recorre à “fraqueza”. O termo diferentes, não poderia deixar de se encontrar
utilizado é “imbecillitas”. Pus de lado a tradução literal, umas em que ambos os sexos reinassem
escolhendo entre as traduções possíveis a que me igualmente e outras em que os homens fossem
pareceu mais consonante com o sentido do texto, ou governados pelas mulheres e recebessem uma
seja, “fraqueza”, não especificando se ela se refere à educação própria para diminuir seu engenho.
mente ou ao corpo12. Se entendemos que se trata de Mas, como isso nunca se viu
fraqueza física, estamos perante uma mera questão em parte alguma, pode-se afirmar, em termos
de fato, algo que se constata e que não podemos gerais, que as mulheres, por natureza, não têm o
deixar de aceitar – é verdade que a mulher, de um mesmo direito que os homens, mas que deverão
modo geral, tem menos força que o homem. Se necessariamente ceder aos homens, e também que
traduzirmos o termo por fraqueza psíquica, é impossível que ambos os sexos reinem
aceitamos o sentido literal de imbecilidade e temos igualmente e, muito menos, que os homens sejam
de admitir uma incontestável má vontade do regidos pelas mulheres (...)14.
filósofo para com as mulheres. Essa, porém, é uma
tese que se afigura incompatível com a defesa da O texto fala da natureza feminina, mas nada
dignidade individual, recorrente em toda a obra do nos diz sobre ela, apenas a contrapondo às
filósofo. Como tal, deixamo-la cair. características masculinas. Quanto a estas o filósofo
é mais explícito, pois refere a sensualidade e o modo

152 153
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

como o desejo interfere numa apreciação objetiva; comparadas às crianças, pois, como estas são
levado pela paixão, o homem não é sensível ao propensas ao choro (A Natureza Humana, Cap. IX, §
engenho da mulher amada nem à sua sapiência, 14);o Capítulo V do Leviatã fala das histórias absurdas
apenas sendo afetado por sua aparência exterior, que as mulheres contam para explicar o nascimento;
por sua beleza. A consequência desse o Cap. XXI da mesma obra considera próprio da
relacionamento de superfície é o envolvimento feminilidade a pouca coragem demonstrada na
passional em certos afetos perturbadores, como a guerra, etc. Contudo, o texto mais significativo está
inveja ou o ciúme. Daí a impossibilidade de se longe de reforçar os preconceitos machistas. Refiro-
considerar válida a hipótese de uma paridade me à tese hobbesiana sobre a regulação do poder
governativa entre mulheres e homens: paternal, apresentada no Cap. XX do Leviatã e
reforçada nos Caps. IX do De Cive e IV do De Corpore
Se, além disso, considerarmos os afetos humanos, Politico.
se reconhecermos que quase sempre o amor dos
homens pelas mulheres não tem outra origem Tomemos como ponto de referência o texto
senão o afeto libidinoso, de tal modo que não do Leviatã. Ao falar do modo como os pais adquirem
estimam nelas o engenho e a prudência, mas as domínio sobre sua descendência – o domínio por
qualidades de beleza que têm, que não admitem geração –, Hobbes surpreende-nos com a seguinte
que as mulheres amadas tenham preferência por
outros que não eles, veremos sem esforço que não tese: os pais não têm direito sobre os filhos pelo fato
se poderia instituir o reinado igual dos homens e de os terem procriado, mas sim porque entre eles,
das mulheres sem grande detrimento para a paz. explícita ou implicitamente, estabeleceu-se um
Mas basta sobre esse assunto.15. contrato:
Um texto desses não oferece dúvidas. Sua Esse direito não deriva da geração, como se o pai
escrita não é (não foi) sexualmente neutra. A leitura tivesse direito sobre seu filho pelo fato de o ter
também não o poderá ser. Com ele verificamos que procriado, mas sim do consentimento do filho,
o filósofo tem ideias seguras sobre sexo e sobre quer expressamente, quer por outros
gênero, considerando o primeiro determinante do argumentos suficientemente explícitos16.
segundo. Para Spinoza, não é por instituição O vínculo de domínio que se institui entre
(convenção) que o estatuto da mulher se define, mas pais e filhos não é dado, mas construído. Sua
sim por natureza. Um autor que pensávamos consolidação passa pelo consentimento, seja ele
conhecer, que profundamente admirávamos por tácito ou expresso, dos subordinados. Estes têm um
seu empenhamento na luta contra o obscurantismo, papel a desempenhar nas relações de poder. Não é
que nos habituáramos a considerar um iconoclasta a natureza, portanto, que leva à supremacia do
dos “praejudicia”, pois esse autor, afinal, no que respeita homem no que se refere ao poder paternal. Se
à condição feminina, aparece como veiculador dos recorrêssemos a esse critério, teríamos fazer jus ao
mais primários preconceitos. Como integrar essa outro elemento responsável pela procriação, ou seja,
posição num sistema que sempre foi caracterizado à mulher, que o filósofo denomina de colaboradora
por seus aspectos inovadores, nomeadamente no ou ajudante:
que concerne ao respeito pelas liberdades
individuais? Como ler esse excerto (e com ele a No que respeita à geração, quis Deus que o
filosofia de Spinoza) na perspectiva de uma mulher? homem tivesse uma colaboradora e há sempre
dois que são igualmente pais17.
O texto do De Cive referente ao poder paternal
3.Hobbes e a desigualdade convencional das mulheres utiliza os mesmos argumentos, dando-se nele
particular destaque à posição da mãe e concedendo-
Também Hobbes comunga da atmosfera se a esta uma primazia exclusiva no poder que
masculinizante própria da modernidade. Assim, é exerce sobre a criança:
natural que, quase inconscientemente, veicule certos Pelo direito de natureza, o domínio sobre uma
estereótipos. É curiosa a semelhança entre os casos criança pertence àquele que primeiro sobre ela
citados por Spinoza e aqueles que o filósofo inglês exerce poder. Ora, é manifesto que o recém-nascido,
refere: Em A Natureza Humana, as mulheres são antes de qualquer outro poder, está sob o da mãe,

154 155
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

de modo que esta, por direito e por sua livre domínios. Resumindo: no que respeita à tese da
vontade, pode educá-lo ou abandoná-lo18. supremacia masculina, verificamos que Hobbes
“Partus ventrem sequitur” aparece como a norma contraria a ideologia coeva. Enquanto seus
reguladora que se impõe tanto aos animais como aos contemporâneos se escudam em razões religiosas
homens (ibidem, § 3). para secundarizar a condição feminina23, ele avança
com um modelo explicativo, com uma hipótese
O De Corpore Politico traz mais um acréscimo à forjada – o estado de natureza. E no estado de
tese da supremacia materna: “A habilitação ao natureza as mães têm um papel privilegiado na
domínio sobre um filho não procede da geração do organização familiar. Só a mulher tem a certeza de
filho, mas da sua preservação”19. que os filhos são realmente seus; só ela está segura
Aqui, antecipando a valorização de uma ética de de quem é o pai de sua prole. Daí a conclusão de que,
cuidado (“ethics of care”, como dizem os filósofos naturalmente, é a mãe que tem poder sobre os filhos.
contemporâneos de língua inglesa), reconhece-se que a A sociedade seiscentista está longe do estado
mãe, tendo capacidade de assegurar a manutenção dos de natureza. Nela a mulher está submetida ao
filhos, é a pessoa que mais poder tem sobre eles. Assim, marido e, consequentemente, a mãe surge como
no estado de natureza, não há dúvida de que o poder mediadora entre os filhos e o pai. Mas, nos casos em
“paternal” pertence à mãe. No estado civil, há de se que o marido se submete à mulher, a obediência
decidir quem exerce tal poder com maior eficácia. Ora, deve-se a esta, e não ao pai. O Leviatã defende que:
as mais das vezes, tal decisão recai sobre o homem. Se a mãe estiver submetida ao pai, o filho está em
Como explicar essa defesa da supremacia paterna? A poder do pai, e, se o pai estiver submetido à mãe,
justificação hobbesiana nunca recorre a propensões o que acontece quando uma rainha soberana casa
especiais masculinas para o mando ou para a com um dos seus súditos, o filho fica submetido à
autoridade. O filósofo desmistifica expressamente mãe, visto que o pai também a ela está
qualquer defesa da superioridade masculina. Sustenta submetido24.
no Leviatã que: “Aqueles que atribuem o domínio apenas
ao homem pelo fato de ser do sexo mais excelente estão Trata-se de uma verdadeira desmistificação do
totalmente enganados”20. Apressa-se mesmo a falar de poder paternal, justificado pelo recurso a um objetivo
mulheres dotadas de força e prudência necessárias para pragmático: a construção de uma sociedade
lhes granjear autoridade suficiente sobre os filhos: harmoniosa e pacífica. O sacrifício imposto às
“Porque nem sempre se verifica essa diferença de força mulheres, privando-as de certos direitos, é o preço
e de prudência entre o homem e a mulher de maneira a para que as instituições funcionem e para que o
que o direito posssa ser determinado sem luta”21. Estado se constitua. Se aos homens é pedido que
O De Cive refere estados europeus onde as abdiquem de seu direito natural em nome de uma
mulheres exercem com êxito o direito de soberania ulterior realização, tendo em vista a felicidade, às
(§ III). É verdade que Hobbes prefere a sucessão por mulheres é exigido um despojamento suplementar.
via masculina, mas as duas razões que aduz no § XVI Mas ambos os sexos renunciam a algo, em função
são deliberadamente fracas. A primeira é que “os de valores mais altos.
homens são quase sempre (mas nem sempre) mais
aptos aos grandes empreendimentos, sobretudo à
guerra”22. 4.Estará vedado às mulheres o “amor Dei
A segunda baseia-se no costume, intellectualis”? O âmbito da “imbecillitas” feminina em
apresentado como fator de estabilidade que, como Spinoza
tal, não interessa contrariar. É a lei, criada pelos
homens no interior de um Estado, que favorece o Nas posições que consideramos, tanto Spinoza
estatuto masculino; é ela que determina a entrega como Hobbes abordam a condição feminina da
de poderes ao pai, tendo o filósofo o cuidado de perspectiva da diferença. Daí homens e mulheres
esclarecer que tal decisão não é universal. Sem desempenharem papéis específicos na Civitas. Vimos
Estado, ou seja, antes da existência de pactos ou de que as justificações apresentadas por cada um remetem
convenções, nada indica quem terá supremacia. Por a universos conceituais muito próprios: o filósofo inglês
isso, no estado de natureza reina uma igualdade de aceita a desigualdade, mas denuncia seu caráter
direitos entre homens e mulheres em todos os convencional; o autor da fítica alega que a diferença

156 157
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

sexual marca os indivíduos e que estes são, por suprema e contínua alegria” (Tratado da Reforma do
natureza, sujeitos a percursos diferentes. Analisemos Entendimento, § 1)? Estarão as mulheres excluídas da
então as consequências que decorrem desses modos de salvação? Ou haverá no pensamento do filósofo uma
encarar a condição feminina. Consideremos em primeiro possibilidade de ultrapassar esse escolho e de
lugar o texto spinoziano do Tratado Político. Poderemos encontrar uma solução final em que a mulher não saia
a partir dele concluir que, para o filósofo judeu, a mulher diminuída?
é um ser inferior, sendo-lhe vedada uma realização Seguindo o conselho de António Sérgio, para
plena? Em caso afirmativo, como compatibilizar essa quem “se achar uma ideia no texto de um Mestre que
tese com a defesa por ele empreendida das liberdades lhe pareça de fácil refutação – conclua que ele próprio
individuais? E, em caso negativo, qual o âmbito da
“imbecillitas” feminina? [o leitor] é que a não percebe, e que o pensar do autor
Um possível modo de resolver tal questão deverá ser mais fino, mais meandroso, mais facetado,
seria realçar o inacabamento do Tratado Político. mais verrumante, do que ao primeiro relance se lhe
Estamos perante uma obra inconclusa, que termina afigurou”26, procurei ultrapassar a primeira
precisamente com uma passagem infeliz sobre as impressão provocada, tentando desdramatizar a
mulheres. Por que não admitir que, com algum leitura do fragmento. E, na verdade, se atendermos
tempo de maturação, esse excerto seria corrigido, exclusivamente ao que nele se refere, o que de
refeito ou pelo menos justificado? Na verdade, a
referência às mulheres surge de forma abrupta e não imediato se interpreta negativamente para a mulher
é minimamente desenvolvida nem fundamentada. revela-se, a uma observação mais atenta, uma
Num filósofo tão cuidadoso quanto Spinoza, seria desmesura, uma “hybris”, um poder – o poder de
de esperar que uma tese desse teor merecesse ulterior provocar paixões. Diz-nos Spinoza que os homens
desenvolvimento, podendo-se deduzir que só uma não são sensíveis às qualidades intelectuais e morais
morte prematura o impediu de prosseguir com tal das mulheres (ao “engenho” e “à prudência”), mas que
tarefa. Num artigo intitulado “Femmes et serviteurs são perturbados por seus dotes físicos. Reforça o
dans la démocracie spinoziste”, Alexandre
Matheron, eminente comentador de Spinoza, sentimento masculino de posse, constatando que os
sugere ironicamente que a morte do filósofo teria homens exigem exclusivismo amoroso por parte das
surgido como castigo pela falta cometida25. mulheres amadas. Se há alguém inferior, esse alguém
Uma segunda hipótese seria considerar que, é o homem, que não consegue fugir às solicitações
tratando-se de uma problemática de pouco peso na passionais que o universo feminino lhe provoca.
globalidade de seu sistema, o filósofo não se Diríamos que, para o filósofo, o afastamento das
interessou em aprofundá-la, não tendo qualquer mulheres da governação deve-se a algo que elas
pejo em repetir lugares-comuns. Spinoza colocar-se- possuem e que os homens não têm. Não se trata,
ia como mais um dos pensadores que perfilharam pois, de uma falha, mas, pelo contrário, de um
sem grandes preocupações a visão negativa da excesso.
mulher institucionalizada por Platão e Aristóteles e Continuando a seguir a norma sergiana,
exaustivamente reiterada. procurei penetrar agora no pensamento “mais
Nenhuma das interpretações permite meandroso, mais facetado” do filósofo, para
integrar congruentemente as considerações tecidas investigar se nele a mulher é segregada. Sendo a
sobre a natureza feminina na totalidade do sistema liberdade o valor que Spinoza mais preza, há de se
spinozano. Há de se procurar uma linha de leitura que verificar se o filósofo menciona quaisquer
leve à integração dessa passagem no pensamento do impedimentos que se levantem às mulheres
filósofo, surgindo este como um todo consistente, sem relativamente ao acesso a esse estádio. Ora, nas
falhas nem exceções. Que a democracia poucas passagens em que o filósofo se debruça sobre
convictamente defendida por Spinoza deixe de lado a condição feminina, nada nos diz de uma hipotética
um setor importante da humanidade levanta graves exclusão; pelo contrário, há na fítica uma referência à
problemas à sua proposta de realização individual. liberdade que manifestamente inclui homens e
Será vedado à mulher o desafio, colocado a todo ser mulheres – o Cap. XX do Apêndice do livro IV. Nesse
dotado de razão, de “fruir eternamente de uma ponto, ao referir-se ao verdadeiro amor conjugal,

158 159
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Spinoza nos diz que ele não visa apenas à beleza física, paixão que a mulher é um objeto, algo que se possui e
mas sobretudo à liberdade da alma. E esta é algo que frente ao qual se desencadeiam os mais diversos
tanto o homem como a mulher podem alcançar27. sentimentos. Tal como de todas as coisas que amamos,
Ficamos com a certeza de que a mulher – tal como o há maneiras de fugir de seu domínio. É no registro da
homem – pode ser livre. Mas se nos levanta agora o paixão que as mulheres são maltratadas. Nele é
problema quanto ao sentido da “imbecillitas” peremptoriamente afirmado que a vivência política não
mencionada no Tratado Político. convém à mulher, pois a fraqueza que lhe é inerente a
Para situarmos o fragmento em causa num impede de partici par do governo. Contudo, tal fato não
contexto mais vasto, temos de considerar a proposta implica que lhe estejam vedadas outras formas de
ética e gnosiológica que Spinoza inicia no Tratado da realização.
Reforma do Entendimento e que concretiza na fítica. O Para o sábio, o registro da paixão no qual se
que nos leva a atender às várias etapas do itinerário situa a política tem regras que importa conhecer. É a
salvífico spinoziano, na vertente gnosiológica e ética abordagem filosófica que permite a superação do
que o constituem. O texto do TP nos diz que a mulher arbitrário e do efêmero. Por ela alcançamos as leis
não é por natureza compatível com o exercício da que regem os fatos (pelo conhecimento de razão) e
governação. Impõe-se perceber qual o lugar que a percebemos o papel insubstituível de cada
política desempenha em Spinoza. Ora, quando fala de indivíduo no todo (pela ciência intuitiva). Só o
política, o filósofo distingue várias acepções28. Temos, filósofo radica a política na metafísica,
por um lado, a prática política, que parte da estabelecendo pontes entre os poderes humanos
experiência e que recusa modelos prévios. Mas temos (“potestates”) eapotência (“potentia”) aquetodosecadaum
também a ciência política, que joga com as paixões, deles se filia. Spinoza privilegia a razão e a intuição. E
orientando-as em função da utilidade. Finalmente, há esses domínios abrem-se a todos, homens e
a filosofia política, ou seja, um pensar reflexivo sobre mulheres. Se há discriminação sexual no que
a própria política, traçando a gênese e explicando os respeita ao primeiro gênero de conhecimento, em
fundamentos do Estado, pois este é o território que imperam a experiência vivida e a paixão, ela não
privilegiado no qual os indivíduos tomam consciência se faz sentir no conhecimento de segundo gênero, em
de sua natureza racional29. Tentando ordenar essa que a dedução prevalece. Da mesma forma, não há
polissemia, podemos dizer que o conceito spinoziano exclusão no grau da ciência intuitiva,
de política acolhe três sentidos: a política que se vive, correspondente à etapa suprema, ao conhecimento
a política que se exerce e a política que se pensa. do terceiro gênero.
Para ilustrar a primeira acepção, teríamos o É verdade que o problema de uma libertação
homem comum, a “multitudo”, que obedece aos sexuada é omisso em Spinoza. Mas isso não quer
decretos do Estado e que neles encontra a possibilidade dizer que não se façam ilações a partir do que
de se realizar. Para tal não lhe é exigido o conhecimento explicitamente refere. O filósofo nos fala de uma
dos mecanismos sociais; basta-lhe um saber “ex auditu” reforma do entendimento, de uma “emendatio”
dos fatos, quando muito uma “experientia vaga” destes. individual, personalizada. No itinerário salvífico
O político representa a concretização de uma que propõe, atende ao corpo particular, aos poderes
prática que se exerce e que se vai desenrolando num que este detém e ao modo de os incrementar31.
quotidiano. Seu objetivo é a utilidade. O político sabe Diferindo os corpos da mulher e do homem,
que os governos são desigualmente eficazes. Como tal, certamente que terão percursos salvíficos próprios.
faz tudo para que vinguem formas governativas que Sabemos pela negativa que nenhum deles passa pela
assegurem aos cidadãos uma vida estável. Consegue-o honra, pela glória ou pela luxúria. Pela positiva
pelo conhecimento dos fatos e pelo confronto dos podemos postular, como consequência lógica do
eventos a que sua ação se circunscreve. Um tal sistema spinoziano, que esse percurso, levando cada
conhecimento basta-lhe para “evitar a maldade um ao seu melhor, atenderá às diferenças
humana”30. A política que se vive, tal como a que se individuais, entre as quais se encontra o sexo. Cada
exerce, situa-se no registro da paixão e da imaginação, homem e cada mulher poderão chegar ao “Amor Dei
naquilo que o filósofo designa por conhecimento do intellectualis”, a meta suprema, a partir de um caminho
primeiro gênero – um conhecimento frágil, “ex auditu” e de aprofundamento do seu ser.
“ab experientia vaga”. Ora, é precisamente no âmbito da Spinoza não exclui as mulheres da sociedade
dos sábios; exclui-as, sim, da sociedade dos

160 161
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

políticos, entendidos como os que se regem pela psicológica que afasta definitivamente o mundo
experiência. A política não constitui uma meta feminino da atividade nobre da política.
última: é um meio, e não um fim. A mulher é Hobbes não partilha a tese aristotélica da
explicitamente afastada dos meios. Mas nada é dito mulher como “homem mutilado”35. Para o autor do
dos fins. Leviatã, ela é tão forte quanto o homem, ou melhor,
tão frágil como ele. Possuindo todos as mesmas
possibilidades de matar e morrer, todos são fracos e
5.A desmitificação hobbesiana do poder paterno todos são igualmente perigosos. Assim, há de se
– a mulher como cidadã encontrar para cada um as estratégias que levem
quer à superação de sua fraqueza, quer ao
apagamento definitivo de sua periculosidade. As
Tal como Spinoza, Hobbes critica uma visão capacidades físicas tornam-se irrelevantes, pois o
hierarquizada da realidade. No estado de natureza que conta é a astúcia, a força psíquica que leva os
que no Leviatã apresenta como modelo indivíduos a se servirem de ardis para dominar
interpretativo, todos são iguais: outrem ou para se defender de ataques. É a força
A natureza fez os homens tão iguais, quanto às psíquica, pois, que devemos temer. Os textos
faculdades do corpo e do espírito, que, embora por alusivos à regulação do poder paterno podem ser
vezes se encontre um homem manifestamente compreendidos como concretização dessas
mais forte de corpo ou de espírito mais vivo do estratégias no que diz respeito à situação da mulher.
que outro, mesmo assim, quando se considera
tudo isso em conjunto, a diferença entre um e Os textos do Leviatã, do De Corpore Politico e do
outro homem não é suficientemente considerável De Cive referidos na seção 3 são desmitificadores sob
para que qualquer um possa com base nela vários aspectos. Como vimos, a primeira e mais
reclamar qualquer benefício a que outro não óbvia desmistificação diz respeito à hipotética
possa igualmente aspirar32. superioridade natural do homem. De fato,
Embora não refira explicitamente as mulheres, é contrariamente a Spinoza, para quem é sob o
óbvio que o termo “homem” as inclui. Homens e domínio das paixões que as mulheres são
mulheres irmanam-se numa mesma pertença à natureza inferiorizadas, o filósofo inglês considera que,
humana. Esta define-se quer pelo desejo (de viver), quer numa sociedade totalmente regida pela paixão, não
pelo medo (de morrer). Para uns e para outras, a pior haveria diferenças. Aliás, se lermos os textos
sorte será a de morrer às mãos de alguém, uma ameaça atentamente, verificamos que apontam mesmo para
que urge anular a todo custo. Não há fortes nem fracos; uma superioridade feminina, detectada em duas
todos possuem como virtualidade a capacidade de esferas: biológica e social. A superioridade biológica
matar, todos são potenciais assassino(a)s: “No que verifica-se no fato de ser a mulher quem assegura
respeita à força do corpo, o mais fraco tem força a sobrevivência da prole. Há um potencial poder
suficiente para matar o mais forte...”33. feminino no domínio da continuidade da espécie:
À semelhança de Spinoza, também Hobbes é numa sociedade de carências (e podíamos estender
explicitamente antiaristotélico, embora continue a essas carências à época de Hobbes, em que a
mover-se num universo conceitual herdado da sobrevivência das crianças nos primeiros tempos de
escolástica e utilize os termos filosóficos tradicionais. vida era assegurada pelo aleitamento), a vida
Sem dúvida que a divergência maior se coloca humana está nas mãos das mulheres. Hobbes o diz
relativamente à tese aristotélica do homem como explicitamente quando afirma que a humanidade
“Zoon politikon”. Mas, para além dessa grande ruptura, pereceria se as mães recusassem amamentar os
determinante para o rumo que o filósofo inglês imprime filhos. Tal superioridade social manifesta-se na
às suas teorias sobre o Estado e sobre o poder, há outros própria organização da sociedade, pois as mulheres
pontos em que contraria o filósofo grego. Um deles é a têm a última palavra na determinação das linhagens
concepção da natureza feminina. Para o estagirita, a e no estabelecimento das relações de parentesco. A
fraqueza feminina é biologicamente determinada. Em força das mulheres reside no poder determinante
Da geração dos animais, ele realça o caráter óbvio das que detêm na atribuição de paternidade.
deficiências corpóreas da mulher34. Dessa inferioridade Verificamos assim que, se o verdadeiro
física deriva, como consequência, uma menoridade perigo consiste na força psíquica, na astúcia, no

162 163
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

modo ardiloso como é possível engendrar a morte vontades diferentes; se, portanto, for necessário
ou aniquilação de um inimigo, as mulheres são tão colocar algures a última Determinação, isto é, a
temíveis quanto os homens – e, pelas razões Regra, naturalmente que ela caberá ao homem, já
imediatamente aduzidas, são ainda mais do que que ele é o mais apto e o mais forte36.
eles. É natural que o poder das mulheres suscite Se atendermos às justificações apresentadas,
reações de medo e de defesa por parte dos homens. é óbvio o contraste com Hobbes. É verdade que este
É precisamente a fortaleza das mulheres que leva os também nos diz ser mais forte a posição do marido.
homens a procurar meios que as consigam Contudo, não tenta justificar essa situação,
subjugar. A subordinação das mulheres ao domínio limitando-se a constatá-la.
dos maridos não encontra outra justificação que não Na relação homem/mulher, o filósofo
seja uma medida de precaução masculina quanto a verifica que a sociedade em que vive é regida por
uma superioridade feminina, superioridade essa homens, mas que nem sempre o foi. O fato de
que, embora não seja explicitamente defendida, é Hobbes aceitar pacificamente esse estado de coisas
implicitamente postulada. poderia, num primeiro momento, levar-nos a acusá-
Os textos hobbesianos são reveladores quer lo de misoginia. Contudo, integrada no pensamento
no que respeita à desigualdade, quer no que geral do filósofo, a injustiça dessa situação dilui-se.
concerne a uma pseudofundamentação ética da O contraste entre a secundarização política das
moral ou da organização social e política. Com eles mulheres e seu potencial poder evidencia uma falha,
verificamos que se anulam muitos dos preconceitos um hiato, algo que não é explicado e que se nos afigura
dominantes na época. Não só o texto bíblico é incompreensível: como se passou de um regime
ignorado, mostrando que o status quo nada deve a matriarcal para uma sociedade em que o homem
justificações religiosas, como também se anulam domina? Hobbes é omisso quanto à gênese de um
todas as interpretações moralizantes que fazem do processo que levou metade da humanidade a ficar
homem um altruísta defensor dos mais fracos. O privada dos seus direitos. De uma hipótese – o
que rege a vida política são valores utilitários, e não predomínio das mulheres no estado de natureza –
propriamente morais. Os valores são instituídos por passa a um fato - sua subordinação ao poder
contrato, são posteriores ao contrato e, como tal, não masculino –, sem se preocupar com o que ocorreu
o podem determinar. entrementes.
Se confrontamos a posição hobbesiana com Colocados perante essa incongruência,
a de outros filósofos seus contemporâneos, vemos poderíamos concluir com Susan Okin que se trata
que ela é bem mais favorável à mulher. É o caso de de uma incoerência radical na teoria hobbesiana37,
Robert Filmer, que, baseado na moral cristã e nos uma inconsequência de seu pensamento. Também é
textos sagrados, sustenta que a esposa deve possível ler tal omissão como significativa de uma
obediência ao marido. A posição de Sir Robert é denúncia; ou seja, com ela Hobbes pretenderia
contestada por Locke, que lhe critica a exclusiva mostrar a deficiente fundamentação de uma
subordinação aos preceitos bíblicos. No entanto, as sociedade patriarcal. A interpretação que se me
teses defendidas pelo liberal autor dos Tratados do afigura mais correta é, tal como foi anunciada na
Governo ficam muito aquém, relativamente às seção 1, a que possibilita integrar o tema específico
mulheres, das sustentadas pelo dogmático teórico da mulher na totalidade do pensamento
do poder absoluto. Enquanto este contesta hobbesiano, de modo a que haja sintonia entre o
quaisquer razões que proclamem a superioridade particular e o geral. Assim, a obediência que Hobbes
masculina, Locke continua a defender a natural constata na relação da mulher com seu cônjuge
inferioridade da mulher, advogando a força moral apenas seria uma modalidade ou concretização da
do marido e sua maior sensatez. Assim, posto que obediência imprescindível a todo súdito para a
reconheça uma igualdade de direitos a homens e aquisição da cidadania. Numa sociedade de direito
mulheres no domínio público, para ele, na esfera do ninguém é livre, pois cada um transferiu para
privado, a mulher é nitidamente inferior: outrem o poder que inicialmente detinha. Dado que
Mas o Marido e a Mulher, embora tenham uma todos os cidadãos devem obediência aos
única preocupação, tendo, no entanto, diferentes governantes, não faz sentido falar da inferioridade
perspectivas, sem dúvida que terão algumas vezes da mulher nem de sua fraqueza. No âmbito da

164 165
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

filosofia hobbesiana, ela não é mais fraca do que os mulher é a de todos os cidadãos da Commonwealth.
demais indivíduos. Apenas na obediência que lhe é
exigida há mediações que a desviam de uma
subordinação direta a um soberano ou a uma Conclusão: A (involuntária) contribuição de Spinoza e
assembleia. É isso que leva certas filósofas Hobbes para uma filosofia no feminino
contemporâneas a relevar a contribuição do filósofo
inglês no que se refere à condição feminina38. A
subordinação da mulher ao marido defendida por Nem Spinosa, nem Hobbes se preocuparam
Hobbes é por elas entendida como uma conquista de com a condição feminina. Aparentemente, as teses
cidadania. É verdade que o estatuto de cidadã que defenderam não ultrapassam os preconceitos
implica um determinado preço, mas também é certo de sua época, contribuindo mesmo para seu reforço.
que, diferentemente do que acontece noutros Deles não se pode dizer que tenham valorizado a
pensadores coevos, o direito de cidadania a mulher. Contudo, as poucas passagens que lhe
ninguém é negado39. E, desse modo, a posição dedicam chamam a atenção para problemas que
hobbesiana acaba por beneficiar mais a causa das hoje nenhum estudioso desses temas ignora. Um
mulheres do que a posição de Locke, que lhes dá deles é o da igualdade e da diferença, relativamente
direitos públicos mas que, no foro privado, lhos ao qual as posições de ambos são, como vimos,
retira. quase opostas. Quanto à natureza humana, Spinoza
é partidário da diferença. Para ele, a desigualdade
Para Hobbes, há um nivelamento dos sexos biológica entre os sexos traz como consequência
no fato de todos serem súditos e na consequente modos diferenciados de ser e de estar, quer nos
obediência que a todos é exigida. O filósofo não se planos psíquico e comportamental, quer nos planos
preocupa abertamente com a cidadania feminina, social e político, que deverão organizar-se em função
mas as teorias que desenvolve sobre a transferência dessas diferenças.
de poderes, o direito de representação e a soberania Hobbes destaca a igualdade. Sem dúvida que
acabam por fazer delas cidadãs de pleno direito. se apercebe da especificidade sexual, mas a considera
Também as mulheres abdicam dos seus direitos, irrelevante frente ao instinto comum de conservação
também delegam aquilo que lhes é mais precioso e de defesa. Homens e mulheres prezam acima de
para que, mediante essa cedência, construa-se uma tudo a manutenção de uma vida que, tanto quanto
sociedade estável. É verdade que não transferem possível, desejariam pacífica. É em função desse
seus poderes diretamente para os governantes, e sim desiderato que se lhe exigem renúncias. Contudo, o
para os maridos, mas haverá grande diferença importante não é o aspecto pontualmente sexualizado
relativamente ao que se passa com os outros das cedências, mas seu objetivo comum.
súditos? Pede-se aos homens e às mulheres que Também no que respeita às relações entre
renunciem à igualdade que beneficiavam no estado sexo e gênero, o posicionamento dos filósofos é
de natureza, em prol da segurança que só paradigmático. Spinoza, que, como vimos na Carta
encontrarão num Estado organizado. Não é lícito a Jelles, defende a continuidade entre estado de
falar da injustiça de uma situação que se revela eficaz natureza e sociedade civil, mantém-se continuista
para manter a tranquilidade social. O melhor modo nas relações entre biológico e cultural. O sexo tem
que as mulheres encontraram para assegurar sua implicações diretas na construção social do gênero.
sobrevivência foi submeterem-se aos maridos. O tratamento diferenciado que a sociedade atribui a
Trata-se de estratégia, e não de ética. Se refletimos homens e mulheres justifica-se em função de uma
sobre o modo como Hobbes entende a liberdade, natureza específica, biologicamente determinada. O
verificamos que a mulher, tal como os demais afastamento da mulher de cargos políticos tem uma
cidadãos, não é livre. Para que todos gozem de uma explicação sexual – a fraqueza feminina. Fraqueza
sociedade livre, cada um terá de renunciar à sua essa que, pelas reações que provoca nos homens,
liberdade individual. O acesso à cidadania implica revela-se perigosa. Ignorar tal fato levaria às
uma transferência de poderes. O sexo determina o maiores perturbações.
interlocutor a quem se delega o poder. Mas, exceto A posição hobbesiana evidencia o caráter
o governante, não há ninguém que não se subordine construído do gênero e a convencionalidade de
a outrem por laços de obediência. A condição da certos comportamentos sociais relativamente às

166 167
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

mulheres. Tal como na passagem do estado de questões que uma leitura sexualmente neutra
natureza para o estado civil é evidente a ruptura, deixaria passar em branco. E esse exercício de
também no que se refere ao sexo e ao gênero há um redescoberta de dois filósofos que pensávamos
corte. A representação social da mulher não se conhecer bem permitiu-nos concluir que vale a pena
justifica por uma diferença qualquer, mas por testar a coerência interna de um sistema. Mesmo
critérios utilitários. É importante que numa que o questionamento deste se perspective a partir
sociedade livre todos tenham um lugar bem de um problema nele aparentemente tão irrelevante
definido. Cabe à mulher renunciar a certos papéis, como é o conceito de natureza feminina.
pois, desse modo, contribui para a felicidade e
estabilidade de todos. Mas, como não há outras
razões para justificar tal renúncia, torna-se por Spinoza
demais evidente o caráter não só injusto como
absurdo desta. Abre-se, desse modo, um campo de
investigação e de reivindicação insuspeito a Hobbes, Mas talvez alguns perguntem se as mulheres estão
mas que outros filósofos e filósofas posteriormente por natureza, ou por instituição, sob a autoridade
desenvolveram. dos homens. Se é por instituição, nenhuma razão
Quanto à temática hoje tão discutida da nos obriga a excluir as mulheres do governo. Se,
distinção entre público e privado, Spinoza e Hobbes contudo, apelamos para a experiência, veremos
que isso provém de sua fraqueza.
deram sua contribuição própria. O primeiro distingue
uma realização em duas esferas – política e individual. Com efeito, em nenhuma parte da terra homens e
O Estado oferece a todos a possibilidade de uma vida mulheres reinaram conjuntamente, mas em toda
racional, convidando à integração numa sociedade parte em que se encontram homens e mulheres
organizada e tornando democraticamente acessível vemos que os homens reinam e que as mulheres
um modus vivendi que, fora do Estado, só alguns, os são governadas, e que, dessa maneira, os dois
mais fortes, conseguiriam alcançar. A cada um, sexos vivem em boa harmonia; pelo contrário, as
contudo, é proposto um caminho individual de Amazonas, que, segundo uma tradição, outrora
reinaram, não admitiam que os homens
libertação. O estatuto da mulher é diferente conforme permanecessem em seu território, não
se coloca no domínio público ou no privado. No alimentavam senão os indivíduos do sexo
primeiro caso, são-lhe vedados certos cargos pela feminino e matando os machos que tinham
periculosidade que representariam para a gerado.
manutenção da paz. No segundo, abrem-selhe todas
as portas, nada obstando a que, com o esforço que é Se as mulheres fossem por natureza iguais aos
exigido a todo ser humano, alcance a beatitude. homens, se tivessem no mesmo grau a força de
Hobbes anula a distinção entre público e alma e o engenho em que consiste maximamente
a potência humana, e, consequentemente, o
privado. Para ele, homens e mulheres realizam-se direito, com certeza, entre tantas nações
publicamente como cidadãos. Cada um tem seu diferentes, não poderia deixar de se encontrar
caminho próprio, ou seja, a obediência, que em umas em que ambos os sexos reinassem
última instância devem aos governantes, tem igualmente e outras em que os homens fossem
mediadores diferentes conforme o sexo. Mas, para governados pelas mulheres e recebessem uma
além da cidadania, nenhum valor mais alto se ergue. educação própria para diminuir seu engenho.
Ao foro privado é dado o estatuto de opinião, e seu Mas, como isso nunca se viu em parte alguma,
papel é minimizado na obtenção da felicidade pode-se afirmar, em termos gerais, que as
pessoal. É na “Commonwealth” que a salvação mulheres, por natureza, não têm o mesmo direito
individual se processa. que os homens, mas que deverão necessariamente
ceder aos homens, e também que é impossível que
ambos os sexos reinem igualmente e, muito
# menos, que os homens sejam regidos pelas
mulheres. Se, além disso, considerarmos os afetos
Perspectivadas a partir de uma mente humanos, se reconhecermos que quase sempre o
amor dos homens pelas mulheres não tem outra
feminina, as teses de Spinoza e de Hobbes levantam origem senão o afeto libidinoso, de tal modo que
novos problemas, exigem um novo olhar, colocam não estimam nelas o engenho e a prudência, mas as

168 169
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

qualidade de beleza que têm, que não admitem Para o tratamento desse tema, lembramos o interesse de
que as mulheres amadas tenham preferência por Spinoza and Hobbes in Studia Spinozana, 3, Alling, Walther
outros que não eles, veremos sem esforço que não und Walther Verlag, 1987.
se poderia instituir o reinado igual dos homens e Dentre a literatura que se debruça sobre esse tema, destaca
a obra de Janet Radcliffe Richards, The Sceptical Feminist. A
das mulheres sem grande detrimento para a paz. Philosophical Enquiry, London, Routledge and Kegan Paul,
Mas basta sobre esse assunto. 1980, reeditada em 1994 (Penguin Books) com um prefácio
Spinoza, Tratado Político, XI, § 4 esclarecedor e dois apêndices sobre a diversidade e
incompatibilidade dos feminismos. Ver especialmente o
Sed forsan rogabit aliquis, num foeminae ex naturâ, an ex Appendix 2, “The Great Gulf of Feminism”, pp. 384 e ss.
instituto sub potestate virorum sint. Nam, si ex solo instituto id Tal como aconteceu no âmbito da história das mulheres,
também no campo filosófico tem havido estudos que
factum est, relevaram o menosprezo dos filósofos pelo sexo feminino,
nulla ergo ratio nos coegit foeminas a regimine secludere. atribuindo-lhes uma grande responsabilidade pelo
afastamento das mulheres da filosofia. Ver, entre outras,
Sed si ipsam experientiam consulamus, id ex earum imbecillitate Tuana, Nancy, Woman and the History of Philosophy, New
oriri videbimus. York, Paragon, 1992; Lloyd, Geneviève, The Man of Reason. Male
and Female in Western Philosophy, London, Routledge, 1993;
Nam nullibi factum est, ut viri, & foeminae simul regnarent, sed Green, Karen, The Woman of Reason. Feminism, Humanism and
ubicunque terrarum viri, & foeminae reperiuntur, ibi viros Political Thought, Cambridge, Polity Press, 1995.
regnare, & foeminas regi videmus, & hâc ratione utrumque sexum É o caso de Waithe, Mary Ellen (ed.), A History of Women
concorditer vivere. Sed contrà Amazonas quas olim regnasse famâ Philosophers, Dordrecht, Kluwer Academic Publishers, 1991 (4
vols).
proditum est, viros in patrio solo mora non patiebantur, sed
foeminas tantummodò alebant, mares autem, quos pepererant, Nancy Tuana, op. cit., pp. XIII-XV e 113-121.
São esses os exemplos referidos por Nancy Tuana para
necabant.Quòd si ex naturâ feminae viris aequales essent, & mostrar como o filão platônio-aristotélico tem sido
animi fortitudine & ingenio in quo maximè humana potentia, & dominante no modo como os filósofos perspectivaram a
consequenter jus consistit, aequè pollerent, sanè inter tot, tamque mulher.
diversas nationes quaedam reperirentur ubi uterque sexus pariter “(...) imo mulierculae etiam, ut Hagar ancilla Abrahami, dono Prophetico
regeret, & aliae ubi a foeminis viri regerentur, atque ità fuerunt praeditae.” Tractatus Theologico Politicus (TTP), II, G III, p. 29.
educarentur, ut ingenio minùs possent: quo cum nullibi factum “Sed forsan rogabit aliquis, num foeminae ex naturâ, an ex instituto sub
potestate virorum sint. Nam, si ex solo instituto id factum est, nulla ergo
sit, afirmare omninò licet, foeminas ex naturâ non aequale cum ratio nos coegit foeminas a regimine secludere. Sed si ipsam experientiam
viris habere jus, sed eas viris necessariò cedere, atque adeò fieri consulamus, id ex earum imbecillitate oriri videbimus.” Tractatus Politicus,
non posse, ut uterque sexus pariter regat, multò minus, ut viri a XI, § 4, G III, pp. 359.
foeminis regantur. Quòd si praeterea humanos affectûs Ep. LVI a Hugo Boxel,G IV , p. 261.
consideremus, quòd seilicet viri plerumque ex solo libidinis affectu O termo “imbecillitas”pode ser traduzidode várias maneiras.
foeminas ament, & earum ingenium & sapientiam tanti aestiment, Escolhi a que me parece mais adequada – a fraqueza. Aliás,
quantùm ipsae pulchritudine pollent, & praeterea quòd viri cotejando as várias traduções, verifica-se que há uma quase
unanimidade na escolha desse termo.
aegerrimè ferant, ut foeminae, quas amant, alio aliquo modo “Nam nullibi factum est, ut viri, & foeminae simul regnarent, sed
faveant, & id genus alia, levi negotio videbimus non posse absque ubicunque terrarum viri, & foeminae reperiuntur, ibi viros regnare, &
magno pacis detrimento fieri, ut viri, & foeminae pariter regant. foeminas regi videmus, & hâc ratione utrumque sexum concorditer vivere.
Sed de his satis. Sed contrà Amazonas quas olim regnasse famâ proditum est, viros in
Tractatus Politicus, XI, § 4, G III, p. 359. patrio solo mora non patiebantur, sed foeminas tantummodò alebant,
mares autem, quos pepererant, necabant(...)”. Spinoza, TTP, p. 360.
“Quòd si ex naturâ feminae viris aequales essent, & animi fortitudine &
ingenio in quo maximè humana potentia, & consequenter jus consistit,
aequè pollerent, sanè inter tot, tamque diversas nationes quaedam
Notas reperirentur ubi uterque sexus pariter regeret, & aliae ubi a foeminis viri
regerentur, atque ità educarentur, ut ingenio minùs possent: quo cum
nullibi factum sit, afirmare omninò licet, foeminas ex naturâ non aequale
“Quantum ad Politicam spectat, discrimen inter me, et Hobbesium, de quo cum viris habere jus, sed eas viris necessariò cedere, atque adeò fieri non
interrogas, in hoc consistit, quod ego naturale Jus semper fartum tectum posse, ut uterque sexus pariter regat, multò minus, ut viri a foeminis
conservo, quodque Supremo Magistratui in qualibet Urbe non plus in regantur (...).” Ibidem.
subditos juris, quam juxta mensuram potestatis, qua subditum superat, “Quòd si praeterea humanos affectûs consideremus, quòd seilicet viri
competere statuo, quod in statu Naturali semper locum habet.” Ep. L a plerumque ex solo libidinis affectu foeminas ament, & earum ingenium &
Jarig Jelles, Spinoza, in Spinoza Opera, ed. Carl Gebhardt,
(G) Heidelberg, 1972, G. IV, pp. 238-9. sapientiam tanti aestiment, quantùm ipsae pulchritudine pollent, &
“Espinosa e Hobbes: implicações de uma divergência”, praeterea quòd viri aegerrimè ferant, ut foeminae, quas amant, alio aliquo
comunicação feita no Encontro Hispano-Português de Filosofia. modo faveant, & id genus alia, levi negotio videbimus non posse absque
Espinosa: fítica e Política, Universidade de Santiago de magno pacis detrimento fieri, ut viri, & foeminae pariter regant. Sed de
Compostela, 5 a 7 de março de 1997. his satis.” Ibidem.

170 171
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

“(...) And is not so derived from the generation,as if thereforethe parent 25, trad. a partir de Loeb Classical Library. Aristotle, XIII,
hath dominion over his child because he begat him; but from the child’s Generation of Animals.
consent, either express, or by other sufficient arguments declared.” Hobbes, “Porque a mulher é um homem mutilado...” Da geração dos
Leviathan in The Collected Works of Thomas Hobbes (CWTH ), ed. animais, 737a, 27-28.
William Molesworth, reprt. Aalen, Scientia, 1971, vol. III, 1, p. “But the Husband and Wife, though they have but one common Concern,
186. yet having different understandings, will unavoidably sometimes have
“For as to the generation God hath ordained to man a helper; and there be different wills too; it therefore being necessary, that the last
always two that are equally parents”, ibidem. Determination, i.e. the Rule, should be placed somewhere, it naturally
“By the right therefore of nature, the dominion over the infant first belongs falls to the Man’s share, as the abler and the stronger.” John Locke,
to him who first hath him in his power. But it is manifest that he who is Second Treatise, § 82, in Two Treatises of Government, ed. Peter
newly born, is in the mother’s power before any others; insomuch as she Laslett, Cambridge University Press, 1996, p. 321. Ver também §§
may rightly, and at her own will, either breed him up or adventure him to 52 e 53 do mesmo tratado.
fortune.” De Cive, IX, § 2, in CWTH , vol. II, pp. 115-6. Susan Moller Okin, Women in Western Political Thought ,
“The title to dominion over a child, proceedth not from the generation but Princeton, Princeton University Press, 1992, p. 199.
from the preservation of it.” De Corpore Politico, IV, § 3, CWTH, vol. IV, V. Teresa Brennan e Carole Pateman, “Mere auxiliariesto the
p. 155. Commonwealth: Women and the Origins of Liberalism” in
“And whereas some have attributed the dominion to the man only, as being Political Studies, 27 (1979), pp. 183-200; Carole Pateman, “God
of the more excellent sex; they misreckon it.” Leviathan, pp. 186-7. hath ordained to Man a Helper: Hobbes, Patriarchy and
“For there is not always that difference of strength, or prudence between the Conjugal Right” in Mary Shanley e Carole Pateman (eds.)
man and the woman, as that the right can be determined without war”. Feminist Interpretations of Political Theory, Pennsylvania State
Ibidem , p. 187. University Press, 1991, pp. 53-73; Carole Pateman, The Sexual
“(...) for the most part although not always, they [males] are fitter for the Contract, Cambridge, Polity Press, 1988; Karen Green, The
administration of greater matters, but specially of wars”. De Cive, IX , § Woman of Reason , ed. cit.
16, in CWTH , vol. II, p. 124. V. Karen Green, op. cit. , p. 63.
É o caso de Robert Filmer, que recorre ao Antigo
Testamento para defender uma sociedade patriarcal. V.
Patriarcha and Other Political Writings of Sir Robert Filmer, ed.
Peter Laslett, Oxford, Basil Blackwell, 1949.
“If the mother be the father’s subject, the child is in the father’s power; and if
the father be the mother’s subject, as when a sovereign queen marrieth one
of her subjects, the child is subject to the mother; because the father also is
her subject.” Leviathan , pp. 188.
Matheron, Alexandre “Femmes et serviteurs dans la
démocracie spinoziste”, Revue Philosophique II, Avril/Juin
(1977), pp. 181-200.
Sérgio, António, Prefácio a Problemas da Filosofia , de Bertrand
Russell, Coimbra, Arménio Amado, 1974.
“(...) et praeterea si utriusque,viri scilicet et foeminae, Amor non solam
formam, sed animi praecipue libertatem pro causa habeat.” Ethica, IV,
Appendix, Cap. XX , G II, p. 272.
Para as diferentes acepções do conceito spinoziano de
política, ver Maria Luísa Ribeiro Ferreira, A dinâmica da razão
na filosofia de Espinosa, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997, pp. 489 e ss.
Lucien Mugnier-Pollet,“Nature et Société selon Spinoza”,
Revue de Synthèse, Paris, 99 (1978), pp. 56-66.
“... donec Homines Humanam igitur malitiam praevenire...” TTP , I , § 2,
G III, p. 268.
Ethica , V , prop. XXXIX , dem. e schol, G II , p. 305.
“Nature hath made man so equal, in the faculties of the body, and mind;
as that though there be found one man sometimes manifestly stronger in
body or of quicker mind than another; yet when all is reckoned together, the
difference between man and man, is not so considerable, as that one man can
thereupon claim to himself any benefit, to which another may not pretend as
well as he.” Leviathan , Cap. XIII, p. 110.
“For as to the setrength of body, the weakest has strength enough to kill the
strongest...”, ibidem . A mesma tese é defendida em De Corpore
Politico I, 2 e De Cive, I, 3.
“A palidez e a ausência de vasos sanguíneos salientes é
sempre muito visível e é óbvio o deficiente
desenvolvimento do seu corpo comparado com o do
homem.” Aristóteles, Da Geração dos Animais, I, 19, 727a, 24-

172 173
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

HUME E A TRIVIAL DIFERENÇA


JOÃO PAULO MONTEIRO
(Universidade de Lisboa)

Para analisar o tema das virtudes femininas


numa filosofia complexa como a de Hume, é preciso
começar examinando a estrutura em que esse tema se
insere. A explicação humeana do cunho peculiar de
que se revestem algumas dessas virtudes é uma das
muitas que constituem sua teoria da natureza
humana. No Tratado da Natureza Humana1, essa
natureza é primeiro examinada em sua dimensão
cognitiva, no livro I, sobre o Entendimento – ou seja,
sobre a capacidade de apreensão racional do
mundo, que nessa filosofia vem substituir a clássica
razão dedutiva. Em segundo lugar, é estudada a
maneira como essa natureza se torna instrumento de
ação, no livro II, acerca das Paixões – paixões como o
desejo e o orgulho, o ódio e a humildade –, na sua
relação com a imaginação. O livro III e último é
dedicado aos temas da Moral, num sentido
alargado desse termo que abrange um amplo leque,
desde os sentimentos morais até as regras da justiça,
incluindo instituições como a propriedade privada e
o Estado.
Na filosofia de Hume, os sentimentos morais –
tanto os que se tem frente às chamadas virtudes
femininas quanto quaisquer outros, não fazem, a
rigor, parte daquela natureza que é
espontaneamente própria da espécie humana. A
filosofia de Hume é inteiramente explícita a tal
respeito: essa natureza tem somente duas “partes
principais”, as paixões e o entendimento2, e os
sentimentos morais distinguem-se nitidamente das
paixões. Como tudo na vida das pessoas, o
surgimento desses sentimentos depende dos
princípios fundamentais da natureza dos homens e
das mulheres – a mesma, aliás, nos dois gêneros, sem
que Hume tenha jamais sugerido qualquer diferença
relevante entre ambos. Mas esses sentimentos surgem
apenas em função da situação social em que os
homens e as mulheres sempre se encontram, em todos
os tempos e lugares.

174 175
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Os juízos morais, de aprovação ou censura da fazer sempre o que corresponde a seus interesses,
conduta humana, exprimem sentimentos que, sem sendo o maior desses interesses a preservação do
dúvida, brotam naturalmente dos princípios da corpo social – e, se elas podem ser mantidas, é somente
natureza que é própria da nossa espécie, mas apenas graças à presença daquele outro tipo de obrigação a
devido ao fato de vivermos em sociedade. Que essa que o filósofo chama “obrigação moral”.
espécie é incapaz de viver sem sociedade é uma das Tudo parece indicar que esse segundo tipo de
teses humeanas mais centrais. Escreve o filósofo num obrigação recebe este adjetivo, “moral”, devido à sua
de seus Ensaios: “Nascido numa família, o homem é ligação com a “moralidade”, mas é importante ver que
obrigado a manter a sociedade, por necessidade, por esse é mais um caso em que as aparências iludem. No
inclinação natural e por hábito”3. Não haveria aqui vocabulário filosófico humeano, como aliás na
oportunidade para analisar o sentido dessa língua inglesa falada e escrita no século XVIII,
“necessidade” e dos outros aspectos dessa “condenação à quando “moral” se opõe a “natural”, como no presente
vida social” que é própria da condição humana4. caso, o que é natural o é independentemente de
Limito-me a assinalar que, para o filósofo em apreço, qualquer passagem pela mente do sujeito, e o que é
a humanidade é espontaneamente levada pela força moral é assim adjetivado apenas porque depende de
das circunstâncias a viver em sociedade, e não na algo mental (adjetivo esse que só muito
solidão. E que a preservação dos grupos sociais escassamente é usado por Hume6). Cada um de nós
humanos, e portanto a da própria espécie, depende da tem obrigação natural de cuidar do que é do seu
observância de certas regras morais. interesse, quer saiba disso, quer não – mas só se
A sobrevivência das sociedades humanas pode ter uma obrigação moral quando se adquire
depende de certas regras fundamentais, entre as consciência dessa mesma obrigação. Assim, as moral
quais, tranquilizemo-nos, não se contam as virtudes sciences, por exemplo, são o equivalente aproximado
das ciências posteriormente chamadas “humanas”,
das mulheres ou dos homens. Não seria por um aquelas em que os fatores causais mais relevantes
pouco de pecado que iria acabar o mundo social. são mentais (moral), e não naturais – os também
Mas, para Hume, as regras da justiça são daquelas chamados fatores “psicológicos”, distintos dos fatores
cuja ausência levaria à entredestruição dos “físicos”, etc.
membros de qualquer sociedade, na luta fratricida A obrigação moral, do mesmo modo que, por
pela posse dos objetos do desejo, à qual se exemplo, a evidência moral7, só existe em função do
entregariam se fossem guiados apenas pela paixão. que se passa no espírito humano, em contraste com o
Ocorre que eles são guiados também pelo que se passa na realidade exterior. Se há obrigação
entendimento, e este leva a humanidade a conceber natural de não atentar contra o grupo social em que se
e estabelecer as regras fundamentais de justiça que vive, é apenas do mesmo modo que há obrigação
consagram a propriedade privada e a obrigação das natural de defender a própria vida. Tal como no
promessas, afastando, assim, o espectro de uma direito natural, que na filosofia de Hobbes se opõe à
“guerra hobbesiana” de todos contra todos5. Mas um lei natural8, o fundamento é o interesse na
problema se ergue: os seres humanos só podem se autopreservação: existe obrigação natural de
defender o grupo social, obedecendo às regras da
guiar por essas considerações racionais quando lhes
justiça, em função da defesa da própria existência, tal
é possível ver as consequências daquelas ações que como existe direito natural hobbesiano de defender a
são contrárias à justiça e põem em perigo a própria própria vida. Mas Hume transforma em obrigação
existência da sociedade. aquilo que no autor do Leviatã é “apenas” um direito.
Como as sociedades reais em que vivem esses Em contraste com isso, uma obrigação moral só pode
seres nunca são “transparentes”, no sentido de
permitirem que se siga com o olhar as consequências surgir em mim, e para mim, quando algum
sociais da conduta de cada um, dado o grande número mecanismo mental me faz ter o sentimento de que
de pessoas que nelas vivem e a imensa massa das tenho essa obrigação.
relações inter-humanas que as atravessam, as regras Ora, a falta de transparência das
da justiça não podem ser mantidas apenas pela consequências dos atos de desrespeito às regras da
“obrigação natural” racional que ordena a cada um justiça é uma “opacidade” inevitável nas sociedades

176 177
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

complexas em que vivemos – numa “narrow and deverão ser deixadas de lado. Mas fica a sugestão de
contracted society”, constituída por poucas pessoas, dissolução do aparente enigma representado pelo
poderia haver essa transparência, mas esse tipo de misterioso acordo existente entre alguns dos
grupo social talvez não passe de uma abstração princípios da natureza humana e a necessidade dos
construída por Hume, sem qualquer realidade sentimentos morais para a preservação da
histórica9. Sendo opacas todas as sociedades sociedade e, no limite, da própria espécie humana.
realmente existentes, em todas elas a obrigação A mola principal, na formação daqueles
natural é essencialmente um horizonte de sentimentos, é o mecanismo humeano da simpatia, à
legitimidade filosófica, olhando para o qual se pode qual hoje talvez chamássemos empatia. Trata-se de
descortinar ao longe o interesse público – talvez um simples jogo da imaginação: esta é
como somatório dos interesses individuais que poderosamente governada pelos princípios da
conferem sentido à obrigação natural. Mas a associação de ideias, nomeadamente o princípio de
obrigação real e efetiva parece ser unicamente a associação por semelhança. Nada mais comum,
obrigação moral, por ser a única a permitir resolver o portanto, do que a transição inconsciente das ideias
problema da opacidade social. entre objetos semelhantes, de modo tal que, sendo o
A teoria humeana mostra como podemos nos outro ser humano semelhante a mim, a ideia do
persuadir de que temos obrigação de obedecer às outro e a ideia que tenho de mim mesmo tendem a
regras da justiça, mesmo tendo perdido de vista aproximar-se, e mesmo a confundir-se, na minha
qualquer noção daquele interesse e utilidade imaginação, sempre que as circunstâncias a tal se
públicos de que essa obediência se reveste. Essa prestam. Assim, ocorre frequentemente que a dor do
persuasão torna-se possível quando se formam em outro me doa a mim, e que a alegria do outro me dê
nós sentimentos morais de aprovação dos atos satisfação, em circunstâncias nas quais o meu
expressivos dessa obediência, e de condenação dos interesse pessoal não é afetado nem positiva, nem
atos de desobediência a essas regras. Esses negativamente. É esse fenômeno de empatia com o
sentimentos tornam-se, portanto, relevantes fatores outro que o conceito rousseauniano de pitié viria
de preservação da sociedade em que vivemos, e depois a ecoar, embora apenas na sua face mais
tanto mais quanto mais se multiplicarem entre todos dolorida e negativa11, que permite o surgimento dos
os membros de uma mesma nação. Mas tais sentimentos morais construtores da obrigação
sentimentos não são produzidos pelo “moral” de justiça.
entendimento, pela razão consciente, nem o seu A justiça ordena que cada um tenha
surgimento deriva ou depende da consciência da assegurada a fruição tranquila do que lhe pertence,
sua utilidade social. Tudo se passa como se para a
teoria humeana houvesse uma espécie de harmonia e ordena também que as promessas sejam sempre
preestabelecida entre os princípios da natureza cumpridas – o que é importante para tornar viável
humana produtores e geradores dos sentimentos a regra da transferência da propriedade por
morais favoráveis à prevalência das regras da consentimento, que é a terceira das grandes “leis
justiça e as necessidades da sociedade, notadamente naturais” da justiça. Ora, quando alguém é roubado
a necessidade de comportamentos de obediência ou espoliado, tudo se passa como se o espectador
capazes de preservar a paz social. dessa injustiça sentisse o sofrimento da vítima como
Creio que a resposta humeana a esse enigma se da sua própria dor se tratasse, um sentimento que
poderia ser simplesmente que, em verdade, não há
enigma algum. Se desde a origem da humanidade tende a assumir a forma de regra condenatória dessa
houve grupos humanos nos quais não ocorreu o injustiça e de todas as injustiças análogas, numa
predomínio dos sentimentos morais, esses grupos espécie de projeção da interioridade dolorida do eu
terão provavelmente sido eliminados, devido às num conjunto de normas de comportamento social
lutas internas daí resultantes, ou pela pura e dotado de uma ambição universalista. É essa,
simples entredestruição “rousseauniana”10, ou então muito resumidamente, a origem dos sentimentos
por um enfraquecimento interno capaz de tornar o morais geradores da obrigação moral de respeito à
grupo presa fácil de seus inimigos. Não sei se Hume
terá chegado a formular uma resposta como essa. justiça.
Muitas são as questões de interpretação que aqui Talvez tenha razão Rousseau e seja para nós

178 179
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

próprios não sofrermos que condenamos quem causa ambos estão ligadas por “uma espécie de causalidade”
sofrimento aos outros – interpretação do altruísmo como (sendo o pai encarado como uma espécie de causa do
egoísmo “em última instância” que devo aqui deixar de filho); ou seja, trata-se de mera associação de ideias,
lado, pela dificuldade e amplidão do tema. Limito-me a sem qualquer racionalidade, tal como no caso da
salientar que é da imaginação e da associação, e não da herança de propriedades15. Quanto às relações entre
razão ou do entendimento, que deriva esse mecanismo estados, a “lei das nações” também estabelece um
empático em que se originam alguns dos mais conjunto de regras que comportam uma obrigação
importantes sentimentos morais. Nesse aproveitamento natural e uma obrigação moral – só que agora as
social dos mais triviais princípios da imaginação, o que “pessoas” são as nações ou “corpos políticos”.
temos é uma irracionalidade a serviço de uma Exemplos dessas regras internacionais são o
racionalidade, pois certamente é racional procurar respeito pelaspessoas “sagradas” dosembaixadores,a
preservar a sociedade por meio da generalização do obrigatoriedade das declarações de guerra, a
respeito pela justiça, e se a opacidade social deixa apenas proibição de armas envenenadas e outras normas
o recurso de uma obrigação moral “associacionista”, das relações civilizadas entre diferentes países16.
gerada na fantasia12, o que certamente também é racional Hume esforça-se o mais possível por estender a esse
é aceitar e acarinhar esse mecanismo, malgrado a domínio internacional as mesmas categorias
estranheza que sua origem “menos nobre” nos possa explicativas que aplicara às obrigações dos
fazer sentir. Antes de Nietzsche, já para Hume o que cidadãos, mas creio que sem muito sucesso. É como
conta é o uso efetivo, e não a origem, das instituições13. se as obrigações entre países constituíssem uma
Mas nossos sentimentos de obrigação moral, anomalia na teoria política humeana. Se o Tratado
própria e alheia, não se limitam ao caso das regras da pode aqui admitir que “devemos necessariamente
justiça. A esse núcleo fundamental vêm-se juntar ser mais indulgentes com um príncipe ou ministro
numerosos outros sentimentos e obrigações, e cabe que engana outro do que com um cavalheiro que
perguntar se a estrutura central do argumento acerca falta à sua palavra de honra”17, é porque no caso das
da justiça se mantém para os outros casos, ou pelo relações internacionais a obrigação se dilui a ponto
menos é útil para sua compreensão. Afora o caso da de, talvez, haver aqui lugar para uma nova teoria –
escolha das regras específicas da propriedade privada uma teoria que o filósofo desdenhou tentar
(da ocupação à sucessão), espécie de “aplicação construir.
prática” da primeira lei natural da justiça, em que
vemos Hume atribuir cada regra a um misto de
utilitarismo e fantasia, com predomínio dessa última #
– são os princípios da associação de ideias, agora sem
relação com a empatia, que, quer no caso da
semelhança, quer no da contiguidade, quer no da É nesse ponto que Hume introduz sua análise
causação, levam os “societários” a entregar as das virtudes femininas, no capítulo “Sobre a Castidade e
propriedades a diferentes indivíduos, portadores de a Modéstia”, com o qual se encerra a Parte ii do Livro III,
diversos “títulos”14 –, há ainda fenômenos mais a mesma em que surgem os aspectos mais
propriamente políticos que também são explicados marcadamente sociais e políticos de sua teoria moral,
por variadas formas de sentimentos “morais”. Nos dois acima discutidos. Essa parte intitula-se “Da Justiça e da
sentidos do termo: têm uma gênese “meramente Injustiça”, e a Parte iii e última leva o título “Das outras
mental”, ligada à imaginação com fantasia, e têm uma Virtudes e Vícios”. Por que razões o tema da castidade e
função normativa, em termos de aprovação ou da modéstia ainda é incluído nesse território mais
condenação propriamente moral ou ética. “sociológico” da teoria humeana, em vez de ser
remetido para junto dos aspectos da moral mais
Assim, os deveres de obediência aos ligados à vida privada, como as virtudes naturais, a
governantes recebem de Hume uma análise na qual grandeza de espírito, a bondade e a benevolência, é
sua origem é explicitamente apresentada como sendo coisa que poderá ser conjecturada após se examinar
a mesma que a das mais ingênuas superstições. O o tratamento que o tema merece de Hume.
poder monárquico não é poupado: os homens A natureza humana investigada por David
acreditam que o “rei posto” depois do rei morto deve Hume em seu Tratado é, como vimos, a mesma em
ser o filho desse último, pois as ideias que temos de homens e mulheres, e as diferenças discutidas pelo

180 181
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

filósofo jamais são atribuídas a imaginárias sobretudo os princípios da natureza humana – essa
diferenças psicológicas de gênero. Aí está, por propriedade rigorosamente comum aos dois sexos que é
exemplo, o dever de castidade, a tal ponto mais o objeto central da filosofia de Hume.
carregado no caso das mulheres, e tão pouco no dos É próprio da natureza humana, segundo o
homens, que o filósofo traça um paralelo com as filósofo, estabelecer regras gerais a partir da
obrigações morais dentro da sociedade e com as experiência e pautar por essas regras o
obrigações entre nações: fortíssimas as primeiras, comportamento de todos os dias – mas é igualmente
quase nada as segundas, conforme vimos ser o caso próprio da natureza humana aplicar essas regras com
na filosofia humeana. muito maior extensão do que se justifica a partir dos
É bem nítida a presença da ironia nesses princípios que as produzem. Ou seja, o entendimento
textos18, como parece irônica também a brevidade da é naturalmente prolongado pelo trabalho da
explicação oferecida para essa diferença: é apenas imaginação ou fantasia – ainda uma vez, de modo
porque “o pai é sempre incerto” que a mulher foi igual em ambos os gêneros, e não de modo mais
condenada a arrastar sempre uma tão pesada parcela “caprichoso” no caso das mulheres, conforme os
do dever de castidade. Para a boa condução da vida estereótipos do século de Hume, e talvez também do
em sociedade, é importante que se cuide bem das nosso21.
crianças, e tanto homens como mulheres são Cerca de uma dúzia de anos mais tarde, Hume
induzidos a tal quando estão convencidos de que se não esqueceu o tema da castidade na reformulação de
trata realmente dos seus próprios filhos. Essa suas teorias morais na segunda Investigação22. A forma
convicção é naturalmente garantida no caso das da argumentação muda radicalmente, na medida em
mulheres, que sempre sabem se os filhos lhes que essa segunda versão das teorias humeanas está
pertencem (ainda não existiam grandes hospitais muito mais centrada no conceito de utilidade do que
nem, portanto, trocas de bebês...), simplesmente o Tratado. Mas a explicação da diferença de exigência
devido ao caráter da procriação: “Visto que na moral quanto ao comportamento sexual de mulheres
copulação entre os sexos o princípio da geração vai e homens permanece fundamentalmente a mesma. As
do homem para a mulher, facilmente pode haver erro “leis da castidade” são mais rigorosas para com as
do lado do primeiro, embora seja totalmente mulheres porque a eventual infidelidade destas é
impossível no caso da segunda.” E é unicamente nessa mais perniciosa para a sociedade do que a dos
“observação trivial e anatômica” que, segundo David homens. E Hume continua a atribuir um papel
Hume, tem origem a “vasta diferença” existente nos importante à imaginação humana, que aplica essas
deveres que a educação inculca em cada um dos dois “leis” fora do âmbito da procriação, exigindo às
sexos19. Nenhuma sugestão de dever transcendente a mulheres que estão grávidas e àquelas cuja idade de
impor ao gênero feminino um fardo tão díspar, tal as impossibilita a mesma castidade que a todas as
nenhuma sugestão tampouco de que seja a natureza outras.
feminina a recomendar tal desigualdade. Nem Deus, Nessa segunda versão da teoria, encontramos
nem a Natureza tiveram aqui a dizer fosse o que fosse um maior “conformismo” do filósofo em relação aos
– apenas à Sociedade foi dada voz em relação a esse preconceitos mais marcantes da sociedade de seu
assunto. Com razão Lecaldano considera significativa tempo, como já tive ocasião de apontar há algum
a inclusão da castidade entre as “virtudes artificiais”, tempo23. É só nessa obra mais tardia que encontramos
no quadro de uma ética que trata as questões do a ideia de que “a maior consideração que pode ser
nascimento e da morte, da família e da sexualidade adquirida pelo sexo feminino deriva de sua
sem apelo a supostos processos naturais20. fidelidade”24 – o que em nada obscurece, de qualquer
A ironia humeana está sempre presente no trato modo, a clareza com a qual as regras da castidade
dessa questão, que a tal tanto se prestava no seu tempo correspondem ao que hoje não hesitaríamos em
como se presta no nosso. Mas é enorme a seriedade com chamar uma “construção social” do papel da mulher.
que o estilo irônico é posto a serviço de uma explicação, Entre o interesse público e a influência dos triviais
que atualmente diríamos talvez “psicossociológica”, princípios da fantasia, o segundo sexo sofre pressões
dessa diferença de gênero ainda tão marcante na maior sociais geradoras de um tipo de obrigação diferente,
parte das nações de hoje, se não em todas. Para o sendo-lhe reservada, pois, uma posição que Hume
filósofo, é a sociedade a instância produtora dessa atribui exclusivamente a constrições sociais, e não a
diferença, mas por meio de processos a que presidem qualquer “missão” ou destino especialmente feminino.

182 183
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Nessa filosofia, a condição feminina resulta do peso por suas variadas, embora inconstantes, relações com o
de circunstâncias que, meio biológicas e meio sociais, belo sexo25, mas poucas vezes ele se refere ao então
preparam para as mulheres um destino independente suposto sexo fraco para além do tema aqui glosado e de
da sua vontade. alguns ditos de espírito. Que no Tratado tenha colocado
Um destino que tampouco depende da os prazeres obtidos com as mulheres ao lado dos da
vontade da metade masculina da sociedade. Em música e da alegre companhia é talvez prova de bom
momento algum o filósofo resvala para qualquer gosto, mas não é particularmente significativo26. Que
denúncia do “autoritarismo patriarcal” ou algo numa carta a um amigo tenha-se referido a uma certa
equivalente. A desigualdade de gênero que marca senhora como “dry and reserved, like the foolish English women”27,
os comportamentos sexuais nem é sacralizada, nem talvez seja sinal de que não era grande apreciador da
é condenada, mas é apresentada, tanto quanto modéstia nas mulheres. Que seja responsável por ter
possível, sobretudo pelo Hume mais jovem e mais dito que “women are the only heavenly bodies that Newton’s science
crítico do Tratado, por meio da visão calma e fria do was unable to explain” talvez seja apenas simpático e
filósofo que já procurava fazer-se sociólogo. As engraçado, mas também pode ser considerado revelador
ciências humanas já estavam quase a dobrar a de uma atitude pouco entusiástica para com a castidade
esquina, seguindo a trilha de Hume no esforço para delas. Em suma: o homem David Hume provavelmen te
compreender, se não para transformar, os aspectos não se distinguia de maneira notável dos outros
da vida das sociedades humanas que dificilmente cavalheiros de seu tempo no que diz respeito às atitudes
se deixam interpretar como puras escolhas da razão para com o outro sexo.
humana. É certo que Hume nem sempre foi generoso
Esse tema das virtudes femininas aparece, em seus comentários sobre as atitudes femininas,
como, por exemplo, no ensaio Of Love and Marriage,
segundo creio, ao mesmo tempo em continuidade e em que nota ironicamente que as mulheres sempre
em descontinuidade com o resto do setor pensam que as sátiras ao casamento são sátiras contra
consagrado no Tratado aos temas ligados à justiça. elas mesmas, entregando-se a outras ironias do
Tal como a observância da justiça e o dever de mesmo gênero28. Mas esse é um daqueles ensaios que
obediência ao soberano, e mesmo como os deveres o filósofo veio a considerar “demasiado frívolos”29,
reconhecidos entre as nações (por pouco que o como Of Impudence and Modesty e Of Moral Prejudices, que
sejam), a castidade e a modéstia só têm sentido como ele houve por bem retirar da edição das suas obras em
quatro volumes a partir da década de 1760 - decisão
produtos e exigências da vida em sociedade. que talvez seja sinal de uma atitude mais séria
Mas há também uma patente perante os problemas da condição feminina e das
descontinuidade, na medida em que não é nem diferenças de gênero, atitude essa que se manifesta
poderia facilmente ser sugerido que a preservação em algumas passagens de suas principais obras.
do corpo social depende da observância dessas
virtudes. Às vezes a vida sexual dos dirigentes acaba No Tratado, a influência das regras gerais sobre
por ter repercussões políticas de certa monta, mas o a imaginação é usada para explicar a enorme força de
correspondente aspecto na vida da massa dos que a patrilinearidade se reveste nas nossas
cidadãos não suporta qualquer comparação com a sociedades. Como o sexo masculino tem uma posição
importância de que se revestem, pelo menos mais vantajosa, a imaginação tende a fixar-se mais na
segundo a filosofia política humeana, as atitudes de ideia do marido do que na “da sua consorte”,
respeito à justiça e à propriedade, bem como à reforçando a relação dos filhos com o pai e
autoridade política dos governantes. Por isso enfraquecendo a relação com a mãe. Passa-se assim a
também não há aqui referência à questão da dar maior importância à linha paterna, concluindo
obrigação natural, embora haja interesse social na que os filhos são de nascimento mais nobre ou mais
preservação da castidade. É como se o tema das plebeu conforme a família do pai, e não a da mãe. Ao
virtudes femininas funcionasse como uma espécie que Hume acrescenta: “E mesmo que a mãe seja
de ponte entre a problemática social e política da possuidora de espírito e gênio superiores aos do pai,
Parte ii, a que serve de fechamento, e os assuntos de como tantas vezes sucede, o que prevalece é a regra
ordem mais privada que são discutidos na Parte III. geral, apesar da exceção” (...). Mais ainda: mesmo
David Hume, solteirão inveterado, é conhecido quando uma superioridade de qualquer espécie é tão

184 185
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

grande, ou quando quaisquer outras razões têm tal pelo menos até a data da publicação da obra humeana,
efeito, que façam o filho representar mais a família da poucos filósofos foram capazes de sugerir em tais termos
mãe do que a do pai, a regra geral continua a manter a importância da exigência de justiça, e até certo ponto
eficácia suficiente para enfraquecer essa relação,
produzindo uma espécie de ruptura na linha dos de igualdade, no que diz respeito à condição feminina.
antepassados”30. Essa análise humeana desmistifica
com grande clareza os privilégios masculinos típicos
da “sociedade de corte”, no sentido de Norbert Elias, Notas
mostrando que eles estão longe de derivar de
considerações racionais, devendo-se exclusivamente David Hume, A Treatise of Human Nature (THN), Clarendon
às facetas mais bizarras da imaginação dos homens… Press, Oxford, 1958.
que, aliás, é a mesma das mulheres. Se nesse caso há THN III, ii, 2, p. 493.
dominação e privilégio, não é devido a qualquer David Hume, Essays Moral, Political, and Literary, Philosophical
Works, Vol. III, Scientia Verlag Aalen, Darmstadt, 1964, p.
machismo imposto apenas pela força, mas ao poder 113.
persuasivo de mecanismos semiconscientes comuns a Discuto essas questões em Teoria, Retórica, Ideologia, Ática,
ambos os gêneros da espécie humana – o que nada São Paulo, 1975, pp. 33 e ss.
retira da força desmistificadora da desconstrução Hume nem sequer considera que a humanidade possa ter
humeana da prioridade patrilinear. passado por um estado de natureza hobbesiano, pois isso
tornaria impossível a sociedade, sem qual a espécie não
Exemplo mais significativo ainda é o do poderia sobreviver (David Hume, An Enquiry concerning the
paralelo estabelecido entre a condição dos povos Principles of Morals [EPM ], Enquiries, Clarendon Press, Oxford,
1975, IV, p. 206). Vai nisso mais longe do que Rousseau,
colonizados e a condição feminina, num texto da naquela crítica a Hobbes em que declara a impossibilidade
segunda Investigação que não resisto a traduzir na do estado de guerra, alegando que deste resultaria a morte
de todos menos o vencedor final – para Hume, nem mesmo
íntegra: “A grande superioridade dos europeus este sobraria... (Jean-Jacques Rousseau, Que l’Etat de Guerre
civilizados sobre os índios bárbaros nos fez cair na Nait de l’fítat Social, Oeuvres Complètes, Vol. III, Pléiade,
tentação de nos imaginarmos na mesma situação em Gallimard, Paris, 1964, pp. 601e ss.).
Por exemplo, THN I, i, 4, p. 12, em que é sugerida uma analogia
relação a eles [a mesma que a que temos em relação aos entre a associação de ideias e a atração gravitacional
animais], levando-nos a desprezar todas as restrições da newtoniana: “Here is a kind of attraction, which in the mental world
will be found to have as extraordinary effects as in the natural”. É
justiça, e mesmo da humanidade, na maneira como os curioso que os editores dos citados Philosophical Works de
temos tratado. Em muitas nações, o sexo femini no é Hume no século XIX, Green e Grose, incluam no índice
analítico do vol. IV referências a mental science e mental beauty
reduzido a idêntica escravidão, sendo tomado incapaz (sempre em oposição a natural) quando esse “mental” não
de qualquer propriedade, em oposição a seus amos e está nos textos. No primeiro caso, o que está (embora não no
mesmo texto, mas logo no início do capítulo) é a expressão
senhores. Mas apesar de os homens, quando unidos, equivalente: moral philosophy (p. 9). No segundo caso, o que
terem em todos os países força física suficiente para está no texto é apenas a indicação de que a beleza reside na
mente (mind ), e não na coisa (p. 263). Em compensação, o
manter essa severa tirania, mesmo assim tais são a índice analítico do Vol. I esquece o mental world acima
insinuação, a habilidade e o encanto de suas belas mencionado, que evidentemente está no texto (p. 321
desse volume).
companheiras que é muito frequente as mulheres THN II, iii, 1, p. 404.
tornarem-se capazes de quebrar essa aliança, passando Thomas Hobbes, Leviatã, XIII, Imprensa Nacional,
a partilhar com o outro sexo todos os direitos e Lisboa, 1995, pp. 155 e ss.
THN III, ii, 2, pp. 499 e ss.
privilégios da sociedade”31. Esse texto dá razão a Price,
Ver nota 5 acima.
quando sustenta que a ironia humeana acerca das Jean-Jacques Rousseau, Discours sur l’Origine et les Fondements de
mulheres implica sempre a igualdade entre elas e os l’Inégalité parmi les Hommes, Oeuvres Complètes, Vol. III, pp. 154 e ss.;
fímile, Oeu vres Complètes, Vol. IV , Pléiade, Gallimard, Paris,
homens, “uma ideia que o século XVIII não estava 1969, pp. 505 e ss.
preparado para aceitar”32. Sem dúvida que para 1751, Gilles Deleuze, Empirisme et Subjectivité (Essai sur Ia Nature
data de publicação da segunda Investigação, o texto de Humaine selon Hume), Paris, Presses Universitaires de France,
1953, p. 54, sobre a concepção humeana da lei natural: “Le
Hume parece demasiado otimista – e até para os dias de droit tout entier est associationniste”.
hoje, em muitos casos. Mas devemos reconhecer que, Para Nietzsche, “há um mundo de diferenças entre a
origem da formação de uma coisa, por um lado, e, por

186 187
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

outro, a sua eventual utilidade e o seu uso efetivo num


sistema de fins” (Friedrich Nietzsche, The Genealogy of Morals,
II, 12, Modern Library, Nova York, 1968, p. 51).
Analogamente, para Hume pouco importa que os
ROUSSEAU E A EXCLUSÃO DAS
sentimentos de obrigação moral tenham origem na MULHERES DE UMA
fantasia, desde que sejam úteis à sociedade.
Cf. Teoria, Retórica,Ideologia ,pp. 82 e ss. CIDADANIA EFETIVA
15 THN III, ii, 10, p. 562. FERNANDA HENRIQUES
16 Ibid., 11, p. 567.
(Universidade de Évora)
17 Ibid., p. 569.
18 Cf. John Valdimir Price, The Ironic Hume, University of
Texas Press, 1965, pp. 10 e ss.
19 THN III, ii, 12, p. 571.
Eugenio Lecaldano, Hume e la Nascita dell’EticaContemporanea , “a servidão da casa a servidão da cama
Laterza, Bari, 1991, pp. 201-2. quem te disse mulher que toda a
Esquecendo o papel atribuído por Hume à imaginação,J. L. servidão se pode transformar em
Mackie mostra-se incapaz de entender a explicação humeana chama?”
das virtudes femininas, como se vê nas considerações que Y. K. Centeno, Perto da terra, Lisboa,
sobre ela tece em Hume’s Moral Theory (Routledge & Kegan
Paul, Londres, 1987, p. 118): “The machinery he [Hume] suggests Editorial Presença, 1984, p. 22.
here for producing these sentiments is quite inadequate. Each husband
has, no doubt, an interest in his own wife’s fidelity; but he may have no
interest in the fidelity or modesty of other men’s wives, but rather the
reverse; and the same applies to unmarried women”. Mackie ignora aqui
que a obrigação moral se torna independente do interesse,
devido à ação da fantasia – além de esquecer que o interesse Para além do interesse inerente ao próprio
envolvido na obrigação natural é o interesse da sociedade, desenvolvimento do saber, que razões podem hoje
não o interesse pessoal dos maridos!... justificar um estudo acerca da perspectiva
EPM IV , pp. 207 e ss. rousseauniana da educação feminina?
Teoria, Retórica, Ideologia , pp. 182 e ss. Com efeito, embora pareça totalmente
EPM V I , I , p. 238. pacífica a recusa das ideias daquele pensador sobre
Cf. Annette Baier, A Progress of Sentiments (Reflections on Hume’s
Treatise), Harvard University Press, 1991, pp. 257, 274; diz dele a finalidade e os conteúdos que deveriam estar
J. V. Price, op. cit., p. 16: “Bachelor he may have been, but hater of adstritos ao processo de educação das jovens, dado
women he was not”. Ernest Mossner, além de comentar que eles se apresentam completamente obsoletos,
extensamente a vida amorosa de Hume (The Ljfe of David quer da perspectiva científica, quer da perspectiva
Hume, Clarendon Press, Oxford, 1970, pp. 432 e ss.), cita uma
carta de Madame d’Épinay em que se diz do filósofo na sua sociológica, continua a não ser despiciendo o
estada na França: “All the pretty women have taken possession of him; tratamento da questão. De fato, pode-se considerar
he goes to all the smart suppers, and no feast is complete without him ” (p. Rousseau um dos responsáveis mais determinantes
444).
THN II , iii, 5, p. 424.
pelas dificuldades que as mulheres tiveram – e
New Letters of David Hume , Clarendon Press, Oxford, 1954 ,
ainda têm – para chegar a ser reconhecidas como uma
p. 28.
individualidade com entidade ontológica capaz de
Essays Withdrawn, PhilosophicalWorks , Vol. IV , pp. 383 e ss. M. protagonizar um modo de ser humano autónomo e
A. Box classifica esse ensaio como um exercício de troça de livre e, consequentemente, capaz de assumir a
gênero: “banter of the ladies” (The Suasive Art of David Hume, cidadania na plenitude das suas dimensões.
Princeton University Press, 1990, p. 130). É intuito da presente reflexão evidenciar a
The Letters of David Hume , Clarendon Press, Oxford, 1969, responsabilidade de Rousseau na criação de uma
Vol. 1, p. 168. Cf. A. Baier, op. cit., p. 257 e nota 3. 30 THN base teórica que, impedindo a construção de uma
II, i, l0, pp. 308-9.
EPM III , i, p. 191.
antropologia que efetivamente tematizasse com
igual isenção os dois modos de ser humano,
J. V. Price, op. cit. , p. 17.
contribuiu, de forma determinante, para a exclusão
das mulheres da cidadania, quando toda a
sociedade ocidental se redefinia e procurava novos
alicerces de funcionamento e liberdade.

188 189
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

1.Configuração da questão que ele recapitula o debate que o século XVIII


desenvolveu sobre a natureza feminina, tomando
partido dos que advogaram a diferença entre os sexos
Em 1801, Sylvain Maréchal publicou um como uma deficiência por parte das mulheres,
opúsculo com o título Il ne faut pas que les femmes sachent lire nomeadamente, situando-se na continuidade direta
ou Projet d’une loi portant défense d’apprendre à lire aux de Rousseau3. Lendo Sylvain Maréchal, parece-me
femmes, que, embora ficcional, organizava-se como um mesmo possível pensar que se está relendo ou
projeto de lei. O documento estruturava-se a partir de “ouvindo” Rousseau em alguns argumentos
dois princípios: a natureza e a razão – a primeira “naturais” e determinações “racionais” utilizadas
determinava o verdadeiro e bom sentido das coisas; a (repetidas?) por aquele autor e que configuram o
segunda, a razão, em função daquilo que aparecia feminino como o estado ou omodo de ser humano em
como naturalmente bom, exigia que essa bondade que a autonomia é, em si mesma, impensável e, na sua
natural se fizesse lei. A natureza fundava, assim, o referência social, o perigo de uma desestabilização
funcionamento social, por meio da mediação da sempre iminente. Dir-se-ia que, para ambos os
razão. No tocante aos sexos, a natureza marcava sua autores, é preciso subordinar as mulheres para que a sociedade
diferença como um dado, uma evidência, e, nesse possa existir. Maréchal defende-o por meio da ficção de
quadro, a razão, funcionalizando essa diferença, um projeto de lei; Rousseau o legitima na última parte
punha a mulher em posição de submissão, em virtude do seu fímile, que a crítica consagrou como um
de uma natural e eterna desigualdade. O escrito de romance pedagógico. Qualquer dos autores faz, assim,
Maréchal tem como anexos os dez mandamentos do apelo a um modo discursivo que, implicando o
amor e um poema, “A mulher culta”, no qual o amor, registro ficcional, convoca as categorias humanas
separado do saber, aparece como fonte única de talvez mais poderosas em termos de eficácia – a
felicidade para a mulher. Ela terá de optar pelo amor, imaginação, os afetos, as representações ancestrais.
pela felicidade e pela beleza, ou pela instrução e pela Mas há ainda uma outra razão mais contundente para
vida solitária e infeliz. que esses autores tivessem querido fazer História por
Que simbologia pode ser explorada com o meio da retórica4. Assente na sistemática e rigorosa
aparecimento de um texto desse teor nos alvores do análise de Geneviève Fraisse ao longo de sua obra,
século XIX? pode-se verificar como, numa sociedade que se
Geneviève Fraisse, em sua obra Muse de la Raison. redefinia em sua estrutura organizacional e
La démocracie exclusive et la différence des sexes1 – em que se ideológica, a exclusão das mulheres da vida pública
centra nos textos produzidos na França nas duas se faz por uma linguagem que não ataca diretamente
primeiras décadas do século XIX e mostra, pela sua o problema, mas, antes, por descentração do seu
análise, como, a partir do modo como se faz a redefinição núcleo, vai fazê-lo por meio do debate de outras
da diferença entre os sexos, excluem-se as mulheres da questões, como, por exemplo, se as mulheres devem
democracia nascente –, toma como texto matricial o ser escritoras, se há conveniência em que as mulheres
opúsculo de Sylvain Maréchal, dizendo sobre ele ao sejam instruídas e, em última análise, a meu ver, pela
término de sua reflexão: discussão sobre a natureza sexuada da razão.
O texto de Sylvain Maréchal cristaliza todos os É nesse quadro que tem poder simbólico a
temas que alimentam o debate da exclusão das brochura de Sylvian Maréchal, e sobre ele Fraisse pode
mulheres da democracia; poderemos reagrupá- dizer que “cristalizou todos os temas que alimentam o
los deste modo: o medo que a exceção se converta debate da exclusão das mulheres da democracia”,
em regra, a recusa de uma vida pública para as como se citou atrás. Realmente, ele faz um trabalho
mulheres e o controle sobre sua aparência, a modelar de redefinição do papel feminino na nova
insistência sobre a naturalidade do sexo feminino, sociedade emergente por meio de uma questão
nomeadamente, por sua função reprodutora, a
certeza de um destino idêntico para todas as transversa: a conveniência pessoal e social que pode
mulheres produtoras de costumes, domésticas e ou não haver em as mulheres terem acesso à instrução.
públicas, a vontade política de lhes não dar nem É pela análise dessa questão que o autor vai forjando
cidadania, nem poder na cidade2. as sucessivas exclusões das mulheres dos diferentes
planos da cidadania, e não pelo tratamento direto do
Interpretando o conjunto da análise que essa tema. A natureza mostra a diferença entre os sexos e a
autora faz do opúsculo em questão, poder-se-ia dizer especificidade de cada um deles; ora, a natureza é

190 191
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

tautológica, isto é, quer manter suas próprias aqui em jogo é a interpretação sobre o tipo de razão que as mulheres
perfeições; assim sendo, a sociedade, por meio da possuem, ou, noutros termos, se a razão é ou não sexuada.
razão, tem de zelar para que haja reprodução do mesmo. É Sobre esse assunto, Sylvain Maréchal, na esteira de
por isso que o artigo 3 do Projeto de Sylvain Maréchal Rousseau, é maximalista, ou seja, defende que tudo é
afirma “A razão quer que cada sexo esteja no seu lugar sexuado, incluindo a razão e o funcionamento racional.
e aí permaneça”5. Para as mulheres não há, portanto, Que pode, então, representar esta questão?
historicidade nem cultura que possa entrosar-se com Nancy Tuana, em sua obra Woman and the
sua natureza biológica e proporcionar-lhes um History of Philosophy10 – na qual proclama a
horizonte de vida como projeto de liberdade. Para necessidade de uma chave hermenêutica que permita
elas, o futuro é sempre destino e destino de espécie. uma releitura dos textos filosóficos conducente a
Em outras palavras, na alvorada da desocultar a representação do feminino por eles
fundação da nova sociedade ocidental, redefinir o defendida ou suposta, de maneira a que seja realçado
papel dos sexos equivaleu a encontrar fundamentos se as mulheres são ou não excluídas ou
e argumentos que retirassem das mulheres o direito secundarizadas nas questões-chave de que tratam –,
de aceder aos novos espaços de liberdade e de estabelece um feixe de conclusões que se podem
poder que se desenhavam. articular em dois grandes princípios:
E também aqui Sylvain Maréchal recapitula – por um lado, o reconhecimento de que o pensar
Rousseau. Numa obra sobre Jean-Jacques ocidental se constitui no interior de dualismos
sistemáticos, de tal modo, contudo, que um dos
Rousseau6, Rosa Cobo defende a ideia de que polos é sempre privilegiado e, portanto,
Rousseau lança as bases teóricas do patriarcado hierarquicamente superior;
moderno e que, nesse contexto, o livro V de fímile, – por outro, a explicitação de que a filosofia
dedicado à educação de Sophie, tem como objetivo ocidental caracterizou o feminino, tomando o
masculino como sendo em si mesmo a
definir o novo papel das mulheres no interior de realização plena da humanidade e, portanto, o
um nascente espaço teórico, social e político. Na padrão do que é humano e reproduzindo sempre
mesma linha se situa o escrito de Barbara Pope7, ao as concepções tradicionais, que foi retomando
sem problematizar, inclusive em momentos-
desenvolver a perspectiva de que Rousseau, charneira do seu desenvolvimento, em que se
querendo regenerar moralmente a sociedade, traça forjaram novos conceitos e novas perspectivas
duas esferas claras – a da cidadania e da liberdade e a teóricas e conceituais.
É interessante verificar que a análise realizada
da submissão doméstica. Diz ela: “Se a igualdade e a pelo livro de Geneviève Fraisse, o qual tem vindo a ser
democracia para os homens eram um lado da sua referência da minha reflexão, permite tomar
visão profética, a subordinação e a domesticidade consciência dos princípios que a obra de Nancy Tuana
para as mulheres eram o outro lado”8. enuncia e, assim, reafirmar sua interpretação, porque
Fraisse põe a descoberto, ao longo dessa análise, o fato
Desse modo, o ponto de vista rousseauniano de, na sociedade nova que emergia da Revolução
sobre o novo ideal feminino aparece extremado no texto Francesa, vencerem as mais velhas tradições sobre o
de Sylvain Maréchal, sendo essa figura extrema, a meu feminino, reduzindo-se o “grande esforço” de
ver, um sinal claro do peso fundamental de Rousseau na redefinição da feminilidade à construção de
definição dos novos ideais sociais que, emergindo da argumentos que tornassem “racionalmente”
Revolução Francesa, fundaram a sociedade ocidental, aceitáveis preconceitos ancestrais.
determinando seu imaginário. Se tivermos ainda em Geneviève Fraisse inicia seu texto num
conta, como nos relembra Geneviève Fraisse, que registro irônico, dizendo:
“Legisla-se sob a Revolução Francesa. Fabricam-se constituições
gerais e leis particulares. (...) Fazer e refazer as leis: pode-se Com o século XIX um debate, muito antigo, parece
imaginar a excitação suscitada por uma empresa tão excepcional caduco. Avelha questão fantasmática (...) de saber
na história9, percebermos quão significativo pode ter sido se as mulheres têm uma alma tal como um
o gesto de propor uma lei que proibisse as mulheres de homem deixa de ser pôr (...) a Revolução Francesa
aprender a ler. marca a passagem da era da força à era da
inteligência (...): seria, pois, inacreditável que
No fundo, como já ficou sugerido antes, o que está

192 193
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

alguém pudesse ainda duvidar da pertença da estranhas, estrangeiras, alguém a quem o processo
mulher à espécie humana11. cultural não afetou. É como se sobre a mulher
O que ela nos deixa interpretar, pela análise continuassem a pairar, intactas na sua força
cerrada que leva a cabo dos escritos franceses acerca originária, as palavras divinas depois da transgressão:
da diferença entre os sexos, de 1800 a 1820, é que a darás à luz com sofrimento. Ou seja, um olhar cultural,
discussão em torno da natureza sexuada da razão historicamente entretecido, olha para um ser, também
representa, a seu modo, a reatualização da pergunta ele submetido à ação da temporalidade, como se nada
sobre a alma feminina; diria, até, que é uma questão desse processo o pudesse afetar, como se a mulher
com o mesmo sentido, ainda que historicamente pertencesse a outra esfera, e o trabalho histórico não
situada. Ou seja, novas categorias de pensar e de passasse por ela em termos constitutivos. Nela, o ser
organizar a sociedade, quais sejam, a democracia e do seu ser permanece imutável, intransformável,
o desenvolvimento industrial, colocam novas como uma natureza divina. Com essa dimensão de
exigências na definição dos sexos; por isso, agora não sacralidade afasta-se a mulher da cultura e da
importa apenas a questão ontológica da alma; cidadania; mitifica-se sua imagem, para poder mantê-
interessa, igualmente, uma certa epistemologia la fora, excluída, das zonas de ação e de gestão das
forças transformadoras; em segundo lugar, os
social que obriga a perguntar pelas funções que mecanismos da nova sociedade, sua estrutura
pode desempenhar uma razão sexuada. Numa funcional, exigiam que as mulheres se reconhecessem
sociedade que estava reinventando o como fazendo parte dela. Nesse contexto, estabelece-
funcionamento democrático, não interessava se a participação parcial das mulheres na
somente definir a natureza do ser humano, mas era racionalidade. Elas têm um certo tipo de razão, uma
preciso, também, pensar seu ajustamento social e razão prática – aqui a marca de Rousseau é absoluta
político, ou seja, as questões funcionais. Considero, e literal. Se quiserem competir com o homem, serão
por isso, legítimo dizer que o debate em torno do tipo sempre e só imitadoras; no entanto, se assumirem seu
de razão que as mulheres possuem tem a mesma carga lugar de mães e guardiãs dos costumes, poderão
simbólica daquele outro que a tradição nos legou florescer de acordo com a “sua natureza”. Isto é, sua
como tendo ocorrido em torno da dúvida sobre se razão não funciona na plenitude, que cabe apenas ao
as mulheres teriam ou não alma, na medida em que sexo masculino protagonizar, mas lhes permite
ambas assentam-se na descrença da estrutural igualdade resolver os problemas domésticos, ligados ao governo
entreosdois modos do ser da humanidade. da casa, ao cuidado dos filhos e à moral, porque tudo
A análise que Fraisse faz das diferentes isso depende, unicamente, da aquisição de um saber
forças em presença no debate sobre a natureza da que não é um saber teórico, e sim um saber fazer, bem
razão, bem como de suas consequências sociais, como da manutenção de uma conduta digna.
leva-a a concluir pelo oxímoro “desigual igualdade”. Essa caracterização da razão feminina como
A desigual igualdade corresponde ao modo como sendo, tão-somente, uma razão prática pode justificar
a estrutura social representou a posição das mulheres na a posição de Geneviève Lloyd13 quando defende que,
cidadania; foi a maneira como realmente as excluiu sem a partir do século XVII, com Descartes, corporiza-se
a afirmação direta dessa exclusão, mas sim pelo recurso um ideal de racionalidade, que permanece como
à definição de funções sociais que, sendo “próprias” da herança subterrânea no pensamento ocidental e que
natureza feminina, incapacitava-as para a vida pública, associa radicalmente a razão à masculinidade. É o que
para a vida da cidade. Todavia, o fundamento dessa ela designa como the Man of Reason, para dizer que
desigual igualdade decorre da forma como se interpretou nesse quadro conceitual todas as características que
a diferença entre os sexos, colocando-se a mulher como historicamente tinham sido associadas ao feminino
um ser da natureza e apenas parcialmente participante foram afastadas do conceito de razão e, por isso, a seu
da racionalidade12. ver, a partir do século XVII, a já tradicional aliança
Nesse debate sobre a sexualização da razão, entre a razão e o masculino é posta em quadros
perfilam-se dois aspectos muito importantes: em qualitativamente diferenciados. Essa perspectiva é
primeiro lugar, as mulheres continuaram a ser vistas tanto mais relevante quanto há nos séculos XVII e XVIII
como o totalmente outro, como a alteridade. São, uma situação especial de relação filosófica e cultural
assim, objecto de análise pela cultura, não enquanto com a razão que Lloyd consubstancia no vocábulo
membros dessa cultura e artífices dela, mas como attainement, que, de facto, pode ser explorado na dupla

194 195
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

significação de aquisição e consecução, ou seja, como bênção. Essa é a herança de Rousseau para as
algo que simultaneamente se configura, se mulheres – um legado pesado e difícil de superar.
autonomiza e atinge sua plena realização. Assim Karen Green, num livro cujo título, The Woman
sendo, ao ficar de fora da racionalidade na plenitude of Reason, deixa-se interpretar em simetria com o de
de suas competências, as mulheres ficam à margem de Geneviève Lloyd, The Man of Reason, antes referido,
uma contribuição efetiva para o processo histórico. evidencia o fato de que, hoje, os novos feminismos das
Sem pretender dizer que Rousseau é o diferenças fazem emergir a necessidade de uma leitura
responsável por esse quadro do qual nosso imaginário de Rousseau que obrigue à consideração de seus
social é herdeiro, parece-me, contudo, importante textos numa perspectiva mais complexa do que a da
realçar que as ideias que sustentam a proposta de simples figuração da misoginia estabelecida pelos
educação que Rousseau faz para Sophie no seu fímile feminismos clássicos15. Concordo com ela; todavia,
podem servir de esquema conceitual para poder considero fundamental sistematizar algumas linhas
pensar, em diferentes níveis, a exclusão social das determinantes do pensamento pedagógico
mulheres e seu afastamento do espaço público da rousseauniano que são, seguramente, responsáveis
cidadania. pela reprodução da mais tradicional e retrógrada
concepção sobre as mulheres, na véspera de se
2.Discussão da questão: a herança de Rousseau debater, ardorosamente, a posição recíproca dos
dois sexos e quando se procurava, já, instaurar
Na carta III, V parte, de Julie ou La Nouvelle sobre essa questão uma nova ordem16. Nesse
Héloïse14, Rousseau põe as seguintes palavras na boca contexto, porque reafirma por meio de um novo
da protagonista: quadro conceitual a velha maneira de pensar contra
uma outra forma que se queria impor, Rousseau
Mas há uma longa distância entre os seis e os contribui para a construção de um substrato
vinte anos: o meu filho não será sempre uma teórico que foi largamente explorado na
criança e, à medida que a sua razão começar a transformação política e social que originou a
crescer, a intenção do seu pai é deixar que ela se sociedade moderna e que excluiu as mulheres da
exerça. Quanto a mim, a minha missão não vai tão cidadania.
longe. Eu alimento as crianças e não tenho a O aprofundar da perspectiva pedagógica de
presunção de querer formar os homens. Espero (...)
que mais dignas mãos se encarreguem dessa Rousseau no âmbito da hipótese de trabalho desta
nobre tarefa. Eu sou mulher e mãe e sei manter- reflexão justifica-se pelo paralelismo que é possível
me no meu lugar. Mais uma vez, a função de que estabelecer entre o modo como ele e Platão
estou encarregada não é educar os meus filhos, concebiam a dimensão política da pedagogia,
mas prepará-los para serem educados. pensando-a como transportando consigo o fermento
da transformação social e política.
Essa fala configura bem a gaiola dourada em Quase no final do prefácio à sua primeira
que Rousseau encerrou as mulheres. Ela representa versão de fímile, Rousseau diz o seguinte:
a teia que ele teceu e que conseguiu converter numa
prisão consentida e legitimada, mediante a Se queremos ter uma ideia precisa da instituição
recuperação e solidificação de uma perspectiva pública, épreciso ler a República de Platão. Este livro
tradicionalmente desprestigiadora da imagem das não é, de todo, uma obra política como pensam
aqueles que julgam os livros pelos seus títulos; é o
mulheres como individualidades autônomas e seres mais belo tratado de educação que alguma vez foi
plenamente capacitados de sua humanidade. feito.17
Tal como se pode ler no texto, ser mulher é
ficar na antecâmara – antecâmara do poder, do saber, Está claro, portanto, que Platão é modelo e,
da própria vida, afinal, porque não lhe cabe senão nesse contexto, temos a liberdade de o ler na sua
um papel introdutório, preparador, ficando fora de plenitude pedagógica – só uma paideia justa pode
suas possibilidades uma realização integral. Ou gerar um Estado Justo –, podendo, na sequência,
melhor, sua realização total é, para o feminino, perceber que a evocação que Rousseau faz dele se
somente uma parte da realização humana plena, prende ao reconhecimento dessa dimensão política
que apenas ao homem cabe protagonizar. Mas ser da pedagogia. Defensor de uma educação doméstica,
mulher é também saber isso e aceitá-lo como uma privada, uma vez que a instituição pública não pode
existir “porque já não há pátria”18, Rousseau

196 197
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

apresenta o pedagógico como o processo de formar A primeira versão de fímile não contempla
o homem virtuoso e, pelo menos em termos espaço para a educação feminina. Quanto à segunda
utópicos, o cidadão da sociedade que urgia
construir. Paralelamente, por essa razão, sua redação, a que assume o título fímile ou de 1‘éducation,
proposta de educação feminina também deve ser dos cinco livros que constituem o corpo da obra
lida como o modelo educativo consentâneo com a apenas um, o V, é dedicado à educação das
sociedade nova e com o lugar que nela as mulheres mulheres, e mesmo esse pouco se ocupa do tema que
deveriam ocupar. se propõe tratar; realmente, aquilo que o livro V
Partindo desse suposto, vou centrar minha
análise no complexo educativo consubstanciado na verdadeiramente desenvolve é a última etapa da
obra fímile, tendo em atenção, sua primeira versão, o educação de fímile, a sua transformação em chefe de
Manuscrito Favre, e, digamos, contudo, sua família e cidadão, sendo que, no último quarto de
continuação, que fímile et Sophie ou Les Solitaires texto, as referências a Sophie são meramente
representa. Trata-se de um conjunto de textos
elaborados na segunda metade do século XVIII, nos esporádicas20.
quais o autor cruza e entretece as linhas de força do Se, como é aceito unanimemente, a ideia
seu pensamento global. Sobre fímile, que Pierre educativa central de fímile é a de processo, alcançar a
Burgelin apresenta como um tratado sobre a maturidade por meio da maturação, de um
bondade original do homem, diz aquele autor que desenvolvimento faseado que permita o
deve ser lido desabrochar natural de cada indivíduo, fácil se
toma concluir, pelo espaço que a obra dedica à
como a empresa de um filósofo que defende uma educação feminina, que esse princípio não é
tese; as reflexões sobre a pedagogia só têm sentido aplicado à mulheres. Na mesma linha de
se repousarem sobre uma psicologia, ou melhor, pensamento, também parece lícito considerar que o
uma antropologia, explicitamente confirmada por
uma teologia. Tal é o segredo desse livro.”19 exíguo espaço referido à educação das mulheres,
nesse tratado sobre educação, é consequência da
É essa dimensão de pensamento sistemático pouca relevância que o autor dava a tal
que Burgelin sublinha que me interessa considerar, problemática.
porque é ela que dá força à minha hipótese da Por fim, em fímile et Sophie ou Les Solitaires,
influência direta e subterrânea que as ideias Sophie aparece apenas por intermédio do discurso
pedagógicas de Rousseau sobre as mulheres de Émile, que fala dela falando de sua traição e sua
tiveram na definição do modelo de educação morte. Desse modo, a mulher que tinha feito sua
feminina nos alvores da sociedade moderna. aparição para possibilitar a continuação da educação
A análise vai ser desenvolvida, primeiro, do homem desaparece de cena da mesma forma
explorando-se a simbólica dos sinais emitidos pelo repentina como tinha surgido, e, aliás, com a mesma
conjunto do corpus e, em seguida, pela estruturação finalidade, uma vez que é na total solidão que Émile
dos princípios defendidos no interior da trama se assume plenamente como ser livre e autônomo e
textual. pode mostrar a grandeza e o valor de sua liberdade.
Focalizando, então, o conjunto dos textos Pelo que ficou dito, parece legítimo falar de
referido a partir de um princípio de leitura presença-ausência ou pseudopresença feminina no
simbólico, podemos facilmente verificar como as sistema educativo que Rousseau propõe; contudo,
mulheres estão colocadas fora do cenário. Elas são esse aspecto fica ainda mais realçado se se focalizar,
sombras – diríamos, talvez, suportes ou horizontes agora, a trama do texto, começando por se observar o
de referência – mas nunca personagens. Essa contexto em que a presençafeminina ocorre no início
perspectiva é, a meu ver, denunciada tanto pelo de livro V de fímile, quando se diz: “Não é bom que o
modo como ocorre a presença feminina no processo homem esteja só; Émile é homem; tínhamos-lhe
educativo, quanto pelo contexto em que essa prometido uma companheira, é preciso dar-lha.
presença se dá. Creio que se poderia qualificar a Essa companheira é Sophie”21. Fica aqui claramente
maneira de aparecer das mulheres nos textos em explicitado que é como futura mulher de Émile que
análise por meio da designação presença – ausência. Sophie aparece; ela não surge como um ser
Vejamos por quê: humano, mas como função. Sophie não é um

198 199
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

indivíduo; ela é paradigma da mulher, situação, homens esquecem as mulheres belas, e as mulheres
aliás, que o subtítulo do livro V, Sophie ou de la femme, belas ficam descontentes consigo próprias. (…) ela
deixa totalmente claro. encanta e não se saberia dizer por quê (...)”24
Essa perspectiva assimétrica no tratamento “O que Sophie sabe melhor, aquilo que a
dos dois modos de ser humano que Rousseau fizeram aprender com maior cuidado, são os trabalhos
realiza é denunciada por Pierre Burgelin, que do seu sexo (...)”25
explicita a atitude equívoca daquele autor na “Sophie tem um espírito agradável sem ser
abordagem da natureza feminina e masculina brilhante e sólido sem ser profundo.”26
quando assim afirma: “(...) ela sofre com paciência os erros dos outros
Digamos que, se Émile representa o Homem, ele e corrige os seus com prazer (...)”27
só muito tarde se torna o Macho, depois de um “Sophie tem religião, mas uma religião
segundo nascimento, e a educação natural razoável e simples (...)”28
retarda tanto quanto pode o encaminhamento “(...) ela limita-se a ajuizar as coisas que estão ao
para um estado adulto em que a sexualidade tem seu alcance e só julga alguma coisa quando isso serve
apenas uma importância medíocre. (...) Para
Sophie, não há segundo nascimento: ela é, desde para desenvolver qualquer máxima útil (...)”29
o início, a Mulher, e tudo nela representa a “(...) ela tem gosto sem estudos, talentos sem
Mulher e é feminino”.22 arte, juízos sem conhecimentos. O seu espírito não
sabe, mas está cultivado para aprender; é uma terra
A questão posta em relevo pelo texto de bem preparada que só espera o grão para se
Burgelin é absolutamente fulcral para se desenvolver; (…) Ela nunca será a professora de seu
compreender o modo como Rousseau encara a marido, mas a sua discípula; (...) ele terá o prazer de
educação feminina. Na realidade, Émile é, antes de lhe ensinar tudo.”30
mais nada e acima de tudo, um ser humano, e só Desse quadro, no mínimo espantoso, que
pontual e circunstancialmente sua natureza Rousseau traça de Sophie, destacaria três aspectos:
sexuada tem alguma influência em sua – seu carácter impreciso e difuso. Nada em
humanidade; em contrapartida, Sophie esgota-se na Sophie é definido ou marcado; sua imagem é
sua determinação sexual, que surge como a chave de impressionista, feita de sugestões e ocultações: não
sua vida humana. Em Sophie é o sexo que comanda o se sabe por que é que encanta; agrada mas não brilha;
destino, porque, enquanto mulher, ela é absorvida não chega a ser bela...
por sua função reprodutora. – sua mediania. As características de Sophie
É esse princípio hermenêutico da assimetria podem definir-se pela razoabilidade; é como se nela
com que Rousseau trata a natureza feminina e tudo ficasse a meio caminho ou não pudesse
masculina que permite dar sentido à proposta manifestar-se plenamente: sua solidez não tem
educativa por ele apresentada no livro V de fímile23 profundidade; sua religião não tem misticismo ou
e cuja carga discriminadora se configurará se complicações; só avalia aquilo que pode ter
observarmos três aspectos: utilidade...
– por um lado, a caracterização do feminino que – sua sujeição. Não há reflexividade na figura
é apresentada ao longo do texto;
de Sophie. O seu saber não tem compreensão, não
– por outro, o modo como o texto encena o espaço tem consciência de si como saber: é um talento sem
social destinado às mulheres;
arte e um julgar sem fundamento; ela não trata a
– por fim, a estrutura ideológica do texto, que vida diretamente, a partir de suas próprias
está construído de forma sistemática e com
uma argumentação falaciosa. motivações: aprendeu o que devia aprender, o que
lhe estava destinado; julga o que está ao seu alcance,
o que lhe pertence julgar; e, por fim, virá a saber
apenas aquilo que seu marido lhe quiser ensinar.
2.1.Afigura feminina Esses três aspectos, possíveis de isolar do
Comecemos por analisar a imagem de retrato de Sophie, representam com muita clareza
Sophie que o livro V nos fornece: aquilo que Rousseau pensava da figura feminina e que
“Sophie não é bela; mas junto dela os se pode sintetizar em três vetores: uma racionalidade

200 201
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

prática, a ausência de autonomia e a inconsistência ontológica. Por isso, Rousseau não tem dúvidas quanto à forma
Para Rousseau – como depois para Sylvain de educação que serve às garotas:
Maréchal, como se viu –, o funcionamento racional é Desse modo, toda a educação das mulheres deve ser
sexuado, sendo a razão feminina uma meia razão, relativa aos homens. Agradar-lhes, ser-lhes útil,
uma razão simplesmente prática, que jamais fazer-se amar e honrar por eles, educá-los quando
permitirá o acesso ao conhecimento teórico ou ao são jovens, cuidar deles quando são grandes,
pensamento especulativo. A natureza racional das aconselhá-los, consolá-los, tornar-lhes a vida
mulheres só as capacita para as questões morais e agradável e doce – eis os deveres das mulheres de
todos os tempos e aquilo que se lhes deve ensinar
nunca para a aprendizagem das ciências ou da desde a sua infância33.
filosofia.
Por outro lado, o ser feminino define-se em A base dessa atitude de Rousseau assenta-se
relação ao homem, e não por si mesmo; a mulher é no fato de negar consistência ontológica ao ser
amante, mãe ou esposa, mas jamais um ser feminino. Para ele, o ser da natureza feminina é o seu
individual que valha por sipróprio. aparecer. Ou seja, como entidade ontológica, a mulher é
Esse é, talvez, um dos temas mais inconsistente porque seu ser é apenas o resultado das
recorrentes do texto em análise: a mulher configura- representações que dela faz o mundo circundante; as
se em relação ao homem. Contudo, não se trata de mulheres são exclusivamente imagem dita e, por isso,
uma definição recíproca dos dois modos de ser da seu ser está constantemente em causa e tem sua sede
humanidade, como Rousseau diz explicitamente: fora de si: elas não são enquanto não são ditas,
A mulher e o homem são feitos um para o outro,
avaliadas, julgadas. Para Rousseau é evidente: “as
mas a sua dependência mútua não é igual: os mulheres, tanto por si como por seus filhos, estão à
homens dependem das mulheres pelos seus mercê do juízo dos homens”34. Nada é, pois,
desejos; as mulheres dependem dos homens quer consistente ou pertença sua. O ser do seu ser está
pelos seus desejos, quer pelas suas necessidades; sempre em perigo.
nós subsistiríamos melhor sem elas do que elas sem
nós31.
Ou seja, a relação homem-mulher caracteriza- 2.2.O espaço social do feminino
se por uma reciprocidade hierárquica, desigual. O
homem não necessita da mulher para se realizar como Ser dependente, social e ontologicamente, ser
ser humano, dado que tem muitos modos de cuja marca distintiva é a penumbra e a discrição, as
expressão para além do sexual, o qual, aliás, nem mulheres não podem aceder a qualquer espaço
sequer o vincula como necessidade; a mulher, não. público, quer do saber, quer do poder. Como se dizia
Como ela é totalmente assimilada à natureza e, no retrato de Sophie, as mulheres só devem emitir
portanto, apenas se define por meio da fecundidade, juízos acerca das matérias que estão a seu alcance,
sua realização passa, necessariamente, por uma que se confinam, necessariamente, ao espaço
relação ao homem. Dito de outra forma, a relação privado do lar e da família. E, mesmo nessa esfera, a
homem-mulher, no caso do homem, é um fator ação das mulheres deve ser indireta:
acidental, mas para a mulher é essencial e O império da mulher é um império de doçura, de
constitutiva. Esse aspecto vislumbrava-se já no início compostura e de abertura; suas ordens são as
do livro V de fímile, quando se dizia: “Não é bom que carícias e suas ameaças são as lágrimas; (...) quando
o homem esteja só”, na medida em que demonstra, ela desconhece a voz do chefe, quando ela quer
por um lado, que o aparecimento de Sophie só se dá usurpar seus direitos e ser ela mesma a
para servir a Émile e, por outro, que para ele esse fator comandar, dessa desordem só resultam miséria,
poderia não existir, embora assim sua vida seja escândalo e desonra”.35
melhor32. Isto é, mesmo na família, as mulheres são
O que interessa aqui ressaltar é que a mulher figuras de obscuridade cuja atividade se deve pautar
nunca é pensada em sua autonomia de ser humano, pelo enviesamento, o recurso ao subterfúgio – uma
em si mesmo valioso, mas simplesmente enquanto mulher não pode, em circunstância alguma, fazer a
fêmea, enquanto ser sexuado a serviço do homem. afirmação de si, confrontando-se, em termos de

202 203
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

igualdade, com o homem. É certamente por essa fraco: é preciso, necessariamente, que um vigie e
razão que na caracterização de Sophie Rousseau se tenha poder, sendo suficiente que o outro ofereça
apressa a dizer que ela nunca será a professora do seu pouca resistência. Estabelecido esse princípio,
marido; pelo contrário, deve ir para o casamento deduz-se que a mulher é feita especialmente para
“meio feita”, para que deixe ao marido o espaço de a agradar ao homem.37
formar e de ser o senhor. É muito claro para Rousseau A questão basilar é defender uma família na
que as mulheres não devem aceder ao saber; ser sábias qual o homem detenha o poder e seja,
é contrário à sua natureza feminina e as transforma incontestavelmente, o chefe; na sequência, essa
em seres aberrantes que os homens desprezam. conveniência é tomada como necessidade – como
Assim, tal como Sylvain Maréchal irá repetir depois, princípio –, permitindo deduzir o que convier a seu
Rousseau dirá: “Toda jovem letrada permanecerá funcionamento. Em termos do feminino, isso se
solteira por toda a vida, enquanto houver apenas converte em que o ser da mulher é, desde o início, um
homens sensatos sobre a terra”36. deve ser, um padrão exterior a si e ao qual sua educação
deve conformá-la.
Em conclusão, a falácia do texto está em
2.3.A estrutura ideológica do texto – a falácia rousseauniana nunca clarificar o nível das premissas do raciocínio
que vai desenvolvendo e, desse modo, permitir que
Dizia Burgelin, como referi atrás, que o o texto promova e explore a confusão entre natureza
segredo de fímile residia na unidade sistemática que e cultura, inato e adquirido – no fundo, entre sexo e
o constituía. Esse aspecto é particularmente gênero. É nessa confusão que se assenta a coerência
marcante no que concerne à perspectiva educativa e, portanto, a força de toda a perspectiva de
feminina, sendo elucidativo disso o modo como o Rousseau sobre a figura feminina e sobre sua função
livro V de fímile está construído. social e humana.
O texto está organizado a partir de um É esse aspecto que leva Nancy Tuana a
elemento exterior ao objeto de análise – o que motiva afirmar que “tendo concluído que é necessário para o
o texto é arranjar para Émile uma companheira que bem do Estado a existência de diferentes papéis
lhe sirva e o faça feliz. Por conseguinte, a mulher não sociais, Rousseau infere que a educação das
vai ser pensada a partir de si mesma, enquanto mulheres deve ser diferente da dos homens”38. Ou
expressão da humanidade, mas sim seja, é o pensamento político e social de Rousseau
funcionalmente, como a companhia que tomará a que vai condicionar sua perspectiva antropológica e
vida do homem mais agradável. Essa perspectiva que o leva a determinar sua figura educativa para as
vai ser determinante, porque a construção do texto mulheres.
se fará a partir desse requisito inicial, que obriga a
conceber a mulher no contexto do casamento e, por
isso, com um conjunto de características que 3. Notas finais
viabilizem esse casamento, isto é, que assegurem
todos os privilégios e prerrogativas masculinas. Tal como o apresenta, o processo educativo de
Daí que a ordem do texto seja a seguinte: um Rousseau é um processo de renaturalização, não no
ponto de partida arbitrário, gerador de um grupo de sentido de conduzir o humano a um estado primitivo,
suportes que o possibilitem, o que, nesse caso, quer sim de o fazer assumir, racionalizadamente, sua
dizer uma panóplia de preconceitos sobre a natureza intencionalidade constitutiva,deofazer retornar àquilo que
feminina. Na sequência, a ordem textual vai efetivamente é. Compreender isso e o seu alcance, no
apresentar esses preconceitos como se eles quadro desta reflexão, obriga a ter claro qual é o
constituíssem um núcleo de princípios emanados da significado de estado de natureza no pensamento de
natureza das coisas e deduzir a partir deles tudo o Rousseau.
que seja conveniente determinar. Vejamos apenas Algumas interpretações39 desse conceito
um exemplo: mostram-no com uma função reguladora ou
Na união dos sexos cada um concorre igualmente arquetípica, isto é, como modelo teórico e princípio
para o objeto comum, mas não da mesma fundador. Desse modo, o estado de natureza,
maneira. (...) Um deve ser forte; o outro, passivo e “Enquanto puro ideal, tem, pois, uma dupla função:

204 205
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

negativa e crítica, como critério de medida do desvio mulheres tem de ser tratada a partir do princípio da
efetivo da civilização em relação à sua direção especificidade, e nunca com base na igualdade.
Esse tema é amplamente tratado por essa autora; relevaria
teleológica originária” e “natural positivo ou ético- dois textos: Lloyd, G., “Reason as a attainement”, in Lloyd, G.
metafísico, como marca ou sinal de um imperativo The Man of Reason.” “Male” and “female” in Western Philosophy,
formal40; ou seja, colocado num horizonte de referente London, Routledege, 1993, pp. 38-56; Lloyd G., “The man of
da ação social correta, nomeadamente, a ação reason”, in Carry, A. e Pearsall, M. (eds.), Women, Knowledge
and Reality, Boston, Urwin Hyman, 1989, pp. 111-128.
educativa, o estado de natureza configura-se como o Rousseau, J.-J., Julie ou La Nouvelle Heloïse, Oeuvres Complètes ,
topos a atingir para articular a estrutura ideal da Paris, Gallimard, 1961, tomo II, pp. 19-20.
sociedade perfeita. Green, Karen, The Woman of Reason. Ferninism, Humanism and
Ser a educação um movimento de Political Thought, Cambridge, Polity Press, 1955, pp. 65-81.
renaturalização significa, assim, o retorno ao estado de Ao longo de todo o livro V de fímile se vai atacando,de forma
natureza com esse estatuto de figura modelar atrás mais ou menos clara, os defensores da igualdade entre os
sexos ou mesmo as mulheres que se notabilizaram pelo seu
apontado, o que é fazer a reafirmação simultânea de saber. Por outro lado, segundo Pierre Burgelin – J.-J.
um arquétipo de natureza humana – nesse caso, de Rousseau, Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, 1969, tomo IV ,
duas: uma masculina e outra feminina – e de um modo p. CIX –, Rousseau ter-se-á dedicado a fímile no outono de 1758,
depois de ter lido Helvétius; ora, a obra desse autor, De
ideal de a fazer emergir. Por isso, a antropologia de L’Esprit, assenta-se no suposto de que, a não ser a constituição
Rousseau e a proposta educativa dela adveniente, sensível, nada é dado ao ser humano, tudo nele é adquirido,
constituindo-se em sistema e funcionando como construído, relevando, por isso, uma grande importância à
imperativo formal, pode ter sido, em diferentes educação a que as mulheres também deveriam ter direito. Por
sua vez, havia na França os escritos de Poulain de la Barre – De
momentos e circunstâncias sociais, um recurso l’égalité des sexes (1673) e De l’éducation des dames (1674) –, os
fundamental para argumentar como benéfico para as quais explorando a perspectiva cartesiana da separação e da
mulheres e para a sociedade a exclusão daquelas da independência da Res cogitans, afirmava a autonomia da
racionalidade em relação à determinação sexual.
cidadania. Assim, ao defender a diferença e a desigualdade entre os
sexos, Rousseau tomava partido numa disputa.
Rousseau, J.-J., Oeuvres Complètes , Paris, Gallimard, 1969 ,
Notas tomo IV, pp. 58-59.
I b id e m , p. 59.
Burgelin, Pierre,“Émile ou de L’éducation”, in J.-J. ROUSSEAU ,
Fraisse, Geneviève, Muse de la Raison. La démocratie exclusive et la Oeuvres Complètes, tomo IV , pp. LXXX VIII CLII, p. CIX.
différence des sexes, Aix-en-Provence, Editions Alinéa, 1989. Na edição em análise, a ausênciade referênciasa Sophie
Ibidem , p. 169. ocorre fundamentalmente a partir da p. 814, voltando a
G. Fraisse, na obra referida, acentua a predileção de aparecer a partir da p. 860, já nas últimas páginas, no
Maréchal por Rousseau e afirma mesmo que é Rousseau contexto do casamento. De notar, contudo, que o livro
e Diderot que alimentam a aversão de Maréchal pela termina nas pp. 867-868, com uma fala de Émile
emancipação intelectual das mulheres (p. 26). anunciando que vai ser pai.
O título do último capítulo do livro em referência de Rousseau, J.-J. “Émile ou de L’éducation”, Oeuvres Complètes ,
Geneviève Fraisse é “Histoire et rhétorique: de la querelle à tomo IV , p. 692.
l’ impossible procès”, pp. 169-195; o jogo que faço dos dois Burgelin, Pierre, “Emile ou de L’éducation”,p. CXXII .
termos é inspirado no título do capítulo. Essa é também, no fundo, a tese de Rosa Cobo na obra já
Citado por G. Fraisse, op. cit., p. 21. referida, que desmonta a pretensa unidade do
Cobo, Rosa, Fundamentos del patriarcado moderno . Jean-Jacques pensamento rousseauniano, que, segundo ela, assenta-se
Rousseau. Madrid, Cátedra, 1995. em duas concepções de natureza humana, uma
Pope, Barbara C., “The influence of Rousseau’s Ideology of masculina e outra feminina.
Domesticity”, in J. Boxer, Marilyn e Quartaert, Jean H. (eds), Rousseau, J.-J.,“ Émile ou de L’éducation”, Oeuvres Complètes ,
Connecting Spheres. Women in the Western World, 1500 to the tomo IV, p. 746.
Present, New York, Oxford University Press, 1987, pp. 136- Ib id em , p. 747.
145.
Ibidem , p. 137. Ib id em , p. 749.
Ib id em , p. 750.
Fraisse, Genèvieve, op. cit., p. 13.
Ib id em , p. 751.
Tuana, Nancy, Woman and the History of Philosophy ,New York, Ib id em , p. 752.
Paragon House, 1992.
30 Ibidem , pp. 769-770.
Fraisse, Geneviève, op. cit. , p. 7.
É e ss e “r e ma t e ” d a R e v o l u ç ã o F ra n c e s a qu e a c aba p o r Ib id e m , p. 702.
ret irar das mulheres o acesso à cidadania, o que leva Esse aspecto é ainda reafirmadopelo fato de Émile, só na total
muitas feministas a considerarem que a questão das solidão, chegar a mostrar o valor do seu ser e da sua

206 207
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

liberdade, como se explicita em fímile et Sophie ou Les Solitaires.


Rousseau, J.-J., “Émile ou de L’éducation”, Oeuvres Complètes ,
tomo IV, p. 703. KANT E O FEMINISMO
Ib id e m , p. 702. PEDRO M. S. ALVES
Ibidem , p. 766-767.
(Universidade de Lisboa)
Ibidem , p. 768. Esse medo das femmes savantes parece ser uma
constante da História da Educação. Nicole Mosconi, “La
femme savante. Figure de I’idéologie sexiste dans l’histoire de
l’éducation”, Revue française de Pedagogie n.° 93 (1990), pp. 27-40,
mostra como essa figura, a partir do paradigma de Molière,
permanece na França e ganha um relevo importante
quando, no séc. XIX, discutem-se a Lei Camilie Sée e o
acesso das mulheres à instrução. “Der Mensch als ein Thier ist ein sehr unverträgliches Thier.”
Rousseau, J.-J.,” Émile ou de L’éducation”, Oeuvres Complètes . Kant. Vorlesungen, Ak. XXV, II, p. 677
tomo IV , p. 693.
Tuana, Nancy, Woman ana the History of Philosophy ,p. 46.
Ver o artigo de Irene Borges-Duarte , “Naturaleza y
voluntad en la Filosofia Ético-Política de J.-J. Rousseau”,
Annales del Seminario de Historia de la Filosofia n° 7, Madrid, U. I. A pertinência de um questionário kantiano
C., 1989, pp. 163-194, em que a autora dá conta de um
conjunto de interpretações sobre o estado de natureza em
Rousseau, nomeadamente a de Eric Weil, que lê esse
conceito à maneira das ideias reguladoras de Kant, Numa apresentação sinóptica, concisa mas
propondo também a sua própria leitura, de ser o estado de bem incisiva, Jane Mansbridge e Susan Okin põem o
natureza um “conceito principial”. “feminismo” sob a égide de “três questões” reitoras,
Irene Borges-Duarte, “Naturaleza y voluntad en Ia questões que, ainda em suas palavras, alimentam e
Filosofia Ético-Política de J.-J. Rousseau”, p. 175.
“conduzem a ciência social feminista e a filosofia
política”. São elas: “como aconteceu a dominação
masculina?”; “por que razão foi ela tão
universalmente aceita?”; “quais as suas
consequências?”.1
Trata-se indubitavelmente de questões
momentosas epertinentes. Que não se trate de simples
inquisições teoréticas, que esteja aí em jogo todo um
projeto de diagnóstico e crítica do existente – isso faz
ainda de todas elas questões não só pertinentes, mas
sobretudo questões cujo dilucidamento e cabal
respondimento se afigura como uma tarefa urgente.
Uma pertinência e uma urgência tais não
devem, porém, fazer perder de vista uma ordem de
questionamento anterior e ainda mais radical. No
questionário “feminista”, o “feminino” não é apenas
apreendido, circunscrito, em oposição ao “masculino”
e às relações diferenciais daí emergentes. O traço
fundamental do discurso feminista consiste antes em
surpreender o feminino sob a categoria da dominação,
exibir esta como um traço permanente, isolar em
retrospectiva seus múltiplos mecanismos e pô-los, em
conjunto, sob o título do “masculino”. A diferença
masculino-feminino sobredeterminada pelo tema da
dominação constitui o lugar e a forma de emergência do
discurso “feminista”.
No entanto, como se disse, não é essa ainda a
questão radical. Pois a questão crucialíssima e
absolutamente primeira não será simplesmente: “por

208 209
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

que a dominação?”, mas antes: “como pode a dominação de reconfiguração da própria consciência de si.
vir a ser reconhecida justamente como dominação?”. A Perguntar como é possível o reconhecimento
questão decisiva diz respeito não ao puro “fato”, mas ao de algo como uma “dominação” não será, por
que o torna justamente perceptível como tal fato. conseguinte, contestar a própria positividade do fato.
Respeita, assim, às próprias condições de O que sobremaneira importa para que a questão da
possibilidade a partir das quais essa diferença dominação se abra como um questionamento radical
masculino-feminino e todas as relações sociais sob ela será justamente esse movimento regressivo, essa volta
fundadas vêm a ser percepcionadas como relações da pergunta sobre si mesma, inquirindo não
estruturando-se sobre o fato da dominação. Dirá ingenuamente sobre o facto que tem diante de si, mas
respeito, portanto, às próprias condições de sobre a própria possibilidade de se articular como
possibilidade que permitem que a diferença instância de reconhecimento disso como um “fato”. Que
masculino-feminino, e as relações diferenciadas mutações essenciais, que mutações nas ordens
sobre ela erguidas, venham justamente a ser política, social e civilizacional tornam possível que
percepcionadas e descritas como relações uma “dominação” sempre exercida e por isso mesmo
estruturando-se sobre um “fato”, multiforme mas invisível seja subitamente desnudada e exibida em
permanente, de dominação. sua positividade? Mais ainda, e seguindo o ritmo do
Bem entendido, essa outra direção não questionário de Mansbridge e Okin: de que ordem
pretende contornar ou denegar o “fato” sobre o qual se deverá ser essa dominação para não carecer de algo
interroga. Não se trata certamente de dizer, “contra” o como o exercício explícito da força, mas assumir essa
forma sub-reptícia e imperceptível que a torna tão
discurso feminista, que nada há como uma tal “universalmente aceita”? E finalmente: como se vem
“dominação”, que esta seja uma ficção discursiva, e não ela justamente a exercer, qual o seu lastro e seu
algo objetivamente verificável. Trata-se antes de verdadeiro âmbito, para que seja ainda obscuro o que
vencer a ingenuidade primeira do questionar e deve ser reconhecido como consequência sua e posto
perguntar regressivamente pelas próprias condições a diretamente na sua conta?
partir das quais esse fato pode ser precisamente Desse modo, para o feminismo, do lugar de
reconhecido enquanto tal, surpreendido na sua onde se ergue e toma voz, a questão crucial é a da
positividade e posto num horizonte crítico apontado dominação como fato. É do seu indisputado
reconhecimento como fato, da sua objetivação no
à sua supressão. tecido complexo das relações sociais que o discurso
Na verdade, uma desigualdade, mesmo uma feminista arranca e toma forma. A questão
subordinação consciente e explícita, nem sempre como crucialíssima, dentro do questionamento sobre a
casos de dominação podem ser percepcionadas. Aí onde própria possibilidade de seu reconhecimento como
o sentido de identidade individual se estrutura no seio “fato”, será, porém, esta outra: que condições tornam
das relações hierárquicas e diferenciadas de uma possível que haja um reconhecimento e um discurso
comunidade fáctica qualquer, a desigualdade de sobre algo como a “dominação”? A primeira pergunta
estatuto, a limitação do campo da liberdade, a se faz a partir do espaço próprio da crítica feminista; a
subordinação aparecem como definidores da própria segunda, contudo, visa a situar esse mesmo espaço, a
identidade pessoal no seio grupal. Mas, por isso determinar as condições de possibilidade de sua
mesmo, elas jamais podem aparecer como casos ou emergência e os núcleos de sentido que articulam seu
fatos de dominação. Tudo se passa, portanto, como
se o próprio discurso sobre a “dominação”, a própria discurso. Mas não só: como resultado derradeiro, essa
possibilidade de identificar e isolar isso como um segunda e crucialíssima de todas as questões
“fato”, carecesse de uma elaboração da identidade permitirá ainda determinar o modo como tal discurso
pessoal que se alicerçasse a partir de um recuo do não se afirma já como privativamente “feminista”,
indivíduo perante seu ser-comunitário fáctico, mas antes como o discurso consensual e unânime de
construísse nesse recuo a consciência de si como uma humanidade em busca de um horizonte de
humano e a projetasse em seguida como instrumento justiça que enforme o seu viver.
de reconfiguração da própria comunidade. A questão Eis aqui o ponto em que não tanto,
pertinente é, pois, a da identificação desse lugar para anacronicamente, uma posição “kantiana” qualquer
onde se recua ou do que está permitindo esse exercício sobre “o feminino” pode ser exumada dos seus escritos,
mas, bem mais tempestivamente, uma maneira kantiana de

210 211
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

pensar a “questão feminina” pode ser explicitada e Ao “caráter moral” feminino atribui Kant, no mesmo
articulada nos seus traços de conjunto. Na verdade, se a passo, a tendência simétrica para o belo. Os dois
mais crucial de todas as questões versa, aqui, sobre a “caracteres” não são opostos ou mutuamente
própria condição de possibilidade de um tal discurso exclusivos, como o mesmo texto se apressa a
“feminista” sobre algo como o “fato da dominação”, sublinhar. Mas essa construção de uma putativa
então, nessa regressão da facticidade dada até às identidade feminina pondo a “tendência para o belo”
condições que de direito a possibilitam, encontramos já como elemento dominante permite que, logo em
uma proximidade essencial entre o modo kantiano de seguida, o feminino seja acantonado na esfera da
pensar e a questão mais radical do “feminismo”. E tal domesticidade, que seja ainda diminuído por uma
aproximação não se queda nesse parentesco algo ainda educação restrita ao elementar e, finalmente, que se
exterior. A proximidade não está aqui determinada veja expulso da vida teorética pela ridícula imagem
apenas por uma metodologia particular e por um modo de uma “mulh er barbada”, o u a que “s ó faltariam as
específico de circunscrever o questionário que a deve suportar. barbas” para que um traço de masculinidade
De Kant podemos tirar uma outra e bem mais preciosa emprestasse um necessário tom de profundidade a
lição: se o plano de possibilitação é, nas esferas teorética, seus pensamentos2.
prática ou estética, sempre apresentado como um plano Não é, porém, nessa primeira direção que se
de aprioridade “transcendental” indiferente às podem colher os melhores frutos do pensamento
vicissitudes e contingências da história e da cultura, no kantiano. Kant não é instrutivo pelo que diz de uma
que às tarefas da justiça e da liberdade respeita, esse suposta “essência feminina”; é sumamente instrutivo,
mesmo a priori assume-se como uma tarefa que perpassa todavia, pelo modo como permite formular a própria
a história da humanidade, alimenta-se de sua riqueza, questão em torno do feminino. Pois, se a questão
absorve a diversidade do empírico, ao mesmo tempo em crucialíssima está em saber que ordem de mutações
que, em conjunto, unifica-o sob as bandeiras do progresso essenciais estão permitindo a visibilidade do “feminino”
e da civilização. sob a categoria da “dominação”, se a questão é saber
Há, assim, duas questões, bem diversas no seu como uma dominação sempre exercida, mas por isso
escopo e significado, em torno do tema “Kant e o mesmo invisível, tornou-se subitamente descortinável
feminino”. A primeira é necessariamente de erudição como um fato presente e sempre reidentificável num
e interpretação textual. Ela pretenderia extrair dos olhar retrospectivo, teremos então encontrado o plano
escritos kantianos algo como uma “representação do em que Kant é, para nós, um interlocutor instrutivo e
feminino”. E, na exata medida em que o feminino não mesmo decisivo. Na verdade, o modo próprio do
constitui, em Kant, uma categoria filosófica ou um questionamento kantiano está em regredir do simples
conceito temático, interrogá-lo a propósito do “fato” até às condições de sua própria possibilidade e em
“feminino” seria, em larga medida, interrogar o circunscrever por estas a esfera própria da
homem da sua época, e não o pensador. Sob esse subjetividade humana. Por aí, o que era
ângulo, a partida está de antemão decidida: no que factualidade meramente dada, peso inerte de uma
Kant tem a dizer sob o feminino lê-se já, em filigrana, empiricidade autoimpositiva, mostra-se agora
a construção social de uma “identidade” que define como resultado de uma atividade subjetiva de
toda uma época da cultura do Ocidente; nessa época construção que chama o homem como seu
ler-se-á ainda, em pano de fundo, toda a história da protagonista último e seu único responsável.
cultura europeia e, nessa última, a contínua e sempre
presente eficácia de uma mesma desigualdade e
dominação. II. Contratualismo e comunidade política
Por amor da verdade, há de se dizer que Kant
não é certamente imune a essa denúncia, se bem que
o próprio ato da denúncia se faça à custa de um Olhos postos nos textos de filosofia política e
injustificável anacronismo. Um texto inicial, intitulado do direito, é possível fazer a Kant esta pergunta de
Observações sobre o sentimento do Belo e do Sublime, fala, fundo: sob que ideia deve a emergência da
aliás, por si. E fala com uma voz eloquente. comunidade política ser pensada para que possa ser
Procurando lançar luz sobre a dualidade masculino- surpreendida naquilo que, em essência, é?
feminino, descreve o “caráter moral” do homem como Relativamente a ela, os textos de Kant são, no
estando determinado pela tendência para o sublime. seu conjunto, convergentes, e nenhuma

212 213
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

ambiguidade vem ensombrar a clareza de sua única como dados permanentes de uma suposta “natureza
resposta: essa ideia é a liberdade. humana”, que agem como mola propulsora do pactum
Tributário de sua época, herdeiro de unionis civilis5. Em John Locke, é o desígnio de “reforçar
Rousseau, mas também de Thomas Hobbes e de John a lei natural” que conduz à instauração de um governo
Locke, Kant pertence, em sua doutrina sobre a civil apontado apenas à “garantia” dos direitos
essência do político, áquilo que comummente se estritamente individuais e, nomeadamente, ao direito
designa como a “tradição contratualista”. Kant não é, de propriedade6. No Rousseau do Contrato social, é a
porém, para ser lido como um simples epígono. Sua necessidade de cooperação ou de ajuntamento
doutrina não deve ser simplesmente posta na esteira organizado das forças humanas que conduz a
de um corpo doutrinário preexistente. E isso porque humanidade à sociedade e à instituição do Estado7.
devemos precisamente a Kant uma decisiva Por todos os lados, portanto, um mesmo suposto está
depuração das deficiências do contratualismo e, por atuando, um mesmo suposto está configurando o
essa via, também a mais incisiva apreensão do que modo como o surgir originário da comunidade é
esse mesmo contratualismo essencialmente signjfica surpreendido e interpretado – toda a comunidade
como aclaração da essência do político, para além das política deverá aparecer como um fim instrumental
ingenuidades e inconsistências que tantas vezes o em vista de fins últimos que têm não na comunidade,
desfiguraram na obra de seus antecessores. mas numa individualidade atomizada e
Olhemos primeiro a ingenuidade maior que egoisticamente compreendida, sua derradeira
percorre a obra dos clássicos do contratualismo. Ela é justificação. Toda a comunidade política será, por isso
mesmo, um fim condicionado à posição prévia de
sobretudo evidente no Segundo Tratado sobre o Governo outros fins formados num horizonte
Civil, de John Locke3. E, em substância, cifra-se nisto: o extracomunitário, fins esses em si mesmos
contrato é aí apresentado como lugar de passagem da contingentes, e terá por isso mesmo, também ela, uma
comunidade humana de um putativo “estado de imperatividade meramente condicional e
natureza” primitivo para o “estado civil”; mas porque o contingente. Em última análise, é a desconfiança, como
momento de passagem é sempre entendido como um traço de fundo da convivência humana, que a explica
ato, explícito e expresso, de consentimento efetivamente e torna necessária. Assim, o contrato e a instituição do
horizonte comunitário aparecem desde a raiz
ocorrido na história dos homens, toda a doutrina deve comprometidos com uma exigência de justiça e de
interpretar realisticamente estado de natureza e pacto defesa dos direitos que só se deixa compreender se a
civil, pô-los como um passado realmente acontecido e relação entre os homens se desenvolve sob o signo da
fazer depender a legitimidade do poder civil de um injúria e da desconfiança recíproca. A oposição do
consentimento original cuja efetividade e eficácia contrato ao mito romântico da “verdadeira
diferida, geração após geração, é impossível justificar. comunidade”, bem como a contraposição do direito a
Já David Hume fora o crítico percuciente dessa uma putativa ordo amoris, têm aqui as bases de onde
ingenuidade de fundo4. Se ela é, porém, ainda retiram sua força de atração e sua aparente
defensável, dentro dos supostos do contratualismo, plausibilidade.
por referência à ideia de um consentimento implícito, Breve mas decisiva é, nesse ponto, a lição de um
já a incoerência em que labora aparece como uma texto kantiano de 1793: “este contrato (chamado
debilidade difícil de extirpar, uma debilidade que é, contractusoriginarius ou pactum sociale) (...) não se deve de
portanto, absolutamente comprometedora. De fato, modo algum pressupor como um fato (…) mas é uma
que algo como um “contrato”, fundado num mútuo simples ideia da razão, a qual tem, no entanto, a sua
consentimento, ocorra como acontecimento real na realidade (prática) indubitável (...)”8. Uma anotação
história das comunidades humanas não só significa, kantiana reforça essa tese: “o contractus originarius não é o
princípio de esclarecimento da origem do status civilis,
então, que o indivíduo está colhido numa mas sim como ele deve ser”9.
anterioridade de princípio relativamente à
comunidade civil, mas ainda que essa última se Para sopesar o significado dessa asserção
deverá construir na órbita de uma racionalidade kantiana, a primeira e mais imediata chave está na
estritamente individualista e por referência a distinção entre instituição primitiva e instituição
finalidades em si mesmas empíricas e contingentes. originária10. O pacto instaurador é dito “originário”. Mas
Em Thomas Hobbes, é a insociabilidade e o medo,

214 215
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

o conceito do originário não se deixa amalgamar com o comunidade, ou condicioná-la no seu teor. Desse
conceito de primitividade. Se “primitivo”, o pacto seria o modo, estatuir que a comunidade política “advém”
fato primeiro ou o primeiro acontecimento da história (uma adveniência que não é, porém, um acontecer
fenomênica da comunidade humana; seria, pois, empírico, mas uma gênese racional e pura) sob a forma
enquanto res facta, individualizável por referência a um de um “pacto” significa dizer que só pensada como um
espaço e a um tempo determinados; seria, portanto, um pacto ela se torna inteligível naquilo que em si mesma é,
simples acontecimento e, como acontecimento, algo sejam, aliás, quais forem as formas de sua efetivação
destituído de caráter normativo ou de qualquer fenomênica no horizonte limitado de cada
imperatividade para além de uma “exemplaridade” comunidade humana.
suposta e para sempre controvertível. Mas, porque Na figura do “pacto originário” está o modo
originário, a precedência do pacto relativamente à kantiano de desfazer a ingenuidade maior do
comunidade política nada tem a ver com a ordem de contratualismo. Mas nela está sobretudo o modo
razões que fariam dele um suposto – mas para sempre kantiano de cortar cerce a incoerência de fundo em
inverificável – “acontecimento primeiro”. As razões da que esse mesmo contratualismo havia laborado.
originariedade, seu horizonte próprio, são de uma outra Contra Hobbes, Kant dirá que a comunidade
ordem, e de uma ordem inteiramente diversa. O pacto é política se institui como um fim em si mesmo, quer
originário porque é como pacto ou sob a figura de um dizer, por uma imperatividade incondicional, que
pacto que a comunidade política é pensável e não se deixa compreender por retrorreferência a
racionalmente compreensível. E essa genealogia racional da qualquer ordem de finalidades supostamente
comunidade política vale, eo ipso, como determinação do anterior e cuja sede só poderia ser o indivíduo no
que ela deve ser. Ante a ingenuidade de um Locke, mas seu ser extracomunitário”11. Ao denunciar esta
também de um Hobbes ou de um Rousseau, o traço de debilidade na posição hobbesiana – uma debilidade
fundo do contratualismo kantiano está no tríplice que não é, bem entendido, exclusiva de Thomas
dispositivo que permite pensar a instauração da Hobbes –, Kant surpreende a gênese da comunidade
comunidade política por referência à ideia de um pacto política como respondimento a um imperativo
originário; essa originariedade, por referência a uma racional, quer dizer, a um imperativo que sempre se
exigência da pura razão; a razão pura, por referência a põe como em si mesmo universal e necessário por
seu poder ou eficácia prática. A comunidade política sobre a órbita de todas as motivações individuais
não se assenta mais sobre os desígnios – contingentes ou empíricas, sejam elas traços gerais e
circunstanciais ou permanentes, mas para sempre permanentes de uma suposta “naturezahumana”.
Essa é a primeira lição do texto kantiano. Ela
empíricos e contingentes – de qualquer “natureza prepara e torna compreensível esta segunda, que é, na
humana”. Isso significa que, como exigência racional, realidade, aquela mesma de onde partíramos:
a comunidade política deve ser construída no suposto pensada na sua gênese racional sob a figura de um
da liberdade e igualdade dos indivíduos em “pacto originário”, a comunidade política vem
comunidade. Ela, como forma de uma convivência mostrar-se como lugar de efetivação da ideia de
entre indivíduos iguais em sua liberdade, é válida e liberdade. Kant pensa a liberdade como autonomia; o
indivíduo, como vontade autolegisladora. A aparente
estende sua imperatividade a qualquer ser racional, e limitação da determinação kantiana da liberdade está
não privativa ou exclusivamente àqueles seres em que a esfera do político, na qual ela concretamente
racionais que contêm as determinações empíricas do se efetiva, define-se em contraposição às esferas
“humano”, sejam quais forem essas últimas. Assim, privada e doméstica, em que ela parece não ser já o
nenhuma suposta “desigualdade natural” entre os princípio enformador e normativo. Essa limitação de
homens (nomeadamente, mas não em exclusivo, princípio do âmbito da liberdade à cidadania política
parece, pois, em Kant, colher o indivíduo em sua
aquela suposta desigualdade “natural” entre homem e abstração jurídico-política e ser incapaz de descer até
mulher) pode limitar a forma pura, racional, de uma

216 217
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

a concreção da via social e privada. Ora, justamente figuras da própria racionalidade, da cidadania e em
porque essa última é o lugar onde estão atuantes, geral da cultura como outros tantos dispositivos de uma
segundo a própria letra kantiana, “relações de permanente dominação do “masculino”14.
desigualdade e dominação”12, a liberdade na cidadania Que, em Kant, a questão esteja assim
política tenderá a aparecer como um princípio inane e decidida, que as categorias da liberdade e da
sem eficácia. De fato, ela não suprime, ela deixa antes cidadania apenas sirvam para legitimar o fato bruto,
florescer a dominação, deixa-a subsistir como um fato, nunca radicalmente perscrutado em sua amplitude
porque esta se passa numa esfera que ela própria põe e alcance, da dominação, tal é justamente a aparência
como lhe sendo exterior. Mas talvez haja ainda mais: ou o falso juízo que urge submeter a um escrutínio
Kant seria, na realidade, o pensador que entenderia a mais atento. Aí se joga, segundo pensamos, a reta
cidadania política ativa como apenas outorgável compreensão do que faz de Kant um interlocutor
àqueles que, nas esferas social e doméstica, não essencial do discurso “feminista” e um fator decisivo
estivessem presos a qualquer laço de dependência que na própria posição da “questão feminina”.
pusesse sua vontade sob o domínio da vontade de
outrem. Justamente por isso, um texto da Doutrina do
Direito recusará explicitamente a cidadania ativa ou a III. A cidadania como projeto e como tarefa
personalidade civil aos domésticos, a todos aqueles
que põem sua força de trabalho a serviço de um outro O que parece ser a debilidade maior do
e, em geral, a “(...) todas as mulheres”13, como se estas pensamento kantiano é, segundo pensamos, aquilo
apenas encontrassem seu verdadeiro rosto na mesmo de onde retira sua força mais estuante. A
subordinação ao masculino e no acantonamento à suposta debilidade estava justamente nessa
esfera familiar e doméstica. A gravidade dessa linha “abstração jurídico-política” na construção da
de reflexão é fácil de divisar: não se trata apenas de individualidade e no modo como, por ela, a
a liberdade, como cidadania política, conviver por liberdade, como significado de fundo da emergência
todos os lados com o fato da dominação nas esferas do político, via-se limitada pelo fato oposto da
pré-políticas da sociedade e da família; agora, será a dominação nas esferas societária e doméstica, que
própria cidadania política que se encontra limitada formavam a tecitura pré-política de onde a própria
pelo fato pré-político da dominação. A liberdade, esfera do político deveria emergir.
enquanto cidadania, será doravante apenas residual. Outros são, porém, o ritmo e o modo do
Em aparência, Kant seria, pois, o autor que tornaria pensar kantiano. O gesto liminar que o subtende
possível uma comunidade em que toda a liberdade do está precisamente na recusa de qualquer derivação
cidadão se eclipsasse pelo fato universal da do direito a partir do fato. A afirmação kantiana, por
dominação. Aí onde isso sucedesse, o político toda parte repetida, é justamente a de que a
cristalizaria apenas as relações pré-políticas de facticidade daquilo que é não fornece o princípio ou
dominação, expressá-las-ia como recusa sistemática norma para a determinação daquilo que deve ser15.
da cidadania e abriria, assim, as portas a um Trata-se, prima facie, de duas legalidades. Mas, mais
despotismo universal. profundamente, há de se dizer que esse é um domínio
O ponto aqui decisivo está em como conjugar no qual a legalidade segundo a natureza não se pode vir
(não: conciliar) kantianamente o princípio da liberdade contrapor à legalidade segundo a liberdade e limitá-la
como cidadania política com o fato da dominação na esfera em seu alcance. Na esfera política, não haverá nenhum
pré-política. Que o ponto de vista kantiano pareça ser o “direito” para o fato, mas tudo o que aí é, porque diz
de uma limitação da cidadania pela dominação, que a respeito ao humano tal como emerge sob a ideia de
tese de Kant pareça ser a da não-dependência, como liberdade, resultará do plano normativo do dever-ser e
fato, para a elevação à cidadania política, em vez de uma instaurar-se-á como legalidade que retira da liberdade
crítica do fato da dominação à luz do princípio da cidadania seu único princípio construtor. O “dever” não está,
política – tudo isso dá certamente oportunidade ao assim, limitado em seu alcance pela positividade do que
discurso feminista para ler Kant como expressão de uma factualmente o contradiz. E o “dever-ser” não
liberdade e cidadania ainda e só “masculinamente” permanece, perante a positividade daquilo que é, como
pensadas. Em suas versões mais radicalizadas, a crítica um simples desígnio inane e sem eficácia. Porque, na
“feminista” deve ir ainda mais além e identificar as esfera humana, é a legalidade segundo a liberdade que
deve ser constitutiva, que deve sobrepor-se e evacuar

218 219
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

tudo o que não esteja de acordo com seu conceito, o encontrar que o limite ou o diminua na sua eficácia
“dever ser” será, aí, sinônimo do que há de ser, quer e no alcance universal de sua legalidade. A esfera
dizer, daquilo que compromete a humanidade
consciente de si numa tarefa de progresso e de política abre-se quando ao conceito de uma
realização prática configuradora de futuro. vontade livre como autofinalidade e
A ideia de uma gênese racional como exibição do autodeterminação se vem conjugar o conceito de
originário é, nesse ponto, o fator determinante e a uma outra vontade que não está apenas perante ela,
melhor chave para a plena inteligência do mas com ela deve entrar na unidade de um “nós”
significado último do pensar kantiano. A esfera comunitário. Colhida nesse momento de sua
política não deve ser pensada como emergindo a emergência originária (ou de sua “gênese racional
partir de uma esfera pré-política, societária ou e pura”), a esfera do político será justamente o lugar
doméstica, simplesmente admitida e suposta de da coexistência das liberdades e da instauração de
antemão como um “facto primitivo” qualquer. Não uma ordem que, nesse jogo das relações recíprocas,
deve, por isso mesmo, simplesmente cristalizar, ao deixe-as interagir como liberdades17. De fato, aí onde
emergir, as relações de força, de desigualdade e de o encontro das liberdades se transmutou na
dominação pré-constituídas na esfera societária. A submissão de uma a outra, aí onde as liberdades
lógica interna do modo kantiano de pensar consiste emergem como força de dominação, aí elas surgem,
antes na recusa de toda e qualquer primitividade portanto, sob uma forma que desde o início as
do que simplesmente “é” e na regressão do fato até suprime, porque essa transmutação do interagir das
às condições de direito de sua própria liberdades no jogo tensional do afrontamento, da
possibilidade. Pois aqui, tal como na esfera força e da dominação é, eo ipso, a supressão da
teorética, há também “conceitos usurpados, (...) própria liberdade, o evacuar do humano por sua
que circulam certamente com indulgência quase degradação ao nível de uma “coisa” e, por aí, o
geral, mas acerca dos quais, por vezes, levanta-se a evacuar do que deve dar a forma de fundo de toda
interrogação: quid juris?”16 – tais são os conceitos de e qualquer comunidade política.
desigualdade e de dominação, assentes no jogo da Pensado originariamente e segundo sua reta
necessidade natural e nas relações tensionais entre acepção kantiana, a comunidade política não se
os homens, conceitos cuja ilegitimidade adentro da instaurará, portanto, a partir de uma vinculação
esfera política a questão quid juris?, a eles apontada, mais primitiva entre os indivíduos, seja ela a
é suficiente para exibir. Assim, kantianamente família, as relações societárias em geral ou
pensado (um modo de pensar que, neste posto, far- mesmo a unidade coletiva de um todo nacional.
se-á em larga medida contra a própria letra de A esfera política retira antes sua origem e sua
alguns textos kantianos), o político é em si forma da ideia de uma coexistência possível das
primeiro, porque é justamente o conceito de uma liberdades, de uma união das liberdades que as
comunidade política que primeiramente emerge na potencie na sua interação, em vez de as suprimir.
ordem de uma derivação racional apontada à Por isso mesmo, a determinação kantiana da
exibição do originário. Pois é precisamente nela esfera política deve ser lida como negação
que a humanidade surge pela primeira vez em seu consequente e radical de qualquer laço vinculativo
traço específico: como instauração e mútuo instituído sobre o fato “primitivo” da força, da
reconhecimento da liberdade, como comunidade que desigualdade ou da dominação. E o essencial não é,
se constrói, que se edifica sob o princípio único de aqui, que essa força explicitamente se exerça,
uma legalidade segundo a liberdade. O político, coisa que supõe, do outro lado, uma vontade
como esfera primária, nada deve pressupor, expressa de resistência e seu reconhecimento
portanto, “antes” ou “fora” de si, nada pode como injusta. Aquela dominação, insidiosa ou

220 221
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

sub-reptícia, que não é sentida como dominação apenas “externa”19. A comunidade política é, assim, em
e que, por isso, não carece de um exercício última instância, ainda e sempre um “mecanismo” sob
um princípio de coação, um arranjo exterior do jogo
explícito de força, mesmo essa deverá aparecer ativo e reativo das liberdades, mas não o lugar de sua
como contraditória com o conceito de uma plena efetivação. As relações entre política e moralidade
comunidade política – porque em si mesma são, em Kant, complexas e nem sempre totalmente
negadora do humano – e ser consequentemente coerentes. Quase incidentalmente, a Ideia de uma História
evacuada do seu horizonte. É precisamente esse o Universal com um propósito cosmopolita sugere que a
edificação de uma “constituição civil perfeitamente
significado do programa kantiano de uma educação justa” supõe o investimento de uma “boa vontade”, de
para a liberdade, como projeto global de emancipação tal modo que o problema político surge como
humana. E se essa tese kantiana for tomada subsidiário do problema moral20. Em vivo contraste, Paz
radicalmente, há mesmo a dizer que nada há como perpétua sublinha a tese, só em aparência paradoxal, de
uma individualidade humana “antes” da emergência que o problema político é solúvel mesmo para um “povo
de demônios”, quer dizer, para uma humanidade
da esfera política. Porque só nela e por ela cada destituída de qualquer disposição para a moralidade21.
indivíduo pode emergir na sua liberdade, porque só Não importa aqui entrar no dédalo das
por ela vem a liberdade a ser determinação essencial posições kantianas a respeito do laço entre política e
dos indivíduos humanos em comunidade; aí onde ela moral22; interessa antes e sobretudo relevar este ponto
faltasse eclipsar-se-ia também aquilo que é traço de essencial: em sua meditação sobre a essência do
fundo caracterizador da sua humanidade. No plano político como espaço de emergência dos homens,
factual, o político será sempre algo que se institui todo vínculo comunitário será para ser construído
numa história empírica e a partir de um espaço sobre a liberdade, retirará sua força obrigante da ideia de
comunitário pré-político. Essa é, certamente, a lição um consentimento racional e deverá, por isso, fazer
de uma história apenas ocupada com o registro de um suprimir quaisquer formas de existência comunitária
acontecer factual e empírico. Uma história que, por construídas sobre as formas contrárias da
isso mesmo, está totalmente privada do ponto de vista subordinação e da dominação. E esse não é um
que dá significado e unidade de conjunto a esse princípio que só diga respeito, privativamente, à
mesmo acontecer. Mas se essa mesma história esfera do político. Retamente considerado, ele
“considerar no seu conjunto o jogo da liberdade da significa antes que a totalidade das relações comunitárias
terá aí o fundamento único da sua justiça e da sua
vontade humana (...)”18: se ela se puser, por isso, não
legitimidade. No plano factual e empírico, a
no plano meramente factual, mas no plano de que é desigualdade emergente das esferas doméstica e
originário, a esfera do político apresentar-se-á como social precede certamente a adveniência de uma
esfera sempre primeira, porque só por ela a própria comunidade política edificada sobre o princípio da
empiricidade pode cobrar sentido e unidade de liberdade. A própria figura de um “chefe de Estado”
conjunto enquanto história da liberdade ou do progresso da que detém o corpo político como propriedade sua
humanidade na efetivação crítico-prática de uma plena acusa a preexistência dos fatos da força e da
consciência de si. dominação como pano de fundo das relações entre os
É sabido como, em Kant, o tema da liberdade homens. Mas, se o fato bruto é visto sob o ângulo da
vem sobredeterminar a dualidade teorética do exigência racional de liberdade, então ele torna-se
fenômeno e do númeno. É sabido como tudo culmina na
ideia de um Reino dos Fins ou de uma Comunidade pela primeira vez reconhecível como tal fato, e esse
Ética, qual corpus mysticum indiferente às vicissitudes da reconhecimento vale, do mesmo lance, como
história, do direito e da política. É sabido, por fim, como, denúncia de sua intrínseca ilegitimidade ou como o
em Kant, a liberdade em sede moral subalterniza o peso de um anacronismo para uma humanidade
conceito de liberdade política, acantona esta na esfera da lançada nos caminhos de sua própria emancipação.
“simples legalidade” e a determina como uma liberdade

222 223
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Eis a razão por que a doutrina kantiana sobre a imperativos privativamente “femininos”, mas
essência do político se apresenta como instrumento imperativos de humanidade. Não na reivindicação de uma
eficaz para uma crítica e uma reconfiguração radicais putativa “especificidade” ou “identidade” do feminino,
não na promessa mirífica de uma humanidade “outra”,
do existente. Tanto quanto cada indivíduo tome a si de uma outra forma da cultura, da civilização e da
mesmo como sujeito de liberdade, tanto quanto a racionalidade, mas antes sob a bandeira de uma plena
consciência de si se produza a partir desse princípio, efetivação do projeto de civilização e de
tanto mais as relações de força, de subjugação e de racionalidade, que tomou forma na cultura
dominação que entretecem suas formas empíricas de europeia e ocidental, deve a crítica feminista vir se
existência aparecerão como contraditórias com o fundamentar.
próprio conceito do humano e com a humanidade De fato, foi possível argumentar que a
subordinação ou menorização de algo como o
realizada na sua pessoa. Não se trata, assim, da ficção “feminino” continuaria a operar, mesmo quando as
de uma comunidade instituindo-se ab ovo e criando mulheres se veem reconhecidas como cidadãs livres e
explícita e conscientemente todo o complexo de iguais. É que, na emergência da esfera política em
relações que estruturam o seu viver; trata-se antes de oposição ao domínio privado e doméstico, por força
pôr a liberdade como norma para aferir a justiça de dessa mesma oposição, as virtudes da cooperação, da
todas essas relações humanas preexistentes, de solidariedade e da existência partilhada em laços de
introduzir o princípio da liberdade como critério que responsabilidade mútua teriam sido construídas como
apenas “privadas”, ao mesmo tempo em que a mulher
as permite julgar e, por essa via, realizar uma ficaria aprisionada a essa esfera, de tal modo que a
consciência de si que é, ao mesmo tempo, avaliação e virtude “cívica” ou “política” se viria a construir, em
transformação crítico-prática do existente projetando- contraste, por referência ao ideal “masculino” da
se sobre um horizonte de futuro. autonomia e da independência. No emergir dessas
Como pode a dominação vir a ser dimensões “privadas” para a edificação de uma nova e
precisamente percepcionada como dominação? Como outra cidadania estaria, portanto, o essencial da crítica
pode ela emergir da invisibilidade primeira em que “feminista”, já que o ideal de existência cívica por toda
opera para a visibilidade que a reconhece e a parte atuante seria precisamente o instrumento de uma
denuncia? Eis as perguntas de onde partíramos. O permanente dominação.
discurso “feminista” dá voz ao fato da dominação. Ele é Relativamente a isso, bastará talvez o argumento
o lugar de sua visibilidade como tal dominação. Mas o da relatividade, pois parece haver aqui a suposição de
discurso feminista não pode por si mesmo dar ainda algo como uma “essência” fixa e estável do “feminino”.
conta do modo como, para ele, essa dominação se O fato da dominação construída sob a diferença homem-
torna por si mesma apreensível e visível. Que a teia mulher é um dado universal, que rompe os limites da
complexa das relações humanas se tenha, de fato, cultura europeia e ocidental. Nessa multiplicidade, a
quase sempre erguido sobre a desigualdade “identidade” do feminino encontra-se em cada caso
masculino-feminino, isso é, justamente, apenas um construída de formas diversas e não coincidentes. Desse
fato bruto e um dado mudo na sua positividade. Que, modo, se um projeto de emancipação tivesse de se
por sobre isso, a exibição desse fato venha a constituir- fundar na circunscrição de algo como uma “essência” do
se como um propósito de transformação prática do feminino, esta teria de cada vez um teor diverso, de tal
existente, isso só será por sua vez possível se a própria maneira que esse mesmo projeto não poderia jamais
percepção do fato na sua positividade estiver revestir-se de uma amplitude universal. Se ele pode vir
enformada por exigências normativas e um quadro a tê-la, será, então, pelo recuo até o gênero humano e os
prévio de valores. De onde ou a partir de que posição direitos de toda a humanidade, e não pela fixação em
essa crítica é possível – eis justamente a questão que o qualquer particularismo de essência que faça da questão
discurso feminista já não coloca e já não introduz na do feminino uma questão apenas feminina.
sua autocompreensão. Mas é precisamente na Efetivamente – e tanto quanto Kant seja aqui
compreensão dessa exigência que o discurso feminista um interlocutor –, trata-se, co m iss o, de um desígnio
pode chamar Kant como um interlocutor essencial. único – e co nsensual – de humanidade, e não de um
Na verdade, de Kant esta é a lição crucial: a particularismo que rompa a unidade do gênero
crítica “feminista” do fato da dominação não investe humano e que só se possa afirmar numa lógica de

224 225
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

oposição e de contradominação. Que as condições de circunstância de ser largamente a partir de Kant, a


possibilidade da crítica feminista sejam imperativos partir da ideia kantiana do político que todas essas
de uma humanidade em busca de si própria, que essa lutas se podem em grande medida compreender nos
crítica, assim alicerçada e desenvolvida, se possa seus motivos últimos, internamente se justificar e
assumir como projeto universal e consensual de todo assumir-se como um projeto convocando toda a
o gênero humano – eis o significado mais essencial da humanidade. Pois é justamente em sua ancoragem no
meditação kantiana sobre a essência do político, sobre gênero humano e nos direitos de toda a humanidade que o
a compreensão do humano como liberdade, sobre, fato da dominação pode aparecer simultaneamente
numa palavra, a circunscrição originária do horizonte como tal fato e como um fato que só emerge, que só é
comunitário como lugar de emergência do jogo externo enquanto tal reconhecível na medida em que fica
das liberdades. Assim pensada, a liberdade não é algo desde o início contraposto à forma originária (quer
como um atributo fixo e de uma vez por todas dizer: racional) de toda a humana comunidade.
instituído. A liberdade é projeto de libertação. O mesmo é
dizer: veículo de uma perpétua atividade de exame e
reconfiguração do existente. Mais ainda, apenas numa Notas
meditação kantiana pode a questão do feminino obter
sua completa significação. As mutações na cultura “Three central questions drive feminist social science and political
pelas quais o fato da dominação vem a ser philosophy: ‘How did male domination arise?’ ‘Why was it so widely
reconhecido e denunciado não são, kantianamente accepted?’ and ‘What are its consequences?’”, Jane Mansbridge e Susan
Okin, “Feminism”, A Companion to Contemporary Political Philosophy,
pensadas, mutações contingentes e passageiras que Oxford, Blackwell Publishers, 1993, p. 271.
possam vir a ser apagadas por mutações em sentido “Ein Frauenzimmer, das den Kopf voll Griechisch hat, wie die Frau
contrário. Dacier, oder über die Mechanik gründliche Streitigkeiten fúhrt, wie die
Se o horizonte da comunidade política é o Marquisin von Chastelet, mag nur immerhin noch einen Bart dazu haben;
reino dos homens enquanto sujeitos da liberdade, se denn dieser würde víelleicht die Míene des Tiefsinns noch kentlicher
ausdrücken, um welchen sie sich bewerben.” Beobachtungen über das Gefühl
essa é a ideia reitora na compreensão da história des Schönen und Erhabenen, Ak. II, pp. 229-230.
empírica das sociedades humanas, então o “Tis often asked as a mighty Objection, Where are, or ever were, there any
reconhecimento e a crítica consequente da dominação Men in such a State of Nature? To which it may suffice as an answer at
vale eo ipso como progresso adquirido por toda a present; Thatsince allPrinces and RulersoflndependentGovernments all
through the World, are in a State of Nature, tis plain the World never was,
humanidade no caminho da civilização. nor never will be, without Numbers of Men in that State.” John Locke,
Kantianamente pensado, o diagnóstico de toda a Two Treatises of Government, Book II, § 4, Cambridge, Cambridge
dominação, sua percepção como de raiz incompatível University Press, 1960, p. 276. Esse era já o argumento final de
com a essência do humano será via para a formação Hobbes. Ver, p. ex., Leviathan , Cap. XIII, in fine.
de uma verdadeira consciência de si humana e modo “But the contract, on wich government is founded, is said to be the original
contract; and consequently may be supposed too old to fall under the
como progressivamente se configura uma existência knowledge of the present generation. lf the agreement, by which savage
comunitária que plenamente a restitua. men first associated and conjoined their force, be here meant, this
Olhemos num relance as maiores lutas que acknowledged to be real; but being so ancient, and being obliterated by
atravessaram este século sob a bandeira da thousand changes of government and princes, it cannot now be supposed
to retain any authority. (...) Besides that this supposes the consent of the
emancipação feminina: a reivindicação do direito à fathers to bind the children, even to the most remote generations (...),
cidadania política, a libertação da esfera doméstica e o besides this, I say, it is not justified by history or experience in any age or
acesso ao mundo do trabalho, a igualdade de estatuto country of the worlds.” D. Hume, Of the Original Contract, Stephen
no seio familiar – tudo isso, e mais ainda, não carece Copley and Andrew Edgar (eds.), David Hume, Selected Essays,
Oxford, Oxford University Press, 1993, pp. 278-279. E
para sua justificação interna de outras exigências que ainda: “It is strange, that an act of mind, which every individual is
as encontradas na meditação kantiana sobre a supposed to have formed, and after he came to the use of reason too,
essência do político. Kant, o homem, não é decerto otherwise it could have no authority; that this act, I say, should be so much
partícipe ou voz invocável no fragor desses combates. unknown to all of them, that, over the face of the whole earth, there scarcely
remain any traces of rnemory of it”, idem.
Ninguém está acima de sua época; mas ninguém Ver Leviathan, Cap. XVII.
pode, por isso mesmo, convocar uma voz à distância Ver Second Treatise, Cap. VII, §88.
de dois séculos sem vício de anacronismo. Sejam Ver Le Contrat Social, Livro I, Cap, VI.
quais forem as limitações ou debilidades da doutrina Über den Gemeinspruch...: “Allein dieser Vertrag (contractus originarius
kantiana positiva no que diga respeito a isso, o que oder pactum sociale gennant) (...) ist keinesweges als ein Faktum
assoma como ponto decisivo é precisamente a vorauszusetzen nötig; (...) Sondern es ist eine blosse Idee der Vernunft, die

226 227
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

aber ihre unbezweifelte (praktische) Realität hat”. Ak. VIII, 297. Frage: quid juris, in Anspruch genommen werden (...)”. K.r. V., § 13,
“Der contractus originarius ist nicht das Princip der Erklaerung des Ak. III, p. 99.
Ursprungs des status civilis, sondern wie em seyn soll.” Refl. 7740, Ak. É esse o lugar de gênese do conceito puro do direito. V.
XIX, p. 504. Rechtslehre: “Das Recht ist also der Inbegriff der Bedingungen, inter denen
Um texto da Metaphysikder Sitten, Rechtslehre ,§ 6, Ak. VI , p. 251, die Willkür des einen mit der Willkür des andern nach einem allgemeinen
a propósito da apropriação, esclarece o sentido da distinção entre Gesetze der Freiheit zusammen vereinigt werden kann ”. Enleitung, §
o originário e o primitivo: “Diese ursprüngliche Gemeinschaft des B, Ak. VI, p. 230.
Bodens, und hiemit auch der Sachen auf demselben (communio fundi “Die Geschicht (...) lässt dennoch von sich hoffen: dass, wenn sie das Spiel
originaria), ist eine Idee, welche objektive (rechtlich-praktische) Realität der Freiheit des menschlichen Willens im grossen betrachtet, sie einen
hat, und ist ganz und gar von der uranfänglichen (communio primaeva) regelmässigen Gang derselben entdecken könne”. Idee zu einer allgemeinen
unterschieden (...)”.
“Verbindung vieler zu irgend einem (gemeinsamen) Zwecke (den alle haben) Geschichte in weltbürgerlicher , Absicht, Ak. VIII, 17.
ist in allen Gesellschaftsverträgen anzutreffen; aber Verbindung derselben, “Der Begriff des Rechts (...) betrifft (...) nur das äussere und zwar
die an sich selbst Zweck ist (den ein jeder haben soll), mithin die in einem praktische Verhältnis einer Person gegen eine andere, sofern ihre
jeden äusseren Verhältnisse der Menschen überhaupt, welche nicht umhin Handlungen als Facta
können, in wechselseitigen Einfluss auf einander zu geraten, unbedingte aufeinander (unmittelbar, oder mittelbar) Einfluss haben können.”
und erste Pflicht ist.” Über den Gemeinspruch…, Ak. VIII, 289. Rechstlehre, Einleitung, § B, Ak. VI, p. 230.
Ver Rechrslehre, em particular o capítulo sobre um suposto “(...) dass hiezu richtige Begriffe von der Natur einer möglichen
“direito pessoal segundo um tipo coisal”, § 22 e ss.: “Dieses Recht Verfassung, grosse durch viel Weltläufe geübte Erfahrenheit, und, über das
ist das Besitzes einer äusseren Gegenstandes als einer Sache und des alles, ein zur Annehmung derselben vorbereiteter guter Wille erfordert
Gebrauchs desselben als einer Person”. Assim, “Die Erwerbung nach wird.” Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht,
diesem Gesetz ist dem Gegenstande nach dreierlei: Der Man erwirbt ein Ak. VIII, 23.
Weib, das Paar erwibt Kinder und die Familie Gesinde”. Ak. VI, pp. “Das Problem der Staatserrichtungist, so hart wie es auch klingt, selbst für
276-277. Ver ainda idem , § 4, nomeadamente: “ich kann ein W eib, ein VoIk von Teufeln (...) auflösbar (...)”. Zum Ewigen Frieden , Erster
ein K ind, ein G esinde, und überhaupt eine andere Person nicht darum als Zusatz, Ak. VIII. 366.
Meine nennen, weil ich jetzt, als zu meinem Hauswesen gehörig, befehlige, O texto de Paz perpétua fornece, aliás, elementos decisivos
oder im Zwinger und in meiner Gewalt und Besitz habe, sondern wenn ich, para seu tratamento.
ob sie sich gleich dem Zwange entzogen haben, und nich sie also nicht
(empirisch) besitze. dennoch sagen kann, ich besitze sie durch meinen blossen
Willen, so lange sie irgendwo oder irgendwenn existieren, mithin bloss-
rechtlich; sie gehören also zu meiner Habe nur alsdann, wenn und so fern
ich das letztere behaupten kann ”. Ak. VI, p. 248.
“Nur die Fähigkeit der Stimmgebung macht die Qualifikation zum
Staatsbürger aus; (...) Die letztere Qualität macht aber die Unterscheidung
des aktiven vom passiven Staatsbürger notwendig (…). Folgende
Beispiele können dazu dienen, diese Schwierigkeit zu heben: Der Geselle bei
einem Kaufmann, oder bei einem Handwerker;derDienstbote (nicht der im
Dienste des Staats setht); der Unmündige (naturaliter vel civiliter); alles
Frauenzimmer, und überhaupt jedermann, der nicht nach eigenem Betrieb,
sondern nach der Verfügung anderer (ausser des Staats), genötig ist, seine
Existenz (Nahrung und Schutz) zu erhalten, entbehrt der bürgerlichen
Persönlichkeit, und seine Existenz ist gleichsam Inhärenz”. Rechtslehre,
§ 46, Ak. VI, p. 314 (subl. nossos).
V., p. ex., G. Gilligan, In a DifferentVoice , CambridgeMass.,
Harvard University Press, 1982, e Genevieve Lloyd, The Man
of Reason, London, Routledge, 19932.
Um texto da Crítica o diz já com toda a clareza: “Man siehet
leicht, dass wenn alle Kausalität in der Sinnenwelt bloss Natur wäre, so
würde jede Begebenheit durch eine andere in der Zeit nach notwendigen
Gesetzen bestimmt sein, und mithin, da die Erscheinungen, so fern sie
die Willkür bestimmen, jede Handlung als ihren natürlichen Erfolg
notwendig machen müssten, so würde die Aufhebung der
transzendentalen Freiheit zugleich alle praktische Freiheit vertilgen. Denn
diese setzt voraus, dass, obgleich etwas nicht geschehen ist, es doch habe
geschehen sollen, und seine Ursache in der Erscheinung also nicht so
bestimmend war, dass nicht in unserer Willkür eine Kausalität liege,
unabhängig von jenen Naturursachen und selbst wider ihre Gewalt und
Einfluss etwas hervorzubringen, was in der Zeitordnung nach empirischen
Gesetzen bestimmt ist, mithin eine Reihe von Begebenheiten ganz von selbst
anzufangen”. K.r. V, Auflösung der dritten Antinomie, Ak. III, p.
364.
“Es gibt indessem auch usurpierte Begriffe, (...) die zwar mit fast
allgemeiner Nachsicht herumlaufen, aber doch bisweilen durch die

228 229
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

A QUEDA DE ADÃO: O PAPEL DA


MULHER
NO “CETICISMO ÉTICO” DE RUSSELL
MARIA TERESA XIMENEZ
(Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa)

Com o texto “A queda de Adão: o papel da


mulher no ‘cepticismo ético’ de Russell”, pretende-se dar
a conhecer algumas linhas gerais do pensamento de
um dos grandes filósofos de nosso tempo sobre a
mulher e seu papel na comunidade. Esse pensamento
(ou reflexão) brota do interior de uma ética social
inovadoramente proposta para se contrapor às morais
tradicionais. Política, sociedade e comunidade são os
eixos fundamentais que enquadram essas reflexões de
Russell.
Centramo-nos, para isso, apenas em
algumas de suas obras que destacam esse
pensamento, a saber:

Principles of Social Reconstruction (1916);


Marriage and Morals (1929); e
Human Society in Ethics and Politics (1954).
Noutras obras como Philosophical Ideas (1910),
Political Ideals (1917), Roads to Freedom (1918), On Education
(1925), Education and Social Order (1932) e Unpopular Essays
(1950), também recolhemos alguns elementos
importantes para essa reflexão.
O presente texto organiza-se em três pontos:
1. A queda de Adão;
2. Virtudes femininas, morais tradicionais – a
ruptura;
3. O caminho para uma nova Ética.
#

Vendo a mulher que o fruto da árvore devia ser


bom para comer (…) agarrou o fruto, comeu, deu

230 231
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

dele a seu marido, que estava junto dela, e ele período entre as duas Grandes Guerras,
também comeu. Então, abriram-se os olhos aos circunstância essa que terá marcado profundamente
dois e, reconhecendo que estavam nus, sua forma de se opor aos impulsos e à violência que
prenderam folhas de figueira umas às outras e conduzem à guerra, bem como reforçado a
colocaram-nas como se fossem cinturões à roda necessidade de procurar a paz.
dos seus rins (…).
Sua preocupação com a comunidade, com a
O Senhor Deus expulsou-o [a Adão] do jardim do sociedade em geral e com o modo como o público
Éden (…). Depois de ter expulsado o homem, pode ser influenciado pelo privado levou-o a refletir
colocou, a Oriente do jardim do Éden, querubins sobre a moral, as instituições sociais, o casamento e a
armados de espada flamejante para guardar o propor uma nova ética, que, na sua radicalidade, não
caminho da árvore da vida. deixou jamais de chocar a mentalidade conservadora
(Livro do Gênese, 3-4) do seu (e do nosso) tempo.
A moral tradicional, tão criticada por
Russell, viu, sobretudo a partir do cristianismo e das
considerações de São Paulo, o sexo como imoral e
1.A queda de Adão como uma nefasta consequência da queda de Adão.
Fora do casamento o sexo é pecado e, no seu
Conhecemos Bertrand Russell sobretudo por interior, corresponde a uma necessidade de
seus estudos em Filosofia, Lógica e no campo das procriação e de manutenção da espécie. Para a
Matemáticas, os quais o consagraram como um dos moral tradicional, a mulher ocupa um papel inferior
grandes filósofos do nosso século. na sociedade, diretamente relacionado com a
Mas o grande racionalista que foi Russell estrutura familiar patriarcal, alicerce da sociedade
quis também mostrar a seus leitores e críticos um ocidental, na qual a instituição do casamento e a
interesse pelas paixões humanas e pela Filosofia concepção de vida sexual ocupam um lugar de
enquanto atividade prática e deintervenção, como o relevo.
revelam seus textos sobre Ética, Política e Pedagogia. Marx e Freud tiveram o mérito de influenciar
A necessidade de considerar a Filosofia como o destino do mundo ocidental ao proporem, de
uma prática, como a possibilidade de passar à ação e forma inovadora e contestatária, uma análise social
como uma forma de intervir na esfera pública levou- baseada nas relações econômicas, no caso de Marx,
o a vários posicionamentos de natureza política e à e nas relações parentais e sexuais, no caso de Freud.
criação de uma escola (em Beacon Hill, Sussex) que Apesar de não seguir a perspectiva de
possibilitasse a efetiva realização de muitas de suas nenhum deles, Russell reconhece a importância
concepções sociais, comunitárias e educativas. desses pensadores para a construção de uma nova
Defensor de uma sociedade democrática, ética e para a destruição, nas suas grandes linhas de
Russell vê nas várias formas de luta pela liberdade
um modo de manter a possibilidade de força, da moral tradicional. E, por isso, o casamento
desenvolvimento do homem e de sua enquanto instituição social e a sexualidade enquanto
individualidade. relacionada com a vida da comunidade vão ser objeto
Profundamente antidogmático, crítico e de sua análise crítica, donde emergem considerações
contestador das normas e convenções sociais, seu sobre o papel da mulher após “a queda de Adão”.
envolvimento político levou-o a participar de É nesse contexto que se inscreve “o que Russell
campanhas a favor do sufrágio feminino e a tomar disse sobre as mulheres”. Não se pode propriamente
posições frontais contra a guerra, atitudes essas que dizer ou considerar que haja um pensamento
lhe acarretam pesadas consequências, específico de Russell sobre o feminino. Contudo, em
nomeadamente o afastamento do Trinity College sua análise social, centrada nas sucessivas
(em 1915), várias prisões por insubordinação (a modificações que ao longo dos tempos sofreram as
última das quais teve lugar quando já tinha 86 anos relações sociais, econômicas, familiares e sexuais,
de idade, em 1961) e a condenação por imoralidade revela-se o percurso do papel da mulher.
(nos Estados Unidos). A mulher ocupou um papel fundamental
Grande parte de sua vida decorreu no nessas modificações com sua luta pela emancipação,

232 233
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

pelo sufrágio e pela igualdade de direitos, luta que É nesse contexto que Russell, falando sobre o
deu origem a uma nova forma de encarar sua casamento e a moral, estabelece as bases de uma
sexualidade. nova ética sexual.
Saber até que ponto a luta das mulheres
influenciou e mesmo alterou a vida das diferentes
comunidades é uma das tarefas que, para Russell, 2.Virtudes femininas, morais tradicionais – a ruptura
impõem-se à nova ética.
Em seus textos, a reflexão sobre o papel da
mulher emerge da análise das questões sociais, Mediante a análise de várias sociedades e de
políticas e éticas, não se encontrando desligado destas. suas instituições sociais e políticas, Russell mostra
O papel da mulher na ética de Russell, ou, se como as relações familiares e sociais se intercruzam e
quisermos, em seu “ceticismo ético”, faz parte do evidencia o fato de as sociedades modernas se
projeto mais geral de reconstrução social e da fundarem na família patriarcal, tendo-se construído
proposta de uma nova ética social. Encontra-se, assim, uma ideia de “virtude feminina” possibilitadora da
relacionado com a análise social das relações entre o existência e da continuação desse modelo familiar.
Estado e o indivíduo e com a influência que o Em Marriage and Morals, obra de 1929, Russell
indivíduo tem na comunidade e na nova forma de ver refere-se às análises de Malinowski sobre as relações
a sociedade e a ética que a deve orientar. familiares nas ilhas Trobriand, composta por uma
Alguns episódios da vida de Russell são
reveladores da influência familiar em seu pensamento sociedade matriarcal em que o papel da mulher é
ético. De família aristocrata de tradição liberal, os pais visto de uma forma muito diferente daquele a que
de Russell podem-se considerar discípulos das ideias nos habituamos na sociedade ocidental.
de John Stuart Mill defendidas na obra Subjection of Os habitantes das ilhas Trobriand
Women. A mãe de Russell foi, ela própria, uma desconhecem o papel do pai, pois é apenas a linha
femininista, proferindo, em diversas ocasiões, feminina que é tida em conta. Nessas sociedades, o
discursos a favor do sufrágio feminino e tendo mesmo tio materno é a figura masculina que ocupa um lugar
dado à luz seu filho Bertrand assistida pela primeira de relevo e que tem autoridade sobre os filhos da
mulher médica (a dra. Garrett Anderson). irmã. Nessas sociedades, segundo evidencia Russell,
O projeto russelliano de reconstrução social as questões familiares estavam confinadas apenas às
passa pela tentativa de repor o liberalismo do século mulheres.
XIX de Bentham e de Stuart Mill. Pretende avançar As sociedades patriarcais ficaram marcadas
(em 1915) com uma teoria política que enfatise o por fatores de ordem econômica e religiosa
papel dos impulsos na vida humana e que poderosos, os quais alteraram substancialmente o
considere a necessidade de promover os impulsos papel das mulheres na sociedade e na família. O
criativos nas relações familiares, na educação e nas cristianismo, ao introduzir a noção de pecado e ao
instituições políticas. confinar as relações de natureza sexual ao
Os impulsos possessivos do homem casamento e à procriação, foi, em grande parte,
inscrevem-se em formas sociais como o Estado, a responsável por uma noção de virtude feminina que
guerra, a propriedade e a política, ao passo que os consignará à mulher o papel de dominada e
impulsos criativos se revelam na educação, na religião subjugada. Seu lugar é a casa e as tarefas que a ela se
e no casamento (v. Principles of Social Reconstruction, p. 7). ligam.
Mas, porque o impulso é cego e anárquico, Garantir a virtude feminina é, na sociedade
necessita ser guiado ou orientado por um sistema patriarcal, uma necessidade masculina de ter a
organizado, isto é, pelas diversas instituições de certeza da paternidade.
caráter político e por outras de caráter público. Com o cristianismo surgiu uma nova ética
A sociedade da época de Russell viu emergir sexual que restringe a liberdade da mulher, esta
uma nova forma de pensar a mulher e o seu papel sendo subjugada física e mentalmente em nome da
na comunidade. Por meio da luta pela emancipação virtude. A relação entre o homem e a mulher passou
e, aliando-se a esta, da descoberta e do uso dos a ser uma relação completamente desprovida de
contraceptivos, a mulher descobriu uma nova amor.
sexualidade, liberta do peso social da maternidade. Segundo Russell, as relações humanas só

234 235
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

poderão ser autênticas se não envolverem apenas casamento. O casamento funcionou, assim, como
impulsos e instintos, mas implicarem racionalidade. garantia da virtude feminina na moral tradicional.
Mesmo as relações sexuais, muitas vezes Russell critica a moral tradicional com sua
consideradas meramente instintivas, implicam, no concepção de virtude feminina como virtude
caso dos seres humanos, uma aprendizagem social e sexual, considerando, em Marriage and Morals, que a
racional que envolve o amor. ideia de imoralidade associada às relações sexuais
Ligada ao papel da mulher, tanto nas fora do casamento é aberrante e mesmo antinatural.
sociedades patriarcais como nas matriarcais, há Segundo Russell, qualquer relação, seja de que
uma ética sexual, ou um conjunto de regras e ordem for, entre seres humanos deve ser sempre
preceitos que constituem um código moral que rege livre; deve ser uma troca mútua. A mulher não
as relações familiares nessas sociedades. Para deverá ser socialmente penalizada pelo fato de
analisar qualquer ética sexual, dever-se-à tomar em desejar ter relações sexuais fora do casamento, desde
consideração o ponto de vista da família, o da lei, o que seja tida em conta a questão da maternidade.
da comunidade e o da população, dado que essa Isto é, o fato de haver relações sexuais das quais
questão tem implicações na vida pública, resulte descendência é um fato que não diz respeito
nomeadamente na procriação. apenas à esfera individual, mas é também uma
A virtude das mulheres foi garantida questão da sociedade e da comunidade. Nesse
essencialmente pela ética cristã, a qual acabou por sentido, reconhece que a descoberta e uso dos
justificar, em muitos casos, abusos de autoridade e contraceptivos foi fundamental, pois permitiu à
de poder, tornando a relação sexual uma relação mulher, solteira ou casada, ser livre em suas relações
entre dominador e dominado. Russell reconhece de natureza sexual.
que aatitude frente às mulheres veiculada pela ética Assim, a moral sexual da época de Russell
cristã e pela sociedade patriarcal tem servido para tem apenas uma condição transitória, devido à
manter a estrutura familiar e garantir a paternidade. emancipação das mulheres e à invenção dos
O problema da herança dos bens, da sucessão,
também acaba por ser garantido, nessas sociedades, contraceptivos. A história da emancipação das
pela certeza da paternidade. mulheres revela como estas alcançaram, com relativa
Ao confrontar tais sociedades com as rapidez, os seus direitos políticos, mas é uma
sociedades matriarcais, conclui que o papel da história bem mais lenta no que diz respeito às
mulher só pode ser considerado em relação com a consequências sociais dessas conquistas.
instituição do casamento e com outros fatores de A nova moralidade que Russell propõe
ordem social, política e económica, pois todos eles frente à moral tradicional implica uma ruptura com
se intercruzam de forma complexa. a concepção de virtude feminina e admite as
A luta das mulheres por sua emancipação tem, relações extraconjugais, desde que destas não
em Russell, uma faceta mais social do que política. A resulte a procriação; desse modo, o papel do pai
conquista da igualdade de direitos e a consequente deixa de ser fundamental, e o casamento deixa de
emancipação da mulher têm maior significado no ser a instituição pilar da moralidade.
tocante à modificação de mentalidades no interior A educação terá um papel fundamental a
de uma sociedade do que no aspecto meramente
político. E, dado que o casamento continua a ser desempenhar na construção de uma nova Ética,
influenciado pela ética cristã, o mais importante dado que é nesse campo que várias dificuldades se
para poder propor uma nova ética será analisar a encontram. Nas escolas são os mais velhos que
importância das conquistas individuais das veiculam ideias, muitas vezes antigas e que
mulheres no foro público da comunidade. continuam a considerar o sexo algo impuro.
A ética cristã enfatizou a virtude sexual e foi Para Russell, o casamento pode ser a melhor
responsável pela degradação da posição das forma de um homem e uma mulher manterem uma
mulheres na sociedade. As mulheres aparecem relação, caso respeite as liberdades individuais e se
sempre como tentadoras, Evas revisitadas, pelo que alicerce numa salutar relação mútua. Recordemos, a
as sociedades tiveram de encontrar meios de tal propósito, que Russell casou quatro vezes (em
dificultar as suas oportunidades de serem livres ou 1824, com Alys Pearsall Smith; em 1921, com Dora
de encetarem relações de natureza sexual fora do Black; em 1936, com Patricia Spence; e finalmente,

236 237
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

em 1952, com Edith Finch). possibilidade de o filósofo justificar em termos


No período do pós-guerra, sobretudo em éticos suas intervenções políticas. Para Russell, a
países como a Alemanha, os EUA e na razão deve (como Hume também já o dissera) ser
Escandinávia, muitas mulheres passaram a ter escrava das paixões; assim, a razão tem um sentido
relações exteriores ao casamento. Esse fato, muito claro – ela significa a escolha de meios certos
consequência da emancipação da mulher, veio, para um fim que se pretende alcançar e nada tem a
segundo Russell, acabar com a concepção de virtude ver com a escolha dos meios.
feminina, a qual instituíra, paralelamente ao A razão não é uma causa da ação, apenas a
casamento, a instituição da prostituição. As regula; só os desejos, as emoções e as paixões podem
mulheres deixaram de sentir como uma obrigação ser causas da ação.
moral e social a necessidade de preservar aquilo que Para Russell, a Ética está intimamente ligada
fora durante longo tempo considerado sua virtude. à política e à vida da comunidade. Ambas permitem
A proposta de Russell é ousada e chocou a desenvolver desejos coletivos. A Ética permanece
mentalidade do seu tempo: todas as relações sexuais sempre subjetiva e surge como uma necessidade de
que não envolvam procriação só dizem respeito ao os homens entrarem em acordo em relação às suas
indivíduo, são do foro privado. Nem o homem, nem aversões e aos seus desejos. É por não estarmos todos
a mulher deverão casar com o propósito de ter filhos de acordo, diz Russell, que temos de encontrar razões
sem terem tido relações sexuais prévias. para persuadir um grupo de pessoas a querer as
mesmas coisas que nós queremos.
A Ética e os códigos morais são necessários ao
3.O caminho para uma nova Ética homem devido ao conflito entre impulso e
inteligência; se só existisse um sem o outro, não
As reflexões éticas de Russell foram haveria propriamente um lugar para a Ética.
influenciadas pelos Principia Ethica de G. E. Moore e A “nova ética” que Russell propõe, em oposição
reunem-se, essencialmente, nos “Elements of Ethics” à moral tradicional, foi muito influenciada pela
publicados em 1910 nos Philosophical Essays. Neste sociedade do seu tempo. Dessa época destacamos
como em outros textos (por exemplo, em Human dois fatos importantes: as duas Grandes Guerras,
Society in Ethics and Politics), Russell toma posições como já referimos anteriormente, e a violência e os
próximas de um certo “ceticismo ético”. Pretende uma crimes que as acompanharam, bem como as
ética antidogmática, em que se evidenciem elementos consequências disso tudo no tocante às mudanças
sociais e subjetivos. Não acredita na objetividade dos sociais do período do pós-guerra. Entre as várias
juízos éticos; em Human Society in Ethics and Politics consequências desses conflitos, Russell destaca o
chega mesmo a perguntar (v. Cap. IX) se haverá em papel da mulher, a luta travada por sua emancipação
Ética algo que não seja subjetivo. e pela conquista de igualdade de direitos e a
Seus críticos opuseram-se às suas concepções importância que tal luta teve no que respeita à
éticas, sobretudo no que diz respeito ao caráter sociedade. Tais lutas permitiram um novo olhar
indefinível do “bem”. G. Santayana critica-o por sobre o papel da mulher na comunidade e sobre a
Russell considerar que o “bem” não é uma moral sexual dessa comunidade.
propriedade objetiva que as coisas possuem A partir da Guerra de 1914-18, a luta pela
independentemente do sujeito. Após tomar emancipação das mulheres deu um grande passo
conhecimento da crítica de Santayana, Russell revê adiante, na medida em que estas passaram a
algumas de suas concepções éticas, considerando desempenhar certos cargos e a ocupar lugares
que o “bem” não é definível, mas está ligado aos anteriormente reservados aos homens. Passaram a
desejos humanos, em termos dos quais pode vir a estar mais tempo fora de casa e a compreender que
ser definido. Se há alguma objetividade em Ética, sua liberdade e sua emancipação passavam por sua
esta deverá ser política e não lógica, o que significa, autonomia econômica. Em consequência desse novo
sobretudo, que ela tem um papel fundamental na papel da mulher na sociedade, emergiu, também,
intervenção ativa. Essa posição de Russell também uma outra forma de encarar a sexualidade, ligada à
foi contestada por seus críticos, que a consideraram descoberta e utilização dos contraceptivos. As
contraditória e que não viam, nessa linha, relações sexuais fora do casamento passaram a ser

238 239
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

frequentes, e esse fato abalou as instituições uma nova forma de encarar a ética sexual,
tradicionais, como o casamento. reconhecendo à mulher um papel fundamental na
Em oposição à moral tradicional, que relegou viragem de concepção da moral tradicional.
a mulher a um plano inferior, Russell propõe uma
nova ética, adequada às inovações sociais de sua
época. Essa nova Ética surge na sequência da luta
feminina pela emancipação e liberdade sexual e
permite evidenciar o papel da mulher como fator de
mudança.
Há, contudo, várias dificuldades que se
colocam à transição para uma nova Ética, pois a
Ética tradicional, arraigada nas instituições, tem
ocupado um pesado papel na vida das
comunidades. Coube à mulher o papel de
possibilitar a transição para uma nova Ética, a qual
supõe uma crença no instinto treinado pela
educação.
Essa “nova Ética” surge no intercruzamento
entre seus ideais políticos, sociais, econômicos e
comunitários.
Como nos diz em Political Ideals, um mundo
melhor, aquele que se pretende construir, surgirá
das ruínas do velho, que se tem vindo a destruir.
Nesse mundo melhor, os impulsos criativos
deverão ocupar uma grande parte e os impulsos
possessivos deverão ser reduzidos. Esse será um
mundo de Paz, no qual cada homem poderá se
desenvolver individualmente no que em si próprio
há de melhor. Será um mundo onde as relações
humanas irão se basear na liberdade mútua (v.
Roads to Freedom) e onde instituições como o
casamento serão um encontro livre e espontâneo do
instinto natural.
Em Principles of Social Reconstruction, Russell
considera que ainda não houve tempo suficiente para
analisar as consequências da influência da liberdade
feminina na vida privada e na vida pública. No
entanto, reconhece que há fortes consequências
quanto ao crescimento da população e ao próprio
lugar que a mulher ocupa na sociedade. O
casamento, ao deixar de ser uma forma de vida para
as mulheres, perdeu força no tecido social, e a
estrutura familiar em que a sociedade patriarcal se
apoiava foi abalada.
O sistema social ideal proposto por Russell
deverá iniciar-se gradualmente e deverá garantir às
mulheres a possibilidade de terem filhos fora do
casamento, se o desejarem. A comunidade deverá
garantir essa possibilidade às mulheres, mesmo que
estas sejam solteiras.
A nova Ética proposta por Russell apresenta

240 241
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

LÉVINAS E A ALTERIDADE NO FEMININO


CRISTINA BECKERT
(Universidade de Lisboa)

Polêmica, a concepção levinasiana do


feminino reveste-se da mesma ambiguidade que
perpassa toda a obra do filósofo como seu núcleo
hermenêutico fundamental. Assim sendo, as três
metáforas com que este pretende exaurir o sentido
profundo da feminilidade – a saber, a morada, a
volúpia e a maternidade – podem ser lidas quer como
retratos da mulher, tal como esta é representada por
uma tradição secular, de índole masculina, quer como
expressões de uma alteridade cuja função primordial
reside, precisamente, na contestação de todo poder
autoafirmativo de um sujeito bem assente no ser.
Trata-se, pois, de perscrutar até que ponto o feminino
corresponde, para Lévinas, ao sexo e ao gênero
femininos, a uma transcendência em si mesma
indizível e não categorizável (no sentido ético-
metafísico), ou ainda, numa perspectiva conciliatória,
a uma categoria ontológica que prepara e constitui a
condição de possibilidade do advento da
transcendência ética, sem, no entanto, com ela se
identificar.
No intuito de elucidar essa questão,
analisaremos, num primeiro momento, as três
metáforas enunciadas, procurando detectar o modo
como cada uma articula o mesmo e o outro, no
sentido de um aprofundamento progressivo da
identificação entre o feminino e a alteridade, para,
em seguida, confrontarmo-nos com algumas críticas
feministas às teses de Lévinas, com o objetivo de
precisar a situação deste no quadro do feminismo
contemporâneo.

I. As metáforas do feminino

Um exame atento das ocorrências da temática


do feminino nas primeiras obras de Lévinas –
nomeadamente, Le temps et l’autre e De l’existence à

242 243
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

l’existant – em comparação com Totalité et Infini, revela, humano. O recolhimento refere-se a um


desde logo, a crescente complexidade que se instala no acolhimento”3. Este acolhimento humano que
tratamento dessa questão. Enquanto na década de proporciona o recolher-se em si do sujeito é
1940 o feminino se identificava com a própria personificado pela mulher, expressão da
alteridade, ou seja, o outro era dito no feminino, já em hospitalidade e da habitabilidade do mundo. No
1961 este não só se reparte entre o acolhimento na entanto, uma questão se impõe desde já: até que
morada e o mistério da volúpia, como a própria ponto Lévinas não está simplesmente nos
alteridade se diz quer na discrição feminina, quer na devolvendo uma imagem masculina da mulher
virilidade e altura do rosto. tradicional como “guardiã do lar”? Um pequeno texto
De fato, a afirmação, feita em Le temps et l’autre, surgido um ano antes da publicação de Totalité et
de que “(…) o contrário absolutamente contrário, cuja Infini e intitulado “Le judaïsme et le féminin” talvez
contrariedade não é afetada em nada pela relação que se possa esclarecer algumas perplexidades surgidas,
pode estabelecer entre ele e o seu correlato, a ao mostrar, a partir da identificação talmúdica da
contrariedade que permite ao termo permanecer mulher com a casa, como o feminino não é apenas
absolutamente outro, é o feminino”1 torna bem clara a metáfora, mas categoria ontológica, capaz de
identificação deste com o absolutamente outro. A temperar a faceta masculina do ser humano,
diferença entre os sexos não pode, assim, ser dita em dominada por uma racionalidade objetivante e
termos lógicos, nem pela contrariedade, pois tal desertificadora. Neste sentido, “(…) superar (…) uma
pressuporia um gênero comum, um plano de alienação que, em última instância, resulta da
mesmidade anulador da diferença, nem pela própria virilidade do logos universal e conquistador
contradição, à qual estaria subjacente um ser que persegue até as sombras que o poderiam abrigar
indiferenciado, igualmente unificador. Pelo contrário, a – tal seria a função ontológica do feminino”4.
feminilidade só pode constituir “a própria qualidade da Como podemos depreender dessas
diferença”, o movimento de diferenciação que palavras, uma humanidade exclusivamente
continuamente escapa à luz do conhecimento e à posse, dominada pela categoria ontológica do masculino
não permitindo qualquer ato identificador capaz de a
fazer retornar à esfera do Mesmo. Ora, a dupla revelar-se-ia totalmente desprovida de
impossibilidade da posse e da fusão, pelo excesso de subjetividade, isto é, de capacidade reflexiva e do
alteridade que o feminino supõe, constitui, para Lévinas, próprio ato de pensar. Voltado para o exterior,
o cerne da relação erótica. Eros não representa uma alienado nos objetos que julga conquistar pela posse
possibilidade, uma escolha com sede num sujeito livre, e pelo trabalho, o masculino personifica o poder da
mas o puro acontecer de um encontro em que os técnica, em sua faceta impessoal e uniformizadora,
protagonistas são transportados para além de si
mesmos, em direção a um futuro insuscetível de destrutiva de qualquer reduto de intimidade do
qualquer antecipação2. Antes, porém, de aprofundarmos sujeito consigo mesmo e com o outro5. O feminino,
a fenomenologia de eros, tal como se apresenta, pelo contrário, enquanto criação de um espaço
sobretudo, em Totalité et Infini, analisemos o aparente habitado, é veículo da comunicação intersubjetiva
recuo levinasiano na concepção do feminino, ao imediata, pois significa a familiaridade necessária a
introduzir nessa mesma obra uma outra metáfora, a da uma relação eu-tu, em que o silêncio é condição de
morada, como primeira manifestação da feminilidade.
A morada ou a capacidade de habitar, de enriquecimento e fortalecimento interior do eu. Por
conferir sentido ao mundo, é a figura por excelência isso, a presença do outro-feminino é “discretamente
da subjetividade que anseia por uma identidade umaausência”,umretirar-separaqueoeuseja, o criar
própria. Porém, embora a constituição de tal centro de um espaço vazio, mas acolhedor, para este
perspectívico, a partir do qual o mundo é repousar. Poder-se-ia afirmar, então, que as
percepcionado, obrigue a um recolhimento em si do categorias ontológicas do masculino e do feminino
sujeito, a uma solidão monádica, este revela-se
indissociável do acolhimento de que o eu é objeto por representam as duas faces complementares do ser do
um outro, pois “a intimidade que a familiaridade já homem – nomeadamente, a afirmativa, pela qual este
supõe é uma intimidade com alguém. A interioridade do vive no exterior, num movimento expansivo sem
recolhimento é uma solidão num mundo já retorno, em que ignora a presença da alteridade, e a

244 245
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

negativa, mediante a qual enceta um movimento de Não se diz, porém, que o feminino é ausência de rosto,
regresso a si, possibilitado pelo retirar-se de um mas tão-só rosto que exprime a inexpressividade ou a
outro que, no entanto, deixa marcas indeléveis no recusa de exprimir; em outras palavras, a
insignificância do feminino introduz-se na
mesmo. significância do rosto sem a anular. Daí que a
Isso posto, facilmente se compreenderá “ultramaterialidade” do corpo feminino em sua nudez
assentar-se a crítica dirigida por Lévinas ao signifique a possibilidade de inverter o sentido deste,
pensamento ocidental – em particular, ao predomínio que é, simultaneamente, sua forma suprema de
da totalidade sobre o infinito, da imanência sobre a expressão, pois “só um ser que tem a franqueza do
transcendência e, sobretudo, do mesmo sobre o outro rosto pode 'descobrir-se' na não-significância do
– no primado do masculino sobre o feminino, o que, lascivo”8. O “mistério do feminino” resulta, então, da
por si só, indicaria quanto um modelo alternativo de coincidência entre a franqueza com que o rosto
pensar deverá necessariamente passar por uma significa e a dissimulação inerente ao lascivo erótico.
reflexão aprofundada sobre o estatuto da Representa um ocultar-se no próprio ato de se dar ou
feminilidade. No entanto, estamos ainda na esfera do essa irredutibilidade à posse que incita à profanação,
ontológico, e não do ético-metafísico, em que a nunca consumada, dado que a alteridade que se
alteridade se dá na sua forma mais acabada. O esconde na volúpia da carne nunca está nela presente,
feminino dito pela morada inaugura uma relação de mas se anuncia a partir de um horizonte de futuro
intimidade entre um eu e um tu, relação essa que, por inobjetivável.
um lado, mostra-se unilateral, pois o tu é simples A “fenomenologia da carícia” testemunha bem
instrumento de satisfação do eu, e, por outro, o equívoco inerente a uma alteridade que não se deixa
antissocial, dado que se basta a si mesma, não dizer pela palavra – antes se diz a ela própria pelo
podendo, por isso, constituir a base de uma silêncio. Com efeito, a carícia revela, para Lévinas, o
verdadeira comunidade ética. Com efeito, enquanto “a sensível em sua máxima pureza, pois nela este não é
sociedade do amor é uma sociedade a dois, sociedade intuitivamente ou categorialmente informado, mas se
de solidões, refratária à universalidade”6, a relação transcende a cada momento, sem, no entanto, passar
ética visa à alteridade, não só na sua forma intensiva, para uma outra esfera, para o suprassensível.
como extensiva, perdendo em intimidade aquilo que Alimenta-se, assim, de sua própria natureza
ganha em verticalidade. inexaurível, da distância criada no seio do contato
Se o feminino, em sua identidade metafórica mais imediato, o que faz dele uma procura daquilo
com a morada, constituía uma categoria pré-ética, o que já encontrou, mas cuja refração à posse e à
modo como Lévinas retoma o tema da relação delimitação ôntica obriga a uma caminhada infinita
erótica aponta, em sua equivocidade estrutural, em direção àquilo que, estando presente, é já futuro9.
simultaneamente para além e aquém do ético, O tatear da carícia não é, pois, sinônimo de uma
enquanto fecundidade e voluptuosidade. De fato, o tentativa de apropriação nem de uma curiosidade que
rosto é a figura incontestável da alteridade ética, impele o sujeito para fora de si, mas com a segurança
pois ordena, da sua altura, uma dádiva de poder retornar a seu foro íntimo. Se assim fosse, o
incondicional de mim mesmo, ordem essa que outro-feminino entraria ainda na esfera da
constitui a fonte de todo sentido para o agir. Por seu possibilidade, constituiria um futuro passível de se
turno, o feminino, identificado agora com a pura converter em presente e de ser possuído. Pelo
passividade e vulnerabilidade do sensível, opõe-se contrário, o futuro que a carícia adivinha não só não é
diametralmente ao rosto, procedendo à inversão da presentificável em ente, como desentifica aquele que
significância com que este se exprime na inicialmente tomara a iniciativa da carícia, obriga-o a
insignificância do puro exibir sensível, do qual se colocar o centro de seu prazer no prazer do outro e,
ausenta todo significado e expressão. Assim, “o rosto como tal, a transcender-se a si próprio, num processo
da amada (...) cessa de exprimir ou, se preferirmos, de transsubstanciação que equivale, para Lévinas, à
apenas exprime essa recusa de exprimir, esse fim do fecundidade, ou seja, à geração do filho10.
discurso e da decência (...). No rosto feminino, a Esse diacronizar ou futurizar do elo amoroso
pureza da expressão perturba-se já pelo equívoco do corresponde a uma efeminação da postura
voluptuoso (...)”7, ao assumir a forma da perversidade afirmativa do eu no ser, um desvio pelo qual este
da mulher-criança ou mesmo da simples animalidade. renuncia a ser o cerne de sua própria experiência.

246 247
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Assim sendo, o sujeito se vê transportado pela Definida em termos de “gestação do outro no


fecundidade para um futuro de onde não pode mesmo”13, simboliza o primado incontestável do
regressar idêntico a si, visto que o possível já não sensível, entendido como marca indelével da
está em seu poder, sem que, contudo, o
despojamento de si queira dizer uma dissolução no alteridade – num plano prévio à tomada de posse de
todo. A abertura a uma dimensão para além do si pelo eu –, capaz de gerar essa dependência
possível é pura transcendência acima da obsessiva pelo outro que reclama a minha
inteligibilidade do todo; significa, em última responsabilidade por ele. Efetivamente, “a
instância, criação do múltiplo em absoluta experiência sensível enquanto obsessão por outrem –
gratuidade. Desse modo, a sexualidade e a ou maternidade – é já a corporeidade que a filosofia
fecundidade não têm, para Lévinas, uma origem da consciência quer constituir a partir dela.
imediatamente biológica, mas metafísica, uma vez
que, como explicitamos anteriormente, a diferença Corporeidade do corpo próprio (…)”14 que apenas se
entre os sexos não pode ser entendida a partir do assume plenamente na proximidade irrecusável de
binômio gênero-espécie, em que a presença de um um outro corpo que dele se alimenta e depende.
gênero comum nivela a assimetria da relação entre A relação maternal diz, assim, o elo
as espécies e a reduz ao saber do todo. O encontro privilegiado com um outro ainda sem configuração
erótico não se limita a confirmar e a justificar aquilo plástica; logo, insuscetível de objetivação e
que já é, a reunir o que provisoriamente foi conhecimento pelo eu como entidade autônoma,
separado; constitui antes o garante da “pluralidade mas cuja presença constante e exigente, não
do nosso existir”. Ora, é justamente esse sentido permitindo ao eu descansar em si mesmo,
plural do sujeito que permite compreender o elo identificar-se, lança-o continuamente para fora de si,
entre fecundidade e paternidade, pois só a relação em resposta a esse apelo anterior a todo o presente da
pai-filho dá conta de um eu múltiplo que se recria a consciência. Ora, essa alteridade cuja presença carnal
cada instante na proximidade do outro, é, paradoxalmente, uma ausência e uma estranheza,
abandonando no encontro a identidade substancial mas que, por isso mesmo, torna-se objeto de
consigo próprio, ao mesmo tempo em que mantém perseguição e obsessão pelo eu, constitui, para
a referência a si. A paternidade representa uma Lévinas, a alteridade ética por excelência, aquela a
“transcendência em que o eu não se exalta, pois o quem o sujeito deve sua própria constituição
filho não sou eu; e, contudo, eu sou o meu filho. A enquanto resposta infinita à voz que o reclama e da
fecundidade do eu é a sua própria transcendência”11. qual, no limite, não se distingue. É nessa
A separação biológica entre o pai e o filho, muito experiência refractária a toda categorização que se
maior do que entre este e a mãe, serve, desse modo, a dá a coincidência entre o exterior e o interior, o outro
Lévinas, para exprimir a separação metafísica entre e o mesmo, de tal modo que é pela minha boca que
o eu e o outro e a fissura que se instaura no seio do o outro fala e é mesmo antes de ouvir sua ordem que
próprio eu12. eu respondo, a ele me substituindo, de tal modo que
Nessa fenomenologia de eros desenha-se um se poderá afirmar que o outro sou eu15.
novo conceito de subjetividade que irá ser A caracterização da experiência do outro no
mesmo a partir da metáfora da maternidade parece
determinante nas obras posteriores a Totalité et Infini, perfazer a identificação entre o feminino e a
nomeadamente em Autrement qu’être. Trata-se de subjetividade ética. Se a figura da morada
pensar um sujeito totalmente vocacionado para a representava a condição de possibilidade de um
resposta ao apelo da alteridade, a ela submetido, sujeito ontologicamente constituído, pelo acolhimento
conforme a etimologia do termo, até à obsessão e à discreto de que era alvo, e a de eros, a ruptura com a
substituição, palavras que servem a Lévinas para ontologia da presença, pelo advento de um futuro
designar a responsabilidade ética em sua expressão nunca presentificável, a maternidade, ao superar
definitivamente os princípios lógicos da identidade
mais acabada. Ora, a metáfora que melhor dá conta e da contradição, do mesmo e do outro, instaura
dessa subjetividade que suporta e carrega o outro, uma subjetividade diversa, em que a categoria
numa proximidade que é contato anterior a toda ontológica do feminino é enfatizada até ganhar os
decisão de entrar em contato, é a da maternidade. contornos do ético16.

248 249
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Também a separação entre dois níveis de análise, o


fenomenológico, patente no movimento da carícia, e o
II. Do feminino ao feminismo metafísico, protagonizado pela relação de
paternidade com que o homem encara sua postura
perante Deus, retira toda a ambiguidade entre volúpia
Uma vez expostos os modos levinasianos de e fecundidade que, como observamos, diz a “verdade
dizer o feminino, importa agora tentar situá-los do rosto”. Sem ela, a ordem da imediatez sensível,
sucintamente no contexto do feminismo expressa pela animalidade, pela perversidade da
contemporâneo, a partir da leitura que algumas mulher-criança sem rosto, torna-se inequivocamente
mulheres mais ou menos conotadas com esse “insignificante” e antiética20. Não queremos com isso
movimento deles fizeram. Não tendo como objetivo contestar o modelo paternal da relação ética tal como
a exaustividade, escolhemos três posições distintas, esboçada em Totalité et Infini, mas tão-só chamar a
nomeadamente a de Luce Irigaray, Catherine atenção para a dependência imediata em que se
Chalier e Tina Chanter, com as quais procuraremos encontra do binômio voluptuosidade-fecundidade
entrar em diálogo. que a sustenta.
Talvez a mais contundente crítica de Lévinas, Já as posições adotadas por Catherine Chalier,
Luce Irigaray apoia-se na opinião expressa por uma profunda conhecedora da obra levinasiana, e por
Simone de Beauvoir, para quem “(…) é surpreendente Tina Chanter nos parecem menos carregadas de intuitos
que ele tenha deliberadamente adotado o ponto de polêmicos, embora se mostrem menos conclusivas. O
vista do homem (…)”, ao abordar o tema do pressuposto hermenêutico de onde parte a primeira
feminino17. Fixando-se nas metáforas da volúpia e da consiste, basicamente, na distinção entre as “figuras do
carícia, menos obviamente identificadas com uma feminino” e uma “ética do feminino”. Enquanto a
concepção tradicional da mulher do que as da morada linguagem metafórica propõe um nome para dizer essa
e da maternidade, a autora procura desmontá-las com catego ria, ainda que de forma não objetivante, confina-
o intuito de mostrar como nelas o feminino é se à esfera ontológica, ao passo que uma ética do
instrumentalizado em prol da afirmação da feminino exige a superação da própria metáfora,
identidade masculina. Prova desse caráter meramente instaurando uma equivocidade radical apenas dada no
negativo e instrumental do feminino seria o par silêncio. Por isso, na morada, “o destino mais alto seria
simbólico a que Lévinas recorre, o da luz e da reservado para o masculino uma vez convertido ao ético
obscuridade, em que ao aspecto positivo e divino da graças ao feminino”21, mas, já na inexpressividade do
luminosidade, fonte de toda determinação racional e, rosto da mulher, quando da relação amorosa, imiscui-se
como tal, masculina, opor-se-ia a ausência de a possibilidade de inversão do ético, pois “(…) quando
contornos e ambiguidade do obscuro feminino18. Por se trata do rosto absolutamente incontornável da
outro lado, a utilização sistemática do termo amada mulher, as palavras faltam para dizer o infinito que aí se
(aimée) e não amante (amante) para retratar o polo exprime. Ora, só elas fariam cessar a vertigem e o
feminino da relação amorosa reforçariam ainda mais habilitariam ao respeito. Só elas poriam fim à inversão
a passividade da mulher, fazendo desta objeto, e não do ético em jogo lascivo.”22
sujeito da intencionalidade desiderativa, reservada ao Como se pode observar, contrariamente a
homem. Ora, o não preenchimento integral desta na Irigaray, Catherine Chalier concebe o equívoco do
carícia é interpretado por Irigaray não como sinal da feminino não apenas na imanência do jogo erótico,
alteridade irredutível à posse com que o feminino se mas entre este e a transcendência da significação
apresenta, mas como expressão lúdica da relação do ética dada pelo rosto, entre o silêncio e a palavra, de
sujeito masculino consigo mesmo, pela qual este se tal maneira que o feminino seria o silêncio que se
transcende em direção a um futuro em aberto, mas esconde por trás de toda palavra, denunciando seu
apenas seu, perdendo, como tal, a alteridade poder nominativo, contestando sua função
feminina, pois não conhece a comunhão no prazer19. ontológica. Resta perguntar que estatuto atribuir à
Julgamos que essa interpretação confunde maternidade. Estaremos ainda perante uma
posse do objeto desejado com comunhão dos amantes, metáfora - logo, na esfera ontológica –, ou
fazendo da “perda” da alteridade feminina sua representará a relação maternal a subjetividade ética
resistência à posse, enquanto, para Lévinas, é esta que para além de toda significação metafórica? Ao optar
garante, justamente, que o feminino permaneça outro. pelo segundo termo da alternativa, a autora deixa,

250 251
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

contudo, uma outra questão: até que ponto o feminino conquérant qui chasse jusqu’aux ombres qui auraient pu l’abriter – telle
se esgota na maternidade?23 Diríamos apenas que, se serait la fonction ontologique du féminin (...).” Lévinas, "Le judaïsme et
le féminin" in Difficile Liberté. Essai sur le judaïsme, Paris, Albin
a maternidade recobre na perfeição o sentido da Michel, 19843 pp. 53 e 55.
subjetividade ética, o feminino não pode a ela reduzir- “Le voilà, l’esprit dans son essence masculine, qui vit au-dehors, exposé au
se, sob pena de pôr em causa a equivocidade que, essa soleil violent qui aveugle, aux vents du large qui le battent et l’ abattent,
sim, constitui o seu cerne. sur une terre sans replis, dépaysé, solitaire et errant et déjà par là même
Finalmente, há de se reiterar um argumento a aliéné par les choses produites qu’il avait suscitées et que se dressent
favor do “feminismo” de Lévinas, já parcialmente por indomptées et hostiles.” Lévinas, “Le judaïsme et le féminin” in
nós aduzido, mas que Tina Chanter leva às últimas Difficile Liberté, p. 55.
consequências. É que, se a fecundidade da reflexão “Le rapport intersubjectif de l’amour n’est pas le début, mais la négation de
levinasiana consiste em propor uma concepção la société. Et il y a là certainement une indication sur son essence. L’amour
inédita do outro, pensando-a de forma radical, e se o c’est le moi satisfait par le toi, saisissant en autrui la justification de son
feminino é encarado no interior de tal intento, então, être. (...) La société de l’amour est une société à deux, société de solitudes,
não é possível defender que estamos perante a réfractaire à l’universalité.” Lévinas, “Le Moi et la Totalité” in Entre
simples reiteração da perspectiva que foi a de uma nous. Essai sur le penser-à-l’autre, Paris, Grasset, 1991, p. 33.
civilização essencialmente masculina24. Mais ainda: há “Le visage de l’aimée (...) cesse d’exprimer ou, si l’on préfère, il n’exprime que
de se interpretar a ambiguidade que perpassa as ce refus d’exprimer, que cette fin du discours et de la décence (...). Dans le
metáforas enunciadas e que atinge o seu acme na visage féminin, la pureté de l’expression se trouble déjà par l’équivoque du
maternidade - enquanto destituição da identidade voluptueux (...).” Lévinas, Totalité et Infini, p. 238.
“Seul l’être qui a la franchise du visage peut se ‘découvrir’ dans la non-
própria – à luz de um projeto contestatário de todos os signifiance du lascif.” Lévinas, Totalité et Infini, p. 238.
essencialismos, facilmente degeneráveis num “Approcher Autrui, c’est encore poursuivre ce qui déjà est présent, chercher
biologismo redutor. De fato, “talvez a impossibilidade encore ce qui l’on a trouvé, ne pas pouvoir être quite envers le prochain.
de fixar a concepção de Lévinas do feminino não seja Comme caresser. La caresse est l’unité de l’approche et de la proximité.
acidental, mas antes a tomada de consciência da Toujours en elle la proximité est aussi absence. Qu’est-ce que la tendresse de
la peau caressé, sinon le décalage entre la présentation et la présence?”
impossibilidade de levantar a questão ‘o que é a Lévinas, “Langage et proximité” in En découvrant l’existence avec
mulher?’ sem ter já decidido acerca de sua essência”25. Husserl et Heidegger, Paris, Vrin, 19822, p. 230. Cf. Idem , Le temps
Deveremos, então, considerar Lévinas um pós- et l’autre, p. 82 e Totalité et Infini, pp. 235 e 236. Para uma
feminista? análise fenomenológica da carícia, cf. A. Renaut, L’ère de
l’individu . Contribution à une histoire de la subjectivité, Paris,
Gallimard, 1989, pp. 236-246.
“Je n’aime pleinementque si autruim’aime, non pas parce qu’il me faut la
Notas reconnaissance d’Autrui, mais parce que ma volupté se réjouit de sa volupté
et que dans cette conjoncture non pareille de l’identification, dans cette trans-
“Je pense que le contraire absolument contraire, dont la contrariété n’est affectée substantiation, le Même et l’Autre ne se confondent pas, mais précisément
en rien par la relation qui peut s’établir entre lui et son corrélatif, la – au delà de tout projet possible – au delà de tout pouvoir sensé et
contrariété qui permet au terme de demeurer absolument autre, c’est le intelligent, engendrent l’enfant.” Lévinas, Totalité et Infini, p. 244.
féminin.” Lévinas, Le temps et l’autre, Paris, PUF, 1983, p. 77. Cf.,
ainda, ibidem , p.14 e idem , De l’existence à l’existant, Paris, Vrin, “La paternité est une relation avec un étranger qui tout en étant autrui (…)
19842, p. 145. est moi; une relation du moi avec un soi qui cependant n’est pas moi. (…)
“L’amour n’est pas une possibilité, il n’est pas dû à notre initiative, il est Transcendance où le moi ne s’emporte pas, puisque le fils n’est pas moi; et
sans raison, il nous envahit et nous blesse et cependant le je survit en lui. cependant je suis mon fils. La fécondité du moi, c’est sa transcendance même.”
(…) La relation avec autrui, e c’est l’absence de l’autre, non pas absence de Lévinas, Totalité et Infini, p. 254.
pur néant, mais absence dans un horizon d’avenir (…)” Lévinas, Le temps Para a prevalência do ponto de vista masculino sobre o
et l’autre, pp. 82-83. feminino, em Totalité et Infini, cf. B. Forthomme, Une philosophie de
la transcendance. La métaphysique d’Emmanuel Lévinas, Paris,
“L’intimité que déjà la familiarité suppose – est une intimité avec Vrin, 1979, p. 332 e E. Lopes Nunes, “A Condição Feminina em
quelqu’un. L’intériorité du recueillement est une solitude dans un monde Emmanuel Lévinas”, Brotéria, 119 (1984), nº 1, janeiro, pp. 47-
déjà humain. Le recueillement se réfère à un accueil.” Lévinas, Totalité et 51.
Infini, Haia, Martinus Nijhoff, 19844, p. 128. “(…) arrachement à soi, moins que rien, rejection dans le négatif – en arrière
Depois de afirmar explicitamente que, segundo a tradição du néant – maternité, gestation de l’au tre dans le m êm e.” Lév in as,
talmúdica, a casa é a mulher, Lévinas acrescenta: “Mais dans Au trem ent qu’être ou au-delà de l’essence, Haia, Martinus Nijhoff,
1986, p. 95. A substituição da metáfora da paternidade pela da
le judaïsme, le moral a toujours la portée d’un fondement ontologique. Le maternidade, para dar conta do sujeito ético, compreende-se,
féminin figure parmi les catégories de l’être. (...) Surmonter (...) une a nosso ver, pela ênfase que ganha, em Autrement qu’être, a
aliénation qui, ultime, résulte de la virilité même du logos universel et dimensão da sensibilidade como contato imediato com o

252 253
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

outro, ao passo que, em Totalité et Infini, a tônica era posta na renversement de l’éthique en jeu lascif.” C. Chalier, Figures du féminin,
separação metafísica. p. 28.
“L ’expérience sensible en tant qu’obsession par autrui – ou maternité – est “But we have to take note of the fact that, according to Lévinas, ethics in its
déjà la corporeité que la philosophie de la conscience veut constituer à partir feminine achievement means to be a mother and nothing else. Can we agree?”
d’ elle. Corporeité de corps propre (…)” Lévinas, Autrement qu’ être, p. C. Chalier, “Ethics and the Feminine” in Re-Reading Lévinas, p.
127.
97. “(…) If Lévinas’s philosophy succeeds in its attempt radically to rethink
Essa inversão do eu no outro dá-se pela eleição daquele como the Other, then we cannot understand Lévinas’s account of the otherness
único visado pela acusação da alteridade: “Le soi dans l’ être which ‘accomplishes itself in the feminine’ as a restatement of the traditional
c’est exactement le ‘ne pas pouvoir se dérober’ à une assignation qui ne vise domination of the Other by the same. In other words, by identifying the
aucune généralité. Il n’y a pas d’ ipséité commune à moi et aux autres, moi feminine with discretion, Lévinas is not unthinkingly reasserting the
c’est l’ exclusion de cette possibilité de comparaison. Dès que la comparaison invisibility of women; he is making of this historical invisibility a
s’installe. L’ipséité est par conséquent un privilège ou une élection philosophical positivity – in a move that protests the virile world in which
injustifiable qui m’élit moi et non pas le Moi. L’unique est élu. Election par
sujétion.” Lévinas, Autremet qu’être, p. 163). Transpondo esta everything is ‘clear as day’.” T. Chanter, “Feminine and the Other”
temática para a esfera religiosa, a eleição que conduz à in The Provocation of Lévinas. Rethinking the Other, London/New
substituição é expressa pela figura do Messias na sua York, Routledge, 1988, p. 36.
coincidência com cada subjectividade ética. Com efeito, “Le “Perhaps the impossibility of pinning down Lévinas’s account of the feminine
Messie c’est Moi. Etre Moi,c’estêtreMessie.(…)Lefaitdenepassedérober is no accident, but rather an acknowledgement of the impossibility of
à lachargequ’imposela souffrance des autres définit l’ipséité même. Toutes raising the question ‘what is woman?’ without already having decided her
les personnes son Messie.” Idem , “Textes messianiques” in Difficile essence.” T. Chanter, “Antigone’s Dilemma” in Re-Reading Lévinas,
liberté, p. 129. p. 143. Cf., ainda para o significado da equivocidade do
Acerca da ênfase como método filosófico que permite a feminino, idem , “Feminism and the Other” in The Provocation of
passagem do ontológico ao ético, cf. Lévinas, “Questions et Lévinas. Rethinking the Other, p. 51.
réponses” in Du Dieu qui vient à l’ idée, Paris, Vrin, 19862, pp.
141-142.
“Je suppose que M. Lévinas n’oublie pas que la femme est aussi pour soi
conscience. Mais il est frappant qu’il adopte délibérément un point de vue
d’homme sans signaler la réciprocité du sujet et de l’objet.” S. de
Beauvoir, Le deuxième sexe, I, Paris, Gallimard, 1949, p. 15.
Partindo do princípio de que a única diferença é a que se
estabelece entre os sexos, L. Irigaray procura fazer remontar
o sentido do binômio luz-obscuridade ao domínio
civilizacional do sexo masculino sobre o feminino, em que a
ocultação da sexualidade feminina contrastava com o modo
como era ostentada nos cultos primitivos prestados a deusas.
Cf., a esse propósito, L.. Irigaray, “Questions à Emmanuel
Lévinas: sur la divinité de l’amour”, Critique, 522 (1990),
novembro, pp. 911-912.
“Caresser, pour Lévinas, revient donc non pas à aborder l’autre dans ce sens
de la vie même: le toucher, mais à la réduction de cette dimension vitale du
corps de l’autre à l’élaboration d’un avenir pour lui. (…) Dans cette
transformation de la chair de l’autre en sa propre temporalité, le sujet
masculin perd évidemment le féminin comme autre.” L. Irigaray,
“Questions à Emmanuel Lévinas: sur la divinité de l’amour”,
pp. 912-913. Para uma abordagem mais desenvolvida do tema da
carícia, cf. idem , fíthique de la différence sexuelle, Paris, Minuit, 1984,
pp. 173-199.
Cf., a esse propósito, L. Irigaray, “Questions à Emmanuel
Lévinas: sur la divinité de l’amour”, pp. 915-916.
“The highest destiny would be reserved for the masculine once it has been
converted to ethics thanks to the feminine.” C. Chalier, “Ethics and the
Feminine” in Re-Reading Lévinas, Bloomington/lndianapolis,
Indiana University Press, 1991, p. 123. Cf., também, idem , Figures
du féminin. Lecture d’Emmanuel Lévinas, Paris, La nuit surveillée,
1982, p. 100.
“Quand il s’agit du visage, tout aussi incontournable, de la femme, les
mots manquent pour dire l’infini qui s’y exprime. Or, seuls ils arrêteraient
le vertige et l’habiliteraient au respect. Seuls ils mettraient fin au

254 255
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

FOUCAULT E A QUESTÃO DA
IDENTIDADE
JOSÉ DE ALMEIDA PEREIRA ARÊDES
(Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa)

“Quem, que seja português, poderá viver a


estreiteza de uma só personalidade?”
Fernando Pessoa1

Introdução

Se excetuarmos os casos da Mãe2 e de


Jacqueline Verdeaux (a quem Michel Foucault
chamava “ma femme”3), é sabido que a mulher não
ocupou grande lugar nem na vida, nem na obra desse
filósofo4. Seria, pois, inglório e infrutífero buscar o
lugar da mulher no pensamento de Foucault.
No entanto, um pouco contraditoriamente
pelo menos à primeira vista, seria grave lacuna que
uma investigação subordinada ao tema A filosofia no
feminino não incluísse um estudo sobre Michel
Foucault, na clara medida em que alguns setores dos
movimentos feministas contemporâneos muito se
interessaram pelo diálogo com o pensamento de
Foucault e, em certos casos, buscaram mesmo
inspiração em sua obra.
Meu objetivo aqui não é, contudo, traçar uma
genealogia das influências e diálogos entre as
pensadoras femininas e/ou feministas e Foucault,
tampouco a história dos seus amores e desamores,
mas antes apresentar algumas linhas de uma
contribuição possível de Foucault para uma reflexão
sobre as possibilidades de uma Filosofia no feminino.
Nesse contexto, e se atentarmos ao título
desta comunicação, poderia parecer de duvidosa
utilidade, e até legitimidade, procurar em Foucault
material para uma reflexão sobre a identidade (e,
consequentemente, sobre o sujeito e a subjetividade), se
tivermos em conta o célebre e bombástico anúncio da
“morte do Homem”5, uma vez que também não consta
que tivesse anunciado o nascimento da Mulher!

256 257
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Ora, a verdade é que, para além do clima como acontecimento singular cronologicamente
estruturalista em que foi feito, tal anúncio não situado, mas como uma conjuntura histórica cuja crise
passou de uma das conhecidas boutades deFoucault, é consequência do aniquilamento do referencial de
que, aliás, sempre considerou o sujeito6 um dos temas sentido, análogo ao que outros indivíduos, noutras
centrais de sua própria obra, coisa que épocas, também já viveram.
reiteradamente afirmou e que resulta clara da última
entrevista que concedeu, a 29 de maio de 19847.
Se a mulher, com efeito, não ocupa lugar de Normalizar e disciplinar
revelo nas preocupações desse homem, o mesmo não
se poderá dizer da questão da identidade, um dos temas
que mais tem interessado aquelas dentre as A problematização da sociedade de
pensadoras femininas que, a partir de alguns quadros adestramento que é, segundo Foucault, a sociedade
conceituais de Foucault, procuram equacionar a moderna será feita a partir de dois conceitos que se
questão do feminismo. tornarão chave para a leitura de Vigiar e punir, a saber,
disciplina e norma. As disciplinas, poder e tecnologia
Como então Foucault problematiza tudo isso? que trabalham, por toda parte11, os corpos e as almas
dos indivíduos com vistas à constituição de um novo
tipo de subjetividade e, consequentemente, de
O interesse pela identidade identidade, tecnologias do corpo, atuando em função
de uma norma, medida e padrão de produção do
As/os leitoras/es mais atentas/os ter-se-ão homem modelo a implementar, são definidas por
claramente dado conta do interesse de nosso filósofo Foucault como “os métodos que permitem o controle
pelos jogos sexo/verdade/poder, ou, se se preferir, pela minucioso das operações do corpo, asseguram a
relação entre sexo e identidade, assim como pela sujeição constante de suas forças impondo-lhes uma
genealogia da construção da identidade moderna a conexão docilidade-utilidade”12.
partir justamente da incidência desses jogos sobre o As disciplinas, que começam por ter uma
corpo e a alma do sujeito moderno ou, dito de outro função negativa-repressiva (neutralizar os perigos,
modo, o interesse de Foucault pela genealogia dos controlar e fixar as populações), passam depois a
dispositivos (o “conjunto de elementos heterogêneos, exercer uma outra positiva (aumentar a possível
discursivos e não discursivos, que conseguem isolar utilidade dos indivíduos13), assistindo-se, então, ao
estratégias de relações de força subjacentes a um certo nascimento de uma arte (techné) do corpo que fabrica
domínio do saber”8) da sexualidade. corpos-indivíduos quanto mais dóceis mais úteis,
Esse interesse de Foucault pela identidade corpos exercitados e submissos, dotados de maior
não resulta, julgamos poder defender, de uma tardia força, o que lhes aumenta a utilidade, em termos
descoberta do tema; antes constitui uma linha de econômicos, diminuindo-lhes a periculosidade, em
leitura fundamental de toda a sua produção teórica, termos políticos.
na justa medida em que, como ele afirmava, toda a Portanto, não sendo as disciplinas instituições,
sua obra é autobiográfica9, embora com a mas antes técnicas, e sendo disciplinar não só toda
particularidade de se tratar de uma autenticidade sociedade, mas a sociedade toda, o que interessa a
mascarada, pois, como judiciosamente diz Foucault são essas técnicas disciplinares, mais do que as
Macherey, “afirmar o caráter autobiográfico do descrições particulares de instituições como a Escola,
pensamento [como o faz Foucault] é reconhecer o o Exército ou a Prisão, seus momentos visíveis, pois o
anonimato de todo o discurso, pois a fórmula ‘Eu sou que se torna efetivamente relevante são as técnicas
um autor’ equivale à tela de Magritte ‘Ceci est une de sujeição e o que permite opor-se-lhe, a saber, as
pipe’”10. técnicas de subjetivação, tecnologias do eu, como
Poder-se-á, talvez, afirmar que a interrogação de Foucault virá, mais tarde, a chamar-lhes.
Foucault sobre a identidade, sendo aggiornamento do As disciplinas dirigem-se a todos, sendo assim
socrático conhece-te a ti próprio, dá-se no quadro de uma que “a escola cristã não deve simplesmente formar
crise, crise da modernidade, que levou à erosão dos crianças dóceis, mas deve também permitir vigiar os
modelos de identidade propostos (ou impostos?), pais, informar-se do seu modo de vida, dos seus
uma modernidade que Foucault problematizou não recursos, da sua devoção, dos seus costumes”14,

258 259
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

visando o exercício desse poder difuso e onipresente polícia e a Justiça até a “personalização” das
a três objetivos simultâneos: religioso (conversão e penas: está-se criando indivíduos e transformando
moralização); econômico (incitação ao trabalho); político
(luta contra o descontentamento e a agitação). esses indivíduos em sujeitos (leia-se em objetos).
O locus pedagógico da aplicação da
Sendo a fuga ao trabalho e a preguiça os pecados penalidade é agora o psiquismo, não sendo alheio a
mortais da burguesia, é claro que o fim último desse isso o lançamento das bases da Psicologia
adestramento é o aumento da produtividade, Experimental no asilo e na prisão a partir do séc.
inaugurando-se, assim, uma nova teologia moral, que XVIII, pois o poder torna-se mais científico, sendo
visa a retificar moralmente a preguiça, essa substância razoável esperar que a mudança de paradigma
atualmente em curso desloque o controle das almas
ética que vem substituir a carne como lugar de pecado para os genes.
e que, em vez da repressão do eros, pratica, na verdade, Os reformadores humanistas, concebendo o
a criação de desejos e a reificação dos corpos e dos Homem como uma unidade psicossomática, queriam
prazeres. No fim, mais que uma técnica de aumento que seu saber fosse aplicado à alma, sem descurar,
da produtividade, revelar-se-á uma nova e poderosa claro, o corpo. O controle das representações e dos
interesses, ligado ao contrato social e ao imperativo de
forma de exercício do poder. eficácia, resultou em receita para o exercício do poder
Assim, se o próprio da modernidade é a sobre os indivíduos: “o espírito como superfície de
aparente suavização ou humanização do exercício inscrição, tendo a semiologia por instrumento; a
do poder, de fato, isso apenas corresponde, submissão dos corpos mediante o controle das ideias;
segundo Foucault, a uma mudança de estratégia a análise das representações como princípio de uma
patente na abolição das práticas que tomavam o política dos corpos bem mais eficaz que a anatomia
corpo como alvo da repressão penal, pois, se as ritual dos suplícios”20.
práticas de torturas públicas são abolidas, isso se Assim, enquanto fabrica indivíduos
deve apenas à premência de construir um novo mediante o controle minucioso de seus tempos,
paradigma de relações de poder. ocupações e gestos e o cuidado com suas diferenças,
O que aconteceu foi que se juntou a o poder disciplinar vai tornando homogêneo o
necessidade de adestramento dos corpos para fins espaço social; e, se antes se dava como espelho e
produtivos à caducidade das formas de exercício de modelo, esconde-se agora controlando todos e cada
poder que haviam feito da ofensa à pessoa do rei, um, fazendo de cada indivíduo um caso, numa
fonte de autoridade, norma de toda penalidade. individuação infinita e interminável, formação
O novo poder, com sua respectiva tecnologia, é contínua e continuada de identidades. A sociedade
agora apresentado não como dominação – sentido é agora um espaço concentracionário aberto, em que
negativo –, mas, em sentido biunívoco e positivo15, como cada um tem a ilusão de ser diferente, de ser livre e
relação, o conjunto de relações que “uns exercem sobre de ser ele próprio.
os outros”16, e caracterizado como a procura do
adestramento dos indivíduos mediante a constituição Por isso a exclusão já não é para fora desse
de um complexo científico-judiciário que será, espaço social, mas no seu interior. O delinquente, o
afinal, a arqueogenealogia do sujeito moderno, em que anormal da penalidade, não é expulso, mas reciclado,
se entrelaça o discurso científico com a prática pois o objetivo é normalizar por meio da disciplina.
punitiva, interação de uma tecnologia disciplinar e de Daí que a prisão seja reeducadora e se pretenda a
uma ciência social normativa17. reintegração daquele que errou, pois, dado que não há
Substituindo a tortura do corpo por uma natureza substancial a respeitar, a identidade de cada
ortopedia das almas, a destruição do corpo dá lugar à um é fruto da aplicação da técnica adequada visando
sua domesticação18; o carrasco é reciclado em técnico objetivo eleito.
de adestramento19, uma vez que o objetivo não é, Se as “luzes” descobriram a liberdade, também
doravante, extirpar um membro (social) gangrenado, criaram as disciplinas21, e o sonho de libertação da
mas curá-lo e prevenir a putrefacção de outros. Aufklärung por meio da razão tornou-se
Daí a constituição de uma semiotécnica do poder perversamente o pesadelo climatizado da
racionalização, origem das Ciências Humanas, do
com novas regras, desde a colaboração entre a nascimento da Psicologia Forense, das técnicas

260 261
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

biográficas que criam personalidades e identidades, gira ainda em torno do paradigma da exclusão, e que
enfim, da coligação discurso penal – discurso psiquiátrico, foi ela que lhe permitiu apresentar a longa família dos
progenitores do indivíduo perigoso22. marginalizados da cultura ocidental recente: o louco,
Se muitos gostam de rotular Foucault como pós- o anormal da razão, identificado como tal segundo a
moderno pela crítica que dirigiu à modernidade, ele norma do pensar; o delinquente, o anormal da
próprio nos diz que é por continuarmos em plena penalidade, trânsfuga à norma do agir público; e,
modernidade que as prisões, criticadas há mais de posteriormente, o perverso, o anormal do desejo, o
cento e cinquenta anos, mantêm-se em funções com subversor do agir privado25.
algumas melhorias pontuais. Na verdade, elas Ora, se “uma sociedade normalizada é o efeito
produzem um tipo de ilegalismo (ou anormalidade) histórico de uma tecnologia de poder centrada na
controlável, legitimam o controle policial sobre as vida”26, importará ver como é que a sociedade
populações e os indivíduos, justificando o modelo de moderna tentou normatizar a vida, sobretudo desde
normalidade proposto pelo “poder da classe que a sociedade vitoriana inventou a sexualidade.
dominante”23. Foucault não aderiu àquilo que classificou
O desenvolvimento dessa tecnologia do como hipótese repressiva do comportamento sexual e
micropoder encontra seu desenvolvimento na que, no quadro da teoria da luta de classes, fundava-
vigilância eletrônica e informática hoje à disposição se na convicção de que as classes dominantes teriam
das instâncias de controle. interesse em inibir a atividade sexual das massas
trabalhadoras, tendo em vista canalizar sua energia
libidinal para fins produtivos, funcionando,
A minha proposta simultaneamente, a repressão sexual como um
instrumento da dominação capitalista27.
Para se compreender bem a recusa dessa
Para um exercício de análise da pertinência hipótese, temos de ter em conta a reelaboração
das categorias buriladas por Foucault para a levada a cabo por Foucault em sua própria reflexão
reflexão sobre a identidade, que constitui, em sobre o poder quando teorizou a passagem do poder
minha opinião, um dos temas fundamentais de como dominação, ou jurídico negativo, ao poder
toda a sua obra teórica, nossa sugestão é centrarmos como relação, ou técnico estratégico.
a atenção num texto autobiográfico de um(a) Com efeito, é essa reelaboração que permite
hermafrodita publicado sob o nome Adelaïde Herculine compreender por que é que a chamada hipótese
Barbin, dite Alexina B24, encontrado em fevereiro de repressiva constitui, para Foucault, uma
1868, num quarto do bairro parisiense de Odéon, interpretação errônea do que verdadeiramente
junto ao cadáver de Abel Barbin. ocorreu na sociedade ocidental, sobretudo a partir
O texto de Alexina B. foi publicado em 1978, pela do chamado puritanismo vitoriano, momento em
Gallimard, na colecção “Les vies parallèles”, dirigida por que as tecnologias disciplinares, em vez de reprimir,
Foucault. orientaram o comportamento sexual, pois, na
Essas vidas paralelas, título pedido verdade, o novo poder, agindo positivamente,
emprestado a Plutarco, tinham uma intenção procurava canalizar esses comportamentos, em vez
diferente da do filósofo grego, pois não se de, negativamente, eliminá-los.
destinavam a trazer à luz do dia vidas exemplares Na verdade, o que está agora em causa é a
propostas como paradigmas, mas vidas de passagem das relações de poder para o interior dos
marginais, de excluídos, modelos de anti-heróis corpos28, de modo a reforçar a sujeição dos indivíduos
bem ao gosto de Foucault. E isso porque, como é e o controle das populações quando, a partir do
sabido, Foucault dirigia sua crítica à sociedade interesse nascido pela demografia, o séc. XVIII
normatizadora e normalizadora, que exclui, por relacionou sexualidade e poder.
definição, o outro, o anômalo, ou seja, o diferente do
modelo proposto.
Tal foi um dos combates do filósofo, sendo Foucault diferenciou sexo e sexualidade
lícito afirmar que uma das grandes linhas
subterrâneas que percorrem toda a sua analítica do Nesse sentido, o sexo, objeto de “um discurso
poder (no período em que o definiu como dominação) específico que articula as obrigações religiosas e

262 263
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

jurídicas do casamento com os códigos de transmissão que seja validada pelo Mestre da Verdade, Hermes
de bens e os laços de sangue”29, constitui uma questão descodificador que traduz ao que confessa a
familiar e é remetido a um dispositivo de aliança30 que verdade de si próprio que se oculta a si próprio, o
estabelece a conexão entre casamento, procriação e mesmo ocorre no caso da Psicanálise, em que o
transmissão de riqueza, de propriedade e de poder, ao analista inventa o outro.
passo que a sexualidade, “o conjunto de efeitos Nesse quadro, o grande objetivo da moderna
produzidos no corpo, nos comportamentos e nas scientia sexualis seria, então, e sem esquecer a eugenia
relações sociais por um certo dispositivo que releva de nascente, construir um imenso aparelho de produção
uma tecnologia política complexa”31, é objeto do do verdadeiro e do falso a partir da progressiva
saber médico, nascida de uma ruptura entre o sexo e os formação de uma nova ludicidade na relação poder-
dispositivos de aliança, que se reportaria aos prazeres do verdade passando pelo sexo.
indivíduo, a seus segredos e fantasmas, e que se Esses jogos poder-prazer, porém, não visam a
constituiria, pouco a pouco, como sua natureza uma verdade qualquer, mas à constituição dessa
essencial, o núcleo de sua identidade pessoal, sendo, verdade fundamental, embora efêmera, que é a
pois, uma questão individual, que é remetida ao que
Foucault designa por dispositivo de sexualidade. identidade do sujeito moderno, pois, convencendo o
A importância de toda essa análise baseia-se indivíduo de que deve falar para ter acesso à
na relação que, segundo Foucault, o Ocidente verdade recôndita de si, ao seu eu profundo, a
sempre estabeleceu entre sexo e verdade na definição confissão moderna (leia-se as Ciências do
da identidade. Homem, em geral, e a Psiquiatria, em particular)
Tal conexão, com efeito, já estaria estabelecida
desde a Grécia clássica, onde a verdade e o sexo se torna a identidade uma hermenêutica do poder
ligavam sob a forma de uma pedagogia que legitimada pela autoridade do saber, em que a
transmitia, corpo a corpo, um saber veiculado, sem construção do mesmo é feita pelo outro, uma vez
metáforas, pelos Logoi Spermatikoi, ainda que, no caso que essa tecnologia do eu opera a partir da ideia
do cristianismo, a verdade e o sexo deixem de ter de que o indivíduo pode, com a ajuda de
uma relação erótica para passar a ter uma relação
analítica, pois, se o outro ainda está presente, já não é especialistas, chegar a dizer toda a verdade sobre
como cúmplice, mas como testemunha, uma vez que a si próprio.
confissão não é uma entrega de si num ritual de amor, Assim, a hipótese que Foucault propõe como
mas uma hermenêutica do eu, em que a culpa se alternativa à hipótese repressiva é a de um século que,
substitui à alegria. em vez de recusar o sexo, reifica-o e o instrumentaliza,
inventando uma tecnologia política do corpo,
Nessa genealogia, a confissão, afastando-se encruzilhada em que se cruzam poder, saber e corpo,
progressivamente da penitência pública a que estava rebatendo-se, nesse caso, a técnica sobre o uso do sexo,
ligada e que no cristianismo primitivo a precedia, foi eleito o locus privilegiado de normalização do
ganhando autonomia e função própria, indivíduo. Desse modo, se não há repressão sexual,
constituindo-se como arquivo dos prazeres, mas uma economia política da vontade de saber que
transformando progressivamente a experiência não produz, a partir de mecanismos positivos de poder, a
escrita do confessor em arquivo e espólio da Ciência, multiplicação do discurso legitimado pela
sendo as repercussões filosóficas dessa relação de tal cientificidade do saber, o sexo e a sexualidade tornam-
ordem que Foucault julga poder encontrar aí a se, então, a chave hermenêutica fundamental da
justificação para as discussões sobre a identidade, como Foucault o repete32.
fundamentação subjetiva da ciência, como se o
sujeito produtor de verdade (que se confessa) fosse o
sujeito condição de verdade. Herculine Barbin versus Abel Barbin
O genealogista vê, portanto, um paralelismo
entre a confissão e a discursividade científica, na
medida em que ambas são modalidades de Compreende-se, pois, a importância fulcral
produção da verdade do sujeito, pois se no caso da que assume a pequena mas dramática autobiografia
confissão não basta que ela seja dita, mas é preciso de Alexina B. não só para a/o própria/o autor/a,
como para Michel Foucault, pela simples razão de

264 265
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

que a vida deste é uma vida paralela à de Alexina B., conhecimento de si, existindo, em ambos os casos,
não nos parecendo exagerado, pois, afirmar que uma forma de exercício de poder que subjuga e
Herculine Barbin é uma das chaves fundamentais sujeita38.
para a leitura de Foucault, que, de outro modo, faz No primeiro sentido, trata-se da
algo semelhante a seu autor, ao problematizar a heteroconstituição do sujeito, que consiste a) na
verdade (leia-se a constituição) de si por meio da objetivação como sujeito falante, produtor e vivo, b) na
experiência gnóstica da escrita de si que é a sua partição normal/anormal, padronização que,
inteira obra teórica, com particular relevo para a conforme a época, reveste as figuras de
História da Sexualidade33. louco/racional, doente/são, delinquente/ordeiro, e
Com efeito, se o séc. XIX, com seu conjunto de constituem o que chamaríamos os modos de sujeição do
estratégias discursivas e não discursivas (dispositivo), indivíduo, quando o indivíduo humano é passivo nos
transformou o que pertencia ao domínio do pecado e da processos de enculturação que o transformam de ser
falta moral e teológica em algo do domínio do normal e sociável em ser social, no contexto das complexas
do patológico, inventando a sexualidade onde até então relações de produção, de sentido e de poder39 que mantém
havia carne, fê-lo apenas para organizar o corpo e o sexo com os outros.
com vistas aos fins de controle já referidos, dado que o O sujeito é aí moldado e construído a partir
sexo, tal como Foucault o define34, instância que parece do exterior de si, sofre uma pressão que visa a
nos dominar e constituir nossa natureza mais profunda, orientar ou a programar suas ações. É a concepção
não passa de uma extensão da ideia romântica da do sujeito na dependência dessa outra temática
libertação de uma natureza oculta existente no interior fundamental de Foucault, o poder, num momento
de nós. em que este ainda é pensado como dominação, relação
Efetivamente, argumenta Foucault, o sexo, unívoca em que o sujeito é heterogovernado.
uma vez que não está dependente de uma natureza No segundo sentido, trata-se da autoconstituição
mas de uma história, é, de fato, apenas um produto do sujeito, no quadro do que Foucault designa por
do dispositivo de sexualidade, um elemento relações de poder, essa referida evolução da concepção
especulativo e ideal35 que o poder organiza com de poder que lhe permitiu criticar a dominação como
vistas a orientar o acesso de cada um à sua própria forma cristalizada de relação entre os humanos.
inteligibilidade, à totalidade do seu corpo e à sua Chamar-lhe-emos, com Rabinow, modo de
identidade. É, obviamente, o sexodesejo, não o sexo- subjetivação40, para designar a atitude ativa do
corpo36, uma questão de representação, não uma indivíduo na sua autoconstrução.
questão de anatomia. Estando esclarecido o caráter No quadro dessa concepção, o sujeito é visto
não natural mas histórico do sexo, primeiro motor da como podendo querer ser outro, autoconstituir-se,
identidade, falta esclarecer a diferença entre sujeição e governar-se a si próprio, passar da sujeição à
subjetivação, jogo conceitual correspondente a uma subjetivação, trabalhar no sentido da criação de uma
evolução fundamental no pensamento de Foucault outra identidade diferente da resultante dos jogos de
relativamente à sua concepção de sujeito e de poder. saber-poder que ocorrem na História e que
É sabido que o sujeito, para Foucault, é transcendem ao indivíduo. Diz Foucault: “chamarei
resultado de um processo de transformação do subjetivação ao processo pelo qual se obtém a
indivíduo, processo gnosiológico e ontológico constituição de um sujeito, mais precisamente, de
análogo ao que ocorre com a transformação de uma subjetividade, que é, evidentemente, apenas uma
“coisas” em objetos no interior de um campo das possibilidades dadas na organização de uma
epistêmico. consciência de si”41. Esse é o conceito aplicável com
Ora, se o sujeito não é substância, o que propriedade quando o indivíduo busca
Foucault faz é apresentar o modo como o sujeito é autoconstituir de forma autônoma sua subjetividade e
joguete dos diferentes modos de objetivação do identidade, exercitando-se na via do governo de si.
indivíduo na nossa cultura, isto é, os “modos de Como é evidente, o primeiro sentido (a
transformar os seres humanos em sujeitos”37. sujeição) não consente qualquer veleidade de
Foucault defende que o sujeito pode ser autodeterminação, e só o segundo sentido (a
entendido em dois sentidos: sujeito submetido ao subjetivação) é consentâneo com a possibilidade de ser
outro pelo controle e pela dependência, e sujeito outro.
ligado à sua própria identidade pela consciência e Esse momento corresponde ao da

266 267
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

problematização do prazer, ao modo como os seres emanações de CO2, oriundas da combustão de


humanos na nossa cultura se reconhecem como carvão no quarto em que vivia.
sujeitos de uma “sexualidade”. Foucault analisou esse texto autobiográfico43
Nesse quadro teórico podemos perguntar: ao explorar a relação entre sexo, verdade e identidade,
como é que foi constituída a identidade da/o mostrando, nessa perspectiva, como, a partir do séc.
hermafrodita? XVIII, e contrariamente ao que se passava na Idade
Sabendo que os movimentos feministas Média, em que a/o hermafrodita, ao chegar a adulto,
estabelecem a identidade feminina de base a partir do e caso pretendesse casar-se, podia mudar de sexo,
conceito de sexo (no sentido de caracteres sexuais desde que não tentasse, posteriormente, recuar na sua
primários) e aproveitam da teoria de Foucault a decisão, sob pena de ser acusado de sodomita, o
panóplia de instrumentos teóricos que explicam o aparelho administrativo do Estado exige a definição
modo como o poder modela a alma para subjugar o clara, uma vez por todas, do sexo e,
corpo (a famosa inversão “l’âme, prison du corps”)42, o jogo consequentemente, da identidade homem/mulher,
anteriormente proposto consistirá em ver como alma, passando a questão da fixação do verdadeiro sexo do
corpo, sexo, sexualidade, poder e resistência se indivíduo a ser da competência da ciência (a
conjugam de modo a fornecer uma chave Medicina) e da jurisprudência (o Registro Civil), dois
hermenêutica da identidade de Alexina B. correlatos do Poder.
A biografia pode resumir-se do seguinte É certo que o séc. XIX, ainda segundo
modo: nasceu uma criança cujos pais identificaram, Foucault, trouxe uma maior flexibilidade à análise
a partir dos aparentes indícios anatômicos, como
pertencente ao sexo feminino, sendo em dessa questão, mas o sexo e a identidade continuaram
conformidade legalmente registrada. a orbitar em torno da categoria fundamental de
Educada em colégios para moças, acabou por verdade, sendo por isso considerada uma espécie de
fazer um curso de professora primária, indo erro (definido como “um modo de agir que não está
posteriormente lecionar em um colégio interno (de adequado à realidade”44) a existência de um homem
moças, claro), onde partilhava o quarto com a filha “passivo” e de uma mulher “viril”.
da proprietária da instituição. Alexina B. e a filha da Para Foucault, a causa do suicídio de Alexina
referida senhora acabaram por se apaixonar e B. foi a incapacidade de se adaptar à sua nova
partilhar a mesma cama e seus prazeres. identidade, uma vez que Alexina era um sujeito sem
Não se trata, porém, de um caso de identidade possuído por um grande desejo de
homossexualidade feminina, pois nossa Alexina B. mulheres. Se, porém, sua anormalidade não era
estava anatomicamente dotada de um pênis que lhe consentida pelo poder normalizador (talvez uma
permitia um comportamento sexual de homem. das características mais marcantes da racionalidade
A situação veio a tornar-se explosiva quando peculiar da modernidade), que fazer?
Alexina B., já com mais de vinte anos, e que nunca É sabido, e foi importante para Foucault esta
tivera menstruação, queixou-se de fortes dores no descoberta, que as relações
baixo-ventre. Levada ao médico, descobriu-se o identidade/sexo/verdade estiveram também na
hermafroditismo: pênis, escroto, vagina, mas mira das investigações de Peter Brown45, para quem
ausência de útero. A razão das dores foi que um dos “a sexualidade se tinha tornado, nas culturas cristãs,
testículos não descera, na puberdade, para o o sismógrafo da nossa identidade”46.
escroto, fazendo-o tardiamente. Instalou-se o
escândalo, entretanto abafado. Com efeito, a tecnologia cristã do sujeito havia
Alexina B. confessou ao pároco local o seu conduzido ao estabelecimento de uma conexão
problema, mas, em vez da esperada compreensão, positiva entre as três variáveis referidas, na
encontrou ódio. Valeu-lhe o bispo da diocese a que medida em que o crente era convidado a
pertencia, acabando tudo por se resolver com a utilizar técnicas de autoanálise, o célebre exame
constituição de uma nova identidade legal, Abel
Barbin, aconselhado a deslocar-se para Paris, na de consciência herdado da última filosofia
esperança de que pudesse encontrar uma salvação grega, em particular dos estoicos e epicuristas.
para seu tormento psicológico. O fim da história é Ora, uma vez que a luta espiritual, travada
trágico: a morte (suicídio) provocada por no seio do indivíduo, embora sob a orientação de

268 269
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

um diretor de consciência, consistia em decifrar os autoconstituição do sujeito, em contraste com a


ímpetos da libido, esse combate interior apresenta- heteroconstituição, que designamos por sujeição. É
se como uma hermenêutica de si que visava ao justamente essa possibilidade de autoconstituição,
restabelecimento da pureza original do Paraíso de ser outro, que nos permite afirmar que a obra de
antes da Queda, quando a prática sexual, a existir Foucault não é um mapa do universo
(como o admite Santo Agostinho), não seria concentracionário do sujeito moderno, ou uma
motivada por um impulso libidinal de caráter cartilha determinista da condição humana. Era
satânico, mas antes por um abandono total à convicção de Foucault que o grilhão responsável pela
vontade divina, consistindo, assim, o pecado não na não liberdade dos Seres Humanos modernos é
atividade sexual propriamente dita, mas na justamente o seu apego ao desejo, inteligentemente
insubmissão da vontade individual humana à explorado pelo poder dominante, e que só
vontade divina, manifesta na ereção involuntária, poderíamos nos libertar dessa prisão por meio de uma
fruto da libidinosa carne. nova relação com os prazeres48, só alcançável a partir
Todo esse quadro teórico, embora de um novo tipo de erótica, um eros pós-desejo49,
extremamente aliciante e fecundo no tocante à construída com base numa ética do cuidado de si, a que
decifração da genealogia do sujeito moderno, parece a Filosofia definida como “trabalho crítico do
insuficiente para dar conta da complexidade da pensamento sobre si mesmo”50, “uma ascese, um
questão da identidade humana, ainda que centrada exercício de si no pensar”51, nos poderia dar acesso.
no sexo. Essa ética, assente no que poderíamos designar por
Com efeito, se recordarmos as definições de princípio da parcimônia no uso dos prazeres, foi
sexo e sexualidade apresentadas anteriormente, longamente exposta na obra do último Foucault e
teríamos que o sexo parece funcionar no registro do assenta-se essencialmente na recuperação de uma
dever, uma vez que lhe está reservada uma função askesis antiga, os exercícios ascéticos dos filósofos
procriativa no quadro das questões de família, sendo estoicos e cínicos que Foucault apreciava
seu uso regulado pelo Direito, ao passo que a particularmente.
sexualidade se reporta às questões do prazer, função Infelizmente Alexina B. não conhecia esses
afrodisíaca, sendo sobre ela que se exerce a função da exercícios, e Foucault afirma que sua morte ocorreu
Ciência Psicológica, a quem compete definir o por incapacidade de adaptação a uma nova
normal e o anormal, com vistas à constituição da tal identidade.
identidade individual. Quanto a nós, e a fazer fé no relato
Parece, assim, que a dimensão propriamente autobiográfico, foram o desespero, a solidão, a falta
biológica não é considerada, pois que é à de amor e a dificuldade da sociedade em lidar com
sexualidade e aos seus dispositivos que Foucault uma transformação digna das Metamorfoses de Ovídio,
reserva o papel de gestor dos fantasmas eróticos, segundo Abel Barbin, as razões que o terão levado ao
núcleo caótico sobre o qual se organizaria suicídio.
lentamente um superego modelar e normalizador. Se o sexo anatômica e fisiologicamente era
O controle dos corpos é feito, já se viu, por meio indefinido, se o indivíduo foi sujeito a uma identidade
do controle da alma. Entre o indivíduo e ele/ela que contrariava seu desejo e não teve apoios que o
próprio/a, instala-se um abismo, sendo a alma, ajudassem a reconstruir uma identidade outra,
“efeito e instrumento de uma anatomia política, a podemos compreender o desejo de fuga de uma tal
prisão do corpo ”47. situação. Se tivesse havido amor, como o
Há, pois, uma diferença entre sujeito e alma (auto)biógrafo tantas vezes afirma, talvez tivesse
(psyché). Se, com efeito, a psyché é a instância que o encontrado no seu psyché forças para assumir no plano
Poder procura trabalhar com vistas à produção do somático o que, segundo alguns, parece ser a
sujeito, ela parece ser, também, a zona de resistência, constituição ontológica do plano psíquico.
uma vez que inclui o inconsciente. A questão da Assim, posta em confronto com a experiência
resistência é de fundamental importância para a psicológica e ontológica da constituição de uma
compreensão da teorização que Foucault fez da identidade tal como foi vivida pela/o hermafrodita,
identidade. parece que a análise de Foucault peca por
Falamos já de subjetivação , no sentido da insuficiente, o que talvez se deva ao caráter

270 271
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

marcadamente androcêntrico52 de sua obra, em que


pese sua reconhecida homossexualidade.
É nossa opinião que, embora fundamental
para a compreensão da construção da identidade sexo
moderna, a teorização de Foucault exige um
enriquecimento conceitual que nos permita dar
conta de algumas outras nuances peculiares da
constituição ontológica do ser humano.
Referimo-nos, por exemplo, às teorias de
uma androginia fundamental dos Seres Humanos sujeito psyché
encontradas, entre outros, em Platão e em C. G.
Jung.
Por isso gostaríamos de sugerir a utilização
dos pares conceituais macho/fêmea, homem/mulher,
masculino/feminino, para, fazendo-os orbitar em torno das
categorias sexo, sujeito e psyché, respectivamente,
permitir às/aos interessadas/os uma posterior
análise do tema em debate.
A nossa sugestão é, assim, de que os
indivíduos humanos constituiriam sua identidade
em torno da seguinte tópica categorial:
– sexo (organizador dos conceitos macho/fêmea): sua Possibilitar-nos-á essa trindade conceitual
natureza biológica, manifesta nos caracteres compreender melhor a complexidade da
sexuais primários; identidade humana?
– sujeito (organizador dos conceitos homem/mulher): Como nota final, gostaria apenas de dizer
tal como Foucault o define, o locus da sujeição, da que um dos aspectos que imediatamente ressalta do
sexuali- texto de Alexia B. (ou será de Abel Barbin?) é a
dade, a identidade produzida pelo “poder”, o indecisão do gênero (masculino/feminino) no uso
superego da psicanálise; dos adjetivos e das formas verbais. Ao longo da
– psyché (organizador dos conceitos narrativa, é clara a dificuldade de se reconhecer e
masculino/feminino): locus de resistência à sujeição, o identificar como homem ou como mulher (ou será
par de conceitos que, em jogo com o sexo e o sujeito, como masculino/feminino?)
permite a subjetivação, o ser outro. O sofrimento provocado pela diferença é
atroz. Não menos pungentes são a já sublinhada
Teríamos, desse modo, solidão e o desespero confessado após o afastamento
da amada, ocorrido depois da transformação da
identidade oficial.
O texto, em seu dramatismo, não deixa,
contudo, de conter uma afirmação assaz curiosa,
conhecida que é a dificuldade dos homens em
compreender as mudanças de humor atribuídas às
senhoras.
É com essa declaração, não destituída de
interesse sobre o chamado mistério feminino, que
concluímos:
Par une exception dont je ne me glorifie pas, il m’a été donné, avec le
titre d’homme, la connaissance intime, profonde de toutes les
aptitudes, de tous les secrets du caractère de la femme. Je lis dans ce
coeur, à livre ouvert. Je pourrais en compter toutes les pulsations.
J’ai, en un mot, le secret de sa force et la mesure de sa flaiblesse; aussi

272 273
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

est-ce pour cela que je ferais un détestable mari; aussi je le sens, Foucault, Ornicar? Bulletin pétiodique du champ freudien, nº. 10,
toutes mes joies seraint empoisonnés dans le mariage, et Juillet 1977, pp. 62-93, DE, III, pp. 298-329, p. 299.
j’abuserais cruellement, peut-être, de l’immense avantage qui “Chacun de mes livres reprèsente une partie de mon histoire. (…) il ma été
donné d’éprouver ou de vivre ces choses”, M. Foucault, Vérité, pouvoir et
serait le mien, avantage qui tournerait contre moi53. soi, DE, IV , pp. 777-783, p. 779.
“(…) affirmer le caractére autobiographique de la pensée, c’est aussi
reconnaître l’anonymat de tout discours, la formule ‘je suis un auteur’
ayant tout autant le sens (…) qui donne son titre au fameux tableau de
Notas Magritte ‘Ceci est une pipe’. (…)”, P. Macherey, Foucault: éthique et
subjectivité, À quoi pensent les philosophes, série mutations, nº. 102,
Paris, Autrement, 1990, pp. 92-103, p. 102.
Fernando Pessoa, Revista Portuguesa, nº 23/24, 13 de “(…) L ’extension progressive des dispositifs de disciplines au long des XVIIe.
outubro de 1923. Et XVIIIe. siècles (…) la formation de ce qu’on pourrait appeler en gros la
Ver Jon Simons, Foucault’s Mother , Hekman, J., (ed.), société disciplinaire.”, M. Foucault, Surveiller et Punir, Paris,
Feminist interpretations of Michel Foucault, Pennsylvania, Gallimard, p. 211. (SP).
Pennsylvania State University Press, 1996, pp. 179-209. “Ces méthodes qui permettent le contrôle minutieux des opérations du corps,
Trata-se de uma senhora com quem Foucault trabalhou nos qui assurent l’assujettissement constant de ses forces et leur imposent un
anos da sua formação em Psicologia, e cujo marido fez uma rapport de docilité-utilité, c’est cela qu’on peut appeler les ‘disciplines’”,
tese sobre Lacan. Foi a seu convite que Foucault prefaciou Foucault, SP,p. 139.
a tradução que ela fizera da obra de Otto Binswanger, O “On leur demandait surtout à l’origine de neutraliser les dangers, de fixer
sonho e a existência, em que o psiquiatra alemão aplicou a des populations inutiles ou agitées (…) on leurs demande désormais (…)
“análise existencial” (Daseinanalytik) do Heidegger de Sein de jouer un rôle positif, faisant croître l’utilité possible des individus”, M.
und Zeit. Cf. Eribon, Didier, Michel Foucault 1926-1984, Paris, Foucault, SP, p. 211.
Flammarion, 1991, pp. 62-69, em especial a p. 66. O prefácio “Ainsi l’école chrétienne ne doit pas simplement former des enfants dociles;
de Foucault pode ser encontrado em Dits et fícrits, vol. I, pp. elle doit aussi permettre de surveiller les parents, de s’informer de leur
65-119 (DE). mode de vie, de leurs ressources, de leur piétè, de leurs moeurs”, M.
Embora possamos encontrar algumas reflexões sérias Foucault, SP, p. 213.
sobre a complexidade das relações estabelecidas entre O poder em sentido negativo é apresentado como o
mulheres no decurso de uma conversa que Foucault exercício da dominação, caracterizado por uma total
manteve com o cineasta Werner Schroeter a propósitodos ausência de relações – portanto, de sentido único. Ainda
filmes A morte de Maria Malibran e Willow Springs, parece, assim, gerador de resistência.
contudo, que a atenção de Foucault foi mais atraída pela “( … ) i l n’y a p a s d e p o uvo i r q u’e xe r cé p a r l es ‘uns’ sur l es ‘a utr es ’”, M .
análise das diferenças entre paixão e amor.
Foucault, Deux essais sur le sujet et le pouvoir, Dreyfus e Robinow,
A morte do Homem foi (re)anunciada por Foucault: “(…) c’est op. ult. cit., p. 312.
dans la mort de l’homme que s’acomplit la mort de Dieu”, in TC , p. 127;
“Plus l’homme s’instale au coeur du monde, plus il avance dans la François Ewald adverte-nos: “Il faut ne pas confondre ‘norme’ et
possession de la nature, plus fortemente aussi il est pressé par la finitude, ‘discipline’”. Les disciplines visent les corps, avec une fonction
plus il s’approche de sa propre mort.”, MC, p. 271; e “L’homme est une de dressage; la norme est une mesure, une manière de
invention d’ont l’archeologie de notre pensée montre aisément la date produire de la commune mesure”, Un pouvoir sans dehors,
récente. Et peut-être la fin prochaine.”, MC , p. 398. Essa declaração Michel Foucault philosophe, Paris, Ed. du Seuil, 1989, pp. 196-
provocou, na época, e sem qualquer justificação, um certo 202, 201-202.
alarido, pois o tema já fora tratado por André Malraux, que, “Une fois pour toutes, Mably a formulé le principe: Que le châtiment, se je
na senda de Nietzsche, afirmou: “Pour détruire Dieu, et après puis ainsi parler, frappe l’âme plutôt que le corps”, M. Foucault, SP, p.
l’avoir détruit, l’esprit européen a anéanti tout ce qui pouvait s’opposer à 22. A necessidade de preservar os corpos e de os fazer
l’homme: parvenu au terme de ses efforts, comme Rancé devant le corps de produzir já tinha sido apresentada em Histoire de la Folie; v., p.
sa maîtresse, il ne trouve que la mort.”, La tentation de l’Occident, ex., Troisième partie, Cap. II, pp. 427-431: trata-se da
Paris, Livre de Poche, p. 158. descoberta da população como força produtiva e do
“Ce n’est pas le pouvoir, mais le sujet, qui constitue le thème générale de mes consequente nascimento do célebre bio-pouvoir.
recherches”, M. Foucault, Deux essais sur le sujet et le pouvoir, “Par l’effet de cette retenue nouvelle, toute une armée de
in Dreyfus & Rabinow, Michel Foucault, un parcours techniciens est venue prendre la relève du bourreau,
philosophique, Paris, Gallimard, 1984, p. 298, Le sujet et le anatomiste immédiat de la soufrance: les surveillants, les
popuvoir, DE, IV , pp. 222-243, p. 223. médecins, les aumôniers, les psychiatres, les psychologues,
M. Foucault, Le retour de la morale, entrevista a G. Barbedette les éducateus; (...)”, M. Foucault, SP, p. 17.
e A. Scala, DE, IV, pp. 696-707. “(…) L ’‘esprit’ comme surface d’inscription pour le pouvoir, avec la
“Foucault définit le ‘dispositif’ comme ce qui apparaît quand on a réussi à sémiologie pour instrument; la soumission des corps par le contrôle des
isoler ‘les stratégies des rapports de force qui sous-tendent le savoir et vice- idées; l’analise des
versa’”, Dreyfus e Rabinow, MF, un parcours, p. 178. Com efeito, représentations, comme principe d’une politique des corps bien plus efficace
diz Foucault: “Le dispositif] (…) c’est (…) un ensemble résolument que l’anatomie rituelle des supplices”, M. Foucault, SP, p. 105.
hétérogene, comportant des discours, des institutions, des aménagements “Les ‘Lumières’ qui ont découvert les libertés ont aussi inventé les
architecturaux, des décisions réglementaires, des lois, des mesures disciplines”, M. Foucault, SP, p. 224.
administratives, des énoncés scientifiques, des propositions philosophiques, “La technique pénitentiaire et l’homme délinquant sont en quelque sorte
morales, philanthropiques (…). Le dispositif lui-même, c’est le réseau qu’on frères jumeaux. (…) Elles sont apparues toutes deux ensemble et dans le
peut établir entre ces éléments.” M. Foucault, Le jeu de Michel prolongement l’une de l’autre (…)”, M. Foucault, SP, p. 259.

274 275
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

“On peut dire que la délinquance,solidifiée par un système pénal centré sur “Le sexe est au contraire l’élément le plus spéculatif, le plus idéal (…)”,
la prison, représente un détournement d’illégalisme pour les circuits de M. Foucault, op. ult. cit., ibidem.
profit et de pouvoir illicites de la classe dominante”, M. Foucault, SP, p. “(…) le sexe-désir (…)”, M. Foucault, VS, p. 208 .
286. “(…) Des trois modes d’objectivationqui transforment les êtres humains en
Herculine Barbin dite Alexina B ., présenté par M. Foucault, sujets”, M. Foucault, Le sujet et le pouvoir, DE, IV , pp. 222-
Paris, Gallimard, 1978. Com direção de Hervé Guibert foi 243, 223.
mesmo rodado um filme com Isabelle Adjani no papel “Il y a deux sens au mot ‘sujet’: sujet soumis à l’autre par le contrôle et la
principal, tendo o próprio Michel Foucault dépendance, et sujet attaché à sa propre identité par la conscience ou la
desempenhado um papel secundário. connaissance de soi. Dans les deux cas, ce mot suggère une forme de pouvoir
“C ’est l’innombrable famille des pervers qui voisinent avec les délinquants qui subjugue et assujetit”, M. Foucault, op. ult. cit., ibidem, p. 227.
et s’apparentent aux fous”, M. Foucault, La Volonté de Savoir, p. 55- “(…) Le sujet humain est pris dans des rapports de production (…) de
56, (VS). sens (…) [et] de pouvoir d’une grande complexité.”, M. Foucault, op. ult.
“Une société normalisatrice est l’effet historique d’une cit, ibidem.
technologie de pouvoir centrée sur la vie”, M. Foucault, VS, p. Paul Rabinow, The Foucault Reader , N. York, Penguin
190. Books, p. 11.
Isso seria particularmente verdade, segundo Wilhelm “J ’apellerai subjectivation le processus par lequel on obtient la constitution
Reich, no sistema político-social genericamente designado d’un sujet, plus exactement d’une subjectivité, qui n’est évidemment que
por fascismo e, depois, também sob o stalinismo. l’une des possibilités données d’organization d’une conscience de soi.”,
M. Foucault, Les rapports de pouvoir passent à l’intérieur M. Foucault, L’éthique du souci de soi comme pratique de la
des corps, La Quinzaine Littéraire, nº. 247, 1-15 de janeiro de liberté, DE, pp 708729, 706.
1977, pp. 4-6, DE, III, pp. 228-236.
“(…) Un discours spécifique sur le sexe en articulant les obligations “L ’h o mm e d o nt o n n o u s p a rl e e t q u ’ o n i n v i t e à l ib é r e r es t d é j à e n lu i -
religieuses ou légales du mariage sur les codes de transmissions des biens m ê m e l’effet d’un assujettissement bien plus profond que lui. Une ‘âme’
et les liens du sang ”, Dreyfus e Rabinow, Michel Foucault, un l’habite et le porte à l’existence, qui est elle-même une pièce dans la
parcours (…), Paris, Gallimard, 1984, p. 245. maîtrise que le pouvoir exerce sur le corps. L’âme, effet et instrument
“On peut admettre sans doute que les relations de sexe ont donné lieu, dans d’une anatomie politique; l’âme, prison du corps”, M. Foucault, SP ,
toute société, à un dispositif d’alliance (…)”, M. Foucault, VS, p. 140. p. 34. Ver, a propósito, Judith Butler, Subjection, Resistance
Resignification: between Freud and Foucault, in Rajchman,
“(…) ‘Sexualité’, c’est l’ensemble des effets produits dans les corps, les John, ed., The Identity in question, Routledge, N. Y., 1995, pp.
comportements,les rapports sociaux par unecertaine dispositifrelevantd’une 229-249, e Bartky, Sandra Lee, Femininity and Domination ,
technologie politique complexe (…)”, M. Foucault, VS, p. 168. Routledge, N. Y., 1990, em especial o Cap. 5, Foucautl,
“La question de ce que nous sommes, une certaine pente nous a conduits (…) Femininity and the modernization of patriarchal power, pp.
à la poser au sexe”, “Dès qu’il s’agit de savoir qui nous sommes, c’est elle [la 63-82.
logique de la concupiscence et du désir] qui nous sert désormais de clef Introduction in HerculineBarbin, Being the RecentlyDiscoveredMemoirs
universelle”, of a Nineteenth Century French Hermaphrodite, N. Y. Pantheon
M. Foucault, VS, pp. 102 e 103, respectivamente. Books, 1980, pp. VII-XVII, trad. francesa, revista pelo autor,
Assumimos aqui uma certa consonância com Angel DE, IV, pp. 115-123.
Gabilondo, que também aceita a existência de uma gnose em M. Foucault, DE , IV , p. 118.
Foucault, nomeadamente em “Moi”: el gnoze de Foucault”, Brown, Peter, The Body and Society: Men, Women & Sexual
Anuario de Filosafia, Universidad Autonoma de Madrid, 1986- Renunciation in Early Christianity , N. York, Columbia
1988, pp. 63-81. Divergimos, no entanto, quando o autor University Press, 1988.
considera Moi, Pierre Riviére (...) a “(...) clave/llave de su [dos M. Foucault, Sexualité et Solitude , DE , IV , pp. 168178, p. 172.
escritos de Foucault] lectura”. Se existe uma chave
(preferimos pensar que há várias), estaria antes em Herculine V er nota 26.
Barbin dite Alexina B. Diz Gabilondo a propósito de Moi, “Contre le dispositif de sexualité, le point d’appui de la contre-attaque ne
Pierre Riviére (...): “La narración del Sr. Riviére vincula a Pierre a una doit pas être le sexe-désir, mais les corps et les plaisirs”, M. Foucault, VS,
determinada identidad. (...) Pierre Rivière [...] se historiza como sujeto p. 208.
ético (...). No estamos sólo ante la constitución de un yo (je), sino de una “Eros after desire”, na expressão de Rajchman. Cf. Rajchman
experiencia”. Se nosso juízo é correto, tal asserção aplica-se à J., Truth and Eros, Foucault and the Question of Ethics, New York,
obra em referência, mas, por maioria de razão, a Herculine Routledge, 1991, p. 87.
Barbin dite Alexina B : não é aí, com efeito, que o sujeito “(…) le travail critique de la pensée sur elle-même.”, M.
procura constituir-se, não apenas ética mas ontologicamente Foucault, UP, p. 14, “(…) la philosophie (…) une ‘ascèse’, un exercice de
(se em Foucault tal diferença se consente), por meio da
problematização e da escrita da experiência da sexualidade? Fez soi, dans la pensée.”, M. Foucault, UP, p. 15.
Foucault algo de diferente em sua Histoire de la Sexualité? O “(…) la philosophie (…) une ‘ascèse’, un exercice de soi, dans la pensée.”,
texto de Gabilondo aparece inserido no nº. 19 da Revista de M. Foucault, UP, p. 15.
Comunicação e Linguagem , dedicado a Foucault, em tradução de Jon Simons fala mesmo de cegueira(para a diferença)de
Bragança de Miranda, pp. 137-149, sob o título “Moi” – o eixo gênero e de androcentrismo. Ver nota 2.
de Foucault.” Herculine Barbin dite Alexina B ., pp. 119-120.
“Le sexe, cette instance qui nous paraît nous dominer et ce secret qui nous
semble sous-jacent à tout ce que nous sommes (…). Le sexe n’est sans doute
qu’un point idéal rendu nécessaire par le dispositif de sexualité (…)”, M.
Foucault, VS, p. 205.

276 277
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

POSFÁCIO

No livro O que os filósofos pensam sobre as mulheres, Maria


Luísa Ribeiro Ferreira nos convida a reler a história da filosofia
expondo de que forma a mulher é compreendida. O que resulta
é um amálgama de descrições negativas sobre as mulheres e,
muitas vezes, a exposição da ausência do debate na filosofia.
Tanto a ausência, quanto a assimetria na representação da
mulher em relação à figura masculina, pode nos dizer muito
acerca do androcentrismo naturalizado e perpetuado ao longo
da história do pensamento. O que Maria Luísa Ribeiro faz é
expôr esse subtexto para, através do rompimento desse silêncio,
finalmente possibilitar o debate acerca deste tema urgente. A
iniciativa que gerou o livro lançado em Lisboa em 2009, produz
efeitos que ainda ecoam no Brasil em 2021. Nós do GEIMF
encontramos no texto um meio para suprir as lacunas percebidas
nas grades curriculares dos cursos de Filosofia que lecionamos,
na nossa própria formação e um apoio importante no processo
de visibilizar as vozes femininas na filosofia no Brasil.
Atualmente, o passo dado por Maria Luísa Ribeiro nos
possibilita almejar ir além da representatividade – este, que é um
elemento importante para o debate acerca das mulheres na
filosofia. Além de incluir mulheres nos espaços filosóficos,
talvez, a reflexão crítica acerca da história da filosofia e a
denúncia da parcialidade imposta através de uma suposta
universalidade conceitual, nos leve à conclusão de que, mais do
que questionar a representação da mulher no modelo de
produção filosófica tradicional/cânone, a discussão precise
voltar-se também sobre como fazemos filosofia.
A partir da pergunta de Maria Luísa Ribeiro sobre o que
os filósofos pensam sobre as mulheres, nós podemos, então,
perguntar também: o que pensam as filósofas? Dessa forma,
finalmente, seria possível construir um discurso sob nossas
próprias vozes e ressignificar a autoridade de uma tradição do
passado e da busca de referências femininas apagadas da história
da filosofia. Considerando estas perguntas não apenas em
retrospectiva, através da revisão filosófica mas, sobretudo,
prospectivamente, na construção de novos debates. Pois, em que
medida o modo como compreendemos conceitos fundamentais
da filosofia como razão, sujeito, trabalho, democracia, espaço

278 279
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

público, entre muitos outros exemplos possíveis, não está filosófico para além da epistemologia europeia e masculina, a
construída sob um androcentrismo velado? A inclusão de novas partir da qual este articulou-se até então? Esta é uma pergunta
vozes não se faz efetiva através da inserção no cânone da história que construiremos as respostas através de passos como o de
da filosofia, mas apenas através da subversão deste mesmo Maria Luíza Ribeiro, cuja relevância nós do GEIMF renovamos
cânone. através da iniciativa de relançar essa obra no Brasil. E em novos
Percebemos o debate atual acerca das mulheres e a passos, que seguramente daremos daqui para frente, assumindo
filosofia, em consonância – e, talvez, em continuidade – com a o imenso desafio de não restringir-nos em buscar nossas
crítica filosófica à modernidade. Mais do que um tema esquecido representações em outras vozes.
a ser explorado, a tarefa de compreender o lugar das mulheres Maria Luíza Ribeiro põe a mulher como uma questão a
na filosofia significa o aprofundamento do movimento de crítica ser apreciada filosoficamente, assim como o fez anteriormente
à metafísica iniciada por Hegel, investigada pela filosofia Simone de Beauvoir em seu célebre O Segundo Sexo em 1949.
posterior, sob pontos de vista diversos, e em curso na filosofia Beauvoir evidencia como a filosofia auxiliou na definição da
contemporânea. Significa uma continuação inevitável do alteridade feminina como segundo sexo na história. A frase a
processo de destranscendentalização da filosofia clássica “humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em
europeia. Como resultado desse processo, o pluralismo e si, mas relativamente a ele” (BEAUVOIR, 2009, p.16)
contextualismo ganham espaço na filosofia contemporânea, movimentou todo um campo discursivo de busca de nomes das
confrontando a sua vocação universalista anterior. Esse mulheres apagadas na história do pensamento. A filosofia
movimento de autocrítica não se faz completo sem a reflexão tradicional silenciou as vozes femininas, o que mobiliza
acerca da pretensa neutralidade do sujeito epistemológico e a atualmente uma certa urgência na busca da construção de um
devida compreensão acerca das subjetividades subalternizadas. campo epistemológico e político na área. Uma necessidade de
O sujeito universal, trajado em vestes de pretensa totalidade e representação e visibilidade intelectual toma corpo e nos
suposta neutralidade, representativo para humanos como tal, impulsiona para outras águas. Dessa forma, verificamos que as
oblitera as diferenças de gênero, raça e contexto social, filhas e netas de Simone de Beauvoir fazem ainda rebuliço na
deslegitimando o papel dessas diferenças na formação da construção do conhecimento. A produção na área de filosofia e
subjetividade. Ao fim e ao cabo, é a imagem do sujeito masculino gênero, tanto a nível internacional, como nacional é
europeu – e seu modo de conhecer – que, ao constituir-se como consideravelmente recente. No Brasil podemos demarcar o início
universal, relega à subjetividade feminina ao caráter de uma há mais ou menos vinte décadas, quando a professora Márcia
variante secundária. Quando Kant em Resposta à Pergunta: O que Tiburi organizou em 2001 o congresso As Mulheres e a filosofia
é o Esclarecimento nos expõe o ideal de um sujeito racional e na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), e que
emancipado, visualizamos esse sujeito como uma mulher? resultou em 2002 numa publicação pela editora da mesma
Atualmente, outras vozes emergem e disputam seu universidade. O livro As Mulheres e a filosofia foi uma produção
lugar. Outras subjetividades pretendem também ser inédita e que inaugurou, portanto, as movimentações na área de
reconhecidas como sujeitos epistemológicos. A crítica decolonial estudo no país3.
expõe o elemento eurocêntrico implícito à filosofia. A crítica
feminista aponta o androcentrismo, desnaturalizando o gênero
biológico e desestabilizando a narrativa da filosofia clássica. A 3 Vale ressaltar que a nossa escolha da demarcação temporal do início da
crítica antirracista expõe o subtexto racista da razão iluminista. produção filosófica feminista no Brasil, tomando como referência a professora
Márcia Tiburi se justifica pelo fato da obra As mulheres e a Filosofia ter aberto
O processo é incontornável: precisaremos discutir como incluir caminhos institucionais para o debate na área, não tendo como pretensão
essas vozes na filosofia. Isso implica ir além de expôr sobre como abandonar ou inferiorizar as referências intelectuais anteriores como, por
se falou acerca destas subjetividades até então, ou como não se exemplo, a produção da filósofa e ativista/militante Lélia Gonzalez. Gonzalez
falou. É nascente a necessidade de trazer para dentro da teoria inaugurou a discussão sobre interseccionalidade entre gênero e raça no Brasil na
década de 70 e 80, e na militância foi co-fundadora do Instituto de Pesquisas das
elementos tratados como divergentes, secundários e, por isso, Culturas Negras do Rio de Janeiro (IPCN-RJ), do Movimento Negro Unificado
excluídos da pretensa universalidade. Como articular o discurso (MNU) e do Olodum.

280 281
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Percebe-se a relevância da Universidade do Vale do Rio


dos Sinos (UNISINOS) para com esse momento embrionário de ENTREVISTA COM A PROFA. DRA. MARIA LUÍSA R.
pesquisa neste campo temático a nível nacional, o que irá
preparar terreno para recepção calorosa de outra produção em FERREIRA
2010, o livro O que os filósofos pensam sobre as mulheres organizado
pela professora portuguesa Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta
pesquisa nos abriu caminhos novos e, hoje, a produção é sem GEIMF. 1. O seu livro responde à pergunta “O que os
dúvidas destaque em qualquer bibliografia de pesquisa referente filósofos pensam sobre as mulheres”. Porque a escolha de
ao assunto. A abertura do campo de pesquisa com a publicação
da Professora Márcia Tiburi e nove anos depois a publicação falar das mulheres através da voz masculina?
organizada pela professora Maria Luísa Ribeiro Ferreira,
estruturou a percepção e ação da produção filosófica feminina no
Maria Luísa R. Ferreira. A escolha foi feita deliberadamente
nosso país.
É possível que estes fatos tenham influenciado decisivamente o para mostrar que os filósofos também têm preconceitos. É
início da construção de grupos de pesquisas na área de filosofia
curioso como pessoas que deliberadamente se colocam num
e gênero no Brasil. Destacamos, entre eles, o surgimento do
laboratório de pesquisa Antígona, este ligado ao departamento plano diferente daquele que é seguido pelo senso comum, no
de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
que respeita ao tema das mulheres aceitam sem qualquer
coordenado desde o surgimento pela Professora Susana de
Castro (UFRJ), também Coordenadora do GT Filosofia e Gênero reserva o estatuto que durante séculos foi o delas – o de
e atualmente Presidente da Associação Nacional de Pesquisa em
cidadãs de segunda, circunscritas ao espaço doméstico e às
Filosofia (ANPOF) no biênio 2021-2022.
No cenário português, a obra da professora Maria Luíza tarefas do cuidado. É pouco comum analisar o que os filósofos
Ribeiro Ferreira se acentua como pioneira na temática. Como ela
escreveram sobre a situação feminina. Na realidade nunca se
nos afirma na apresentação do texto da primeira edição
brasileira, o projeto de pesquisa Uma filosofia no feminino (1997- demoraram muito sobre esse tema mas quando o abordaram
2002) surge por uma indagação levantada em um ciclo de
a grande maioria aceitou os clichés dominantes. Exemplifico
conferências sobre filosofia, a grande questão era “por que será que
não há mulheres filósofas?”. A professora nos relata que a partir com pensadores de várias épocas: Platão, Aristóteles, Santo
dessa provocação, houve uma mobilização para construção do
Agostinho, Padres da Igreja, Espinosa, Rousseau, Kant,
projeto de pesquisa, que até 2016 já tinha sido publicados seis
volumes, e se fortaleceu numa linha de investigação na Nietzsche, Russell, etc.
Universidade de Lisboa.
Portanto, consideramos de extrema importante a
reedição deste texto para nosso cenário atual. A produção na área 2 - A ideia de trabalhar uma filosofia no feminino está
se multiplicou desde a primeira publicação desta obra no Brasil, necessariamente ligada com o feminismo (ou pautas
e acreditamos que a reedição no momento com tanta pulsação de
vida na área será de grande valia para mais um passo de feministas)?
consolidação do campo. Esperamos que a Revolução se Sim, necessariamente nos situamos numa perspectiva
aproxime cada dia mais, e que possamos não mais justificar
nosso lugar como produtoras de conhecimento filosófico, mas feminista ao querer mostrar o contributo das mulheres no que
que tenhamos respeito e trocas com reciprocidade. Avante, respeita à filosofia. É um dever ético pois o esquecimento a
companheiras!
que durante muito tempo foram votadas é incompreensível e

282 283
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

imoral. Presentemente a situação alterou-se muito, mas estatuto do chefes de família, o acesso das mulheres à cultura
lembro-me que, há vinte anos atrás, quando concorri a um e ao mercado profissional, devem ser objeto de reflexão,
projeto de investigação da FCT (Fundação para a Ciência e numa tentativa de harmonizar tanto quanto possível os seus
Tecnologia) a proposta foi aceite pelo seu carácter inovador direitos em contextos onde eles têm sido ignorados. É um
em Portugal. Obviamente que nem todas as filósofas foram problema que diz respeito genericamente à filosofa e à
feministas mas a recuperação do seu pensamento, mesmo necessidade que nela sentimos de abrir novos horizontes que
quando não tratam de problemas de género, é um contributo de longe ultrapassam a sua matriz europeia e ocidental.
para a dignificação das mulheres enquanto pensadoras,
mostrando a sua existência bem como o modo como lhes foi 4- Sabemos deste e outros livros publicados, bem como

possível participar num mundo onde durante muito tempo a construção de uma linha de pesquisa na Universidade de

as vozes masculinas tinham um domínio exclusivo. Lisboa. A professora poderia destacar quais os frutos que o
projeto “uma filosofia no feminino” trouxe ao cenário
3- Além disso, a sua obra escolhe abordar essa questão português?
através da história da filosofia canônica e europeia. A Felizmente este projeto não é nem foi único. Há em Portugal
questão acerca da invisibilidade das mulheres na Filosofia um grande interesse pelos estudos sobre mulheres, não só no
não nos suscita também a discussão acerca da ideia de que domínio da filosofia mas também no âmbito de outras
a filosofia continental representa a História “oficial” da disciplinas como a história, a sociologia, a psicologia, a
filosofia? antropologia cultural e outras ciências humanas. Quando nos
O problema levantado nesta questão é pertinente e começa debruçamos sobre os currículos oferecidos pelas diferentes
hoje a ser trabalhado nos estudos feministas que se abrem a universidades portuguesas verificamos que o interesse se
fatores étnicos e culturais. Um campo que começa a dar fruto mantém. Mas tudo depende do entusiasmo das(dos)
nos “women studies” é o da multiculturalidade e dos diferentes investigadoras(es). Parece-me significativo o facto de a
modos de habitar o mundo. A necessidade de respeitar as disciplina de As mulheres na filosofia ter desaparecido do curso
diferenças culturais e as mundividências específicas, exigem de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de
uma reflexão simultaneamente de abertura e de justiça. O Lisboa, depois da minha aposentação.
caso das mulheres islâmicas, africanas e asiáticas, desejosas
de liberdade mas simultaneamente guardiãs de tradições 5- Na sua opinião, a visão que os filósofos têm das mulheres

seculares que não pretendem esquecer, levanta problemas influenciaram ou influenciam os escritores literários na

interessantes - o uso do véu, os costumes matrimoniais, o escrita de suas obras?

284 285
o que os filósofos pensam sobre as mulheres o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Nunca me debrucei sobre este tema e agradeço a pista que me indígenas. Mas verifico, com pesar, que os estudos realizados
levantaram para uma eventual investigação num futuro se têm processado mais no âmbito das ciências humanas do
próximo. que na filosofia stricto sensu.

6- Após tanto tempo de pesquisa, escrita e publicação


sobre a posição (o pensamento) dos filósofos acerca da
mulher, como a professora avalia atualmente a relevância
dessa abordagem para os círculos acadêmicos da filosofia e
além destes?
Como já referi na questão quatro a importância deste tema
depende muito do entusiasmo e da boa vontade do(a)s
investigadora(e)s e da(o)s docentes. Mas o balanço é positivo
pois ele continua presente quer no currículo das várias
universidades portuguesas quer nos projetos de investigação.
Acontece, no entanto, que o interesse é maior no que respeita
às ciências humanas do que na filosofia propriamente dita.
Ao analisar os programas de diferentes cursos universitários
constatamos que os estudos sobre mulheres aparecem
frequentemente no elenco disciplinar das humanidades.

7- Você acredita que é possível a academia romper com


essa estrutura androcêntrica e européia ampliando suas
discussões, pensando sobre novas perspectivas a partir de
grupos que foram silenciados, como mulheres, população
lgbtqi+, população negra e indígenas?
Há um ditado português que afirma: “a esperança é a última
a morrer”. Verifico que nomeadamente nos Estados Unidos
da América e em alguns países europeus onde as emigrantes
têm peso, há bastante investigação alargada a diferentes tipos
de população, nomeadamente lgbtqi+, população negra e

286 287

Você também pode gostar