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Texto 1 – As dislexias adquiridas

Esse texto foi retirado de partes do Capítulo 1 do livro “A Leitura e Escrita:


uma abordagem cognitiva1

1.2.3 As dislexias adquiridas


No século XIX, o estudo neurológico sobre a linguagem concentrou-se no

estabelecimento de relações entre regiões cerebrais e comportamentos verbais específicos.

Uma das contribuições mais importantes dessa visão locacionista para o estudo da

linguagem foi a associação entre desordens da linguagem e lesões no hemisfério esquerdo.

Broca, em 1861, ofereceu prova anatômica de que as desordens da linguagem ocorrem

como resultado de lesões na zona anterior do hemisfério esquerdo ficando, por isso, essa

zona do cérebro conhecida como “área de Broca”. Coube a Wernicke, em 1875, demonstrar

que uma lesão na parte temporal-parietal do córtex cerebral produzia uma forma de

distúrbio na linguagem que diferia daquela descrita por Broca. Essa zona passou a ser

denominada “área de Wernicke”.

Atualmente, admite-se que as funções primárias da linguagem são acomodadas no

hemisfério esquerdo, incluindo a área de Broca, a área de Wernicke e outras zonas de

associação do córtex do hemisfério esquerdo, especialmente a zona terciária.

As desordens de linguagem que ocorrem após lesões cerebrais são conhecidas como

afasias. Essas desordens da compreensão e/ou da produção da fala podem ser

acompanhadas de distúrbios da escrita (disgrafia) e/ou da leitura (dislexia). Em muitos

casos, esses distúrbios são o principal sintoma da afasia e, em outros, eles são apenas parte

do quadro geral dessa condição. Em um caso ou em outro, as dificuldades de leitura dos

afásicos são conhecidas como dislexia adquirida. Da mesma forma que as pesquisas

PINHEIRO, A. M. V.. A Leitura e Escrita: uma abordagem cognitiva. 2a.. ed. São Paulo: Editora Livro Pleno,
Ltda, 2008. v. 1000. pp. 34 e 63-70.

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mostram existirem vários tipos diferentes de afasia, muitos tipos de dislexia têm também

sido descobertos e, o modelo de duplo-processo de leitura tem sido usado como um meio de

descrever as dificuldades de leitura e escrita dos afásicos.

Como consequência, a definição dos tipos de dislexia é feita em termos de danos

aos componentes desse modelo de leitura. Dependendo da localização da lesão no cérebro,

distinguem-se duas classificações principais de dislexia: “periférica” e “central” (Shallice,

Warrington; 1980). Na primeira, o dano é localizado em partes diferentes no percurso da

rota visual ao significado. Os distúrbios podem ocorrer no nível da identificação de letras,

dislexia de negligência, no nível da análise visual, dislexia atencional, ou no nível do

processamento global e do reconhecimento de palavras como um todo, leitura letra-a-letra.

Nas dislexias centrais, o dano pode ser localizado em partes da rota fonológica ou na rota

semântica (síndrome de um único componente), ou em partes destas duas rotas (síndrome

de componentes múltiplos). Exemplos de síndromes de um único componente são a

dislexia fonológica e a dislexia semântica. Na primeira, o distúrbio é o resultado de danos

ao acesso por meio de mediação fonológica à pronúncia e, na segunda, o distúrbio é

causado por rompimento do acesso à semântica. Exemplos de síndromes de componentes

múltiplos são a dislexia profunda, na qual a perda ou dano no processo fonológico é

combinado com distúrbios no sistema semântico, e a dislexia superficial, na qual o déficit

principal parece causado pelo rompimento parcial ou total da rota lexical, o que dificulta o

reconhecimento de palavras por endereçamento direto ao léxico. Nesta condição, embora os

pacientes pareçam ler pela via fonológica, há indícios de que o processo fonológico

utilizado encontra-se também parcialmente comprometido.

Entre esses tipos de dislexia, as mais estudadas são as seguintes: leitura letra a letra,

dislexia fonológica, dislexia superfical e dislexia profunda. Veremos, a seguir, detalhes

complementares de cada uma dessas síndromes.

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1.2.3.1. Leitura letra a letra
Os leitores letra a letra, como o próprio nome sugere, têm dificuldade em perceber a

forma global das palavras. O paciente lê palavras somente soletrando-as silenciosamente ou

em voz alta. Como consequência, estímulos contendo muitas letras (palavras ou

pseudopalavras longas) são o fator que mais afeta a habilidade de leitura desses pacientes.

Essa dificuldade precede o processo de conversão grafema-fonema e o acesso lexical direto

(Patterson & Kay, 1982; Shallice e Warrington, 1980).

1.2.3.2. Dislexia fonológica


O disléxico fonológico tem como característica principal uma grande dificuldade na

leitura de palavras desconhecidas e de pseudopalavras, como resultado de uma perda

substancial da capacidade de conversão de grafema em fonema. Devido à preservação da

rota visual, a leitura de palavras familiares (regulares/irregulares e curtas/longas) é feita

normalmente, o que implica uma ausência do efeito de regularidade e do efeito de

comprimento2 (Beauvois & Dérousné, 1979; Funnel,1983; Patterson, 1982; Shallice &

Warrington, 1980).

1.2.3.3. Dislexia superficial


Quando descrevemos a leitura pela via de mediação fonológica, afirmamos que esse

processo de leitura causava dificuldades para a leitura de palavras irregulares e de

homônimos. No caso da dislexia superficial, uma vez que a leitura é feita basicamente pela

rota fonológica – devido à limitações no uso da rota lexical, que se encontra danificada – é

de se esperar que os pacientes nessa condição, apresentem erros nessas classes de palavras.

O efeito de comprimento refere-se à leitura mais rápida e/ou mais correta de palavras curtas em relação às
palavras mais longas. Como o processamento pela rota lexical tende a ser paralelo, a extensão das palavras
não afeta a leitura. Um forte efeito de comprimento é tomado como indício de processamento serial, que é
característico da leitura fonológica.

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Considerando a primeira classe de estímulos – palavras irregulares – o paciente,

lendo pelo menos algumas palavras pela rota fonológica, terá mais possibilidade de

construir uma pronúncia correta paqra uma palavra regular do que para uma palavra

irregular. De fato, experimentos mostram que realmente esses disléxicos leem palavras

regulares, em voz alta, com mais facilidade do que as palavras irregulares (Coltheart, 1982;

Shallice & Warrington, 1980).

Os erros em palavras irregulares são denominados erros de regularização porque

refletem uma tentativa de aplicar as regras de correspondência regular entre grafema e

fonema a uma correspondêcia irregular, ou seja, uma tentativa de tratar o estímulo como se

ele fosse regular. Algumas vezes, esses erros, assim como os erros de outras naturezas,

geram palavras (ex., "cassa" por casa), e, em outras, eles geram respostas que não são

palavras (ex., "boche" por boxe e "orgão" ou "orgam" por órgão). O último tipo de resposta,

formando agrupamentos de sílabas sem sentido, será aqui denominado resposta-

pseudopalavra.

Embora tenhamos dito que, em geral, os pacientes com dislexia superficial têm

dificuldades com palavras irregulares, alguns desses pacientes conseguem ler corretamente

um bom número dessas palavras. Sabendo-se que na dislexia superficial o reconhecimento

por endereçamento direto do léxico parece estar dificultado devido a um rompimento da

rota lexical, a possibilidade de leitura de palavras irregulares parece, à primeira vista, estar

em contradição com o modelo duplo-processo. Todavia, os erros na compreensão de

homônimos demonstram que esses pacientes não obtêm a pronúncia de palavras irregulares

pela via léxico-semântica. Newcombe e Marshall (1982) relataram o caso de um paciente

com dislexia superficial que leu corretamente palavras como mown (cortar grama), some

(algum/a), bury (enterrar) e four (quatro), entre outras palavras de uma lista, mas, ao ser

indagado sobre os itens lidos (todos eles palavras irregulares com pronúncia inconsistente3)

3. Mown, some, bury e four são palavras irregulares porque deveriam, respectivamente, ser
pronunciadas para rimar com down, home, jury e flour, contrapartes com terminações gráficas
idênticas.

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atribuiu-lhes os seguintes significados: "chorar", "dinheiro", "chapéu" e "para você",

respectivamente, por associação, com moan (resmungar), sum (soma), beret (boina) e for

(para) - palavras regulares - que são homônimos de mown, some, bury e four,

respectivamente.

Já que o paciente pronunciou o último grupo de palavras corretamente, a pronúncia

dessas palavras, por serem irregulares, deve ter sido recuperada como um todo. O fato de o

paciente ter dado a mown, some, bury e four a definição apropriada a moan, sum, beret e for

– membros dos pares de homônimos que são palavras regulares – indica que embora a sua

pronúncia tenha sido obtida pela via lexical (rota L/V2 na Figura 1), o seu significado foi

dado por meio de mediação fonológica.

Tomando-se, portanto, o modelo de leitura apresentado na Figura 1 como referência,

a lesão cerebral que gera a dislexia superficial pode afetar as conexões entre o sistema de

reconhecimento visual e o sistema semântico – rota L/V1 – e entre o léxico fonêmico de

saída – rota L/V2. Em alguns casos, a rota L/V2 pode ser preservada, o que possibilita ao

paciente ter acesso à pronúncia de palavras como um todo. Quando essa rota encontra-se

também danificada, o disléxico possui, como último recurso, o uso da rota fonológica, isto

é, ele tem de recorrer ao uso de regras de correspondência entre grafema e fonema para

construir a pronúncia do item lido. Por ser um código acústico o output do processo

fonológico, as palavras lidas por esse processo podem ser compreendidas pela sua

pronúncia, ou seja, pela via do sistema de reconhecimento auditivo. Dessa forma, o

paciente compreende-as de acordo com a maneira pela qual elas são pronunciadas e não

pela sua grafia. Na literatura, encontram-se paralelos entre casos de dislexia superficial

adquirida com a leitura de crianças no processo de aquisição e alguns casos de dislexia do

desenvolvimento.

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Modelo de Processamento da repetição e leitura em voz alta de palavras

Figura 1. Modelo de Repetição e Leitura de palavras isoladas adaptado de Ellis e Young


(1988). A seguinte denominação de rotas foi aqui introduzida: (a) processamento
de palavras ouvidas: rota léxico-semântica auditiva (L/A1); ligação direta entre o
léxico auditivo de entrada e o de saída (L/A2); e rota fonológica (F1, conversão
acústico-fonológica) e (b) processamento de palavras escritas: rota léxico-
semântica visual (L/V1); ligação direta entre o léxico visual de entrada e o de saída
(L/V2); e rota fonológica (F2, conversão grafema-fonema).

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1.2.3.4. Dislexia profunda
Na dislexia profunda, os disléxicos leem palavras concretas muito mais facilmente

do que palavras abstratas. Eles têm dificuldade na leitura de palavras funcionais e, como

resultado, substituem artigos, pronomes, conjunções e advérbios, por outra palavra da

mesma classe. Além dessas dificuldades, esses pacientes cometem erros de derivação (ex.,

canto por "cantei", construir por "contruindo"), erros visuais simples (ex., cabra por

"cobra"), uma combinação de erros visuais seguidos de erros semânticos (ex., sympathy

(empatia) lido como "orchestra" (orquestra), por associação com "symphony" (sinfonia)).

Como os disléxicos fonológicos, pessoas com dislexia profunda não conseguem ler em voz

alta palavras novas e pseudopalavras.

De acordo com Ellis (1984), a explicação para esses sintomas é controversa. O autor

cita Coltheart, Patterson, Marshall (1980), que argumentam haver, na dislexia profunda, não

apenas um distúrbio parcial dos processos de leitura no hemisfério cerebral esquerdo mas,

sim, uma completa destruição dos processos de leitura nesse hemisfério. A habilidade

restante em identificar palavras é oriunda do hemisfério direito, portanto, as limitações no

reconhecimento de palavras que ocorrem na dislexia profunda são limitações do hemisfério

direito das pessoas normais.

Finalizando, é importante enfatizar existirem casos de dislexia que mostram uma

mistura de sintomas, como também há diferenças individuais entre pacientes agrupados em

diferentes tipos de dislexia.

1.2.3.5. Resumo
As dislexias são distúrbios da leitura adquiridos em consequência de lesões ao

hemisfério esquerdo do cérebro. Dependendo do local danificado, diferentes tipos de

dislexia emergem. O uso do modelo de duplo-processo de leitura tem facilitado o estudo da


dislexia. Quando a lesão atinge o percurso da rota visual ao significado, temos as chamadas

dislexias periféricas, entre as quais a "leitura letra a letra" é a mais bem estudada. Quando a

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rota fonológica ou a semântica é atingida, temos a dislexia fonológica e a semântica,

respectivamente. Finalmente, nas chamadas síndromes de componentes múltiplos – a

dislexia profunda e a dislexia superficial –, a lesão cerebral ocorre em partes da rota

fonológica e da lexical. A rota fonológica é a mais afetada na dislexia profunda, e a lexical,

na dislexia superficial. A Tabela 1 resume esses tipos de dislexia.

Referências

BEAUVOIS, M. F. & DÉROUSNÉ, J. (1979). Phonological alexia: three dissociations. Journal of Neurology
and Psychiatry, 42, 1115-1124.

COLTHEART, M. (1982). The psycholinguistic analysis of acquired dyslexia: Some illustrations.


Philosophical Transactions of the Royal Society of London, 151-164.

COLTHEART, M.; PATTERSON, K. & MARSHALL, J. C. (1980). Deep Dyslexia. London Routledge and
Kegan Paul.

ELLIS, A. W. (1984). Reading writing and dyslexia: a cognitive analysis. London: Lawrence Erbaum
associates.
FUNNEL, E. (1983). Phonological processes in reading: new evidence from acquired dyslexia. British
Journal of Psychology. 74, 159-180.

NEWCOMBE, F. & MARSHALL, J. C. (1982). On psycholinguistic classification of the acquired dyslexia.


Bulletin of the Orton Society, 31, 29-46.

PATTERSON, K. E. (1982). The relation between reading and phonological coding: further
neuropsychological observations. In A. W. Ellis (Ed). Normality and Pathology in Cognitive Functions.
London: Academic Press.

PATTERSON, K. E. & KEY, J. (1982). Letter-by-letter reading: Psychological description of a


neurological syndrome. Quarterly Journal of Experimental Psychology, 34A, 411-441.

SHALLICE, T. & WARRINTON, K. E. (198O). Single and multiple component central dyslexia syndromes.
In M. Coltheart, K. E. Patterson, and J. C. Marshall (Eds.). Deep Dyslexia. London: Routledge and Kegan
Paul.

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Tabela 1 – Variedades e classificação de dislexia
(a) DISLEXIAS PERIFÉRICAS
Componentes do modelo Estímulos que causam
Tipo de dilexia Característica
de leitura danificado dificuldades
1. dislexia de negligência dificuldade no nível de identificação de letras qualquer palavra e pseudopalavra
diferentes partes do percurso da 2. dislexia atencional difilcudade no nível de análise visual sequência de letras
rota visual ao significado palavras reais e pseudopalavras
3. leitura letra-a-letra dificuldade em perceber a forma global das palavras
longas
(b) DISLEXIAS CENTRAIS
(1) Síndrome de um único componente
Componentes do modelo Estímulos que causam
Tipo de Dislexia Característica
de leitura danificado dificuldades
processo de conversão grafema- palavras desconhecidas e
4. dislexia fonológica dificuldade na conversão grafema-fonema
fonema pseudopalavras
falta de entendimento das palavras lidas
partes da rota léxico-semântica 5. dislexia semântica qualquer palavra

(2) Síndrome de componentes múltiplos


Componentes do modelo Estímulos que causam
Tipo de Dislexia Característica
de leitura danificado dificuldades
erros semânticos palavras abstratas
partes da rota fonológica e erros visuais simples palavras funcionais (artigos,
6. dislexia profunda
do sistema semântica erros visuais-semânticos pronomes, conjugações,
erros de derivação advérbios)
leitura pela rota fonológica parcialmente danificada,
partes da rota fonológica e impossibilidade de leitura por endereçamento direto ao palavras irregulares
7. dislexia superficial
da rota lexical léxico e e homônimos heterográficos
erros de regularização

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