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Curso de Graduação em Medicina

Abuso Infantil
Aspectos-chave
► Maus-tratos são entendidos como a atitude deliberada ou desnecessária de colocar uma
criança em situação de perigo.
► Abuso é uma ação que causa algum tipo de dano a uma criança.
► Negligência é uma “não ação” que causa dano a uma criança, é o não atendimento às suas
necessidades básicas (como alimentação, vestuário, higiene, assistência à saúde, proteção,
supervisão e acesso à educação formal).
► O abuso e a negligência infantil causam sérios danos (físicos e psicológicos), que repercutem
na adolescência e na fase adulta e podem afetar o comportamento do indivíduo com as próximas
gerações, contribuindo para perpetuar o ciclo de violência familiar.
► A notificação de situações de violência familiar, como nos casos de abuso, é obrigatória para
os profissionais de saúde.

Do que se trata
O abuso é caracterizado, pela Organização Mundial da Saúde, como uma situação na qual uma
pessoa em condições de superioridade (idade, força, posição social ou econômica, inteligência,
autoridade) comete ato ou omissão capaz de causar dano físico, psicológico ou sexual,
contrariamente à vontade da vítima, ou por consentimento obtido a partir de indução ou sedução
enganosa. Sob o aspecto legal, considera-se criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos,
e adolescentes, aquela entre 12 e 18 anos. O abuso infantil não é um fenômeno recente.
Diversos relatos e textos religiosos têm justificado (e até incentivado) sua prática como
mecanismo disciplinador, ou compreendido sua existência como parte das provações próprias
pelas quais os mais jovens devem passar. Apenas a partir do século
XVIII, quando Rousseau aponta a infância como época da vida na qual é preciso evitar corromper
aquele ser humano em formação, é que a criança passa a ser vista como merecedora de
proteção especial da sociedade.2 Os últimos 30 anos, nesse sentido, têm sido férteis na
caracterização do abuso e de suas consequências, passando-se a compreendê-lo não apenas
como um problema específico da área da saúde, mas também como uma situação de
características multidimensionais em sua abordagem diagnóstica e terapêutica e que impacta a
saúde do indivíduo (implicando, portanto, a necessária responsabilização dos profissionais da
área).
Devido a essas características, as intervenções para o enfrentamento da violência contra a
infância e adolescência só são possíveis se realizadas em rede. Dentro da formação dessas
redes, a Estratégia Saúde da Família (ESF) possui um importante e potencializador universo de
atuação, tendo em vista a proximidade que as equipes possuem da realidade das famílias
atendidas. O médico de família e comunidade, que tem como um dos seus princípios ser recurso
de uma população definida, está, muitas vezes, na posição de ser o primeiro contato da pessoa
abusada com o serviço de saúde e, pelo fato de trabalhar de forma interdisciplinar e prestar um
cuidado diferenciado, focado na abordagem das famílias, deve ser capaz de captar com mais
facilidade os casos suspeitos de violência intrafamiliar e tomar a conduta adequada.
Assim, para que essas ações se desenvolvam de forma a propiciar a quebra do ciclo da violência
familiar (quando se observa a repetição deste fenômeno em várias gerações da mesma família),
a preparação dos profissionais de saúde é essencial. Essa capacitação deve proporcionar não
apenas a habilidade em compreender o significado desta forma de violência e fazer o seu
diagnóstico, mas também em desenvolver um senso crítico e de responsabilidade social com o
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desenvolvimento das crianças nas comunidades em que estes trabalhadores da área da saúde
estão inseridos.

Quando pensar
Toda violência intrafamiliar (Figura 124.1) é considerada uma situação de risco que deverá ser
identificada e sofrer a intervenção das equipes da ESF. Para tanto, ao proceder às dinâmicas de
abordagem familiar (como rotina do serviço ou quando investigando casos suspeitos), é preciso
atentar para os fatores geralmente envolvidos na gênese e no contexto de uma situação de abuso
infantil, quais sejam:

▲ Figura 124.1
Formulário de notificação de violência doméstica, sexual e/ou outras violências interpessoais.

*** Imagem foi fragmentada para melhor visualização


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● Componentes associados ao agressor. Abuso ou dependência de substâncias (álcool e


drogas), história pessoal de ter sido abusado na infância, baixa autoestima, transtornos de
conduta (psiquiátricos ou psicológicos).

● Componentes associados à vítima. Situação de dependência (própria da infância, mas mais


grave quanto mais jovem for a vítima), sexo da vítima diferente do desejado por ela, condições de
saúde que exigem maiores cuidados (prematuridade, doenças neurológicas, etc.), história de
abusos anteriores, ser uma criança não desejada ou não planejada.

● Componentes associados ao meio social. Falta de leis de proteção à infância, grandes


desigualdades sociais, ambiente com alto índice de marginalidade, desemprego, analfabetismo,
aceitação de violência como forma normal de punição (em especial agressões corporais),
pobreza.

● Componentes associados à família. Pais jovens (adolescentes), gravidez não planejada,


pouca compreensão do papel parental, cuidados pré-natais inadequados, famílias uniparentais,
famílias vivenciando situações de conflito, violência conjugal, famílias substitutas, família com
padrão fechado de comunicação, famílias com grande número de filhos.

Esses componentes podem se refletir de diversas maneiras no comportamento da vítima,


ajudando a levantar a suspeita de abuso. Assim, de modo geral, a situação de abuso deve ser
considerada quando, à avaliação individual, são observados em uma criança:
● Dificuldade de aprendizagem. Pode ser reflexo da má organização familiar, da negligência
dos pais ou do estresse associado ao abuso (dificultando a concentração e o aprendizado da
criança).
● Postura hipervigilante no ambiente em que se encontra. Em geral, a vítima torna-se
desconfiada, não se sentindo à vontade em lugares desconhecidos (como quando vai ao serviço
de saúde ou à casa de estranhos).
● Comportamento opositor. Aprendido algumas vezes pela criança como forma de
autoproteção.
● As várias formas de comportamento antissocial. Entendido como fuga ou resultado somado
de outras posturas de defesa.
● Comportamento muito amadurecido para a idade. “Pseudoadulto”, precoce.
● Comportamento regressivo. Quando a criança, sem outra razão aparente, começa a apresentar
comportamento típico de fase anterior à infância.
● Baixa autoestima. Resultado de se sentir “suja” ou culpada pelo abuso.
● Comportamento compulsivo.
● Medo de parentes ou ansiedade quando um familiar, potencial agressor, é esperado ou
visitado.
● Dificuldade para se divertir ou se envolver em brincadeiras com outras pessoas.
● Inversão no padrão de cuidados na família (p. ex., quando a criança se torna exageradamente
ansiosa para atender às demandas e necessidades dos pais e cuidadores).
● Isolamento social.
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O que fazer

Anamnese

É desnecessário, mas conveniente, lembrar-se da importância de uma anamnese geral e de


desenvolvimento, além do uso de ferramentas de abordagem familiar para caracterizar o quadro a
ser avaliado. Adiante, para reconhecer as situações de abuso infantil, serão descritos os tipos de
abuso.3 Assim, são condições mais comuns: negligência (incluindo o abandono), abuso físico
(incluindo a síndrome da criança espancada), síndrome de Munchausen por procuração,
síndrome do bebê sacudido, abuso sexual e abuso psicológico. De modo geral, várias formas de
abuso podem ser encontradas em uma mesma criança ou adolescente. As definições a seguir
facilitam a coleta da história individual e familiar pelo entrevistador.

Negligência. É o tipo mais comum de abuso, sendo a omissão de cuidados básicos à criança,
como o oferecimento de alimentos, medicamentos, vestuário, apoio emocional, afeto, proteção e
cuidados de higiene. A desobediência às regras de trânsito (que conferem proteção à criança,
como a atenção ao uso do cinto de segurança) pode caracterizar uma situação de negligência. A
permissão para o uso de álcool e drogas também caracteriza negligência, considerando que a
criança ainda não é capaz de medir os riscos envolvidos. Um tipo especial de negligência é a
chamada negligência educacional, que é entendida como a situação na qual os pais não
matriculam a criança na escola ou permitem suas faltas às aulas mesmo após terem sido
informados quanto a esta atitude ser inadequada. O abandono é definido como uma negligência
grave, sendo marcador importante de vínculo inadequado entre os membros da família. E mais
comum em famílias muito numerosas.

Abuso físico. É o uso intencional de força física contra a criança ou adolescente sob a
justificativa de se obter disciplina. Os agressores geralmente são os próprios pais da criança, e na
maioria das vezes deixam marcas. As agressões mais frequentes são tapas, beliscões,
chineladas, queimaduras (por água quente ou cigarros), mutilações, marcas de cintos, murros,
intoxicações (como por benzodiazepínicos, com o intuito de sedar a criança), sufocação e
espancamentos. Sobre este tópico, desde 1962, é descrita a chamada “síndrome da criança
espancada”, quando são evidentes múltiplas lesões, inclusive fraturas de ossos longos, sem
explicações convincentes e ocorrendo de modo repetido. É mais comum em meninos.

Síndrome de Munchausen por procuração. Ocorre quando pais ou responsáveis provocam ou


simulam na criança sinais e sintomas de doenças que ela não tem. A suspeita deve ocorrer
quando o profissional de saúde compara a gravidade do que é apresentado pelos responsáveis
com um intrigante bom estado geral da criança após o exame físico e a propedêutica adequada.
Geralmente, a “doença” é recidivante e persistente. A criança, durante a simulação, é submetida
a sofrimento físico (ingestão de medicamentos, coleta de exames desnecessários, lesões
diversas para “montagem” do personagem, etc.) e psicológico (múltiplas internações,
incorporação do rótulo de ser doente, etc.). Neste caso, o perpetrador mais comum é a mãe.

Síndrome do bebê sacudido. Apesar de o diagnóstico geralmente ser feito pela combinação de
hemorragias retinianas e subdurais (surgidas em função do bebê, em geral com idade inferior a 6
meses, ser sacudido violentamente no
sentido anteroposterior), é um tipo de violência que pode não deixar marcas evidentes. Muitas
vezes, é perpetrada pelo pai biológico que, irritado com o choro da criança, tenta fazê-la se calar.
Pode levar a graves lesões cerebrais, ao atraso do desenvolvimento e até à morte.
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Abuso sexual. Ao contrário do que se pensa, pode ocorrer na ausência de outras formas de
abuso e na maioria das vezes não deixa marcas físicas evidentes (exceto em situação de
flagrante, quando a vítima é, geralmente, levada aos serviços de urgência e a lesão é observada).
Ocorre quando a vítima tem desenvolvimento sexual inferior ao do agressor e é exposta (por
ameaças, mentiras e violência) a estímulos eróticos impróprios para a sua idade, a fim de
satisfazer o agressor ou outras pessoas (como na realização de vídeos caseiros e fotos com a
vítima). Nesse caso, como em outras formas de abuso, é importante lembrar-se de que o
agressor também é pessoa que precisa de cuidados (uma vez que, geralmente, também foi
abusado na infância). Pode ou não ocorrer intercurso sexual (com penetração oral, vaginal ou
anal). O agressor geralmente é pessoa conhecida da família (na maioria das vezes, é membro
dela), e o abuso é repetitivo, podendo levar anos até que se torne
conhecido. O diagnóstico de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) em crianças deve
levantar sempre a suspeita de abuso sexual, bem como comportamento exageradamente
erotizado por parte da criança, gravidez precoce (em especial se não se consegue saber da
vítima quem é o pai), autoflagelação (na ausência de outras condições estressantes) e fugas
constantes de casa. É mais comum com casais com filhos pequenos, como caracterizado no ciclo
de vida familiar. Lembrar-se de que também caracteriza situação de abuso quando a criança, por
condições sociais inapropriadas (como domicílio de tamanho reduzido), se vê em situação de
observar as relações sexuais dos pais, negligentes quanto a este cuidado com a infância (a
criança acaba exposta a estímulos eróticos visuais impróprios). Meninas são mais abusadas do
que meninos.

Abuso psicológico. Trata-se de toda forma de discriminação ou desrespeito em relação à


criança. É um dos mais difíceis de ser caracterizado devido à falta de materialidade dos
acontecimentos. Pode envolver também o isolamento intencional da criança pelos pais e
cuidadores e o estímulo ao crime ou ao
consumo de drogas e à prostituição.

Exame físico

Não há uma rotina específica, uma vez que, exceto pelo abuso físico ou quando há intercurso
sexual, poucas vezes são observadas marcas. Contudo, alguns lembretes podem ser úteis
durante o exame, tais como:

● Genitálias e nádegas raramente são áreas envolvidas em acidentes domésticos.


● Atentar para a presença de lesões em vários estágios de cicatrização (indicando abuso
crônico).
● Lembrar-se de proceder à investigação mais cuidadosa em crianças em condições precárias de
higiene (pensar em negligência).
● Hemorragias no couro cabeludo fazem pensar em puxões. Amolecimento de base dos dentes e
desvio anormal da abertura bucal lembram agressões com socos.
● Queimaduras arredondadas podem ser causadas por cigarros.
● Lesões de órgãos genitais, sangramento anal, petéquias no palato e sinais de sêmen ou de
ISTs são alertas para se pensar em abuso sexual.
● Importante atentar, na avaliação, para o diagnóstico diferencial de lesões supostamente
provocadas por traumas e sangramentos com condições como púrpura autoimune, menstruação
e febres hemorrágicas.

Conduta proposta
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Os profissionais da atenção primária à saúde devem usar a seu favor a longitudinalidade do
cuidado e o conhecimento da comunidade para se certificar de uma provável situação de abuso.
Nestes casos, o agente comunitário de saúde pode ser de grande ajuda para acrescentar ao
diagnóstico suas impressões, desenvolvidas pelo conhecimento acumulado sobre as famílias e
pela maior identidade cultural com aquele meio. É muito importante que a suspeita de abuso seja
observada criteriosamente e discutida com todos os membros da equipe.
Uma preocupação, nesta fase de investigação, deve ser com a manutenção do sigilo e com a
abordagem cautelosa. Muitas vezes, o médico de família e comunidade tem como local de
trabalho comunidades com alto índice de violência, o que pode ser um complicador para essa
abordagem ou para a sensibilização da equipe, uma vez que as situações de violência fazem
parte do contexto.
Uma vez confirmada a suspeita de abuso, o primeiro passo a ser dado é notificar o evento.
Identificar maus-tratos e notificá-los às autoridades é uma obrigação dos profissionais que
prestam atenção à infância e adolescência e, em especial, dos profissionais da saúde. O
Ministério da Saúde determina obrigatoriedade de notificação, para todas as entidades de saúde
integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS) do nosso país, de acordo com a Portaria no
1.968/GM, de 25 de outubro de 2001, publicada no DOU no 206 de 26/10/2001. O documento
traz um formulário anexo que deve ser utilizado pelas unidades
para proceder à notificação (Figura 124.2).

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▲ Figura 124.2
Formulário de notificação de casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou
adolescente.

Em seu art. 13, o Estatuto da Criança e do Adolescente define que os casos de suspeita ou
confirmação de maus-tratos contra crianças ou adolescentes serão, obrigatoriamente,
comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências
legais. De acordo com o art. 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei no 8.069, de
13/07/1990, é aplicável multa de três a 20 salários de referência, aplicando-se o dobro em caso
de reincidência, quando o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à
saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, deixar de comunicar à autoridade
competente os casos de que tenha conhecimento envolvendo suspeita ou confirmação de maus-
tratos contra criança ou adolescente.
De acordo com a equipe do Centro de Estudos sobre Saúde e Violência (CLAVES), em estudo
realizado para o MS, em 2002,6 a categoria médica é a que mais resiste a tal atribuição, por
motivos diversos. As principais dificuldades apresentadas em relação à notificação dos casos de
violência doméstica são:
● Falta de preparo do profissional para identificar e lidar com os casos de maus-tratos.
● Medo do profissional em fazer a notificação e ter problemas com a justiça ou sofrer retaliações
por parte do agressor.
● Falta de suporte para realizar um atendimento mais aprofundado em função da enorme
demanda.
● Tradição de uma prática que se restringe ao atendimento das patologias, sem questionar as
causas.
● Descrença no Poder Público e na real possibilidade de intervenção nestes casos.
● Visão de que se trata de um “problema de família”, não sendo
responsabilidade de uma “instituição de saúde”.
● Temor de estar enganado e notificar uma “suspeita infundada”.
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A Figura 124.3 ilustra um formato para a abordagem geral das situações de violência doméstica,
sendo aqui indicado e adaptado para as situações de abuso infantil. Como já discutido, não há
como proceder a uma conduta, nestes casos, sem considerar os demais setores da sociedade.
Contudo, compreendendo que as particularidades locais precisarão ser levadas em conta na
elaboração de um projeto, este texto se detém apenas na discussão de cada fase evidenciada na
figura, esperando, assim, que os profissionais possam organizar as estratégias multidimensionais
que julgarem mais apropriadas para a sua área de atuação.
Ações de prevenção primária. Incorporar ações de educação em saúde sobre o tema, seja nas
salas de espera, seja em grupos operativos com escolares, de gestantes e pais (além de
programas de treinamento com profissionais que atendam crianças). Chamar a atenção para a
necessidade de que a violência deva ser relatada e discutida como forma de inibir a sua
perpetuação. Informar sobre os locais de apoio e fluxo das unidades de saúde para apoio às
vítimas. Reforçar a necessidade de diálogo aberto nas famílias e de boas referências adultas para
as crianças, ajudando a criar laços mais fortes e adequados. São fundamentais ações de apoio e
orientação para que os pais possam se apropriar da responsabilidade de seu papel no cuidado às
crianças, bem como prestação de cuidados adequados a cuidadores que possuem problemas
mentais, deficiências físicas ou são dependentes de substâncias, uma vez que essas situações
constituem o contexto dentro do qual o abuso infantil acontece.
Ações de detecção. Utilizam a possibilidade de uma abordagem longitudinal às famílias pelas
equipes da ESF, e essas ações abarcam dois momentos distintos. O momento de surgimento de
uma suspeita (momento 1) deve ser considerado como um evento-sentinela naquela comunidade,
e sua efetividade depende de redes orientadas para essa detecção precoce (das quais as
equipes e o médico de família e comunidade são parte tanto quanto as escolas e as instituições
religiosas). O momento seguinte (momento 2) trata da confirmação da suspeita, em que é
necessária discussão sigilosa e criteriosa da equipe (no caso de abusos crônicos e de difícil
diagnóstico), como já citado neste capítulo.
Lembrar-se de que a notificação precisa ser feita assim que a suspeita estiver mais bem
fundamentada. Tão logo haja confirmação, é necessário que se organize um plano de trabalho.

Ações de enfrentamento imediato. São medidas emergenciais, como atendimento específico


aos traumas pelos quais a vítima foi submetida, como no caso de abuso físico. Quando
necessário, providenciar o deslocamento da criança para ambiente protegido (como abrigos) e
notificação ao Conselho Tutelar, visando, assim, a debelar o episódio agudo. No caso de vítimas
de abuso sexual, é importante a avaliação de ISTs e gravidez. Nos casos de espancamento, pode
ser necessário que se proceda à investigação com exames de imagem. Independentemente do
quadro ou das necessidades que surgirem quanto ao deslocamento para outras unidades, a
garantia de acompanhamento da criança deve ser sempre oferecida pela equipe de saúde da
família, assegurando, dessa forma, a vinculação necessária para as ações de acompanhamento.

Ações de acompanhamento. São ações de supervisão e acompanhamento envolvendo a


participação de familiares em grupos como o Pais Anônimos e o oferecimento de ajuda às vítimas
e aos agressores. Lembrar-se de que a detecção de uma situação de abuso sugere um risco
maior de reincidência, o que aponta a necessidade de vigilância por toda a equipe de saúde. Os
casos devem ser discutidos (e não apenas referenciados) com equipes multidisciplinares, sendo
essencial a presença de assistentes sociais e psicólogos, fundamentais para organizar este tipo
de ação.
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ÁRVORE DE DECISÃO

Prognóstico e complicações possíveis

Embora não haja consenso entre os especialistas da área, a maioria acredita que uma pessoa
abusada, se não abordada adequadamente, tende a repetir essa conduta com outros indivíduos
da mesma família ou com filhos de pessoas próximas. Crianças abusadas tendem a apresentar
comportamento mais agressivo na adolescência e idade adulta, envolvendo-se mais com crimes
e com uso de drogas. Tendem também a apresentar mais depressão e sintomas físicos
aparentemente inexplicáveis.
Por essas razões, urge que os profissionais de saúde se apropriem dessa discussão,
contribuindo, assim, para aumentar a vigilância sobre um desenvolvimento humano saudável.

CASO CLÍNICO E QUESTÕES

Luciana, 23 anos, há tempos não leva a filha Marina, 5 anos, ao centro de saúde. Em função de
solicitação do Conselho Tutelar, marca consulta com o médico de família e da comunidade. No
dia da consulta, Luciana entrega ao médico o relatório do conselheiro, que solicita avaliação
médica de Marina em função de denúncia de maus-tratos. Durante a anamnese, o médico faz o
genograma da família utilizando informações de Luciana, descobrindo que ela era a caçula de
uma família de oito irmãos e havia passado por muitas dificuldades na infância. Casada com
Sérgio, 45 anos, porteiro de um edifício no centro da cidade e único responsável pela renda do
casal, tem mais dois filhos: Danilo, 8 anos, e Carlos, 6. Luciana teve o primeiro filho ainda
adolescente, aos 15 anos, tendo se casado com Sérgio para sair de casa. Queixa-se de que
Sérgio bebe muito e chegou a lhe bater algumas vezes, embora nunca na frente das crianças. Diz
que o marido não tem paciência com elas e quis que abortasse na gravidez de Marina,
considerada hoje pela mãe uma criança muito “difícil”. Marina, por sua vez, mostra-se pouco
sorridente com o médico e não gosta de conversar sobre os irmãos.
Ao exame físico, está toda suja por debaixo da roupa. Nota-se lesão aparentando micose
superficial na virilha e, à inspeção, hematoma de formato ligeiramente retangular em uma das
nádegas. Questionada sobre a lesão, Luciana informa que Marina teria tido uma queda há alguns
dias.
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ATIVIDADES

1. São componentes associados à gênese do abuso infantil, EXCETO:

a. Ambiente com alto índice de marginalidade


b. Gravidez não desejada
c. Adicção infantil
d. Mãe adolescente

2. Em relação ao abuso sexual, é correto afirmar:

a. É de fácil identificação devido aos traumas físicos que sempre causa


b. Meninos em idade pré-puberal constituem a maioria das vítimas
c. É caracterizado como tal, mesmo quando não há intercurso sexual
d. O agressor geralmente é pessoa desconhecida da família

3. Constituem ações de prevenção primária do abuso, EXCETO:

a. Estímulo à criação de grupos de pais, com vias a discutir e receber orientação sobre o papel da
família na sociedade
b. Notificação de todas as suspeitas de abuso ao Conselho Tutelar
c. Treinamento de lideranças comunitárias para a detecção precoce de situações de abuso
d. Orientação às gestantes e parceiros quanto à necessidade de manter um ambiente de
comunicação aberta na família

4. Sobre o abuso infantil, é correto afirmar:

a. Trata-se de fenômeno recente na história da humanidade


b. Quando culturalmente aceito, descaracteriza a situação de violência e não necessita, portanto,
de notificação
c. A suposta vítima em geral atua estimulando conscientemente a continuidade dos maus-tratos
d. É mais comum na segunda infância

5. São reações relacionadas ao desenvolvimento de crianças abusadas, EXCETO:

a. Envolvimento em ações ilegais


b. Tendência à homossexualidade
c. Depressão
d. Abuso de substâncias ilícitas

DEFINA OS SEGUINTES TERMOS:

Quanto ao tipo de violência:

1. Física: Também denominada sevícia física, maus-tratos físicos ou abuso físico. São atos
violentos, nos quais se fez uso da força física de forma intencional, não-acidental, com o
objetivo de ferir, lesar, provocar dor e sofrimento ou destruir a pessoa, deixando, ou não,
marcas evidentes no seu corpo. Ela pode se manifestar de várias formas, como tapas,
beliscões, chutes, torções, empurrões, arremesso de objetos, estrangulamentos,
queimaduras, perfurações, mutilações, dentre outras. A violência física também ocorre no
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caso de ferimentos por arma de fogo (incluindo as situações de bala perdida) ou ferimentos
por arma branca.

2. Psicológica/ Moral: É toda forma de rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito,


cobrança exagerada, punições humilhantes e utilização da pessoa para atender às
necessidades psíquicas de outrem. É toda ação que coloque em risco ou cause dano à
autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa. Esse tipo de violência também
pode ser chamado de violência moral. No assédio moral, a violência ocorre no ambiente de
trabalho a partir de relações de poder entre patrão e empregado ou empregado e
empregado. Define-se como conduta abusiva, exercida por meio de gestos, atitudes ou
outras manifestações, repetidas, sistemáticas, que atentem, contra a dignidade ou a
integridade psíquica ou física de uma pessoa, que ameace seu emprego ou degrade o
clima de trabalho. Portanto, a violência moral é toda ação destinada a caluniar, difamar ou
injuriar a honra ou a reputação da pessoa. O bullying é outro exemplo de violência
psicológica, que se manifesta em ambientes escolares ou outros meios, como o
ciberbullying.

3. Negligência/ Abandono: é uma “não ação” que causa dano a uma criança, é o não
atendimento às suas necessidades básicas (como alimentação, vestuário, higiene,
assistência à saúde, proteção, supervisão e acesso à educação formal). É a omissão pela
qual se deixou de prover as necessidades e cuidados básicos para o desenvolvimento
físico, emocional e social da pessoa atendida/vítima. Ex.: privação de medicamentos; falta
de cuidados necessários com a saúde; descuido com a higiene; ausência de proteção
contra as inclemências do meio, como o frio e o calor; ausência de estímulo e de
condições para a frequência à escola.

4. Sexual: É qualquer ação na qual uma pessoa, valendo-se de sua posição de poder e
fazendo uso de força física, coerção, intimidação ou influência psicológica, com uso ou não
de armas ou drogas, obriga outra pessoa, de qualquer sexo e idade, a ter, presenciar, ou
participar de alguma maneira de interações sexuais ou a utilizar, de qualquer modo a sua
sexualidade, com fins de lucro, vingança ou outra intenção. Incluem-se como violência
sexual situações de estupro, abuso incestuoso, assédio sexual, sexo forçado no
casamento, jogos sexuais e práticas eróticas não consentidas, impostas, pornografia
infantil, pedofilia, voyeurismo, manuseio, penetração oral, anal ou genital, com pênis ou
objetos, de forma forçada. Inclui também exposição coercitiva/constrangedora a atos
libidinosos, exibicionismo, masturbação, linguagem erótica, interações sexuais de qualquer
tipo e material pornográfico. Igualmente caracterizam a violência sexual os atos que,
mediante coerção, chantagem, suborno ou aliciamento impeçam o uso de qualquer método
contraceptivo ou forcem a matrimônio, à gravidez, ao aborto, à prostituição; ou que limitem
ou anulem em qualquer pessoa a autonomia e o exercício de seus direitos sexuais e
reprodutivos. A violência sexual é crime, mesmo se exercida por um familiar, seja ele, pai,
mãe, padrasto, madrasta, companheiro(a), esposo(a).

5. Tráfico de seres humanos: Inclui o recrutamento, o transporte, a transferência, o


alojamento de pessoas, recorrendo à ameaça, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de
autoridade, ao uso da força ou outras formas de coação, ou à situação de vulnerabilidade,
para exercer a prostituição, ou trabalho sem remuneração, incluindo o doméstico, escravo
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ou de servidão, casamento servil ou para a remoção e comercialização de seus órgãos,
com emprego ou não de força física. O tráfico de pessoas pode ocorrer dentro de um
mesmo país, entre países fronteiriços ou entre diferentes continentes. Toda vez que
houver movimento de pessoas por meio de engano ou coerção, com o fim último de
explorá-las, estaremos diante de uma situação de tráfico de pessoas.

6. Trabalho infantil: É o conjunto de ações e atividades desempenhadas por crianças (com


valor econômico direto ou indireto) inibindo-as de viver plenamente sua condição de
infância e adolescência. Refere-se a qualquer tipo de atividade efetuada por crianças e
adolescentes de modo obrigatório, regular, rotineiro, remunerado ou não, em condições
por vezes desqualificadas e que põem em risco o seu bem estar físico, psíquico, social e
moral, limitando suas condições para um crescimento e desenvolvimento saudável e
seguro. A Constituição Federal estabelece a proibição de trabalho noturno, perigoso ou
insalubre a pessoas menores de 18 anos e de qualquer trabalho a menores de 16 anos,
salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos (artigo 7º, inciso XXXIII). Quando na
condição de aprendiz, a atividade laboral deve ocorrer em horários e locais que não
impeçam a frequência à escola e não prejudiquem a formação e o adequado
desenvolvimento físico, psíquico, moral e social.

7. Tortura: É o ato de constranger alguém com emprego de força ou grave ameaça,


causando-lhe sofrimento físico ou mental com fins de obter informação, declaração ou
confissão da vítima ou de terceira pessoa; provocar ação ou omissão de natureza
criminosa; em razão de discriminação racial ou religiosa. (Lei 9.455/1997). Também pode
ser o ato de submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de
força ou grave ameaça, provocando intenso sofrimento físico ou mental, como forma de
aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

8. Patrimonial: Entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração,


destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a
satisfazer suas necessidades. Ex: CONTROLAR O DINHEIRO; DEIXAR DE PAGAR
PENSÃO ALIMENTÍCIA; DESTRUIÇÃO DE DOCUMENTOS PESSOAIS; FURTO,
EXTORSÃO OU DANO; ESTELIONATO; PRIVAR DE BENS, VALORES OU RECURSOS
ECONÔMICOS; CAUSAR DANOS PROPOSITAIS A OBJETOS DA MULHER OU DOS
QUAIS ELA GOSTE.

Quanto a violência sexual:

1. Assédio sexual: é a insistência inoportuna, independentemente do sexo ou da orientação


sexual, com perguntas, propostas, pretensões, ou outra forma de abordagem forçada de
natureza sexual. É o ato de constranger alguém com gestos, palavras ou com o emprego
de violência, prevalecendo-se de relações de confiança, de ascendência, de superioridade
hierárquica, de autoridade ou de relação de emprego ou serviço, com o objetivo de obter
vantagem sexual.
2. Estupro:  “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção
carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (BRASIL,
2009b, art. 213). Dentro desse conceito, está incluída a conjunção carnal (penetração
Curso de Graduação em Medicina
peniana ou de outro objeto no ânus, vagina ou boca), independentemente da orientação
sexual ou do sexo da pessoa/vítima.
3. Atentado violento ao pudor: O atentado violento ao pudor foi considerado um crime, de
acordo com o Código Penal Brasileiro, e se configurava como "Constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato
libidinoso diverso da conjunção carnal" (art. 214). 
4. No entanto, para poder abranger a definição do crime de estupro, que no Código Penal
era descrito como um ato praticado exclusivamente com mulheres - "Constranger mulher à
conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça" (art. 213) - o crime de atentado
violento ao pudor foi revogado.
5. Com a Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, houve a alteração de alguns aspectos dos
crimes sexuais previstos no direito penal brasileiro. Atualmente, o crime de estupro
substitui a expressão "atentado violento ao pudor", e consiste em "Constranger
alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou
permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso".

6. Pornografia infantil:  é a apresentação, a produção, a venda, o fornecimento, a divulgação


e/ou a publicação de fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito
(exposição de imagens) envolvendo crianças ou adolescentes, utilizando qualquer meio de
comunicação.
7. Exploração sexual: caracteriza-se pela utilização de pessoas, independentemente da
idade, do sexo ou da identidade de gênero, com fins comerciais e de lucro, seja para a
prática de atos sexuais (prostituição); a exposição do corpo nu e de relações sexuais ao
vivo (striptease, shows eróticos), ou mediante imagens publicadas em (revistas, filmes,
fotos, vídeos ou sítios na internet). Portanto, qualquer um que obtenha, mediante qualquer
forma de pagamento ou recompensa, serviços sexuais, de forma direta ou com recurso de
intermediários (agenciamento direto, indução, facilitação).

Fontes:
Manual de capacitação profissional para atendimentos em situações de violência [recurso
eletrônico] / coordenação Luísa F. Habigzang. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre :
PUCRS, 2018.
WHO (World Health Organization).World report on violence and health. Geneva: World Health
Organization; 2012 e 2018.
Ministério da Saúde (2009). Viva: Vigilância de violências e acidentes, 2006 e 2007. Brasília:
Secretaria de Vigilância em Saúde. Disponível em http://bvsms. saude.gov.br/bvs
/publicacoes/viva_vigilancia_violencias_acidentes.pdf.

REFERÊNCIAS
1. Eastman AC. Relatório mundial sobre a violência e a saúde da OMS: uma resposta ao desafio
da violência. Rev Saúde. 2002;3(3):12.
2. Maia JMD, Williams LCA. Fatores de risco e fatores de proteção ao desenvolvimento infantil:
uma revisão da área. Temas Psicol. 2005;13(2):91-103.
3. Pires ALD, Miyasaki MCOS. Maus tratos contra crianças e adolescentes: revisão da literatura
para profissionais de saúde. Arq Ciênc Saúde. 2005;12(1):42-49.
Curso de Graduação em Medicina
4. Barker P. Child abuse and neglect. In: Barker P. Basic child psychiatry. 7th ed. Oxford: Wiley-
Blackwell;2004.
5. Brasil, Ministério da Saúde. Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes pelos
profissionais de saúde: um passo a mais na cidadania em saúde. Brasília; 2002.
6. Alves CRL, Viana MRA. A violência contra crianças e adolescentes. In: Alves CRL, Viana MRA,
organizadores. Saúde da família: cuidando de crianças e adolescentes. Belo Horizonte:
COOPMED; 2003.
7. Rechenheim ME, Hasselmann MH, Moraes CL. Consequências da violência familiar da saúde
da criança e do adolescente: contribuições para a elaboração de propostas de ação. Ciênc Saúde
Coletiva.1999;4(1):109-121.
8. Papalia DE, Olds SW, Feldman RD. Desenvolvimento psicossocial na segunda infância. In:
Papalia DE, Feldman RD. Desenvolvimento humano. 12. ed. Porto Alegre: AMGH; 2013.

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