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CAPÍTULO 11 – DA “INVASÃO” DA AMÉRICA AOS SISTEMAS PENAIS DE HOJE: O

DISCURSO DA “INFERIORIDADE” LATINO-AMERICANA


José Carlos Moreira da Silva Filho

1.INTRODUÇÃO
José Carlos Moreira da Silva Filho, de introdução, mostra o porquê de retomar os aspectos da
colonização das Américas para entender nosso direito penal:
“O sistema teórico latino-americano na área penal é de um sincretismo assombroso, que, no
fundo, esconde um discurso extremamente racista, de natureza psicobiológica e de exclusão...
Para melhor entendimento dessa situação faz-se necessário ter conhecimento do processo
histórico-social que nos conduziu até o presente momento”.

2.O EUROPOCENTRISMO DA VISÃO MODERNA


José Carlos inicia o que seria esse tipo de visão:
“Assim, a Europa Cristã moderna tem um princípio em si mesma, e é sua plena realização. E
mais, somente a parte do ocidente norte da Europa é considerada por Hegel como o núcleo da
história... Logo, Espanha e Portugal, e conseqüentemente a América Latina e sua ‘descoberta,
não possuem a menor importância na constituição da modernidade”.
É então exposta a opinião de Dussel, contrária a essa desvalorização do “Novo Mundo”:
“Enrique Dussel chama a atenção para o fato de que, ao contrário do entendimento de Hegel
ou Harbema, tanto a América Latina quanto a Espanha tiveram um papel fundamental na
formação da era moderna. A descoberta de um ‘Novo Mundo’ possibilitou que a Europa, ou
melhor, o seu ‘ego’, saísse da imaturidade subjetiva da periferia do mundo mulçumano e se
desenvolvesse até tornar-se o centro da história e o senhor do mundo”.
Por fim, é retomado o pensamento europocêntrico, mostrando sua justificativa para a
dominação da América Latina:
“Toda a violência derramada na América Latina era, na verdade, um ‘benefício’ ou, antes, um
‘sacrifício necessário’. E diante disso, os índios, os negros ou mestiços eram duplamente
culpados por ‘serem inferiores’ e por recusarem o ‘modo civilizado de vida’ ou a ‘salvação’,
enquanto os europeus eram ‘inocentes’, pois tudo que fizeram foi visando atingir o melhor”.

3.O MUNDO DE COLOMBO: O CONQUISTADOR EUROPEU E O GENOCÍDIO COLONIAL


José Carlos usa de uma divisão criada por Dussel para explicar as diversas fases do domínio
sobre a América Latino, iniciando figura da “invenção”, que diz respeito à Cristóvão Colombo:
“Colombo morreu em 1505 plenamente convicto de que havia, na verdade, chegado ao
continente asiático.... O ‘Outro’ não foi descoberto como ‘outro’, mas como ‘si-mesmo’”.
Logo após vem a imagem do conquistador:
“O primeiro ‘conquistador’ foi Hernán Cortez, e sua atuação perante os astecas suficientemente
demonstrativa de uma época que marcou a emergência do ‘homem moderno, ativo, prático,
que impõe sua individualidade violenta a outras pessoas, ao Outro’”.
Partindo desse conquistador, é mostrado como o pensamento europeu foi usado para
subordinar os índios:
“Os espanhóis falaram Até Bem dos índios, mas não falaram aos índios, não reconhecendo,
portanto, a sua condição de sujeitos, a sua alteridade. Assim, ‘se a compreensão não for
acompanhada de um reconhecimento pleno do outro como sujeito, então essa compreensão
corre o risco de ser utilizada com vistas à exploração, ao tomar, o saber será subordinado ao
poder’ (TODOROV, Tzvetan)”.
“O primeiro tipo de ação dos espanhóis direcionado à destruição foi o assassinato direto
mediante guerras e massacre.... Uma segunda estratégia de extermínio foi a escravidão... Por
fim, a terceira modalidade de ação, menos consciente, obviamente, era a transmissão de
doenças, que exterminou uma quantidade incomensurável de índios”.

4.O DEBATE DE VALLADOLID: BARTOLOMÉ DE LAS CASAS E A QUESTÃO DA


IGUALDADE DOS ÍNDIOS
Sobre o que foi esse debate:
“Esse memorável embate verbal versou sobre o verdadeiro motivo da conduta implacável dos
espanhóis nas Índias: a inferioridade indígena. Tanto o desejo de enriquecer quanto a pulsão
de domínio foram razões para a atitude espanhola. Porém, faz-se necessário um terceiro
elemento. Uma premissa básica para a verificação da destruição: a noção de inferioridade dos
índios, como se estivessem a meio caminho, entre os homens e os animais”.
De um lado do debate estava a visão eurocêntrica de Juan Gines de Sepúlveda:
“Para Sepúlveda, a constatação de tal nível de primitivismo era reforçada pelo modo não
individual de os índios estabelecerem suas relações uns com os outros e com as coisas, bem
como pelo fato de não terem experiência de propriedade privada nem de herança pessoal”.
“Na visão de Sepúlveda, a conquista, na verdade, é um ato emancipatório, porque permite ao
bárbaro sair de sua barbárie. E para a realização desse feito admite-se a violência irracional e a
‘guerra santa’”.
Do outro, uma visão mais a favor dos índios, a de Bartolomé de Lãs Casas:
“Uma coisa é certa: Las Casas demonstrou, nesse momento, uma postura claramente
assimilacionista, com a diferença de que queria que esta anexação fosse feita por padres e não
por soldados, e que, além disso, nunca estaria justificada uma guerra que procurasse ‘acalmar
os ânimos’ dos índios para que estes pudessem ser evangelizados”.
“Embora a postura de Las Casas seja assimilacionista, ela partiu de um princípio menos
encobridor do que a visão da metodologia tabula rasa,reconhecendo o índio como sujeito na
medida em que exige a sua compreensão e aceitação racional, e não apenas uma submissão”.
“Foi justamente enfrentando os argumentos de Sepúlveda que Las Casas apresentou uma
posição mais inovadora ainda perante a questão. O bispo de Chiapas intentou tornar tanto o
sacrifício quanto o canibalismo menos estranhos e mais aceitáveis ao leitor”.
“Por fim, ele sugeriu ao rei da Espanha (1555) que simplesmente desistisse de seus domínios
na América”.

5.A CULTURA AMERÍNDIA E O FIM DO “QUINTO SOL”


De início, é mostrado como foi vista a chegada dos espanhóis pelos índios. Estes tinham, na
sua religião, fábulas que contavam sobre a chegada de Deuses que trariam o fim do reinado
asteca (chamado por eles de “quinto sol”):
“Tudo indicava que Cortez era Quetzalcóalt... Por esse motivo, o imperador asteca, num
determinado momento, ofereceu o seu reino a Cortez, que, obviamente, nada entendeu.... O
príncipe poderia ser a representação do princípio divino... Por este motivo Montezuma ofereceu
seu reino a Cortez, ficou de fora, pois assim estaria evitando sofrimento a seu povo... Os
astecas interpretaram a conquista como a chegada do ‘sexto sol’ e a conseqüente morte dos
seus deuses, de sua filosofia e de seu mundo”.
Após a destruição do reino asteca, José Carlos mostra que o índio se comportou sob a
dominação espanhola:
“Derrotados militarmente e violentados pela prática dos invasores, os índios simularam
obediência, passividade, servilismo para salvar a pele e, especialmente, sua cultura”.
“Muitos mentiam sobre a possível existência de ouro em regiões inóspitas. Foi assim que
surgiu a famosa lenda de El Dorado. Enfim, por intermédio desta ação sub-reptícia dos índios,
da sua simulação, foi possível ‘sabotar’ a nova sociedade que os europeus queriam construir”.
“Ação simuladora dos índios em face do cristianismo tão densa e impenetrável que acabou por
levar os espanhóis à conclusão de que, em realidade, eles não entendiam os índios. Não
entendiam seus atos e, muito menos, a língua, que era composta de diversos dialetos”.
“Verificou-se a existência de um sincretismo religioso, isto é, os índios incorporaram muitos
dogmas cristãos, mas com a diferença de que o faziam a partir de sua visão idolática de
mundo”.

6.A CULTURA SINCRÉTICA DA PERIFERIA: OS VÁRIOS “ROSTOS” LATINO-AMERICANOS


José Carlos mostra como se constitui a atual conjectura social da América Latina, formada por
diversos “rostos” de diferentes origens:
“Apesar de todos os esforços europeus para que a cultura original do continente americano
fosse encoberta ou negada, acabou-se gerando uma rica e sincrética cultura popular, que
formou na América Latina vários rostos diferentes. Veja-se o perfil de cada um deles. Em
primeiro lugar, os índios. Embora os europeus controlassem o poder político e os ‘pontos
chaves’, o modo de vida da maioria das pessoas era indígena, com um uso comunitário da
terra e uma vida comunal própria, o que, como se viu, era conseguido graças à simulação
indígena, que barrou a total aculturação”.
“O segundo rosto corresponde às vítimas do que Dussel chama de ‘segundo holocausto da
Modernidade’: os negros”.
“O terceiro rosto deste ‘povo uno de rostos múltiplos’, como escreve Dussel, é o mestiço”.
“O quarto rosto, que completa o bloco social oprimido latino-americano pré-independência, é o
dos criollos ou crioulos. Filhos brancos de europeus nas Índias, representam uma classe
dominada”.
Após identificas as bases da sociedade,a atual situação é analisada:
“A partir da consolidação dos Estados Nacionais, formou-se um novo ‘bloco social de
oprimidos’ e surgiram novos rostos que se justapuseram aos antigos. O quinto rosto, portanto,
é o dos camponeses”.
“Os operários, no contexto de nossa revolução industrial atrasada e dependente, surgiram
como o sexto rosto”.
“Compõe o sétimo rosto: o dos ‘marginais’ ou miseráveis, que, oferecendo o seu trabalho a
preços sub-humanos, forçam a permanência de uma mão-de-obra explorada e oprimida”.
“Emergindo dessa viagem às origens do ser latino-americano, pode perceber duas coisas.
Primeiro, que este povo foi vítima de um processo de modernização que ocultou e oculta a
violência praticada contra os seus pares... segundo, que existe uma cultura sincrética popular,
produto exclusivo das tradições latino-americanas e de sua interação com outras culturas”.

7.OS GENOCÍDIOS COLONIAIS E AS PRÁTICAS EXTERMINADORAS DOS SISTEMAS


PENAIS
É mostrado como o sistema penal atua na exclusão das minorias massacradas latino-
americanas, impondo esteriotipos, legitimando sua violência, usando de abusos, etc:
“Os comportamentos muitas vezes considerados criminosos são, na verdade, expressão de
peculiaridades econômicas e culturais de diferentes grupos sociais, e não fruto de uma
inferioridade biológica ou de um desvio em face de um conceito absoluto de crime. Assim, o
direito penal esconde, na realidade, sob a capa de valores gerais pressupostos, a seleção de
determinados valores, referentes a determinados grupos”.
“O aumento dos avanços tecnológicos nos países centrais tende... a colocar os países
periféricos em uma situação desesperadora... Tudo isso gera recessão, diminuição de salário e
do percentual orçamentário destinado a obras sociais e ao combate à miséria. As principais
vítimas dessa situação são a maioria menos favorecida do povo latino-americano”.
“Os sistemas penais, em especial o aparelho policial, passaram a ser o principal instrumento de
controle e de manutenção do sistema instituído, ou seja, de manutenção do genocídio que tal
estrutura representa, isto sem falar nas próprias práticas de cunho genocida empreendeidas
por esses sistemas, informados por um discurso antropológico racista que intensifica a sua
atuação destrutiva”.
“A carga estigmática é tão grande e poderosa que as pessoas que dela são objeto tendem a
introjetar o rótulo que lhes é fixado, principalmente quando se trata de pessoas carentes. Seu
contato com o sistema penal acaba gerando a continuação do mesmo em outros círculos, o
estigma atinge todas as relações sociais”.
“O sistema penal, por gerar continuamente o antagonismo e a contradição social, contribui
decisivamente para o enfraquecimento e a dissolução dos laços comunitários, horizontais,
afetivos e plurais”.

8.CONSIDERAÇÕES FINAIS
De início, é recapitulada a importância do discurso de Bartolemé de Las Casas:
“Nessa idéia Las Casas baseou o princípio da igualdade entre todos os seres humanos, sem
importar seu grau civilizatório. Além disso, partindo da clássica hierarquia das leis proposta por
São Tomás de Aquino, o frei entende que a lei natural seria ditada pelo próprio intelecto
humano, seria a sua manifestação justa de racionalidade. Tal entendimento será usado para
justificar a legitimidade das sociedades políticas dos índios”.
“O domínio espanhol sobre a América não era legítimo, pois não estava apoiado no consenso
dos índios... O poder político da Espanha só poderia ser exercido sobre a América se esta
antes se encontrasse sob domínio espiritual da Igreja”.
“Assim, para Bartolomé de Las Casas, uma verdadeira sociedade constituía-se sobre esses
princípios, em que a soberania e a dignidade do índio, enfim, a sua própria condição de sujeito,
eram respeitadas”.
Finalizando, José Carlos explica a relação entre a dominação e a aculturação dos índios com a
nossa atual situação social:
“Com as reflexões presentes nesse texto, desejou-se chamar a atenção para a correlação
entre: genocídio físico e cultural da colonização americana... e por fim, a prática violenta e
genocida do modelo penal latino-americano”.
“Enfim, como resultado dessas correlações, percebe-se que, enquanto na América Latina
persiste a desconsideração pela imensa maioria da população miserável e oprimida, continuar-
se-á sob vigência de uma sociedade às avessas... É importante ter consciência de todos esses
processos, pois só assim se poderá atingir uma ‘transmodernidade’, um ‘sétimo sol’”.

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