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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

Anais do I Congresso Nacional de Educação


Religião e Artes-CNERA

ISBN:978-85-237-1472-7
2019
CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO RELIGIÃO E ARTES

ORGANIZAÇÃO GERAL DO EVENTO

 Presidente - Profa. Dra. Mônica Dias Palitot


Vice-Presidente: Profa. Dra. Ana Paula Rodrigues

Antonio Agaildes Sampaio Ferreira


Anne Kelly Barbosa da Silva
Caroline Rangel Travassos Burity
Chayenne Pereira dos Santos
.Francisco de Assis Toscano de Brito
Henrique Miguel De Lima Silva
Ingrid Souto Vita Barros
Jailton Macena de Araújo
John Kennedy Domingos Nunes
Johnnys da Silva Hortêncio
Mariana Ferreira Feitosa Costa Leite
Pollyanna de Moura Felix
Romeu Tavares Bandeira
Rosicleia Moreira Palitot
Suely Maria Alves de Souza
.Thereza Sophia Jácome Pires

COMISSÃO CIENTÍFICA DO CNERA

 Presidente da Comissão – Prof. Dr. Jailton Macena de Araújo


Me.Ana Carolina Gondim de A. Oliveira
Dra. Ana Paula Rodrigues
Dra.Caroline Rangel Travassos Burity
Dr. Gabriel Bechara
Dr. Galdino T. de Brito Filho
Dr.Henrique Miguel De Lima Silva
Me.Francisco de Assis Toscano de Brito
Me.Lorena Bandeira da Silva
Dra.Mônica Dias Palitot
Dra.Thereza Sophia Jácome Pires
Apoio
Chayenne Pereira dos Santos
Pollyanna de Moura Felix
Suely Maria Alves de Souza
CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
RELIGIÃO E ARTES-CNERA
O 1º Congresso Nacional de Educação, Religiões e Artes – CNERA,
ocorreu nos dias 04 a 06 de setembro de 2018, na Universidade Federal da
Paraiba-UFPB (Campus 1), tendo por proposta o tema Olhares
Interdisciplinares.

O evento objetivou favorecer um debate interdisciplinar sobre temas da


Educação, das Ciências das Religiões e das Artes de modo a estimular uma
relação dialógica entre áreas tão diversas, mas que se completam.
Procurou-se também demostrar como a arte é trabalhada no âmbito
educacional e como ela pode auxiliar na aprendizagem; apresentar as
manifestações artísticas culturais de inspiração religiosa; consolidar
perspectivas sobre arte e religião nas mais variadas regiões do Brasil, além
de compreender como o processo da aprendizagem humana pode ser
favorecido pelo lúdico e pelas artes.
As temáticas da educação, religião e artes foram abordadas por áreas
diversas como as Ciências Jurídicas, a Psicologia, a Psicopedagogia, a
Gastronomia, dentre outras, que demonstraram o quanto estes temas
perpassam por todas as áreas humanas e sociais de modo integrado.
Este evento teve uma proposta única no país, com uma participação
exitosa, tendo sido avaliados e aprovados 60 artigos completos e 195
resumos simples. Foram dezenas de Grupos de Trabalhos das mais diversas
áreas, palestras e eventos culturais que propiciaram a todos momentos de
aprendizagens, partilhas e principalmente novas percepções sobre os temas
abordados.
Em nome de todos os que compartilharam conosco do CNERA a nossa
gratidão.

COMISSÃO ORGANIZADORA DO CNERA

Anais do I CNERA – Congresso Nacional de Educação, Religião e Artes. Mônica Dias


Palitot, Ana Paula Rodrigues, Jailton Macena de Araújo (Organizadores). –
João Pessoa:Ed.UFPB, 2019. 720 p. ISBN: 978-85-237-1472-7
Sumário
PRIMEIRA PARTE – ARTIGOS COMPLETOS

ARTE E FILOSOFIA: SABERES LÍQUIDOS ............................................................................ 8


A ARTE COMO POSSÍVEL INSTRUMENTO DE VISIBILIDADE DO TRABALHO
INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL.................................................................................... 18
A ARTE NA REVOLUÇÃO: COMO OS AUTORES VANGUARDISTAS CONTRIBUÍRAM
PARA A REVOLUÇÃO RUSSA .............................................................................................. 33
A BENZEÇÃO NO BRASIL COMO LEGADO DAS CURANDEIRAS ANCESTRAIS
EUROPEIAS: APROXIMAÇÕES E AFASTAMENTOS ......................................................... 39
A CRIAÇÃO DO MUNDO: O MITO NAS METAMORFOSES DE OVÍDIO .......................... 54
A CULTURA INDÍGENA E SUA MANUTENÇÃO: A INFLUÊNCIA DA GLOBALIZAÇÃO
mNAS TRANSFORMAÇÕES SOCIOCULTURAIS DOS FULNI-Ô, DA CIDADE DE ÁGUAS
BELAS – PE .............................................................................................................................. 64
A EDUCAÇÃO E SEUS DEBATES ATUAIS: O QUE QUEREMOS NO ENSINO
RELIGIOSO? ............................................................................................................................. 72
A FORMAÇÃO DE DOCENTES AO ENSINO RELIGIOSO E A INSEGURANÇA
PEDAGÓGICA NO ENSINO CONFESSIONAL ..................................................................... 82
A FORMAÇÃO SOCIAL DOS BACAMAERTEIROS DE CACHOEIRINHA:
CONTRIBUIÇÃO DA SUA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA...................................................... 92
A LEI 11.645/08 NAS ARTES E NA EDUCAÇÃO: MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
INDÍGENAS E AFRO-BRASILEIRAS .................................................................................. 101
A INVISIBILIDADE COMO ELEMENTO FANTÁSTICO NA LITERATURA E NO ICNEMA
JUVENIL BRASILEIRO ......................................................................................................... 111
ADAPTAÇÕES DE JOÃO E MARIA, DOS IRMÃOS GRIMM: CONTRIBUIÇÕES DE
FIGUEIREDO PIMENTEL E CARLOS FERREIRA E WALTER PAX ................................ 141
A REFORMA TRABALHISTA E A HIPERVULNERABILIDADE DA
TRABALHADORA ................................................................................................................. 152
ALGUNS PARALELOS ENTRE THOR E PERUN, DIVINDADES ESCANDINAVA E
ESLAVA DO TROVÃO .......................................................................................................... 161
AS FACETAS DE DIONISO N’AS BACANTES, DE EURÍPIDES ...................................... 171
ASPECTOS DO DIALOGISMO BAKHTINIANO NA LITERATURA JUDAICA DO
ECLESIASTES ........................................................................................................................ 181
BABA YAGA: A “BRUXA” DOS CONTOS ESLAVOS....................................................... 189
BURUBURU: A SIMBÓLICA DOS ORIXÁS NOS PROCESSOS CRIATIVOS DO
PERFORMER AYRSON HERÁCLITO E DO ARTISTA PLÁSTICO PARAIBANO
ELIOENAI GOMES ................................................................................................................ 198
CANDOMBLÉ RESISTÊNCIA CULTURAL: SURGIMENTO E CONSOLIDAÇÃO NO
SÉCULO XIX .......................................................................................................................... 205
COMO ELAS SABEM? CORPO, APRENDIZAGEM, EDUCAÇÃO E RELIGIÃO NA
INFÂNCIA .............................................................................................................................. 214
CONTRIBUIÇÕES DAS LITERATURAS FANTÁSTICA E MARAVILHOSA PARA AS
CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES ................................................................................................. 224
DA COR DE ÉBANO: HISTÓRIA, ARTE E ESTÉTICA NA VALORIZAÇÃO DA
NEGRITUDE NO AMBIENTE ESCOLAR ............................................................................ 236
DELITOS DO DESEJO: DAS PUNIÇÕES A EVA ÀS INFRAÇÕES DE LILITH ............... 246
DIANTE DAS BRUMAS DE AVALON: ESPAÇOS SAGRADOS EM GLASTONBURY .. 255
DISSERTAÇÕES DE MESTRADO SOBRE ESOTERISMO NO PPGCR/UFPB ENTRE 2009
E 2017 ...................................................................................................................................... 262
DOENÇA MENTAL E ETNOPSIQUIARIA EM INTERFACE COM DIREITO, SAÚDE E
RELIGIÃO ............................................................................................................................... 270
EMPONDERAMENTO FEMININO: UMA ANÁLISE DA AUTONOMIA DAS MULHERES
EM FEIRA LIVRE DE SANTANA DO IPANEMA -............................................................. 277
EMPONDERAMENTO POPULAR: PERFIL SOCIOECONÔMICO DA FEIRA LIVRE EM
SANTANA DO IPANEMA – AL ............................................................................................ 283
ENTRE CHOROS, SUSSUROS E MÁSCARAS: A ANTROPOLOGIA DE TURNER E O
TEATRO CONTEMPORÂNEO.............................................................................................. 291
EXPRESSÃO DA RELIGIOSIDADE NO MITO DO RAPTO DE PROSÉRPINA ............... 298
HISTÓRIAS DE CRIANÇAS: UM ENCONTRO COM AS MEMÓRIAS DE CAROLINA
MARIA DE JESUS .................................................................................................................. 311
IMAGEM E SIGNIFICAÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE SUBJETIVIDADES E OBJETOS EM
UM CONTEXTO ESCOLAR .................................................................................................. 321
IMPACTOS DE FATORES SOCIAIS NA ESCOLARIZAÇÃO: REINSERÇÃO E INCLUSÃO
ESCOLAR DOS APRENDENTES DA EJA ........................................................................... 330
LAMPIÃO E A CONSTRUÇÃO DE UM MITO POPULAR: UMA ANÁLISE DAS
RELAÇÕES DE PODER E LUTAS NO NORDESTE BRASILEIRO.................................... 339
LUGARES SAGRADOS E TURÍSTICOS E LIDERANÇAS RELIGIOSAS COMO
PROPOSTA PEDAGÓGICA DO ENSINO RELIGIOSO: relato de experiência na escola da
cidade de Natal/RN .................................................................................................................. 351
MATERIAIS DIDÁTICOS: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE GÊNERO NA
EDUCAÇÃO INFANTIL ........................................................................................................ 366
MEMÓRIAS DE UM BALAIEIRO: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E UM
MERGULHO EM SUAS PERTENÇAS.................................................................................. 374
METALINGUAGEM: CORPORIFICAÇÃO DO GOZO PELA PALAVRA ......................... 387
MODA NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E AS SUAS INFLUÊNCIAS NA MULHER
CONTEMPORÂNEA .............................................................................................................. 396
O ENSINO DE MÚSICA EAD POR MEIO DE TUTORIAIS ONLINE: FORMAÇÃO DE
INSTRUMENTISTAS ............................................................................................................. 409
O ENSINO RELIGIOSO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO
BRASILEIRA .......................................................................................................................... 421
O ENSINO RELIGIOSO NO BRASIL-PAÍS LAICO ............................................................. 437
O EROTISMO E A DEVOÇÃO NAS ENTRELINHAS POÉTICAS: AS PRODUÇÕES
LITERÁRIAS DAS IRMÃS DE CARIDADE NO SÉCULO XIX .......................................... 449
O ESTRESSE EM ESTUDANTES DO ENSINO MÉDIO: A IMPORTÂNCIA DE
COMPREENDER PARA PREVENIR .................................................................................... 462
O LEGADO MISSIONÁRIO DE PADRE IBIAPINA: IMAGENS DE UM CATOLICISMO
POPULAR NO NORDESTE IMPERIAL ................................................................................ 470
O MITO DA CRIAÇÃO DO HOMEM: AS RAÇAS EM HESÍODO E OVÍDIO ................... 479
O MITO DE NARCISO: SACRALIDADE E TRANSCENDÊNCIA, UM OLHAR
PSICANALÍTICO ................................................................................................................... 488
O PORTEIRO DO INFERNO: REFLEXÕES ACERCA DA RECEPÇÃO DE UMA OBRA DE
ARTE PÚBLICA ..................................................................................................................... 496
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS PARA A DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL: PERSPECTIVAS
DE PROFESSORES DE UMA ESCOLA PÚBLICA DE ENSINO FUNDAMENTAL DA REDE
MUNICIPAL DE JOÃO PESSOA-PB .................................................................................... 503
REFORMA TRABALHISTA REDUZINDO O ACESSO À JUSTIÇA .................................. 512
RELIGIÃO E ADOECIMENTO: UMA ANÁLISE SISTEMÁTICA...................................... 521
RELIGIÕES AFRO-AMERÍNDIAS NO BRASIL: UMA BREVE ABORDAGEM .............. 529
REMINISCÊNCIAS DE LEITURA: NARRATIVAS DA MEMÓRIA LITERÁRIA ............ 537
TEATRO COMO FERRAMENTA DE SENSIBILIZAÇÃO: DIÁLOGOS ENTRE O
CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES DE MATRIZES AFRICANAS EM SALA DE AULA 545
TECNOLOGIAS E EDUCAÇÃO MUSICAL: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA SOBRE UMA
OFICINA DE CRIAÇÃO DE JOGOS MUSICAIS DIGITAIS ............................................... 553
TRAJETÓRIAS FORMATIVAS, A ARTE E A CULTURA NEGRA NA FORMAÇÃO
INICIAL E CONTINUADA DE PROFESSORES .................................................................. 560
TRATAMENTO E ORGANIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO: AÇÕES PRÁTICAS DA
BIBLIOTECONOMIA NO CENTRO DE PSICOLOGIA DA RELIGIÃO EM JUAZEIRO DO
NORTE-CE .............................................................................................................................. 570
UM RELATO DE EXPERIÊNCIA SOBRE O ENSINO DE CONTRABAIXO ELÉTRICO E
TEORIA MUSICAL NO GRUPO BXPE NO WHATSAPP ................................................... 578
UMA ANÁLISE DO TRÍPLICE CONCEITO DE MITO ....................................................... 587
UMA COBRA NA SALA DE AULA: PROJETO OFÍDIAS: UM DIÁLOGO SOBRE
CULTURA INDÍGENA PARA NÃO INDÍGENAS ............................................................... 598
RELIGIÃO E ADOECIMENTO: UMA ANÁLISE SISTEMÁTICA...................................... 610

SEGUNDA PARTE: RESUMOS SIMPLES - PÁG.616 A 720


PRIMEIRA PARTE

ARTIGOS COMPLETOS

Anais do I CNERA – Congresso Nacional de Educação, Religião e Artes. Mônica Dias


Palitot, Ana Paula Rodrigues, Jailton Macena de Araújo (Organizadores). –
João Pessoa:Ed.UFPB, 2019.720 p. ISBN: 978-85-237-1472-7
ARTE E FILOSOFIA: SABERES LÍQUIDOS

Dr. Robson Xavier da Costa1


Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais
Universidade Federal da Paraíba
Me. Márcio Soares dos Santos2
Universidade Federal da Paraíba

Resumo
Segundo Bauman (2001) vivemos na modernidade líquida. Termos como pós-
modernidade, hipermodernidade, modernidade tardia, hibridismo e transculturação
definem paradigmas contemporâneos. Desde 1960 as Artes Visuais dialogam com outras
linguagens expressivas utilizando a “bricolagem” e a “apropriação”, que possibilitam a
heterogenia dos saberes apresentados no campo expandido (performances, site specifics,
instalações, videoinstalações, intervenções urbanas, etc.). Neste GT questionamos: como
se estabelecem as relações entre as artes, a educação e as religiões no mundo
contemporâneo? Como o estudo das imagens pode aproximar as artes da educação?
Pretendemos estimular o debate sobre as reflexões em torno das Artes e dos saberes
humanos transdisciplinares.
Palavras Chave: Arte. Filosofia. Educação. Imagens.

Abstract
According to Bauman (2001) we live in liquid modernity. Terms such as postmodernity,
hypermodernity, late modernity, hybridism, and transculturation define contemporary
paradigms. Since 1960 the Visual Arts have been in dialogue with other expressive
languages using "bricolage" and "appropriation", which allow the heterogeneity of the
knowledge presented in the expanded field (performances, site specifics, installations,
video installations, urban interventions, etc.). In this GT we asked: how are the relations

1
Professor/Pesquisador do Departamento de Artes Visuais e do Programa Associado de Pós-Graduação em
Artes Visuais da UFPB; Pós-Doutor em Estética e História da Arte (PGEHA/MAC/USP); Doutor em
Arquitetura e Urbanismo (PPGAU UFRN e UMinho/Portugal); Mestre em História (PPGH UFPB);
Especialista em Sociologia e Educação Especial (UFPB) e Licenciado em Artes Plásticas (UFPB). Email:
robsonxavierufpb@gmail.com.
2
Professor da Rede Privada de Ensino de João Pessoa. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Arte, Museus
e Inclusão (GPAMI UFPB); Mestre em Filosofia (PPGF PUC) e Linguística (PPGL UFPE); Graduado em
Ciências Atuariais (UFPB); Filosofia (PUC SP) e Linguística (UFPE). Email:
professormarcio28@gmail.com.
between the arts, education and religions established in the contemporary world? How
can the study of images bring the arts closer to education? We intend to stimulate the
debate on the reflections on the arts and transdisciplinary human knowledge.
Key words: Art. Philosophy. Education. Images.

Introdução

A ausência, ou a mera falta de clareza, das normas - anomia - é o pior


que pode acontecer às pessoas em sua luta para dar conta dos afazeres
da vida. As normas capacitam tanto quanto incapacitam; a anomia
anuncia a pura e simples incapacitação (BAUMAN, 2001, p. 29).

Reunir um grupo de pesquisadores/as oriundos de diversas áreas de


conhecimentos, para debater as relações entre Arte e Filosofia no mundo contemporâneo,
foi o desafio proposto pelo grupo de trabalho “arte e filosofia: saberes líquidos”, durante
o I Congresso Nacional de Educação, Religiões e Arte (I CNERA), na Universidade
Federal da Paraíba (UFPB), no ano de 2018, sob nossa coordenação.

Como profissionais oriundos de campos diversos das humanidades, um com


formação em artes visuais e outro em filosofia, temos dialogado durante os últimos cinco
anos, a partir das ações conjuntas realizadas no Grupo de Pesquisa em Arte, Museus e
Inclusão (GPAMI) da UFPB, onde temos estudado práticas contemporâneas de
acessibilidade e diversidade cultural nos campos das artes visuais, museologia, design,
educação, moda, comunicação e filosofia.

A partir do ecletismo dessas abordagens resolvemos abordar conceitos capitais


para discutir arte contemporânea, como liquidez, pós-modernidade, hipermodernidade,
modernidade tardia, hibridismo e transculturação, a partir da bricolagem e da apropriação
cultural. Partindo da teoria de mundo líquido proposta por Zygmund Bauman (2001),
resolvemos pensar como esse conceito está relacionado com as áreas citadas e suas
diversas maneiras de interconexões transdisciplinares.

Recebemos dez propostas de trabalhos e selecionamos seis artigos que foram


aprovados e apresentados durante o GT arte e filosofia do I CNERA. Os pesquisadores
Ma. Jacqueline Carolino (GPAMI UFPB) e Dr. Robson Xavier (Coordenador do PPGAV
UFPB) discutiram “a relação entre cores e sentimentos: a arte como transmissor visual”
analisando o desenvolvimento de atividades artísticas e uso de cores com pessoas idosas,
no Lar de Longa Permanência Vila Vicentina Júlia Freire, em João Pessoa, Paraíba.
Os pesquisadores Dr. Clécio de Lacerda (Professor do IFCA – Ceará) e Me.
Vinícius de Oliveira (Professor do IFRPE – Pernambuco) apresentaram o artigo “imagem
e significação: a relação entre subjetividades e objetos em um contexto escolar”,
discutindo o conceito de imagem e subjetividade nas obras de sociologia da imagem:
ensaios críticos” de Koury (2004) e sociologia da fotografia e da imagem” de Martins
(2008), aplicados em sala de aula nos cursos de design.

A pesquisadora Atena Pontes (discente do PPGAV UFPB) apresentou o artigo


“moda na segunda guerra mundial e suas influências na mulher contemporânea”,
analisando o perfil sócio estético de mulheres durante o período da guerra na França a
partir da Revista Marie Claire e do arquivo do Museu da Moda de Lyon.

O pesquisador Dr. Milton dos Santos (Pós Doutorando pelo PPGAV UFPB)
apresentou o artigo “Buruburu: a simbólica dos orixás nos processos criativos do
performer Ayrson Heráclito e do artista plástico paraibano Elioenai Gomes”, discutindo
comparativamente a videoinstalação “Buruburu” de Ayrson Heráclito com a pintura
“Omuru: caminho do renascimento” de Elioenai Gomes.

E o pesquisador Dr. Stênio Soares (professor da UFBA) apresentou o artigo “o


porteiro do inferno: reflexões acerca da recepção de uma obra de arte pública”, discutindo
a recepção da obra o porteiro do inferno (1967) de Jackson Ribeiro (1928 – 1997) a partir
da teoria de Walter Benjamim.

O pesquisador Leandro Garcia (discente do PPGAV UFPB) apresentou o artigo


“experiências artográficas com o grupo reflexivo para homens autores de violência
doméstica contra a mulher” analisando a experiência do ensino não formal de artes visuais
para homens, no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), em
São Gonçalo do Amarante, Rio Grande do Norte, realizado em 2016.

Os seis artigos abordaram à pesquisa em/sobre/com artes visuais como referência


central, relacionando arte com filosofia contemporânea, abordando teorias propostas por
filósofos como Walter Benjamim (1892 – 1940), Michael Foucault (1926 – 1984), John
Dewey (1859 – 1952), Pierre Levy (1956 - ), Zygmunt Bauman (1925 - 2017), etc. Todas
as pesquisas apresentadas abordaram vivências dos autores com os temas trabalhados e o
esforço para a construção teórica no campo da investigação sobre as imagens.
1. Modernidade Líquida, Hibridismo, transculturação e bricolagem

Pós-modernidade, modernidade líquida, hipermodernidade, modernidade


tardia: são várias as expressões que procuram definir o atual momento político,
econômico, social e cultural. Diversas análises evidenciam que a sociedade
transformou-se significativamente nas últimas cinco décadas. Entre outros
aspectos, as inovações tecnológicas tornaram-se preponderantes na vida
cotidiana. Celulares, computadores, softwares e redes virtuais de comunicação
influem diretamente na hibridização de hábitos, costumes, formas de se
relacionar, levando-nos a questionar os pilares que sustentam a sociedade
ocidental (NEIRA e LIPPI, 2012, p. 607).
O Sociólogo e pensador Polonês Zygmunt Bauman (1925 - 2017), ex-professor
da London School of Economics, discutiu em sua obra o fenômeno da globalização e das
transformações ocorridas entre a o mundo moderno e o mundo contemporâneo,
elaborando o conceito de “modernidade líquida” ao discutir a fluidez das relações
humanas no mundo contemporâneo, onde todos os padrões sociais humanos pautados nos
moldes tradicionais foram desconstruídos e reformulados.

São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar que
podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais
podíamos nos deixar depois guiar, que estão cada vez mais em falta. Isso não
quer dizer que nossos contemporâneos sejam livres para construir seu modo de
vida a partir do zero e segundo sua vontade, ou que não sejam mais
dependentes da sociedade para obter as plantas e os materiais de construção.
Mas quer dizer que estamos passando de uma era de 'grupos de referência'
predeterminados a outra de 'comparação universal', em que o destino dos
trabalhos de autoconstrução individual (…) não está dado de antemão, e tende
a sofrer numerosas e profundas mudanças antes que esses trabalhos alcancem
seu único fim genuíno: o fim da vida do indivíduo (BAUMAN, 2001, p.15).

A vida humana sobre a terra em uma época de liquidez, fluidez, volatilidade,


incertezas, inseguranças, as relações humanas são moldadas pelo individualismo, gozo
imediato, artificialidade e regido pelo consumo, todos os referenciais estabelecidos pela
civilização ocidental foram desenraizados, liquefeitos e perdidos,

Os fluidos se movem facilmente. Eles "fluem", "escorrem", "esvaem-se",


"respingam", "transbordam", "vazam", "inundam", "borrifam", "pingam"; são
"filtrados", "destilados"; diferentemente dos sólidos, não são facilmente
contidos - contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou
inundam seu caminho. Do encontro com sólidos emergem intactos, enquanto
os sólidos que encontraram se permanecem sólidos, são alterados - ficam
molhados ou encharcados. A extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os
associa à ideia de "leveza' Há líquidos que, centímetro cúbico por centímetro
cúbico, são mais pesados que muitos sólidos, mas ainda assim tendemos a vê-
los como mais leves, menos "pesados" que qualquer sólido. Associamos
"leveza" ou "ausência de peso" à mobilidade e à inconstância: sabemos pela
prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos
movemos (BAUMAN, 2001, p. 07).
Podemos visualizar a explicação do conceito no esquema abaixo:

Figura 01 – Esquema Monstro de Modernidade Líquida – canal super sociologia. Disponível em:
https://colunastortas.com.br/modernidade-liquida-o-que-e/.

Relacionamos o “modernidade líquida” com o conceito de “hibridismo” aplicado


a arte contemporânea, a junção do termo grego “hibris” com o termo latim “hybrida”,
termos empregados para designar seres mitológicos mistos de animais e humanos
fabulosos e na biologia o termo “hibrido” relaciona-se com genética (seres heterozigotos,
cruzamento de seres homozigotos) e taxionomia, designando o cruzamento genético entre
espécies vegetais ou animais distintos, gerando seres estéreis.

Ao aplicar-se o hibridismo na arte contemporânea a partir dos experimentos


desenvolvidos a partir dos anos 1960, a partir dessa década surgiram expressões artísticas
mistas, que envolvem o corpo, os materiais, os sons, os movimentos, a
multissensorialidade (LEOTE, 2015), absorvendo diferentes linguagens artísticas e
possibilitando a imersão do espectador nas obras.

O uso constante de gêneros, suportes, técnicas, tecnologias, mídias e linguagens,


a introdução da fotografia, do cinema, do vídeo, da arquitetura, do design, a consolidação
da performance, da videoarte, da instalação, da videoinstalação, da ciberart, da street art,
etc. permitiram identificarmos o hibridismo como uma das principais abordagens da arte
contemporânea. Ao abordar as relações entre Arte e Filosofia no contexto contemporâneo,
necessariamente consideramos os conceitos de mundo líquido, hibridismo,
transculturação e bricolagem nas artes.

O termo bricolagem é oriundo do francês e designa diretamente os trabalhos


manuais improvisados, utilizando retalhos aproveitados de diversos materiais. No campo
dos estudos culturais o conceito de bricolagem foi elaborado por Lévi-Strauss (1976),
como um método de expressão por meio da seleção e síntese de componentes oriundos
de culturas diversas. Derrida (1971) utilizou o conceito para designar a colagem de
fragmentos de textos diversos formando outro e Certeau (1994) utilizou a bricolagem
como a união ou simbiose de variáveis culturais de origens diversas para a construção de
novos saberes (NEIRA e LIPPI, 2012). Outro conceito que lida com a miscigenação de
saberes e informações culturais é a “transculturação”.

O conceito de transculturação é atribuído ao antropólogo cubano Fernando Ortiz


Fernández (1881 – 1969), atribuindo a fusão de formas culturais adotadas por grupos
distintos, substituindo algumas das suas práticas culturais tradicionais, dando lugar a
aculturação, quando uma cultura se impõe sobre a outra por meio da fusão cultural.

Nessa perspectiva, a história do mundo moderno e contemporâneo pode ser


lida como a história de um vasto e intrincado processo de transculturação,
caminhando de par em par com a ocidentalização, a orientalização, a
africanização e a indigenização (IANNI, 1996, p. 142).
Dos seis artigos apresentados no I CNERA, no “GT Arte e Filosofia: saberes
líquidos”, quatro trabalhos foram enviados na versão “artigo completo” para publicação
nos anais, abordando questões relacionadas aos conceitos citados, identificamos que:

Clécio Lacerda e Vinícius de Oliveira desenvolveram uma análise sobre as


próprias vivências como educadores a partir de uma leitura comparativa baseada no
conceito de sociedade da imagem (MARTINS, 2008) e de Cibercultura (LÉVY, 1999),
utilizando uma fundamentação teórico-metodológica comparada, a partir do estudo dos
livros “sociologia da fotografia e da imagem” (MARTINS, 2008) e “sociologia da
imagem: ensaios críticos (KOURY, 2004), chegando as seguintes considerações:

a) As imagens e as significações sozinhas no contexto escolar não garantem, nem


promovem intersubjetividades, é necessário considerar outras variáveis;
b) Os desejos subjetivos em espaços público-privados de disputas políticas
podem promover ilusões e rupturas;
c) As ações dos professores na escola dependem da sua compreensão de mundo
e das suas práticas e vivências educativas.

Stênio Soares analisou a recepção da obra de arte pública “O porteiro do Inferno”


de autoria de Jackson Ribeiro, instalada originalmente em 1967, no centro de João Pessoa,
tendo sofrido migração para vários lugares da cidade e finalmente foi fixada no giradouro
da entrada da Avenida Pedro II, de frente ao Centro de Comunicação, Turismo e Artes
(CCTA), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) a luz das contribuições de Walter
Benjamin (1994), indicou os seguintes resultados:

a) Determinada postura da recepção local da obra, permitiu que o observador


fosse participante e criador, e realizasse sua própria experiência de
pensamento sobre a obra;

b) A recepção dessa obra estava relacionada à maneira como os


sujeitos/espectadores estão no mundo e se relacionam com outros
fenômenos da Cultura local;
c) O Porteiro do inferno despertou a sensibilidade a partir da origem e
formação cultural de cada observador.

Milton dos Santos no artigo “Buruburu: a simbólica dos orixás nos processos
criativos do performer Ayrson Heráclito e do artista plástico paraibano Elioenai Gomes”,
analisou comparativamente a videoinstalação Buruburu e a pintura Omulu, chegou as
seguintes considerações:

a) Que para apreender o conteúdo simbólico presente nas duas obras é


preciso (re)conhecer o referente ao qual elas se reportam, isto é, a
cosmogonia e as hierofanias dos orixás da religião nagô-ioruba;
b) Do contrário, tal recepção corre o risco de se tornar refém do discurso
rígido da “arte pela arte”, assentado estritamente na percepção formalista
ou na decodificação dos elementos visuais aparentes.

E Atena Pontes no artigo “Moda na segunda guerra mundial e as suas influências


na mulher contemporânea” analisou o perfil físico-social das mulheres leitoras da Revista
Marie Claire em arquivos do Museu de Lyon, na França. Analisando objetos de época,
fotografias e entrevistas com mulheres que viveram durante a segunda guerra, chegando
as seguintes considerações:

a) As mulheres dos anos 1940 tinha uma vida ativa, trabalhavam em usinas,
cuidavam da casa, da família, andavam a pé ou de bicicleta;
b) Adaptaram não apenas sua rotina, mas também sua apresentação social.
c) O aspecto social das mulheres múltiplas do século XXI é identificável nas
capas das edições do ano 2018 da Marie Claire France e Brasil. Mas o
estereotipo corporal representado continua sendo o da mulher do século
XX;
d) A partir da comparação entre os dois períodos, 1939-1945 e 2018,
observamos semelhanças de práticas de moda demonstradas nas revistas.

Considerações Finais

Os quatro artigos completos enviados para publicação nos anais do I CNERA,


como resultados do debate do "GT Arte e Filosofia: saberes líquidos” abordaram de
maneira transdisciplinar os conceitos centrais indicados de “modernidade líquida”,
“transculturação”, “hibridismo” e “transculturação”. Cada autor/a a sua maneira abordou
transversalmente os conceitos propostos.

Milton Santos e Stênio Soares, ao analisarem obras de artistas brasileiros


vinculados à arte contemporânea, demonstraram que essas obras transitam entre o
hibridismo e a transculturação a partir da recepção, da leitura das imagens. Ambos
demonstraram que para que uma análise da imagem das obras de arte deve-se ter
conhecimentos relacionados ao contexto de sua criação, e fundamentação mítico-
simbólica, onde os preceitos dos conhecimentos de vida dos artistas interferem
diretamente nas concepções dos títulos ou dos temas das obras, influenciando a recepção
das mesmas.

Segundo os trabalhos apresentados o conhecimento dos dados históricos e


culturais relacionados às obras de arte, é fundamental para que as mesmas sejam
compreendidas em sua profundidade, qualquer leitura que desconsidere o contexto amplo
da sua simbologia ou da formação do olhar de quem lê as obras, corre o risco de manter
abordagens superficiais e descontextualizadas.
No caso das “obras de arte afro-brasileiras” a compreensão depende da
interpretação da simbólica dos artefatos das religiões de matriz africanas, que consistem
em ritualísticas complexas, construídas a partir das cosmovisões africanas reelaboradas
no Brasil e pouco divulgadas para a maioria da população brasileira. A ausência de
domínio desse repertório cultural específico (já disponíveis na internet e/ou em
publicações de exposições e mostras) pode resultar em leituras superficiais formalistas, o
que também ocorreu em relação ao “pré-conceito” quanto ao nome da obra “O porteiro
do inferno” de Jackson Ribeiro (1928 – 1997).

Atena Pontes, Clécio Lacerda e Vinícius Oliveira analisaram imagens e/ou


contextos publicados em revistas de moda ou em livros sobre a sociologia das imagens,
buscando identificar as relações estabelecidas entre a concepção da moda na vida
cotidiana de mulheres do período da segunda guerra mundial na França ou as vivências
de professores da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) sobre os
conceitos de imagens, a partir da revisão bibliográfica.

Esses autores indicaram que as publicações impressas, sejam livros ou revistas de


moda, refletem os contextos, onde as práticas sociais se desenvolvem e demonstram
aspectos das relações humanas em cada época. Essas publicações influenciam as práticas
cotidianas das pessoas, que buscam adaptar as possibilidades cotidianas as possibilidade
de incorporar ou seguir os conceitos ou tendências apontadas pelas publicações.

Ao comparar as revistas Marie Claire, publicadas no período da segunda guerra


mundial (1939 – 1944) na França, com as imagens estereotipadas das mulheres publicadas
na revista Marie Claire (França-Brasil) em 2018, Atena Pontes, analisou os arquivos,
fotos e as entrevistas com mulheres e identificou o papel social da moda e dos modelos
impressos nas revistas, como referências para a maneira de se vestir dessas mulheres,
mesmo que não tivessem condições para comprar as roupas, utilizaram da resiliência e da
criatividade para seguirem as tendências da moda.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2001.


DE CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano – artes de fazer. Tradução de Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994.
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Florianópolis: UFSC, v. 14, nº. 20, 1996, p. 139-170.
KINCHELOE, Joe L. e BERRY, Kathleen S. Pesquisa em Educação: conceituando a
bricolagem. Tradução de Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2007.
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MORIN, Edgar; ALMEIDA, Maria da Conceição de; CARVALHO, Edgar de Assis (Org.).
Educação e Complexidade: os sete saberes e outros ensaios. Tradução de Edgard de Assis
Carvalho. São Paulo: Cortez, 2002.
NEIRA, Marcos Garcia e LIPPI, Bruno Gonçalves. Tecendo a colcha de retalhos: a bricolagem
como alternativa para a pesquisa educacional. In: Revista Educação & Realidade. Porto Alegre,
v. 37, n. 2, p. 607-625, maio/ago. 2012. Disponível em: http://www.ufrgs.br/edu_realidade/.
Acesso em: 15.12.2018.
A ARTE COMO POSSÍVEL INSTRUMENTO DE VISIBILIDADE
DO TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO NO BRASIL

Rayanne Aversari Câmara


Jailton Macena de Araújo

RESUMO

O trabalho aborda a proteção jurídica conferida às crianças e aos adolescentes no Brasil,


refletindo que a ineficácia das normas em relação ao trabalho infantil doméstico decorre
da invisibilidade desse tipo de exploração, muitas vezes mascarada como ajuda ou
participação social. O objetivo é apresentar as práticas artísticas como uma alternativa
capa de proporcionar visibilidade e consequentemente promover a vigilância, conferindo,
assim, maior efetividade aos direitos e garantias já positivados.

PALAVRAS-CHAVE: Trabalho infantil doméstico. Visibilidade. Reconhecimento.


Arte.

1. INTRODUÇÃO

Crianças e adolescentes, enquanto pessoas em desenvolvimento, merecem a


tutela especial do Estado, em razão da condição de vulnerabilidade em que se encontram.
Esse é o entendimento do ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição Federal
de 1988, que implementou a doutrina da proteção integral das crianças e adolescentes,
estabelecendo o

“dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-
los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão” (BRASIL, 1998).

Ratificando a Doutrina da Proteção Integral, entrou em vigor a Lei nº 8.069


(Estatuto da Criança e do Adolescente), sob a égide dos princípios da proteção integral,
do melhor interesse e da prioridade absoluta, para abranger todas as crianças e
adolescentes, independentemente da situação em que se encontram.
No âmbito do trabalho, há expressa vedação no artigo 7º, inciso XXXIII
Constituição Federal e no artigo 60 da Lei 8.069/90, ao trabalho noturno, perigoso ou
insalubre a menores de dezoito anos e qualquer trabalho a menores de dezesseis anos,
salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) também dedica todo o Capítulo IV
do Título III à Proteção do trabalho infantil, dispondo sobre diversos itens relacionados à
proteção do trabalho infantil: a idade mínima, descanso, intervalos e duração da jornada
de trabalho, proibição do trabalho perigoso, insalubre, penoso, noturno ou trabalhos
realizados em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico,
moral e social e em horários e locais que não permitam a frequência à escola.
Apesar de o microssistema de proteção dos direitos infanto-juvenis ser
considerado avançado, as práticas sociais não acompanharam essa evolução, havendo
ainda negligência, ameaça e violações aos direitos tutelados.
A edição de 2015 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) verificou que cerca de 2,6 milhões
de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos estão sendo submetidos à exploração da mão-
de-obra (FUNDAÇÃO ABRINQ, 2016) no Brasil, números que podem ser muito
maiores, sobretudo considerando o trabalho infantil doméstico, cuja exploração oculta
não tem ainda uma metodologia adequada para aferição.
Nesse cenário, onde a simples positivação se mostra insuficiente, o presente
trabalho propõe a reflexão de a ineficácia das normas em relação ao trabalho infantil
doméstico decorre da invisibilidade desse tipo de exploração, para, ao final, defender que
as práticas artísticas podem ser um meio de proporcionar visibilidade e consequentemente
maior efetividade aos direitos e garantias existentes.

2. OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO BRASIL

No Brasil, a situação da criança e do adolescente foi regulada por dois principais


sistemas jurídicos antes da implantação da atual doutrina da proteção integral: a Doutrina
Penal do Menor e a Doutrina da Situação Irregular.
No período anterior ao ano de 1830, não havia do Direito brasileiro qualquer
menção específica à criança ou ao adolescente (ALBERTON, 2005). O advento do
primeiro código criminal do Brasil alterou essa situação e instaurou a Doutrina Penal do
Menor através da Teoria da Ação com Discernimento. O texto tratava aqueles com idade
inferior a 21 anos como “menores”, e tinha por objetivo a responsabilização destes em
caso de ato criminoso, ainda que fossem incapazes para o exercício de múltiplas ações.
Mantendo a Doutrina Penal do Menor e a Teoria da Ação com Discernimento, o
Código Penal de 1890 inovou ao dispor que os menores de nove anos não poderiam ser
responsabilizados criminalmente. Do mesmo modo, não teriam responsabilidade aqueles
com idade entre nove e quatorze anos, desde que exercitassem prática criminosa sem
discernimento. Havendo discernimento, porém, estes últimos seriam recolhidos em
instituição disciplinar, não podendo ultrapassar a idade de dezessete anos no
estabelecimento (PEREIRA, 2008).
A primeira constituição republicana do Brasil, datada de 1891, não se preocupou
com proteção de nenhuma natureza à criança e ao adolescente, omitindo-se em relação a
essa parcela da população.
Enquanto foi adotada a teoria da Doutrina Penal do Menor, a legislação que
mencionava a criança e o adolescente tinha caráter exclusivamente penal, evidenciando
o desinteresse na salvaguarda de direitos infantojuvenis.
A Lei Federal 6.697/79 (2º Código de menores do Brasil) extinguiu a Doutrina
Penal do Menor, e introduziu a Doutrina da Situação Irregular, de caráter assistencialista,
voltada para:

[...] os casos de abandono, a prática de infração penal, o desvio de conduta, a


falta de assistência ou representação legal, enfim, a lei de menores era
instrumento de controle social da criança e do adolescente, vítimas das
omissões da família, da sociedade e do estado em seus direitos básicos
(PEREIRA, 2008).

Esse sistema firmava-se na ideia de uma sociedade regular, na qual há um


parâmetro de conduta, o qual, quando não observado, por abandono, violência, infração
ou qualquer outro motivo, traduzia situação irregular (KAMINSKI, 2002), na qual os
“menores” passavam a ser objeto da norma.
A Doutrina da Situação Irregular tem como características principais:
1. As crianças e os adolescentes são considerados “incapazes”, objetos de
proteção, da tutela do Estado e não sujeitos de direitos; 2. Estabelece-se uma
nítida distinção ente crianças e os adolescentes das classes ricas e os que se
encontram em situação considerada “irregular”, “em perigo moral ou
material”; 3. Aparece a ideia de proteção da lei aos menores, vistos como
“incapazes”, sendo que no mais das vezes esta proteção viola direitos; 4. O
menor é considerado incapaz, por isso sua opinião é irrelevante; 5. O juiz de
menores deve ocupar-se não só das questões jurisdicionais, mas também de
questões relacionadas à falta de políticas públicas. Há uma centralização do
atendimento; 6. Não se distinguem entre infratores e pessoas necessitadas de
proteção, surgindo a categoria de “menor abandonado e delinquente juvenil. 7.
As crianças e os adolescentes são privados de sua liberdade no sistema da
FEBEM, por tempo indeterminado, sem nenhuma garantia processual
(SARAIVA, 2003).
Não havia, portanto, reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos
de direito.
A Doutrina da Situação Irregular só foi substituída com a entrada em vigor da
Constituição Federal de 1988, que adota a Doutrina da Proteção Integral, fruto do
progresso nos debates acerca dos Direitos Humanos e de documentos internacionais como
a Declaração de Genebra, em 1924, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em
1948, e a Declaração dos Direitos da Criança, em 1959 (LIBERATI, 2006), que
despertaram sobre a vulnerabilidade da criança e do adolescente.
Pela Doutrina da Proteção Integral, busca-se a proteção da criança e do
adolescente, que passam a ser reconhecidos como sujeitos de direitos, e contam com tutela
jurídica. Ademais, criança e adolescente são identificados como pessoas em
desenvolvimento, que, por essa razão, gozam do princípio da prioridade absoluta, que se
encontra expresso no texto constitucional em seu artigo 227.
A Proteção Integral deve ser compreendida:

[...] como o conjunto de direitos que são próprios apenas aos cidadãos
imaturos; estes direitos, diferentemente daqueles fundamentais reconhecidos
a todos os cidadãos, concretizam-se em pretensões nem tanto em relação a
um comportamento negativo (abster-se da violação daqueles direitos) quanto
a um comportamento positivo por parte da autoridade pública e dos outros
cidadãos, de regra adultos encarregados de assegurar esta proteção especial.
Por força da proteção integral, crianças e adolescentes têm o direito de que os
adultos façam coisas em favor deles (CURY, 2005).

A Magna Carta deixou ainda o subjetivismo pelo garantismo (SARAIVA, 2006),


ao suprimir o vocábulo “menor”, dotado de carga discriminatória, e empregar os termos
“criança” e “adolescente”, assim aplicáveis à infância e à adolescência de forma
universal, o que não ocorria nos sistemas anteriores.
Foram definidos, pela primeira vez na legislação brasileira, os direitos
infantojuvenis, sua proteção e o consequente dever da família, da sociedade e do Estado
de retomar o exercício do direito em caso de lesão ou ameaça.
Fixadas as normas constitucionais, cujas garantias constituíram a base do Direito
da Criança e do Adolescente, emergiu no Brasil a necessidade de uma norma específica
para efetivar os direitos previstos na Constituição, pois

Apesar de toda a inovação no que tange à assistência, proteção, atendimento e


defesa dos direitos da criança e do adolescente, constantes na Constituição
Federal, estes não poderiam se efetivar se não regulamentados em lei ordinária.
Se assim não fosse, a Constituição nada mais seria do que uma bela, mas
ineficaz carta de intenções (VERONESE, 2008).

Nessa conjuntura, entrou em vigor a Lei nº 8.069 (Estatuto da Criança e do


Adolescente), corroborando a Doutrina da Proteção Integral, sob a égide dos princípios
da proteção integral, do melhor interesse e da prioridade absoluta, para abranger todas as
crianças e adolescentes, independentemente da situação em que se encontram.
O Estatuto da Criança e do Adolescente regulamenta de forma específica os
deveres da família, sociedade e Estado em relação ao desenvolvimento das crianças e
adolescentes, e estabelece uma política de atendimento à infância e juventude norteada
pelos princípios da descentralização político-administrativa e da participação da
sociedade civil.
A distinção entre os conceitos criança e adolescente também está disposta no
Estatuto em seu artigo 2º, que utiliza o critério objetivo da idade, restando definido que
criança é a pessoa com até 12 anos, e adolescente é aquele com idade entre 12 e 18 anos
(BRASIL, 1990). Essa diferenciação visa:
Dar tratamento especial às pessoas em fase peculiar de desenvolvimento, em
razão da maior ou menor maturidade, a exemplo das medidas sócioeducativas,
atribuídas apenas a maiores de 12 anos na prática do ato infracional, enquanto
aos menores desta idade se aplicam as medidas específicas de proteção
(PEREIRA, 2008).

A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente formam


o microssistema de proteção dos direitos infantojuvenis, no qual se observa a existência
de três vertentes: o dever de instauração de políticas públicas dirigidas à infância e
juventude de forma universal; o rol de medidas protetivas para aqueles que estejam em
risco pessoal ou social; e a estipulação de medidas socioeducativas para adolescentes que
praticarem ato infracional.

3. PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO DA CRIANÇA E DO


ADOLESCENTE

Para a competente compreensão do Direito da Criança e do Adolescente no Brasil,


é necessário verificar seus fundamentos jurídicos, situados na Convenção Internacional
sobre os Direitos da Criança, na Constituição da República Federativa do Brasil e no
Estatuto da Criança e do Adolescente e, ainda, examinar seus princípios, uma vez que:
Os princípios, no marco de um sistema jurídico baseado no reconhecimento de
direitos, pode-se dizer que são direitos que permitem exercer outros direitos e
resolver conflitos entre direitos igualmente reconhecidos. Entendendo deste
modo a ideia de ‘princípios’, a teoria supõe que eles se impõem às autoridades,
isto é, são obrigatórios especialmente para as autoridades públicas e vão
dirigidos precisamente para (ou contra) eles (BRUÑOL, 2001

2.3.1 Princípio da proteção integral

O princípio da proteção integral é fundamental em sede de Direitos da Criança e


do adolescente, e está expresso de forma inequívoca no artigo 1º da Lei 8.069/90. Por
proteção integral, compreende-se que criança e adolescente são sujeitos de plenos direitos
inerentes à pessoa humana, e, ainda, que merecem tutela especial e global (LAMENZA,
2011) pela condição de desenvolvimento e, consequentemente, de vulnerabilidade, em
que se encontram.
O princípio exprime que a reinvindicação desses direitos não está condicionada a
qualquer situação específica, do contrário, é universal, sendo suscetível a qualquer criança
ou adolescente. E ainda, que a proteção dos direitos infantojuvenis, em sua totalidade,
abrangendo-se a integridade física, mental e psicossocial, é dever da família, da sociedade
e do Estado (BRASIL, 1988) de forma descentralizada e prioritária.
Da proteção integral decorrem outros dois princípios essenciais que alicerçam os
direitos da criança e do adolescente: o princípio do melhor interesse e o princípio da
prioridade absoluta.

2.3.2 Princípio do melhor interesse

O princípio do melhor interesse, embora não encontre previsão legal expressa na


Constituição Federal ou no Estatuto da Criança e do Adolescente, é intrínseco à doutrina
da proteção integral, recepcionada por eles (FACHIN, 2008).
O melhor interesse preza pela prevalência dos direitos infantojuvenis em relação
a interesses de outros, tendo o escopo de concretizar as garantias constitucionais e
estatutárias da criança e do adolescente, funcionando como um verdadeiro critério
hermenêutico (BARBOZA, 2000).
No plano prático, o princípio do melhor interesse tem norteado questões
envolvendo crianças e adolescentes como mecanismo processual para solucionar
divergências, no sentido de que havendo desacordo envolvendo qualquer direito relativo
à criança ou adolescente, o interesse destes, apurado pelo magistrado no caso concreto,
prevalecerá (CHAVES, 2009).
Ante a complexidade e diversidade de casos envolvendo interesses infantojuvenis,
é primordial compreender que o princípio do melhor interesse não tem um padrão de
aplicabilidade, mas sim que“(...)este critério só adquire eficácia quando referido ao
interesse de cada criança, pois há tantos interesses da criança como crianças”
(SOTTOMAYOR, 2013).
Nesse contexto, o emprego do princípio na praxe é medida essencial para a
concretização dos valores e direitos fundamentais da criança e do adolescente positivados
pelo legislador.
2.3.3 Princípio da prioridade absoluta

O princípio da prioridade absoluta confere efetividade à proteção integral. Ele foi


inserido na legislação brasileira pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, e
instrumentalizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que em seu artigo 4º
preconiza que:

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber


proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento
nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e
na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de
recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à
juventude (BRASIL, 1990).

Morfologicamente, o termo “prioridade”, significa “1 Anterioridade. 2


Preferência conferida a alguém, relativamente ao tempo de realização do seu direito, com
preterição do de outros.” (FERREIRA, 2014) E o vocábulo “absoluta” constitui “1 O que
existe independente. 2 Que não é relativo. 3 Independente, único. 4 Que não tem peias
nem restrições. 5 Que é único ou forma sozinho um elemento” (FERREIRA, 2014).
O uso associado dessas palavras só aparece na Constituição Federal no artigo
2273, que trata dos direitos da criança e do adolescente, indicando que estes têm
prioridade sobre quaisquer outros, inclusive sobre os que também gozam de preferência,
a exemplo dos direitos dos idosos.
Embora o ordenamento jurídico tenha sofrido ao longo do tempo alterações
substanciais, sendo atualmente o Estatuto da Criança e do Adolescente considerado
avançado em termos de proteção à criança e ao adolescente, as práticas sociais não

3
PRIORIDADE ABSOLUTA. Prioridade Absoluta, direitos das crianças em primeiro lugar. Disponível
em: http://v1.prioridadeabsoluta.org.br/prioridade-absoluta-direitos-das-criancas/. Acesso em: 23/12/2014.
acompanharam essa evolução, havendo ainda negligência, abusividade e ameaça à
direitos tutelados.

4. O TRABALHO INFANTIL

Trabalho infantil é aquele exercido por pessoas abaixo da idade mínima legal
permitida.No Brasil, a Constituição Federal em seu artigo 7º, inciso XXXIII e a Lei
8.069/90, em seu artigo 60, proíbemexpressamente o trabalho noturno, perigoso ou
insalubre a menores de dezoito anos e qualquer trabalho a menores de dezesseis anos,
salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.
No mesmo sentido, a CLT dedica todo o Capítulo IV do Título III à Proteção do
trabalho infantil, dispondo sobre diversos itens relacionados à proteção do trabalho
infantil: a idade mínima, descanso, intervalos e duração da jornada de trabalho, proibição
do trabalho perigoso, insalubre, penoso, noturno ou trabalhos realizados em locais
prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em
horários e locais que não permitam a frequência à escola.
O país ratifica, ainda, através do Decreto nº 4.134/2002, a Convenção 138 e a
Recomendação 146 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Idade Mínima
de Admissão ao Emprego e foi o primeiro a elaborar, através do Decreto nº 6.481/2008,
a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), que inclui, entre outros, o
trabalho infantil doméstico.

A vedação do trabalho infantil se justifica na medida em que

O trabalho diminui o tempo disponível da criança para seu lazer, sua vida em
família e educação; diminui, também, a oportunidade de estabelecer relações
de convivência com seus pares e outras pessoas da comunidade em geral. Além
disso, os menores experimentam um papel conflitante na família, no local de
trabalho e na comunidade, pois, como trabalhadores, são forçados a agir como
adultos, no entanto, não podem escapar de sua natural condição infantil. Esses
fatores são fonte de estresse emocional que afetam o desenvolvimento mental
e físico em um estágio crítico da vida. Crianças e adolescentes vivem um
processo dinâmico e complexo de diferenciação e maturação. Precisam de
tempo, espaço e condições favoráveis para realizar sua transição nas várias
etapas em direção à vida adulta. Essas transformações os tornam mais
vulneráveis às situações de risco do ambiente de trabalho e, portanto, mais
susceptíveis a adquirir doenças ocupacionais (MARTINS, 2013).

Essa proibição ao trabalho infantil deriva do dever de proteger crianças e


adolescentes e de lhes garantir todos os direitos fundamentais, observando suas condições
peculiares de pessoas em desenvolvimento, e se funda nos princípios da proteção integral,
do melhor interesse e da prioridade absoluta.
A exploração de trabalho de crianças e adolescentes, portanto, consiste não
somente em ilegalidade, mas em grave violação aos direitos fundamentais.
No tocante à fiscalização, a Instrução Normativa (IN) 102/2013 da Secretaria de
Inspeção do Trabalho (SIT), que dispõe sobre a fiscalização do trabalho infantil e a
proteção ao adolescente trabalhador, atribui a todos os Auditores Fiscais do Trabalho -
AFT, as atividades de fiscalização voltadas aos temas do combate ao trabalho infantil e
proteção ao adolescente trabalhador e estipula que das ações fiscais empreendidas pelas
Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego - SRTE, devem ter prioridade
absoluta para atendimento aquelas relacionadas ao trabalho infantil e proteção ao
adolescente trabalhador.
Apesar da vasta e específica proibição legislativa e ética pelo Estado e da
prioridade absoluta nos procedimentos de fiscalização, a edição de 2015 da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) constatou que cerca de 2,6 milhões de crianças e adolescentes entre 5
e 17 anos estão sendo submetidos à exploração da mão-de-obra (FUNDAÇÃO ABRINQ,
2016) no Brasil, números que podem ser muito maiores, sobretudo considerando o
trabalho infantil doméstico, cuja exploração oculta não tem ainda uma metodologia
adequada para aferição.
A positivação e a possibilidade de fiscalização, portanto, se mostram insuficientes
para a erradicação do trabalho infantil, sobretudo o doméstico, sendo necessário
intensificar os esforços de conscientização sobre o tema, pois a invisibilidade e a falta de
reconhecimento da exploração do trabalho infantil impedem o seu enfrentamento.

5. A VISIBILIDADE: UM CONCEITO SOCIAL

Os conceitos de visão e visualidade não são opostos nem idênticos. A visão


corresponde basicamente à dimensão psicofísica do olhar, enquanto visualidade se refere
essencialmente à percepção social.

Embora visão sugira a percepção visual como operação física, e visualidade a


mesma percepção como fato social, as duas não se opõem como a natureza se
opõe à cultura: a visão é também social e histórica, e a visualidade envolve
corpo e psique. Todavia, não são idênticas: aqui, a diferença entre os termos
assinala uma diferença no interior do visual - entre os mecanismos da visão e
suas técnicas históricas, entre o dado da visão e suas determinações discursivas
- uma diferença, muitas diferenças, entre de que modo vemos, como somos
capazes, autorizados ou levados a ver, e como vemos esse ver ou o não-visto
dentro dele (FOSTER, 1988).

A visão enquanto fenômeno da óptica fisiolófica e neurológica, não é o objeto da


presente abordagem, conquanto existam autores, a exemplo de Mitchell, que defende que
“a própria noção da visão como atividade cultural necessariamente encerre uma
investigação de suas dimensões não-culturais” (MITCHELL, 2002).
Nos interessa a relação entre experiência visual e variantes culturais, as quais
formam “um sistema de códigos que interpõem um véu ideológico entre nós e o mundo
real” (MITCHELL, 2002).
A visão, como uma aptidão fisiológica, é perfeitamente capaz de detectar o
trabalho infantil.
É a visualidade, enquanto dimensão contextual e cultural do olhar, o foco da
questão da invisibilidade do trabalho infantil. “Trata-se de abandonar a centralidade da
categoria de visão e admitir a especificidade cultural da visualidade para caracterizar
transformações históricas da visualidade e contextualizar a visão” (KNAUSS, 2006).

6. A INVISIBILIDADE DO TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO

A definição de trabalho infantil doméstico não está relacionada apenas aos


afazeres, mas à relação entre a criança ou o adolescente e os habitantes da casa, ao
processo de trabalho e à presença ou não de remuneração pelos serviços, sendo possível
a classificação em três tipos: socialização, ajuda e remunerado (ALBERTO, 2006).
Socialização se refere ao trabalho realizado na casa da própria criança ou
adolescente, com o caráter de participação na vida familiar. Ajuda é considerado o
trabalho realizado na casa de terceiros, onde a criança ou adolescente assume algumas
tarefas para que os adultos façam outras simultaneamente (ALBERTO, 2006). E, por fim,
remunerado é a clara relação entre empregado e empregador, onde a criança ou
adolescente presta serviços mediante onerosidade.
Os trabalhos do tipo socialização e do tipo ajuda muitas vezes não são
considerados trabalho, dada a ausência de onerosidade, o caráter de aprendizagem e de
participação da vida social, de forma que a exploração é invisível. Em relação às meninas
a invisibilidade é ainda mais aguçada, pois é comum que os afazeres domésticos sejam
tratados como obrigação no processo de educação transmitido pelas famílias (LIMA,
2010).
A invisibilidade não decorre, portanto, de características físicas, mas sim da falta
de reconhecimento da exploração de mão de obra infantil no meio doméstico como um
problema social. Consequentemente, a não percepção do trabalho infantil enquanto tal
acaba por dificultar ou tornar ineficazes as ações das políticas públicas (SILVA, 2009).
A falta de reconhecimento corresponde a um desrespeito intitulado privação de
direitos – Entrechtung (HONNETH, 2003). Ocorre que quando se aborda a luta por
reconhecimento, comumente se refere ao reconhecimento legal de uma situação
anteriormente não abordada no ordenamento jurídico. No caso do trabalho infantil,
inclusive o doméstico, como já existe uma ampla proteção normativa, é a falta de
reconhecimento de fato que acarreta uma violação a direitos.
Assim, a promoção da visibilidade social e do reconhecimento do trabalho infantil
doméstico de fato é fundamental para conferir efetividade aos direitos e garantias já
positivados, e não deve se restringir a métodos especializados e monodisciplinares, mas
também buscar meios de produção e conhecimento não textuais, inclusive através da
interação entre Direito e outros saberes.

7. ARTE COMO POSSÍVEL INSTRUMENTO DE VISIBILIDADE DO


TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO

A validade e a vigência no ordenamento jurídico não necessariamente implicam


em eficácia das normas. Em relação ao trabalho infantil doméstico, a proibição legal não
significou a erradicação real devido a uma dificuldade social em identificar a ocorrência
de exploração, que se confunde com ajuda e participação familiar, tornando-se invisível.
A promoção da visibilidade e reconhecimento de fato é, portanto, essencial para
conferir efetividade aos direitos e garantias já positivados. Essa luta por visibilidade não
deve se restringir a métodos jurídicos especializados, fragmentados e monodisciplinares,
mas socorrer também a outros saberes, como a arte, que ao expor dimensões da realidade
que o espectador não havia reparado (ORTIGOSA LOPEZ, 2002), é uma ferramenta
eficaz de acusação contra ideais ou violações a direitos.
As próprias práticas artísticas são formas modelares de ação e distribuição do
comum, uma vez que elas são “ ‘maneiras de fazer’ que intervêm na distribuição geral
das maneiras de fazer e nas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade”
(FRANCIÈRE, 2005).
Essa possibilidade de utilizar a arte como forma de dar visibilidade efetiva à
exploração de mão de obra infantil e a outras violações de direitos vem sendo
recentemente reconhecida. Em 2017, o Programa de Combate ao Trabalho Infantil e
Estímulo à Aprendizagem da Justiça do Trabalho, em parceria com a Comissão de
Documentação do Tribunal Superior do Trabalho promoveu a exposição itinerante "Um
mundo sem trabalho infantil", objetivando alertar sobre as piores formas de trabalho
infantil, nelas inclusas o trabalho doméstico.
Também em 2017, o Ministério Público do Trabalho na Paraíba (MPT-PB)
realizou em João Pessoa a exposição “Trabalho infantil: Se você cala, ele não para”, que
faz uma reflexão sobre a exploração do trabalho infantil, trazendo não somente imagens,
mas utensílios utilizados por crianças e adolescentes no trabalho.
Uma das funções de promover a visibilidade da exploração de trabalho infantil
doméstico é disseminar também a vigilância. Aquilo que é visível é vigiável. Nesse ponto,
não se trata apenas de produzir um olhar vigilante para o outro, mas também voltado para
si, uma vez que a possibilidade de ser visto molda a conduta do sujeito, que passa a vigiar
a si mesmo, para não ser punido (FOUCAULT, 1983).
Não se pretende aqui apontar as práticas artísticas como um meio único de
promoção de visibilidade da exploração do trabalho infantil, mas tão somente elenca-las
como um instrumento possível, capaz de colaborar na construção de uma nova cultura
jurídica, partindo-se da constatação de que os métodos positivistas do Direito não
garantem a eficácia pretendida pelas normas e, portanto, estão obsoletos.

CONCLUSÃO

O trabalho infantil, definido como aquele exercido por pessoas abaixo da idade
mínima legal permitida, gera consequências nocivas aos valores éticos e à sociedade, pois
diminui o tempo disponível da criança para seu adequado desenvolvimento (educação,
família, lazer); provoca o estresse ao gerar uma situação de conflito onde a condição
natural de crianças e adolescentes é ignorada em prol de atitudes adultas; aumenta o risco
de doenças ocupacionais, e prejudica de forma geral a formação crianças e adolescentes.
Há um amplo reconhecimento jurídico da necessidade de proteger crianças e
adolescentes em relação ao trabalho. Ocorre que a vasta e específica proibição legislativa
e ética do trabalho infantil pelo Estado e a priorização absoluta nos procedimentos de
fiscalização não foram suficientes para a erradicação do trabalho infantil, cujas
estatísticas apontam números elevados. A situação é ainda mais grave relação ao trabalho
infantil doméstico, pois a exploração oculta não tem ainda uma metodologia adequada
para aferição.
Esse cenário evidencia que o problema está na falta visibilidade social, ou seja, na
falta de reconhecimento da exploração de mão de obra infantil no meio doméstico como
um problema social e não percepção do trabalho infantil enquanto tal.
É essencial, portanto, como forma de conferir efetividade aos direitos e garantias
já positivados, promover a visibilidade, mão somente através de métodos jurídicos
especializados, fragmentados e monodisciplinares, mas também por meio de outros
saberes, como a arte.

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A ARTE NA REVOLUÇÃO: COMO OS AUTORES
VANGUARDISTAS CONTRIBUÍRAM PARA A REVOLUÇÃO
RUSSA

Bruna Lis Tavares Moura


Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ)
E-mail: brunalis11@hotmail.com

Anna Karla da Silva Brisola


Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ)
E-mail: anna.k.brisola@gmail.com

RESUMO
Este trabalho analisa como autores vanguardistas endossaram a guerra civil russa por
meio das suas obras, que se dirigiam principalmente a classe operária, para captar apoio
para a revolução. Assim sendo, têm por objetivos demonstrar a influência da arte nesse
contexto, bem como apresentar alguns dos estilos da vanguarda. No tocante à vertente
metodológica, usou-se da abordagem qualitativa. No método de abordagem, da forma
sistémica. Já em relação ao procedimento, adotou-se o método tipológico. Conclui que na
Revolução Russa a arte também esteve no cenário e os artistas, especialmente os
construtivistas, a exploraram com o fim de angariar forças para os movimentos
socialistas.

Palavras-chave: Revolução Russa; Vanguarda Russa; Arte.

1 INTRODUÇÃO

A insatisfação com o regime czarista de Nicolau II, a fome que afetava o país, a
concentração de terras nas mãos da burguesia e da Igreja Ortodoxa, bem como a
participação da Rússia na Primeira Guerra Mundial, foram alguns dos motivos
responsáveis pela eclosão da Revolução Russa de 1917. Gerando, portanto, “uma
extraordinária atmosfera de inquietude e renovação nos campos social, político e cultural,
cujos desdobramentos se fizeram sentir durante todo o século XX” (CAVALIERE, 2017,
p. 19).
Contudo, não se tratou apenas de uma insurreição política, mas também artística,
que durou vinte anos, de 1910 a 1930 (MIGUEL, 2006, p. 28). Essa conjuntura de guerra
civil fora “endossada pelos artistas. Imbuídos dos ideais de vanguarda, eles próprios
queriam uma revolução na arte que pudesse transformar a vida” (ANDRADE, 2007, p.1).
Desta forma, a arte começou a anunciar e desenvolve-se conforme os anseios
sociais, passando esse movimento a ser denominado por alguns estudiosos como
vanguarda russa, entretanto, há críticas a respeito dessa nomenclatura.
Marcelo Albuquerque (2017) afirma que “as vanguardas russas têm como
características principais dois pontos: o uso de elementos geométricos puros
(consequentemente a redução dos matizes de cores) e a mentalidade revolucionária”.
Diante desse contexto social e político, se destacaram movimentos vanguardistas
importantes, como o cubo-futurismo, o suprematismo e construtivismo.
O cubo-futurismo traz como característica a preocupação com a realidade e
concretude daquilo que buscavam expressar, seja através da palavra ou de imagens,
rompendo com simbolismos, onde “o que está em pauta é uma orientação estética voltada
para a concreção, o que significa uma referência direta ao objeto, ao invés de alusões
indiretas” (CAVALIERE, 2017, p. 27). Um dos grandes nomes cubofuturistas é o de
Vladimir Maiakóvski, conhecido como o “poeta da Revolução”.
Maiakóvski era apoiador dos bolcheviques e desenvolveu diversos trabalhos no
período da revolução russa. Seja através de propagandas afetas ao movimento
revolucionário, seja através das suas obras, ele denunciava as mazelas sociais e clamava
por liberdade. Em seus poemas, remetia-se a população, para instigá-la à revolução,
movimentando as classes operárias, que viviam a realidade da opressão czarista.
O suprematismo, por sua vez, “representado pelo pintor Kazimir Malevitch, foi
um dos mais importantes movimentos artísticos da história da Rússia e deixou notáveis
contribuições para a arte moderna” (FERRARI; et al, 2013). Sua expressão era de arte
abstrata, sem compromisso com a existência de objetos, havendo uma liberdade na sua
exteriorização, que pode ser vista, por exemplo, no Quadro Vermelho: Realismo
Pictórico de uma Camponesa em Duas Dimensões, que data de 1915, sendo de autoria
malevitchiana.
Figura 1 - Quadro Vermelho: Realismo Pictórico de uma Camponesa em Duas Dimensões

Essa obra dá alusão para um início de uma nova fase, “que rompia com toda a
rigidez das imposições do passado e prenunciava a sua libertação; era a irregularidade da
forma banhada pelo sangue da revolução; revolução na arte e na política que alentavam
aquela população” (GRECO, 2007). Outra pintura famosa deste autor é a Cavalaria
Vermelha, onde o vermelho representa a cor da revolução, associada ao movimento
socialista. Desta maneira, a atuação de Malevitch durante a guerra civil russa foi de
acolhê-la, levando-o consigo todos aqueles que o admiravam.

Figura 2 - Cavalaria Vermelha


Por fim, o movimento construtivista veio para romper com essa abstração absoluta
trazida pelo suprematismo. Artistas como Vladimir Tatllin, Aleksander Mikhailovich,
Lazar Lissitzky, entre outros, buscavam “formas de expressões artísticas que pudessem
transformar a arte estabelecendo um novo paradigma de arte com sensibilidade, crítica e
participação” (SANTOS, 2014, p. 26).
No construtivismo, começou-se a perceber a importância da participação popular.
O cartaz Bata os Brancos com a Cunha Vermelha, de 1919, cujo autor é Lissitzky, foi
uma das primeiras manifestações artísticas com traços construtivistas. De cunho político,
“seu impacto foi tamanho que chamou a atenção do partido comunista para a importância
dos cartazes como ferramentas de comunicação” (SANTOS, 2014, p. 26).

Figura 3 - Bata os Brancos com a Cunha Vermelha

Os ideais construtivistas se aliaram as ideologias revolucionárias e os artistas da


época se colocaram como sujeitos responsáveis por unir a realidade ao plano artístico.
Dessa maneira, utilizavam suas obras como o meio para alcançar todas as camadas
populares, “adicionando imagens/símbolos para captar a atenção da classe
operária/camponesa que não sabia ler e escrever” (SANTOS, 2014, p. 29), pois o objetivo
era ganhar o apoio das massas.
Logo, esse estudo tem por objetivos analisar a influência política e social da arte
na revolução e alguns dos principais artistas causadores desse movimento, bem como
apresentar o suprematismo e o construtivismo, relevantes estilos artísticos da vanguarda.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Para a elaboração desse estudo, utilizou-se como fundamentação teórica artigos
científicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado, que analisaram a influência
histórica das vanguardas no contexto da Revolução Russa, embasando o objetivo
principal deste trabalho, qual seja, demonstrar como o as manifestações vanguardistas
geraram adesão à guerra civil russa.

3 METODOLOGIA

Reconhecendo a importância da arte na revolução russa, o presente trabalho é


desenvolvido com base em uma intensa pesquisa nos movimentos artísticos que se
destacaram durante esse período. Levantando dados e características que marcaram a
época, bem como os autores que mais se sobressaíram. Para isso, fez se empregou no
tocante à natureza da vertente metodológica a abordagem qualitativa. No método de
abordagem, utilizar-se-á da forma sistémica. Por fim, em relação ao procedimento,
adotou-se o método tipológico e histórico.

4 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Este trabalho analisa como autores vanguardistas endossaram a guerra civil russa
por meio das suas obras, que se dirigiam principalmente a classe operária, para captar
apoio para a revolução, o que demonstra a influência da arte nesse contexto. Dessa forma,
foi sendo observado que na Revolução Russa a arte também esteve no cenário e os
artistas, especialmente os construtivistas, a exploraram com o fim de angariar forças para
os movimentos socialistas.

5 CONCLUSÃO

Por conseguinte, percebe-se que ao longo de toda Revolução Russa a arte também
representou esse cenário político e social de mudanças, articulando-se entre si, retratando
a insatisfação social e voltando-se para as classes menos favorecidas, que não tinha acesso
a elas, passando a retratar a suas vidas cotidianas, de opressão e anseios, contribuindo
primordialmente para a instauração e manutenção do movimento socialista.
Desses movimentos artísticos percebe-se que a vanguarda que mais se destacou
com o objetivo de angariar forças para a revolução socialista, foi os construtivistas, pois
se aliaram aos ideais revolucionários e teve ampla participação popular, porque descrevia
a vida cotidiana das camadas menos favorecidas, que antes não tinham acesso à arte.

REFERÊNCIAS

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& Verso. Rio de Janeiro, p. 3 - 3, 20 out. 2007.

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MIGUEL, Jair Diniz. Arte, ensino, utopia e revolução os ateliês artísticos Vkhutemas/
Vkhutein (Rússia/URSS, 1920-1930). 2006. Tese (Doutorado em História) –
Universidade de São Paulo, São Paulo.

SANTOS, Leonardo Schwertner dos. Construtivismo russo: a arte e o design gráfico


dos cartazes soviéticos. 2014. Trabalho de Conclusão de Curso I, na linha de formação
de Design, do Centro Universitário UNIVATES. Lajeado, 2014.
A BENZEÇÃO NO BRASIL COMO LEGADO DAS CURANDEIRAS
ANCESTRAIS EUROPEIAS: APROXIMAÇÕES E
AFASTAMENTOS

Profa. Dra. Yls Rabelo Câmara


UECE/IFCE

RESUMO
O I CNERA congregou estudiosos de diversas áreas do saber como a Antropologia, a
História, as Ciências Sociais, a Filologia e a Psicologia. Nesse sentido, fazendo um liame
entre as áreas do conhecimento supramencionadas e nosso objeto de pesquisa no pós-
doutorado, apresentamos um estudo sobre as rezadeiras brasileiras e suas ancestrais ibéricas,
cujas raízes se mesclam com as das bruxas do Medievo perseguidas pela Inquisição e pela
Caça às Bruxas. Objetivamos mostrar a relação entre nossas rezadeiras e as rezadeiras
ibéricas, cujo ofício ultrapassou os limites do Além-Mar, instalou-se em terras brasileiras e
continuou tanto aqui como lá. Para tanto, ancoramos nossas considerações nesse
levantamento bibliográfico em teóricos basilares para a temática como Hoffmann-
Horochovski (2015), Mainka (2002), Morais (2007), Nogueira (2012), Santos (2007, 2009),
Silva (2009), Stancik (2009), Theotonio (2011) e Zordan (2005), dentre outros. Concluímos
que nossas rezadeiras têm uma longínqua ligação com suas ancestrais ibéricas, que para aqui
rumaram quando ainda éramos uma incipiente colônia portuguesa e que consigo trouxeram
um conhecimento vetusto que remete ao Medievo e às mulheres que proviam a cura naqueles
tempos sombrios.

PALAVRAS-CHAVE: Benzeção, Rezadeiras Brasileiras, Rezadeiras Ibéricas.

1. A MULHER E A SABEDORIA ANCESTRAL DA ARTE DE CURAR

A tradição da busca da cura por meio da intercessão feminina é uma prática que
se perde na noite dos tempos. O ser humano sempre buscou a solução para os seus
problemas físicos, mentais e espirituais a partir da utilização da fitoterapia, das orações e
das práticas ritualísticas de mulheres que detinham e detêm o conhecimento oculto da
manipulação energética. Seguindo o curso natural do tempo, este conhecimento empírico
inerente às mulheres da Antiguidade foi-se aprofundando na Idade Média. De acordo com
Barstow (1991), naquele momento histórico, as chamadas “bruxas” pela Igreja eram as
parteiras e benzedeiras pertencentes a uma sociedade que as necessitava. Considerava-se
natural o fato de se recorrer às conhecedoras dos mistérios fitoterápicos para livrar-se de
problemas físicos, emocionais, mentais e espirituais, como supra citamos; para afugentar
o azar e atrair a prosperidade; para abençoar a semeadura objetivando uma farta colheita,
assim como para revolver a energia nos casos de amor dos consulentes.
Contudo, essas mesmas mulheres tornaram-se uma ameaça social ao formarem
confrarias e colocarem em risco o incipiente saber médico masculino, sexista e patriarcal,
que estava sendo gestado em paralelo com a ascensão do cristianismo, que naquele
momento legitimava-se como a religião oficial do mundo civilizado. Dessa forma, os
saberes pagãos faziam com que a bruxa expressasse, conforme Zordan (2005, p. 339-
340), “o poder das Grandes Deusas, a divinização da Natureza e a terra-corpo como
sagrados”. Acreditava-se que o poder de curar poderia levar também ao de matar. Para
Barstow (1991), esse poder inexplicável e sobrenatural somente poderia haver sido
concedido a tais mulheres pelo próprio Satanás, com quem elas supostamente haveriam
feito um pacto de sangue e/ou copulado anteriormente.
O que não encontrasse eco nos ditames cristãos deveria ser expurgado. Se as
mulheres eram vistas com desconfiança pelo cristianismo, as mulheres fálicas,
inteligentes, carismáticas e resistentes ao discurso hegemônico dessa religião, que
depreciassem a instituição matrimonial focada na monogamia e valorizassem o sexo e o
prazer estéreis, tornaram-se uma ameaça que deveria ser eliminada. Paradiso (2011)
resume que essas mulheres foram, então, declaradas inimigas dotadas de malícia, lascívia
e corrupção, posteriormente perseguidas com o apoio do clero e da nobreza e, finalmente,
emudecidas à custa de sangue. A desculpa encontrada para silenciar-lhes o discurso e a
postura empoderadas foi a de taxá-las de endemoniadas. E calhou bem: a partir de então,
o silêncio passou a ser o destino das mulheres, cabendo o discurso aos homens, que o
construíram com base em um arcabouço autoritário e focado no masculino.
Osório (2004) defende que a típica imagem da bruxa que habita a imaginação do
ocidental comum está intrinsecamente vinculada ao repúdio. Caracterizamos-lhe, o mais
das vezes, como uma mulher velha, feia e pobre; enrugada e com uma grande verruga
pendendo da ponta do nariz aquilino; o cabelo maltratado, longo e grisalho; a voz rouca;
totalmente vestida de negro e curvada sobre seu imenso caldeiro, onde um menino cristão
está sendo cozido a fogo lento para servir de base para o preparo de poções mágicas. Ao
seu redor, além do caldeiro, símbolo ancestral que representa o grande útero da Deusa
Mãe, onde vida e morte estão conectadas pela reencarnação, repousam também outros
objetos igualmente mágicos como a varinha e a vassoura, além da companhia inevitável
de corvos e de gatos pretos. Na maioria dos contos de fadas, cristianizados e
ressignificados pelo filtro moral puritano da Era Vitoriana, as bruxas são as vilãs por
excelência e devem morrer no fim da história para que o bem possa, por fim, triunfar.
Mas, afinal, quem eram/são as bruxas? E por que têm que necessariamente desaparecer
no final da trama para que esse suposto bem possa prevalecer?
À luz de Paradiso (2011) e Zordan (2005), a imagem da bruxa foi sendo construída
a partir de discursos que apresentavam as mulheres metaforicamente como seres
autônomos e sexualmente emancipados, em oposição direta ao sistema de controle
patriarcal hegemônico; a personificação da rebeldia, da autossuficiência, dos instintos
mais primitivos e de uma sexualidade selvagem. Em vista dessas características, fez-se
necessário moldá-las ao discurso falocêntrico: emudecê-las e ceifá-las. Ellis (1995)
afirma que essa mudança começou de forma gradual e aparentemente bem-intencionada.
Aos poucos, a medicina tradicional dos antepassados passou a ser considerada bruxaria
pelos que professavam a fé em Cristo, subestimando, sobrepujando e rebatizando antigos
saberes. As pessoas que faziam uso dos vetustos conhecimentos pré-cristãos, como filtros
e poções, passaram a ser implacavelmente perseguidas. Com o cristianismo cada vez mais
preponderante, intolerante e imponente, tornava-se inviável que a mulheres continuassem
a agir como sempre haviam agido; não se aceitava mais que seguissem remediando a vida.
Bastava com gestá-la. As bruxas, antes respeitadas por sua cultura milenar e hereditária,
com a Caça às Bruxas e a Inquisição, passaram a simbolizar a ligação feminina com o
oculto e com o diabólico (BECHTEL, 2001).
A violência misógina legitimada que se produziu contra elas chegou às raias do
delírio e da insanidade por duas marcadas e dolorosas vezes na História: na Inquisição e
na Caça às Bruxas. Determinadas localidades assistiram a um verdadeiro extermínio de
pessoas acusadas de bruxaria (diga-se de passagem, que entre 75% e 90% dos casos,
tratava-se de mulheres). E por que mulheres e não homens? Provavelmente porque as
mulheres sempre estiveram mais próximas das crianças, dos velhos e dos doentes – dos
mais débeis, portanto; sempre trabalharam mais devotadamente na elaboração do
alimento; sempre foram profundas conhecedoras das dores, dos partos, das doenças e da
morte em si e, consequentemente, passaram a ser vistas com maior desconfiança devido
a tal proximidade, como defendem Menon (2008) e Mainka (2002). Casanova e Larumbe
(2005) esclarecem que a grande maioria dessas “malfeitoras” eram habitualmente
diagnosticadas como mentalmente desequilibradas.
A economia foi, segundo Barstow (1991), um dos maiores detonantes das
perseguições. Normalmente, as acusadas ou eram mulheres paupérrimas e que dependiam
de seus vizinhos para sobreviver ou eram abastadas e atraíam a ganância de seus algozes.
Ademais, ainda conforme Barstow (1991, p. 184): “Todas las mujeres solas eran
consideradas especialmente vulnerables al diablo. Las parejas de madre e hija eran muy
sospechosas, y muchas fueron quemadas o colgadas juntas”. Corroborando esta assertiva,
Casanova e Larumbe (2005) explicam que o crescente número de mulheres que viviam
sozinhas naquele momento da História se devia à dissolução de conventos em áreas
protestantes e/ou à viuvez imperante em razão das guerras contínuas. Sozinhas e
vulneráveis, sem a proteção de uma figura masculina, aquelas mulheres desamparadas,
mentalmente afetadas e materialmente pobres ou demasiadamente ricas tornaram-se
presas fáceis para os inquisidores.
Apesar da perseguição empedernida que sofreram, as bruxas, reduzidas em
número, resistiram, ressignificaram sua missão, redimensionaram sua atuação e seguem
entre nós sob a configuração das curandeiras nos mais diversos sítios do planeta,
conforme Stancik (2009). A bruxa não morreu. E por que deveria? Sobre essa
continuidade tratamos a seguir.

2. A Arte da Benzeção e as Benzadeiras: a mulher como agente de cura

Consoante o que expomos acima, contrariando o que comumente fez-se crer, a


bruxa ancestral nunca foi sumariamente erradicada como se pretendia. Ela seguiu
existindo atualizada e camuflada sob outros nomes; no Brasil, foi rebatizada como
curandeira, rezadeira, benzedeira, mezinheira e parteira, segundo Conceição (2008).
Faz-se necessário explicar que o fato de nos referirmos reiteradas vezes a mulheres
aqui não quer dizer, em absoluto, que não existam rezadores, benzedores, mezinheiros,
curandeiros ou parteiros, mas são os homens tão pouco referenciados nesses ofícios, pelo
que concluímos do levantamento bibliográfico que fizemos para trabalhos acadêmicos
anteriores nessa temática, que preferimos restringir o escopo de nossa investigação às
mulheres que se dedicam a curar e proteger outrem através de rituais de benzimento.
Segundo Santos (2016, p. 14), “A benzeção é uma prática popular de cura, que
utiliza uma linguagem específica, tanto oral, quanto gestual, com o objetivo de não apenas
curar, mas também de dar uma explicação sobre o que está acontecendo.”. Destarte, os
consulentes que buscam uma rezadeira o fazem porque a consideram não somente uma
curandeira, mas também uma conselheira. Essas mulheres tocadas pelo dom da sanação
são especialmente respeitadas em suas comunidades porque extrapolam o limite físico e
dialogam com o etéreo. Conforme Morais (2007), dom vem do latim donum, que quer
dizer “oferta feita aos deuses”. Estendendo um pouco mais esse conceito, podemos
afirmar que ele significa a “oferta concedida por Deus a certas criaturas que se tornam
dotadas.”. (MORAIS, 2007, p. 447).
Para Santos (2007) e Araújo (2011), não são as rezadeiras que escolhem seu
caminho: elas são escolhidas por e para ele. Uma vez triadas entre tantas mulheres de seu
meio para a missão que consideram nobre, elas sentem-se na obrigação de retribuir esse
obséquio divino servindo de intercessoras entre a Espiritualidade e quem as buscam.
Normalmente, segundo Santos (2007) e Araújo (2011), o dom pode ser-lhes revelado por
meio de uma visão, de um sonho ou de um acontecimento sobrenatural; pela superação
de um grande obstáculo ou pode ser-lhes transmitido por alguém que já o tenha e
desenvolva, a fim de que seja continuado.
A benzeção cura doenças oriundas do corpo e do espírito, doenças que o saber
biomédico, muitas vezes, não alcança entender nem trata. As mais conhecidas são, a
saber: cobreiro (irritação na pele), dor de cabeça, dor de dente, dor de barriga, peito aberto
ou arca caída (dores na região do tórax), afta, espinhela caída (lumbago), quebranto (mau-
olhado), bicha (lombriga, vermes), arduvento (derrame e paralisias), vento brabo (choque
térmico), machucadura e rendidura (dores musculares e lesão por esforço), coceira,
brotoeja, bronquite, rouquidão, erisipela, ventosidade (gases), torção de braços e pernas
e quebradeira no corpo (SANTOS, 2007; ARAÚJO, 2011).
No ritual de cura praticado por essas mulheres especiais há tanto aproximações
como afastamentos devido ao seu modus operandi individual, não coletivo: “cada
benzedeira possui um rito próprio, uma maneira singular de benzer. [...] Essa
singularidade a torna ainda mais fascinante, uma vez que presenciamos várias maneiras
de se alcançar o mesmo objetivo: a cura através da fé” (NOGUEIRA; VERSONITO;
TRISTÃO, 2012, p. 169). Além disso, elas utilizam-se de uma rica farmacopeia na
fabricação artesanal de unguentos, xaropes, emplastos, garrafadas e banhos de limpeza,
além de outros saberes que as capacitam para práticas divinatórias (SANTOS, 2005).
Aqui fazemos um adendo para lembrarmos que esse conhecimento farmacopeico remete
ao saber fitoterápico das mulheres acusadas de bruxaria por detê-lo, no Medievo, e assim
diferenciarem-se dos homens, especialmente dos homens que exerciam a medicina:

A acusação contra as feiticeiras de fabricarem unguentos mágicos e maléficos


refere-se ao conhecimento que as mulheres tinham das ervas e de suas
propriedades, um conhecimento frequentemente invejado transmitido de mãe
para filha: as “funções” das mulheres, confinadas em casa, a tudo o que
concernia à educação das crianças e ao mercado, as obrigava a conhecer
remédios e poções. A perseguição da feiticeira revela igualmente o
ressentimento da medicina erudita e masculina em rivalidade contra a medicina
popular e feminina. (FURGONI, 1991, p. 403).

Além do ritual de reza, acompanhada de gestos feitos no corpo do paciente com


um galho viçoso de pinhão, guiné ou alecrim, por exemplo, a benzedeira unge-o de forma
repetitiva e reiterando palavras memorizadas, mas não por isso seguindo um padrão único
(THEOTONIO, 2011), ditas na efervescência do momento. A palavra é o meio utilizado
para que a cura atinja o consulente. A atenção volta-se para o que é dito – as jaculatórias
e os ensalmos. A confiança da benzedeira em sua reza e a confiança nela depositada pelos
que a buscam são fundamentais para que a magia funcione como se espera. Segundo
Cunha (2012, p. 1): “Por meio da palavra ou por meio da memória destas guardiãs, esses
saberes foram adquiridos, transmitidos e reconstruídos.”. Normalmente, no início das
benzeduras, para abrir o ritual, é comum utilizar-se de rezas estipuladas pela liturgia
católica como o Credo, o Pai Nosso e a Ave Maria, depois que os presentes se persignam.
Mas, a depender da benzedeira, na oração podem entrar também santos, orixás, caboclos
e/ou índios. Ou todos juntos. Para cada tipo de demanda dos consulentes existe um tipo
de reza distinto, conforme Theotonio (2011).
Além dos males que já elencamos, os consulentes procuram essas mulheres com
o intuito de resolverem também seus problemas nos campos afetivo e profissional; para
recuperarem e/ou preservarem a potência sexual, para selarem uma decisão importante e
que afetará suas vidas; para encontrarem pessoas e objetos perdidos, além de bens
roubados; para pedirem uma boa colheita; para que as parturientes tenham um bom parto;
para se livrarem de um encosto, resolverem conflitos familiares e combaterem vícios
(SANTOS, 2005; THEOTONIO, 2011). Muitas das orações por elas proferidas aludem a
elementos da natureza, como a água, que

[...] está diretamente relacionada com a cura da “dor de barriga”. A “água fria”
poderia ser de um rio cuja “correntia” levaria a dor que estaria fazendo sofrer
aquela pessoa. Em outras palavras, da mesma forma que o curso de água do rio
se processa, também a “dor de barriga” a água levaria. O simbolismo da água
poderia se fazer presente em rios, fontes, lagoas, principalmente na água do
mar. Muitas rezadeiras, ao benzer as pessoas de “arduvento”, de “mau-
olhado”, “erisipela” dentre outros males e após pronunciarem as palavras
sagradas, concluem o ritual pedindo ao “todo poderoso” que jogue o mal que
o doente “estava sentindo nas águas do mar sagrado.”. Com esse tipo de
procedimento delega-se ao mar que leve definitivamente o mal, a doença, o
azar, a inveja, o olho gordo, “vento bravo”, dentre outros males para nunca
mais retornar ao corpo ou ao espírito da pessoa. Aliás, para muitos curandeiros
não importa se a água é do mar ou de um rio. Para eles, tais lugares, além de
serem misteriosos, são sagrados. São nas águas que alguns rituais religiosos ou
curativos eram praticados. Batizados (iniciação), lavagem de correntes
(contas), limpeza de corpo poderiam ser efetuados nas águas. (SANTOS, 2005,
p. 188).

Para que entendamos o valor dessas mulheres em nosso meio, o que significaram
e significam para a saúde pública no pretérito e no presente, faz-se necessário
retrocedermos um pouco no tempo e explanarmos sobre suas origens, atreladas às suas
antecessoras portuguesas e galegas, cujo legado segue sendo fomentado por atuais
rezadeiras tanto na Península Ibérica quanto no Brasil.
A seguir, apresentamos um panorama da benzeção no Norte de Portugal e na
Galiza e sua chegada ao nosso país por meio dos colonizadores e imigrantes.

3. BENZEDEIRAS: dos resquícios de nossa colonização pelos ibéricos ao sincretismo


religioso no Brasil

No Norte de Portugal, onde repousam algumas de nossas mais genuínas raízes


culturais (tendo por base que estivemos na condição de colonos desse país por mais de
trezentos anos), mais especificamente na região de Trás-os-Montes, crê-se que uma
pessoa pode herdar o dom de cura de maneiras peculiares, como defende Morais (2007):
a) Se quando no ventre materno o bebê chora ou emite sons e a mãe se cala sobre isso,
esse bebê nascerá com os dons da cura e da vidência;
b) Se uma mulher com o dom parir sete filhas, sua filha mais jovem também o terá;
c) Se uma mulher parir gêmeos, estará propensa a recebê-lo e desenvolvê-lo.
Segundo esse estudioso, “O dom natural, com poder, precisamente por acontecer
à nascença, favorece às criaturas de aptidões especiais que, quando necessário, agem
sobre outrem sob o olhar do poder divino –este é de longe o dom mais raro e exclusivo
das mulheres.”. (MORAIS, 2007, p. 485). Por essa citação fica patente que o dom da cura
é uma prerrogativa do elemento feminino, segundo esse e outros teóricos como Paradiso
(2011), Stancik (2009) e Zordan (2005).
Era comum que as antigas rezadeiras portuguesas, também chamadas de santeiras
e saludadoras utilizassem, além das mãos, a saliva para curar. Por essa característica eram
conhecidas como cuspideiras. Para garantirem a pureza de seu dom, a saliva que
aplicavam nos consulentes era a primeira do dia, com a rezadeira em jejum desde o dia
anterior. Morais (2007) afirma também que essas mulheres preparavam defumações (que
auxiliavam nas sessões de exorcismos) e vomitórios em forma de garrafadas (para
desfazer, por meio de vômito, o feitiço feito por mulheres para atraírem os homens de
outras, presos por aquelas com feitiços em forma de beberagens onde um dos ingredientes
era sempre gotas de suor ou de sangue menstrual da mulher que queria esse homem alheio
e para quem fazia o feitiço).
Na Galiza, sita justamente em cima de Portugal e que no passado a ele esteve
unida territorialmente, comungando a mesma língua até o século XIII, o galaico-
português, as rezadeiras são relacionadas às meigas - bruxas benéficas e protetoras
pertencentes ao folclore galego. A Galiza distingue-se de outras regiões peninsulares
ibéricas porque, segundo Nogueira (1992), ali se processaram e condenaram poucas
bruxas. Contudo, legaram-se ao inconsciente coletivo galego inúmeras lendas e
superstições envolvendo essas mulheres:

As bruxas são as «sábias», ou «lumias» (lâmias?) ou mais frequentemente


«meigas» —um possível cruzamento etimológico entre mágica e medicina. Há
que se levar em conta, também uma extraordinária diferença existente na
Galícia, entre o litoral e o interior, onde predominavam (e predominam
superstições muito mais antigas, frente a uma racionalização de crenças no
litoral permanentemente em contato com o exterior (em particular com a
França). Dentro do país galego encontram-se, até os nossos dias, figuras que
nos remetem a Ovídio e a Apuleyo: as já mencionadas sábias, que podem
aparecer como «mencineiras» —a sua designação enquanto curandeira— ou
«vedoira», cujo nome traz implícito a capacidade de visualizar o futuro; ou
então em seu caráter mais maligno, as «xuxonas» uma chupadora de sangue,
ou das vísceras de uma pessoa. «Estria» asturiana ou «lúmia» galega, a
primeira menção de que temos notícia desta atividade na Galícia, é um
processo datado de 1602, onde Constanza do Pazo foi denunciada por três
mulheres que diziam que era «bruja», «hechicera», e que «chupaba los niños».
Neste último caso nos encontramos em presença de «lâmias», ou seja, os
demónios femininos de mitologia grecoromana, que sedentas de sangue,
atacavam os seres humanos, em especial as crianças, e às quais eram atribuídos
todos os males sucedidos às mesmas. Personagem sobrevivente de crenças
mais remotas e adaptado às cores locais —as «lumias». (NOGUEIRA, 1992,
p. 18-19).

Apesar dessas especificações, infelizmente, informações mais apuradas sobre


elas não chegaram até nós:

Non temos noticias de nomes de mulleres coñecedoras das herbas as súas


propiedades, e da súa aplicación nas enfermidades, pero é ben seguro que as
houboxa que moitas delas transmitiron o seu saber a súas descendentes e
moitas delas hoxe seguen exercendo esta medicina popular. A dificultade da
Muller para acceder a estudos tal como xa mencionabamos anteriormente e as
persecucións que sufriron as curandeiras por parte da Inquisición e
probablemente unha das causas de que non se atopen escritos que se refiran a
elas3. (FERNÁNDEZ-GARCÍA, 2015, p. 102).
Não temos notícias de nomes de mulheres conhecedoras das propriedades das
ervas e de sua aplicação em doenças, mas é certo que existiram, uma vez que muitas delas
transmitiram seu saber a suas descendentes e muitas delas hoje seguem exercendo essa
medicina popular. A dificuldade da mulher para ter acesso a estudos, tal como já
mencionamos anteriormente, e as perseguições que as curandeiras sofreram pela
Inquisição são, provavelmente, umas das causas pelas quais não se encontrem escritos
que se refiram a elas (Tradução nossa do galego para o português).
Entre lâmias, lumias, meigas e bruxas situamos a benzedeira galega, referência
inconteste do poder feminino de cura na Galiza de ontem e de hoje, de onde emigraram
muitos espanhóis famintos e tocados pela lazeira, esperançosos de encontrar na América
do Sul, especialmente na Argentina e no Brasil, melhores condições de vida. Antes deles,
portugueses, holandeses e franceses aqui já haviam desembarcado na época da colônia,
estabelecendo-se ou retirando-se depois de algum tempo de resistência.
Remontando, então, ao Brasil colonial, aparte dos físicos (médicos diplomados)
que emigraram para cá na condição de degredados, muitas vezes, e dos pajés autóctones,
haviam aqui agentes populares de cura, também emigrados da Península Ibérica:
curandeiros, parteiras, sangradores, dentistas e barbeiros – cujas práticas sobreviveram
durante o período monárquico e adentraram o período republicano (STANCIK, 2009).
Reiteramos que naquele momento, Medicina, religião e magia estavam amalgamadas,
tanto na medicina erudita quanto nos sistemas populares de cura, na metrópole ou nas
colônias portuguesas (RIBEIRO, 2015).
As doenças tropicais, desconhecidas pelo europeu colonizador, representaram um
sólido problema quando a colônia foi oficialmente estabelecida. Em uma época de muitos
homens e poucas mulheres, adoecer e/ou parir na Terra Brasilis supunha a morte ou
quase. Para além disso, somado ao fato de haver poucos físicos para atender à demanda
de bandeirantes, evangelizadores e degredados, havia o pudor feminino, que impedia que
os profissionais da saúde exercessem seu labor com as mulheres, tal como o faziam com
os homens. Para atendê-las haviam as parteiras e as rezadeiras, muitas delas vindas nas
caravelas portuguesas na condição de expatriadas, como afirmam Stancik (2009) e Silva
(2009).
Aos saberes trazidos pelas antecessoras das atuais rezadeiras galegas e
portuguesas, juntaram-se os saberes de índios autóctones brasileiros e dos escravos
africanos que para aqui foram trazidos de 1530 até final do século XIX. Esses
conhecimentos, mesclados e reconfigurados, foram arduamente perseguidos em distintos
momentos de nossa história.
Adentrando mais no tema e focando no presente, em linhas gerais, as benzedeiras
brasileiras são mulheres que se dedicam ao lar e por isso não são economicamente ativas.
Normalmente prescindem de uma “agenda” e atendem seus consulentes conforme estes
as procuram por demanda espontânea (CONCEIÇÃO, 2008). A varanda, o jardim e o
quintal são os espaços da casa onde costumeiramente realizam seu trabalho, que é também
de onde recolhem as folhas e os ramos das plantas que serão utilizados nas rezas. Quanto
a estes acessórios, Santos (2009) expõe que:

Para compor este ritual de cura, as rezadeiras podem utilizar vários elementos
acessórios, dentre eles: ramos verdes, gestos em cruz feitos com a mão direita,
agulha, linha e pano, além do conjunto de rezas. Estas podem ser executadas
na presença do cliente, ou à distância. Em seu ofício, de amplo
reconhecimento, essas mulheres “rezam” os males de pessoas, animais ou
objetos, bastando apenas que alguém diga os seus nomes e onde moram.
(SANTOS, 2009, p. 12-13).

Segundo Câmara, Sanz-Mingo e Câmara (2016), caracterizam-se por serem


mulheres pobres, enxergadas como sujeitos históricos que não possuem muita cultura
livresca. São necessariamente iniciadas e, na grande maioria dos casos, herdam o poder
de cura e o conhecimento acerca dos mistérios de suas práticas, apesar de que algumas
fogem a essa regra. Para Halbwachs (1990), as rezadeiras são sujeitos que preservam a
memória e a oralidade e que contribuem para com a identidade social que seu coletivo
representa - por essa e outras razões, o registro delas é tão importante para que não
percamos o legado que têm deixado entre nós.
Pelo levantamento bibliográfico que fizemos para trabalhos afins nessa mesma
temática, acreditamos que o porquê da procura por essas mulheres não repousa somente
na carência de médicos em algumas regiões mais pobres de nosso país, onde elas se
encontram em maior número, mas também se deve ao fato de que elas estão mais
próximas de seus consulentes do que os médicos o estão de seus pacientes e porque as
benzedeiras curam as doenças que os médicos não diagnosticam nem curam, como o mau
olhado, a maior queixa do público que as busca (CÂMARA; SANZ-MINGO; CÂMARA,
2016).
Embora haja rituais de cura de origem ameríndia e africana em seu modus
faciendi, o que predomina na benzedura brasileira é o apelo aos santos católicos (ainda
que rebatizados com nomes de entidades outras). Para Burke (2003, p. 5), em seus estudos
acerca do hibridismo cultural, ao nos defrontarmos com o que possivelmente diz respeito
a duas tendências culturais distintas, não devemos entendê-las de forma separada, pois
“não existe uma fronteira cultural nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo contrário, um
continuum cultural.”. Independentemente da religião que pratiquem, cujas influências
estendem à sua práxis, a importância destas mulheres em suas comunidades é inconteste:

[...] ainda que o sistema público de atenção à saúde seja um importante e


permanente aliado na prevenção e cura de enfermidades, a população
brasileira, sobretudo a de camadas de baixa renda, continua fazendo uso de
outras opções terapêuticas, tornando vivo o pluralismo médico no país.
(ANDRADE; CORREIA, 2008, p. 13).

Assim como a pajelança, o cristianismo popular, categoria à qual as rezadeiras


pertencem, foi amplamente perseguido pelos médicos e defensores do saber científico,
principalmente entre o final do século XIX e início do século XX. Na tentativa de evitar
o rótulo de charlatãs, grande parte das benzedeiras se assume como católicas praticantes,
conforme Conceição (2008). Ademais, são unânimes em afirmar que não cobram por suas
rezas e conselhos - também para evitar a desconfiança por parte dos consulentes.
É interessante que ressaltemos que mesmo contando com um sistema de saúde que pode
ir de precário a regular, o paciente que procura o médico tende a não deixar de procurar
as benzedeiras, o que aproxima a terapêutica alopática da magia (THEOTONIO, 2011).
Curiosamente, pessoas que podem pagar um bom plano de saúde ainda se voltam para
essa manifestação da cultura popular e procuram as benzedeiras para proteção e cura de
males de todo tipo (ROSÁRIO et al., 2014). Em resumo: essas práticas não se restringem
somente às classes menos favorecidas de meios econômicos e os consulentes, em sua
maioria, as identificam como naturais:

Não são apenas pessoas “simples”, oriundas da classe popular e que


tradicionalmente tiveram pouco acesso à educação formal e ao saber médico.
Pessoas instruídas, que se consultam frequentemente com médicos e que
possuem uma situação financeira mais confortável também o fazem; é o caso
de políticos, professores, profissionais da saúde, entre outras. Pessoas que
acreditam nas benzedeiras, no poder das rezas, na eficácia das ervas... Pessoas
que buscam a medicina popular como alternativa ou como uma forma de
complementar o tratamento da medicina tradicional. Afinal, muitas pessoas
vão ao médico e a benzedeira ao mesmo tempo (SANTOS, 2007 apud
HOFFMANN-HOROCHOVSKI, 2015, p. 121).
Esse imbricamento da figura da rezadeira em temas sanitários brasileiros tem
origem nas dificuldades pelas quais passamos com esse aspecto, uma vez que a saúde é
um direito de todos, mas no Brasil, mais em teoria do que na prática.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão, podemos afirmar que as rezadeiras não são um patrimônio


cultural originalmente brasileiro; sua presença entre nós remonta às rezadeiras galegas e
portuguesas que para o Brasil rumaram quando da colonização, que por sua vez tiveram
como ancestrais as bruxas que a Inquisição e a Caça às Bruxas perseguiram.
Ainda em voga na Península Ibérica, tal como em terras brasileiras, as rezadeiras seguem
sendo respeitadas em suas comunidades como mulheres que detêm o poder da cura para
males de ordem física, mental e espiritual; seguem sendo as conselheiras que seus
consulentes necessitam em casos de amor, nos negócios, nas resoluções de desavenças
familiares, laborais e vicinais - não importando quão economicamente favorecidos ou
desfavorecidos esses consulentes possam ser. Dito de outro modo: essas mulheres que
curam atraem uma plêiade de clientes que nelas confiam suas dores e que nelas depositam
sua confiança na resolução de problemas de várias ordens.
Execradas ao longo da História pelo saber médico falocêntrico, sexista, patriarcal
e hegemônico; em evidência ou longe dela em distintos momentos históricos, as
rezadeiras continuam a representar, para a tradição popular, as mulheres que detêm o
poder da cura. Já não são tantas como outrora. Urge que sociólogos, antropólogos,
filólogos e historiadores unamos nossos saberes em prol do registro e do estudo dessas
mulheres e desse fenômeno antes que a memória subestime a oralidade e se perca como
tantas outras manifestações culturais nossas que hoje são apenas mitos.

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A CRIAÇÃO DO MUNDO: O MITO NAS METAMORFOSES DE
OVÍDIO

Priscila Pinto Fabricio Ribeiro (UFPB)


scilapfr_@hotmail.com

Leandro dos Santos Souza (UFPB)


leandro_ufpb@yahoo.com.br

Orientadora: Dr.ª Alcione Lucena de Albertim (UFPB)


lucena25@hotmail.com

RESUMO

O mito cosmogônico retrata as origens do universo. Presente na obra Metamorfoses, de


Ovídio, o autor discorre sobre esse mito nos primeiros versos do Livro I da sua obra.
Neles, o poeta mostra a diferenciação cósmica impulsionada por uma força que jaz por
trás da separação dos elementos e consequente formação das partes que comporão o
mundo, sendo essa força a causa dessa diferenciação e identificada como um deus. Assim,
diante do quadro apresentado, propõe-se, neste trabalho, analisar o mito cosmogônico
presente na obra citada, buscando identificar a força sagrada geradora do cosmos,
apresentada no mito.

Palavras-chave: mito; cosmogonia; Ovídio; sacralidade.

INTRODUÇÃO
A história humana sempre foi e permanece sendo um mundo de pura reflexão
acerca do meio. A necessidade de explicar aquilo que aos olhos e entendimento humano
se torna ininteligível é inerente ao homem e a sua capacidade de criação. Esse desejo tão
arraigado no ser humano gerou a noção de mito.
Segundo alguns estudos científicos a ciência já tem apontado que o homem nasce
com a necessidade de crer em alguém ou em alguma coisa. Isso parece fazer sentido visto
que o homem sempre buscou nomear e crer em tudo o que era incrível ao seu
entendimento. A comunidade científica está tentando ratificar o que a fé e a criatividade
humana, há muito tempo, havia consumado. Os homens observavam as forças da natureza
e sua incrível capacidade de geração e passaram a nomear tais forças como sendo
divindades capazes de realizar maravilhas e de governar entre aqueles. A partir de então
tais figuras sacralizadas passaram a ser estabelecidas entre as sociedades de geração em
geração, cantadas por suas grandes realizações, tanto boas quanto más.
Assim também se deu com os homens mais influentes. Louvados, seus nomes
foram erigidos no decorrer das posteridades, tornando-se bravos heróis, dotados de
poderes provenientes das divindades há muito tempo reverenciadas através de ritos e
cânticos.
Podemos dizer que tais reverências, executadas pelas gerações, tornaram estas
divindades e heróis em mitos, pois o mito nasce da necessidade do homem de explicar
tudo ao seu redor.
Este trabalho tem por objetivo tentar explicar o que é o mito e qual é a sua
influencia dentro das sociedades antigas. Embora a noção de mito seja muito abrangente,
tentaremos pontuá-lo e, mostra-lo através da literatura. Escolhemos a obra de Ovídio, As
Metamorfoses, para explicar o mito da criação do mundo, revelando como o mito é visto
na cultura romana, através do autor, Ovídio.
O mito da criação do mundo sempre foi observado através de várias perspectivas
por diferentes culturas. Tendo em vista isso, para corroborar com o objetivo do nosso
trabalho que é comparar este mito cosmogônico, visto na cultura romana, com as demais
culturas, pontuaremos o mesmo na perspectiva de outras culturas de forma breve e direta.
A análise acerca do mito da criação do mundo na obra de Ovídio, As
Metamorfoses, será feita através do texto original latino e de uma tradução operacional
na língua portuguesa. 4

1. CONTEXTUALIZAÇÃO DA NOÇÃO DE MITO

A noção de mito e o ser humano sempre caminharam lado a lado. Esse, desejoso
de encontrar explicações para o mundo em que vive, passou a nomear e a reverenciar tudo
aquilo que era misterioso à sua compreensão. O Sol e seus raios, a Lua iluminando a
escuridão da noite, as estrelas, as plantas nascendo sem a intervenção do homem, os raios
e seus danos, o fogo, os sentimentos humanos, tudo era fantástico à compreensão humana.
Desta forma, o homem os personificou e os reverenciou, mitificando estas forças maiores,
admiráveis e incontroláveis.

4
A tradução operacional é de nossa inteira responsabilidade.
O estudioso, Junito Brandão, em sua obra, Mitologia grega, Vol. I, conceitua o
mito como sendo “o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante
a intervenção de entes sobrenaturais” (1986, p. 35). Ao analisarmos tal conceituação,
podemos nos certificar de que o mito, nada mais é do que uma narrativa ilógica e
irracional, construída sobre a presença de entes sobrenaturais, com a finalidade de
explicar fatos verídicos, ocorridos nas origens. Essa construção foi gerada através da
criatividade e vivência coletiva, do inconsciente de um povo. Junito Brandão ainda
afirma:
De outro lado, o mito é sempre uma representação coletiva, transmitida
através de várias gerações e que relata uma explicação do mundo. Mito
é, por conseguinte, a parole, a palavra "revelada", o dito. E, desse modo,
se o mito pode se exprimir ao nível da linguagem, "ele é, antes de tudo,
uma palavra que circunscreve e fixa um acontecimento".18 Maurice
Leenhardt precisa ainda mais o conceito: "O mito é sentido e vivido
antes de ser inteligido e formulado. Mito é a palavra, a imagem, o gesto,
que circunscreve o acontecimento no coração do homem, emotivo
como uma criança, antes de fixar-se como narrativa". (BRANDÃO,
1986, P.36)

Todavia, o mito, no decorrer dos milênios, passou a possuir diversas nuances um


pouco diferentes daquela primeira. Podemos citar o mito na visão de Platão, visto como
uma noção moral, o mito Aristotélico que é enxergado apenas como uma percepção
estética, mortificando, assim, aquela primeira noção do mito. Há também o mito histórico
que pontua os feitos de grandes homens e acontecimentos da história humana.

2. O MITO DA CRIAÇÃO DO MUNDO

O início de tudo sempre foi um grande fascínio para o homem. Explicar as origens
é algo inerente à curiosidade humana. O homem passa, então, a memorar e a sacralizar os
primórdios, inserindo-os na sua cultura, celebrando-os em sua religiosidade.
Cada cultura possui sua particularidade, sua visão em relação à origem do mundo.
A partir desta visão mítica, repousada em uma verdade, como já havíamos pontuado
acima, nasce o mito. O mito acerca da origem do mundo denomina-se cosmogônico.

Os mitos cosmogônicos apresentam uma serie de diversidades, mas


suas estruturas são semelhantes, ou seja, são triádicos. Eles partem de
um ponto unitário original, de onde emergem em dois elementos que se
contrapõem, um ativo (masculino) e o outro passivo (feminino). Esta
contraposição de elementos (masculino/feminino– ativo/passivo) se
repete em todos os seres do cosmo, e todos eles tendem a buscar a
unidade perdida. (MARCELO SILVERIO DA CRUZ, Mitos - suas
origens e sua importância para o homem contemporâneo, UFJF).
Como podemos perceber no fragmento acima, segundo Marcelo Silvério da Cruz,
o mito cosmogônico repousa num poder que origina todas as outras forças e, como pontos
de equilíbrio, existem as figuras ativa (masculina) e a passiva (feminina) que, embora
sejam forças distintas, unidas, estabelecem uma harmonia. É nesse equilíbrio de forças
interligadas que tudo se relaciona, criando ordem no mundo. Essa visão é estabelecida
em muitas culturas.
Afim de corroborar com a afirmação acima, podemos pontuar algumas culturas
que estabeleceram, dentro de seu compito religioso, essa mesma estrutura, baseada na
união das forças, ativa e passiva.
Na cultura chinesa, a força originária é denominada, Pan-Kou ou PanGou (o
homem primordial), e, a partir dessa força, surgiram as forças ativa, Yang e a passiva,
Yin. Estas, juntas, deram, segundo a cultura chinesa, origem ao mundo e as características
ativa e passiva dos seres vivos.
Na cultura Mesopotâmica, percebemos uma estrutura parecida com aquela
encontrada na cultura chinesa. Segundo os relatos mesopotâmicos, tudo foi proveniente
das águas primordiais, denominadas, Apson, e, dessa força central, nasceu duas outras
forças distintas, a luz (Marduk) e as trevas (Tiamat). Em um combate ferrenho entre
Marduk e Tiamat este sai vencido e é dividido em dois por Marduk, formando, assim, o
céu e a terra. Foi a partir desse mito que surgiu a cosmogonia, pontuada nas Escrituras
Sagradas Judaico-cristã.
A Bíblia5 relata que o mundo foi criado por Deus no decorrer de seis dias, sendo
o sétimo para o seu descanso. Dentro deste período de criação, ele criou o homem, Adão,
e a mulher, Eva, e os ordenou a crescer e multiplicar sobre a face da terra.
A cultura egípcia possui mais de uma vertente do mito da criação do mundo, mas
o mais difundido diz que a deusa da noite, Nut, quando estava abraçada ao seu marido, o
deus da terra, Geb, seu pai, o deus atmosférico, Shu, (pai de Nut), a ergue, nascendo, a
partir de então, o céu, que prende Geb, formando, assim, a Terra.6
A cultura hindu, por sua vez, possui relatos que se distinguem devido as
diversidade de tradições. Para os Brâmanes tudo se originou das águas primordiais, que
gerou as forças que originaram o mundo, o Ovo Cósmico e Prajápati. Já os Vedas

5Escrituras Sagradas Judaico-cristã.


6 Os dados acerca da cultura egípcia foram extraídos do artigo, Mitos de Criação: modelos
cosmogônicos de diferentes povos e suas semelhanças.
pontuam o homem cósmico, Purusha, como sendo o originador de todas as coisas. Por
fim, a tradição do Upanishads diz que tudo foi originado pela força maior e ativa, Raja,
de onde surgiu a luz, Sattva, e a escuridão, Tamas, dando início ao cosmo.7

2.1. A cosmogonia encontrada na cultura grega


O mito cosmogônico grego foi pontuado na obra Teogonia de Hesiodo. Ela revela
que a criação do mundo se deu a partir de quatro forças denominadas, Caos, Geia, Tártaro
e Eros. Geia, sozinha, gerou Uranos, Montes e Pontos. Da união de Uranos e Geia
nasceram criaturas mitológicas, monstros que personificavam a fúria e a força bruta da
natureza. Ainda desta união surgem os Titãs e, da união de dois deles, Chronos e Reia,
nasceram os deuses mais conhecidos do Panteão Helênico, dos quais, Zeus, é o principal
por ser o rei harmônico e equilibrador do cosmos. Os homens, segundo o mito
cosmogônico grego, foram criados e protegidos pelo Titã Prometeu.
A cultura grega foi de suma importância na construção do cultura romana, a
começar pelo estabelecimento de alguns de seus mitos, essenciais na religiosidade
romana.
No próximo capítulo iremos levantar o mito cosmogônico da cultura romana sob
a visão do poeta Ovídio em sua obra, Metamorfoses. Presenciaremos semelhanças e
distinções entre a religiosidade de ambas as culturas, grega e romana, por meio dos mitos.

3. O MITO DA CRIAÇÃO DO MUNDO POR OVÍDIO

Os mitos romanos se deram, tanto por meio da própria tradição latina, quanto pela
assimilação da cultura romana com as mais diversas culturas dos povos subjugados por
ela no decorrer das conquistas territoriais. Todavia, a cultura grega se estabeleceu de
forma vigorosa na religiosidade do povo romano. Como consequência desse
estabelecimento, podemos ver a presença constante dos deuses romanos, cujas
semelhanças são, inegavelmente, iguais ou parecidas as dos deuses gregos. O mito
cosmogônico, por exemplo, se assemelha muito ao àquele levantado pela cultura grega.

7 Os dados que tratam acerca das culturas chinesa, mesopotâmica e hindu foram extraídos do
artigo, Mitos - suas origens e sua importância para o homem contemporâneo.
O mito passou a ter espaço na literatura romana e o presenciamos, de forma mais
ativa, no período áureo ou clássico de Roma (século I a.C ao início do século I d. C.)
através das literatura e arte.
Neste período de ouro de Roma muitos poetas romanos passaram a revelar os
mitos em seus poemas e, dentre estes poetas destacaremos Ovídio e sua obra,
Metamorfoses (ano 8 d. C.)
As Metamorfoses de Ovídio traz inúmeros mitos e, dentre eles, podemos pontuar
o mito da criação do mundo, questão do nosso trabalho.
Em ambos os mitos cosmogônicos, grego e romano, há a presença de uma força
primordial denominada, Caos, força incomensurável geradora de outras forças que deram
início a tudo e, Ovídio, em sua obra, Metamorfoses, exibe tais acontecimentos.
3.1. Caos: a desordem
No início do Livro I das Metarmorfoses, Ovídio evoca os deuses para que esses
tragam ao seu espírito a realidade obscurecida da origem do mundo.
In nova fert animus mutatas dicere formas
corpora; di, coeptis (nam vos mutastis et illas)
adspirate meis primaque ab origine mundi
ad mea perpetuum deducite tempora carmen! (vs. 1 ao 4).
O espírito (me) leva dizer formas mudadas em novos
corpos.
Deuses, soprai as primeiras coisas para meus planos (se de
fato vós mudastes também aquelas (coisas)) e guiai (vós)
(para mim) o canto perpetuo da origem do mundo para os
meus tempos. (Tradução operacional).
No verso 5, começa a narrativa da cosmogonia. Ovídio pontua que, antes que
existisse qualquer outra forma de vida, havia uma força chamada Caos.
Ante mare et terras et quod tegit omnia caelum 5
unus erat toto naturae vultus in orbe,
quem dixere chaos: rudis indigestaque moles
nec quicquam nisi pondus iners congestaque eodem
non bene iunctarum discordia semina rerum. (vs. 5 ao 9).
Antes do mar, das terras e do céu, que cobre todas as coisas,
o aspecto da natureza era um só em todo o mundo, que
chamavam Caos: massa rude e confusa, nenhuma coisa
(existia) senão o peso inerte e sementes ajuntadas de coisas
não bem unidas pela discórdia. (Tradução operacional)

Esta força denominada Caos é a própria personificação da desordem.


Deformidade, discordância, instabilidade dos elementos. Os astros celestes
personificados pelos deuses, um Titâ (possivelmente Hélio, deus Sol, filho do titã,
Hipérion) e Febe (a Lua, Diana irmã de Febo), a força gravitacional, os limites entre os
mares e as porções de terra, nada existia senão a discordância entre sedimentos inertes.
Forças se opunham a outras forças, oposições dos extremos configuravam o
reinado de Caos.
nullus adhuc mundo praebebat lumina Titan, 10 nec nova crescendo
reparabat cornua Phoebe, nec circumfuso pendebat in aere tellus
ponderibus librata suis, nec bracchia longo
margine terrarum porrexerat Amphitrite; utque erat et tellus illic et
pontus et era, 15 sic erat instabilis tellus, innabilis unda, lucis egens aer;
nulli sua forma manebat, obstabatque aliis aliud, quia corpore in uno
frigida pugnabant calidis, umentia siccis, mollia cum duris, sine
pondere, habentia pondus. (vs. 10 ao 20).
Ainda nenhum Titã extendia luzes pelo mundo, nem Febe, havendo de
ser crescida, reparava os cornos novos, nem a Terra, tendo sido
equilibrada por seus pesos, estava suspensa pelo ar em volta, nem
Anfitrite estendeu os braços pela longa margem das terras. E como ali
havia terra, o alto mar e o ar, assim a terra era instável, o mar inavegável,
o ar desprovido de luz. Sua forma de nada permanecia e uma coisa
impedia outras (coisas) porque, em um só corpo, as (coisas) frias
lutavam com as (coisas) quentes, as (coisas) úmidas com as (coisas)
secas, as (coisas) moles com as (coisas) duras, a gravidade com as
(coisas) existentes sem gravidade. (Tradução operacional).

3.2. O “deus” e a “ melior natura”: a ordem


Logo após a descrição de Caos e todo o vestígio de desequilíbrio cósmico deixado
por ele, Ovídio encabeça a separação dos elementos, o início da ordem cósmica que vai
do verso 21 ao 75. Nesta trajetória podemos presenciar novas forças que têm o objetivo
inicial de direcionar e separar os elementos da natureza, o “deus”, (força masculina),
indenominável, chamado, apenas, de “fabricator mundi” e sua auxiliadora, a “ melior
natura” (a natureza favorável ou a melhor natureza), (a força feminina).
Ambas as forças foram, de acordo com Ovídio, essenciais para a ordenação, o
equilíbrio do cosmos. Elas são as organizadoras de todo o tumulto deixado por Caos,
“diremit hanc litem” (v. 21).
Hanc deus et melior litem natura diremit. Nam caelo terras et terris
abscidit undas et liquidum spisso secrevit ab aere caelum. quae
postquam evolvit caecoque exemit acervo,
dissociata locis concordi pace ligavit: 25 ignea convexi vis et sine
pondere caeli emicuit summaque locum sibi fecit in arce;
proximus est aer illi levitate locoque; densior his tellus elementaque
grandia traxit et pressa est gravitate sua; circumfluus umor 30 ultima
possedit solidumque coercuit orbem. (vs. 21 ao 31).
O deus e a natureza favorável dividiu este litígio. De fato, separou as
terras do céu e (separou) as águas das terras, o céu límpido distinguiu
do ar espesso. Depois que revolveu aquelas (coisas) tirou- (as) do
montão obscuro e ligou as (coisas) separadas do lugar pela paz
concorde. Também a força ígnea e sem peso do céu convexo explodiu
e fez lugar para si nos altos cumes. O ar é próximo daquela em razão da
leveza e do lugar. A terra, mais densa do que estas (coisas), puxou os
elementos grandiosos e foi imprensada por sua (própria) gravidade. O
líquido, espalhado em volta, possuiu as extremidades e conteve a região
sólida. (Tradução operacional).

Todavia, Ovídio, logo após os versos acima, destaca o “deus” ( v. 32), agora
sozinho, trabalhando em favor da ordem cósmica. Esta força se opõe a vontade de Caos.
Denominado, “quisquis fuit ille deorum”, (quem quer que fosse dos deuses) e, como já
mencionado, “ fabricator mundi”, ( criador do mundo), o “deus” tece a criação nos versos
32 ao 75. Aglomera a terra, formando, assim, o globo terrestre. Estendeu os mares,
formou, por meio dos ventos, os rios, os pântanos e todos os olhos d’água. Fez surgir as
montanhas e os vales, florestou a paisagem e dividiu o clima. Nomeou os ventos e lhes
deu liberdade para evolarem sobre a terra sem impedimento. Os astros celestes passaram
a ferver e iluminar a terra e o céu, saindo da escuridão eterna, ocupando, juntamente com
os deuses, as regiões infindas do céu. Os animais obtiveram suas moradas nos mares e na
terra. Tudo floresce e têm suas forças impulsionadas para a vida através deste “frabricator
mundi”.
Podemos presenciar algo bastante relevante quanto à influência de Caos, do
“deus” e da “melior Natura”(esta sendo instrumento facilitador para a ação do “deus”).
Ovídio mostra que a desordem e a inércia que rodeava o reinado de Caos, foi algo que
existiu, contudo, não poderia retornar e isso é pontuado através dos verbos de ação que
se encontram sempre no passado. (praebebat, reparabat, pendebat, porrexerat, erat,
manebat, obstabat, pugnabant – estendia, restabelecia, pendurava, estendia, era,
permanecia, incomodava, lutavam). Já, quando a ordem passa a ser estabelecida pelo
“deus”, com ajuda da “ melior natura”, Ovídio levanta ações no perfectum (ações
acabadas), revelando ao leitor e estudioso da obra que a ordem veio e se estabeleceu,
reinante, sem a possibilidade de um retorno à desordem. O “deus” cria e tudo o que fora
criado por ele é eterno e perfeito. Os verbos de ação tanto do “deus” quanto do movimento
dos elementos criados por ele, com ajuda da “melior natura” são: diremit, absidit, secrevit,
evoluit, exemit, ligavit, emicuit, fecit, traxit, possedit, coercuit, fuit, secuit, coegit,
glomerauit, iussit, addidit, cinxit, distinxit, locauit, dedit, permisit, recessit, invasit
imposuit, dissaepserat, coeperunt, cesserunt, cepit. (dividiu, separou, distinguiu,
desdobrou, tirou, ligou, explodiu, fez, puxou, ocupou, conteu, foi, recordou, juntou,
aglomerou, ordenou, acrescentou, cingiu, distinguiu, estabeleceu, deu, permitiu, retirou
avançou, colocou, dividira, começaram, cederam, recebeu).
4. CONCLUSÃO

Embora cada cultura possua sua própria identidade religiosa, existem pontos que
se assemelham entre elas, e, um desses, é, sem dúvida, a figuração da cosmogonia. Uma
força primordial, geradora de duas outras forças, uma ativa, (masculina) e outra passiva
(feminina), essenciais ao desenvolvimento da vida humana, dá início ao que muitas
culturas entendem por criação do mundo e, a cultura romana, não ficou fora deste mesmo
pensamento religioso.
De acordo com As Metamorfoses de Ovídio, grande obra do século I d. C., que
detalha a transformação ou, podemos assim dizer, a evolução de diversos mitos, a religião
romana acreditava neste percurso de forças que, unidas, geraram a harmonia do cosmos.
Tinha como força primeva, Caos, que, por sua própria natureza, é a discórdia entre os
elementos e a manifestação da desordem. Como força geradora do equilíbrio do cosmos,
se contrapondo ao Caos, existia o “deus” (força masculina) e sua adjutora, a “melior
natura” (força feminina) que, unidas, estabeleciam o equilíbrio da criação e o nascimento
de toda natureza existente.
Desta forma, concluímos que Ovídio trás, em sua obra, As Metarmofoses, pontos
inerentes à essência da criação vistos em diversas culturas do mundo ao levantar forças
sacras geradoras do cosmos em sua obra, através do mito cosmogônico. Percebemos tal
fato, logo após um estudo apurado do texto original da obra ovidiana, ao fazermos um
levantamento dos verbos que estabelecem as ações dos principais personagens da
cosmogonia, ou melhor, daqueles que geraram o início de todas as coisas, o Caos, o
“deus” e a “melior natura”. Durante nosso estudo observamos que muitos dos verbos,
pontuados por Ovídio, possuíam ações criadoras. Estas, quando direcionadas a Caos,
encontravam-se no passado do infectum, mostrando, assim, ações que, de fato, ocorreram,
mas que não poderiam tornar a serem exercidas. Logo após, presenciamos as ações
pontuadas pelo “deus” e a “melior natura”, que evidenciam o perfectum (ação acabada),
revelando que as ações desses últimos são perfeitas, em relação àquelas outras, e
imutáveis.

REFERÊNCIAS
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____________________________________Mitologia grega, Vol I. Diagramação Daniel
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FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 4° ed. Artes gráficas Gomes de


Souza S.A., Campanha Nacional de Material de Ensino, 1967.

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Concepção gráfica: Fluir Perene. Apoio: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da
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OVÍDIO. Metamorphoses. Ed. Bilíngue. Tradução, introdução e notas de Domingos Lucas
Dias. Apresentação de João Angelo Oliva Neto – São Paulo: Editora 34, 2017 (1° edição)

SKOLIMOSKI, Kellen N; ZANETIC, João. Mitos de Criação: modelos cosmogônicos de


diferentes povos e suas semelhanças. In: II Simpósio Nacional de Educação em Astronomia
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SOUSA, Eudoro de, 1911 – História e mito. Cadernos da UnB. Asa Norte Brasília- DF:
Editora Universidade de Brasília, 1981.
A CULTURA INDÍGENA E SUA MANUTENÇÃO: A INFLUÊNCIA
DA GLOBALIZAÇÃO NAS TRANSFORMAÇÕES
SOCIOCULTURAIS DOS FULNI-Ô, DA CIDADE DE ÁGUAS
BELAS – PE

Ana Patrícia Reis Da Silvai Rafael de Oliveira Rodrigues

O principal objetivo deste trabalho é analisar o modo como elementos culturais dos povos indígenas da
etnia Fulni-ô, residentes na cidade de Águas Belas, Pernambuco, são produzidos como objetos de
consumo para turistas e visitantes, seguindo a lógica do mundo globalizado. Para o alcance do objetivo
proposto, foi realizada pesquisa bibliográfica, com enfoque na história da etnia, além de uma visita in
loco, para realização de entrevistas semiestruturadas. Os resultados preliminares permitiram observar
que os índios Fulni-ô são um ótimo exemplo para refletir a produção de elementos culturais e identitários
em objetos de consumo, articulando categorias como local e global, para divulgar elementos da sua
cultura, ao mesmo tempo em que promovem desenvolvimento socioeconômico da etnia.

Palavras-chave: Povos indígenas Fulni-ô; Águas Belas/PE; Cultura; Globalização.

Introdução

Na sociedade contemporânea, a instantaneidade entre relações e trocas de informações acelerou


ainda mais o processo de interação entre culturas distintas, além de potencializar as práticas de consumo.
Com isso se percebe culturas tradicionais abaladas de um lado, e o consumo de bens simbólicos gerados
pelo impacto da globalização de outro.
Neste sentido, o conceito de Economia da Cultura são implantados como formas de auxílio nesse
estudo, pois trazem as ferramentas que se relacionam com o que se pretende analisar, onde tomamos
como exemplo a etnia Fulni-ô, da cidade de Águas Belas-PE, Agreste de Pernambuco.
Este grupo étnico, por sua vez, luta pela manutenção de sua cultura diante do acelerado processo
de modernização e tecnologias, em que, cada vez mais, a proximidade com outros costumes de etnias
diferentes das deles, influenciam nas suas práticas diárias. O estudo analisa, portanto, os aspectos
positivos e negativos relacionados à produção de elementos da cultura indígena como bens de consumo.
Dessa forma, é importante ressaltar que os povos indígenas Fulni-ô, assim como outras tribos do
Nordeste, fizeram parte do processo de tentativa de “aculturação”, onde a ideia que se tinha era de que
os índios ao entrar em contato, mesmo que pouco, com os “brancos”, perderiam logo seus costumes e
iriam se tornar “civilizados” (GALVÃO,1979).
Vários questionamentos são feitos referente à identidade ética dos índios Fulni-ô devido ao fato
deles viverem tão próximo da cidade de Águas Belas, no entanto, o que se pode afirma é que não se
define um grupo étnico à partir de noção de raça, ou sangue.
Os indígenas que se definem de forma pública como índios, assim, são considerados por direito
como indígenas, pois é estabelecida uma identidade diferenciada, quebrando o preconceito em relação
aos índios do Nordeste, que por sua vez não são menos indígenas que os da Amazônia.
Fredrik Barth disseminou essa ideia que percorre no campo étnico e levantava a bandeira
argumentando:

Apenas os fatores socialmente relevantes tornam-se próprios para diagnosticar a


pertença, e não as diferenças “objetivas” manifestas que são gerados por outros
fatores. Pouco importa quão dessemelhante possam ser os seus membros em seus
comportamentos manifestos – se eles dizem que são A, em posição a outra categoria
B da mesma ordem, eles estão querendo ser tratados e querem ver seus próprios
comportamentos serem interpretados e julgados como de As e não de Bs ( BARTH,
1998: 195).

Nesse sentido, é importante considerar as questões simbólicas que compõem seus traços culturais,
por serem parte de fatos que afirmam sua identidade quanto indígenas, esses elementos ajudam na
relação de portabilidade de uma identidade específica.
De acordo com Barth (1998) ainda, a forma de organização social de um grupo étnico depende
das fronteiras que se estabelecem com a manutenção provinda dos índios e não índios.
Seguindo essa linha de pensamento, se percebe que em meio às mudanças decorrentes do mundo
capitalista e globalizado, é impossível um grupo étnico manter sua cultura e costumes de forma original,
pois o processo cultural vive em evolução e modernização. A cultura está sempre se dinamizando e se
transformando.
Sendo assim, os grupos étnicos devem aparecer como organização social que se adapta as
mudanças, assim como afirma Cunha:

Um mesmo grupo étnico exibirá traços culturais diferentes, conforme a situação


ecológica e social em que se encontra adaptando-se às condições naturais e às
oportunidades sociais que provêm da interação com outros grupos sem, no entanto,
perder com isso sua identidade própria (1986: 115).

É desta forma que a Economia da Cultura entra como agente, dando suporte conceitual para as
formas que os índios Fulni-ô encontraram de inovar seus métodos em relação às atividades econômicas
adaptando para práticas comerciais semelhantes as da cidade, mas com sua particularidade de indígena,
que se manifesta através de seus costumes culturais.
Nesse sentido, assim como os demais grupos que experienciam o mundo capitalista e globalizado,
têm adotado estratégias de sobrevivência para adquirir recursos que viabilizem sua sustentabilidade
financeira.
Os índios Fulni-ô, nesse cenário, se tornam um referente empírico ideal para refletir o modo como
os povos indígenas tem se apropriado das categorias capitalistas e produzido elementos de sua cultura
como bens de consumo para potenciais consumidores.

Fundamentação Teórica
Ao longo dos anos os povos indígenas do Brasil têm passado por um contínuo
processo de dizimação de sua cultural. Como marco deste processo, Pacheco de Oliveira
(1994) observa que temos as reformas pombalinas, em que instituição políticas e práticas
sistemáticas de assimilação foram implementadas pelo estado com o intuído de agregar
os povos indígenas à lógica de mercado europeia de finais do século XVIII.

No século XIX, com o final da escravidão, este processo foi intensificado através
das políticas eugenistas, as quais tinham como principal objetivo, além de promover uma
maior assimilação da população indígena e afrodescendente, purificar o povo brasileiro.
Como marco deste período, foram implementadas uma série de estratégias de e incentivos
à vinda de trabalhadores europeus, brancos, com a finalidade de dirimir a mestiçagem e
formar uma raça pura. Nesse momento histórico acreditava-se que a mistura de raça era
o principal entrave ao desenvolvimento social e econômico do país (LARAIA, 2001).

Dessa forma, os povos indígenas entraram o século XX como “cobaias” de um processo


civilizatório caracterizado por uma grande violência física e simbólica, tendo como objetivo
agregá-los a lógica de mercado, através da destruição dos seus principais elementos culturais:
festividades, artesanato, religiosidade, rituais.

Cabe destacar que este processo foi mais forte no Nordeste do país, uma vez que
geograficamente ele foi colonizado primeiro, o que não quer dizer que ele não tenha sido tão
violento quanto para com os povos indígenas do Norte do País.
No que se refere mais especificamente aos Fulni-ô, eles foram durante muito tempo considerado
pelos estudiosos como os últimos remanescentes dos históricos índios Karirí, cujo hábitat abarcava todo
o Nordeste do Brasil (BOUDIN, 1949).
No entanto, depois de análises linguísticas, concluiu-se que não havia uma relação direta entre os
dois grupos. O que se sabe é que, de acordo com registros da Informação Geral da Capitania de
Pernambuco (1906), eles eram cerca de 323 pessoas que pertenciam a grupo indígena em meados de
1749. E que já nos anos de 1937 o grupo havia crescido consideravelmente.
Atualmente os povos indígenas da etnia Fulni-ô estão localizados na cidade de Águas Belas,
agreste de Pernambuco, com 40.235 mil habitantes, sendo aproximadamente 4.689 indígenas (IBGE,
2018), e são o único povo indígena do Nordeste a falar sua língua matriz. Não se tem uma data exata de
quando a tribo foi aldeada8, como também existe a possibilidade de que os mesmos tenham obtidos
elementos de outras tribos anteriores que possivelmente deram origem ao seu povo.

8
Se organizar sob forma de aldeia.
A religião é para eles um assunto bem delicado, pois apesar da presença de igreja católica na praça
central da aldeia, muitos dos indígenas Fulni-ô se consideram apenas índios quando lhes perguntam
sobre suas religiões. Esse é um aspecto bem nítido de como esse grupo se adaptou diante do que lhe foi
imposto pelas culturas distintas as deles.
É apenas a partir da Constituição de 1988 que este cenário começa a mudar e os povos indígenas
começam a ganhar direito à voz, tendo como base uma série de direitos garantidos, como direito a terra,
a educação e saúde (PACHECO DE OLIVEIRA, 1994). Todavia, a grande violência simbólica sofrida
ao longo da colonização ainda trazia uma vergonha para que eles buscassem o reconhecimento como
índio, especialmente os povos indígenas do Nordeste.

Este quadro começa a se modificar a partir da década de 1990. Pacheco de Oliveira


(1994) observa que, neste período, teve início um movimento conhecido como etnogênese,
processo através do qual os povos indígenas, especialmente os do Nordeste, começaram a se
reafirmar enquanto índios, exaltando sua identidade através de elementos da sua cultura.

Diante disso os índios Fulni-ô, de Águas Belas, são um grupo interessante para refletir
as transformações culturais e as estratégias de reafirmação identitária no mundo globalizado,
marcado como observa Hall (2014) pelo estreitamento das fronteiras geográficas e culturais,
aliados em novos processos de comunicação, e mais ainda: de assimilação da lógica capitalista
do mundo globalizado.

Atualmente os Fulni-ô se dividem entre a cidade de Águas Belas e a aldeia onde eles
praticam seu principal ritual, o Ouricuri. Ao longo dos anos eles sobreviveram a sua série de
tentativas de apagar sua cultura, mas conseguiram se manter como único grupo indígena do
Nordeste a falar sua língua materna, além dos seus principais rituais, os quais envolvem
isolamento da cidade na aldeia vizinha ao município.

Ao longo dos anos eles têm enfrentado um violento processo de assimilação, e mesmo
tendo o seus direitos e identidade reconhecidos pela constituição, ainda não tem suas terras
demarcadas. O principal entrave é a deslegitimação de alguns segmentos sociais em reconhecê-
los como índios, utilizando a justificativa de que eles já estão há muito tempo convivendo com
os povos ditos brancos, o que faz com que eles não sejam reconhecidos de um todo como povos
indígenas.
Numa estratégia para se reafirmar como povo indígena, mesmo tendo assimilado uma
série de elementos culturais no mundo globalizado, eles têm divulgado uma série de elementos
da sua cultura, utilizado a mesma lógica de produção cultural na atualidade. Em outras palavras,
uma vez que a cultura no mundo globalizado se torna uma mercadoria, a qual passa por um
processo de produção, distribuição, circulação e consumo (HALL, 2014), eles têm utilizado
alguns elementos de sua cultura, como artesanato, rituais, como forma de divulgar sua cultura
e reafirmar sua identidade indígena.

Dessa forma, se percebe que ao longo de sua trajetória em busca da legitimação de sua
identidade étnica, os Fulni-ô tentam “superar as pressões mantendo sua língua própria e seus
segredos e assiduidade em sua prática religiosa, economicamente praticam uma gama de
atividades que os integram às economias locais, regionais e até mesmo nacionais” (Campos,
2006, p. 62).

Com a dificuldade climática enfrentada para práticas agrícolas na região e mesmo sem
dados que comprovem qual o tipo de economia era praticada pelos Fulni-ô, Campos destaca
que ela, provavelmente, era baseada na agricultura que permanece hoje ainda ativa entre alguns
indígenas.

“A economia Fulni-ô é marcada por uma variedade de atividades, que podem


ser compreendidas como estratégia de sobrevivência a um ambiente que
oferece poucas opções de criação de renda, em razão das pressões sociais e
ambientais a que são submetidos.” (CAMPOS, 2006, p. 62)

Com isso, as atividades econômicas que são praticadas se diversificam tanto no âmbito
cultural, como em outras atividades, as quais, por sua vez, são consequentemente resultado do
contato com não índios. Estas discussões se inserem na temática da Economia da Cultura, a
qual trata o simbolismo cultural de uma determinada sociedade, como a ampliação das relações
sociais de maneira a utilizar de ferramentas da economia que ajudam a analisar a importância
que tem a cultura como geradora de emprego e renda.

Análise dos dados

A participação da vida dos índios com eventos exteriores aos da tribo é significante, uma vez
que a aldeia é considerada um bairro da cidade. Existem membros da tribo que trabalham na cidade com
funcionalismo público e privado, assim como existem comerciantes indígenas, jovens que estudam nas
escolas municipais e estaduais fora do aldeamento, políticos como vereadores, além do futebol
atividades em que os índios são bastantes presentes em relação à interação entre índios e não índios.
As atividades econômicas em uma ordem decrescente, sendo a agricultura a primeira e em
seguida vem o artesanato que é bastante predominante na tribo e, por sua vez, é importado para vários
lugares do Brasil. Além disso, há também os empregos e trabalhos que são exercidos pelos índios na
cidade de Águas Belas e em outras cidades da região. Outra forma de renda é o arrendamento de terra
que são recolhidos anualmente e, por fim, existem as apresentações de danças que têm crescido muito
nos últimos anos (FERREIRA, 1996).
De acordo com as observações obtidas por Campos (2006, p. 64), “no caso dos Fulni-ô, as únicas
atividades exclusivamente indígenas são a produção de artesanato e a apresentação indígena, enquanto
todas as outras também são exercidas pela população regional não indígena”.
Periodicamente muitos índios viajam para cidades grandes para a venda de artesanato e para fazer
apresentações de dança, passando aproximadamente um mês viajando fazendo esse tipo de atividades.
Essa é uma das formas mais comuns de renda dos Fulni-ô, assim como a maneira que buscaram de
divulgar sua cultura e se manterem dentro do que o mundo globalizado exige.
Essas atividades são bastante discutidas na cidade. As discussões giram em torno de elas são uma
prova de que os Fulni-ô estão perdendo sua cultura em meio a tantas tecnologias, e apropriações de
atividades tidas no senso comum como maciçamente executadas por povos “brancos”. Sobre este ponto,
é importante destacar que

Qualquer grupo social humano elabora e constitui um universo completo de


conhecimentos integrados, com fortes ligações com o meio em que vive e se
desenvolve. Entendendo cultura como o conjunto de pessoas de uma determinada
sociedade humana dá às experiências por ela vividas e aos desafios que encontra ao
longo do tempo, percebe-se o quanto as diferentes culturas são dinâmicas e estão em
contínuo processo de transformação. No entanto, é importante frisar as variadas
culturas das sociedades indígenas modificam-se constantemente e reelaboram-se com
o passar do tempo, como a cultura de qualquer outra sociedade humana. (FUNAI,
2013).

Como os demais grupos étnicos no mundo globalizado, esta etnia reformulou sua maneira de
fazer comércio sem deixar de lado seus costumes, isso mantem a ideia de que existem pontos tanto
positivos quanto negativos, no entanto, nenhum deve ser tomado como total verdade absoluta do que
realmente gerou esse processo agregação de lógicas nas suas trocas com os demais grupos sociais.

Alguns teóricos culturais argumentam que a tendência em direção a uma maior


interdependência global está levando ao colapso de todas as identidades culturais
fortes e está produzindo àquela fragmentação de códigos culturais, aquela
multiplicidade de estilos, aquela ênfase no efêmero, no flutuante, no impenetrante e
na diferença e no pluralismo cultural. (HALL, 1999, p.73).
O que se sabe é que a identidade dos indígenas Fulni-ô é preservada mesmo como que impõe a
modernidade atual. Isso é afirmado de forma conceitual à existência da economia da cultura obtida com
alternativa de adaptação da tribo.
Mesmo em meio às dificuldades obtidas pelos índios de forma geral, em manterem sua cultura
viva, especificamente a tribo Fulni-ô da cidade de Águas Belas- PE, os indígenas utilizam mecanismos
da economia da cultura como forma de manter e mostrar sua cultura e costumes, sabendo que essa seria
uma forma de sobreviver ao mundo globalizado, buscando uma via estratégica para sair da tutela do
Governo Federal (FUNAI) na geração de renda e gerenciamento de seus recursos.
Os povos indígenas Fulni-ô são conhecidos como a tribo que mantém sua identidade própria, e
que apresenta uma forte manutenção de elementos centrais da sua cultural quando comparado a outras
tribos do Nordeste que perderam quase que por completo, seus costumes e língua.
Os mecanismos utilizados se tratam de ferramentas da Economia da Cultura que ajudam na
produção de bens culturais como objetos de consumo. Temos como exemplo disso os bens tangíveis e
intangíveis da produção cultural, canais de circulação, tecnologia e a produção. Os Fulni-ô utilizam tais
ferramentas quando empregam sua cultura a esses mecanismos em troca de obtenção de renda.

Estes autores somados aos estudiosos da economia cultural (VALIATI, 2015; SCOTT,
1999) conceitua a analise de como os elementos culturais dos Fulni-ô são transformados em
mercadorias, tendo como principais agentes deste processo eles próprios, contribuindo para
divulgar a cultura indígena, ao mesmo tempo em que garantem renda para a população indígena.

Metodologia

A metodologia de analise foi desenvolvida a partir de uma abordagem qualitativa, exploratória


e de forma descritiva. Para o alcance dos objetivos propostos a metodologia foi dividida em três fases.

I. Pesquisa bibliográfica da trajetória dos índios do nordeste com enfoque na história dos Fulni-ô.
II. Observação participante na aldeia Fulni-ô, na cidade de Águas Belas/PE, com o objetivo de
analisar e discutir quais elementos da cultura da tribo são utilizados como forma de divulgação
de sua identidade.
III. Verificação da relação da tribo com o conceito de Economia da Cultura.

Conclusão

Diante de tudo que foi levantado, foi possível perceber que os Fulni-ô de Águas belas
adotam a estratégia de transformar sua cultura em um bem de consumo através de elementos como
o artesanato, ou exibição pública de seus rituais em forma de dança, para reafirmar sua identidade
cultural frente ao Estado, e também para conseguir se manter nestes contextos, em que as
fronteiras locais e globais se inter-relacionam na busca da compreensão do grau de importância
de se ter como estratégica a adaptação quando ocorre interação social entre culturas diferentes.
Com a estratégia de sobrevivência e manutenção de sua cultura, os Fulni-ô criaram o
mecanismo de venda de sua arte e sua produção cultural para se afirmarem como índios, mesmo
sendo híbridos.

Referências bibliográficas

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FENART, J. (Orgs.) Teoria da Etnicidade. Trad. Elcio Fernandes. São Paulo: Ed. Unesp, 1998, pp. 185-
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MELO, Mário. Os Carnijós de Águas Belas. Rev. do Museu Paulista, São Paulo : Museu Paulista, v. 16,
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PACHECO DE OLIVEIRA, João. A Viagem da Volta: Reelaboração Cultural e Horizonte Político dos
Povos Indígenas do Nordeste. In: Atlas das Terras Indígenas/Nordeste. Rio de Janeiro: PETI/ Museu
Nacional/UFRJ. 1994, pp. V-VIII
A EDUCAÇÃO E SEUS DEBATES ATUAIS: O QUE QUEREMOS
NO ENSINO RELIGIOSO?

Mirinalda Alves Rodrigues dos Santos9

RESUMO: No contexto atual que estamos inseridos discutir e promover a reflexão acerca
de questões de diversidade cultural religiosa se faz necessária ao combate de preconceitos
e discriminações dentro do âmbito escolar no que se refere às religiões, inclusive as
consideradas religiões “minoritárias”, ou seja, as que não são cristãs. É nessa perspectiva,
que esse artigo tem como objetivo refletir e perceber Ensino Religioso como componente
curricular que possa contribuir para o combate a intolerância religiosa nas escolas, bem
como promover nos educandos o respeito, a valorização, o reconhecimento de si e com o
outro e a cultura de paz. Metodologicamente esse estudo é bibliográfico com
delineamento explicativo de concepções que fazem refletir sobre as questões da
importância do diálogo inter-religioso nas propostas pedagógicas para potencializar o
processo de ensino e aprendizagem. Concluímos, portanto, que é de responsabilidade do
Ensino Religioso enquanto componente curricular reconhecido atualmente na Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) na área das Ciências Humanas, superar cada vez
mais as lacunas enfrentadas nas escolas em uma perspectiva não confessional e não
prosélita, em que suas práticas metodológicas e pedagógicas possam incluir temas
emergentes que precisam ser debatidas de acordo com as mudanças e diversidades
religiosas que encontramos no contexto escolar.

PALAVRAS-CHAVE: Diversidade cultural. Religião. Educação.

INTRODUÇÃO

No contexto atual que estamos inseridos muito se tem refletido acerca da


intolerância religiosa nas escolas, principalmente em um viés que diz respeito às relações
estabelecidas em relação ao professor e ao aluno que aponta ao preconceito inclusive
acercadas a religiões afro-brasileiras. Nesse sentido, como as escolas públicas se
configuram cotidianamente diante desse cenário? Diante de tal questionamento, nos
reportamos a pensar nas ações pedagógicas das escolas e, é através do currículo no qual
consideramos o pilaste das escolas públicas e que muitas vezes o deixamos de lado e não
dando tanta importância quando pensamos em ações educativas para o combate a
intolerância religiosa nas escolas.

9
Doutoranda e Mestra em Ciências das Religiões na linha de pesquisa: Educação e Religião pela
Universidade Federal da Paraíba/ UFPB. Graduada em Pedagogia pela mesma instituição. Email:
<mirirodrigues2@gmail.com>
É nesse sentido que esse estudo se robora, por dar esse olhar de significância para
o currículo em prol ao combate de atos de proselitismo, negação do outro e intolerância
quando tratamos de questões de religiões presentes no campo educacional. esse estudo
faz abordagens bibliográficas com interlocuções com autores que dialogam com as
questões de currículo como, Silva (1999 - 2007); Sacristán (1995) entre outros
referenciais. Para as discussões do Ensino Religioso em que partimos das concepções de
Passos (2007); Soares (2015), entre outros autores.
As reflexões desse trabalho estão divididas em dois seguimentos nas quais
faremos primeiramente uma abordagem acerca da formação dos professores que lecionam
a disciplina Ensino Religioso, apontando questões relevantes que podem contribuir para
pensar na formação inicial e continuada dos mesmos. Em seguida entraremos nos debates
acerca do currículo escolar em uma perspectiva de buscar meios - caminhos em aspectos
metodológicos e pedagógicos que possam contribuir para um Ensino Religioso não
confessional, não prosélito e que promova o respeito à diversidade cultural religiosa.

2. O Ensino Religioso e seus desafios no campo do currículo escolar

Discutir o currículo para o Ensino Religioso é um debate necessário e atual, uma


vez que esse ensino foi retirado na terceira versão da Base Nacional Comum Curricular/
BNCC, contido, nas versões anteriores dessa Base o Ensino Religioso era previsto como
componente curricular na área das Ciências Humanas. Contudo, é garantido esse ensino
na Constituição Federal de 1988, bem como na Lei de Diretrizes e Bases da Educação/
LDB, neste caso, as escolas públicas devem continuar ofertando obrigatoriamente e
matrícula facultativa esse ensino.
Compreendemos que esse ensino há muitas lacunas a serem sanadas no que diz
respeito à formação de professores (como já foi exposto acima) e em relação a materiais
didáticos, seja por falta dos mesmos ou até mesmo pela elaboração desses materiais em
que a maioria dos livros didáticos continuam a evidenciar apenas uma religião, em muitos
casos, a religião cristã. Mas, como podemos abordar as outras religiões diante dessa
lacuna? É nesse tocante, que acreditamos que o currículo escolar contribui na formação
humana desse ensino, no qual o respeito seja prioridade nas práticas pedagógicas do
Ensino Religioso. Assim, partimos na perspectiva de Tomaz Tadeu da Silva em relação
ao currículo podemos entender que:
[...]. O currículo tem significados que vão muito além daqueles com os quais
as teorias tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território.
O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O
currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja a
nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é
documento de identidade (SILVA, 1999, p. 150).

Em virtude dessa concepção de currículo que problematiza as questões de etnias,


raças e de crenças e não crenças como pode ser restrito as concepções de um Ensino
Religioso pautado no respeito da pluralidade religiosa. O currículo ao qual Silva nos
apresenta, abrange inúmeras formas de construção de conhecimentos e possibilita a
construção de identidades de sujeitos em uma relação de percepção de sociedade – sujeito
- ação, lidando com as particularidades. Partindo desse ponto de vista de currículo o
entendimento de esse ensino ser prosélito está equivocado, uma vez que partimos de uma
perspectiva de manifestação religiosa nas diversas tradições culturais, dessa forma,

É importante considerar as representações mentais dos indivíduos, as ideias


sobre o outro, o entendimento das situações humanas de conflitos, as imagens
que elaboramos de nós mesmo em relação aos outros. E esse é o terreno da
educação. A cultura é algo que caracteriza grupos humanos diferenciados e que
cada indivíduo assimila de forma única (SACRISTÁN, 2012, p. 53).

Diante disso, é preciso que as escolas promovam práticas educativas que


reconheça as diferenças e respeitem as questões culturais e crenças religiosas e também
não religiosas. Para tanto, é preciso que as construções de currículo voltado para esse
ensino caminhem para um Ensino Religioso que não se limitam apenas uma religião, mas
que favoreçam também as outras religiões e também outras formas de crer e não crer. Se
o currículo não estiver aberto para essas questões interfere nas possibilidades de
ressignificação e (re)construção do currículo escolar.
O Currículo não é algo indefinido “o currículo é o núcleo e o espaço central mais
estruturante da função da escola. Por causa disso, é o território mais cercado, mais
normatizado. Mas, também o mais politizado, inovado, ressignificado” (ARROYO, 2011,
p. 13). Podemos assim dizer que ele tem uma dinâmica circularizadora, no qual, envolve
diversas maneiras de ser trabalhada, como forma de organizar um espaço educativo, que
não se limita apenas em um espaço escolar, pelo qual nele estão incluídas as experiências
adquiridas ao longo do tempo, que são planejadas e transformadas em atividades que
possibilitam o processo de ensino e aprendizagem mais significativo, tendo como base as
teorias tradicionais, crítica e pós-crítica. Isso potencializa ainda mais a ampliação e a
organização do conhecimento, neste caso, “O conhecimento dependente do contexto diz
a um indivíduo como fazer coisas específicas. Ele não explica ou generaliza, mas lida
com particularidades” (YOUNG, 2009, p.48). O princípio da teoria do currículo nos
possibilita a refletir e relacionar os conteúdos curriculares às experiências culturais dos
educandos e ao mundo concreto que os cercam, no sentido de valorização e garantia de
privilégios e legitimar atos de opressão a determinados grupos marginalizados frente a
uma sociedade excludente. Conforme Pereira (2009. p.70):

Assumo o currículo como redes de significação permeadas por relações de


poder, e, em constante processo de deslocamento. Esses deslocamentos
tornam-se importantes porque dão significação múltipla a prática social e
cultural nele produzida. Essas práticas mediadas pelo poder produzem uma
dinâmica complexa que se estabelece a partir de negociações.

De acordo com a autora, o currículo aqui proposto nos remete a refletir e


questionar acerca das nossas representações sobre os “outros”, propriamente da nossa
identidade. Assim, permite-nos relacionar às representações que construímos dos
“outros”, daqueles que consideramos “diferentes”. No entanto, considerarmos o outro
como sujeito consciente, que se reconheça como atuante em uma determinada cultura
com valores, crenças e modo de vida diferente, e que ao mesmo tempo se torna
homogênea. Com essa concepção esse sujeito, além de se relacionar com o meio social
de uma forma produtiva, contribuirá para o desenvolvimento de uma identidade
autônoma. Nesse sentido, ainda de acordo com a autora mencionada:

Referindo-me ao currículo como redes de significação do processo cultural de


pertencimento de diferentes grupos sociais, afirmo que ele tem a seu favor a
oportunidade de assumir o poder enquanto uma estratégia significativa de
negociação para produzir mudanças importantes no processo de
reconhecimento e legitimidade do poder dos grupos sociais nas sociedades
multiculturais. [...]Referindo-se ao campo do currículo, Macedo & Pereira
(2007b: 14) defendem “o currículo como espaço-tempo de negociação
agonística de sentidos, ou seja, (…) uma negociação agonística pressupõe a
diferença e a disputa que, ao invés de destruir o outro, lida com uma articulação
provisória da diferença que reconhece a legitimidade da existência do outro”
(PEREIRA, 2009, p.171).

Contudo, podemos afirmar que os sujeitos são efeitos dos discursos, que produz
identidades e diferenças. Desse modo, “[...] o currículo pode ser visto como um discurso
que, ao corporificar as narrativas particulares sobre o indivíduo e a sociedade, nos
constitui como sujeitos – e sujeitos também muito particulares” (SILVA, 2007, p.195).
Assim, historicamente, a escola por meio de seu currículo legitima as identidades
hegemônicas (ocidentais, religiões cristãs, brancas, etc.) que contribuem para posicionar
as não hegemônicas como inferiores: “as culturas ou vozes dos grupos sociais
minoritários e/ou marginalizados que não dispõem de estruturas importantes de poder
costumam ser silenciadas, quando não estereotipadas e deformadas, para anular suas
possibilidades de reação” (SANTOMÉ, 1998, p.161).
Nessa perspectiva, entendemos que o Ensino Religioso é um grande contribuidor
para a formação plena do educando, que visa a sua forma de observar e compreender o
mundo que o cerca. Essa é uma característica importante do Ensino Religioso que é o de
valorizar experiências e saberes dos/as educandos/as, potencializando a formação integral
do ser, para isso requer práticas pedagógicas e postura ética de profissionais que
direcionem suas metodologias, voltadas para a inclusão de componentes curriculares que
contemple as diversidades religiosas sem proselitismo. Conforme Junqueira e Oliveira
(2006, p. 46):

O Ensino Religioso perdeu sua função catequética, pois a escola descobre-se


como instituição autônoma que se rege por seus próprios princípios e objetivos,
na área da cultura, do saber e da educação. A manifestação do pluralismo
religioso é explicitada de forma significativa; não é mais compatível
compreender um corpo no currículo que doutrina, que não conduza a uma visão
ampla do ser humano.

Nesse sentido, “a cultura também está intrinsicamente ligada à educação e ao


currículo [...] por um conjunto de sentidos socialmente criados que permite aos sujeitos
se identificarem uns com os outros” (LOPES e MACEDO 2011, p.184). Por esse
entendimento da relação entre cultura-educação-currículo que nos leva a refletir que ao
contemplar essas relações no currículo do Ensino Religioso possibilita o combate das
representações que compreende esse Ensino ser de caráter tendencioso e suas reproduções
enquanto um ensino que visa apenas a confessionalidade sem nenhuma reflexão crítica a
respeito dessas questões.

3. O Ensino Religioso e seus desafios no campo da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões)

Para descontruir essa visão há uma necessidade de formação inicial do professor


desse componente curricular ser licenciado no curso de Ciência(s) da(s) Religião(ões). O
profissional que não tem essa formação se depara com um grande desafio, pois os mesmos
não conseguem relacionar e distinguir a Teologia com a(s) Ciência(s) da(s) Religião (ões),
consequentemente, afetando nas suas práticas pedagógicas. Assim muitos professores
dessa área acabam cometendo o proselitismo, indo contra as perspectivas do Ensino
Religioso. Dessa forma, essa disciplina requer uma formação sólida e contínua, que haja
reflexões constantes sobre a prática cotidiana, buscando assim, sempre driblar as
implicações e os desafios encontrados acerca desse componente curricular.
De grosso modo, o Ensino Religioso nos remete a uma abordagem pedagógica,
respeitando as diversas crenças religiosas trazidas pelos/as educandos/as. Diante dessa
questão, o Ensino Religioso, enquanto componente curricular obrigatório nas escolas traz
uma reflexão que nos compele a pensar em uma formação integral, diante da
complexidade de ideologias em relação às experiências religiosas que são socialmente e
historicamente construídas. Assim, a escola se depara em um desafio, no sentido de
organizar seu currículo, formar seu corpo docente e discente na perspectiva da totalidade.
Essa por sua vez, leva em consideração às diversidades culturais religiosas.
É nessa perspectiva que o estudo aqui proposto se fortalece, tendo como objeto de
estudo Ensino Religioso e currículo, buscando perceber e entender os sentidos de Ensino
Religioso nos discursos de currículo na área da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) e quais
concepções e interpretações a área está produzindo acerca dessa questão nos que diz
respeito às relações interculturais propostas pelas políticas de currículo para esse ensino,
a partir das análises do Projeto Pedagógico de Curso, bem como os discursos dos
docentes. Diante disso, inferimos que as percepções de currículo na matriz curricular da
área de Ciência(s) da(s) Religião(ões) em nível de graduação e Pós-graduação Ensino
Religioso precisam se constituirem para interculturalidade, para a diversidade cultural e
para a uma educação de cultura da paz.
Dentro dessa área de ensino, é importante discutir em uma abordagem pós - crítica
de currículo, pois na perspectiva do currículo pós-crítico, podemos entender a
importância que se dá na valorização das identidades e diferenças no multiculturalismo,
conforme Silva (2007, p. 86), o currículo pós-crítico não é “uma hierarquia entre as
culturas”. Nesse contexto o currículo pós-crítico vem sendo compreendido e aplicado na
contemporaneidade que se direciona para a construção do currículo do Ensino Religioso
que ao longo da sua história era conduzido na perspectiva catequista, em que a religião
cristã era ensinada de forma proselitistas, fazendo com que ela fosse valorizada e
consequentimente as religiões consideradas minoritárias, por uma sociedade excludente
cristã, se tornaram descriminadas e ficaram a margem desse ensino, gerando o
preconceito e intolerância a essas religiões excluídas.
É nesse sentido que esse estudo tem sua importância, pois apresenta alternativas
teórico-metodológicas para análise curricular do Ensino Religioso, bem como a
construção de uma perspectiva de consciência crítico-reflexivo, rompendo assim com
certos preconceitos, uma vez que o respeito à diversidade é um ponto central desse ensino.
Tendo em vista que o Ensino Religioso valoriza a multiculturalidade e a interligação
dessas múltiplas culturas, esse estudo busca contribuir para processo de ensino e
aprendizagem do Ensino Religioso.
Falar da formação de professores sempre foi uma questão que requer um olhar
mais aguçado para poder expor e buscar estratégias de melhoria nas práticas aplicadas em
diversos seguimentos da atuação dos mesmos. E falar da formação de professores de
Ensino Religioso é um caminho muito mais complexo e arriscado, em que se deve ter
uma maior cautela acerca das práticas educativas, partindo do pressuposto que o
professor, no ato de educar, “passa” para o educando sua experiência cultural religiosa e
visão de mundo. O professor de E.R sem ter a formação “adequada”, no caso, se a
formação inicial não for graduação no curso de Ciências das Religiões10, apresenta um
grande risco de cometer proselitismo, por isso, há uma necessidade de se ter atenção mais
precisa na formação desses professores. Dessa forma, é preciso “não tratar o ER como
área de conhecimento autônoma, mas antes como a prática do que a Ciência da Religião
produz como conhecimento”. (SOARES, 2015, p. 46).

10
Usando a nomenclatura Ciências das Religiões devido ao curso de graduação na Universidade Federal
da Paraíba (UFPB) e esse estudo diz respeito ao contexto paraibano. Lembrando que a nomenclatura do
curso varia em outros Estados. Ver MIELE, Neide; Possebon, Fabricio. Ciências das religiões: proposta
pluralista na UFPB. Numem. Juiz de Fora, v. 15, p. 403-431.
Por falta da formação adequada, atualmente, nas escolas que temos, ainda sente-
se essa dificuldade em separar a convicção religiosa dos conteúdos a serem abordados no
Ensino Religioso. Difícil pensar nessa separação em nosso contexto social, uma vez que
se apresenta laico na constituição, porém ainda está em processo de transição, pois temos
ainda influências religiosas regendo nosso país. O objetivo do Ensino Religioso é quebrar
esses paradigmas, como podemos observar:

[...] o Ensino Religioso fica posto como um meio de educação da religiosidade


em si mesma, finalidade que permite chegar a uma visão integral do ser
humano e a fundamentar sua atuação ética na história. Em suma, o sujeito ético
pressupõe o sujeito religioso. Esse modelo parece concretizar perfeitamente a
ideia de educação religiosa ou da religiosidade dos sujeitos como uma
necessidade para a formação geral escolar. (PASSOS, 2007, p. 63)

Diante disso, vimos que o Ensino Religioso, na teoria, não tem o seu modelo
curricular influenciado por nenhuma religião, mas infelizmente não é o que acontece nas
escolas. Para que haja uma transformação, é necessária uma formação inicial que seja
sólida e contínua para os professores, para que estejam sempre atualizados diante das
mudanças sociais. O Ensino religioso, nessa perspectiva, é importante e contribui para a
formação plena do aluno com o intuito de capacitar os professores, para que possam atuar
de forma que contemplem todas as manifestações religiosas por meio do conteúdo,
legitimando a autonomia do ensino religioso que abandonou seu caráter confessional.
Nesse sentido, é preciso considerar os saberes e construção de concepção de
religião que os profissionais dessa área devem ter, esse cerne de vivência ao longo da sua
história de vida, provocando uma reflexão sobre o contexto das relações sociais. E
possibilitar uma educação que abarque as dimensões e necessidades de uma sociedade,
no qual a laicidade faz parte do nosso cotidiano, entretendo a questão de um estado laico
para o Ensino Religioso é um grande desafio, devido às várias contradições encontradas
em um Brasil que se diz ser laico, mas tem resquícios de uma nação confessionalista.
Diante do exposto, a pesquisa a qual apresentamos aqui apesar de estar em
andamento podemos concluir a respeito os impactos desse nosso estudo, podemos elencar
que, devido às novas políticas educacionais como Plano Nacional de Educação, as
Diretrizes Curriculares Nacionais, e, contudo devido a retirada do Ensino Religioso
enquanto componente curricular na última versão da Base Nacional Comum Curricular
os cursos de graduações e os programas de pós–graduação devem voltar seu olhar para a
educação básica quando nos referimos ao Ensino Religioso.
Tal problemática justifica-se diante das escolas públicas aparentam não terem sido
configuradas para levar em consideração a diversidade cultural e religiosa, acreditamos
que podemos provocar uma discussão que leve os sujeitos da escola a compreender que
os processos de exclusão e desigualdades passam pelas modificações dos padrões gerais
de funcionamento do espaço educacional.
Nossa pretensão é, portanto, não se limitar e nem finalizar nesse estudo as
discussões do Ensino Religioso e o currículo escolar, apontamos alguns sinais de como
poderemos pensar melhor esse ensino em uma perspectiva de respeito à diversidade
cultural religiosa por meio do currículo escolar. Acreditamos, portanto, que é importante
esse ensino estar em constantes discussões no cenário político nacional e regional, pois
muito se tem a avançar tanto nas legislações e principalmente nas práticas teóricas,
metodológicas e pedagógicas que o envolve.

REFERÊNCIAS

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Histórica e um Componente Curricular Brasileiro: ensino religioso. Disponível em:
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2009, p.37-54.
A FORMAÇÃO DE DOCENTES AO ENSINO RELIGIOSO E A
INSEGURANÇA PEDAGÓGICA NO ENSINO CONFESSIONAL

Andréia Rodrigues da Silva Nunes


IESP-PB11

RESUMO:
Um dos maiores desafios da educação é ensinar o aluno a conviver, ou viver com o outro,
aprender a ser tolerante, conhecer e respeitar as diferenças. Diante da insegurança pedagógica
provocada pela aprovação do ensino confessional no plenário do Supremo Tribunal Federal,
analisaremos criticamente a formação de professores para o ensino religioso nas escolas;
apresentando uma proposta de educação que promova e assegure o pleno exercício da
cidadania, que lhes proporcione uma convivência solidária e respeitosa com toda comunidade
escolar, onde a diversidade cultural se manifeste na pluralidade de identidades que
caracterizam os grupos e as sociedades. A metodologia aplicada será uma investigação
exploratória de caráter analítico qualitativo, por meio da pesquisa bibliográfica em livros e
sites.

PALAVRAS-CHAVE: ensino religioso; ensino confessional; diversidade cultural.

ABSTRACT: One of the greatest challenges of education is to teach the student to live with,
or to live with the other, learn to be tolerant, know and respect the differences. In view of the
pedagogical insecurity caused by the adoption of denominational teaching in the plenary of
the Federal Supreme Court, we will critically analyze the teachers training for religious
teaching in schools; presenting a proposal of education that promotes and ensures the full
exercise of citizenship, which provides them with a solidary and respectful coexistence with
the entire school community, where cultural diversity manifests itself in the plurality of
identities that characterize groups and societies. The applied methodology will be an
exploratory investigation of qualitative analytical character though the bibliographical
research in books and websites.

Keys words: religious education; confessional teaching; cultural diversity

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe a uma reflexão sobre uma educação que gere
desenvolvimento de habilidades que assegurem a produtividade do cidadão para atuar
com valores que lhe proporcione uma convivência solidária na sociedade e como as

11
Graduada em Pedagogia (FAFI), pós-graduada em Psicopedagogia Institucional (URCAMP), pós-
graduada em Supervisão e Orientação Educacional (CINTEP), cursando especialização em Ciências das
Religiões, Diversidade e Ensino Religioso (IESP). andreiarsnunes@gmail.com
políticas educacionais podem contribuir para a solidariedade e a tolerância em toda a
comunidade escolar e grupos sociais, culturais, religiosos e étnicos, onde a diversidade
cultural se manifeste na pluralidade de identidades que caracterizem os grupos e as
sociedades que compõem a humanidade. Para tanto, como metodologia aplicada fazemos
uso da pesquisa bibliográfica, com consulta em livros, sites e resenhas; por tratar-se de
uma investigação exploratória e de caráter analítico qualitativo.
O ensino religioso exige que o professor dialogue com as diferenças, que saiba
conviver com as diferenças e que esteja aberto ao diálogo, respeitando a pluralidade
cultural presente nas escolas. É essencial que ocorra diálogo entre os sujeitos envolvidos
no processo educacional, escola, família, alunos, professores e outros profissionais da
educação.
Nas escolas brasileiras, espera-se um ensino religioso laico na diversidade cultural
religiosa. A escola procura ser lugar de promoção de diálogo e respeito, desenvolvendo
aprendizagens críticas dos conhecimentos espirituais da humanidade. Não ensinando
religião ou religiões, mas levando o aluno a comparar criticamente e interpretar os fatos,
também religiosos e seus contextos históricos. Religião não se ensina na escola, ensina-
se a refletir o fenômeno humano. Todos têm direito ao esclarecimento das crenças.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1. O Ensino Religioso na Escola Pública e as Leis Brasileiras

Em 1549, chegam ao Brasil seis jesuítas liderados por Manoel da Nóbrega trazidos
pelo governador geral Tomé de Souza. Funda-se, em Salvador, a primeira escola pública
brasileira, o colégio Companhia de Jesus. Inicialmente, a instituição era destinada aos
indígenas, mas os colonos reivindicaram a escola para seus filhos, passando a ser a escola
exclusiva para eles.
Os jesuítas são expulsos de Portugal em 1759, e a escola pública passa a ser
conduzida por outros setores da Igreja Católica. Com a primeira Constituição Federal em
1824 (Constituição Política do Império do Brazil), a religião do império continua sendo
a Católica Apostólica Romana.
A segunda fase da história do Brasil é marcada pela separação do Estado e
Religião. Em 1890, o presidente Manoel Deodoro da Fonseca consagra a plena liberdade
de cultos. E em 1891, fica estabelecido que todas as religiões podem praticar seus cultos
e suas crenças livremente, e que o ensino ministrado nas escolas públicas seria laico. De
acordo com Holmes (2015, p. 37),

A interculturalidade crítica aponta, pois, para um projeto necessariamente


decolonial. Pretende entender e enfrentar a matriz colonial do poder, que
articulou historicamente a ideia de “raça" como instrumento de classificação e
controle social com o desenvolvimento do capitalismo mundial (moderno,
colonial, eurocêntrico), que se iniciou como parte da constituição histórica da
América.

O Decreto de Getúlio Vargas (1931) estabelece que o ensino religioso seria


facultativo e ministrado de acordo com a confissão religiosa manifestada pelos pais e
responsáveis do aluno. A Constituição de 18 de setembro de 1946 diz: "O ensino religioso
constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será
ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for
capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável."

A primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB 4024/61) propõe em seu artigo 97:

"O ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é de
matrícula facultativa, e será ministrado sem ônus para os poderes públicos, de
acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz,
ou pelo seu representante legal ou responsável. § 1º A formação de classe para
o ensino religioso independe de número mínimo de alunos. § 2º O registro dos
professores de ensino religioso será realizado perante a autoridade religiosa
respectiva."

Na segunda LDB (5692/71) consta:

"Art. 7º Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação


Física, Educação Artística e Programas de Saúde nos currículos plenos dos
estabelecimentos de lº e 2º graus, observado quanto à primeira o disposto no
Decreto-Lei n. 369, de 12 de setembro de 1969.

Parágrafo único. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá


disciplina dos horários normais dos estabelecimentos oficiais de 1º e 2º graus".

A Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394/96), de dezembro de 1996, definia:

"O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários


normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem
ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos
alunos ou por seus responsáveis”.
Somente em julho de 1997, quando passou a vigorar uma nova redação do artigo
33 da LDB 9394/96, assegurando o respeito à diversidade e vedando o proselitismo:

"O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação


básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas
públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural
religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo".

Com a aprovação pelo Congresso Nacional do Acordo Brasil-Santa Sé, assinado


pelo Executivo em novembro de 2008, o acordo cria novo dispositivo, discordante da
LDB no Artigo 11 em vigor.

"A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade


religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita
a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa. §1º.
O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula
facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de
ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do
Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem
qualquer forma de discriminação".

Em 27 de setembro de 2017, após quatro sessões de intenso debate, o plenário do


Supremo Tribunal Federal declarou constitucional, o ensino religioso confessional na
rede pública de ensino brasileira. A ministra Cármen Lúcia afirmou que a facultatividade
da matrícula evita qualquer constrangimento aos alunos que não professarem a religião
predominante. “A laicidade do Estado está respeitada e não vejo contrariedade que me
leve a declarar inconstitucional as normas questionadas. A lei questionada não autoriza
proselitismo, catequismo ou imposição de uma religião específica”.
A LDB determina que o ensino religioso nas escolas públicas deve ser oferecido
em caráter optativo. Cabe a cada rede de ensino (estadual ou municipal) a definição dos
conteúdos e os critérios para admissão dos professores. Cada sistema de ensino organiza
o oferecimento do ensino religioso na sua grade horária. Alguns estados fazem parcerias
com igrejas e instituições religiosas para admissão de professores. Outros estados
admitem professores não confessionais, sem serem necessariamente representantes de
alguma religião, optando pelo ensino religioso não confessional.
Espera-se um ensino religioso laico na diversidade cultural religiosa nas escolas
brasileiras. A escola como lugar de promoção de diálogo e respeito, desenvolvendo
aprendizagens críticas dos conhecimentos espirituais da humanidade.
2. Sociedade Pluralista e o Ensino Religioso

Vivemos em uma sociedade plural composta por indivíduos que se diferenciam


entre si, mas se assemelham em essência; nesse contexto é normal que haja diferenças na
convivência do cotidiano escolar. Uma sociedade pluralista é aquela em que convivem
pessoas que têm interesses contrários, mas que reflete a noção de justiça de um povo, e
garante os direitos fundamentais do indivíduo e da coletividade.
Ainda hoje é tema de permanente discussão o racismo no Brasil, étnico ou social,
contra o índio, o negro, o pobre. É lamentável que ainda no século XXI a sociedade
brasileira ainda apresente momentos de desrespeito e intolerância. A laicidade no Estado
brasileiro garante a igualdade de direitos e de conhecimento das diversas possibilidades
de espiritualidade permitindo a todos suas crenças e práticas religiosas. É uma conquista
de uma sociedade que buscou separar-se do poder teológico e político tradicional.
Busca-se na educação brasileira a neutralidade confessional do Estado e um
tratamento igualitário entre todos os agentes envolvidos na comunidade escolar, onde as
diferenças não são negadas, mas respeitadas. O ensino religioso propõe fornecer ao aluno
meios de optar por uma orientação religiosa, motivada por um desejo consciente e
voluntário.
A pluralidade cultural do mundo em que vivemos e que se manifesta de forma
impetuosa em todos os espaços sociais, inclusive nas escolas e salas de aula,
frequentemente, gera conflitos enfrentados pelos educadores. Por outro lado, essa
pluralidade promove o enriquecimento das ações pedagógicas, tirando os profissionais
da educação da zona de conforto, fazendo-os refletir e buscar estratégias para lidar com
esse desafio.
A escola caminha sempre em direção ao combate à intolerância, através do “com-
viver”, ou viver com o outro. DELORS (1998), ao propor os “Quatro Pilares da Educação
para o século XXI”, fala de “aprender a viver junto” ou “o com-viver”. Aprender a
conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser são um dos maiores
desafios da educação, segundo o autor.
A convivência humana vem carregada de diversos interesses e necessidades
individuais, que são em potencial geradores de conflitos que podem levar ao
rompimento das relações interpessoais e à violência na escola. A escola também tem a
função de formar valores morais e competências para uma convivência saudável entre
os envolvidos no processo escolar. Podemos utilizar brincadeiras, jogos, atividades
esportivas, entre outras estratégias como meio para a formação social e afetiva do aluno.
Segundo Holmes (2016, p. 85),

Em sua atuação concepção, o ER deve promover a reflexão, a partir do


contexto social dos educandos, visando educar para o diálogo, para o
exercício da alteridade e para a construção de atitudes que conduzam para
um novo caminho, em que os valores positivos possam permear no seio da
comunidade estudantil e na sociedade.

Restaurar os laços dentro da escola e construir a mediação é o caminho a ser


trilhado pelo professor de ensino religioso, procurando deixar fora do ambiente escolar
questões indesejáveis que podem surgir como: violências verbais ou físicas, atitudes
discriminatórias e preconceituosas, bullying, conflitos de interesses, falta de consenso,
práticas de injustiça, entre outras. O princípio da tolerância e do respeito às liberdades
individuais entre as diversas manifestações religiosas que compõem a diversidade étnica
e cultural da nação brasileira, aponta os princípios para a formação cidadã do aluno.

3. Perfil do Professor de Ensino Religioso

O ensino religioso exige que o professor dialogue e saiba conviver com as


diferenças e que esteja aberto ao diálogo, respeitando a pluralidade cultural presente nas
escolas. É essencial que ocorra diálogo entre os sujeitos envolvidos no processo
educacional, escola, família, alunos, professores e outros profissionais da educação.
A melhoria da formação dos professores do Ensino Religioso deve apontar no
sentido de uma educação para a tolerância, para a não-violência, para o aprender a ser e
o aprender a viver juntos. As instituições formadoras de educação inicial e continuada
desses professores não podem se furtar das discussões relativas aos temas pertinentes ao
exercício da função de professor do ensino religioso: laicidade, respeito, tolerância,
pluralidade, diversidade, questões morais, filosóficas e religiosas.
Independente da opção ou posicionamento religioso de cada professor ou aluno,
o Ensino Religioso deve ser pensado como área de conhecimento, como disciplina
curricular, tendo o fenômeno religioso nas suas diferentes manifestações como objeto de
estudo, e não crenças individuais, procurando evitar qualquer forma de proselitismo
religioso em sala de aula. Dessa forma, o Ensino Religioso trilha por um bom
planejamento, estudo crítico e consciente dos fatos religiosos, discutindo questões
referentes à diversidade cultural e desigualdades, conectando saber, identidade e poder,
levando em conta o contexto sociocultural dos alunos e o ambiente institucional,
conforme afirmam os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) Brasil (1998, p. 86)

Sabe-se que cada escola tem identidade própria. Essa identidade é constituída
por uma trama de circunstancias em que se cruzam diferentes fatores. Cada
escola tem uma cultura própria permeada por valores, expectativas, costumes,
tradições, condições, historicamente construídos, a partir de contribuições
individuais e coletivas. No interior de cada escola, realidades econômicas,
sociais e características culturais estão presentes e lhe conferem uma
identidade absolutamente peculiar.

São grandes os desafios do professor de ensino religioso, no entanto espera-se que


esse profissional estimule a participação e o diálogo, levantando discussões interessantes
aos alunos e criando sempre um clima democrático no ambiente escolar. Espera-se do
educador de Ensino Religioso que esteja disponível ao diálogo, articulando questões
suscitadas no processo de aprendizagem do educando, escutando e facilitando o diálogo,
mediando conflitos e unindo escola e comunidade.
O educador deve levar em consideração que família e comunidade religiosa são
espaços privilegiados para a vivência religiosa e para a opção da fé. Assim, o educador
coloca seu conhecimento e sua experiência pessoal a serviço da liberdade do educando.

METODOLOGIA

O estudo desse artigo pretende abordar a forma de atuação do professor de ensino


religioso nas escolas brasileiras nos dias atuais, e suas contribuições para a redefinição
dos fundamentos epistemológicos e pedagógicos do ensino religioso. Espera-se do
professor de Ensino Religioso diálogo e convivência com as diferenças, servindo de
espelho para os alunos e respeitando todos os tipos de diversidade presentes na escola.
A metodologia aplicada será uma investigação exploratória de caráter analítico
qualitativo, por meio da pesquisa bibliográfica em livros e sites.
Analisando as informações obtidas na pesquisa bibliográfica, percebe-se a
necessidade de se avançar com o ensino religioso no Brasil, promovendo um ensino
democrático, republicano e laico, e que a escola seja um lugar de promoção de diálogo e
respeito. Laicidade e tolerância devem estar sempre juntas no cotidiano escolar. Segundo
a autora Holmes (2016, p. 49),

Podemos respeitar a posição de cada religião, porém isso não quer dizer que
devamos concordar com os seus dogmas, mas tratá-las de maneira coerente
para que possamos compreendê-la e reconhecê-la dentro de suas diferenças e
daí a compreensão do outro a partir da tolerância, respeito e diálogo. A paz no
mundo só se construirá quando houver esse entendimento entre as pessoas e as
tradições religiosas, sendo essa uma busca do próprio ER.

O meio mais eficaz para se combater a intolerância religiosa é a educação. Um


dos maiores desafios da educação é ensinar o aluno a conviver, ou viver com o outro,
aprender a ser tolerante, conhecer e respeitar as diferenças. A escola tem o papel de
combater à intolerância, através do “com- viver”, ou viver com o outro. DELORS (1998),
ao propor os “Quatro Pilares da Educação para o século XXI”, fala de “aprender a viver
junto” ou “o com-viver”. Aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos
e aprender a ser são um dos maiores desafios da educação, segundo o autor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos que a melhoria da educação brasileira no que se refere ao ensino


religioso passa principalmente pelo diálogo entre os elementos que envolvem a
comunidade escolar, família, aluno, professor e demais profissionais da educação.
Não podemos compreender a história da humanidade sem procurar conhecer os
fatos religiosos que a caracterizam. As tradições religiosas estão intrinsecamente ligadas
a história da humanidade, conceituando cultura. O fenômeno religioso favorece o
desenvolvimento de um espírito crítico, que permite ao homem discutir e conceber
fenômenos da atualidade que fazem parte do seu cotidiano. Mas para se compreender os
fatos religiosos, é preciso compreender três princípios do Estado de Direito: a liberdade
de consciência, da igualdade e do bem comum.
As Ciências das Religiões parte de uma perspectiva teórico-científica bem
definida. Os alunos não recebem aula de Religião, porque parte-se do pressuposto que
não se ensina religião. Prática religiosa é experiência a ser transmitida pelas famílias dos
alunos. As Ciências das Religiões relacionam-se com uma área do conhecimento que
possui objeto próprio de investigação, que é o fenômeno religioso em todas as suas
manifestações e tradições religiosas e seus impactos na organização dos diferentes grupos
sociais. Holmes (2016, p. 54) afirma que,

É preciso interpenetrar a teoria e a prática. Todavia, em cada cultura estudada


em sala de aula, com todas as suas diferenças e a complexidade do tema,
existem várias possibilidades de se compreender melhor sobre o fenômeno
religioso e uma delas é o diálogo inter-religioso. Isto é de fundamental
importância para o ER, porque é através dele que se dá o respeito às diferenças
e a possibilidade e exercício da boa convivência.

O perigo das aulas confessionais estará na reprodução de ideias ou opiniões


equivocadas, pouco estudadas, sem embasamento, que podem gerar preconceitos e
discriminações. A divisão de turmas para o ensino confessional pode fomentar disputa ou
intolerância, e o objetivo do ensino religioso é, justamente o contrário, incentivar a
tolerância. A escola é um espaço de conhecimento científico, de momentos de reflexão,
de argumentação, de saber lidar com o pensamento divergente e de respeito pela crença
do outro.
Em tempos de tanta intolerância religiosa no país afora, separar crianças e jovens
por conta da sua crença ou não-crença é lamentável. Joga-se fora uma grande
oportunidade de fomentar o exercício do diálogo, da escuta e do convívio com a
alteridade, porque o convívio com a diferença é que produz o respeito e a tolerância de
que tanto necessitamos na sociedade brasileira.
Ensino Religioso escolar na perspectiva não confessional, com professores
licenciados ou especialistas em Ciências das Religiões, não faz proselitismo, nem
doutrinação e tampouco é incompatível com a laicidade do Estado. No atual contexto de
fundamentalismo religioso que vivemos no Brasil, não parece acertado que um aluno
passe pela escola sem que tenha aprendido alguns conceitos como religiosidade, sagrado,
fé, transcendência e outros correlacionados. Mas que ao final da educação básica, nossos
alunos conheçam noções das principais religiões no Brasil e do mundo, para que caminhe
para o respeito.
O diálogo é um componente importante nesse processo, levando o aluno a
compreender que a diversidade religiosa é uma riqueza, num país como o Brasil, e
favorecendo-o aprofundar a sua busca pelo sentido da vida. Espera-se do educador de
Ensino Religioso que esteja disponível ao diálogo, articulando questões suscitadas no
processo de aprendizagem do educando, escutando e facilitando o diálogo, mediando
conflitos e unindo escola e comunidade
REFERÊNCIAS

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BRASIL, Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Dispõe sobre Diretrizes e Bases da


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GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é Ciência da Religião? São Paulo: Paulinas, 2005.

GUALBERTO, Marcio Alexandre M. Disponível em


http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/11/Mapa-da-
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HOLMES, Maria José Torres. Ensino Religioso: esperanças e desafios – reflexões da


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Temas Sobre a Instrução no Brasil Imperial (1822-1889) - Volume II / Jean Carlo de


Carvalho, Mauricéia Ananias, Rose Mary de Souza Araújo (orgs.). João Pessoa: Marca
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Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Religioso/ Fórum Nacional Permanente
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As Leis Brasileiras e o Ensino Religioso na Escola Pública Disponível em


https://gestaoescolar.org.br/conteudo/728/as-leis-brasileiras-e-o-ensino-religioso-na-
escola-publica . Gestão Escolar 2009. Acesso em 10/08/2018
A FORMAÇÃO SOCIAL DOS BACAMAERTEIROS DE
CACHOEIRINHA: CONTRIBUIÇÃO DA SUA EXPERIÊNCIA
RELIGIOSA

Adenilton Moises da Silva12


Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
Universidade Católica de Pernambuco/Recife/PE
adenilton.silva80@gmail.com

Wellington Silva de Andrade13


Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
Universidade Católica de Pernambuco/Recife/PE
wellingtonandrade@yahoo.com.br

RESUMO
Este trabalho se propõe a apresentar as experiências religiosas popular do Grupo dos
Bacamarteiros, situado na zona rural da cidade de Cachoeirinha, Agreste de Pernambuco.
O Batalhão 16, assim denominado o grupo, é uma expressão cultural que participa
animando os festejos juninos, as procissões religiosas e as celebrações dos padroeiros na
zona rural. Com base nos traços da religiosidade popular, analisaremos a questão do
processo formativo do grupo, isto é, sua origem, seus membros, suas tradições, que
englobam os traços característicos culturais e religiosos, tais como: as danças típicas, as
rezas, os cantos e as roupas, numa performance ritualística que expressa a sensibilidade
religiosa e a resistência cultural destes Bacamarteiros. Através dessas manifestações,
investigaremos como constroem uma identidade social organizada, que se reflete nos
próprios festejos, inserindo crianças, jovens, adultos e idosos de ambos os sexos. Suas
celebrações realizadas num estilo local e identitário, utilizando-se de cantos e rezas,
reverências e tiros ajudam na manutenção da experiência coletiva.

PALAVRAS-CHAVE: Bacamarteiro; Religiosidade; Cultura; Celebração.

1- Trajetória Histórica dos Bacamarteiros de Cachoeirinha

Esse movimento cultural está situado nos sítios Jucazinho e Jupi na zona rural de
Cachoeirinha – PE, a 06 km de distância da cidade. Acontecia nessas localidades,

12
Licenciado em Filosofia pelo INSAF – Instituto Salesiano de Filosofia em Recife; graduação em Teologia
pelo Instituto de Teologia de Caruaru – PE; mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião pela Universidade Católica de Pernambuco.
13
Graduado em Ciências com Habilitação em Matemática – FAMASUL – Faculdade de Formação de
Professores da Mata Sul; Pós-Graduação em Matemática Comercial e Financeira – UFRPE – Universidade
Federal Rural de Pernambuco; mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela
Universidade Católica de Pernambuco.
principalmente, nas festas juninas de São João e São Pedro, os moradores se reuniam para
contar causos e comer iguarias de milhos colhidos nesses períodos, e por meio desses
fatos agradeciam as farturas dos celeiros e as bênçãos das chuvas que Deus lhes dava.
Havia poucas casas e situavam-se relativamente distantes da realidade atual desses
sítios. As chuvas eram mais intensas nesse período do ano. O acesso à vila de
Cachoeirinha requeria dificuldades de transportes. O contato com os meios de
comunicação era quase inexistente, restava-lhes a criatividade de produzirem alguns
artefatos capazes de suprir essas carências. A distração tornou-se uma necessidade
primária, devido às fadigas dos trabalhos exigidos pelas plantações e árduos serviços
braçais. Uma das principais iniciativas dos moradores foi incrementar nos festejos juninos
os tiros de pólvoras e as danças nos terreiros de algumas casas.
Os principais festejos, comumente, ocorriam na casa do casal André Avelino da
Rocha e Serafina Padilha Freitas, no sítio Jucazinho próximo ao açude municipal 14. A
casa era um ponto de referência social, visto não ter na localidade outro espaço para os
encontros comunitários. Na falta de um templo religioso, a residência do casal substituía
e assumia a importância do espaço sagrado, todavia, essa realidade era assumida apenas
nos meses de maio e junho por ocasião das noites dedicadas à Virgem Maria e aos santos,
Senhor São João e Senhor São Pedro.
Também havia celebrações juninas na comunidade rural de Jupi, sobretudo, na casa
de José Severino da Cruz (Seu Bader) e sua esposa Terezinha. Ambos residiam onde hoje
funciona o grupo escolar Baronesa do Amaraji – nessa escola, atualmente, estuda parte
dos filhos dos Bacamarteiros. Foram as relações entre esses dois casais que fortaleceram
e produziram o desenvolvimento dessa cultura nas duas comunidades. Favorecendo a
participação de muitas pessoas e criando um compromisso de continuidade, visto que, em
Cachoeirinha, fora uma produção originada pela população local, embora, depois venha
a ganhar novos aperfeiçoamentos e padronizando-se de forma mais organizacional.

14
Por ser uma construção feita por esse senhor acabou ficando conhecido com “Açude dos Andrés”. Hoje,
pertence ao município e abastece a população do sítio Jucazinho e outras localidades próximas. André
Avelino e seus filhos, José Quirino, João André, Damião Quirino, Manoel André, Delfim Quirino, Antônio
Quirino, Josefa Avelina, Felícia Avelina e Francisca Avelina, cuidaram do açude por duas gerações. Mas
em 1969, aos 84 anos de idade falece Joaquim Quirino da Rocha, neto de André Avelino, dando fim ao
ciclo de gerações que preservaram familiarmente o reservatório de água. Dado esse fato, na década de 1980,
os moradores solicitaram à Prefeitura de Municipal uma ampliação e reforma para um maior
aproveitamento das águas. As reivindicações foram atendidas, sobretudo, tendo em vista as necessidades
causadas pelas secas no agreste-meridional de Pernambuco.
Em meados do século XIX os vizinhos das redondezas se reuniam nas casas desses
casais para festejarem os santos juninos com alegria, devoção e fé. Alegre porque tinha
os inícios das primeiras colheitas feitas a partir do dia 19 de março, dia de São José,
esposo da Virgem Maria15. Fé porque acreditavam que essa fartura era graça de Deus em
suas vidas. Devotos aos santos festejados pela aproximação humana e afetiva com que os
santos católicos se revelavam na cotidianidade de suas realidades existenciais:

O catolicismo rural... contém... uma mística da natureza em que o homem se


vê numa dependência incondicional em face das forças do cosmo, vividas
como manifestações de piedade que se externam sob os símbolos do
catolicismo em ciclos condicionados pelas estações do ano e datas da vida:
festas dos santos padroeiros, dias de festa que voltam no ciclo do ano (como
Sexta-feira Santa e sua procissão de Jesus morto, ornado festivamente). A ação
festiva é narrativa: é a comemoração repetida do santo que tem feições heróicas
e transformadoras. Na festa, a consciência mágica torna-se mítica. A história
dolorosa da própria vida quase não recebe atenção: gente pobre tem santos
ricos. As festas religiosas são também pontos culminantes da vida social e as
tradições religiosas são funcionais para a conservação do estado presente
(HIGUET, 1984, p. 24).

Diante desse contexto, a comunidade tem uma especial devoção a São José 16,
dando início ao ciclo das plantações das lavouras e protetor das famílias do campo,
sobretudo, porque cria a expectativa da proximidade das grandes festas juninas que os
Bacamarteiros mais celebram. Planta-se a esperança de um ano farto para as famílias
nordestinas. Esperam colher seus frutos da terra justamente no mês junino, período das
grandes festas preparadas com comidas típicas, danças, fogueiras, fogos e balões,
sobretudo, pelas reuniões familiares em torno das mesas cheias de iguarias de milho e
mandioca. Essa experiência de preparação das festas e da devoção dos santos fica clara
na fala da porta-bandeira do grupo:

Minha madrinha Leotorda (esposa de Abílio) fazia bolos de milho, matava


galinha. A gente, eu e minhas primas, enfeitávamos o terreiro com
bandeirinhas. Tio Abílio comprava fogos de artifícios e ficávamos esperando.
Por volta das 09 horas da manhã eles chegavam, atiravam no caminho em um
serrote que tem, para avisar que iam chegando. Nós íamos encontrar. Quando

15
Essas informações foram ditas pelo Jairo Calado membro responsável pela nova formação do grupo dos
Bacamarteiros.
16
Ressaltamos que a principal devoção aos santos católicos do grupo está direcionada a São João. No
estandarte dos Bacamarteiros é a figura desse que prevalece com maior vigor. A festa normalmente é
celebrada por grande parte dos nordestinos na véspera do dia 24 de junho, contudo, os atiradores optam
pelo dia da natividade de São João Batista. O grupo se reconhece como o santo, portador e anunciador de
Cristo nos dias atuais. Levam aos moradores à alegria da vinda do Cordeiro e anuncia a remissão dos
pecados e a alegria por serem perdoados e abençoados pelas farturas do campo.
chegavam a casa, madrinha e tio iam recebê-los na porteira. Eles entravam
cantando, atiravam, dançavam ao som da viola, do bumbo e do reco-reco,
almoçavam e à tardinha iam embora. Nós ficávamos com muita saudade, mas
à noite íamos todos para o cruzeiro onde era rezado o terço de São José (Maria
Carlinda da Silva).

Por terem tal prática de vida, os primórdios dos Bacamarteiros buscavam dá


importância às rezas do terço, das novenas e a realização das procissões, tudo isso com
pouco discurso teológico, mas perpassado por inúmeras cantigas religiosas. Essas
celebrações inseriam a todos. O povo local era o protagonista das rezas, uma vez que o
catolicismo era popular e não havia presença de representante do catolicismo sacramental,
dogmático. Rezava-se pelas famílias e nas famílias. Os pedidos eram feitos por todos e
por suas necessidades de seres humanos ligados as coisas campestres. Todo esse jeito de
rezar envolvia um modo próprio que corresponde às expectativas da comunidade local.
Por meio disso, foram capazes de produzir uma maneira de reza aguçada pela
corporeidade:

O corpo permite a comunicação. Mesmo com todos os aparelhos e técnicas


modernas, a base de nosso contato será sempre o corpo que usa esses
instrumentos. Nada poderá substituir o contato direto dos corpos. Cada cultura
tem o seu sistema de símbolos, de palavras ou de gestos simbólicos que
permitem a comunicação. A língua é o fundamental, mas há todo um
vocabulário feito de gestos do corpo – por meio dos olhos, da boca, das mãos,
dos pés (COMBLIN, 2007, p. 91).

O corpo é o grande instrumento de oração. Mecanismo de contato com a


divindade.

2 – Os festejos

Nesse momento os primeiros participantes17 eram habituados a ver as festas


juninas sendo animadas pelos tiros das ronqueiras – um instrumento de ferro carregado
com pólvora e pendurado por um arame para ser balançado e jogado contra a parede ou
pedras com a finalidade de provocar um enorme estrondo, semelhante a tiros muito fortes.
Ainda usavam uma espécie de arma artesanal produzida pelos moradores locais,
denominada de cano solto – artefato de ferro utilizado para fazer disparos maiores do que
as ronqueiras. Enchia-se esse cano com pólvora sobre a calçada para ser, em seguida,

17
Segundo o testemunho de Damião Quirino da Rocha, os três primeiros bacamarteiros a aderirem a
brincadeira foram: José Pedro, João Ferreira Calado (João André) e Manoel Batista (Mané Ligeiro).
acesso com uma brasa que era tirada das fogueiras juninas18 com o intuito de provocar
um grande tiro, dizem ser tão forte, que chegava a apagar os candeeiros da casa e do
alpendre.
André Avelino possuía uma dessas armas de tiro artesanal, mas também, uma de
cano grosso e curto, a qual ele nomeou de “nossa menina”. Afirma-se que esse artefato
bélico de cano grosso e curto foi utilizado na Guerra do Paraguai (1864-1870) em meados
do século XIX19. Com efeito, de maneira desconhecida por seus parentes, esta arma veio
para nas mãos dele. Tal posse da arma gerou o resultado do que hoje se denomina
Bacamarteiros do Batalhão XVI. A partir desse único objeto e das experiências praticadas
com as ronqueiras e com as de cano solto começou um processo de aquisição de armas
mais sofisticadas, possibilitando mais adesão e visibilidade das brincadeiras por parte dos
indivíduos.
Entre os relatos dos Bacamarteiros destacam-se as condições sociais e econômicas
das pessoas que compunham as comunidades de Jupi e Salgadinho. Dizem serem todos
cidadãos pacatos, trabalhadores agricultores, pecuaristas e artesãos. Produziam, em
especial, botas, gibão e outros utensílios de montarias, como selas e arreios. As mulheres
se ocupavam do trabalho doméstico e da produção de rendas. Desse modo, contribuíram
de forma direta para a manutenção da economia e do desenvolvimento cultural da cidade
de Cachoeirinha. Esse jeito de ser possibilitou o auto-sustento da comunidade como ainda
na preservação futura do conhecimento comunitário e a salvaguardar o artesanato local
do coro e do aço.
Esses festejos por volta do ano de 1942 foram organizando o primeiro grupo de
Bacamarteiros. Até então o modo com participavam eram muito aleatório, visto que se
reuniam apenas nas festas juninas ou no mês de maio. Por volta da década de 40 tentam
sistematizar a maneira como deveria manter a unidade e a continuidade dos atiradores ao

18
O fogo para acender essas armas só podia ser tirado das fogueiras juninas porque as mesmas eram
dedicadas ao santo do dia. Proibia-se usar fósforos ou outros utensílios que produzissem calor para a
combustão. Pois na compreensão desses indivíduos o fogo era santificado pelo santo devocional, o qual
exigia que todas as oferendas a ele apresentadas deviam ser purificadas. Mais ainda, os tiros não eram para
matar ou assustar as pessoas, mas para celebrarem – semelhantes a gritos humanos que querem despertar
as divindades, chamando a atenção para as necessidades humanas – a presença do divino no meio do povo.
19
Existem inúmeras especulações em torno da origem da existência dos Bacamarteiros. Impõem-se com
mais relevância, a versão de que a brincadeira teve início com as comemorações dos que voltaram da Guerra
do Paraguai. Com relação à arma a hipótese mais comum é a versão original que vem do Clavinote holandês
do séc. XVII ou na Granadeira do Sistema Mineé francês, do meado do século XIX. A arma é citada na
obra Os Sertões, por Euclides da Cunha, como parte do arsenal bélico dos “fanáticos” na histórica e altiva
Canudos do beato Antônio Conselheiro. Pesquisa realizada no dia 12/04/2011.
www.bacamarteirosdepernambuco.blogspot.com.
longo de todo o ano, afim de, permanecer a tradição nas próximas gerações. Este
movimento individual e familiar poder ser compreendido como sujeitos sociais que se
situam numa:

Sociedade que os humilha e os oprime, e deste modo, eles reconstituem um


pequeno mundo que lhe é próprio. Nesse pequeno mundo eles encontram
identidade. Podem ter seus terreiros, escolas de samba, escolas de capoeira e,
em certas regiões, irmandades. Ali podem se reis ou rainhas. Estão longe da
outra sociedade em que não são nada. Ali podem “viver” (...) Porém, esses não
deixam de ser paliativos que não compensam a rejeição pela sociedade global
e pelas elites dominantes. Quem se beneficia dessa compensação não pode
ignorar ou deixar de sentir a presença de uma sociedade que o rejeita e o reduz
à nulidade (COMBLIN, 2007, p. 56).

Desse modo, cria-se um mundo identitário com a finalidade de compensara


disparidade entre as realidades campestre e urbana. Sobretudo, buscam suprir a ausência
da instituição católica que deveria se nesse momento a grande vinculadora das relações
sociais desse contexto histórico. Se havia uma sensação de nulidade entre os membros
locais ocasionada pela mentalidade supersticiosa de uma modernidade ainda em fase de
construção, eles precisam da construção de um mundo simbólico permeado de
significados familiares e fertilmente sustentados por rezas, cantos, danças e tiros capazes
de responderem as carências comuns de suas existências. Desse modo, a imagem das
tradições inter-religiosas – catolicismo, indígena e afro – edificam a construção de um
templo sagrado para expressarem sua fé.
Tendo estruturado o primeiro grupo de atiradores, esses homens são convidados a
fazerem suas apresentações compostas de rezas, benditos, danças e tiros de bacamartes,
nas comunidades rurais próximas. Sua viagens eram executadas a pé, pois não tinham
condições de terem outro meio de transporte, senão, a caminhada, onde às vezes
enfrentavam as chuvas e lamas nas estradas, porém, para eles tudo revelava um
significado, eram perseverantes em cumprir um mandato sagrado. Funcionava como um
meio de purificação por meio dessas penitências que comportavam o sacrifício de
enfrentar chuva, poeira, longitude, cansaço e perigos noturnos.

Um fenômeno ligado à própria natureza do homem. Ele se sente um ser a


caminho. Sua própria vida é uma caminhada do nascimento para a morte, da
juventude para a velhice e, em sua aspiração mais profunda, uma passagem
desta vida efêmera para uma vida feliz após a morte. Por isso, sair de um lugar
para buscar outro é próprio do coração humano. O homem é o eterno peregrino,
o permanente “procurador” de Deus. Saímos de Deus e estamos em contínua
tendência para Aquele que é o nosso Princípio e o nosso Fim. É daí que o
caminhar adquire um sentido especial para o homem. Todos os povos têm seus
lugares de romaria. É, por assim dizer, o subconsciente universal que está à
procura de uma perfeição perdida: o paraíso perdido e a esperança de encontrá-
lo, o céu (BECKHAUSER, 2007, p. 22).

Os santuários que correspondiam aos Bacamarteiros eram as casas da região. Para


eles se dirigiam na perspectiva de estar em marcha de cumprimento do anúncio da Palavra
de Deus a seu modo. Contudo, não era permitido aos Bacamarteiros do Batalhão XVI em
dias de São João e São Pedro visitarem outras comunidades sem antes comparecerem à
casa do mestre do grupo. Permaneciam em suas localidades, pois nos dias sagrados as
celebrações já tinham lugares pré-estabelecidos a serem realizadas. Nessas duas datas que
fazem referência ao calendário católico, o grupo se reunia na residência do mestre
Damião. No terreiro da casa havia um cruzeiro de madeira e uma pequena capela dedicada
a senhor São João e São Pedro. No espaço entre a casa e o cruzeiro, todo o ambiente era
ornamentado como bandeirinhas coloridas e com palhas de coqueiros, de modo que,
faziam-se corredores com a finalidade dos atiradores traçarem todo o trajeto até chegar à
capela dançando, cantando e rezando todo o seu repertório religioso correspondente ao
mesmo de junho. Eles criam em torno desse terreiro uma liturgia própria onde não há uma
íntima ligação entre a casa de alpendre e a capela, entre a mesa da refeição e o altar da
igreja. Entre o espaço sagrado e o humano há um ponde de ligação que é o cruzeiro
fincado no pátio. É um intermediário entre a realidade terrestre e atemporal, entre o espaço
familiar e o espaço santificado. Onde a cruz reúne a vida horizontal e a vida vertical,
unindo dessa forma o humano ao divino.
Os encerramentos de cada celebração sempre aconteciam sempre em volta do
cruzeiro que ficava defronte à casa do mestre do grupo. O cruzeiro como espaço sagrado,
torna-se um lugar de oração, onde rezavam terços para fazerem pedidos por uma
excelente apresentação, como também ao término de cada folguedo voltavam para rezar
e agradecer os festejos que animaram com sua fé e danças. Todos os dias 24 e 28 de junho,
às 17:00 horas os componentes dos atiradores se dirigiam a residência para ouvirem os
repasses do mestre que se fundamentavam em orientações sobre o manuseio seguro da
arma e como se comportarem nas residências onde fossem recebidos.
Diante desse ritual simbólico, torna-se imprescindível a confecção de uma
vestimenta correspondente a significar a função identitário do grupo diante do sagrado e
do povo comum. A fim de realçar a tradição que havia em outros atiradores, esses
bacamartes de Cachoeirinha resolveram, na década de 1950, produzir seu primeiro
fardamento de cor azul, chapéu de palha com uma flor vermelha, fita e laço vermelhos,
simbolizando a continuidade da tradição regional do Agreste Pernambucano. Todo esse
ritual simbólico se iniciava no raiar do dia, conforme depoimento de um dos membros:

Às 04:00 horas da madrugada chegavam ao cruzeiro e faziam disputas dizendo


que o tiro maior iria acordar São João. Nesta brincadeira, acordavam os
vizinhos que, acostumados nem se importavam. Nesse momento acontecia um
fato curioso. Segundo Damião (Quirino) e os atiradores (alguns) viam um rosto
no Sol ao nascer, e julgavam ser o de São João, e mais, poderia o Sol estar
encoberto ou brilhante que eles não se encandeavam isto só acontecia no dia
24 (de junho) (Janaina Santos).

Dado esses fatos, as observações apontadas nesses trabalhos servem para nos
ajudar a perceber que há uma identidade cultural resiliente nas camadas sociais
desfavorecidas na sociedade contemporânea. Esse fato vem historicamente desde a
colonização do Brasil. Os negros, índios foram obrigados a silenciar suas crenças e
culturas a mando de uma compreensão eurocêntrica da realidade humana. A qual se serviu
do abuso do poder para impor seu modelo de sociedade, com efeito, tal imposição
desembocou-se numa multiculturalidade, porque teve suas bases sustentadas pelas
expressões de outros povos, possibilitando uma pluralidade cultural na formação da
sociedade brasileira.
A partir das histórias dos Bacamarteiros de Cachoeirinha, descobrimos que no
grupo existe uma estrutura organizacional construída internamente que favorece a
identidade social de cada membro. No contexto em que se encontram os componentes,
eles não fazem parte de uma massa social, pelo contrário, em suas expressões culturais e
religiosas tornam-se reconhecidas pelo nome e pela tradição familiar que pertencem.

BIBLIOGRAFIA

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www.bacamarteirosdepernambuco.blogspot.com (acessado em 12/04/2011).
A LEI 11.645/08 NAS ARTES E NA EDUCAÇÃO:
MANIFESTAÇÕES CULTURAIS INDÍGENAS E AFRO-
BRASILEIRAS

Clarissa Suzuki
(ECA/USP - clarissasuzuki@usp.br)20
Maria Pinheiro
(ECA/USP - maria.pinheiro@usp.br)21

RESUMO

O artigo aborda temas e questões relacionados à implementação da Lei 11.645/08, que


estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da história e das culturas afro-brasileiras e
indígenas em todos os níveis da Educação Básica, em especial no ensino de arte. Parte-se
do pressuposto de que a abordagem do ensino da história e das culturas indígenas e afro-
brasileiras, em uma perspectiva crítica, implica explorar outras epistemologias e,
portanto, outras pedagogias, que integram de forma dinâmica linguagens e áreas do
conhecimento diversificadas, como a dança, as visualidades, a música, a culinária, a
filosofia, a história oral, a religiosidade, a festa etc. As reflexões apresentadas tiveram
como ponto de partida as comunicações e discussões realizadas no Grupo de Trabalho “A
Lei 11.645/08 nas Artes e na Educação: Manifestações Culturais Indígenas e Afro-
brasileiras”22, que buscou difundir ações educativas e de pesquisa que estão sendo
desenvolvidas em diferentes regiões do país, no contexto da escola pública e da formação
inicial e continuada de professores, em decorrência da implementação da referida lei.

PALAVRAS-CHAVE: Lei 11.645/08; História e Culturas Indígenas e Afro-brasileiras;


Educação Básica; Formação de Professores.

INTRODUÇÃO

Decorridos 15 anos da Lei 10.639/03, e sua revisão legal após 10 anos com a
publicação da 11.645/08, acumulamos muitas experiências práticas e teóricas em
decorrência da sua implementação que visam o ensino da história e das culturas afro-
brasileiras e indígenas em todos os níveis de ensino da Educação Básica. Mesmo sabendo

20 Professora da UNIMES-Santos, mestre em Artes e doutoranda em Artes na USP. Pesquisadora do Grupo


Multidisciplinar de Estudo e Pesquisa em Arte e Educação (CAP/ECA/USP).
21 Pedagoga, mestre em Educação e doutoranda pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,

na linha de pesquisa “Fundamentos do Ensino e Aprendizagem da Arte”.


22
Grupo de Trabalho do I Congresso Nacional de Educação, Religião e Artes (CNERA) realizado na Universidade
Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa/PB, no período de 04 a 06 de setembro de 2018.
que ambas são fruto do protagonismo histórico dos movimentos sociais, esse marco que
altera a LDB impulsionou fissuras no discurso hegemônico que estrutura os currículos.
Diante dessa temporalidade, temos a possibilidade de compartilhar pesquisas e ações
implementadas, e seus desdobramentos, no sentido de inspirar e fortalecer outros fazeres
e saberes pedagógicos e culturais na educação escolar e no Ensino Superior.
No que tange às culturas afro-brasileiras e indígenas, a sua inserção na educação
escolar e no Ensino Superior, ao mesmo tempo em que favorece o conhecimento da nossa
diversidade cultural e social, aponta os conflitos subjacentes a um modelo educacional,
que, historicamente, se recusou a considerar esses saberes e experiências como formas
credíveis de conhecer e estar no mundo. O imperativo racial e étnico é um elemento
central na dinâmica de distinção das produções simbólicas oriundas desses grupos, dado
que no Brasil o racismo é estrutural e estruturante, operando na desqualificação de seus
conhecimentos e incutindo nessas populações a noção da inferioridade de suas culturas
como verdade indiscutível. Daí a necessidade de pesquisas e ações comprometidas com a
reconstrução, o registro e a reflexão sobre processos culturais, históricos, sociais,
epistemológicos e pedagógicos que marcam o legado das populações negras e indígenas
no Brasil, a fim de que se revele a complexidade de suas redes de saberes e práticas
inventivas de organização social, política e comunitária.
É importante reconhecer que a luta pelas práticas de educação que contemple a
experiência e as formas de produção de conhecimento das populações negras e indígenas
não se encerra na garantia de torná-las presentes nos currículos, já que esses saberes
podem se fazer presentes de inúmeras maneiras nos espaços formais de ensino, inclusive
subjugados a abordagens essencialistas e folclorizantes, o que contribuiria ainda mais para
a manutenção e o fortalecimento de estigmas e estereótipos sobre o conhecimento e as
práticas culturais desses grupos.
O entendimento da diversidade de suas expressões culturais – suas opções
estéticas, seus modos de funcionamento e de contestação, suas formas de organização
social, entre outros aspectos - constitui um desafio aos educadores e educadoras, bem
como às instituições de ensino e aos órgãos definidores de políticas públicas para a área
da educação. O desafio decorre, especialmente, da necessidade de se desfazerem
equívocos históricos que deturpam e reduzem a complexidade de suas cosmovisões, ao
lançarem mão de modos de inteligibilidade ocidentalistas, incapazes de reconhecer que
os vários Brasis se apresentam sob múltiplas faces – inapreensíveis a modos de
racionalidade que se pretendem únicos – e que, apesar das diferenças que guardam entre
si, se cruzam abrindo infinitas possibilidades de diálogo. Falamos dos muitos Brasis que
não são praticados nos bancos das escolas e das universidades e que se impõe como
realidade a ser conhecida a partir dos versos e gramáticas que lhes são próprios.
Por ser terreno da expressividade, da subjetividade e da invenção, a arte se mostra
um campo privilegiado para levar adiante esse desafio. Para tanto, é fundamental que
possamos transpor e transgredir modos convencionais de abordagem das linguagens da
arte, especialmente no que diz respeito a sua fragmentação em campos especializados de
manifestação (dança, teatro, música, visualidades). Nas culturas tradicionais africanas e
em grande parte das práticas culturais e liturgias afro-brasileiras, por exemplo, a música
se expressa, quase sempre, em conjunto com a dança, com a finalidade de invocar e louvar
divindades, exaltar feitos de um herói ou de um povo, amenizar a lida do trabalho,
manifestar um sentimento etc., não sendo apenas um meio de expressão simbólica, de
fruição e de prazer estético. A palavra e o canto, têm efeitos concretos na realidade e na
vida de seus praticantes, “é sopro animado e que anima aquilo que expressa” (Hampaté
Bâ, 1982). Isto se evidencia, por exemplo, na tradição jeje-nagô ou iorubá, em que a
palavra e o som têm o poder de conduzir axé, força vital que possibilita o dinamismo da
existência.
Dialogando com as formas que alguns povos ameríndios concebem
cosmologicamente a música, podemos citar o modo como os A’uwe Uptabi (Xavante)
relacionam esta prática com “os sonhos, sobretudo no que se refere à prática de ouvir
cantos, memorizá-los e levá-los para fora do sonho” (FUSCALDO, 2016, p.39). Para
muitos povos indígenas brasileiros, a música além de ser uma forma de construção e
manutenção de conhecimento, está diretamente ligada ao xamanismo em sua dinâmica
que envolve seres, substâncias e acontecimentos, sendo que os trânsitos entre mundos são
possibilitados por sonhos e cantos (FUSCALDO, 2016). Cabe ressaltar que a concepção
a partir da qual os indígenas relacionam-se e diferenciam-se de outros seres que coexistem
no mundo, o que inclui seu entendimento da ideia de sonhos e de música, é distinta das
concepções hegemônicas do ocidente, o que amplia as possibilidades epistemológicas de
produção do conhecimento no campo das artes.
Dessa forma, considerando os modos próprios de sentir/fazer/pensar que
fundamentam as culturas de matriz africana (e suas diásporas) e as indígenas, as áreas do
conhecimento não estão fragmentadas como pressupõe o discurso ocidental, articulando
de forma dinâmica linguagens e campos do saber diversificados, como a dança, as
visualidades, a música, a culinária, a filosofia, a história oral, a religiosidade, a festa etc.,
e que justifica a proximidade teórica e metodológica da experiência cotidiana. Esses
saberes – apesar de não chegarem aos currículos das instituições de ensino formal – vem
sendo criados e recriados no cotidiano das práticas culturais e liturgias afro-brasileiras e
indígenas, como o jongo, o toré, o samba, a capoeira, os candomblés, as pajelanças,
macumbas etc. Ao reconhecer suas epistemologias, reconhecemos também outras formas
de expressão e, portanto, outras pedagogias, assentes em princípios estéticos, políticos,
comunitários, relações espaço-temporais que confrontam a perspectiva ocidentalista de
mundo e os padrões de representatividade e educação sugeridos pelo cânone.
Acreditamos que o diálogo entre docentes e pesquisadores de instituições públicas
de ensino superior e professores da Educação Básica oferece contribuições para o
aprofundamento conceitual e a ampliação das possibilidades metodológicas de
abordagem da história e das culturas afro-brasileiras e indígenas nos diferentes níveis de
ensino, além de incentivar a pesquisa e o estudo das referidas temáticas e de suas
epistemologias. Nesse sentido, a temporalidade decorrente da implementação da Lei
10.639/03, e posterior revisão no ano de 2008, com a publicação da 11.645, torna possível
o compartilhamento de ações educativas e pesquisas, que vêm sendo realizadas em
diferentes regiões do país, a fim de inspirar e fortalecer outros saberes e fazeres culturais
e pedagógicos, na construção de conhecimentos e práticas que dialogam com a educação,
sob uma perspectiva antirracista e anticolonialista.

O GRUPO DE TRABALHO

As comunicações que compuseram o Grupo de trabalho (GT) que nomeia este


artigo, foram propostas por educadores/as de diversas áreas do conhecimento e regiões do
país e apresentam distintas abordagens metodológicas para o ensino da história e das
culturas afro-brasileiras e indígenas, fatores que enriqueceram os diálogos propostos,
ampliando as possibilidades de pensar e fazer, desde o ponto de vista estético, político e
pedagógico, no contexto da Educação Básica e da formação inicial e continuada de
professores.
O artigo “Histórias de crianças: um encontro com as memórias de Carolina Maria
de Jesus” foi apresentado pela educadora e pesquisadora baiana Fátima Santana Santos e
abordo