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ABISMO DE AMOR

Marjorie Norrell

Título Original: A Problem For Doctor Brett (1961)


Bianca no. 122

Resumo:

Para fazer parte do quadro de funcionários de uma dos mais renomados centros
de pesquisa, o famoso médico Brett Hardy, precisa de uma esposa. Ele encontra a
candidata ideal na enfermeira Janet Morley, que às vésperas de seu casamento, foi
abandonada pelo noivo.

Digitalização: Simoninha
Revisão: Carina
CAPÍTULO I

B rett Hardy se lavava no banheiro do hospital e automaticamente repassava


os acontecimentos da manhã. Naquele dia encerrava-se um capítulo de sua vida. Era
seu último dia no Hospital São Lucas, e como os últimos anos, de uma maneira geral,
tinham sido bastate agradáveis, ele preferia que o incidente da manhã não tivesse
acontecido.
Vou me desculpar antes de sair, disse a si mesmo. A culpa foi minha. Preciso
aprender a me controlar.
Enquanto enxugava as mãos, lembrou o problema que realmente o afligia
ultimamente e que o faz ficar tão nervoso a ponto de estourar daquela maneira. Só ia
começar a trabalhar em Brocklemeade no dia primeiro; tinha quase cinco semanas para
encontrar uma esposa.
Observou sua imagem no espelho e sorriu como um garoto, dizendo a si mesmo:
— Não será difícil, rapaz, você tem boa aparência e ganha um ótimo salário...
— Que bom que você lembrou que a boca foi feita para rir e não só para
resmungar, Brett. Mesmo que o sorriso seja para você mesmo.
Brett virou-se, quando Steven Rawlings, cirurgião-chefe do São Lucas, parou a
seu lado.
— Se queria deixar entre nós uma impressão duradoura, acho que não poderia
ter se saído melhor.
— Eu sei. — As sobrancelhas espessas de Brett juntaram-se, dando a seu rosto
um ar preocupado. Já se sentia bastante envergonhado para se aborrecer com a
censura de Steven, e acrescentou: — Vou pedir desculpas a ela antes de partir. Tenho
andado muito irritado ultimamente. Sei que não é desculpa para o meu mau humor e sei
que você vai dizer que a enfermeira Morley não estava em posição de revidar. Mas
acontece que, às vezes, as coisas vão piorando, piorando, e sempre acabamos
escolhendo a pessoa errada como bode expiatório. Gostaria que tivesse sido qualquer
outra pessoa, não ela. A enfermeira Morley é uma das mais conscienciosas que já
conheci.
— É verdade. — Steven encheu o cachimbo. — Janet Morley sempre foi muito
responsável. Sentiremos falta dela.
— Falta? Quer dizer que ela vai deixar o hospital?
— Já deixou. É por isso que eu gostaria que o incidente desta manhã não tivesse
acontecido. Ela sempre o considerou muito. E estava bastante aborrecida, quando se
despediu de mim.
— Vou lhe mandar um bilhete. Para onde ela foi? Você sabe?
— Sim, sei. — Todos sabiam que, para Steven, os funcionários do hospital eram
como uma grande família; como era sozinho, os problemas dos outros eram seus. — Ela
vai casar no mês que vem com um rapaz no exterior... um amigo de infância, eu acho.
Enquanto o rapaz não chega, ela vai ficar com a família de um dos porteiros do hospital,
o Bassett. Ela não tem nenhum parente, como você deve saber. Bassett levará as
coisas dela para casa esta noite. Se você quiser mandar um bilhete, posso ver se ele o
entrega a Janet.
— Ok. Vou escrever. Que tal sairmos para um drinque?
— Está bem. Vou dar umas ordens e logo encontro você em frente do hospital. —
Steven sorriu e acrescentou: — Vamos brindar ao seu brilhante futuro. Não se esqueça
de nós!
— Não esquecerei. Quem sabe, eu até volto.
— Voltar? Você está tão entusiasmado... — Steven parou, quando alguém entrou
com um chamado para ele. Concordou rapidamente e virou-se para Brett: — Vejo você
no Grapes, então. Espere uns dez minutos, e conversaremos sobre isso.
Depois que Steven saiu, Brett continuou a se preparar calmamente. Só tinha que
se despedir de Matron, e poderia ir embora. Percorreu os corredores do hospital,
lembrando que seu tio, o famoso sir Brett, alguns anos atrás tinha dito que os portões do
Hospital São Lucas eram tão santificados como os portões do paraíso.
Acho que não o decepcionei, disse a si mesmo, enquanto ouvia a voz de Matron
convidando-o a entrar. Matron conhecera seu tio muito bem e sabia que sir Brett ficaria
orgulhoso do sobrinho.
— Sempre nos lembraremos de você — disse ela — e acompanharemos sua
carreira com interesse. Talvez, quando vier para ver sua família, possa nos fazer uma
visita.
Brett prometeu e se despediu. Entrou, pensativo, no pequeno carro esporte. Mas
iria em frente. Não podia perder essa chance agora. Estava decidido e, ao sentar à
mesinha do Grapes à espera de Steven, refletiu sobre seu problema e possíveis
soluções.
Steven não demorou e, como de hábito, foi direto ao assunto.
— Alguma coisa não vai bem, não é, Brett? Vai ajudar se me contar? Há algo que
eu possa fazer?
— Sim. — Brett deu um sorriso, que logo se apagou. — Encontre uma mulher que
queira casar comigo imediatamente e depois faça-a sumir e só aparecer quando sua
presença for necessária. — Vendo o espanto do outro, acrescentou: — O que sabe
sobre o meu novo emprego, Steven?
— Não muito. Só sei que você será o responsável pelo desenvolvimento de
pesquisas no hospital experimental de Brocklemeade. Só isso e o fato de que esse
emprego é um grande passo para sua carreira e requer muita dedicação. Acredito que
se dará muito bem lá. Começa no dia primeiro de julho, não? Isso lhe dá um mês de
férias! Tem muita sorte!
— Quase cinco semanas, para ser exato — Brett corrigiu. — Bastante tempo
talvez... eu não Sei. Ouça, algum benfeitor deixou um quarto de milhão para o conselho
de pesquisas médicas, mais os edifícios de Brocklemeade, com o propósito de descobrir
os males que a radioatividade causa nas pessoas.
— E daí?
— Esse mesmo benfeitor tinha a convicção de que um homem só é capaz de dar
o melhor de si se for casado e, conseqüentemente, feliz. Uma das exigências ao
ingresso em Brocklemeade é que todos que trabalharem lá, desde os mais simples
postos aos mais altos cargos, devem ser casados! O lugar é uma pequena comunidade,
e o doador parece que tinha a idéia absurda de que...
Brett ficou indignado quando a risada de Steven o interrompeu, mas, antes que
ele pudesse dar vazão à zanga, o outro colocou a mão em seu braço, acalmando-o:
— É que é tão engraçado! Você é o único homem na sua posição que jamais
demonstrou interesse, nem sequer passageiro, por mulher alguma, a não ser do ponto
de vista clínico. — Seu rosto tornou-se sombrio. — Mas devia ter sabido dessa condição
antes, quando se candidatou e o chamaram para a entrevista. O que foi que disse sobre
sua... esposa, então?
— Eu disse que esperava me casar. Não era tão impossível. Lembra-se de Elinor
Constable?
— Sim. Você fez aquela cirurgia complicada na garganta dela, depois de um
acidente de carro ou algo parecido.
— Certo. Até aquele momento, éramos só bons amigos. Mas poderíamos ter nos
tornado algo mais do que isso, se ambos estivéssemos interessados.
— E você não estava — Steven adivinhou, pois conhecia o amigo.
— Não, na época. Ela era concertista, lembra? No dia em que fui chamado para a
entrevista em Brocklemeade, Elinor partiu em viagem pela Europa. Eu não sabia, é
claro, até voltar. Ela terminou a turnê e depois houve uma oferta tentadora para
participar de um filme, um musical, eu acho. Nada no mundo a faria desistir dessas
coisas.
— Nem um amor. — Steven sorriu e depois ficou sério de repente. — Mas você
não disse nada lá em Brocklemeade? Nem quando foi selecionado? O que vai fazer
agora?
— Vou para Bridfield procurar uma agência de casamentos. Não fique tão
espantado, homem. E só o que me resta fazer. E não deve ser tão difícil encontrar uma
mulher que queira me dar o que eu preciso em troca de segurança.
— Não gosto dessa sua atitude irreverente e nem gosto da idéia.
— Então, não diga mais nada. Não precisa ficar tão chocado; não vou prejudicar
ninguém. Só vou ajudar alguma fêmea solitária a preencher sua vida! Pelo menos na
comunidade de Brocklemeade, ela será respeitada e olhada como minha esposa. — Fez
uma careta. — Sem ela, seja lá quem for, eu não poderei ir para lá. As condições são
absurdas, mas são essas.
— Continuo não gostando disso. — Steven olhou para o relógio e levantou. —
Tenho que voltar. Não sei o que dizer. É tudo tão... estranho. Mas entendo agora por
que você tem estado tão agressivo com as pessoas ultimamente. A propósito, e o bilhete
para a enfermeira Morley?
— Escreverei agora. Desculpe, tinha esquecido.
Brett tirou do bolso um pedaço de papel, escreveu algumas linhas e entregou a
Steven.
— Leia, se quiser. Mas feche-o antes de entregar a Bassett, por favor. Acho que
eu disse tudo aí.
Steven pegou o bilhete, despediu-se do jovem médico e voltou para o hospital.
Estava preocupado com Brett. Ninguém melhor do que ele sabia quanto a esposa certa
podia ajudar um homem. Ninguém melhor do que ele sabia como era terrível ver a
mulher amada casar com outro e passar o resto da vida sozinho. Mas só ele sabia por
que se preocupava tanto com o problema do amigo. Nunca havia contado a ninguém
seu segredo de amor, sua paixão pela mãe de Brett, irmã do cirurgião, sir Brett, que ele
mesmo tinha idolatrado no passado.
Se pudesse ajudá-lo, pensou, enquanto entregava o bilhete a Bassett. Se
houvesse uma maneira...
Disse boa-noite ao porteiro e subiu para o escritório. Pelo menos, a enfermeira
Morley saberia logo que o dr. Hardy não estava tão zangado com ela naquela manhã
como imaginou que estivesse. Uma boa garota, Janet Morley, e uma boa enfermeira,
Steven refletiu. Ficou realmente magoada com a atitude de Brett na sala de cirurgia.
Uma garota sensível; sabia que havia algo errado. Lembrou as palavras dela, ao
se despedirem:
— Algo deve ter aborrecido o dr. Hardy. Eu simplesmente entreguei a ele o bisturi
errado, logo percebi e o troquei no mesmo instante. Mas...
Por que, pensou Steven, por que Brett não se apaixona por alguém como Janet
Morley? Não, uma Elinor Constable!
Voltando a atenção para alguns papéis sobre sua mesa, Steven concentrou-se no
trabalho e deixou de lado os problemas de Brett e seu "casamento".
Enquanto isso, na casa dos Bassett, Janet recebia o bilhete do dr. Hardy.
Mas não teve coragem de abri-lo. Não, depois de ter lido a carta que havia
recebido no hospital. Não poderia suportar mais nenhuma notícia ruim.
— Srta. Morley! Srta. Morley, o jantar está pronto — a sra. Bassett chamou.
Janet não respondeu. Lentamente, pegou do chão a carta que já havia lido
dezenas de vezes. As palavras dançavam diante de seus olhos.
"Eu não sabia o que era estar apaixonado. Sei que você vai compreender, porque
me conhece bem, talvez até melhor que eu mesmo."
Sim, pensou Janet, triste, conheço Nigel muito bem. Cresceram juntos, e depois
seus caminhos se separaram. Quase já se esquecera dele, quando, após a trágica
morte dos pais dela, Nigel lhe escreveu dizendo que havia lido a notícia no jornal.
Aquilo foi o começo. Janet bem que relutou em transformar as cartas de amizade
em cartas de amor. Nigel era bonito e amigo, porém, sempre ansioso demais para
agradar os outros, o que o impedia de desenvolver a própria personalidade.
O pai de Janet gostava dele, mas sempre lamentava a fraqueza do rapaz, e ela,
no fundo, sabia que tinha razão. De qualquer maneira, era bom sentir-se amada e
desejada por alguém, alguém que fazia parte de um mundo mais feliz, dos dias livres da
infância. Ela e os pais eram tão unidos, que se sentiu perdida, depois que morreram.
Nigel foi como um oásis no deserto, e agora tornava-se uma miragem.
Amassou a carta. Nenhum desses pensamentos poderiam mudar os fatos. Todos
no hospital São Lucas sabiam que ela estava partindo para casar. As outras enfermeiras
deram-lhe presentes e até lhe ofereceram um chá-de-cozinha.
Não posso voltar a enfrentá-los, disse para si mesma. Simplesmente, não posso.
E também não posso ficar em Bridfield.
Pegou uma revista de enfermagem que estava sobre a cama e abriu-a. Nela
podia haver uma solução. Quem sabe um emprego no Canadá? Na revista sempre
havia anúncios de empregos. Assim, não precisaria contar nada ao pessoal do hospital.
Eles simplesmente pensariam que tinha ido encontrar Nigel para casar. Jamais saberiam
da terrível verdade.
Concentrou-se nos anúncios da revista, ignorando os novos chamados da sra.
Bassett para o jantar. Só havia mais um problema: sua partida para o Canadá demoraria
algumas semanas e, numa cidade pequena como Bridfield, seria difícil evitar encontrar
pessoas conhecidas.
Preciso arranjar um emprego temporário, pensou, desesperada. Vou amanhã
para Londres procurar um.
O bilhete de Brett continuava no chão. Havia se esquecido completamente dele.
De repente, ao notá-lo, lembrou da humilhação que havia passado naquela manhã, no
hospital. Tremendo, apanhou o bilhete, abriu e leu o pedido de desculpas.
No final, Brett dizia: "Se eu puder ajudá-la de alguma forma, por favor,
procure-me". Ao ler essa última frase, as esperanças de Janet voltaram. Ele estava
deixando Bridfield. Tinha sido seu último dia no São Lucas. Ele não falaria com ninguém
sobre os problemas dela, a não ser com Steven Rawlings, mas, para ele, ela contaria a
verdade antes de partir. Resolveu pedir um emprego a Brett nesse novo lugar para onde
ia.
Estava mais animada, quando subitamente lembrou de Nigel e da carta.
Desamassou o papel e colocou-o no fundo da bolsa. Não queria mais vê-lo, mas ainda
não criara coragem para se livrar dele. A sra. Bassett chamou-a outra vez, preocupada,
e acabou entrando no quarto.
— Posso lhe trazer algo para comer? Você está bem?
Janet estremeceu e, de repente, percebeu que estava sendo rude com a pobre
mulher.
— Sinto muito, sra. Bassett. Descerei num minuto.
Olhou-se no espelho, esperando encontrar um rosto abatido, transtornado pelas
notícias que acabara de receber de Nigel. Mas surpreendeu-se ao ver um rosto sereno e
bonito. Ficou alguns minutos parada diante do espelho e analisou suas feições: olhos
azuis-escuros, testa larga, sobrancelhas arcadas, cabelos dourados e brilhantes. Só
seus lábios demonstravam um pouco da tristeza que sentia.

CAPÍTULO II

B rett estacionou na rua Bridge e parou em frente ao n.° 15. Desceu do carro e
ficou observando o edifício por algum tempo. Acendeu um cigarro e olhou mais
atentamente. Apesar de ter garantido a Steven que era um lugar respeitável, ainda
hesitava em entrar no prédio.
Era um lugar elegante, em estilo georgiano, solidamente construído e até
gracioso. Essa aparência acabou com suas dúvidas e ele caminhou lentamente em
direção à entrada, procurando pelos escritórios da agência matrimonial. Foi com alívio
que percebeu que no mesmo edifício havia também uma companhia de seguros bem
conhecida além de outros escritórios. Se algum conhecido o visse entrando, certamente
pensaria que estava se dirigindo a um desses respeitáveis estabelecimentos.
Ficou impaciente com tal pensamento. Afinal, se quisesse um terno, iria a um
alfaiate; se quisesse um carro novo, iria a uma agência de automóveis. Ele precisava de
uma esposa e não tinha tempo nem condições de encontrar uma da maneira
convencional. Portanto era óbvio que a coisa mais sensata a fazer era consultar uma
agência de matrimônios.
Havia um elevador, mas não o usou. Preferiu subir a pé até o terceiro andar e
caminhou por um longo corredor, até encontrar uma porta com o nome de agência em
letras douradas. Embaixo, havia uma placa com os dizeres: "Entre, por favor". Após dar
uma olhada para trás e certificar-se de que estava sozinho, Brett abriu a porta,
aborrecido por não conseguir encarar a coisa com naturalidade como deveria.
Uma jovem sorriu e perguntou se podia ajudá-lo em alguma coisa. Respondeu o
óbvio: que estava à procura de uma esposa.
— Por aqui, senhor — disse a moça, levantando o balcão e fazendo-o entrar. Ao
baixar novamente o balcão, Brett teve a estranha sensação de estar sendo preso numa
armadilha. Estremeceu, quando ela acrescentou: — A sra. Henderson vai atendê-lo
imediatamente. Felizmente, não temos nenhuma hora marcada agora.
Brett foi conduzido a uma pequena sala bem mobiliada, que não parecia com
nenhum outro tipo de escritório que conhecia. Uma bela mulher de aproximadamente
trinta e cinco anos levantou-se da escrivaninha para recebê-lo.
— Boa-tarde. Sou Ruth Henderson. Em que lhe posso ser útil?
Brett estendeu-lhe a mão e pensou que a última coisa que teria imaginado era
que seria tratado ali como se estivesse fazendo uma visita.
— Meu nome é Hardy — começou, sentando na cadeira que ela lhe indicou. —
Sou cirurgião. Bem... eu... é difícil começar. Bem... estou prestes a ingressar num novo
emprego, num ótimo emprego, e uma das condições exigidas é que eu seja casado.
Quando fui entrevistado para o cargo, achei que, ao assumi-lo, já estaria casado. Agora,
as coisas mudaram. Minha noiva, isto é, a moça com quem eu esperava casar, não está
mais aqui. Viajou a negócios e não pretende mais voltar. Começo a trabalhar no dia 1.°
de julho. Daqui a cinco semanas, portanto. "Preciso" — inclinou-se para a frente ao
acentuar a palavra, demonstrando todo seu nervosismo — ter uma esposa para levar
comigo.
Os olhos cinzentos e frios de Ruth Henderson observavam atentamente cada
gesto de Brett. Com uma calma estudada, ela abriu uma caixa de cigarros, tirou um e
aceitou o isqueiro que ele lhe ofereceu. Quando, finalmente, falou, sua voz era baixa e
controlada e as palavras, cuidadosamente escolhidas.
— O que tem em mente, dr. Hardy? Quero dizer, quer uma mulher intelectual?
Loira, morena, ruiva? Alguma exigência em relação a hobbies, lazer, etc?
— Deus do céu! Só quero uma mulher de aparência decente e suficientemente
bem-educada para desempenhar o papel que tal posição exige. Não quero uma
companheira ou uma enfermeira. Nem uma mãe! Sou ocupado demais para me
preocupar com hobbies e outras bobagens. — De repente, percebeu que ela o olhava de
maneira estranha e baixou a voz. — Quero o emprego. Acredito nesse trabalho e sei
que posso me sair muito bem, é só.
Calou-se por alguns minutos, mas a sra. Henderson não fez nenhum comentário,
o que foi um tanto desconcertante.
— É um trabalho que ajudará toda a humanidade — Brett continuou, depois de
alguns segundos. — Só porque o idiota que financiou a entidade onde vou trabalhar
deixou uma cláusula exigindo que todos os funcionários admitidos deveriam ser
casados, tenho de encontrar uma esposa antes de assumir o posto. É simples. Vou
poder proporcionar a ela uma boa vida. Graças a meu tio, que me deixou uma herança,
posso ser bem generoso. Em troca, só peço uma mulher que aja como minha esposa
para a sociedade. Ela será livre para levar a própria vida como bem quiser. Desde que
não esqueça sua posição, é claro.
— Entendo. — Ruth Henderson ficou calada por tanto tempo após essa afirmação
que Brett imaginou que a tivesse ofendido. — O que realmente deseja, dr. Hardy, é uma
atriz. Não sei nem o que dizer! Os que vêm até nós são, geralmente, pessoas solitárias
que tiveram pouca ou nenhuma chance de encontrar companhia. Quase sempre
pessoas ansiosas por encontrar alguém que tenha os mesmos interesses e com quem
possam viver. O que o senhor quer, me parece, é uma sócia de negócios. Eu até
sugeriria que procurasse o Ministério do Trabalho ou outro órgão que encaminhe
pessoas para empregos. — Com voz suave, acrescentou: — Em todo caso, estamos
sempre prontos a ajudar. — Estendeu-lhe um formulário e pediu-lhe que o preenchesse,
incluindo uma foto.
— Uma foto? Por quê?
— É muito simples, dr. Hardy. Percebe que o senhor não pensou em nada, a não
ser no fato de que precisa casar em cinco semanas por causa do emprego? Mas há um
outro lado da questão. Há a mulher que devemos procurar para ser sua esposa.
Nenhuma candidata sequer pensará na sua proposta, sem ter idéia de como o senhor é.
— Mas o que importa isso? Desculpe-me. A senhora está certa, é claro, mas veja
bem... — Mais uma vez tentou explicar que não estava propondo casamento; que, na
realidade, não queria casar; simplesmente, "precisava".
— O que quer dizer — falou a sra. Henderson, com voz cortante — é que não se
importa nem um pouco com a infeliz que aceitar sua proposta ultrajante. Se é que
alguém vai aceitar. Para o senhor, só interessa que ela coopere para que possa ocupar
seu novo cargo, certo?
— Acho que é uma maneira de colocar a questão; mas, a meu ver, a coisa não é
tão terrível assim. Ouça, não sou desumano. Simplesmente, não tive tempo de me
ocupar com mulheres. Nunca quis ter uma vida cheia de conflitos emocionais. Agora, se
a condição para assumir o cargo é ser casado... Bem, será que em algum lugar do
mundo não existe alguém que ponha a segurança e o conforto acima dos sonhos
românticos? Será que a senhora não poderia tentar encontrar essa pessoa para mim?
— Posso tentar, é claro. Mas não lhe dou muitas esperanças. Se o senhor tem
toda essa pressa, quanto mais cedo me der a foto, melhor. Agora, poderia preencher o
questionário?
Brett respondeu o formulário rapidamente, observando bem as questões, que
eram razoavelmente simples e iam desde o tipo predileto de música até a religião.
Assinou e devolveu a folha de papel à sra. Henderson.
— Terá minha foto ainda hoje à tarde. Suponho que tudo seja confidencial.
— Temos quase tantos segredos quanto a Scotland Yard! — Ruth sorriu para ele,
mas agora de uma maneira bem mais amigável. — Não posso lhe prometer nada, mas
farei o melhor. E, fique sossegado, dr. Hardy, seu questionário é secreto e estará seguro
aqui conosco.
— Então, deixo meus problemas em suas mãos. — Brett queria ir embora.
Colocou seu cartão junto com o questionário e informou: — Estarei em casa à noite. Se
tiver alguma novidade...
— Até agora, só me vieram à mente três possibilidades — disse Ruth, seguindo-o
até a porta. Mas continuou: — Não se iluda muito, porque até hoje não tive nenhum
pedido dessa espécie.
E eu nunca farei outro pedido dessa espécie, pensou Brett, quando já estava
seguro, atrás do volante do carro.
Dirigiu lentamente no trânsito, apagando da mente a entrevista. Resolveu ir
buscar no açougue a encomenda que sua mãe havia pedido que ele levasse. Em
seguida, voltaria para casa e tentaria lembrar de alguém que conhecia e que pudesse
levar em consideração sua proposta.
Não seria nada fácil. Durante muitos anos, a mãe incentivou-o a casar, dando a
solidão de seu tio como exemplo, mas de nada adiantou. Como o tio, Brett sempre foi
preocupado demais com seu trabalho para pensar em romance. Até aparecer aquele
emprego, nunca havia sequer questionado sua condição de solteirão. Não disse nada à
mãe sobre a condição imposta para assumir o cargo em Brocklemeade; se dissesse, ela
promoveria um verdadeiro desfile de todas as garotas que conhecia.
Como sempre, a casa que havia herdado de seu tio estava em paz. A sra.
Craddock, a antiga empregada, cuidava de Brett e de sua mãe com a mesma dedicação
com que cuidara do antigo patrão. A mãe recebeu-o com um beijo e um aperitivo gelado.
O jantar seria servido exatamente dentro de meia hora.
Resolveu contar a ela seu problema depois do jantar. Mas, quando acabou de
comer, a sra. Hardy desculpou-se e foi se arrumar porque tinha um compromisso, e
pediu ao filho que fosse buscá-la mais tarde. Brett concordou, sorriu e fechou-se no
escritório. Afundando-se na poltrona que antigamente era a preferida do tio, acendeu um
cigarro e procurou se concentrar.
Sua mente ainda estava vazia, quando a sra. Craddock bateu à porta, dizendo
que uma moça queria vê-lo. Brett logo pensou em abençoar a sra. Henderson da
agência de matrimônios, mas as palavras seguintes da governanta lhe tiraram a ilusão
de que seu problema estava resolvido.
— Ela disse que não tomará muito de seu tempo. O nome é Morley, srta. Janet
Morley.
— Por favor, peça que entre.
O tom de Brett era educado, mas decepcionado. Esperava que a visita não fosse
demorada. Já tinha pedido desculpas pelo mau humor e considerava o assunto
encerrado. Por que ela não?
Esse é o problema com as mulheres, pensou. Por isso é que nunca quis me
envolver com elas. Nunca sabem quando devem parar.
Levantou para cumprimentar Janet e notou logo que estava pálida e nervosa.
Prevendo uma crise, ele lhe ofereceu um cigarro, que ela aceitou. Pegou um também e
acendeu ambos, antes de fazer qualquer comentário.
— Quero ir o mais longe possível — Janet disse, rapidamente. — Poderia ir para
o exterior; mas preciso saber se o senhor sabe se há alguma vaga para enfermeira
nesse lugar para onde está indo. Ou se sabe de qualquer outro lugar onde precisem de
alguém como eu.
— Enfermeiras com prática são sempre muito requisitadas em qualquer lugar do
mundo. Sabe disso tão bem quanto eu, srta. Morley. E não posso lhe dizer qual é a
situação em Brocklemeade, não faz parte do meu departamento. Mas... você não saiu
do São Lucas para casar?
— Sim.
Janet sentiu, horrorizada, que as lágrimas que não tinha conseguido esconder ao
ler pela primeira vez a carta de Nigel ameaçavam cair novamente. Com grande esforço,
falou pausadamente, engolindo os soluços:
— Seria melhor que lesse. — Estendeu-lhe a carta amassada. — Isso me evitaria
uma explicação.
Brett hesitou um pouco, mas não teve outra alternativa, senão ler a carta. Janet
suspirou inconscientemente, quando ele a devolveu.
— Isso me parece o fim — ele comentou. — E eu acho que não seria o caso de
lhe dar as minhas condolências. Você estará melhor sem ele. Por que não volta e conta
a Matron o que lhe aconteceu?
— Não posso e não quero! Você jamais entenderá, porque é diferente para os
homens... Mas as enfermeiras me deram presentes do casamento. E as estudantes
também. E Matron. Todos sabem que eu ia casar. Não quero voltar! Eu...
— Entendo. — Brett interrompeu a penosa explicação. — Mas ninguém resolve
problemas fugindo, srta. Morley. Devemos enfrentá-los...
— Eu posso enfrentar o problema. Não vou deixar que arruine a minha vida. Mas
quero ir embora.
— Para curar seus ferimentos sozinha. Sua sabedoria merece aplausos, srta.
Morley, mas ainda acho que estou certo ao afirmar que, na verdade, seu orgulho está
mais ferido que seu coração. Não — disse, seco, quando ela tentou falar alguma coisa
—, não fique zangada, por favor. É melhor assim. Orgulho ferido sara mais depressa,
gostaria de saber mais alguma coisa, antes de tentar ajudá-la. Conhecia Nigel há muito
tempo?
Uma idéia passou rapidamente pela cabeça de Brett, mas sua velha antipatia em
relação aos casamentos entre médicos e enfermeiras afastou-a. De qualquer maneira,
alguém da agência logo telefonaria. Ofereceu outro cigarro a Janet, notando que as
mãos dela tremiam levemente.
— Nós estávamos sempre juntos quando éramos crianças — ela respondeu,
calmamente. — Éramos amigos, nada mais. Quando meus pais morreram no acidente,
Nigel leu a notícia no jornal e imediatamente começou a me escrever. Bem, tudo
começou aí; ele era muito gentil e carinhoso.
— Entendo.
Brett não disse mais nada por alguns instantes. Observando-o, Janet começou a
perceber como ele era forte e ao mesmo tempo tão controlado. Naquele momento,
descobriu por que os pacientes confiavam tanto nele. Seu queixo quadrado, a testa larga
e os olhos penetrantes sob as sobrancelhas bem desenhadas, tudo isso inspirava con-
fiança. Sempre o admirou como cirurgião e como homem. Agora, sentia-se
repentinamente feliz por ter confiado a ele seus problemas.
Brett percebeu o olhar dela e sorriu.
— Nada nos parece tão ruim, quando compartilhamos com alguém, não acha?
— Só contei para o senhor. Vou contar ao dr. Rawlings, é claro. Ele foi sempre
tão gentil. Mas não quero que os outros saibam. Eu já havia pensado em partir, mas
depois li o seu bilhete...
— Sei...
Brett achou que não estava ajudando Janet em nada. Mas, quando ia falar
alguma coisa, o telefone tocou. Desculpou-se e atendeu. Como já esperava, era a voz
fria e clara da sra. Henderson.
— Liguei para lhe sugerir um anúncio, sr. Hardy. Em vista da urgência, acho que
devemos tentar de tudo. Entrei em contato com as três pessoas que mencionei esta
manhã... — E calou-se por alguns momentos.
Brett ficou imaginando se a reação delas tinha sido tão negativa a ponto de a sra.
Henderson nem ter coragem de lhe contar. Foi obrigado a quebrar o silêncio e
perguntou:
— Imagino que o resultado tenha sido... negativo. Acertei? Nos três casos?
Brett imaginou-se discutindo algum problema relativo a uma cirurgia com um
colega e pensou que Janet devia estar tendo a mesma impressão. De repente, começou
a achar importante que ela não soubesse quem era ao telefone e nem do que falavam.
— Exatamente — a sra. Henderson respondeu, com toda a firmeza. — Por isso
que estou sugerindo esse outro caminho menos comum. Posso continuar tentando, se o
senhor desejar, é claro. Mas, como eu já lhe disse, vai ser muito difícil.
— Entendo. — Ficou irritado por não saber o que dizer. Mas não havia mesmo
mais nada a dizer. — Eu gostaria que continuasse tentando. E vou aceitar sua sugestão.
A menos que encontre outra saída melhor.
A sra. Henderson fez mais alguns comentários e desligou. Foi um alívio para Brett
pôr o telefone no gancho e voltar-se para a garota que estava sentada, pacientemente, à
sua espera. Olhou-a com atenção. Ele a conhecia há muito tempo. Até aquela manhã,
tinha sido uma moça serena, calma, responsável e segura de si. A aparência era boa.
Ficaria até bonita, se usasse uma das roupas de Elinor. Tinha aquela voz baixa e
delicada que não cansava os ouvidos, e era uma pessoa sensível; falava bem e era
muito amável. Num impulso inclinou-se para a frente e encarou-a.
— Srta. Morley, acho que posso lhe oferecer um lugar. Promete me ouvir até o
fim, antes de fazer qualquer comentário?

CAPÍTULO III

P or mais que vivesse, Janet sabia que sempre lembraria de cada detalhe do
escritório de Brett Hardy, tão claros estavam agora em sua mente. Quando ele lhe pediu
que o ouvisse até o fim, sem qualquer comentário, imaginou que, por algum motivo,
havia enlouquecido. Quando começou a falar, embaraçado, ela desviou o olhar para as
cortinas vermelhas do aposento, para a mobília lustrosa, para os arranjos de flores em
vasos de cobre; enfim, ficou observando tudo, menos o homem sentado à sua frente. No
entanto, estava dolorosamente consciente de cada palavra que ele dizia, de cada gesto
que fazia com as mãos fortes de cirurgião.
— Portanto, veja minha posição, srta. Morley. Quero esse emprego. Mais do que
isso, sei que sou o homem certo para o cargo. E, a menos que eu possa preencher esse
estúpido requisito, o emprego será do próximo da lista. — Escolheu bem as palavras,
antes de perguntar: — Aceita o cargo? Não, como enfermeira, se bem que isso pode ser
arranjado depois, se ainda quiser. Vai me ajudar?
Por um momento, pensou que ela ia lançar-lhe um olhar de indignação e sair da
sala sem nem uma palavra. Surpreendeu-o muito, quando Janet disse, com uma voz
que ele classificou como "voz de hospital":
— Dr. Hardy, devo entender que está me pedindo em "casamento"?
— Essa é a idéia, em princípio. — Tentou dissimular o embaraço. — Eu estava
tentando explicar... — começou, mas foi interrompido por Janet, que estava de pé, com
as faces vermelhas de raiva, olhando-o fixamente.
— Eu ouvi. Mas estou esperando por mais detalhes. Porque, pelo que entendi até
agora, não sei se devo me sentir lisonjeada ou...
— Insultada — Brett completou.
Ele também havia levantado e olhava-a de cima a baixo. Embora fosse de
estatura média, a postura de Brett e o fato de ter um físico bem proporcionado o faziam
parecer muito mais alto. Instintivamente, Janet deu um passo para trás.
— Eu tentei explicar que estou lhe oferecendo o que procura: um emprego, um
cargo, uma posição. Para mim, parece ideal. Você quer ir embora, entende alguma coisa
sobre o meu trabalho, o que ele significa e o que estamos tentando fazer, e não somos
estranhos. Posso ter fama de mal-humorado, lá no hospital, mas lhe asseguro de que
sou bom nas tarefas domésticas. Minha mãe me preparou para isso.
Janet recusava-se a sorrir. Não conseguiria, nem se quisesse. A proposta de Brett
a deixou tão chocada que ainda não tinha entendido se ele estava caçoando dela,
embora soubesse que não tinha motivos para fazer isso. Recusou o outro cigarro que
Brett lhe ofereceu.
— Vai me achar uma idiota, mas ainda não entendi. Quer que o acompanhe a
Brocklemeade para me apresentar como sua esposa. — Então, os outros vão acreditar
que é casado e seu posto estará garantido. Certo?
— Não exatamente. — Brett achou que o choque do rompimento do noivado de
Janet havia afetado seu raciocínio. Ficou em frente a porta, impedindo-a de sair. —
Quero que case comigo, por favor — disse, com evidente esforço. — Mas só como
proposta de trabalho. Para o resto do mundo, deverá parecer um casamento feliz,
normal. Só nós dois saberemos da realidade. Você será livre para viver sua vida.
Exceto, que deve lembrar-se sempre de sua posição! Terá dinheiro, roupas. Posso lhe
dar tudo que quiser.
— Um contrato de negócios — ela disse, baixinho. — Ainda não consigo
acreditar!
Brett não sabia por que, mas, mesmo que tivesse que implorar a ela que
aceitasse, ele o faria. Sentia que era a única moça que serviria para seus propósitos.
Não tinha mais interesse por nenhuma outra mulher que, porventura, a sra. Henderson
apresentasse. Queria levar Janet Morley porque percebia que ela havia entendido tudo
sem emoções, com seriedade e calma.
— Prometo nunca me intrometer na sua vida, nunca embaraçá-la, nem infringir o
contrato. Não, porque você não seja atraente, mas porque... bem, eu lhe dou a minha
palavra.
Janet olhou-o, séria. Agora começava a entender a importância de tudo para ele.
Sabia também que podia confiar em Brett. De todos os homens que conhecia, só havia
dois em quem depositaria total confiança: Brett e Steven Rawlings.
— E o que acontecerá, se você encontrar alguém e se apaixonar? Quero dizer, se
ficar apaixonado de verdade?
Brett descartou a possibilidade imediatamente, como se fosse uma idéia
completamente absurda:
— Não tenho tempo para essas coisas. Há muito pouco tempo para se fazer tudo
que deve ser feito. É claro que, se você encontrar alguém e...
— Como sua esposa? Não vejo como, sendo sua esposa, possa ter a chance de
conhecer alguém o suficiente para me apaixonar. E eu teria que ser muito idiota para
acreditar em um homem novamente.
— Então, isso significa que aceita? Você vai me ajudar?
— Eu estaria ajudando a mim mesma também. Sim, eu aceito. Com a sua palavra
de honra. Mas esses detalhes poderão ser discutidos mais tarde.
Passou a mão na testa, e Brett percebeu que parecia cansada e aborrecida.
Afinal, tinha vindo em busca de ajuda para seu problema e, em vez disso, ele lhe dera
mais um problema.
— Vou levá-la para casa. Amanhã eu a procuro. Está com os Bassett, não?
— Sim, mas prefiro conversar noutro lugar. — Janet começou a falar, quando a
porta se abriu e a sra. Hardy entrou no escritório.
— Mamãe. Eu me esqueci! — Brett pegou Janet pelo cotovelo, empurrando-a
delicadamente para a frente. — Mas você me perdoará, quando eu explicar. Esta —
começou ele, com um sorriso, apontando para Janet —, esta é a srta. Morley. Janet era
enfermeira do São Lucas até esta manhã. Nós vamos casar, antes de eu partir para
Brocklemeade.
Rosemary Hardy pensou que já tinha passado por todas as surpresas da vida,
mas evidentemente se enganara. No entanto, era um choque muito agradável. Sorriu ao
apertar a mão de Janet; um sorriso caloroso, cheio de aceitação.
— Esse meu filho terrível nunca me disse uma palavra, e eu, há tanto tempo,
querendo que ele casasse. Já estava quase desistindo! E, de repente, vem e diz...
— Só consegui convencer Janet a casar comigo há alguns minutos. Tive que
mostrar a ela que nossas carreiras andam lado a lado.
— O que será ótimo para vocês dois, tenho certeza — Rosemary disse, com
simpatia. — Até que a família aumente! Mas podemos falar sobre isso mais tarde. Não
vamos ficar aqui neste escritório escuro, Brett. Traga Janet para a sala e vamos brindar
em seguida.
Levou-os para fora como uma galinha leva seus pintinhos, parando na porta,
desculpou-se:
— Volto já. Depois, discutiremos o casamento. Se tem que ser antes de você
partir, Brett, Janet não terá muito tempo.
Ele esperou até que os passos da mãe não fossem mais ouvidos, enquanto ela
subia a escadaria larga e lustrosa. Virou-se para Janet, meio sem jeito.
— Sinto muito, mas eu tinha que dizer algo depressa. Esqueci que linha
prometido apanhar minha mãe.
— Ela é muito meiga para ser enganada. É adorável e realmente acredita que
esse casamento seja...
— Um casamento feliz. Mamãe sempre teve muita vontade de ter netos. Mas é
uma mulher compreensiva. Quando perceber a importância do meu trabalho e que você
vai me ajudar nisso, estará pre-piinida para sacrificar suas esperanças de ser avó, para
o bem da humanidade!
— Não sei como pode falar assim. Ela pensa que nós... estamos apaixonados.
Ficaria horrorizada, se soubesse a verdade.
— Então, não precisamos contar nada a ela, certo? — Brett levantou o rosto de
Janet, de modo que ela teve que encará-lo. — Ouça: esse casamento, esse trato,
chame-o como quiser, é apenas entre nós dois, para nós dois, é a melhor solução. Eu
teria que renunciar a Brocklemeade sem ele; você teria que começar uma nova vida
entre estranhos, sozinha e infeliz. Comigo, pelo menos, achará a vida interessante, terá
um trabalho a fazer... e um companheiro. E tudo só entre nós. Nem mesmo mamãe
precisa saber da verdadeira natureza das coisas. Durante muito tempo, ela quis que eu
casasse. Não tem um coração forte e gostaria de me ver sendo cuidado, caso algo lhe
aconteça. Eu não gostaria de lhe causar um desgosto desses.
— Não farei nada para aborrecê-la, porque já gosto muito dela. Mas há outra
coisa: ela falou em discutir sobre nosso casamento. Não quero casar na igreja. Não, um
casamento desses. Não seria correto.
Brett olhou bem dentro dos olhos azuis-escuros de Janet e viu sinceridade neles.
— Como quiser, vou fazer com que mamãe veja as coisas como você. Fique
tranqüila. — Deixou cair os braços ao longo do corpo e virou-se quando a sra. Brett
entrou na sala.
— Telefonei para Steven — Rosemary anunciou, servindo cherry para os três. —
Sei que você não vai se importar, filho, e como Janet, posso chamá-la assim, querida?,
pertencia ao quadro de funcionários do São Lucas, ela deve saber que ele é nosso
grande amigo, seu padrinho e quase um membro da família. Achei também que precisá-
vamos de alguém para nos ajudar a comemorar um pouquinho. — Olhou, ansiosa, para
um e para o outro. — Vocês não se importam, não é? Ele disse que estaria aqui dentro
de alguns minutos.
— Claro que não nos importamos — respondeu Janet, rapidamente. — Ele tem
sido tão bom para mim! É bom para todos. Nós não nos importamos, não é? — Olhou
para Brett, num apelo, e corou, ao sentir que ele percebia que ela evitava chamá-lo pelo
nome. — Fico feliz que ele seja o primeiro a saber.
— Eu também — disse Brett, ciente de que Steven tinha entendido tudo. Tentava
decidir se seria conveniente contar a Janet que Steven estava a par da história, mesmo
antes dela. Alguma coisa lhe disse que não seria bom que ela soubesse, que se sentiria
insultada.
Alguns instantes depois, Steven chegou. Brett desculpou-se e saiu para o hall
para se encontrar com ele. Com um olhar, preveniu-o e levou-o para a sala, onde o
amigo desejou felicidade a ambos.
— Você sabia, Steven? — perguntou Rosemary. — Você poderia imaginar?
— Eu não fazia a menor idéia. Nem mesmo quando entreguei a Janet o bilhete de
Brett. — E sorriu para a moça.
— Você deve ter sido muito esperta, minha querida. — Rosemary sentou ao lado
dela. — Sei que Brett está sempre ocupado, mas tem um coração de ouro.
— Deixe que Janet descubra sozinha o homem maravilhoso que sou — ele disse,
brincando —, e que sorte teve em me encontrar! Tenho certeza de que logo ela me verá
com bons olhos.
— Vou dizer tudo que eu quiser sobre você, quando você não estiver! — anunciou
sua mãe, indignada, provocando risos. — Mas há uma coisa que precisa ser discutida: o
casamento.
Janet recostou-se no confortável sofá, deixando que a conversa fluísse. Escutou,
mas não participou, e ficou surpresa ao descobrir que não havia necessidade de entrar
na conversa. Brett havia pedido que não se preocupasse, que ele manobraria a mãe a
respeito dos preparativos do casamento, e tinha de admitir que ele estava se saindo
muito bem.
Ouviu-o explicar que Janet não tinha ninguém, nem um único parente, e que
recentemente havia sofrido um choque emocional muito grande. Embora não desse
nenhuma explicação exata, ela sabia que estava implícito naquelas palavras que essa
era a razão pela qual o casamento deveria ser o mais discreto possível. Apesar de a sra.
Hardy aparentemente não concordar apenas com o casamento civil, acabou aceitando a
idéia.
— Mas vocês precisam ter uma lua-de-mel, meu filho. Vocês têm que ter alguma
coisa para lembrar depois! É a época mais importante na vida de uma moça, e Janet
não pode se privar disso.
Janet deixou-os discutir. A conversa era amigável e ela sabia que podia confiar
todos os detalhes a Brett. Era como se o assunto não fosse com ela. Teve um choque,
quando Steven tocou em seu braço disse, gentilmente:
— Venha comigo, Janet. Vou deixá-la em casa. Vocês todos estão cansados!
Amanhã, poderá ver Brett e fazer os acertos finais.
A noite estava fria e ela sentiu o ar gelado no rosto, mas, com Steven, estava
segura. Ficou surpresa, quando, ao pegar a estrada, ele se virou para ela, encarando-a.
— Acho melhor você me contar tudo, Janet, antes de se envolver mais nessa
história.

CAPÍTULO IV

S teven não sabia bem o que esperava, mas certamente ficou chocado com a
reação de Janet. Ela se virou para ele com os olhos cheios de lágrimas e desabafou:
— Eu ia falar com você. Eu ia! Queria contar tudo e pedir seu conselho. Aliás, foi
para isso que fui procurar o dr. Hardy.
Steven bateu de leve na mão dela, tentando transmitir-lhe confiança. É claro que
algumas vezes ele lamentava sua juventude perdida, mas havia outras ocasiões, como
aquela, em que achava muito bom que seus cabelos grisalhos o transformassem no
confidente dos jovens de quem tanto gostava.
— Conte tudo, minha querida. É sempre bom dividir os problemas com alguém.
Quer um cigarro?
Ignorou as lágrimas de Janet. Ele a conhecia muito bem e ainda lembrava de sua
chegada ao hospital. Foi após a trágica morte dos pais. Ela era sozinha e sentia-se
infeliz quase até o desespero. Mas preferia esconder o sofrimento porque era muito
orgulhosa. Preferia lutar sozinha contra a infelicidade.
Janet esperou que ele acendesse os cigarros e começou, mais calma:
— Você sabe que deixei o hospital para casar. Você sabe de tudo. — Não havia
necessidade de comentários, porque Steven realmente sabia de tudo, desde a primeira
carta de Nigel para Janet, como "amigo". — Nigel casou com outra. Recebi uma carta
dele hoje.
Steven ia fazer uma pergunta, quando ela continuou:
— Você sabe, com certeza, que o dr. Hardy me mandou um bilhete,
desculpando-se pelo que aconteceu esta manhã. Ele dizia que me ajudaria, se eu
precisasse de alguma coisa. Foi quando tive a idéia de lhe pedir que me arranjasse um
emprego em Brocklemeade ou em qualquer outro lugar, para que eu pudesse me afastar
daqui. Gostaria de ir para o exterior, mas isso levaria tempo. Não podia voltar para o São
Lucas, entende? Não podia enfrentar todos outra vez.
Não, Steven pensou, não podia. Talvez outras garotas pudessem, não alguém tão
sensível como Janet Morley.
— Contei tudo ao dr. Hardy. Ele não falou quase nada, a princípio. De repente,
alguém telefonou, e eu já estava pronta para sair, quando ele disse que podia me
oferecer um lugar. E é isso, Steven; um simples emprego; e, não, um verdadeiro
casamento. Eu precisava ir embora daqui e o dr. Hardy, digo, Brett... preciso me
acostumar a chamá-lo assim... não poderia ocupar seu cargo em Brocklemeade se não
levasse uma esposa.
— Ele lhe contou como tentou arranjar uma, antes de você, convenientemente,
aparecer? Ouça, minha querida; você me conhece bastante para saber como gosto de
Brett. Ele é também meu afilhado. Mas não acho que tenha levado você em
consideração ou qualquer pessoa. Só pensou nele mesmo. Para Brett é uma simples
questão de negócios. Para você, com o tempo, poderá se tornar uma questão de vital
importância.
— Quer dizer que eu... posso me apaixonar por ele? Não acredito. Veja: amei
Nigel, mas não, da maneira como a moça que casou com ele provavelmente o ama ou
ele a ela. — Steven ficou consternado ao sentir a dor que transparecia na voz dela. —
Eu amei Nigel porque ele era um amigo, e eu estava sozinha. Ele era alguém com quem
eu podia falar em minhas cartas. Mas acho que não sou o tipo de pessoa que se
apaixona, assim como Brett também não é. Eu ficaria feliz por ser necessária. Brett é
uma pessoa incrível. Será suficiente para mim saber que fui útil, que o ajudei a tornar
seu trabalho possível.
— Uma bela teoria, minha cara. Uma belíssima teoria. E muito conveniente,
também, principalmente sabendo que você o considera uma espécie de ídolo. Não. —
Sorriu, quando ela tentou interromper. — Ouça primeiro, garota. Sou velho suficiente
para ser seu pai ou pai dele, e gosto muito dos dois. Brett sempre se bastará a si
mesmo, como o tio se bastou. Sempre foi e sempre será assim. Você, como mulher, é
bastante sensível; apesar de só querer ajudá-lo e ficar ao lado dele, evidentemente se
envolverá com os problemas de Brett. E se preocupará mais com ele do que com você
mesma. E sofrerá até o último dos seus dias, porque é esse o seu jeito de ser.
— Não, se eu considerar tudo apenas como... um emprego. Simplesmente uma
maneira de ajudá-lo e a mim também.
— Brett sabia da condição antes de ser entrevistado para o cargo. Ele me disse
que esperava pedir Elinor Constable em casamento. A pianista, lembra dela? Mas Elinor
partiu para uma turnê.
— Então, não há mais nada a dizer. Minha mãe sempre falava que as coisas
acontecem, se deixarmos que aconteçam. Faz parte dos planos de Deus. Deus queria
que eu perdesse Nigel para ajudar o dr... digo, Brett.
Steven passou a mão pelos cabelos. Já era tarde, estava cansado. Não podia
fazer nada pela moça. Sabia muito bem que ela lutava contra as lágrimas, que reprimia
seu orgulho, seu amor-próprio ferido, demonstrando que acreditava que era o destino
que a empurrava para Brett. Steven sentia-a muito envolvida por toda a história. Sua filo-
sofia era oferecer ajuda e conforto. Mas, agora, começava a achar que nada disso era
necessário.
— Não se preocupe tanto — disse Janet. — Acredito que tudo correrá bem. Mas
preciso de sua ajuda, por favor!
— Farei qualquer coisa por você, mas ainda acho que...
— Que eu não devia aceitar esse... emprego. — Janet tentou rir, mas logo ficou
séria outra vez. — Não é nisso que preciso de sua ajuda. É que não consigo enganar a
sra. Hardy. Ela é tão meiga, tão boa. Não casarei na igreja, não seria correto. É um
contrato, portanto só um contrato civil será suficiente. E não quero essa... lua-de-mel.
Você precisa me livrar disso, Steven. Não importa como!
— Não é melhor falar com Brett?
— Não, não! Faça isso, por favor. Ele precisa do emprego. Eu preciso ir embora.
A sra. Hardy quer vê-lo bem estabelecido, e tudo isso pode ser facilmente arranjado. E
agora, se você não me levar logo para a casa dos Bassett, sou capaz de começar a
chorar e estragar tudo, porque já tive emoções demais para um só dia.
Steven deu a partida e levou-a para casa, em silêncio. Tinha que admirar a
coragem de Janet, mesmo condenando a atitude dela. Chegando à casa dos Bassett,
esperou que ela abrisse a porta, acenou-lhe e voltou para sua casa, decidindo que a
primeira coisa que faria na manhã seguinte seria procurar Brett. Sabia que, com
algumas palavras, o convenceria a não aceitar o sacrifício de uma garota como Janet
Morley. Sabia que a única preocupação de Brett era para com a humanidade em geral e
seu único amor: o trabalho. Ele vai entender, é claro, pensou.
Mas não foi fácil conversar com Brett. Combinaram de almoçar juntos, mas,
quando Steven chegou ao restaurante, Rosemary também estava lá. Tinha algumas
compras a fazer, ela explicou, e queria saber sobre os planos para o casamento. Era
impossível dizer a Brett o que tinha em mente. Só quando Rosemary pediu licença para
ir ao toalete, Steven teve chance de falar com o afilhado:
— Não seja bobo, Steven — Brett respondeu, áspero. — Janet sabe muito bem
que se trata apenas de um negócio e nada mais. Ela me procurou para pedir ajuda e eu
lhe dei. Que eu saiba, ela não está fazendo nenhum sacrifício. Vai ter mais dinheiro,
mais liberdade e mais tudo o que quiser. Muito mais do que se continuasse sendo
enfermeira no São Lucas ou tivesse casado com aquele noivo. Não comece a ver
obstáculos onde não há. Afinal, você é meu padrinho, não de Janet. Tem que ficar do
meu lado!
Era muito tarde para dizer mais. Rosemary estava voltando para a mesa.
Amando-a tanto quanto sempre a amou, Steven não teve coragem de tirar-lhe aquele
brilho dos olhos e o sorriso de felicidade que havia em seus lábios. Com esforço,
procurou participar dos planos para o casamento e ficou satisfeito por conseguir
influenciar Brett na decisão de passar uns dias, como lua-de-mel, numa vila de
pescadores onde o próprio Steven ia, às vezes, quando se sentia extenuado pelo
excesso de trabalho no hospital.
— Vocês ficarão bem lá — disse, acompanhando mãe e filho até o carro. — A
sra. Hewitt cuidará de vocês muito bem.
Steven não pôde fazer mais nada. Acenou, quando o carro se afastou, suspirou e
voltou ao trabalho. Dentro de dois dias, seria testemunha daquele casamento. Brett
insistiu que tudo tinha que ser resolvido o mais rápido possível. Janet queria partir. Brett
queria ter certeza de que logo cumpriria as condições do novo cargo. Rosemary queria
que tudo fosse o mais feliz e agradável para todos. Só Steven continuava apreensivo, e
não tinha nada com isso!
Repensou isso, dois dias mais tarde, no cartório. Janet estava pálida, mas
bastante controlada. Só uma vez, ela se referiu ao fato de que, se não tivesse se
aproximado de Brett, ele já teria encontrado outra pessoa para casar. E outra vez, com
voz trêmula, perguntou a Steven se Brett amava Elinor Constable.
A cerimônia foi curta, e logo os noivos partiam de carro.
Steven sentia um nó na garganta ao pensar em como seria bom se o casamento
a que tinha acabado de assistir tivesse um significado real para o casal. Pegou o braço
de Rosemary.
— Venha, minha querida. Vamos comemorar. Só nós dois.
Ela suspirou e deixou que ele a levasse para casa.
— Sinto que posso descansar, agora que Brett encontrou uma esposa. E uma
moça tão boa! Espero que sejam felizes.
— Eles serão — Steven garantiu, esperando estar dizendo a verdade, e não,
simplesmente, falando por falar. Mas enquanto dirigia, começou a imaginar quanto
tempo Janet levaria para descobrir que não seria tão fácil se sair bem no tipo de
emprego que acabava de aceitar.
Na verdade, Janet não estava preocupada com isso no momento. Só gostaria de
saber qual a melhor maneira de abordar o assunto de sua suposta lua-de-mel. Olhou
rapidamente para Brett, concentrado na estrada. Como sempre, parecia calmo, seguro
de si e dono da situação. Tão diferente da figura convencional de um noivo, que Janet
sentiu um calafrio de dúvida e estremeceu. Ele percebeu e sorriu para ela:
— Com frio? Há uma manta aí atrás. Quer que eu pegue para você?
— Não, não, posso me virar sozinha, obrigada. — Janet sentiu uma súbita onda
de pânico. Não podia sequer explicar que seu estremecimento não tinha nada a ver com
a temperatura. Pegou o cobertor no banco de trás do automóvel e cobriu as pernas,
apesar de não estar com o menor frio.
— Tudo bem agora? — Brett perguntou, depois de alguns segundos. — Há
alguns chocolates na maleta, e cigarros. Aperte o botão à sua esquerda para acender a
luz.
Como poderia, pensou Janet, desesperada, fazer as perguntas que a afligiam?
Para onde estavam indo? O que Brett tinha acertado para a viagem?
— Pode acender um cigarro para mim? — pediu Brett, em seguida. — Este trecho
da estrada é muito perigoso: só curvas e lombadas. Preciso me concentrar.
Janet obedeceu e ele agradeceu, com um sorriso. Nenhum dos dois falou mais,
até que uma longa estrada, com melhor visibilidade, se estendeu à frente deles.
— Obrigado por tudo. — Brett quebrou o silêncio, de repente. — Fiquei feliz por
você não ter deixado mamãe perceber. Isso significa muito para ela. De certo modo, sou
a carreira dela, entende? Portanto você ajudou a nós dois.
— Fico contente também. Eu só.. . — Hesitou e acrescentou, impulsiva: — Eu só
não queria uma lua-de-mel. Não pode me deixar aqui? — Apontou para uma
cidadezinha à beira da estrada. — Poderia me pegar na volta. Eu estarei bem.
— Estará bem comigo também. — Parou no acostamento, desligou o motor e
olhou sério para ela. — Não se preocupe, Janet. Costumo cumprir minhas promessas.
Tomarei conta de você e não vou interferir na sua vida. Nós dois estamos precisando de
umas férias. E é isso que teremos. Mas não é necessário que fiquemos separados. Acho
que poderemos ser bons companheiros, se tentarmos. Compreende?
— Não. Quero dizer...
— Estamos registrados no Hotel Fisherman como sr. e sra. Hardy. Acho que
teremos uma porta de ligação entre nossos quartos. — Frisou bem a palavra. — Mas a
chave ficará do seu lado da porta. Não esqueça de destrancá-la.
— Você quer dizer... Entendo. — O rosto dela ficou vermelho, e Brett
surpreendeu-se, achando-a adorável. — Obrigada, muito obrigada. Eu não pareço
confiar em você, não é?
— Não, mesmo. — O sorriso dele era brincalhão, quando deu a partida. — E
então? Vamos continuar, ou ainda prefere passar suas férias sozinha?
— Vamos em frente. Por favor.
Já era tarde, quando estacionaram no pátio do pequeno hotel. As luzes estavam
todas acesas e se ouvia uma música suave.
— É um hotel pequeno, mas bem conhecido — Brett explicou. — Foi Steven
quem o descobriu. Quase todo mundo vem aqui uma vez ou outra, mas nunca fica cheio
demais. Pelo menos, foi o que Steven garantiu.
Janet sorriu, aprovando. Sentia-se cansada, mas feliz e estranhamente tranqüila.
Jantaram numa saleta particular, depois fizeram um passeio até o alto de um morro e
voltaram para o hotel, em paz com o mundo e um com o outro. Não parecia nada
estranho que os dois subissem juntos a graciosa escada que levava aos quartos, ou que
Brett parasse em frente do n.° 7.
— O meu é o 6 — disse, sério. — A porta ao lado. Eles têm comunicação. E esta
— abriu a mão dela — é a chave. Boa-noite e tenha bons sonhos. Baterei na porta,
antes do café chegar, às oito.
— Boa-noite.
Janet entrou, fechando a porta, devagar. Olhou a chave em sua mão e para as
duas portas, uma dando para o corredor e a outra para o quarto de Brett. Sabia muito
bem que não era necessário trancá-la. Só depois de alguns momentos é que percebeu
que tudo estava errado. Inexplicavelmente, as lágrimas começaram a escorrer de seus
olhos. Jogou-se na cama macia e chorou, chorou até não conseguir mais chorar.

CAPÍTULO V

J anet não sabia bem por quê. Talvez as lágrimas, ou o fato de estar numa
cama estranha, ou, quem sabe?, o champanhe que Brett insistiu para que tomasse
depois do jantar a fizeram dormir como pedra, sem sonhos. Acordou cedo e ficou
deitada, perguntando-se por que tinha sido tão idiota.
O que a fez dar aquele passo no escuro? Teria sido a lembrança da solidão que
sentira, antes de Nigel aparecer em sua vida? Ou acreditava tanto no trabalho de Brett
que se sentia feliz em poder participar dele? Ou, simplesmente, porque tudo aconteceu
tão inesperadamente, que não teve tempo nem de pensar?
Olhou para o relógio. Eram exatamente sete e meia. Brett tinha dito que a
chamaria antes do café da manhã, que seria servido às oito. Levantou e foi se lavar,
ciente de que o banheiro era comum aos dois quartos. Já estava parcialmente vestida,
quando o ouviu cantarolar. Podia ser bobagem, mas aquilo fez as coisas parecerem me-
lhores para ela. Assim que Brett bateu na porta de comunicação, ela abriu, com um
sorriso.
— Já vestida? E eu, que liguei o chuveiro para você.
Janet corou, mas ele não pareceu notar seu embaraço. Naquele momento, a
camareira entrou no quarto.
— Se alguma coisa não estiver do seu agrado, madame, por favor, queira me
comunicar.
Janet agradeceu e disse-lhe que a bandeja do café estava ótima. Ficou pensando
no sentido da palavra "madame". Parecia que lhe conferia uma dignidade bem diferente
da que tinha, no hospital.
— Uma colher de açúcar e pouco leite, certo? — ela perguntou. — O café com
leite, bem forte.
— Certo. — Brett sorriu. — Cigarro?
— Não, agora. — Janet reprimiu a vontade de repreendê-lo por fumar antes de
comer qualquer coisa. Pareceu-lhe muito pessoal. Como uma coisa de... esposa para
marido. — Fumarei depois de comer alguns biscoitos.
Muito elegante num robe de seda, Brett recostou-se na poltrona e ficou
observando Janet.
— Acho que podemos começar as férias com alguns planos. O que você gosta de
fazer?
Ela riu, achando surpreendentemente fácil responder e ficar à vontade com ele.
— Gosto de quase todas as atividades ao ar livre. Adoro cavalgar, mas faz muito
tempo que não pratico. Gosto de piqueniques, passeios a pé, ir de carro a lugares
remotos e desconhecidos. Gosto de assistir a jogos e de jogar tênis. E, também, de
navegar e de nadar.
— E de pescar?
— Só como observadora.
—- Certo. Parece que temos um bom começo. Quero que estas férias sejam
inesquecíveis para nós dois. Temos tantos gostos e idéias em comum, que podemos
nos divertir juntos. Está uma manhã linda, a primeira de um mês repleto de lindas
manhãs, acredito. Que tal pedirmos uma cesta de lanche e irmos passear num lugar
chamado Poço dos Desejos? Poderemos voltar pelo litoral, parar para um banho de mar
e voltar só para o jantar.
— Parece ótimo! — Janet hesitou por instantes, procurando as palavras certas. —
Sei que vamos nos divertir nestas férias. Pelo menos, eu vou. Muito obrigada... por tudo.
O primeiro dia de férias foi realmente maravilhoso. Foram até o Poço dos
Desejos, que, conforme Brett leu no guia de turismo local, tinha sido a casa de um velho
eremita. Contavam que na casa havia uma fonte de águas medicinais e, segundo a
crença local, quem jogasse uma moeda de prata no fundo do poço tinha seu pedido
atendido.
— É bem provável que, logo que termine a temporada de férias, os moradores da
cidade recolham as moedas — comentou Brett, sarcástico. — O que você pediu, Janet?
— Se eu contar, não vai se realizar. Mas acho que é mais a força do pensamento
que realiza os desejos. Pedi que a nossa "união" fosse bem feliz.
— Que estranho! Pedi a mesma coisa. Com duas pessoas desejando isso, é claro
que se realizará.
Ainda estavam rindo e fazendo gracejos sobre o Poço dos Desejos, quando
começaram a descer a encosta. Pegaram novamente a estrada; ao encontrarem uma
praia aconchegante, pararam para almoçar. Depois, descansaram um pouco, tomaram
um banho de mar, vestiram-se lentamente e voltaram, alegres e famintos, para o hotel.
O lugar estava sempre cheio. Havia música na pista de dança à noite, mas no
começo, preferiram só observar. Aos poucos, foram participando de todas as atividades,
como jogar baralho ou simplesmente conversar.
Passavam a maior parte do dia fora. Visitaram as ruínas de um antigo convento,
foram a um castelo ainda intacto, ainda com cadafalso e torre, tudo corroído pelo tempo;
alugaram um barco e pescaram — isto é, Brett pescou e Janet ficou descansando. O
maior prazer dela era a cavalgada matinal. Era uma ótima amazona e se deliciava com o
exercício. Quando Brett a observava, achava-a bem diferente da séria enfermeira do
São Lucas.
Pensava nisso agora, vendo-a muito concentrada, enfileirando uma porção de
conchas que tinha apanhado. Nadara um pouco e depois sentara-se ao lado da cadeira
de praia dele, os cabelos dourados secando ao sol.
— Por que se preocupar? — perguntou, preguiçosamente, quando Janet
reclamou de uma concha feia. — Não vai usá-las. Logo mais, elas serão apenas lixo.
— Gosto de ficar ocupada. Detesto não ter o que fazer. Não quis dizer —
emendou, com medo de ser mal interpretada — que não esteja gostando das férias. É
que, bem... é difícil explicar, mas mamãe dizia que é melhor ficar ocupada...
— Para que o diabo não use as mãos ociosas para fazer alguma maldade. —
Brett completou, rindo. — Também ouvi isso muitas vezes. Mas, como tudo na vida, não
deve ser levado a sério. Só trabalho e nenhum divertimento também não leva a nada.
Janet sorriu para ele, mas logo o sorriso desapareceu.
— Você escreveu para Brocklemeade? Há alguma coisa para eu fazer lá?
— Recebi uma carta hoje de manhã.
Levantou, pegou a camisa e começou a remexer no bolso, até encontrar duas
cartas que tinham chegado na hora do café da manhã. Uma era de Steven, endereçada
a ambos, cheia de novidades do hospital, mais um bilhete da sra. Hardy. Tinha dado
essa carta para Janet ler, na hora do café, mas guardou a outra, pois sabia quanto ela
esperava conseguir algum trabalho quando voltassem das férias.
— Aqui está — entregou-lhe o envelope, relutante. — É melhor que você mesma
leia. Não ligue muito para a linguagem formal, esses burocratas gostam de parecer
importantes!
Pressentindo o pior, Janet leu rapidamente. Estava claro que Brett não havia
mencionado, na entrevista, que a esposa também queria trabalhar. No momento, diziam,
não tinham nenhuma ocupação para oferecer a ela. Quem sabe, no futuro, conhecendo
melhor suas qualificações, também pudesse ser útil. Janet dobrou a carta com cuidado e
devolveu-a.
— Eles sabem dizer não de uma maneira muito agradável — disse, num tom frio
e calmo que não demonstrava seu desapontamento. — Não acho que haja alguma
chance de eu trabalhar lá. Parece que o quadro de funcionários está completo.
— Eu farei com que achem algo. Sei o que isso significa para você e também que
não usar você é desperdiçar uma ótima profissional. Mas não esqueça que já está sendo
muito útil. Sem a sua ajuda, eu não poderia ir para Brocklemeade. Sei que não é a
mesma coisa que ter o próprio emprego, mas...
— Eu tenho um emprego — sorriu, graciosa. Não era culpa de Brett se não havia
lugar para ela, a não ser o lugar de "esposa", no pequeno mundo de Brocklemeade. —
Posso esperar, se você me prometer tentar achar um lugar para mim logo que for
possível.
Quando Brett começou a falar de seu trabalho e dos planos que tinha em mente,
ela pensou que seria bem mais fácil, se aquele fosse um casamento de verdade. Assim,
teria as tarefas domésticas para executar, embora os aposentos em Brocklemeade não
fossem como um verdadeiro lar. E poderia se ocupar com uma série de afazeres diários
que dão tanto prazer a uma mulher que cuida da casa para o homem que ama.
Balançou a cabeça para afugentar as fantasias que a atormentavam.
Recusava-se a pensar nos planos que tinha feito com Nigel, sobre sua casa, suas
esperanças, seus sonhos. No íntimo, sabia que Brett estava certo ao afirmar que seu
orgulho estava mais ferido do que o coração. De qualquer maneira, Nigel era o homem
com quem havia planejado ter um lar, seu futuro. Era difícil tirar tudo isso da cabeça de
uma hora para outra.
— Você não estava ouvindo! —- A voz queixosa de Brett arrancou-a de seus
pensamentos. — Sinto muito. Acabo aborrecendo você com esse assunto, se não me
interromper...
— Eu não estava aborrecida — Janet garantiu, pensando em como a vida seria
horrível, se ele achasse que não estava bastante interessada no trabalho dele. — Quer
dar mais um mergulho, antes de voltarmos?
E foi assim, durante as duas semanas seguintes. Janet nunca se sentira tão feliz;
nem mesmo, lembrou com certa dor, quando os pais ainda eram vivos. Tinha sido feliz
naquele tempo, mas era aquela felicidade de criança amada, acarinhada e cuidada.
Agora, sentia uma alegria diferente.
Não havia nada de embaraçoso no relacionamento deles. No começo, estava
preocupada. Mas, apesar da amizade e camaradagem, Brett jamais tentou flertar com
ela. Devia ser, para ele, uma espécie de irmã querida.
Ela sabia que os dois eram o prato predileto nas discussões dos outros casais
hospedados no hotel. Havia duas senhoras de meia-idade que, Janet tinha certeza,
viviam especulando a vida conjugal deles.
Pegou-as observando-os dançar ou sentados no bar, bebendo um refresco. Isso a
divertia e ao mesmo tempo entristecia.
Ficava imaginando se as duas pensavam que ela e Brett estavam em lua-de-mel
ou se já eram casados há algum tempo; ou, ainda, se eram realmente casados.
E, assim, os dias foram passando. Steven escreveu outra carta, na qual se
percebia sua ansiedade em saber como andavam as coisas.
— Vou responder esta noite — disse Brett. — Ele é um velho xereta, mas um
grande amigo!
— Ele é ótimo. Também quero escrever algumas linhas.
Mais tarde, Janet ficou feliz por ter escrito a carta naquela hora, e não após o
piquenique à beira do rio. Tinham planejado ir pescar na manhã seguinte. Brett pescaria
e Janet levaria um livro novo para ler. Como sempre, o cozinheiro tinha acomodado o
lanche deles numa bela cesta e Brett dirigia o automóvel margeando o rio, con forme as
indicações de um entendido em pesca do hotel. Estacionaram e andaram alguns metros
a pé, até encontrar uma sombra.
Janet acomodou-se na esteira e apoiou as costas num tronco de árvore. Usava
um conjunto branco com detalhes em azul que realçava a cor de seus olhos e cabelos.
As pernas longas e bem-feitas estavam nuas; a pele bronzeada do rosto estava
protegida por um chapéu de abas largas.
Sentado do lado oposto, fumando um cachimbo, Brett refletia sobre a mudança
que havia acontecido com ela. Sempre tinha sido bonita, mas o ar fresco, a liberdade, a
atmosfera de felicidade lhe deram uma beleza nova. Sorriu, satisfeito. Sem escolher as
palavras ou pensar no efeito que iriam provocar, disse:
— Devia usar branco mais vezes, Janet. Fica-lhe muito bem. Você parece uma
noiva...
Parou, ao ver que ela empalidecia.
— Sinto muito. Sou um idiota! Você sabe que eu não tive intenção de magoá-la.
— Está tudo bem. — Um pouco da cor voltou a seu rosto, e Janet fez uma
tentativa para sorrir. — Foi só porque lembrei que hoje seria o dia do meu casamento
com Nigel. — Olhou para o relógio: — Daqui a uma hora, para ser exata.
Brett levantou rapidamente e se ajoelhou à frente dela.
— Isso tem tanta importância assim? Eu pensei que...
Ela ficou alguns minutos em silêncio, querendo ser honesta com Brett e consigo
mesma, ao mesmo tempo achando que ia parecer um pouco volúvel, se dissesse a
verdade. Mas a verdade tinha que ser dita.
— Não, não tem tanta importância. Pelo menos, a importância que deveria ter. Eu
acho... eu sei... que você estava certo. Meu orgulho ficou mais ferido do que o coração.
Mas orgulho ferido é uma coisa bem dolorosa, Brett.
— Eu sei. Mas é melhor do que a outra dor. Não pense que não entendi. Sei
muito bem que você jamais teria prometido casar com Nigel, se não sentisse alguma
espécie de amor por ele. Ou afeto. Ou sei lá o quê. Por isso, além de seu orgulho, você
também está ferida.
Janet não respondeu. Como é que ele podia entendê-la tão bem? Ela se
importava com Nigel, porém mais como a um irmão querido do que como marido. Como
Brett teria adivinhado que ela não era o tipo de moça que casa por casar? E, ao mesmo
tempo, não foi isso mesmo que fez?
Tudo era muito confuso e Janet sentia-se emocionada demais para tentar
descobrir o que estava acontecendo com ela. Inesperadamente, Brett colocou a mão
amiga em seu ombro e disse:
— Vamos desistir da pescaria e passear?
Foi o melhor dia que tiveram juntos até então. Havia um novo sentimento entre
eles. Uma nova sensação de pertencer um ao outro. E foi essa sensação que fez Janet
ficar contente por ter escrito a Steven antes do piquenique, antes que essa nova e
desconhecida emoção surgisse no relacionamento com Brett.

CAPÍTULO VI

Q uando Janet acordou na manhã seguinte, sentiu-se agitada, apreensiva


como nunca. Ficou deitada ainda algum tempo, relembrando os acontecimentos da
véspera, e imaginou que seu nervosismo se devia à emoção diferente que havia entre
os dois, quando se separaram à noite.
Estou sendo tola, disse a si mesma. Não significo nada para Brett. Ele só foi gentil
comigo, porque me aborreci com aquele comentário sobre minha roupa.
Não foi um pensamento muito reconfortante, mas serviu para lhe dar força para
levantar, vestir-se e encontrar com Brett para o café da manhã. Em poucos momentos,
percebeu que ele também estava diferente. Tinha sido gentil desde o começo, mas
agora havia mais calor em sua voz e no sorriso, quando lhe deu bom-dia.
— O que gostaria de fazer hoje? — ele perguntou. — Escalar a montanha,
explorar mais algumas ruínas, navegar, nadar? Alguma sugestão?
— Não sei. — Janet serviu o café, como sempre, passando a xícara para ele. —
Parece que passamos tantos dias maravilhosos, que nunca mais vamos querer voltar.
Acho que isso não é muito bom para nós.
Brett entendia muito bem. Ela se referia a seu futuro, que não prometia nada de
muito animado. Para ele tudo corria bem; podia fazer planos. E ela? Que planos faria?
Teve pena de Janet, ao lembrar de sua dedicação e amor ao trabalho. E compreendeu o
sacrifício dela. Por isso, tornou-se ainda mais gentil, quando pegou um cigarro e lhe
ofereceu outro.
— Sei o que quer dizer. Mas pode não ser assim. Prometi fazer o possível para
conseguir um emprego para você em Brocklemeade e o farei. Enquanto isso, vai ter uma
porção de afazeres como sra. Hardy: encontros com outras esposas, visitas ao conselho
médico, participar do comitê que programa entretenimento para os funcionários... Não
sei se terá tempo para trabalhar mais do que isso.
— Espero que não. É que, bem, não sei se serei o tipo ideal de esposa para fazer
essas coisas.
Corou, imediatamente, ao pronunciar a palavra "esposa". Se Brett percebeu, não
demonstrou, e ela continuou:
— Não estou acostumada com isso. Posso cometer muitos erros, posso fazer
com que tenha vergonha de mim...
— Você nunca conseguiria isso! — Brett falou com tal ímpeto que até levantou,
pegando a mão dela. — Não se preocupe, pequena Janet. Ninguém poderá sentir senão
inveja de mim por ter você. Precisa perder essa insegurança e lembrar que é uma moça
adorável, inteligente e que tem a maior de todas as qualidades: a coragem!
Sentiu os finos dedos dela tremerem, mas não soltou sua mão.
— Nós nos damos bem e temos um trabalho a fazer juntos. Esse é o melhor tipo
de casamento, quando as pessoas não se deixam levar por impulsos malucos ou por
necessidades físicas. Não há razão para que não possamos nos sair bem. É uma
questão de adaptação: trabalhando juntos e tendo os mesmos ideais, as mesmas idéias,
tem que dar certo. E já temos isso, não temos?
Estranhamente segura de si, ela sorriu para Brett e retirou a mão.
— Sim, nós já temos. E, agora, precisamos chegar a um acordo sobre nossos
planos para hoje. Se não nos apressarmos, vamos perder a manhã. E não seria um bom
começo!
Não sabia bem por que tinha mudado o rumo da conversa, mas percebeu que
estava ficando com medo. Medo daquela estranha nota de intimidade, de posse. Num
casamento como o deles, isso poderia ser muito perigoso.
Talvez esse mesmo pressentimento a tenha levado a agir como agiu, um pouco
mais tarde, ao se encontrar com Brett na sala de refeições. Estava para se reunir a ele
na mesa, quando novos hóspedes entraram. Era uma família: mãe, pai, duas crianças
em idade escolar e outra bem mais nova. Janet soube mais tarde que tinham viajado a
noite inteira para evitar o trânsito do dia. As crianças estavam impacientes e cansadas e
a mãe, esgotada. Desculpando-se, Janet afastou-se de Brett e se aproximou da família.
— Posso ajudar? Só até vocês se instalarem e descansarem um pouco?
A mãe ficou agradecida e o pai, aliviado. Mas foi a reação das crianças que mais
chamou a atenção de Brett. As duas mais velhas pararam de reclamar, assim que Janet
pegou o bebê no colo e começou a falar sobre as coisas maravilhosas que poderiam
fazer durante as férias. Brett não podia ouvir o que ela dizia, mas viu o olhar doce que
dirigia ao bebê, a maneira segura e delicada como o segurava no colo e as expressões
atentas das duas outras crianças.
Outra coisa errada que eu fiz, Brett pensou, de repente, zangado consigo mesmo.
Ela nasceu para ser mãe. Ela é uma mulher que precisa de filhos.
Lembrou de ter dito a Janet que sua mãe gostaria de vê-lo casado e com filhos.
Tinha dito também que salvar as crianças do mundo já era o suficiente. Agora, pela
primeira vez, percebia que, mais cedo ou mais tarde, Janet o acusaria de não ter
permitido que se tornasse mãe.
Eu estou ficando muito emotivo. Janet tem razão: esses dias sem fazer nada...
Quando ela acabou de ajudar a família Wilson, já era tarde para pedir uma cesta
de piquenique para o almoço. Sabiam que, se pedissem, o pessoal da cozinha não se
recusaria a atendê-los, mas, por sugestão de Janet, resolveram sair para mais um
passeio maluco.
— Vamos seguir todas as placas de sinalização à esquerda.
— Não podemos esquecer que, na volta, todas as placas estarão à direita —
brincou Brett. — É melhor levar um casaco. O sol parece que não vai continuar por
muito tempo.
Janet vestiu-se com cuidado especial. Embora não quisesse admitir nem para si
mesma que o comentário de Brett sobre a cor branca a tivesse influenciado, escolheu
uma saia de lã branca, uma blusa azul e um cardigã branco. Experimentou um par de
brincos em forma de margarida e, olhando-se no espelho, decidiu usá-lo. Pegou um
casaco mais pesado e desceu a escada correndo, em direção ao carro de Brett, que já
estava esperando. Ele sorriu quando ela sentou a seu lado. Havia dito a si mesmo que a
mulher com quem casasse deveria ser "apresentável". Janet era muito mais do que isso.
Janet tinha uma aparência tão adorável que ele muitas vezes, como naquele momento,
se espantava. Sentia orgulho dela e estava ciente dos olhares cobiçosos de alguns
hóspedes.
Tiveram um dia maravilhoso, viajando pelo campo, parando para almoçar numa
fazenda de telhado vermelho, onde uma senhora com as maçãs do rosto muito coradas
preparou-lhes uma deliciosa refeição. Gostaram muito de conversar com o fazendeiro e
a esposa, e mais tarde foram levados para um passeio pela fazenda. Brett demonstrou
profundo interesse pela vida no campo, o que deixou o anfitrião deliciado.
Despediram-se do casal, prometendo voltar algum dia. Inesperadamente, Janet
começou a rir e Brett, curioso, perguntou:
— Posso saber qual é a piada? Quero rir também.
— Não é uma piada. E só que... você é a pessoa mais surpreendente que já
conheci. Agora há pouco, falava de vacas, leite, colheitas, como se fosse um verdadeiro
especialista no assunto. Aprendeu tudo isso em algum livro ou o quê?
— Mais ou menos isso. Ficará surpresa, mas eu tinha certeza de ter nascido para
a vida do campo. Felizmente, quando fiz nove anos, paramos de passar as férias de
verão na fazenda. Ainda lembro como era bom acordar cedo e ir para o campo de feno
ou olhar a ordenha. Eu nunca teria me saído bem nesse tipo de vida, é claro. De qual-
quer maneira, é uma bela recordação.
— Acho que teria se saído bem em qualquer coisa que escolhesse. Você é desse
tipo de pessoa.
— Obrigado. Tenho tentado ser não um perfeccionista, mas quase isso. Agora, há
duas coisas que quero fazer bem: meu trabalho em Brocklemeade e o trabalho que
faremos juntos. Um depende muito do outro.
Aí estava de novo aquele tom de intimidade, que ela tanto gostava, mas ao
mesmo tempo, temia. Estremeceu. Isso não fazia parte do trato. Não devia haver
sentimentos entre eles. Era um contrato de negócios e nada mais.
Mas como poderia existir um contrato assim entre duas pessoas jovens, bonitas,
cheias de vida e energia, ambas tão próximas e tão distantes?
Tudo vai ficar bem quando formos para Brocklemeade, garantiu a si mesma. Tudo
ficará bem, porque haverá muito trabalho para ocupar nossos pensamentos.
Nesse dia, Janet se sentiu mais cansada ao voltar ao hotel do que em qualquer
outro, depois de longas excursões. Estava física e emocionalmente esgotada. Por isso,
foi com alívio que conseguiu escapar para o quarto para descansar um pouco e tomar
um banho relaxante de chuveiro antes do jantar. Brett disse que a esperaria no bar para
um drinque.
Por alguma razão, ela não se apressou a descer. Caminhou lentamente pelo
vestíbulo de telhado de vidro, com as plantas tropicais e cantos cheios de sombra, onde
grupos de hóspedes conversavam, tomando drinques e esperando pelo jantar. Acenou
alegremente para os Wilson, mas não queria conversar com ninguém naquele momento.
De repente, ouviu o nome de Brett e o seu serem pronunciados. Ficou logo alerta.
Eram as duas velhas curiosas que conversavam a respeito deles. Não pôde evitar de
ficar escutando.
— ...A princípio, pensei que fosse um casal em lua-de-mel — disse a sra. Hirst.
Janet podia até ver seu rosto fino e pálido. — Ele é tão atencioso! Todos os homens são
assim, no começo. Depois, ficam como Charles. Ou Roger.
Charles, o marido dela, era um coronel reformado. Janet não sabia quem era
Roger, mas logo teve a resposta. A outra velha, a sra. Lawsome, comentou:
— Acho que você está errada. Ele é cortês por natureza. É desse tipo de homem.
Continuará sendo gentil, mesmo quando for mais velho do que Charles ou Roger. Não,
querida, eles já devem ser casados há bastante tempo. O que é uma pena. —
Acrescentou, em voz mais baixa: — Ela, às vezes, parece tão triste. Será que têm
filhos?
Janet sentiu-se corar com essas últimas palavras. Já era hora de sair dali. Com
passos largos, seguiu para o bar, torcendo para que as duas não a tivessem visto.
Elas estão certas sobre Brett, pensou. Ele é gentil, mesmo. Vai rir muito, quando
eu lhe contar.
Não podia contar tudo, é claro. Não, a parte sobre crianças. Mas ele gostaria de
saber que a parceria deles era um sucesso, já que provocava até comentários.
Brett estava no bar, conversando com dois companheiros de pescaria. Ao vê-la,
pediu licença e se aproximou dela.
— Pronta? Estou faminto. Só um drinque, e vamos jantar.
— Acabei de passar por uma experiência interessante e engraçada — ela
começou a falar, quando ele parou e olhou para a porta.
— Espere um momento. Olhe lá, perto do bar. Eu estou vendo coisas, ou é Elinor
Constable?
Janet olhou e imediatamente todo seu entusiasmo desapareceu. Elinor Constable
entrava na sala, rindo de algum comentário feito por seu acompanhante, um homem alto
e moreno, com uns cinqüenta anos.
— Sim, é ela. — Mas Janet falava sozinha. Brett já tinha ido ao encontro de
Elinor, todo sorridente, com as mãos estendidas.

CAPÍTULO VII

J anet sentiu frio de repente. Era como se, sem aviso, toda a magia a tivesse
abandonado com a entrada glamourosa daquela mulher.
Embora isso não a confortasse nem um pouco, notou a maneira apenas cordial
com que Brett cumprimentava a pianista. Agora, ele se virava à procura dela. Janet teria
que enfrentar a situação. Só esperava que nenhuma das emoções confusas que estava
sentindo transparecesse em seu olhar.
— Lembra da srta. Constable, não? — Brett começou, lembrando que as duas já
se conheciam.
Janet acenou timidamente que sim enquanto Elinor respondia, estendendo a mão
delicada:
— Enfermeira Morton... não, Morley. É isso, não é? Sempre fui boa para lembrar
o nome das pessoas.
— Nem tanto — respondeu Brett, divertido. — Sra. Brett Hardy, estamos em
lua-de-mel.
Elinor hesitou por uma fração de segundo e Janet notou que tanto ela quando
Jack Claybourne, o moreno que acompanhava a pianista, perceberam o breve momento
de tensão. Mas a linda morena se recuperou rapidamente da surpresa. Com um sorriso,
abraçou Brett e Janet, demoradamente, desejando-lhes felicidades.
— Que ótimo! Precisamos comemorar! Jack, arranje champanhe, querido! Eu
nem imaginava... — Virou-se para Janet, enquanto seu companheiro saía para atender
seu pedido. — Brett não me falou nada sobre isso, na última vez que nos encontramos.
E olhe que não faz tanto tempo assim!
— Foi uma coisa bem repentina. Eu não imaginava que Janet pudesse sacrificar
sua carreira, mas a vida, às vezes, nos prepara surpresas.
— Você precisa contar tudo direitinho — Elinor insistiu com Janet. — Brett é um
bandido. E eu, que pensei que ia surpreendê-lo quando voltei de viagem!
— É mesmo? — disse Brett, enquanto Jack voltava com uma garrafa de
champanhe e enchia as taças. — A viagem, fale-nos sobre ela, Elinor. Acredito que você
tenha sido um sucesso em todos os lugares onde tocou.
— Acho que sim, não é, Jack? Jack é meu empresário. Ele é maravilhoso. Toma
conta de mim feito um pai.
— Não é bem assim — corrigiu o moreno, levantando o copo para um brinde. —
Elinor precisa de cuidados — continuou, depois de brindar à saúde e felicidade do casal
—, mas, não, dos cuidados de um pai! Vai indo muito bem e eu posso garantir que tem
futuro. Meu interesse não é estritamente profissional, como vocês poderiam supor.
Brett pareceu surpreso por alguns instantes, mas, depois, olhando para Elinor,
sorriu.
— E quais são seus planos agora?
Foi Jack quem respondeu:
— Estamos aqui só de passagem. Temos que ir correndo para Londres, para um
concerto na próxima semana no Albert Hall. Mas o pai de Elinor mora aqui perto e está
doente. Por isso, estamos aqui.
A conversa continuou. Como Elinor e Jack não tinham ainda jantado, Brett
convidou-os para sentarem à mesa com eles. Janet começou a sentir um aperto no
coração. A noite prosseguiu calma e alegre, mas, por algum motivo que não sabia
explicar, ela não se sentia bem. Talvez fosse por causa da troca do sorriso de intimidade
que percebia entre Brett e Elinor. Talvez porque falassem sobre música, um assunto que
não entendia. A tensão aumentou de tal maneira que sua cabeça começou a doer.
Depois do jantar, foram para o bar do hotel. Elinor pediu licença e foi ao toalete.
Brett precisou se ausentar para comprar cigarros e Janet e Jack ficaram a sós por uns
momentos.
— Outro drinque, sra. Hardy?
— Não, obrigada. Não estou acostumada a beber.
— Faz muito bem. Mas às vezes é bom beber para esquecer certas coisas. De
qualquer maneira, admiro sua coragem. É necessário muito amor para aceitar um
homem que foi desprezado. Ele nunca foi o tipo de Elinor e ela queria seguir carreira...
Os olhos de Janet faiscaram de ódio e indignação.
— Não sei o que o senhor quer insinuar, mas eu lhe garanto que o sentimento da
srta. Constable por meu marido não é diferente do que qualquer mulher sente pelo
médico que a ajuda.
— Ótima defesa! — Jack ergueu o copo, brindando, com ironia. — Peço
desculpas, sra. Hardy, mas como vê, eu amo Elinor. E ela põe a carreira acima de
qualquer coisa.
— Isso é admirável — comentou Janet, esperando que Brett voltasse logo para
pôr fim àquela situação absurda. — Embora a srta. Constable seja muito bonita e
atraente, e eu entenda que o senhor a ame, asseguro-lhe que está redondamente
enganado.
Brett voltou, e ela não pôde dizer mais nada. Steven tinha lhe garantido que Brett
nunca havia amado Elinor, e ele não mentiria. Estava convencida de que tudo não
passava de simples orgulho ferido da pianista. Devia ter ficado aborrecida por Brett não
pedi-la em casamento e acabou aceitando a viagem. Aos olhos de Claybourne, Brett
havia sido rejeitado por causa da carreira de Elinor.
Janet quase não conseguiu participar da conversa pelo resto da noite. Será que
não estava tentando se enganar, e Brett tinha realmente amado aquela mulher? Será
que ainda a amava? Como estaria se sentindo Brett agora? Arrependido por ter
colocado o trabalho acima do amor?
No fundo do coração, ela sabia a resposta. Nenhuma mulher no mudo faria Brett
desistir de seus ideais. Mas, se um dia tinha amado Elinor, devia estar desolado ao
comparar a exuberante pianista com a esposa discreta e tímida.
Antes de Elinor e Jack se despedirem, marcaram um último encontro. Janet ouviu
tudo sem entusiasmo. Estava emocionalmente arrasada. Mas, se Jack podia suportar a
situação sem demonstrar nenhum sofrimento, por que ela, uma simples esposa
contratada, não podia fazer o mesmo?
Brett acompanhou-os até o carro, e Janet avisou que ia subir para o quarto
porque estava cansada. Ele olhou-a, surpreso, e uma ruga se formou em sua testa.
— Está certo. Dormir cedo lhe fará bem. Mas não se preocupe, Janet: amanhã
eles irão embora. Boa-noite.
— Boa-noite — ela respondeu, e ficou imaginando se as palavras de conforto
tinham sido para ela ou para ele mesmo.
Pela primeira vez desde que chegaram ao hotel, Janet dormiu mal. Acordou com
uma terrível dor de cabeça e a impressão de que o dia começava mal. A princípio,
pensou que estava errada. Afinal, Brett estava gentil como sempre e o café da manhã
também transcorreu normalmente. Mas, ao terminarem, o carro de Elinor, com Jack ao
volante, já estava estacionado em frente ao hotel. O dia que Janet tanto temia havia
chegado.
Janet sentiu uma onda de simpatia e cumplicidade entre ela e Brett, quando Elinor
descartou a possibilidade de explorar as redondezas e almoçarem numa praia deserta.
Em vez disso, já tinha reservado uma mesa para quatro num elegante restaurante da
moda. À tarde, iriam a um concerto em Spa; depois, um passeio noturno e, finalmente, o
jantar no hotel.
Cumpriram o programa à risca, e foi um dia bastante aborrecido. No fim da noite,
Brett estava mal-humorado.
Elinor parecia não perceber que aquele não era o caloroso Brett Hardy, mas o
Brett Hardy profissional. Janet suspirou e a outra perguntou se estava entediada.
Esforçou-se, então, para participar da conversa o mais que podia.
Foi um alívio, quando o jantar terminou e os dois visitantes partiram. Era como se
uma sombra tivesse finalmente desaparecido. Mas, quando ficaram a sós no hotel, Janet
não percebeu nenhuma melhora na expressão de Brett. Em seguida, ele foi convidado
por alguns hóspedes a jogar baralho e ela resolveu ir dormir.
— Seus amigos se foram, sra. Hardy? — Janet assustou-se ao ver a sra. Wilson a
seu lado. — Eu não quis perguntar antes, mas aquela não era Elinor Constable, a
pianista? Já a vi tocar. Gostaria tanto de ter pedido um autógrafo, mas não pude porque
não tinha certeza.
— Era a srta. Constable, sim. E tenho certeza de que ela ficaria feliz se a senhora
tivesse feito o pedido.
— Vou escrever a ela, então. Tenho a impressão de que é do tipo de pessoa
gentil, mas que mantém distância. Oh, desculpe. Eu não devia falar assim de sua amiga,
mas foi a impressão que tive.
— E a senhora está certa. — Janet assustou-se muito com a própria calma. —
Conheço muito pouco a srta. Constable. Meu marido a operou da garganta, há algum
tempo. Ela é mais uma cliente do que propriamente uma amiga.
Mais tarde, enquanto escovava os cabelos no quarto, ficou pensando se
conseguia dar a impressão de uma esposa feliz. Sem saber por que, sentiu de volta
aquela mesma sensação estranha de desolação que teve com a presença de Elinor. E
ficou olhando para sua imagem no espelho, com os olhos arregalados.
Isto não pode significar nada, pensou. É simplesmente o fato de estarmos juntos.
Nós nos divertimos tanto! É como ter novamente alguém que me pertença. Nada mais.
Sentiu um arrepio. Embora não soubesse ao certo se era de frio, vestiu
rapidamente a camisola e enfiou-se debaixo das cobertas. Não podia pensar em Brett
como seu marido. Ele era, mas não da maneira convencional. Isso não fazia parte do
contrato. A vida de um devia ser completamente independente da do outro. Se o
sentimento de posse começasse a aparecer entre eles, muitos mal-entendidos poderiam
surgir.
Aquele casamento não passava de uma sociedade. A vida de Brett, seus
pensamentos e suas emoções não eram da conta dela. Fechou os olhos e tentou dormir.
Mas não conseguia pegar no sono, enquanto ouvia Brett andar no quarto ao lado. Ficou
deitada, quieta, escutando. De repente, aconteceu o que ela esperava e tanto temia ao
mesmo tempo: ele estava batendo de leve na porta de comunicação. Com o coração
descompassado, ela sentou na cama e respondeu:
— Entre. A porta não está trancada.
Ele não demonstrou surpresa. Aproximou-se, com um sorriso de intimidade.
— Você está bem, Janet? Não é seu costume correr para a cama tão cedo. Quer
comer alguma coisa? Ou tomar um copo de leite, para ajudá-la a dormir?
Pensou com raiva que a olhava como se fosse uma paciente, e ele estivesse ali
para fazer um exame. Não tinha idéia de como estava bonita com os cabelos dourados
emoldurando o rosto, o colo nu que aparecia sob a camisola fina.
— Não quero nada, obrigada. A não ser, dormir. Estou cansada. Não estou
acostumada com pessoas como Elinor Constable. Não entendo de música ou coisas do
gênero. E nem sei se procedi da maneira correta, ou se ela chegou a sentir pena de
você. Eu gostaria de saber...
— Pobre criança — disse Brett, sentando na beira da cama. — Não imaginei que
pudesse se sentir assim! — Abraçou-a pelos ombros, como se fosse a coisa mais
natural do mundo, e afastou as mechas de cabelo que caíam na testa de Janet. — Você
não poderia me decepcionar, Janet querida; você nunca poderia decepcionar ninguém.
A não ser, talvez, você mesma. Em vez de pena, as pessoas estão com inveja de mim.
Principalmente, os homens. E o que Elinor pensa ou imagina não faz a menor diferença,
você sabe disso!
— Obrigada — sussurrou.
Ele teve que baixar a cabeça, aproximando-se mais dela, para ouvir. Sentiu o
perfume de Janet e notou em seus olhos azuis uma expressão de confiança e algo mais,
que ele não podia e não queria decifrar. Os lábios de Janet estavam tão próximos... tão
doces... Brett inclinou-se mais e beijou-a. Queria que fosse um beijo de amigo, de
conforto. Mas foi como se uma onda de emoção explodisse entre eles e o beijo amigável
transformou-se em paixão e desejo.
Com grande esforço, ele se afastou.
— Desculpe. Eu não pretendia... fazer isso.
Antes que ela se recuperasse e dissesse alguma coisa, ele acenou e voltou para
o quarto, fechando a porta de comunicação com um clique que pareceu despedaçar o
coração de Janet.
CAPÍTULO VIII

Q uando Janet acordou no dia seguinte, seu primeiro pensamento foi que
nunca mais poderia encarar Brett. O que o teria feito beijá-la? Pena? Mas isso não
explicava a súbita paixão desencadeada por aquele beijo.
Decidiu que tudo não havia passado de uma reação química. Os dois estavam
tristes, e ultimamente passavam tanto tempo juntos que...
— Janet? — Brett batia na porta, sem tentar entrar. — A copeira já deve estar
chegando. Tudo bem com você?
— Sim, tudo bem. Estou indo. — Pulou da cama e começou a se arrumar. A porta
continuava destrancada, mas Brett não se atrevia a abrir, nem ela. Estarei com você em
dois minutos — disse, tentando aparentar naturalidade.
Para seu alívio, ele bateu outra vez e, finalmente, entrou.
— Está uma manhã esplêndida. Uma das melhores até hoje. Esta carta chegou
justamente agora que estou me habituando a esta vida calma. — Estendeu-lhe a carta.
— É de Brocklemeade. Querem saber se podemos ir para lá neste fim de semana, em
vez de no próximo. Há um grupo de americanos que vai visitar Brocklemeade. O
Conselho quer que estejamos lá para recebê-los.
— Estou pronta para partir quando você quiser — disse Janet, indo com ele para
o terraço, onde a camareira colocava o café da manhã. — Tivemos umas férias
maravilhosas, mas não podem durar para sempre.
— Nada dura para sempre...
Janet ficou calada. Embora se esforçasse em pensar que aquele era um dia como
outro qualquer, sentia um certo constrangimento entre eles.
Por sua vez, Brett se censurava pelo comportamento impetuoso da noite anterior.
Sempre havia sentido aversão por quem não conseguia controlar os ímpetos. Agora
percebia que era fácil criticar os outros, quando não se passou ainda pela mesma
tentação.
Durante toda a noite, ele ficou pensando no que tinha acontecido, depois da
partida de Elinor e Jack, para que se comportasse daquela maneira. Pretendia
simplesmente sugerir um passeio ao luar, algo que compensasse o dia enfadonho que
tinham passado junto com o casal. Mas, ao entrar novamente no hotel, olhou para Janet
e sentiu-se indefeso diante da juventude e da beleza dela. E preferiu aceitar o convite
para jogar cartas, coisa que detestava. A imagem de Janet não lhe saiu da cabeça. Sem
saber o que dizer a ela, resolveu bater na porta de comunicação. Sua intenção era con-
fortá-la e fazê-la entender que o relacionamento dele com Elinor não tinha nada a ver
com o contrato deles. E que não precisava se comparar com Elinor. Mas, ao vê-la tão
jovem, bela e desprotegida sob os lençóis brancos, tudo se apagou de sua mente.
Mesmo o beijo... sua idéia era devolver-lhe a confiança em si mesma. De repente, algo
estranho aconteceu entre eles, e sentiu as mais intensas emoções vindas das
profundezas de seu ser.
Podia jurar que ela sentira o mesmo. Mas agora estava tão fria, e com um ar tão
distante e despreocupado, que ele só pôde se culpar ainda mais pela situação.
— Quer que eu vá arrumar as malas? — Janet perguntou, com um ar indiferente.
— Não demoro muito.
— Nesse caso, seria bom se aproveitássemos o dia para comprar algumas
lembranças. Para mamãe, para Steven, para a sra. Craddock e para quem você quiser.
Janet sentiu a alegria dos primeiros dias voltar. Respondeu, entusiasmada:
— Boa idéia. Vai ser divertido. Vou me aprontar num instante. Gostaria de levar
algo para os Bassett. Eles foram bons para mim, quando deixei o São Lucas.
A compra dos presentes foi realmente divertida. Para Steven, escolheram uma
agenda e uma caixa para cachimbos. Para os Bassett, acharam um lindo vaso de vidro
trabalhado. Para a sra. Craddock, uma malha de lã feita à mão e um avental de
jardinagem. Já a sra. Hardy representava um problema, porque, segundo o filho, tinha
quase tudo de que precisava e gostava de comprar sozinha suas extravagâncias.
Depois de muito procurar, encontraram, numa loja elegante, um finíssimo xale de chiffon
para o verão.
— Posso até ver sua mãe com ele.
— E esta — disse Brett, estendendo-lhe uma estola de pele de arminho — é para
você. Coloque-a e deixe-me admirá-la.
Janet hesitou, olhando da estola para Brett, em seus grandes olhos uma mistura
de excitação e incredulidade.
— Para... mim? Mas não é cara demais?
— Não gosta? — O tom de Brett era frio e indiferente, mas estava sorrindo.
— É a coisa mais bonita que já vi. Bonita demais para ser usada!
— Não há motivo para comprar, a não ser que você a use. Lembre que temos
uma série de atividades sociais e ela poderá lhe ser útil.
Ainda hesitante, porém já mais confiante, ela deixou que a vendedora colocasse a
estola em seus ombros.
Não protestou quando Brett sugeriu uns dois vestidos para noite. Depois, viram
sapatos, lingerie, meias e, finalmente, uma bolsa para noite, que ficaram de apanhar
mais tarde, quando o monograma em strass ficasse pronto.
Ao voltarem para o carro, Janet estava radiante e deslumbrada. Brett sugeriu uma
visita a uma elegante casa de cosméticos e ela o acompanhou, feliz. Foram atendidos
imediatamente por uma senhora francesa finíssima. Minutos depois, Janet tinha um jogo
completo de maquilagem para o dia e outro para a noite, além de um perfume feito
especialmente para ela, que apanhariam mais tarde.
De volta ao hotel, cansada, porém muito feliz, Janet sentiu-se, de repente,
constrangida. Nunca teve tanta coisa bonita. Nunca pôde comprar tanto, sem se
preocupar com o preço. Sempre renunciou ao luxo ou a alguma extravagância, porque
outras coisas eram mais importantes. É claro que imaginou que Brett queria que tivesse
uma boa aparência, mas ainda não havia pensado no lado material do contrato, e agora
estava coberta de presentes.
Impulsivamente, virou-se para ele:
— Eu gostaria de dizer... bem... obrigada... todas essas coisas... — Apontou para
os pacotes espalhados pelo quarto.
— Não, não agradeça. Preciso ter uma esposa que cuide de meus interesses.
Quando lhe propus a sociedade, avisei que podia fazer muito por você, materialmente.
Se pensar bem, verá que isso simplesmente faz parte de nosso acordo.
Sem dizer mais nada, ele entrou no banheiro. Em seguida, Janet ouviu barulho do
chuveiro, o que impediu qualquer tentativa de resposta. Ficou andando de um lado para
o outro do quarto, sentindo o entusiasmo morrer.
Enquanto isso, Brett se olhava no espelho, tentando se convencer de que ele
havia tomado a única atitude possível.
Não devemos deixar que os sentimentos interfiram, pensou. Ontem à noite, quase
estraguei tudo. E só porque Janet parecia tão jovem, tão indefesa, perdida... Mas, de
agora em diante, preciso ser mais cuidadoso.
Desceram em silêncio para o jantar e falaram muito pouco durante a refeição.
Brett esforçava-se para encontrar assunto, para que os outros hóspedes não
percebessem que havia algo errado.
Pela primeira vez desde que tinham chegado ao hotel, a noite se arrastou, lenta e
vazia. Brett sentia-se mal pelo incidente da noite anterior e pela maneira como recusou
os agradecimentos de Janet. Ela não podia imaginar a alegria dele ao escolher os
presentes e por saber que tinha, ao menos, o direito de dizer o que lhe ficava bem ou
não. Ela não podia imaginar o prazer que Brett sentiu, quando Janet lhe agradeceu. E só
o medo de que a cena da véspera se repetisse fez com que fosse tão rude.
Janet sentia-se infeliz também. No hospital, mesmo nos primeiros tempos de
treinamento, sempre soube onde pisava. Agora, estava tão incerta, tão insegura, que via
um futuro sombrio e até mesmo duvidava se poderia ajudar Brett.
Com esse novo relacionamento tão frio entre eles, era natural que se
preocupassem com a reação da sra. Hardy e de Steven, quando voltassem para passar
uma noite na casa de Brett, antes de irem para Brocklemeade, como estava planejado.
Se já tinha sido difícil manter as aparências durante a cerimônia de casamento, ima gine
agora! A princípio, Janet tinha tanta, certeza de estar fazendo a coisa certa... Até
comentou com Steven que havia males que vinham para bem, referindo-se a sua
pequena tragédia, que talvez servisse para ajudar Brett. No momento, sentia-se inapta
para a tarefa e já achava que falhara. Seria inútil fingir na frente de Steven. Ele
perceberia a verdade, logo que se encontrassem.
Como se pudesse ler seus pensamentos, Brett quebrou o silêncio:
— Acho que precisam de nós com urgência em Brocklemeade. Podemos ir direto
para lá. Se partirmos logo depois do almoço, chegaremos ao anoitecer. Podemos pedir o
almoço mais cedo. Teremos que correr. Será que você agüenta viajar sem parar?
— É claro que sim. E posso dirigir um pouco, se você ficar cansado.
— Obrigado. — Ele sorriu. Não aquele sorriso formal das últimas horas, mas o
sorriso sincero e amigo que ela conhecia tão bem. — Acho que agüentarei. Não é a
primeira vez que faço uma viagem longa. Mas, se precisar descansar, eu aviso. Não
pense que não confio em você como motorista, Janet. Confio em você em qualquer
situação, em qualquer lugar e em qualquer tempo!
— Fico feliz.
Finalmente, ela conseguiu sorrir também.
No entanto, estava triste ao se despedir do pessoal do hotel e dos amigos que
tinham feito lá.
Em circunstâncias normais, pensou, estaria eufórica, ansiosa para começar vida
nova. Para um casal comum, a lua-de-mel era um breve interlúdio antes de a vida em
comum começar realmente! Para Brett e para ela, era só férias, um prelúdio para um
futuro, no qual ela seria apenas uma figurante.
Janet ficou calada durante a viagem, imersa em seus pensamentos. Tentava
planejar o que faria da vida, se Brett não lhe arranjasse um emprego em Brocklemeade.
Mas como planejar, se não havia nada em que se apoiar? Brett olhou para ela uma ou
duas vezes, mas não fez nenhum comentário. Devia ter percebido sua preocupação,
porque, quando pararam para tomar chá, ele estava especialmente gentil.
Janet sentiu vergonha de si mesma, sem saber por quê. Também não falou muito
durante o chá, e Brett pareceu satisfeito em continuar viagem fazendo só alguns
comentários sobre a paisagem. Lá pelas sete horas, olhou para o rosto dela, que estava
pálido e cansado.
— Que tal jantarmos? Nós dois estamos precisando de um descanso. Depois,
você pode se enrolar nos cobertores e tirar uma soneca pelo resto da viagem.
Jantaram numa pequena e pitoresca cantina. Então, Janet lembrou que aquela
seria a última refeição com a agradável atmosfera de férias. Brett estava muito
bem-humorado, talvez porque, finalmente, estava para realizar seu sonho; ou, talvez,
simplesmente, porque as férias lhe tinham feito bem. Qualquer que fosse o motivo, o
jantar transcorreu alegremente. Ao voltarem para o carro, Janet sentiu-se bem por poder
dormir um pouco.
Embalada pelo ronco do motor, adormeceu profundamente e só acordou quando
o carro parou. Ainda sonolenta, olhou em volta. Brett estava abaixando o vidro e um
guarda examinava seus documentos. Percebendo que Janet tinha acordado, virou-se
para ela e sorriu.
— Ele está conferindo nossas identidades. Simples rotina.
Janet sentou, espantando o sono. Na escuridão, só conseguia ver um muro bem
alto com portões. Mais além havia muitas árvores e um prédio enorme. Completamente
desperta, perguntou:
— Chegamos?
— Sim. É Brocklemeade. — Pegando de volta os documentos

CAPÍTULO IX

J anet acordou cedo na primeira manhã em Brocklemeade. Levantou depressa


e olhou o relógio: eram apenas seis e meia. A noite anterior tinha sido a mais estranha
desde seu casamento. Brett pediu, pelo telefone, uma refeição fria e o fogo foi aceso na
lareira. Um bilhete, assinado "N. Heldon", informou-os de que na manhã seguinte seria
servido um chá às sete e quinze.
Brett comentou que "N. Heldon" devia ser a governanta. Procurou nos bolsos
todas as cartas que recebera de Brocklemeade e viu que estava certo. Depois, olhou,
ansioso, para Janet.
— Posso dormir no quarto de vestir esta noite? Eu pedi dois quartos, alegando
que precisarei trabalhar à noite e não quero perturbar seu sono. Mas não sei o que
aconteceu. Vou averiguar amanhã cedo.
Janet concordou e, como estavam cansados demais, comeram alguma coisa
rapidamente e foram para seus quartos. Não havia muito luxo, mas era tudo novo e
confortável.
— Eles não se preocuparam com o chamado "toque pessoal" — Brett disse,
sorrindo. — Acho que imaginaram que você quisesse fazer isso sozinha. Vou abrir uma
conta no banco para você; assim, poderá terminar a decoração.
Não conversaram por muito mais tempo. Depois de um rápido boa-noite, ele se
retirou para o quarto de vestir e fechou a porta de comunicação. Sem hesitar, ela se
despiu e foi para a cama, cansada demais para pensar em qualquer coisa.
Nesta manhã, estava descansada, mas não se sentia tranqüila. Olhou para a
porta do quarto de vestir que ainda estava fechada.
Preciso me levantar, pensou, em pânico. Preciso conhecer este lugar, antes de
começar a imaginar coisas.
Vestiu-se rapidamente, sem fazer barulho, e desceu a escada. Ouviu barulho na
cozinha.
A sra. Heldon deve ser uma madrugadora, pensou. Furtivamente, como uma
criança que quer escapar da vigilância dos pais, dirigiu-se para a porta de entrada,
abriu-a com cuidado e saiu para o jardim.
Ficou surpresa com o que viu. Estava claro, e percebia agora que Brocklemeade
ainda guardava muitas das características do tempo em que era uma mansão. Andou
pela grama aveludada e seguiu uma pequena trilha que levava a um jardim muito bem
cuidado; ainda seguindo a mesma trilha, encontrou uma horta e, finalmente, um jardim
mais fechado, uma espécie de bosque.
Ali, a vegetação era bem espessa. Os pássaros cantavam e, não muito longe,
podia ouvir o som de uma cascata. Havia muita paz. Caminhou devagar, desfrutando as
belezas da manhã e do lugar. O caminho tornou-se mais sinuoso, e ela ficou
imaginando, meio rindo para si mesma, se não teria entrado num daqueles labirintos tão
em moda anos atrás.
Sentou num tronco de árvore caído. Dando asas à imaginação, ficou pensando
nas pessoas que tinham vivido em Brocklemeade no passado. Quantas delas deviam ter
vindo por aquele caminho em busca de paz?
Foi interrompida por passos na grama. Subitamente apareceram dois enormes
cães latindo, pulando, abanando as caudas, dando a Janet as boas-vindas.
— Ei, de onde vocês vieram?
Em meio dos arbustos apareceu um homem, que chamou os cães.
— Sinto muito — Janet falou. — Será que estou em lugar errado?
— Se você é do Conselho de Pesquisas Médicas, a resposta é não — disse o
estranho, pedindo silêncio aos cães, que, para surpresa dela, obedeceram logo. — Eu,
isto é, nós estamos do lado errado, como você mesma disse. Parece que ninguém lhe
explicou nada até agora.
— Bem, não. É que chegamos ontem à noite.
Ele se aproximou mais. Era alto e muito magro, mas percebeu que havia nele
uma grande força.
— Posso? — pediu o homem, apontando para a outra metade do tronco da árvore
e oferecendo um cigarro a Janet.
— Sente — respondeu, aceitando o cigarro.
— Meu nome é Garth Marley. De Marley Hall! Somos vizinhos. Meu avô foi um
dos doadores de Brocklemeade. A propriedade pertencia à família da moça com quem
ele ia se casar. Mas essa é uma outra história. Quando foi posta à venda, ele a
comprou. Os jardins de Brocklemeade sempre confinaram com os jardins de Marley Hall.
Meu avô tirou os muros que separavam as duas propriedades e, exceto pelo riacho e o
muro levantado pelo governo, os jardins das duas casas são os mesmos.
— Então... — Janet calou-se, achando que poderia ofendê-lo se perguntasse se
havia pulado o muro.
Ele adivinhou seus pensamentos e, sorrindo, disse:
— Tenho uma chave. Isto é, minha mãe tem. Vim entregar uns ovos frescos.
Você deve ser a sra. Hardy. Seu marido é o grande astro desse show, não é? Fiquei
conhecendo a maioria do pessoal que trabalha aqui e soube da chegada dele. Flecker
me contou que vocês tiveram de encurtar a lua-de-mel por causa de uns visitantes
americanos ou coisa assim. Flecker é um dos assistentes do laboratório. Nós
costumamos pescar juntos. Mas foi uma violência trazê-la, assim, de repente. Poderiam
muito bem ter pedido para os americanos se atrasarem por uma semana, certo?
Janet sentiu-se corar pela referência à lua-de-mel e pelo olhar ligeiramente
malicioso que recebeu do rapaz. Para disfarçar, afagou a cabeça de um dos cães que
estava confortavelmente deitado a seus pés.
— É por uma boa causa — respondeu, alegre. — Eles acharam que precisavam
de Brett, e ele não podia desapontá-los.
— Muito consciencioso — comentou Garth, irônico. — Não sou muito dado a esse
tipo de coisa. Não, se o trabalho significar renunciar a algo de que realmente gosto. Em
todo caso, é bom que o mundo não esteja cheio de egoístas. Todos precisamos de
pessoas como seu marido. Também trabalha nas pesquisas, sra. Hardy? — Ele riu,
quando ela negou. — Nem tem família, por aqui, imagino? Então, venha conhecer a
minha. Há um bocado de gente lá em casa. Mamãe não é uma pessoa muito forte e, por
isso, gosta de ter sempre os parentes por perto. Aqui, a maioria das mulheres trabalha e
tem filhos. Estão sempre ocupadas. Mamãe ficaria imensamente feliz se eu a levasse lá
em casa agora.
— A esta hora? — Janet perguntou, incrédula.
Depois, olhando para o relógio, viu que já eram oito horas. Brett não devia estar
esperando por ela. Estava ansioso demais para conhecer o lugar o mais cedo possível.
— Eu gostaria muito de ir — disse, impulsivamente. — Se tem certeza de que sua
mãe não vai se importar. Se ela não está bem, certamente não vai querer visitas, a esta
hora da manhã. Como enfermeira — brincou —, sei que pessoas adoentadas não
gostam de acordar cedo.
— Mamãe não é inválida — Garth explicou, levantando e pondo-se a caminho. —
Ela tem o que se chama de "coração fraco". Depois dos ataques se recupera. Mas,
algum dia — disse, cheio de angústia e preocupação —, pode não se recuperar mais.
Normalmente, tem mais energia do que todos nós juntos. Levanta antes de todo mundo,
dá as ordens para as tarefas da casa e adora conversar a qualquer hora.
— Nesse caso, eu vou. Mas, se ela não estiver bem, volto imediatamente!
Janet não precisava ter se preocupado. Elizabeth Marley já estava na espaçosa
sala de jantar, sentada numa cadeira de espaldar alto de onde, certamente, devia dar as
ordens do dia. Cumprimentou Janet calorosamente e pediu para uma empregada
colocar mais um lugar à mesa, indicando uma cadeira a seu lado para a visitante. E,
assim, encorajou a moça a falar de si mesma.
Janet sempre teve uma recordação meio confusa dessa visita a Marley Hall.
Havia tanta gente na família... um irmão casado, sua mulher e duas crianças, duas
moças solteiras, um tio mais velho e algumas outras pessoas de quem já não conseguia
lembrar nem os nomes. Mas jamais esqueceu o calor e a gentileza de Elizabeth Marley,
que tudo fez para que ela se sentisse totalmente à vontade, mesmo na presença de
tantos estranhos.
Quando, finalmente, levantou para voltar para casa, Janet recebeu de Elizabeth
um convite para jantar na mansão naquela mesma noite. O convite era para ela e o
marido, mas não podia aceitar antes de consultar Brett.
— Todos de Brocklemeade costumam vir aqui. É como se fosse a casa deles —
disse Garth. — E continuou: — Nós temos interesse neles.
— Cale-se, Garth! — A mãe interrompeu, sorrindo. — A sra. Hardy respeita o
trabalho do marido. — E, virando-se para Janet, continuou: — Telefone-me, quando já
tiver conversado com seu marido. Se ele não puder vir hoje, poderemos convidá-los
outra noite.
Janet agradeceu e saiu. Garth insistiu em levá-la de volta.
— Você pode se perder — disse, meio brincando, meio sério. — Há muita grama
entre as duas casas, e não sei das coisas estranhas que seu marido e os amigos dele
podem ter por aí, para suas experiências.
— Não dê atenção a ele, sra. Hardy — disse a cunhada de Garth. — Só quer
voltar com você. Não acredite no que diz!
Falou rindo, mas, estranhamente, Janet percebeu um aviso em suas palavras.
Portanto, no caminho de volta, conversou pouco e quase não olhou para seu
acompanhante.
— Tente vir hoje à noite, sra. Hardy.
— Farei o possível — respondeu, sem muita convicção.
Não viu Brett até a hora do almoço. Depois, ele teve uma porção de coisas para
ver e fazer. Contou a Janet que tinha vistoriado a casa e já podia mostrar cada detalhe a
ela. Ouviu-o, interessada, fez algumas perguntas e esperou que a convidasse para lhe
mostrar os lugares. Mas ele não sugeriu isso. Quando, finalmente, lhe perguntou o que
tinha feito de manhã e ela começou a explicar, ele perdeu logo o interesse e até
mencionou o convite para o jantar.
— Acho que deveríamos ir, Janet. Todos aqui dizem que essa é uma família
muito importante. Se não fosse pelo velho Marley, não estaríamos aqui.
Olhou para o relógio e murmurou algo sobre ir para o laboratório a tempo de ver a
conclusão de uma experiência. Ela não o viu mais até a noite.
Brett foi muito simpático com Elizabeth Marley durante todo o jantar, e Janet
estava ciente do quanto aquela grande família admirava seu marido. A noite transcorreu
agradavelmente. Todos estavam sinceramente alegres. Mas ela podia notar no sorriso
de Garth toques de ironia e sarcasmo.
Sentiu-se ainda pior quando, para terminar a noite, Linda, a cunhada de Garth,
ligou o rádio e chamou a atenção de todos para um concerto "maravilhoso" executado
pela famosa Elinor Constable.
Janet olhou rapidamente para Brett e depois para Garth. De repente, ficou corada,
ao perceber que o rapaz tinha adivinhado que havia algo no ar. Quando Elinor começou
a tocar uma balada de Chopin, sentiu que precisava dizer alguma coisa, qualquer coisa.
— Ela foi paciente de meu marido — falou, baixinho, e ficou vermelha, quando
Brett pediu que ficasse em silêncio. Imediatamente, sentiu a pressão dos dedos de
Garth no braço, tentando confortá-la.
Ao se despedirem, ele mencionou algo sobre acordar cedo no dia seguinte.
— Tenho que treinar um novo cavalo — explicou a Brett. Vendo interesse nos
olhos de Janet, perguntou: — Sabe montar, sra. Hardy? Se quiser...
— É o exercício preferido dela — Brett riu. — Vou arranjar um cavalo para você,
minha querida. Deve haver algum estábulo em Brocklemeade.
— Não é necessário — Garth interrompeu. — Se permitir, terei prazer em ajudar a
sra. Hardy. Tenho uma linda égua chamada Candy; pode considerá-la sua, enquanto
estiver aqui.
— O que acha disso, querida? Você é muito gentil, Garth.
Por querer cavalgar, por não poder dizer a Brett que começava a ter medo do
olhar irônico de Garth e porque Brett parecia estar lhe oferecendo um doce para que ela
não o atrapalhasse, Janet apenas sorriu e disse:
— Eu gostaria muito. Obrigada, sr. Marley.

CAPÍTULO X

A cada dia, a amizade de Janet com a família Marley aumentava. Brett estava
sempre apressado e imerso em seu trabalho. Não era culpa dele, se não havia lugar
para ela no laboratório de pesquisas. Outras esposas de funcionários de Brocklemeade
também não tinham trabalho lá, mas desempenhavam tarefas definidas dentro da
comunidade, tanto administrativas como domésticas. Além do mais, tinham também um
verdadeiro lar em Brocklemeade. Só Janet não tinha nada disso.
Podia se aventurar a entrar na cozinha e pedir à sra. Heldon que lhe ensinasse os
mistérios do preparo de pratos deliciosos. Mas, quando comentou essa idéia com Brett,
ele riu, descartando a possibilidade de imediato.
— Fique tranqüila, Janet. Haverá uma vaga para você dentro em breve. A sra.
Heldon gosta de fazer seu trabalho sozinha, e você sabe que não tem nenhum interesse
em cozinhar. Só está aborrecida porque não conseguiu ainda um emprego de verdade.
Divirta-se enquanto pode. A sra. Marley diz que sempre precisa de ajuda extra em casa.
E ela parece gostar de ter você por perto.
Sim, pensou Janet, amarga, todos gostam de me ter por perto. Quando Brett saiu,
ela sentou perto da janela e ficou olhando para fora, ouvindo a sra. Heldon trabalhar na
cozinha. Lá em Marley Hall, Garth estaria esperando por ela para jogar tênis. Mas Janet
estava aborrecida e estranhamente triste.
Era tão injusto! Garth estava sempre disponível. Tinha certeza de que, se
quisesse, Brett poderia arranjar uma ou duas horas para passar com ela. Mas, cada vez
mais absorvido pelo trabalho, nem pensava em tal hipótese. Na única vez que ela pediu
para Brett ficar mais tempo em casa, ele simplesmente respondeu:
— Você sabia, Janet. Você sabia desde o começo que seria assim. Tenho o meu
trabalho.
Essa era uma das razões para o atual estado de espírito de Janet: ela não
significava nada para o marido. E odiava se sentir inútil. Aborrecida, saiu do quarto e
desceu a escada. Ficar em casa significava mais um dia olhando o jardim. Não havia
muito a fazer lá. Os jardineiros contratados sabiam fazer um bom trabalho. Janet pensou
em ir até Marley Hall. Mas, instintivamente, sabia que Garth Marley estava apaixonado
por ela e suspeitava de que seu casamento com Brett não era como deveria ser.
Janet tentou se lembrar de quando ficou realmente consciente de que o amor de
Garth era uma coisa séria. A princípio, achava que o interesse era passageiro, uma
simples atração de um homem por uma mulher. Mesmo quando sentiu a mão
confortante dele em seu braço, na noite em que tiveram que ouvir o concerto de Elinor
Constable, considerou essa aproximação como um flerte sem maiores conseqüências. E
esperaria o momento certo para ter uma conversa esclarecedora com Garth. Mas o
momento certo nunca chegou. O rapaz estava sempre lá, atento, nunca direto o
suficiente para embaraçá-la, mas sempre demonstrando sua atenção e seu carinho nos
momentos mais inesperados.
Estou com medo, disse a si mesma. Não de Garth, mas de alguma coisa...
Era a primeira vez que sentia medo. Tentou desesperadamente ver a situação
como uma observadora imparcial. Isso não era bom. Não havia nada no relacionamento
deles que sugerisse alguma coisa errada, mas, no fundo do coração, sabia que Garth
representava uma ameaça à sua "sociedade" com Brett.
Não era amor. Era algo terrível, uma espécie de atração animal. Estremeceu com
esse pensamento. Começou a andar pela sala, nervosa. Nunca tinha enfrentado um
problema assim e não fazia a menor idéia de como lidar com ele. Sabia que não amava
Garth. Mesmo se fosse livre, ele não era o tipo de homem com quem passaria o resto da
vida. O que tinha sentido por Nigel estava quase esquecido, mas ele também não era a
pessoa certa.
Imaginou se não haveria alguma coisa errada com ela. Nunca tinha amado Nigel;
simplesmente, gostava dele como um amigo de infância. Tinha casado com Brett porque
precisava dele, mas não como um homem precisa de uma mulher. E, agora, sentia-se
atraída por Garth, mas não estava apaixonada.
Ouviu o telefone tocar. Em seguida, a sra. Heldon veio avisar que o sr. Marley a
chamava para ir a Marley Hall. Queria saber se devia buscá-la.
— Diga-lhe que já estou indo para lá.
Desesperada, afastou da mente as preocupações e os problemas. Brett sabia que
ela cavalgava com Garth todas as manhãs. Sabia também que passava muitas de suas
noites solitárias no terraço da casa de Elizabeth, jogando baralho ou simplesmente
conversando. Mesmo assim, Brett nunca fez nenhuma objeção e, evidentemente, não se
importava.
Jogou tênis quase toda a tarde. Elizabeth estava sentada assistindo à partida,
enquanto tomava conta das crianças. Tomaram chá no gramado, e Janet foi convidada
para jantar.
— É claro que você aceita — Garth respondeu por ela, quando Janet hesitou. —
Pode telefonar para avisar seu marido, se é que ele está fora do laboratório! — ele
comentou, rindo.
Janet sorriu também e garantiu a Elizabeth que ficaria feliz em jantar com eles.
Mas desconfiou de Garth. Ele devia ter indagado alguém. De que outra maneira poderia
saber que Brett tinha passado as duas últimas noites no laboratório, perdendo o jantar e
voltando para casa tão cansado que mal tinha tempo de comer antes de dormir?
A noite foi tão agradável, como todas as outras em Marley Hall, mas Janet não
conseguiu relaxar. Seus pensamentos estavam sempre voltados para Brett, imaginando
o que estaria fazendo, se as coisas estariam indo bem no laboratório e, principalmente,
de que maneira poderia ajudá-lo. Parecia ser absolutamente desnecessária em
Brocklemeade. Só em três ocasiões, ele precisou dela. Uma vez, para apresentá-la aos
visitantes americanos; outra, num jantar com todos os moradores, e a terceira, durante
uma visita do pessoal de Londres. A não ser por isso, ela não tinha tido a menor
importância. Nem mesmo a sra. Heldon precisava dela na cozinha.
Sou nada, um zero à esquerda, pensou, com horror. Não passo de uma figurante.
— Você parece tão preocupada! — disse Garth, sentando ao lado dela e
oferecendo-lhe um cigarro. — Posso ajudar? O seu Brett não está bem? Imagino que o
trabalho dele é suficiente para deixar qualquer homem louco.
— Ele gosta do trabalho. E... não, não há nada de errado.
— Não quer me contar, não é, Janet? Muito bem: não vou insistir. Você me dirá,
quando não agüentar mais. Posso esperar. Mas não deixe as coisas irem longe demais,
minha cara.
Elizabeth veio dizer boa-noite. Parecia cansada. Janet olhou para o relógio, que
marcava cinco para a meia-noite.
— Céus! Não imaginei que fosse tão tarde! Brett deve estar imaginando onde me
meti. Não é de admirar que você esteja com uma aparência tão cansada — disse,
beijando o rosto de Elizabeth. — Devia ter me mandado embora!
— Eu nunca faria isso, minha querida. Você é bem-vinda para ficar o tempo que
quiser. Também não percebi as horas. Garth vai levá-la para casa. É muito tarde para
andar sozinha.
Por um momento, Janet hesitou. O caminho entre as duas casas não era longo e
havia guardas. Mas Elizabeth estava tão agitada que Janet não protestou. Garth vestiu
um casaco, e saíram na noite de verão. Deram alguns passos em silêncio. De repente,
ela tropeçou na raiz de uma árvore, e logo os braços do rapaz a ampararam.
— A luz do luar engana — disse, contrariada. — Eu não tinha visto essa raiz.
Garth estava bem perto e ia começar a dizer alguma coisa, quando foi
interrompido pela luz de uma lanterna. Ouviram a voz de Brett, cansada, mas autoritária:
— É você, Janet? Estava à sua procura.
— Não percebi que era tão tarde — ela disse, tão surpresa em vê-lo que as
palavras quase não saíam. — Garth veio me acompanhar. Estou bem.
A luz da lanterna mostrou o rosto de Garth por alguns momentos. Então, Brett
desligou-a e pegou Janet pelo braço.
— Vou poupar o trabalho do sr. Marley — disse, despedindo-se e levando-a
embora.
As palavras foram ditas num tom gentil, porém frio. Janet foi quase que
empurrada pelo caminho de volta. Ficou indignada. Parecia uma criança apanhada em
flagrante. Mas nem ao chegarem em casa ela conseguiu se defender. Foi Brett quem
falou primeiro:
— Não me importo com uma amizade normal que a ajude a passar o tempo
durante este período aborrecido de sua vida. Mas me oponho terminantemente ao fato
de você se expor abertamente a fofocas e comentários maldosos. Se não se incomoda
com o que podem falar de você, pense um pouco em mim. Elizabeth Marley pode ser
uma mulher solitária, doente, e a casa dela, muito atraente, mas há um limite. Não é
bom voltar para casa à meia-noite com Garth Marley. Será que vai se lembrar disso no
futuro?
Janet olhou-o, boquiaberta. Estavam agora na sala de visitas, e Brett preparava
um drinque sem olhar para ela. Algo no tom calmo de sua voz, como se ele só tivesse
que dar uma ordem para ser obedecido, desencadeou uma espécie de rebelião dentro
dela. Esqueceu que ele estava cansado por trabalhar demais e por ter muitas
responsabilidades. Levada pela raiva, respondeu, ríspida:
— Não me incomodo em aceitar as suas condições. Mas também há limites! Não
posso ficar aqui sentada, dia após dia, noite após noite, sem nada para fazer, sem
ninguém para conversar. Vou enlouquecer! Estou acostumada a ter muitas atividades.
— Então, invente alguma coisa para fazer — Brett gritou. — Comece a costurar
ou a tricotar, ou qualquer outra coisa que queira para ocupar suas mãos e seus
pensamentos. Ficarei muito agradecido... se passar menos tempo na casa dos Marley e
um pouco mais de tempo lembrando de sua posição aqui como minha esposa!
Boa-noite.
Antes que pudesse pensar numa boa resposta, ele deu-lhe as costas e começou
a subir a escada, deixando para ela a tarefa de apagar as luzes.

CAPÍTULO XI

A raiva que consumiu Janet quando Brett disse aquelas palavras na noite
anterior ainda estava com ela, ao acordar na manhã seguinte. Mesmo assim, resolveu
acatar a ordem do marido e passar mais tempo sozinha. Ligou para Marley Hall,
perguntando se poderia montar a égua Candy.
Linda, a cunhada de Garth, atendeu:
— É claro, Janet. Por que não? Ela é sua, enquanto estiver aqui. Vou dizer a
Garth...
— Não, não se incomode. Eu só queria saber se posso usar a égua, mas não
diga nada a Garth. Deixe-o trabalhar. Estou com dor de cabeça e não pretendo sair já.
Na hora do almoço falarei com ele.
Vestiu-se rapidamente e desceu para tomar café. Brett olhou-a, surpreso, e sorriu
quando Janet lhe disse bom-dia, parecia que a noite anterior tinha acontecido há muito
tempo.
Mas, para Janet, as palavras dele continuavam a incomodar: "lembre a sua
posição aqui como minha esposa". Que posição?, pensou, com desdém. O que diriam
as pessoas de Brocklemeade, os guardas do jardim ou quem quer que fosse, se
soubessem que não passava de uma esposa de mentira? Logo ficou envergonhada
desse pensamento: afinal, não tinham sido exatamente essas as condições do
casamento? Tudo tinha acontecido simplesmente porque, enquanto Brett tinha coisas
demais para fazer, ela não tinha nada com que se ocupar.
— Os Thryman vão para Leeds hoje — disse ele, cauteloso. — Lester vai até a
Universidade e Lucy disse que quer fazer compras. Gostaria de ir com eles, Janet? Seria
algo diferente para você fazer e ficariam felizes com sua companhia.
Por um momento, ela gostou da idéia, mas rejeitou-a. Podia ver o rosto magro e
esperto de Lucy e sabia que seria impossível esconder dela a verdade sobre seu
relacionamento com Brett. Lucy Thryman era bastante esperta. Inconscientemente, essa
era a razão pela qual evitava uma maior aproximação com as outras mulheres de
Brocklemeade: tinha medo de que adivinhassem que era uma esposa só no nome.
— Não, obrigada. Tenho outros planos.
Brett olhou para ela. Não disse nada, mas por aquele olhar, Janet soube que ele
estava lhe pedindo para lembrar a conversa da noite anterior.
— Você estará aqui na hora do jantar? — ele perguntou. — Espero chegar cedo
esta noite.
— Estarei em casa.
Foi uma resposta vaga, mas ele pareceu satisfeito. Minutos depois, saiu. Janet
terminou o café, acendeu um cigarro e apressou-se em ir a Marley Hall. Queria sair logo
e ficar ao ar livre para poder pensar na atitude de Brett, na véspera, e tentar analisar se
devia ou não preocupar-se. O que ele teria sentido? Posse? Orgulho ferido? Ciúme?
Não seja idiota!, disse a si mesma. Ele só não quer fofocas. Seus pensamentos
foram interrompidos ao ver Garth, o cavalo que costumava montar e a égua,
aparentemente à espera dela.
— Bom-dia! Meu sócio está tomando conta dos negócios hoje. Então, achei que
poderíamos cavalgar para algum lugar novo, como a Bacia do Diabo. Ainda não a levei
lá, e está uma manhã perfeita para isso.
Janet relutou um pouco, mas acabou concordando. Antes de partirem perguntou
por Elizabeth, que tinha estado abatida na véspera.
— Ela não está muito bem hoje — Garth respondeu, preocupado. — Anda
trabalhando demais, eu acho. Em todo caso, concordou em descansar um pouco,
ficando na cama até nós voltarmos. Esse foi um dos motivos que me fizeram desistir de
trabalhar esta manhã.
Cavalgaram pelos morros, subindo cada vez mais, o ar tornando-se cada vez
mais fresco. Teria sido uma manhã maravilhosa, se o coração de Janet não estivesse
tumultuado por estranhos sentimentos. Sentia uma ansiedade que não sabia explicar.
Quando chegaram ao alto de uma colina, Garth sugeriu que descessem a galope
pelo caminho até o rio. Ele ganhou a corrida facilmente, mas a égua de Janet também
teve um ótimo desempenho e, assim que se aproximou, Garth deu-lhe um tapinha de
congratulação. Ajudou Janet a desmontar. Enquanto os cavalos matavam a sede no rio,
os dois sentaram na grama.
— Cigarro?
Ela aceitou um e deitou na grama. Fumaram em silêncio. Depois de jogar fora a
ponta do cigarro, Garth se aproximou, apoiou-se nos cotovelos e olhou nos olhos de
Janet.
— Bem, que discussão emocionante teve com seu marido, depois que a deixei,
sozinha e indefesa?
— Nenhuma. Você está sendo tolo. — Janet estava aborrecida por ter que dar
explicações. — Brett estava cansado. Eu devia ter imaginado que era tarde e voltado
logo para casa.
— Só porque seu senhor decidiu chegar um pouco mais cedo, não é? Olhe aqui,
minha querida, você não pode esconder as coisas para sempre. Pelo menos, não das
pessoas que... se preocupam com você. Sei que não o ama. Por que cargas-d'água
casou com aquele sujeito, eu não posso imaginar, mas um erro não precisa durar por
toda uma vida. Não pode fingir que o ama. — Continuou, chegando cada vez mais perto
dela. — Não há nenhum sinal em você que indique que se importa com Brett. E com ele
acontece a mesma coisa. Ele casou com o laboratório e com seu equipamento médico.
Não consigo entender por que um homem que já está casado com o trabalho quer
brincar com os sentimentos de uma mulher tão adorável. E você é adorável, Janet. Sabe
que sou louco por você, não sabe? — E tentou passar o braço em volta dos ombros
dela.
Mas Janet foi mais rápida: ficou de pé, com as faces vermelhas como fogo,
olhando para ele, que permanecia imóvel, com aquele sorriso irônico que agora ela
percebia ser tão sensual.
— Não faça isso! Não chegue mais perto. Garth, por favor! Você não entendeu.
Brett não é como você, não é como os outros homens. Ele tem um trabalho especial a
fazer e quer fazê-lo bem.
— Que não é como os outros homens dá para ver. Qualquer um... eu, por
exemplo... saberia que há alguma coisa errada com uma esposa que passa todo o
tempo que pode longe do marido, longe de casa e, pior, na companhia de outro homem!
Ele sabe o que sinto por você. Por que não desiste, Janet? Por que não pára de fingir a
si mesma e a todos que tudo está bem? Por que não lembra que é simplesmente uma
mulher que só deseja ser amada?
Antes que ela pudesse impedir, ele já tinha percorrido a pequena distância que os
separava e, num instante, seus braços a envolveram e sua boca aproximou-se,
beijando-a. No beijo, Janet não sentiu nem ternura nem amor. Era um beijo de desejo,
de paixão. Instintivamente, empurrou-o. Fora de si e sem pensar nas conseqüências,
esbofeteou Garth.
— Sua...
Ele deu um passo para trás, mas estava sorrindo. Para Janet, aquele sorriso
pareceu mais terrível do que se ele tivesse ficado lívido de raiva. Parecia que se
considerava dono da situação.
— Você não queria fazer isso, Janet. Nem eu quis ser rude. Você está nervosa.
Eu deveria ter esperado, mas não posso mais. Você está vivendo pela metade aqui em
Brocklemeade. E só penso em você, enquanto fico sozinho no meu quarto. Isso não é
justo, não está certo! Se você se importasse com ele não devia ter deixado que as
coisas chegassem a esse ponto. Agora, tem que se decidir, e logo. Ou será que terei
que decidir por você?
Começou a se aproximar novamente. Com um grito, Janet virou-se, montou
rapidamente na égua e, pela primeira vez, usou o chicote. O animal disparou em direção
a Marley Hall.
Estava esgotada, quando chegou. Não havia sinal de Garth por perto nem do
cavalo dele. É claro que, se quisesse, ele a teria alcançado facilmente. Desmontou, para
devolver Candy, antes que Garth voltasse.
Linda apareceu na porta do estábulo.
— Ah, é você! Onde está Garth? Não há nada errado, espero.
— Ele vem aí — Janet disse, tão indiferente como pôde. — Nós apostamos uma
corrida e ganhei. — Percebeu o olhar preocupado da outra. — Há alguma coisa errada
por aqui, não é, Linda? Posso ajudar?
— Elizabeth. Você foi enfermeira, deve saber o que fazer. Ela teve outro ataque
de manhã. Prometeu a Garth e Jim, meu marido, que ficaria na cama, mas, quando
ouviu as notícias no rádio, quis levantar. Parecia estar bem, sentada em sua cadeira,
enquanto eu dava comida ao bebê. Depois, ouvi que tentava levantar e, em seguida,
caiu no chão.
— Onde está ela agora? — Janet já se dirigia para a casa. — Quanto tempo faz
isso?
— Uma hora, mais ou menos. Agora, está consciente, e telefonarei para o
médico. Mas está preocupada com Garth e aborrecida com alguma coisa. Só não sei
com o quê.
— Verei o que posso fazer. O médico deu alguma instrução, algum remédio?
— Está tudo aqui. — Linda entregou-lhe um pedaço de papel que tinha arrancado
da agenda do telefone. — Escrevi tudo. Já lhe dei a injeção e as pílulas. Ela está no
quarto, agora.
— Vou subir e tomar conta dela. Não se preocupe. — Sorriu para a assustada
Linda. — Você fez tudo que podia. Se desse para avisar a sra. Heldon que não vou estar
em casa para o almoço...
Subiu a escada devagar e foi para o quarto de Elizabeth Marley. O que quer que
houvesse provocado o ataque tinha alguma ligação com as notícias da manhã, mas
Janet não se preocuparia com isso no momento. Faria tudo que pudesse pela velha,
porque tinha aprendido a amá-la. Só precisaria ter cuidado para não encontrar Garth.
Não podia continuar a vê-lo, se o que ele dizia era verdade. E, quanto a isso, não tinha
dúvidas. A única dúvida era se a emoção, que ele chamava de amor, era realmente
amor.

CAPÍTULO XII

J anet estava tentando fazer com que Elizabeth tomasse um pouco de sopa,
quando Linda subiu para dizer que Brett tinha lhe telefonado e estava esperando para
falar com ela. Aparentemente calma, mas com o coração disparado, Janet colocou a
colher no prato e desceu a escada.
— Alô? É Janet.
— Que bobagem é essa de você não vir para casa almoçar? Há alguma coisa
errada?
— Elizabeth teve um ataque hoje de manhã. Foi enquanto eu, isto é, nós
estávamos cavalgando. Eu disse que ficaria e tomaria conta dela, até que se sentisse
melhor.
— Preferia que você estivesse em casa agora. — A voz de Brett era fria e
cortante. — Providenciarei uma enfermeira para cuidar de Elizabeth. Os Marley
poderiam ter feito isso sozinhos!
— Elizabeth não gosta de estranhos. Linda me disse que...
— Você sabe que há dois prisioneiros, dois homens muito perigosos, soltos por
aqui, não sabe? Fugiram da cadeia, a uns seis quilômetros daqui, durante a noite.
Ambos estão cumprindo pena por assalto com violência, e pelo menos um deles está
armado. No programa de rádio de hoje de manhã foi dada uma descrição dos dois.
— Então, foi isso! Linda disse que Elizabeth estava ouvindo o noticiário, antes de
passar mal.
— Pelo menos, Elizabeth entendeu que a coisa é séria. Janet, estou
providenciando uma enfermeira para ficar aí. Os Marley poderão discutir comigo mais
tarde, se não gostarem da idéia. Quero você aqui, em casa, onde sei que estará segura
e não andará por aí a cavalo, até que esses homens sejam capturados.
Não havia raiva em sua voz. Estava, simplesmente, dando ordens e esperava que
fossem obedecidas sem demora.
Mas eu não sou mais a enfermeira do São Lucas, disse a si mesma. Não tinha
que receber ordens dele nem de ninguém! Voltou lentamente para o quarto de Elizabeth.
— Preciso ir até Brocklemeade, querida. Brett acabou de telefonar. Ele vai
arranjar uma enfermeira para ficar com você. — Colocou a mão no ombro da velha, que
começava a ficar agitada. — Não se preocupe. Brett não vai deixar que mandem alguém
de quem você não goste. Amanhã eu volto, mas não tão cedo. Brett não quer que eu
saia da propriedade.
— Não é bom mesmo — Elizabeth falou, com esforço. — Ouvi algumas notícias
no rádio sobre uns homens que fugiram da cadeia. Você não deve sair sozinha. Garth
pode ir buscá-la...
— Ele está ocupado. Vou embora agora. Estarei bem.
— Prometa não cavalgar sozinha. Não é seguro...
Janet sorriu e prometeu. Faria qualquer coisa para apagar aquele brilho ansioso e
preocupado do rosto da velha.
— Eu lhe dou minha palavra de que não sairei para cavalgar sozinha. Pelo
menos, até que os homens sejam encontrados. E, agora, tente descansar um pouco.
Virei vê-la esta noite, se puder, mas não o prometo. Linda pode me telefonar, se você
precisar de mim.
Quase correu pelo caminho que levava a Brocklemeade e, de repente, começou a
sentir raiva pelo que estava acontecendo. Era como se, durante a sua vida, não tivesse
feito outra coisa, senão obedecer ordens. Como se não tivesse desejos próprios. Brett
ordenava que voltasse para casa, que não fosse cavalgar. E Elizabeth, usando os laços
de amizade, também lhe dava ordens.
Quando chegou em casa descobriu, surpresa, que Brett tinha esperado por ela
para o almoço. E parecia não ter pressa para voltar ao laboratório. Mas, provavelmente,
não chegaria a tempo para jantar, pois como explicou, estava dirigindo uma pesquisa
muito importante que não podia ser interrompida.
Era estranho que Brett gastasse boa parte da tarde explicando a Janet detalhes
do trabalho. Ela poderia ficar sabendo desses detalhes mais tarde, ou até mesmo depois
que tudo estivesse concluído. Era como se, de repente, ele não quisesse perdê-la de
vista, como se quisesse ter certeza de que fazia parte de sua vida.
— Agora, preciso ir — ele disse, finalmente. — Lester deve estar esperando por
mim. — Ao chegar perto da porta, virou-se, com um olhar carinhoso. — Não saia
sozinha, sim? É perigoso. Quero você aqui, onde sei que estará segura. Vou avisar
Garth Marley de que não haverá passeios a cavalo por algum tempo.
— Não precisa se preocupar. Já prometi isso a Elizabeth.
Olhou-a de maneira estranha, antes de fechar a porta. Parecia que a promessa a
Elizabeth era muito mais importante do que o pedido dele. Esse pensamento irritou-o, e
quase voltou a entrar em casa; mas já estariam esperando por ele no laboratório.
Pensando em conversar com Janet mais tarde, Brett desceu pelo caminho que levava
ao laboratório.
Janet observava-o, escondida atrás das cortinas da sala, sentindo a raiva
substituir o prazer que havia sentido momentos atrás.
Quero você aqui, ele tinha dito. Não, porque a quisesse realmente, mas porque
não era bom ter o nome de sua esposa nos jornais, misturado com o de prisioneiros
foragidos.
Foi com prazer quase perverso que resolveu fazer exatamente o contrário do que
Brett havia ordenado. Saiu de Brocklemeade e começou a andar em direção a Marley
Hall, tentando evitar os lugares onde provavelmente encontraria Garth. Subiu
rapidamente a alameda, mas não se dirigiu à casa. Foi para a praia. Garth tinha dito que
a família possuía um bangalô na praia. Achou que seria um lugar perfeito para quem
quisesse um pouco de paz. E Janet estava muito necessitada disso. Não conseguia
mais ser ela mesma. Agora, não passava da esposa de Brett. Era um membro do grupo
de pesquisas, mas não tinha a menor importância. Nem mesmo para o marido.
O bangalô ficava mais longe do que tinha pensado. O sol já estava se pondo, e
ela resolveu voltar. Sentou num tronco de árvore para descansar um pouco e começou a
pensar em todas as grandes tarefas que Brett e todos os outros tinham que enfrentar.
Pensou também na responsabilidade desse trabalho, e imediatamente vieram-lhe à
mente alguns comentários que ele tinha feito sobre os perigos da radioatividade.
Aos poucos, sua raiva foi diminuindo. Elizabeth estava certa, quando falou certa
vez sobre o trabalho de Brett. O bem sempre vence o mal, mesmo que isso leve tempo.
Deus não deixaria o homem se destruir. A energia atômica podia ser usada para coisas
boas. Devia haver alguma maneira de controlá-la... e Brett a descobriria.
Seus pensamentos não foram mais além. Agora, sabia como era importante para
ela que ele fizesse essa grande descoberta. Pela primeira vez, percebia o orgulho que
sentia do marido.
Se tivesse recusado casar com ele, não teria tido a oportunidade de fazer essa
descoberta. A idéia reconfortou-a um pouco.
Levantou, quando a brisa da noite fez com que sentisse frio. Decidiu que tinha
uma tarefa a cumprir: ajudar Brett. Havia feito uma promessa a ele e, por estar
aborrecida e sozinha, nunca chegou a cumpri-la. Com a idéia de encontrar alguma
ocupação e deixar Brett realizar seu trabalho em paz, Janet começou a caminhada de
volta.
Estava mais ou menos na metade do caminho, quando viu um carro subindo a
colina em sua direção, os faróis cortando a escuridão. Correu para um dos lados da
estrada, e só quando o carro parou, é que reconheceu o motorista.
— Que diabo pensa que está fazendo? — Brett perguntou, saltando do carro e
indo em sua direção. — Eu não disse para você ficar em casa? Aqueles dois homens
ainda estão soltos.
— E a esta altura provavelmente devem estar a quilômetros de distância! — Janet
respondeu, tentando livrar o braço da mão do marido. — Eu disse que não ia cavalgar.
Você não falou nada a respeito de andar. E eu precisava pensar.
— Está se comportando como uma criança mimada. Sinceramente, Janet, não sei
o que aconteceu com você. Sempre foi uma pessoa tão sensata! Pelo menos, dava essa
impressão. Só posso achar que a monotonia é a responsável por esse seu estado de
espírito. Vou providenciar para que fique mais ocupada de hoje em diante.
Ele não falou mais nada durante todo o caminho de volta. Sentindo-se
tremendamente infantil, Janet também ficou calada. Quando chegaram em casa, ela
correu para o quarto e fechou a porta, como se tivesse medo de que ele a seguisse. Mas
Brett levou o carro até a garagem e ficou lá por alguns minutos, perdido em
pensamentos.
O que me fez ficar tão zangado?, perguntou a si mesmo.
Sabia que o que o preocupava não era o simples fato de os colegas acharem que
tinha uma esposa que passava a maior parte do tempo longe de casa. O que realmente
o preocupava era pensar no que poderia ter acontecido a Janet, se ela encontrasse os
dois criminosos foragidos. Não queria admitir, mas também tinha medo da proximidade
de Garth Marley. Garth era um homem atraente, com tempo e dinheiro para gastar, e
desde o princípio havia demonstrado admiração por Janet. Uma admiração que Brett
sabia estar aumentando dia após dia.
E Janet? Quais seriam seus sentimentos? Será que ela também se sentia atraída
por Garth?
Brett trancou o carro e fechou a garagem. Enquanto ia lentamente em direção a
casa, um pensamento começou a martelar em sua cabeça: o que quer que sentisse em
relação a Janet, podia ser claramente definido com uma única palavra: ciúme. E sabia
muito bem que não poderia sentir ciúme, se não sentisse também amor.

CAPÍTULO XIII

J anet não conseguiu dormir até noite alta. Sua mente, assim como a de Brett,
estava ocupada em descobrir por que teria ido procurá-la. Imaginou que tivesse ido até
Marley Hall, talvez para levar a nova enfermeira e, não a encontrando lá, ficou
preocupado. Será que se importava com ela?
Brett já tinha ido para o laboratório, quando ela desceu de manhã, mas havia um
bilhete no prato de Janet, dizendo que os dois homens tinham sido presos naquela
madrugada. Mesmo assim, ela não deveria sair a cavalo com o sr. Marley, até que Brett
voltasse.
Janet rasgou o papel e tomou seu café da manhã, pensativa. Não havia menção,
no bilhete, a outras pessoas. Brett só falava com relação a Garth. Isso a enfureceu
novamente, pois achava que Brett podia lhe dar uma explicação, ao invés de lhe ordenar
que não saísse com Garth.
Foi para o jardim, onde os primeiros crisântemos começavam a desabrochar.
Cuidou um pouco das flores. Logo depois, Garth chegou, pronto para cavalgar.
— Está com preguiça, hoje? Esperei um tempão, e então resolvi vir até aqui para
saber se havia algo errado.
— Eu não vou — disse Janet, esperando demonstrar que era uma decisão
inteiramente dela, que não tinha nada a ver com Brett ou Elizabeth. — Tenho muita
coisa para fazer — improvisou, enquanto o sorriso irônico aparecia nos lábios dele.
— Os homens foram capturados, Janet — disse, divertido, dando um passo em
sua direção e não percebendo o sinal que ela lhe fazia para avisá-lo de que Brett
acabava de abrir o portão e se aproximava deles. — Mesmo que não tivessem sido
presos, não acha que eu poderia tomar conta de você?
— Qualquer que seja a opinião de minha esposa, "eu" acho que você não poderia
tomar conta dela — Brett respondeu por ela, num tom de voz cortante. Virou-se para
Janet. — Teremos seis convidados para jantar, querida. Será que poderia organizar o
cardápio com a sra. Heldon?
Garth corou de ódio e suas mãos se crisparam, quando olhou para Janet, como
esperando que ela revidasse as ordens de Brett. Sentindo-se tensa e ameaçada por
uma força invisível, Janet simplesmente disse um breve "é claro", desculpou-se e deixou
os dois homens sozinhos.
O que foi dito entre eles, nunca soube. Minutos depois, ouviu os passos pesados
de Garth indo embora, furioso, e Brett entrou na casa, aparentemente imperturbável.
— Desculpe se interrompi alguma coisa — ele começou —, mas já é tempo de
alguém dizer àquele sujeito que o fato de o avô dele ter doado Brocklemeade não lhe dá
o direito de circular por aqui a toda hora. A propósito, acho que ficará feliz em saber que
Elizabeth está bem melhor hoje.
— Fico feliz, sim. Nem tive tempo de perguntar. Quanto a Garth, eu poderia ter
falado para que ele não viesse tanto aqui. Afinal de contas, sou grata a ele pela
companhia que me faz.
— Eu sei, querida. — O tom de voz de Brett agora era mais suave e havia até
uma sombra do sorriso que ela conhecia tão bem. — Sinto muito, sinto muito mesmo,
que as coisas tenham chegado a esse ponto, mas acho que devemos fazer alguma
coisa logo para remediar isso. Há uma porção de relatórios que precisam ser escritos. E
é um bom trabalho para você. Sei que não é bem o que quer...
— Isso não importa — Janet respondeu, fingindo arrumar as flores do vaso de
cobre em cima da mesa. — Eu me darei bem em qualquer tarefa. Não importa se gosto
ou não. Afinal, já alcancei meus objetivos. Agora, tenho que servir aos seus.
Assim que acabou de dizer as últimas palavras, arrependeu-se. Disse aquilo num
impulso para agredir Brett, porque ainda estava magoada com os comentários a respeito
dela e Garth. Agora, era tarde para voltar atrás. Olhou para ele e notou que seus lábios
estavam apertados, como já tinha visto muitas vezes no Hospital São Lucas, quando
estava aborrecido. Mas Brett não fez mais nenhum comentário, a não ser que só tinha
voltado para casa para apanhar o cachimbo.
Janet desejava se desculpar de todo o coração; no entanto, as palavras não lhe
vieram. Se ele tivesse se virado para ela naquele momento, se tivesse lhe dado um
sorriso, tudo seria mais fácil. Mas simplesmente pegou o cachimbo e saiu.
Janet ficou onde estava. Sentia-se sozinha e amedrontada. Algo de muito pessoal
estava crescendo entre ela e Brett, e não sabia o que era. Não havia nada de terno ou
romântico, mas sentia que o interesse dele começava a ficar menos impessoal.
Não, que ele se preocupasse. Era mais uma espécie de sentimento de posse.
Como se o contrato de casamento fosse uma experiência de laboratório e estivesse
resolvido a não deixar que nada saísse errado.
Esse pensamento a irritou. Mas, em seguida, lembrou que tinha convidados para
jantar e, imediatamente, foi até a cozinha consultar a sra. Heldon. Sabia, mesmo quando
Brett lhe pediu para fazer isso, que o jantar seria um sucesso. Nancy Heldon tinha
capacidade suficiente para fazer um maravilhoso jantar para qualquer número de
pessoas, sem precisar ser avisada com muita antecedência e sem ajuda ou conselhos
de quem quer que fosse. Janet a respeitava muito por isso.
Disse à empregada que deixaria tudo por conta dela, até mesmo a escolha da
sobremesa, e voltou para a sala. Quando olhou para o relógio de parede, viu que já
passava da hora de seu passeio habitual com Garth.
Decidiu visitar Elizabeth. Brett não vai se importar, pensou.
Quando eu tiver certeza de que Garth saiu posso montar Candy e ir sozinha na
direção oposta.
Não queria perder sua cavalgada diária. Além de gostar tanto do exercício, tinha
tão pouca coisa a fazer...
Elizabeth estava melhor e ficou muito feliz ao vê-la. Janet passou uma meia hora
com ela, tomando cuidado para não cansá-la, e depois dirigiu-se ao estábulo. O cavalo
baio de Garth não estava lá. Pediu para selarem Candy e, em alguns minutos, já estava
trotando para fora dos portões da mansão.
— O sr. Garth foi para a Fazenda Home, sra. Hardy — informou o rapaz que
tomava conta dos portões.
Janet agradeceu e, deliberadamente, cavalgou na direção oposta. Ninguém mais
podia dizer que ela não fazia o que queria. Começou a subir a colina. Dirigiu-se a um
pequeno bosque onde tinha ido uma ou duas vezes com Garth. Não era seu passeio
preferido, porque havia muitos buracos que não podiam ser vistos na grama. Mesmo
assim, ela foi.
Desmontou e sentou num velho tronco de árvore caído ao lado de um riacho.
Queria ficar só, pensar. Começou a rir sozinha, porque, se quisesse ficar sozinha para
pensar, poderia fazer isso o dia inteiro em sua própria casa.
Subitamente, ouviu um cavalo se aproximando e ficou de pé, apreensiva. Sabia,
antes de o cavaleiro se aproximar, que se tratava de Garth.
— Como soube que eu estava aqui? — perguntou, e imediatamente percebeu
que não era nada daquilo que pretendia dizer. — Jakes disse que você tinha ido à
Fazenda Home.
— É, eu deixei esse recado. — Os olhos dele pareciam em chamas. Estava tão
próximo que podia tocá-la, se quisesse. Mas ele não se moveu. — Também deixei
ordem para que ele me telefonasse, se você não tomasse o caminho indicado. Portanto
eu sabia que você viria para cá.
— Então, devia saber também que eu queria ficar sozinha. Eu, isto é, Brett disse
que...
Calou-se. Parecia terrível repetir as palavras de Brett. Percebeu que Garth sorria.
Aquele sorriso irônico que ela tanto detestava e que começava a temer.
— Brett disse! — ele debochou. — E desde quando você se importa com o que
ele diz, minha querida? Se Brett realmente se preocupasse com você, não deixaria que
aquelas horríveis bactérias do laboratório ficassem entre os dois. Eu não permitiria,
mesmo que meu trabalho fosse importante para a humanidade. Garanto que viver e
amar é bem mais importante!
Com um movimento rápido, os braços de Garth a envolveram e seus lábios
começaram a procurar os dela. Desesperada, sem saber por que sentia tamanho medo
e repulsa, Janet lutou com todas as forças. Mas ele conseguiu facilmente mantê-la
presa, sem perder aquele sorriso irônico.
— Não lute, doçura! Sabe que não quer lutar. Você fugiu e eu a segui. Sabia que
eu faria isso; você planejou tudo. Se não quisesse, não teria vindo para cá, já que Brett a
proibiu, certo? Você não vai receber ordens de ninguém, resolveu lutar pelo nosso amor.
Sabe que me quer, assim como eu a quero!
— Não, não quero — Janet agora estava com medo. De repente, teve uma visão
de Brett dependendo dela, sozinho em seu laboratório, e fechou os olhos, desesperada.
— Eu vim na direção oposta — gritou. — Tentei fazer você entender...
— Entender o quê? Que está se divertindo às minhas custas? Fazendo-me de
bobo para que todos na minha casa e na sua riam de mim? Não, Janet! Isso não! Você
queria que eu a seguisse, mas estava com medo.
— De você! — ela gritou, o medo aumentando suas forças, enquanto tentava se
livrar dos braços dele. — Esse Garth eu não conheço! Confiei em você, assim como
Brett confiou em mim. Gosto de cavalgar, mas não quero mais Candy para mim.
Garth soltou-a com tanta violência que ela cambaleou. Os olhos dele
encheram-se de raiva e sua palidez assustou Janet.
— Eu sabia que existiam mulheres como você. Mulheres que não amam os
maridos ou qualquer outro homem. Você não ama Brett Hardy. Se o amasse, não teria
perdido tanto tempo comigo. Eu amo você, Janet. Amei, desde o momento em que a vi
sentada naquele tronco de árvore perto do riacho, na manhã em que chegou a
Brocklemeade. Diz que tem medo de mim, mas tem medo é de você mesma, medo de
amar, medo do que as pessoas possam falar. Deixe que falem! Não há amor em seu
casamento!
— Pare com isso! — Queria gritar bem alto que ele estava errado, que Brett era
uma pessoa maravilhosa e que ela o admirava muito. Não podia dizer que o amava,
porque não tinha certeza disso. — Por favor, vamos esperar. Não consigo pensar direito.
— O que quer dizer com isso? Não sabe o que pensar? Oh, minha querida,
entendo que esteja insegura. Você é daquele tipo de pessoa que sempre está dividida
entre o que pensa estar certo e o que o mundo considera certo. Você quer ser minha,
mas seus princípios puritanos se rebelam. Ouça a voz do coração, Janet. Você quer ser
amada. Toda mulher quer ser amada. Você foi feita para o amor... para mim!
Abraçou-a, com um sorriso nos lábios e um brilho confiante nos olhos. Janet
afastou-se, com um grito abafado. Garth ficou inquieto. Ele já tinha flertado e brincado
com o amor antes, mas dessa vez, seu coração estava realmente envolvido. Dessa vez,
estava realmente apaixonado por aquela moça de grandes olhos azuis e cabelos
dourados.
— Vou embora. Se ficar aqui, vou acabar fazendo alguma coisa da qual me
arrependerei. Você está me deixando louco, Janet, e não sei se faz isso de propósito ou
não. Conversaremos depois, quando eu estiver mais calmo e quando você souber o que
quer.
Rapidamente ele montou no cavalo baio e desapareceu. Tinha dito a verdade ao
afirmar que precisava fugir dela, fugir da visão daqueles lábios que pareciam convidá-lo
a beijar, daquele corpo bem feito que desejava abraçar.
Garth esporeou tanto o cavalo que o animal se rebelou e começou a escoicear,
atirando-o no chão. Garth caiu de mau jeito, com o pé sob o corpo, enquanto o baio,
furioso, partiu em disparada em direção ao estábulo.

CAPÍTULO XIV

G arth estava massageando o pé, quando Janet se aproximou. Tentou


levantar, mas era impossível apoiar a perna direita no chão: caiu novamente e deixou-se
ficar jogado.
— Fim do primeiro ato — ele brincou —, mas a peça ainda não terminou, meu
amor. Acho que não quebrei nada, mas parece que torci o pé.
— Deixe-me ver.
Não estava mais com medo dele. Aquele era o Garth que conhecia, carinhoso,
gentil e amigo. O estranho de mãos ávidas e olhar devorador tinha desaparecido. Agora,
ele precisava dela, de sua prática como enfermeira e de seu apoio como mulher.
Examinou o pé dele e percebeu que o tornozelo já começava a inchar.
— Sim, é uma luxação, e das feias. Será preciso uma série de compressas, mas
você não vai conseguir apoiar o pé pelo menos por alguns dias.
— E o cavalo foi embora. Diabos de animal!
Janet não fez nenhum comentário. Seria perigoso lembrá-lo do motivo de sua
partida abrupta. Pegou seu cachecol e foi molhá-lo no riacho; depois, enfaixou o pé de
Garth.
— Há duas coisas que podemos fazer — ele disse, tentando resistir ao impulso
de segurar as mãos de Janet e percebendo que jamais conquistaria o amor dela com
violência. — Você pode ir buscar ajuda, o que seria a melhor coisa a fazer, ou podemos
levar o dia todo voltando para casa, eu me apoiando em você...
— Espere aqui. Vou voltar o mais rápido possível. Se sua mãe perceber que o
cavalo chegou sem você, provavelmente terá outro ataque. Quero que ela saiba que
você está bem. Depois, alguém virá buscá-lo. Eu, isto é, nós, temos convidados para
jantar, você sabe.
— Então, deixe-me alguns cigarros. Os meus estão quase acabando. E, Janet —
acrescentou, enquanto ela pegava o maço e estendia a ele —, será que pode me dar um
beijo?
Por um momento, ela considerou o pedido, friamente. O homem que a havia
amedrontado há apenas alguns minutos não existia mais. Em seu lugar agora, havia o
amigo. Mas sabia que era apenas uma máscara e não tinha a menor intenção de
despertar novamente aquele lado escondido e perigoso de Garth. Montando Candy, ela
balançou a cabeça, sorrindo.
— Não, eu não poderia. — E saiu a galope.
Evitou pensar no episódio que acabava de viver. Faria isso mais tarde, com
calma; agora, só pensava voltar para Marley Hall e arranjar ajuda para Garth, antes de
voltar para sua casa. Não queria admitir que, no fundo, desejava estar lá, como uma
anfitriã bem comportada, com tudo pronto para o jantar, esperando Brett chegar com os
convidados. Depois, contaria o acidente ao marido. Mas precisava contar a história de
maneira que não achasse que ela tinha ido junto com Garth.
E se ele me lançar aquele olhar penetrante?, pensou, sentindo pena de si mesma.
Não havia mais tempo para reflexões, porque Linda, ansiosa, vinha correndo para
perguntar se sabia do paradeiro de Garth.
— Garoto voltou sem ele. Aquele idiota do Alf tinha que gritar, e Elizabeth acabou
ouvindo tudo.
— Garth está bem. Só está com uma luxação no pé e o tornozelo bem inchado.
Eu... nós não estávamos juntos. Eu o encontrei por acaso, enquanto dava um passeio a
cavalo, e vim avisar para alguém ir buscá-lo. Corri, porque pensei que Elizabeth pudesse
ficar preocupada...
— Você sabe... conte tudo isso a ela. Vou arranjar alguém para buscar Garth. E,
por favor, dê uma olhada na velha. Uma olhada profissional.
Janet subiu e se esforçou para contar a história com o mínimo de palavras
possível. Elizabeth Marley ainda estava de cama, mas a enfermeira que Brett tinha
trazido parecia bastante aborrecida; portanto Janet adivinhou que a velha devia ter
insistido em sair da cama, o que levou a enfermeira a dizer palavras ásperas à paciente.
— Pode sair por uma hora, enfermeira — Elizabeth disse, quando Janet sentou a
seu lado, depois de beijá-la no rosto. — A sra. Hardy tomará conta de mim. Ela tem
muita experiência. Pode ficar um pouco comigo, não pode, minha querida? Fica comigo
até Garth voltar?
— Claro. Só preciso avisar Brett.
— É claro! Ele deve querer você em casa. Desça e telefone, explicando o quanto
preciso de você. Ele vai entender, tenho certeza.
Não sabendo bem como Brett reagiria, Janet pediu à telefonista de Brocklemeade
que o localizasse, onde quer que estivesse. Quando o marido atendeu, ela escolheu as
palavras, escondendo suas emoções.
— Sim, Hardy falando. — O tom dele era frio e Janet imaginou que estava
bastante ocupado, detestando ser interrompido.
— É Janet. Houve um pequeno acidente aqui em Marley Hall. Elizabeth está
aborrecida e quer que eu fique um pouco com ela. Só até que tudo esteja sob controle.
Quanto ao jantar, não se preocupe: a sra. Heldon já deve estar com tudo arranjado, e eu
chegarei em casa a tempo de trocar de roupa.
— Muito bem. Há alguma coisa que eu possa fazer? Alguém daqui pode ajudar?
— Não, obrigada. — Estranhou ele não perguntar nada sobre o acidente, nem
mesmo com quem tinha acontecido. — Está tudo sob controle. — Hesitou por um
momento e acrescentou: — Mais tarde, eu lhe conto tudo.
— Um acidente não é assunto ideal para ser discutido na hora do jantar, minha
querida! Mas não faz mal; depois você me conta. Isto é, se quiser. Preciso ir, agora.
Estamos muito ocupados aqui.
Janet se despediu e desligou, voltando lentamente para o quarto de Elizabeth.

No laboratório, Brett virou-se para Steven Rawlings, com um sorriso triste.


— Era minha esposa. Está outra vez lá em Marley Hall. Parece que houve um
acidente. — E acrescentou, aborrecido: — Tenho certeza de que Garth Marley tem algo
a ver com essa história.
— E quem é Garth Marley? — perguntou Steven, casualmente. — Ou devo
permanecer como um observador?
Brett encarou o amigo, com um olhar estranho e atormentado, que não lhe
passou despercebido. Steven não esperava ser incluído nessa visita, mas como estava
passando alguns dias com um amigo em Edimburgo e esse amigo fazia parte do
pessoal que iria a Brocklemeade, aproveitou para juntar-se ao grupo. Agora, Steven se
arrependia de ter vindo. Queria saber como as coisas estavam indo com o casal, mas
sinceramente, não esperava ver aquele olhar atormentado de Brett e,
inconscientemente, temia se encontrar com Janet novamente.
— Você sempre foi um observador, embora nem sempre silencioso! — Brett
comentou, aliviado por estarem sozinhos. — Não, Steven, não precisa ficar em silêncio.
Mas não diga "eu avisei"; senão, não me responsabilizo por meus atos! — Tentou
brincar. — Garth Marley é neto do fulano que doou Brocklemeade. Sua família ainda tem
grandes interesses aqui. Janet não tem muito o que fazer, não há trabalho para ela, e
tenho estado tão ocupado que não sobra tempo para me dedicar a ela. Garth tem saído
com Janet a cavalo. Ele lhe emprestou uma égua, e os dois passeiam juntos todas as
manhãs. Ela passa muito tempo também com a mãe de Garth, Elizabeth Marley, que
não está muito bem de saúde. Mas as pessoas já começaram a comentar!
— Isso é normal. Sempre comentam. Numa comunidade pequena como esta, as
fofocas são freqüentes. Havia fofocas até no hospital, lembra? Mas isso não importa. —
Olhando para Brett por cima da fumaça do cachimbo, perguntou: — O que falam? Você
sabe que não deve haver nada de errado, nada de que Janet ou você possam se
envergonhar. Ela não é desse tipo.
— Talvez não seja. — Brett desviou o olhar e fingiu se ocupar com algumas
coisas sobre a mesa. — Mas, às vezes, as circunstâncias podem fazer com que as
pessoas mudem!
— As circunstâncias podem aparecer para tentar as pessoas — Steven disse,
cauteloso —, mas eu lhe garanto que raramente conseguem mudá-las. Basicamente,
acho que Janet se parece com você... ou comigo. Só há um problema. E se ela se
apaixonar?
— Ela não está apaixonada por Marley! — Brett assustou-se com sua inquietação
e ao mesmo tempo estranhou a própria convicção. — Simplesmente, sente-se sozinha.
Num ponto, você está certo: ela parece não ver os perigos, não imagina que pode
despertar as emoções das pessoas. Vê Garth como um amigo.
— E ele? Como ele a vê?
— Não sei. — Houve um momento de constrangimento, quando o lápis com o
qual Brett brincava enquanto conversava com Steven partiu-se ao meio. — Garth gosta
dela. Vejo isso na maneira como a olha, como a segue com o olhar. Está claro como
água.
— É, parece que está realmente claro. Bem, meu caro Brett, só posso lhe dizer
que o único culpado é você mesmo. Não estou dizendo "eu avisei" porque não esperava
que isso acontecesse. Achei que Janet podia se sentir sozinha, mas como você me falou
que a equipe era composta por casais, jamais considerei o fato de aparecer alguém de
fora. Quando você pede que uma garota case apenas como um contrato de negócios, é
natural que alguma coisa fora do comum aconteça. Não pode esperar que uma garota
livre fique confinada a quatro paredes. Ela é humana, ela é mulher, e as mulheres
sempre dão mais importância ao coração do que à razão. Janet não faria nada que o
desrespeitasse, disso tenho certeza. Ela respeitará o contrato, mesmo que isso lhe corte
o coração. Mas você não pode esperar, de um contrato de negócios, o calor humano, o
carinho e as emoções que normalmente acompanham um contrato feito com o coração.
— Então, quer dizer que... — Brett começou a falar, inseguro, mas foi
interrompido quando a porta se abriu e o resto do grupo de visitantes entrou. Durante o
resto do dia as palavras de Steven continuaram martelando na mente de Brett.
Será que era o culpado por Janet ter encontrado qualidades em Marley? Ela devia
admirá-lo, senão, por que passaria tanto tempo junto dele?
Porque se sentia sozinha, era a resposta. Mas Brett não acreditava nela.
Não conseguiu prestar muita atenção ao trabalho. Só pensava na hora de chegar
em casa e descobrir se ela estaria ou não lá, como tinha lhe pedido. Não havia contado
a Janet que Steven era um dos convidados. Queria lhe fazer uma surpresa. Agora,
desejaria ter avisado. Com certeza, ela voltaria; por Steven, não por ele.
Estava tirando o avental, quando um pensamento o assustou. Subitamente,
percebeu que sentia realmente ciúme da amizade de Steven e de Garth por Janet.
O que está acontecendo comigo? Bem, o que importa? Afinal, ela está comigo...
ela é a sra. Hardy. Mas em sua cabeça algo lhe dizia que Janet não era realmente sua
esposa. Percebeu que a queria como sua mulher, como a mulher que amava. Não sabia
a princípio, mas foi isso que o atraiu para ela... e, agora, ele a deixava ir.
Distraidamente, vestiu o velho casaco de tweed que usava para trabalhar. Steven
esperava por ele. Os outros iriam mais tarde. Steven olhou para o rosto pensativo do
amigo e imaginou que, se Brett quisesse algum conselho, pediria. No momento só podia
esperar e rezar para que aqueles dois jovens que ele tanto amava pudessem final mente
se encontrar.
Brett caminhava ao lado de Steven, em silêncio, com a cabeça cheia de
pensamentos desencontrados. Será que o telefonema de Janet tinha sido sincero, ou
simplesmente uma maneira de provocá-lo, de mostrar-lhe que preferia a companhia de
Garth Marley? De qualquer forma, uma coisa era certa: ela lhe pertencia, nem que fosse
só na palavra. Podia estar atraída por Marley, mas ele, Brett, tinha uma vantagem:
durante toda a vida, havia lutado pelo que queria e agora lutaria também. Só que, pela
primeira vez, não tinha a menor idéia de quais armas devia usar.

CAPÍTULO XV
G arth já estava em casa, sentado na enorme cadeira da sala de visitas,
quando Janet se preparou para sair. Preferia evitá-lo, mas ele a ouviu descer e
chamou-a.
— Você estará bem, agora — disse ela, com uma calma que estava longe de
sentir. — Ouvi dizer que o médico vem ver sua mãe hoje à noite. Peça para ele dar uma
olhada em seu pé. Provavelmente, ele vai querer que você tire raios-X para ter certeza
de que não quebrou nenhum osso. Mas acho que dois ou três dias de descanso serão
suficientes.
— Pare de falar como uma enfermeira e venha cá! Qual é o problema? — E
acrescentou, com seu velho sorriso maroto, quando ela não se mexeu do lugar. — Está
assustada?
— É claro que não! Preciso ir. Temos convidados, lembra?
— Está bem, doçura! Fuja e tente fingir que nada aconteceu. Mas você sabe que
aconteceu. Na próxima vez, não será mais um choque. Você vai até corresponder.
Janet não podia mais suportar. Sem uma palavra, virou-se para a porta e
praticamente correu para fora da casa. Mas ela ainda podia ouvir a gargalhada de Garth.
Desceu a alameda que ligava as duas casas, desejando chegar logo e encontrar a
segurança de sua casa e a presença familiar de Brett.
Pretendia subir direto para se trocar, mas a sra. Heldon chamou-a para dar uma
olhada na mesa. Um sentimento de culpa tomou conta de Janet, ao pensar que deveria
ter voltado para casa a tempo de preparar pelo menos a mesa, como geralmente fazia,
escolhendo a toalha, a prataria e o arranjo de flores. Era uma das poucas tarefas que
podia desempenhar e que lhe dava um grande prazer. Sentiu que Garth havia lhe
roubado mais esse pequeno prazer, e sua vontade de não ver mais o vizinho incômodo
aumentou. Mas, como evitar Garth, sem magoar Elizabeth, Linda e os outros? Esse era
um problema que teria que resolver mais tarde; agora, não havia tempo.
— Está tudo um encanto — disse para a criada. — Sinto muito ter deixado tudo
para você fazer.
— O sr. Hardy telefonou explicando. Agora, corra e vá se trocar. Está tudo sob
controle.
Corra como uma boa menina e fique pronta para desempenhar seu papel!, Janet
pensou, revoltada. Mas, no fundo, sabia que estava sendo injusta com a sra. Heldon,
com todos os outros e, inclusive, consigo mesma.
Quando Brett e Steven chegaram, ela estava preparando uns aperitivos na sala.
Usava um dos vestidos novos que o marido insistiu para que comprasse, um lindo
modelo em azul.
Brett achou que parecia uma princesa. E é minha, ele pensou, exultante,
observando-a cumprimentar Steven. Se gostava ou não de ser dele, não importava. Pela
lei, ela lhe pertencia.
Virou-se de costas para Janet e Steven, para esconder a emoção que sabia estar
estampada em seu rosto. Apesar do que a lei dizia, ela era tão livre agora como antes
de assinar o "contrato", a não ser que já tivesse dado o coração a alguém. A Garth
Marley! Ela não faria isso. Ela não podia! Ou podia? Esse pensamento torturou-o
durante toda a noite.
Só Janet e Steven perceberam a angústia de Brett. Só eles, que o conheciam
muito, sabiam que estava com um problema. Tinham tanta certeza disso que era como
se Brett lhes tivesse dito em voz alta.
Algum problema no laboratório, pensou Janet. Se eu pudesse ajudá-lo!
Enquanto isso, Steven pensava: esse tolo se apaixonou pela esposa e não sabe
disso.
O que Steven não sabia é que Brett já tinha percebido, sim. Mas estava preso a
condições que ele mesmo impôs quando propôs a Janet aquele absurdo casamento.
Que direito tinha, perguntou a si mesmo, com amargura, de pedir a ela que satisfizesse
seus desejos? Que direito tinha de tentar conquistar o coração dela, se havia pro metido
solenemente não se intrometer na vida dela?
Pela primeira vez, sabia o que era amar e, pela primeira vez, tinha que lutar
contra todos seus instintos naturais. Foi um alívio, quando os convidados se retiraram.
Menos Steven, que ia passar a noite com eles. Todo o tempo, o amigo tentou puxar
conversa com ele, sem nada conseguir, e Brett sentiu um certo pânico, quando Janet
demonstrou sua intenção de ir para o quarto, deixando os dois homens conversarem a
sós.
— Não vá — disse, de repente. — Quero falar com você. É sobre um trabalho, e
acho que vai gostar. — Completou, sorrindo amigavelmente, enquanto ela o olhava,
surpresa.
Obediente, Janet ficou na sala e aceitou um cigarro que Steven lhe ofereceu. Era
a própria imagem da anfitriã, calma e fria; a esposa perfeita e interessada, ao sorrir para
Brett, esperando que ele continuasse.
— Um rapaz que trabalhava no Centro de Energia Atômica foi trazido para cá.
Não se sabe como, mas está contaminado pela irradiação. Foi pouco exposto, mas o
suficiente para se tornar objeto de estudo e precisar de cuidados médicos. Se você
aceitar trabalhar nisso, Janet — Brett mediu as palavras —, quero que lembre dos
perigos que existem e que obedeça às ordens, rigorosamente. Não quero que faça nada
além do que eu prescrever.
Discutiram o caso por mais de uma hora. Steven ficou ouvindo atentamente.
Quando, finalmente, Janet se retirou para o quarto, seu coração estava leve, pela
primeira vez desde que chegara a Brocklemeade. Havia um novo brilho em seus olhos e
uma nova agilidade no andar. E isso não passou despercebido a nenhum dos dois.
— Você lhe deu algo que ela queria muito — Steven disse, enquanto Brett enchia
novamente os copos. — Por que não lhe dá a outra coisa?
— Ela não se interessaria — Brett respondeu, tão amargo que Steven percebeu
que seria inútil prolongar a discussão.
Mesmo assim, quando Brett o acompanhou até o quarto de hóspedes, Steven
insistiu:
— Se não tentar, nunca vai saber! Lembre-se disso, Brett.
— Vou me lembrar. Quando chegar a hora!
Enquanto vestia o pijama, Brett refletiu que a hora certa já havia passado. Agora,
com Garth Marley por perto e com seu trabalho aumentando a distância entre eles,
como poderia conquistar aquela mulher maravilhosa que era sua esposa só no nome e a
quem amava com cada fibra do coração?
Decidiu que só podia esperar e tentou dormir.
Para Janet, o fim de semana com Steven por perto foi o começo de uma nova e
interessante fase de sua vida em Brocklemeade. Pela primeira vez, sentiu que estava
realmente fazendo um trabalho, e Brett chegou a ficar surpreso com a mudança que
percebeu nela, logo depois do primeiro dia do que chamava de "trabalho ativo". Voltaram
para casa juntos, conversando alegremente, como no tempo das férias. Janet estava
cheia de dúvidas e louca para aprender tudo. Foi muito fácil reatar a velha amizade. O
único contratempo para Brett foi Janet perguntar logo depois do jantar:
— Sabe de alguma coisa sobre Elizabeth? Nancy disse que ninguém telefonou de
lá hoje.
Brett apertou o jornal que lia, reprimindo o impulso de responder a Janet se ela
não podia ficar pelo menos um dia sem ter notícias de Marley Hall. Mas respondeu
apenas:
— Podemos ir até lá e ver como ela está. Faz séculos que não dou uma boa
caminhada. Vai me fazer bem.
Não havia dúvida quanto ao prazer que ela sentiu com a sugestão, e Brett ficou
imaginando se não estava errado ao pensar que a esposa se sentia atraída por Garth.
Ao chegarem a Marley Hall, Garth ainda estava confinado à sua cadeira e se
comportou muito bem. Elizabeth teve permissão do médico para levantar e ficou o tempo
todo na sala com eles. E a noite transcorreu calma, sem nenhum incidente.
— Volte amanhã, querida — a velha pediu. — Estou bem melhor. Amanhã
poderei ficar acordada até mais tarde. Talvez Brett queira vir também.
Ele estaria ocupado, mas, sem saber por quê, percebeu que não se importaria se
Janet quisesse ir sozinha.
— Eu virei, se puder — respondeu, sorrindo.
Voltaram para casa, e entre os dois havia um silêncio amigável. Janet ficou
pensando nas palavras trocadas por Elizabeth e Brett e imaginou quais seriam os
motivos do súbito interesse dele por Marley Hall.
Foi sozinha à mansão na noite seguinte e sentia-se ridiculamente feliz porque
Brett avisou que iria buscá-la mais tarde, quando terminasse o trabalho no laboratório.
Pensou que era bobagem ficar tão excitada e atribuiu essa alegria inesperada ao fato
de, finalmente, estar realizando seu sonho de trabalhar com ele, fazendo algo realmente
útil e ajudando Brett.
Garth estava andando com a ajuda de muletas. O inchaço e a dor já tinham
diminuído bastante, e as chapas não revelaram nenhum osso quebrado.
— Devo tudo isso a você e à sua eficiência profissional — disse, com o sorriso
zombeteiro de sempre. — Toda família devia ter uma enfermeira. É tão útil!
— Fico feliz por pensar assim. Onde está Elizabeth?
— Foi chamada ao telefone, assim que você entrou. Muito oportuna essa pessoa
que telefonou, quem quer que seja. Meu irmão saiu, minha cunhada está pondo as
crianças na cama e os empregados estão ocupados pela casa. Portanto não lhe resta
outra saída, a não ser aceitar minha companhia. Espero que não se importe se eu lhe
disser que está muito mais bonita ultimamente. Será que foi por causa do novo trabalho,
ou alguém... seu marido, por exemplo... despertou seus encantos? Uma mulher que
sabe que é amada desabrocha como uma rosa. Não sabia disso?
— Está falando uma porção de asneiras! — Janet tentou parecer severa, mas o
tremor na voz traiu seu nervosismo. — Brett anda ocupado. Eles estão fazendo uns
testes especiais.
— Ocupado demais para ver que tem uma esposa, mas não ocupado bastante
para criar seus fungos infectados!
Felizmente Elizabeth entrou na sala naquele momento, bem a tempo de ouvir o
filho. Sentou ao lado de Janet e virou-se para Garth, comentando:
— Tolo. Você está sendo um verdadeiro tolo. Tenho observado tudo. Não vivi
sessenta anos à toa. Acho que aprendi alguma coisa sobre a natureza humana. Você
pensa que está apaixonado por Janet e está tentando convencê-la de que seria mais
feliz a seu lado. Pois isso é uma grande bobagem. O marido de Janet é um homem em
um milhão e conquistou o que você vem tentando conquistar, quer ele saiba ou não.
Para mim, está tão claro como o dia que ela o ama. Mas você, seu tolo, não entendeu
ainda. O amor não é só admirar o luar e as rosas, Garth. É dar tanto quanto se recebeu,
e Janet e Brett descobriram o segredo...
Janet não conseguiu dizer nada. Queria recostar a cabeça no peito maternal de
Elizabeth e dizer-lhe quanto estava errada em suas conclusões e quanto desejava que
tudo fosse verdade. Antes de dizer qualquer coisa, Elizabeth continuou:
— Brett tem sérios problemas. Não pode lhe dar a atenção que gostaria, mas
estou certa de que, se você o deixasse, ele não ia querer continuar só com o trabalho.
As palavras de Elizabeth não lhe saíram da cabeça. Certa noite, não resistiu à
tentação de descobrir se a velha estava certa. Disse a Brett que o paciente do qual
estava tratando recebeu alta.
Como não teria mais o que fazer ali, perguntou se ele se importaria se ela
arranjasse um emprego no exterior.

CAPÍTULO XVI

B rett ficou em silêncio, como que petrificado, sem conseguir sequer pensar. O
momento que tanto temia tinha chegado, e só o treinamento de anos ajudou-o a não se
trair com palavras ou movimentos.
Janet esperou, nervosa. Qualquer coisa que ele dissesse seria melhor do que
aquele silêncio, como se não tivesse ouvido ou como se aquele pedido estivesse
totalmente fora de cogitação. Sem conseguir suportar mais, perguntou:
— Não poderíamos dizer que tenho uma irmã no exterior, que precisa de mim?
Qualquer desculpa será melhor do que...
Parou, abalada pelo que esteve para dizer, mas sua intenção ficou clara o
bastante para tirar Brett do estado de torpor em que se encontrava.
— Já disse que nada é pior do que o contrato que fizemos, eu acho — disse, da
maneira mais impessoal. Em seu trabalho no São Lucas sempre conseguiu manter uma
certa dignidade e um autocontrole, que agora o ajudavam. Parecia que era o cirurgião
do hospital São Lucas e, não, o companheiro dos últimos meses. — Não creio que você
precise fugir de mim, Janet. Mas se é isso que quer...
— Não, não é! — As palavras irromperam, como se Janet não tivesse mais
controle sobre elas. Impulsivamente, foi sentar numa almofada aos pés de Brett. — O
que eu quero é um emprego de verdade. Alguma coisa para fazer, onde eu saiba que
estou realmente ajudando. Como tomar conta de Sanderson; eu me senti fazendo parte
do trabalho, desde que comecei a tratar dele como enfermeira. Agora, ele vai embora, e
eu volto ao ponto de partida. Não gosto disso. Eu me aborreço, me sinto miserável. Faço
coisas que na verdade não me interessam, simplesmente porque não tenho mais nada
para fazer.
— Isso não vai continuar assim.
Brett agarrou-se à esperança de que Janet estava tentando lhe dizer que seu
interesse por Garth Marley tinha surgido apenas por estar aborrecida. Com esforço,
tentou afastar para longe a lembrança do outro homem e se concentrar no que era mais
importante no momento: manter Janet com ele, ali em Brocklemeade.
— Ouvi dizer que estão querendo usar o centro como uma espécie de estação de
casos especiais. Como uma entre várias formas de experiências, vamos receber
algumas vítimas. Estamos esperando duas pessoas para amanhã. Eu pretendia lhe
dizer isso hoje à noite, mas você já foi jogando essa bomba em mim...
— Pessoas como Sanderson? Pessoas que precisam de uma enfermeira?
— Pessoas que você pode ajudar. Um rapaz e sua noiva também querem ser
voluntários em benefício de um futuro feliz para a humanidade.
De repente, Janet percebeu como ele parecia cansado e mais velho. Todo o seu
entusiasmo inicial pela causa de Brett voltou com força total. Levantou e pousou a mão
no ombro dele, emocionada.
— Sinto muito. Não ligue para o que eu disse há pouco. Conte-me sobre esses
pacientes. Diga-me como posso ajudar, o que quer que eu observe...
Nem Steven, que o conhecia tão bem, poderia ter imaginado o alívio que Brett
sentiu. Sorriu para ela e começou a procurar nos bolsos as anotações que tinha feito
sobre os pacientes. Janet ia manter a palavra e, com o tempo, ele acabaria achando
uma maneira de lhe mostrar que era um homem muito diferente daquele cirurgião sério
que havia casado com ela.
Conversaram por algum tempo ainda. Agora, existia a perspectiva do novo
trabalho, e Janet não queria mais ir embora. Na verdade, percebeu mais tarde, quando
foi deitar, ela nunca quis ir embora. Foi só o desespero de voltar à monotonia que a fez
falar aquilo. Estava cansada, porém muito feliz. Adormeceu sem pensar em mais nada.
Na manhã seguinte, Janet saiu com Brett para os preparativos para a chegada
dos pacientes. Enquanto se dirigia para o hospital experimental, lembrou do tempo que
estava no São Lucas. Tinham trabalhado juntos, mas lá, faziam parte da equipe, do
sistema do hospital. Ali, era como se vivessem num mundo à parte e estavam cientes do
pioneirismo do trabalho que desempenhavam. Janet sentia arrepios de excitação, só de
pensar que seria novamente parceira de Brett.
— Tem tempo de ir ao correio? — Brett perguntou, interrompendo seus
pensamentos. — Há uma ou duas cartas registradas para nós.
— Não, esta manhã. Nancy quer que eu lhe dê instruções sobre os novos
horários das refeições. É alguma coisa urgente?
— Um convite de casamento. Em Londres. Elinor Constable vai casar no começo
do mês que vem.
Janet deu-lhe uma rápida olhada, mas, como sempre, não conseguiu captar nada
na expressão do marido. Acostumado a fazer seus diagnósticos com imparcialidade,
Brett sabia muito bem controlar as emoções; impossível saber se as notícias o tinham
afetado ou não.
— Você acha que deveríamos ir? Isto é, eu mal a conheço.
— Nem eu — ele respondeu, aparentemente indiferente. — Não, acho que não
precisamos ir. A não ser que você queira mostrar alguma toalete especial, ou queira ter
uma oportunidade de sair deste lugar pelo menos por um dia.
— Não quero ir.
A resposta dela foi tão rápida e enfática que ele riu.
— Nesse caso, vou lhe dar um cheque para comprar um presente de casamento
que poderá ser enviado com um cartão de felicitações. Acho que você sabe como fazer
essas coisas. Mas pensei que... todas as mulheres fossem loucas por casamentos!
— Não esta mulher — disse Janet, tão zangada, que ele a olhou, curioso. — Isto
é...
— Esqueça o que eu disse. Sinto muito. Não sabia que ainda doía.
Antes que ela pudesse dizer que Nigel e seu casamento estavam tão longe que
nem se lembrava mais, a ambulância chegou com os pacientes. Não havia mais tempo
para conversas pessoais. Mas, olhando de vez em quando para o marido durante o
serviço, Janet tentava ver se descobria quais eram os verdadeiros sentimentos de Brett
em relação a Elinor. Da mesma maneira, Brett, de vez em quando, olhava para Janet,
tentando descobrir por que ela havia reagido tão bruscamente ao convite de casamento.
Um pequeno milagre se realizava: pela primeira vez desde que chegaram a
Brocklemeade, ambos estavam conscientes um do outro, não só como parceiros de
trabalho, mas também como homem e mulher.
Naquele dia, almoçaram no refeitório comum e, depois do café e do cigarro, se
separaram. Ela foi ter com seus pacientes, Brett com o que ele chamava de meu "fungo
florescente". Era tudo novo e estimulante. Nem mesmo o tratamento de Sanderson os
aproximou tanto.
Por isso, Janet ficou desapontada ao encontrar Brett ainda imerso em seu
trabalho, quando já estava pronta para voltar para casa. Esperou um pouco,
observando-o trabalhar, mas a não ser por um breve sorriso, ele não demonstrou ter
tomado conhecimento da presença dela. Então, lentamente, ela voltou sozinha para
casa.
Era em ocasiões como essa que percebia quanto o casamento era pouco
importante para Brett. Já para ela, mesmo não sendo verdadeiro, o casamento trouxe
alguns sentimentos novos. Houve até momentos felizes. Existia algum tipo de emoção
entre eles. Ela, pelo menos, tinha se interessado a ponto de perguntar se podia ajudar.
Mas, para ele, os dois continuavam sendo médico e enfermeira. Agora, simplesmente
precisava dela como enfermeira, e era só... Janet pensou em como Elizabeth estava
errada quando afirmara aquelas coisas absurdas...
A lembrança de Elizabeth fez com que sentisse saudades da amiga querida. Mas
até esse conforto lhe era negado agora, já que ir até Marley Hall significava encontrar
Garth.
Entrou em casa e chamou Nancy. Mas, em vez da governanta, foi Garth quem
encontrou, sentado confortavelmente na sala.
— Já que você não vai me ver, resolvi fazer eu uma visita. Qual é o problema,
Janet? Por que não apareceu mais?
— Não diga bobagens — pediu, tentando esconder o medo que começava a
sentir. Nancy estava logo ali, na cozinha, mas a verdade era que não queria que nem
mesmo Nancy percebesse que tinha medo daquele homem. — Aceita uma bebida? Brett
já deve estar chegando. Como vai seu tornozelo?
— Melhor, obrigado. — Garth aceitou o copo e se aproximou. Decidida, Janet
afastou-se em direção à porta.
— Vou avisar Nancy para aprontar o jantar logo. Sinta-se em casa.
— Dizem que a casa é o lugar onde está o coração. Se isso é verdade, será fácil
me sentir em casa.
Agora, havia descaramento em seu olhar. E Janet sentiu que devia impor-se.
Precisava colocar um ponto final naquela história. Voltou para a sala e encarou-o:
— Por favor, não fale desse jeito. Não estrague a amizade que um dia tivemos.
Pode me chamar de antiquada, se quiser, mas não permito que fale assim comigo na
casa de Brett!
— Então, vamos sair daqui. Venha comigo para Marley Hall ou para qualquer
outro lugar, onde eu possa dizer o que preciso lhe dizer há meses. Que a amo, que
posso fazê-la feliz...
— Janet!
As palavras de Garth morreram na garganta e ele conteve o gesto que ia fazer
para abraçá-la ao ouvir a voz de Brett no corredor do lado de fora.
— Janet! Venha ver uma coisa — Brett continuou chamando, com entusiasmo.
Mas, ao abrir a porta, o sorriso quase infantil que tinha nos lábios foi se apagando
até que, com uma expressão de aborrecimento, cumprimentou Garth:
— Olá, parece que você está melhor.
— Sim, obrigado. — Observando os dois homens, Janet sentiu certa admiração
pela maneira como Garth reagiu à inesperada chegada do dono da casa. — Só vim para
saber se Janet vai cavalgar amanhã de manhã.
— Não posso responder por minha esposa. Mas gostaria que, antes, visse a
surpresa que tenho para você, querida. — E Brett estendeu a mão para ela,
convidando-a a sair para o quintal com ele. — Você vem?
— É claro. — Janet não podia acreditar. Aquilo não era do feitio do marido.
Virou-se para Garth. — Venha ver também. Você não se importa, não é, Brett?
— Nem um pouco.
Os três se dirigiram para o quintal atrás do prédio, onde eram guardados os cães,
e Janet viu uma graciosa égua cinzenta. Ficou calada, sem conseguir se mover. Depois
virou-se para Brett, parecendo uma criança excitada.
— Para mim? Ela é minha?
— Todinha sua. O nome é Fleet. E acho que combina muito bem como ela. Não é
que sejamos mal-agradecidos, Marley, mas sei que às vezes é um transtorno para você
acompanhar Janet nas cavalgadas matinais, e imagino que Linda, uma vez ou outra,
também queira usar Candy. Achei que você ficaria feliz, minha querida. Na semana que
vem, espero já ter também meu próprio cavalo. Preciso de exercícios com urgência.
— Posso ir com Janet, você sabe, Brett. Não é problema para mim.
— Não é conveniente que minha esposa fique longe. Preciso dela por aqui. Há
muito trabalho, as coisas estão esquentando e nós dois trabalhamos juntos. Não haverá
muito tempo para divertimentos. De qualquer maneira, agradeço.
— Como quiser.
Mas Garth não se deu inteiramente por vencido. Antes de ir embora, perguntou a
Janet se podia avisar a mãe de que ela iria visitá-la mais tarde.
— Eu... isto é... — Olhou para Brett, implorando-lhe ajuda. Pela primeira vez,
não estava certa quanto à reação dele. Nunca proibira terminantemente as visitas que
fazia a Elizabeth, mas agora se comportava de uma maneira tão diferente da habitual
que ela hesitou.
— Iremos os dois — Brett resolveu. — Só que temos algumas experiências
importantes para amanhã, por isso não poderemos ficará até muito tarde.
Não havia mais nada que Garth pudesse dizer. Seu desapontamento ficou claro
no sorriso estranho com que se despediu do casal.
— Está na hora desse rapaz arranjar um emprego — Brett resmungou, enquanto
Janet se despedia de sua nova amiga, Fleet. — Será que ele não tem mais nada a fazer,
a não ser vir aqui a toda hora?
— Ainda está se recuperando da queda que sofreu. — Não entendia o que havia
por trás da nova e inesperada atitude de Brett em relação a Garth. — Não vejo nenhum
mal no fato de ele vir aqui. — Fez uma pausa, pensando que não tinha falado a verdade.
— Por que você ficou tão rude de repente? Não é bom que o trate assim. Afinal, o avô
dele foi...
— ...Quem doou a propriedade, eu sei. É, talvez não seja bom tratá-lo mal. Mas
você sabe as regras, sabe por que nós dois estamos aqui: "Só casais felizes", eram as
palavras do testamento. E Garth Marley está fazendo o possível para que seu nome, isto
é, o nosso nome, esteja na boca de todos os moradores da comunidade!
— Entendo.
Janet sentiu-se como se alguém lhe tivesse atirado água fria no rosto. Então,
esse era o único motivo para o ódio de Brett pelo homem que queria roubar sua esposa
debaixo do próprio nariz? Só porque as pessoas poderiam falar? Só porque seria um
escândalo? Não conseguiu entender a mistura de emoções em seu coração ao pensar
nisso. Raiva, humilhação, orgulho, ressentimento. Tudo de uma só vez.
— Se isso é tudo que o preocupa, pode esquecer. Garth Marley é apenas um
bom amigo; só estava tentando ajudar. Desculpe, mas estou com um pouco de dor de
cabeça. Não quero comer nada.
Sem encará-lo, para não sentir novamente aquelas emoções todas, retirou-se e
subiu a escada, sabendo que ele ficaria intrigado, mas não magoado. Chegando ao
quarto, Janet atirou-se na cama. Lembrou das palavras de Elizabeth: "se você o
deixasse, não acredito que ele continuasse seu trabalho sozinho..."
Não é verdade, pensou, com amargura. Ela não significava absolutamente nada
para ele. E sabia que, agora, a coisa mais importante de sua vida era tornar verdadeiras
as palavras de Elizabeth.

CAPÍTULO XVII

—V
sela da nova égua.
amos? — Brett olhou para Janet, que acabava de se acomodar na

Ela respondeu que sim, e ele esporou de leve o cavalo negro. Os dois partiram
juntos para fora da propriedade.
— Para onde vamos desta vez? — Brett quis saber.
Na verdade, ele não se importava com o caminho que tomariam. Desde que seu
cavalo havia chegado, uma semana atrás, tinham cavalgado, juntos, duas vezes. Brett
deixava tudo de lado, exceto o trabalho mais importante no laboratório, para poder
acompanhar Janet nesses passeios matinais.
Vou conseguir conquistá-la, prometeu a si mesmo. Nem que leve uma vida inteira,
nem que aquele sujeito... Não deixaria que seus pensamentos tomassem esse rumo
perigoso. Sabia que Garth os observava e achava que eles não tinham percebido. Com
um leve toque no cavalo negro, Brett começou a galopar. Rindo, Janet aceitou o desafio.
Da janela de uma das salas do andar de cima de Marley Hall, Garth
acompanhava a cena, com os lábios crispados. Largou o binóculo, cheio de raiva. Era a
terceira vez naquela semana que os dois passavam por ali. Seria mais fácil de suportar,
se Janet não demonstrasse estar gostando tanto. Garth ainda estava convencido de que
ela era infeliz no casamento, apesar de não ter nenhuma prova concreta. Desde o
primeiro encontro, havia sentido algo diferente entre os dois, talvez porque, desde a
primeira vez, estivesse apaixonado por Janet, e os olhos de um apaixonado vêem mais
do que os olhos de um mero observador.
Brett não a ama. Se amasse, não dedicaria a maior parte de seu tempo à
pesquisa, nem a traria para um lugar como aquele.
Garth começou a andar pela sala e deu asas à imaginação. Podia ver Janet em
Brocklemeade, a casa toda arrumada, um gracioso lar, ela uma charmosa anfitriã.
Depois, viu-a em Marley Hall, descendo com graça a antiga escadaria da mansão, a saia
farfalhando a cada movimento, para cumprimentar os convidados.
Essa era a vida que ela deveria ter. Uma vida elegante, cheia de beleza... e Brett
nunca lhe daria isso! Ele não se importava com tais coisas.
— Garth! Garth! Você está aí? — Elizabeth bateu na porta e entrou, seu rosto
bonito expressando desgosto. — Pelo amor de Deus, abra a janela! Toda essa fumaça,
e as janelas fechadas! Você vai ter uma dor de cabeça terrível...
Decidida, atravessou a sala e abriu a janela que dava para o jardim. Por um
momento, seus olhos pararam no binóculo jogado no velho sofá. Apertou os lábios e
depois sorriu para o filho, um sorriso que, mais do que pena, era de muita tristeza.
Ninguém precisava lhe contar que Garth estava sofrendo. Sabia disso e culpou-se
amargamente.
Eu o estraguei, mimando-o demais, pensou. Nunca disse um não, e isso não está
certo. Ele pensa que é só querer, que o mundo estará a seus pés. Se pelo menos Linda
e Jim estiverem certos, quando dizem que ele só está apaixonado, que não é amor, e
que apenas seu orgulho ficará ferido...
Virou-se para o filho e tocou-o de leve no braço.
— Não faça nada para magoar a si mesmo ou para magoar Janet. Prometa isso.
Não seria justo, mesmo que ela estivesse apaixonada por você. Mas ela ama Brett e
Brett a ama. Eles pertencem um ao outro.
— Ela só tem o nome dele! — Garth não sabia como estava próximo da verdade.
— Isso não significa nada! Esposas não são objetos que se possam comprar e vender.
Pelo menos, não, neste país. Ela pertence a si mesma, até que eu...
— Pare com isso! — Elizabeth estava realmente zangada porque, de repente,
percebeu que sentia medo da situação. Garth ficou corado e os lábios pálidos. Esse não
é você, não pode ser. Nunca o vi assim.
Garth percebeu que ela estava realmente alterada e, por sua vez, ficou com medo
também. Amava a mãe e, para confortá-la, começou a fazer promessas.
— Não se preocupe. Janet não vai nem ao menos se encontrar comigo. Não,
sozinha. Passa todo o tempo com ele. Não importa o quanto eu a tente, ela não quer
mudar.
— Se não quer vê-lo sozinha, então, você deve ter feito algo para que ela
perdesse a confiança. — Examinou o rosto do filho, mas não conseguiu descobrir. —
Deixe-a em paz, Garth. Você tem um nome para zelar, uma tradição a seguir. E isso não
inclui roubar esposas de outros homens! Nunca vai esquecê-la, porque ninguém
esquece o primeiro amor, mas eu gostaria que fosse como James, que flertava com
todas as moças da cidade, antes de casar com Linda.
— Não vou magoar ninguém — disse Garth, solene. — Prometo!
— Então, espero que mantenha a palavra. — Elizabeth sentia-se cansada e
doente. Era esse tipo de coisa que o médico temia; seu coração não estava em
condições de agüentar um grande excesso de preocupações. — Brett está fazendo um
belo trabalho — disse, parando na porta. — Não sei se você lê os jornais, mas ele está
sendo muito elogiado. E não é pela projeção do nome dele. É para a segurança de toda
a humanidade. Brett Hardy é o principal médico envolvido nessa pesquisa; deveria
merecer, pelo menos, seu respeito.
— Eu o respeito muito. Mas isso não tem nada a ver com o que sinto por Janet.
— Nesse caso, não tente provocar um escândalo. Agora, vou me deitar. Antes,
gostaria de lhe dizer que Janet e Brett virão jantar aqui hoje e também outras pessoas
de Brocklemeade. Procure não demonstrar tanto o que sente. Acredite, querido, fingir vai
ajudá-lo.
Saiu, antes que ele pudesse responder. Por um momento, Garth ficou pensando
nas palavras da mãe e no que realmente significava.
Sabia que estava errado em sentir o que sentia por Janet. Sabia isso desde o
começo. Mas qual o amante apaixonado que leva em consideração o certo e o errado no
amor?
Inquieto e impaciente, resolveu sair a cavalo. Tinha algum trabalho a fazer, mas
podia esperar. Antes, daria um furioso galope na direção oposta à tomada pelos Hardy,
para tentar afastar as turbulentas emoções que o agitavam.
Elizabeth viu o filho sair e ficou muito preocupada; ainda mais preocupada do que
no dia do acidente. Ele só voltou a tempo de tomar um banho e trocar de roupa para o
jantar. Mas o coração de Elizabeth estava mais aliviado, porque, aquele olhar diabólico
havia desaparecido do rosto de Garth. Pelo menos, por enquanto.
Elizabeth não era a única pessoa ansiosa com o jantar. Janet também estava. As
duas últimas ocasiões em que ela e Brett tinham sido convidados para Marley Hall a
tinham deixado embaraçada. Mesmo um homem cujo interesse pela esposa era
simplesmente profissional não podia deixar de notar as atenções que Garth dispensava
a Janet; os olhares sutis em sua direção, as manobras planejadas cuidadosamente para
tocar em sua mão e para estar perto dela.
Talvez por isso, Brett estivesse tão diferente. Talvez sentisse um pouco de ciúme.
Não. É simplesmente orgulho, pensou. Orgulho, e o fato de estarmos trabalhando
juntos. Somos uma espécie de equipe. Por isso, a vida tem sido tão boa ultimamente!
Mas sabia, como toda mulher, que não era tudo. Rezou para que Garth Marley
não fizesse nada para estragar a emoção que sentia crescer entre ela e Brett.
A noite foi melhor do que esperava. Flecker e a esposa também estavam
presentes, e mais quatro membros da equipe médica francesa, e a conversa foi leve,
agradável e até mesmo informativa. Elizabeth parecia cansada e tensa, mas não perdeu
o charme habitual, dando uma olhada de vez em quando para Janet e Garth, como se
quisesse ter certeza de que tudo corria bem.
Só no fim da noite, quando Janet foi até o quarto de Elizabeth para apanhar o
agasalho, as duas tiveram chance de conversar a sós.
— Você está especialmente bonita esta noite, querida. Já reparei que o azul é sua
cor favorita. Há pessoas assim: são fiéis a uma cor, como se fosse... o homem que
escolheram.
Janet entendeu a indireta. Elizabeth queria falar sobre ela e Garth. Até agora,
tinha se esquivado dessa conversa. Sem saber por que, essa noite tinha sido diferente.
Se antes sentia medo de tocar no assunto, agora estava calma e segura.
— E outras mudam tanto de cor quanto de homem! — disse alegre. — Eu não:
sou do tipo conservador!
— Eu sei. — Elizabeth sorriu, com aquele sorriso quente e generoso que Janet
conhecia tão bem e que tanto amava. — Só queria ter certeza disso — acrescentou,
honesta. — Mas acho que já sabia. O que torna as coisas mais fáceis. Janet, o tolo do
meu filho pensa que está apaixonado por você. Está querendo achar o amor... através
de você. Espero que seja isso. O que quer que seja, não ligue para ele, por favor. Só
porque sabe fazer lindos discursos e tem mais tempo disponível do que Brett, às vezes,
pode parecer atraente. Mas é uma coisa maravilhosa ser esposa de um homem como
Brett Hardy. Sei que você também sente isso, ou não teria coragem de lhe falar assim.
Só não quero que alguém saia ferido. Nem você, nem Brett... nem meu filho.
— Não se preocupe. — Num impulso, Janet beijou-a. — Garth logo esquecerá.
Temos que planejar alguma coisa para distraí-lo! Você poderia fazer uma lista de todas
as garotas disponíveis da cidade, Elizabeth?
Continuaram a conversar, rindo bastante. Mas, assim que Janet se despediu e
saiu, percebeu quanto a velha senhora parecia tensa e frágil ultimamente. Jurou a si
mesma que, se alguém tivesse que se magoar por causa da infantilidade de Garth, esse
alguém não seria Elizabeth!
A equipe de médicos franceses foi convidada a esticar a noite na casa de Brett e
Janet, pois ele tinha ficado intrigado com algumas afirmações de um dos cientistas, mas
como a mesa de jantar não era um lugar apropriado para esse tipo de discussão,
resolveu estender o assunto convidando-os para um último drinque.
Nancy trouxe as bebidas e os salgadinhos e logo a sala se encheu de fumaça dos
cachimbos e cigarros. Surpresa, Janet sentiu-se como se realmente fosse casada com
Brett.
Assim é que devia ser um casamento de verdade. Ficou ridiculamente alegre e
agradecida, quando, depois de um comentário seu, Brett sorriu e disse:
— É uma ótima sugestão, minha querida.
Por um momento, fechou os olhos e imaginou que era mesmo uma esposa feliz,
que compartilhava do trabalho e da vida social do marido.
Seus sonhos foram interrompidos pela entrada de Nancy.
— Telefone, sra. Hardy. É de Marley Hall. A sra. Marley teve outro ataque e quer
vê-la.
O olhar de Brett cruzou com o de Janet, mas ela não conseguiu decifrar sua
expressão. Começou a tremer e foi atender ao telefone. Era Garth, naturalmente.
— Espero não ter acordado você, mas achei que devia avisá-la. Mamãe piorou. O
médico disse que ela ainda tem algumas forças. Parece que a sobrevivência dela
depende muito de você.
Ficou em silêncio, fazendo com que Janet se sentisse culpada e assustada. Sem
saber por quê, não acreditou muito nas palavras dele, apesar de ter percebido a
aparência frágil de Elizabeth naquela noite.
— Se Brett estiver ocupado, posso ir buscá-la. Levarei uma lanterna...
— Um momento, Garth. — Aquilo era mais do que podia suportar. Sabia que Brett
não gostaria que fosse, mas Elizabeth precisava dela.
Enquanto hesitava, o marido se aproximou, com uma expressão grave.
— Temos convidados, Garth. Estão todos aqui.
— Então, vou buscar você. Brett deve estar ocupado. Linda ficará com mamãe,
não se preocupe.
Antes que pudesse responder, ele desligou. Janet virou-se para Brett.
— Ele está vindo para cá.
— Para buscar você? Elizabeth está, realmente, muito doente?
— Deve estar. — Com esforço, olhou diretamente nos olhos dele e perguntou: —
Você preferia que eu não fosse? Garth não esperou. Eu disse a ele que queria antes
falar com você...
— Vou junto.
Janet balançou a cabeça.
— Você não pode deixar essa gente toda aqui. Não está certo.
— Você é a anfitriã.
Isso fez com que ela se sentisse ainda pior.
— Se você disser que eu não devo ir...
— Sabe que não posso dizer isso, Janet; não tenho esse direito.
Essa era a situação entre eles, finalmente transformada em palavras. De repente,
desejou dizer-lhe de todo o coração que ele tinha todo direito de proibi-la; que o amava e
faria o que mandasse.
Brett, por sua vez, lutava contra o desejo de apertá-la nos braços e dizer que ela
lhe pertencia, e não a Garth Marley! Em vez disso, manteve as mãos nos bolsos, para
não se trair, e desviou o olhar. Quando voltou a falar, foi num tom indiferente, como se o
assunto não o interessasse mais e estivesse atrapalhando sua conversa com os amigos.
— Faça o que achar melhor. Aja de acordo com a sua consciência. Você é livre!
Janet ainda estava sentada, com o telefone na mão, quando Garth tocou a
campainha. Nenhum dos dois se moveu, até que a sra. Heldon abriu a porta. Nesse
momento, Brett voltou para junto de seus convidados, deixando que ela tomasse a
decisão.

CAPÍTULO XVIII

—P ronta? Ótimo.
Janet percebeu imediatamente que Garth imaginou que ela estava no hall de
entrada simplesmente esperando por ele.
— É melhor levar um agasalho. Está começando a esfriar.
Automaticamente, ela se virou e apanhou o casaco de pele que Brett lhe dera de
presente há uma semana. Mesmo aquecida dentro dele, continuou a tremer e imaginou
que seu tremor não tinha nada a ver com a temperatura.
— Só um momento. — Voltou para casa e pediu a Nancy Heldon uma lanterna.
Assim, não teria que andar tão perto de Garth: poderia iluminar o caminho e seguir atrás
dele.
Fora de casa, Garth colocou a mão em seu braço, mas ela se desvencilhou
imediatamente.
— É melhor andarmos um atrás do outro. Você vai na frente.
Ele não gostou da sugestão, mas simplesmente deu de ombros e começou a
caminhar sem demonstrar o desapontamento. Janet deu uma última olhada para sua
casa, esperando que Brett tivesse decidido acompanhá-la.
Era uma esperança tola. Ele não podia deixar os convidados. Apesar de que,
estava certa, esse não era o verdadeiro motivo para não ir com ela. Janet sabia que
Brett desconfiava de que o telefonema tinha sido uma armadilha de Garth para vê-la a
sós. Afastou essa idéia, com impaciência. É claro que Garth não usaria a amizade e a
preocupação de Janet por Elizabeth como desculpa!
— Chegamos. Mamãe está na cama.
Elizabeth parecia ainda mais fraca e abatida, o rosto pálido como uma boneca de
louça. Nem teve tempo ou forças para dizer nada, quando viu Janet entrar. Garth foi logo
explicando que havia telefonado por causa de seu "súbito ataque".
— Você queria que eu viesse, querida? — Janet curvou-se sobre a velha,
ansiosa.
— Garth não devia ter lhe contado — Elizabeth disse, com um fio de voz,
tentando sorrir. — Não foi nada sério. Já tive outros bem piores. Mas foi muita bondade
sua. Eu disse que gostaria que você estivesse aqui, mas não deveria ter vindo. Onde
está Brett?
Instintivamente, Janet compreendeu que Garth a tinha chamado sem
necessidade. Mas, se Elizabeth soubesse que estava ali sem Brett, ficaria ainda mais
preocupada. Por isso, mentiu.
— Ele não vai subir. Muitas visitas não lhe farão bem. Mas ele manda
lembranças.
A velha sorriu, agradecida, mostrando nos olhos o alívio que sentia, o que
justificou a mentira de Janet.
— Tente dormir. Você se sentirá bem melhor amanhã de manhã. Não há nada
para se preocupar.
E era verdade. Qualquer simpatia que sentiu um dia por Garth tinha desaparecido
completamente. Usar a mãe e sua doença para atraí-la sozinha para Marley Hall era o
cúmulo!
Quando saíram do quarto, Janet não pôde mais conter a raiva.
— Isso foi repugnante! Você sabia que eu viria, se pensasse que Elizabeth
precisava de mim.
— Eu precisava de você, Janet. Não é bastante?
— Não. — A palavra foi dita com violência e desprezo. — Vou embora. Sozinha!
E nunca mais confiarei em você. Vou dizer a Linda que, se Elizabeth precisar de mim, só
ela poderá me chamar. Deve estar achando que eu também vim aqui por sua causa.
— E quem se importa com o que Linda acha? Ou com o que todos os outros
acham?
Garth deu uma gargalhada e se aproximou de Janet, que empurrou uma mesinha,
criando uma barreira entre eles.
— Nós dois sabemos qual é a verdade. Só que você pensa que seu dever é ficar
ao lado de Brett. Acha que está sendo nobre em ficar com o grande médico. Deixe-me
lhe dizer, querida, que assim que você saiu hoje, ele deve ter ido para o adorado
laboratório. As pesquisas são muito mais importantes para Brett do que você. E não vai
sentir sua falta, até que precise de você novamente para servir como anfitriã. Poderia
substituí-la por... como é que ela se chama mesmo? Nancy Heldon. Seria a mesma
coisa. É a presença que conta para Brett, e não sua linda carne rosada, minha querida!
Os olhos de Garth tinham aquele mesmo brilho ameaçador do dia do acidente.
Afastou a mesinha que estava entre eles, e Janet sentiu a coragem abandoná-la e o
coração bater descompassado. Sabia que tinha sido vítima da própria ingenuidade, pois
achava que podia lidar muito bem com Garth em qualquer situação.
— Isso não é verdade — ela tentou falar, com voz firme.
Mas ele não era um de seus pacientes; não se deixava convencer facilmente. Era
Garth Marley, cuja amizade ela havia apreciado, mas cujo amor não queria. Porque
estava solitária, achou que poderia ter um bom amigo. Não deu ouvidos à intuição
feminina, que lhe dizia que uma amizade com um homem como Garth Marley não seria
possível. Agora, estava pagando o preço de sua irresponsabilidade. Tentou manter a
calma e ver se conseguia trazer de volta o Garth amigo.
— Vamos tentar esquecer tudo isso. Amanhã de manhã, vai se sentir
arrependido. Posso voltar sozinha; tenho uma lanterna e sei que Elizabeth está bem.
— Pare com isso, Janet! Não quero ouvir mais nada. — Com um pontapé, jogou
longe a mesa e agarrou Janet pelos ombros. Mudando de tom, quase implorando, disse:
— Por que luta comigo? Sabe que não é o que deseja. Você foi feita para amar. Um
homem só precisa olhar para você, para a sua beleza, para saber isso. Não foi feita para
passar o resto da vida em segundo plano por causa de um laboratório.
— Deixe-me ir! — Com uma força que surpreendeu a ambos, ela se soltou e o
encarou, os olhos faiscando, a respiração ofegante e o rosto corado de ódio. — Brett
não é nada disso. Não do jeito que você quer que ele pareça, um homem frio que vive
exclusivamente para o trabalho. Ele é divertido, humano, caloroso, companheiro. Ele é
tudo que você, evidentemente, despreza. Ele sabe coisas sobre uma mulher que você
jamais saberá!
Janet calou-se, assustada com a transformação que viu em Garth. Era como se,
de repente, ele não tivesse mais vida. Todo o fogo e o entusiasmo tinham desaparecido.
Parecia cansado e envelhecido.
— Eu não teria acreditado. Ninguém poderia me convencer... só você! Mas é
verdade. Você o ama, não é, Janet? Você ama aquele robô que só quer de você um
bom desempenho como anfitriã. Mesmo assim o ama. Está em cada palavra, em cada
gesto seu. Mas por que não me disse isso antes que fosse tarde demais?
As últimas palavras foram quase um gemido, um pedido de ajuda. Janet
apoiou-se, cansada, no espaldar da poltrona, percebendo que o que ele dizia era a pura
verdade. Até aquele momento, não sabia disso; se sabia, não queria admitir nem para si
mesma. Amava Brett Hardy e o amava há muito tempo. Tomar consciência desse amor
era quase insuportável para ela.
— Sinto muito — disse baixinho. — Não queria magoar você nem ninguém. Mas...
eu não sabia que o amava. Não fazia idéia até você me dizer... agora mesmo.
Então, Janet compreendeu que Garth realmente a amava. Só o verdadeiro amor
pode criar uma situação em que a pessoa magoada, ferida, acaba confortando a outra.
Calmo, sem emoção, Garth abraçou-a, e ela não resistiu. Como uma criança cansada,
Janet encostou a cabeça em seu peito e ouviu o convite para que ela falasse sobre seus
sentimentos:
— Conte-me tudo, Janet. Isso vai ajudar. Prometo jamais revelar seus segredos.
Soube, então, que podia confiar nele; que estaria segura a seu lado e que o único
desejo dele era ajudá-la. Foi um alívio contar toda a verdade desde o início, desde o
noivado com Nigel.
Janet começou a falar e tudo ficou mais fácil. Seu coração parecia se livrar do
peso que a atormentava há tanto tempo.
Garth ouviu em silêncio, sem interromper. Ela contou como foi procurar Brett,
depois do rompimento do noivado.
— Eu queria um outro cargo... e ele me ofereceu um.
Falou de Rosemary Hardy e da culpa que sentiu ao enganá-la. Falou de Steven e
de seus conselhos. Falou da lua-de-mel, do carinho de Brett, de sua amizade, dos dias e
noites maravilhosos que passaram juntos. Falou também da chegada a Brocklemeade e,
absorvida como estava em contar sua história, não ouviu a sirene do centro de
pesquisas que tocava sem parar. Garth escutou, mas não quis interrompê-la mesmo
porque, o que quer que estivesse acontecendo lá, nenhum dos dois seria de grande
ajuda. Era mais importante deixar Janet desabafar. Outras pessoas já deviam estar
tomando providências a respeito do provável acidente que a sirene anunciava.
— E assim — Janet terminou, pateticamente —, eu agora estou achando a vida
melhor. Pelo menos, somos amigos. Mas não sabia que o amava. Até você me alertar,
Garth.
— Ele deve amar você, querida. Espero que mamãe esteja certa, quando diz que
Brett a adora, mas que talvez nem ele mesmo saiba. Temos que achar uma maneira
de...
Parou quando a porta se abriu de repente e Jim entrou correndo. Diante do olhar
surpreso do irmão, que não esperava encontrar os dois tão próximos, Garth se levantou
calmamente e começou a explicar:
— Não tire nenhuma conclusão precipitada, rapaz. Nós dois estivemos
aprendendo... muitas lições. Mas isto pode esperar. O que há de errado com o centro?
Ouvi a sirene.
— Eu não ouvi. — Janet levantou de um salto e perguntou, aflita: — O que
aconteceu? Preciso voltar.
— Parece que houve uma grande explosão. Ninguém tem muita certeza ainda.
Não há chamas visíveis, mas todo o material está derretendo como se fosse sorvete
num forno quente. Isso foi o que o guarda disse por telefone. Temos que avisar a todos.
A polícia já chegou e os bombeiros estão a caminho.
— Preciso ver Brett — Janet falou, quase gritando. Pegou o casaco, a lanterna e
virou-se para Garth. — Obrigada por me ouvir. Conversaremos mais tarde. E obrigada,
principalmente, por me mostrar a verdade que eu não conseguia enxergar.
— O que ela quis dizer? — Jim perguntou, mas estava falando sozinho. Garth
tinha ido embora, correndo atrás de Janet pelo caminho que levava a Brocklemeade.
Quando a alcançou, segurou-a pelo braço, obrigando-a a parar.
— Volte comigo. Brett vai querer que você fique longe, se houver perigo. Não
pode fazer nada lá. Todos eles são treinados para esse tipo de coisa e sabem como
agir. Há uma equipe especial, sempre pronta para emergências como essas.
— Mesmo que haja pessoas com toda a experiência do mundo, ninguém poderá
fazer o que eu posso. Nenhum deles pode dizer a Brett que ele é mais importante do
que tudo! Você não vê? Eu não sabia até hoje à noite. Eu não sabia o que Brett
significava para mim. Pode ajudar muito, se ele souber! Tenho que ir lá e dizer a ele, se
já não for tarde demais.

CAPÍTULO XIX

B rett nunca ficou tão agradecido a tantos anos de treinamento, autocontrole e


autodisciplina como no momento em que deixou Janet sozinha no hall para tomar sua
decisão. Ao voltar para a sala onde estavam os convidados, Flecker olhou-o com um
sorriso amigo. Tinha grande admiração por seu chefe e faria qualquer coisa para ajudar,
se Brett precisasse de algo.
— Alguma coisa errada, doutor? Podemos ajudar?
— Não, nada, obrigado. — Brett aceitou um cigarro e acendeu-o, aliviado por ver
que suas mãos estavam firmes. — A sra. Marley está doente outra vez. Outro ataque.
Chamaram Janet, minha esposa. A sra. Marley gosta muito dela — acrescentou, para
dar uma explicação às visitas.
— Todos nós gostamos dela — disse a sra. Flecker, sinceramente. — Posso
entender essa espécie de apoio que a sra. Marley vê em Janet. Entende o que eu digo?
Sua esposa é daquele tipo de pessoa que sempre ajuda, se puder. Parece que ela tem
uma aura... de solidariedade, de humanidade.
Brett sentiu-se aliviado. Ela está certa, pensou. Ele já devia ter reconhecido essa
qualidade em Janet há muito tempo. Aliás, talvez por isso tivesse ficado tão ansioso
para que fosse ela a "esposa" que levaria a Brocklemeade. Por que estava se
preocupando tanto? Mas sabia a resposta. Garth Marley não tinha a mesma aura. E
Janet era livre, como ele mesmo acabava de lembrar a ela.
— O jovem Marley tem sido de grande ajuda — disse Flecker. — Deve ter sido
duro para Janet suportar a solidão no começo, quando ainda não havia um trabalho
definido para ela. O senhor deve ter ficado contente em saber que aquele rapaz a
ajudava a passar o tempo.
— Ele não é exatamente um rapaz — respondeu Brett, seco. — É um homem,
com responsabilidades de homem.
— Mas uma mulher como Janet não o veria dessa maneira — disse Flecker. Com
um sorriso de cumplicidade para a esposa, continuou: — Mulheres que se casam com
sujeitos como nós não se interessam pelos rapazes do mundo!
Flecker continuou falando, mas Brett não estava mais escutando. Olhando para o
rosto magro e inteligente do colega, ficou surpreso. O homem estava tão certo, e sua
observação tinha sido tão óbvia, que teve raiva de si mesmo por não ter percebido antes
essa verdade.
Sentiu-se quase feliz, até que o pequeno demônio da dúvida começou a martelar
novamente: mas, o que Garth Marley pensava dela? Esse era o problema.
Daquele momento em diante, só queria que todos os convidados fossem embora.
Olhava, impaciente, para o relógio, sem se importar se os outros notavam ou não.
Finalmente, a sra. Flecker comentou que era tarde e a reunião acabou.
Brett acompanhou todos até o portão, despediu-se e voltou para casa. Apanhou
uma lanterna e um casaco, decidido a ir até Marley Hall. Mas hesitou ao chegar à porta.
Se suas suspeitas tivessem fundamento, não seria melhor ficar em casa e esperar por
Janet, em vez de causar alguma situação embaraçosa?
Acendeu um cigarro atrás do outro, andando pela sala sem parar. De repente,
sentiu que, se ficasse mais um minuto em casa, enlouqueceria. Obedecendo a um
súbito impulso, vestiu o casaco e saiu. Não sabia bem para onde ir. Acabaria indo para
Marley Hall, mas não queria fazer isso. Pelo menos, até ter uma idéia clara do que faria
ou diria ao chegar lá. E se Janet resolvesse não voltar para casa? Ela podia dizer que ia
tomar conta de Elizabeth, mesmo que não fosse verdade. E se não quisesse mais
voltar? O que ele faria o resto da vida sem ela?
Brett andou até cansar. Havia alguns troncos de árvore caídos na estrada. Sentou
num deles, com um suspiro de alívio, acendendo outro cigarro. Se continuasse fumando
daquele jeito, ficaria sem cigarros antes de voltar para casa.
Só mais um, pensou, tentando afastar as dúvidas da cabeça. Mas era impossível.
Já sabia há algum tempo o que sentia por Janet e havia tentado de todos os
modos mostrar isso a ela. Devia ter notado que as mulheres costumam adivinhar essas
coisas sem que ninguém lhes diga. Ele a amava. Agora, sabia que o trabalho que fazia,
e que sempre considerou a coisa mais importante de sua vida, não significava nada,
sem Janet a seu lado.
Tenho sido um cego idiota! Eu devia ter adivinhado, desde o princípio. Devia
haver uma razão para querê-la tanto.
Mas, e ela, será que o queria? Na lua-de-mel, achou que tinha conseguido
interessá-la. Mas, naquela época, ele não queria nenhuma mulher interferindo em seus
planos de trabalho. Agora, lembrando como Janet o olhava de manhã durante o café,
lembrando de seu jeito de cantar enquanto fazia as pequenas tarefas da casa,
lembrando de sua alegria ao receber os presentes que ele lhe dava, Brett percebeu que
a desejava como nunca havia desejado nada na vida; nem o cobiçado posto em
Brocklemeade. Se não fosse por ela, não poderia nem mesmo ter esse posto. Tenho
tanto que lhe agradecer!
Apagou o cigarro e resistiu à tentação de acender outro. De repente, tomou a
decisão. Se alguém quer alguma coisa com loucura, não há outra maneira de
consegui-la, a não ser tentando. Sabia que desejava Janet, que a queria, que a amava e
sentia falta dela; quanto mais tempo ficasse ali sentado, mais tempo demoraria para
descobrir o que ela sentia por ele. Havia pensado em conquistá-la aos poucos, para que
se acostumasse com a idéia de seu amor. Mas agora já era tarde. Algo lhe dizia que
precisava se apressar para não perdê-la.
Só havia uma coisa a fazer: contar-lhe a verdade. Então, ela escolheria.
Uma vez tomada a decisão, não poderia mais voltar atrás. Com certeza, ela o
ouviria e, no mínimo, lhe daria uma chance.
Estava quase chegando, quando ouviu a sirene. Instintivamente, começou a
correr, todos os pensamentos voltados para Janet. As sirenes tinham sido colocadas por
um órgão do governo, e Brett sabia que, para que tocassem, algo de muito sério devia
ter acontecido.
A idéia de que Janet devia estar em Brocklemeade ou em Marley Hall, dois
lugares muito próximos do laboratório, fez com que corresse cada vez mais. Ao chegar
aos portões de Brocklemeade, viu que havia um policial no lugar do guarda. Perdeu
alguns minutos para provar sua identidade; finalmente, conseguiu entrar. Havia técnicos
por toda parte, dois carros de bombeiro e muitos policiais. Começou a sentir o perigo no
ar. Silenciosamente, fez uma prece de agradecimento por Janet estar fora de perigo, em
Marley Hall.
Flecker se aproximou, assustado, e começou a falar, descontroladamente.
— Onde está Janet, Brett? Por que não a impede de fazer essa loucura?
Desesperado, Brett agarrou o braço do outro, derrubando um equipamento que o
assistente tentava salvar do incêndio. Não se preocupou nem com o trabalho de meses
desperdiçado.
— Janet está em Marley Hall — disse, fora de si. — Você sabe que ela foi para lá!
— Ela voltou para procurar por você. Correu para dentro do laboratório, mas eu
disse que ninguém o tinha visto lá.
— Onde está agora? Para onde ela foi? Eu preciso saber.
— Pode estar em qualquer lugar. — O tom de voz do colega fez com que Brett
lembrasse que a sra. Flecker corria o mesmo perigo que Janet e, nem assim, ele havia
deixado seu dever de lado. Mas já tinham vivido muitos anos juntos... se amando. Afinal,
formavam um casal normal!
Agradeceu a Flecker e começou a procurar por Janet entre as pessoas que
estavam ajudando no acidente.
Por que trabalhar tanto, por que se dedicar tanto ao futuro de outras pessoas,
quando ele mesmo tinha sido privado de um casamento normal e de ter crianças? Se
conseguisse superar tudo isso, faria com que Janet o amasse. Faria com que ela visse
que podiam salvar suas próprias crianças, assim como as dos outros.
Elas serão testemunhas do sucesso de nosso trabalho!, pensou.

Garth Marley percebeu muito mais tarde que, a partir desse instante, ele
realmente amadureceu emocionalmente, para sempre. A ansiedade de Janet por Brett
foi como uma punhalada em seu coração, mas ao mesmo tempo, Garth sentiu que era
capaz de uma emoção pura, sem egoísmo.
Para Janet, também muita coisa havia mudado. Uma vez, tinha pensado que
amava Nigel. É verdade que sempre soubera que não era um amor arrebatador, que
pudesse durar a vida inteira. Mais tarde, com Garth, conheceu a experiência de sentir a
atração física, e até apreciou o flerte, a sensação de ser amada e admirada. Agora,
sabia que amava Brett com cada fibra de seu ser: com o coração, com a razão e com o
corpo. Sabia que o amor era uma coisa que torturava e ao mesmo tempo dava prazer. O
que quer que tivesse acontecido, precisava encontrar Brett.
Foi primeiro até em casa, seguida por Garth. Nancy estava sozinha, vestida e
preparando a costumeira xícara de chá forte, seu remédio preferido para pequenas e
grandes crises.
— Você vai beber isso? — Garth perguntou, sentindo-se tolo por não ter dado a
devida importância a essas coisas, morando tão perto de Brocklemeade. — Pode estar
contaminado.
— Um pouco mais não fará mal. Pelo menos, evitará que eu enlouqueça, sr.
Marley. Fiquei o tempo todo em casa; creio que não estou muito contaminada. Depois,
vou para a câmara de descontaminação.
— É isso. — Janet exclamou. — Ele deve estar nas câmaras de
descontaminação.
Tentou convencer Garth a voltar, mas ele insistiu em acompanhá-la. Procuraram
por Brett, mas ninguém o tinha visto por lá. Desanimada, apoiou-se em Garth, prestes a
chorar.
— Não adianta. Não consigo pensar em outro lugar onde ele possa estar.
— Os cavalos. Será que ele foi para lá?
— Não antes de salvar as pessoas.
Garth abraçou-a, confortando-a e tentando achar uma saída. E foi assim que Brett
os encontrou. Por um momento, a raiva substituiu a tensão em seu rosto. Mas, quando
Janet o viu e correu para seus braços, ele percebeu que era o vencedor.
— Estávamos procurando por você — Garth disse. — Agora que Janet está onde
queria estar, vou ver o que posso fazer para ajudar.

Dois meses se passaram, desde a noite da explosão. Brett voltava do laboratório.


Fazia frio, e logo o Natal chegaria e, com ele, o primeiro descanso desde que chegara a
Brocklemeade. O acidente trouxe pelo menos uma coisa boa: a aproximação entre ele e
Janet.
Como era bom amar e ser amado. E, há apenas dois meses, não sabia o que era
isso. Agora, ria com pena do velho Brett, que havia deixado o amor de lado como uma
coisa sem importância. A porta se abriu antes mesmo de ele chegar. E lá estava Janet,
esperando, sorridente, como todas as noites, desde que tinham confessado seu amor.
— Trabalhou muito, querido? — perguntou, ajudando-o a tirar o casaco. —
Telefonaram avisando que estão construindo um centro de pesquisas bem maior e
pedem que você entre em contato com a superintendência. Disseram que fez um bom
trabalho aqui.
— Depois falaremos disso. — Abraçou-a, levando-a para a sala de jantar, onde as
brasas da lareira e as chamas dos candelabros crepitavam alegres, como saudando os
dois.
— Aqui, tenho tudo que quero. A não ser...
— A não ser que o chamem para chefiar o novo centro? E se precisarem da sua
experiência, você vai?
— Só se você for comigo. — Brett olhou-a bem nos olhos e encostou os lábios
aos dela. A princípio, delicadamente; depois, mais exigente, explorando sua boca com
paixão. E, apertando-a nos braços, murmurou: — Esta é a minha condição, desta vez: o
chefe tem que ser um homem muito feliz no casamento!

FIM

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