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A evolução institucional da
Polícia no século XIX: Inglaterra,
Artigos

Estados Unidos e Brasil em


perspectiva comparada1

Eduardo Cerqueira Batitucci

Eduardo Cerqueira Batitucci é pesquisador do Núcleo de Estudos em Segurança Pública da Fundação João Pinheiro e doutor

em Sociologia pela UFMG.

eduardo.batitucci@fjp.mg.gov.br

Resumo
O artigo apresenta uma reflexão sobre as características do desenvolvimento institucional da Polícia durante o século
XIX no Brasil, Inglaterra e Estados Unidos, de forma comparada, procurando evidenciar as principais características
da consolidação do aparato policial nestas três realidades, bem como as possíveis continuidades entre características
históricas do desenvolvimento institucional da polícia no Brasil e alguns dos dilemas colocados para a profissionalização
das nossas polícias.

Palavras-Chave
Polícia. História da Polícia. Profissionalização da Polícia.

30 Revista Brasileira de Segurança Pública | Ano 4 Edição 7 Ago/Set 2010


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M uitos historiadores apontam para o
desenvolvimento institucional da
polícia como o mais eficiente instrumento de
A Polícia Metropolitana de Londres
Do ponto de vista de sua evolução institu-
cional, o paradigma das polícias ocidentais é
opressão das classes proprietárias sobre as clas- a Polícia Metropolitana de Londres, a “nova

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Eduardo Cerqueira Batitucci
ses trabalhadoras, no calor das mudanças sociais polícia” fundada em 1829.
e urbanas da consolidação da revolução indus-
trial na Europa, no início do séc. XIX; outros, Considerada a primeira polícia moderna em
em visão oposta, identificam a polícia como o um país com governo representativo (MILLER,
melhor instrumento disponível para enfrentar 1999), sua característica de modernidade estava
as consequências previsíveis destas mudanças – associada à definição do seu papel como o de uma
caos, desordem e crime – por meio da qual toda polícia preventiva e, portanto, não prioritariamen-
a sociedade, a despeito das profundas divisões te voltada para a implementação da Lei, por meio
de classe, teria a ganhar (REINER, 1992). Em da repressão aos comportamentos desviantes. Es-
uma perspectiva menos dicotomizada, Emsley tas duas ideias – um governo representativo e uma
(1996, p. 5-7) afirma que seria mais realista polícia preventiva – implicariam a necessidade de
conceber a Lei e a Polícia como instituições que a polícia deveria em primeiro lugar obter e,
multifacetadas, utilizadas por pessoas de todas então, utilizar a aceitação e concordância volun-
as classes, para se opor, cooperar e conseguir tária das pessoas para a sua autoridade (MILLER,
concessões uns dos outros. 1999, p. 1), e que o policiamento efetivo, nestes
termos, requereria um consenso genérico de que
Seja como for, é consenso para a maioria o poder que a polícia representa e o poder que ela
dos autores (BAYLEY, 2001; EMSLEY, 1996; exerce são minimamente legítimos.
GOLDSTEIN, 1990; LEE, 1971; MAN-
NING, 1997; MILLER, 1999; MONKKO- Neste caso, a despeito de representar, do
NEN, 1981; PONCIONI, 2003 e 2005; ponto de vista prático, a ideologia dominan-
REINER, 1992; TONRY; MORRIS, 1992, te em uma dada sociedade – haja vista que,
SENIOR, 1997; WALKER, 1977 e 1992; como afirma Reiner (1992, p. 3-4), o impacto
entre outros) que, durante o séc. XIX, a po- das leis, ainda que formuladas a partir de con-
lícia, especialmente na Europa e nos Estados cepções genéricas e universalistas, reproduz as
Unidos, desenvolveu-se no sentido da profis- desigualdades de uma determinada sociedade
sionalização e da legitimidade, conquistando o –, a polícia, mesmo dispondo do poder para a
monopólio da atividade de enfrentamento ao coerção, pode optar por agir por meio do con-
crime e à desordem social. senso (EMSLEY, 1996, p. 5).

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Para Manning (1997, p. 86), isso foi pos- dora quanto entre os nobres e proprietários, por-
sível para a “nova polícia” em virtude de um que representava de forma bastante tangível um
projeto institucional cuidadoso, voltado es- enorme potencial de regulação do governo sobre
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pecificamente para a ideia de que a polícia foi a vida privada das pessoas, até então inédito.
concebida, pelo menos em parte, como uma (MILLER, 1999, p. 4; LOWE, 1990, p. 219).
força direcionada para a construção de uma
mediação política entre o povo e as elites. Nes- Logo, se, por um lado, é suposto que a
te sentido, a polícia deveria: visão das pessoas sobre a polícia reflete, em
(...) prevenir o crime, sem recorrer de forma algum grau, a ideia que elas têm do governo
repressiva à sanção legal e procurando evitar a que esta polícia representa, por outro, a polícia
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intervenção militar em distúrbios domésticos pode ter um papel ativo na criação de sua pró-
(tais como em motins e revoltas populares); pria imagem pública, sendo que, neste sentido,
gerenciar a ordem pública de forma não vio- um desenho institucional adequado pode ser
lenta, com a aplicação de recursos violentos de grande ajuda. Dessa forma, Sir Robert Peel2
apenas como última possibilidade para conse- deliberadamente procurou moldar as caracte-
guir obediência e concordância; minimizar e rísticas organizacionais da polícia de Londres,
mesmo reduzir, se possível, a divisão ou sepa- em virtude da tradicional desconfiança britâni-
ração entre a polícia e o público, e demonstrar ca na autoridade oficial, no sentido de garan-
eficiência através da ausência de crime ou de- tir que seus policiais não fossem vistos como
sordem, e não através da ação policial voltada alguma forma de exército doméstico a servi-
para este fim (MANNING, 1997, p. 92-93). ço da proteção da coroa em detrimento ou ao
custo das liberdades individuais (SKOLNICK;
Estas características implicariam uma série FYFE, 1993, p. 117).
de novas demandas organizacionais, incompa-
tíveis com os antigos sistemas de policiamen- Assim, a Polícia Metropolitana de Londres
to casuais ou esporádicos até então funcionais introduziu vários elementos que fizeram parte,
na sociedade inglesa: os vigias noturnos (night daí para diante, da ideia moderna de policia-
watchers), os “detetives” das cortes e os “Juiza- mento (WALKER, 1992, p. 5): um sentido de
dos de Paz”, atores privados ou semiprivados, missão, relacionado à noção de prevenir o cri-
que agiam mediante contrato, pagamento, ou me antes que ele ocorra, em que a estratégia era
imposto específico. Assim, a “nova polícia” se- a patrulha preventiva; uma estrutura organiza-
ria, por exemplo, a primeira a desenvolver a cional definida, no caso em pauta, baseada na
ideia de prevenção do crime por meio de pa- estrutura das forças armadas, em especial o seu
trulha constante, em vez da simples apreensão sistema de comando e disciplina; e a presença
de ofensores após a ocorrência do fato (MIL- contínua da polícia na comunidade por meio
LER, 1999, p. 2). da patrulha preventiva em tempo integral.

A despeito disso, a polícia como organização Na verdade, seus princípios fundadores


não era bem vista tanto entre a classe trabalha- sintetizavam uma já longa tradição de estu-

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dos e debates sobre a polícia na Inglaterra e culo XIX, seria produto tanto da “pacificação
sua organização, sendo que uma das grandes das relações sociais” na sociedade inglesa, isto
contribuições de Peel ao modelo da Polícia é, da incorporação das classes trabalhadoras ao

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de Londres foi sua insistência na aplicação de processo político – pela conquista do direito
normas burocráticas estritas no funcionamento ao voto e a representação parlamentar, princi-
da organização e a nomeação de seus dois pri- pal fonte de resistência à organização policial
meiros comandantes, estabelecendo as princi- – como de políticas e estratégias organizacio-
pais características da Polícia de Londres, sua nais deliberadas, desenvolvidas no sentido de
organização e sistema de disciplina, os sistemas dotar a polícia de condições institucionais para
de patrulha, o uniforme e outros detalhes da a conquista de legitimidade social por meio,

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estrutura e normas de conduta na prática que especialmente, dos seguintes elementos:
determinaram o desenho institucional da Polí- • organização burocrática: a nova polícia
cia inglesa (MILLER, 1999, p. 2). seria organizada por princípios de uma hie-
rarquia burocrática, com uma cadeia de co-
Entre as principais características deste mo- mando em linhas quase-militares; regras e
delo, citam-se: sistemas de patrulha derivados regulamentos governavam vários aspectos da
de cálculos pré-programados que procuravam vida do policial (uso do uniforme, hábitos de
excluir demandas políticas e monetárias; pro- higiene, formas de tratamento de populares
cessos de recrutamento e seleção, com míni- e superiores hierárquicos, horários de traba-
mos a serem atingidos pelos candidatos; estru- lho, etc.) e não só aqueles relacionados à sua
tura de cargos e salários; política de carreira, atividade de patrulha; a adesão a estes regula-
com progressão por mérito e antiguidade, mas mentos era inculcada por meio de formação
com grande ênfase no mérito; estabilidade no e treinamento;
emprego para policiais de boa conduta; uso do • mandato da lei: a forma como a polícia atu-
uniforme; e estratégia de supervisão e contro- ava na manutenção da ordem e no reforço do
le da atividade de patrulha (MILLER, 1999; sistema legal era, ela mesma, submetida a um
REINER, 1992; EMSLEY, 1996). conjunto de regras e procedimentos que visa-
vam restringir a liberdade de ação do policial;
Para Reiner (1992, p. 60-76), estas políticas • estratégia do uso limitado da força: o gros-
representavam uma “arquitetura” propositada- so dos policiais não portava armas, estando
mente desenvolvida, no sentido de conferir limitados a um bastão de madeira, sendo que
legitimidade para a organização policial, justa- mesmo o seu uso era restrito, determinado
mente no momento das amargas lutas políticas apenas como último recurso;
em torno da expansão do direito de voto e re- • neutralidade política: considerada um dos
presentação parlamentar na sociedade inglesa. elementos mais importantes, indicava que
a polícia deveria apresentar uma imagem
Logo, a ideia de consenso ou consentimen- de neutralidade política diante das agudas
to que subjaz o amadurecimento institucional divisões de classe da sociedade inglesa, pro-
da polícia londrina, na primeira metade do sé- curando a imparcialidade na ação, que deve

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ser orientada por princípios genéricos (para Em resumo, o desenho institucional da Po-
tanto, se proibia o voto aos policiais – política lícia Metropolitana de Londres privilegiava a
que perdurou até 1887); neutralidade política, o desenvolvimento de um
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• accountability: a despeito de não haver sentido profissional baseado nos critérios de ad-
controle formal por nenhum corpo eleito, missão e treinamento, na regularidade procedi-
entendia-se que a polícia era accountable à lei, mental e na adesão ao mandato da lei e o desen-
em virtude de que suas ações eram revistas volvimento de um espírito público por parte do
pelas cortes, mas, especialmente, à população, policial, através da sua identificação simbólica
através de um processo de identificação entre com a população e com a sua missão.
a polícia e as classes populares, incentivado
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por estratégias deliberadas de recrutamento De fato, nos termos de Bayley (2001, p.


e seleção, que buscavam os policiais entre a 64-65), a “nova polícia” representou um passo
massa das classes populares; importante na construção das três caracterís-
• espírito público: incentivado por meio do ticas essenciais da polícia moderna: ela é pú-
cultivo deliberado da noção de que o policial blica, pois representa a total transferência da
é um servo da população; segurança de uma comunidade de sistemas pri-
• primazia da prevenção: determina a con- vados ou quase privados para o Estado; é espe-
centração da força nas atividades de patrulha cializada no sentido de que desenvolveu uma
ostensiva uniformizada, visível (e controlável) missão específica voltada exclusivamente para a
pela população, em detrimento das atividades prevenção e repressão de crimes; e, finalmente,
de investigação, usualmente desenvolvidas caminha na direção da profissionalização, dado
em segredo; que inaugura instrumentos organizacionais es-
• efetividade: observada pelo desenvolvi- pecificamente direcionados para a qualidade e
mento progressivo de indicadores e critérios o desempenho no exercício de suas funções.
que procuravam validar a busca do ofereci-
mento de um serviço de qualidade. Estes elementos, somados aos preceitos
para a institucionalização da organização poli-
Neste sentido, nos casos de atendimento das cial, constituirão parâmetros indissociáveis ao
demandas de manutenção da ordem, em decor- desenvolvimento da polícia como instituição,
rência de crises políticas, motins ou revoltas da no mundo ocidental.
classe trabalhadora, os comandantes da Polícia
londrina se preocupavam no desenvolvimento de
uma estratégia política de contenção do conflito A consolidação da polícia nos
entre a força e a massa de trabalhadores, mantendo Estados Unidos
a polícia como pano de fundo, para ser utilizada A construção do consenso social sobre a
em último caso. Procurava-se, com ênfase na im- legitimidade da polícia na sociedade inglesa
parcialidade e na legalidade das suas ações, cons- resultou, parcialmente, de políticas organiza-
truir uma imagem de impessoalidade ao policial cionais específicas, desenvolvidas para retirar a
londrino e, por consequência, à sua autoridade. polícia do debate político, procurando a cria-

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ção de critérios universais de ação. Ao mesmo Manning (1997, p. 88-92) aponta que a
tempo, a aceitação da polícia e de suas políticas transformação do mandato da polícia inglesa
operacionais foi dependente de um processo na sociedade americana ocorreu a partir das

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maior de mudanças estruturais na sociedade características do pluralismo político, do loca-
inglesa, levando a uma relativa pacificação das lismo na alocação da responsabilidade política
relações sociais entre trabalhadores e proprie- e da diversidade étnica. Essas características
tários (REINER, 1992, p. 61). Ao mesmo demandaram dos departamentos de polícia
tempo, a Polícia Metropolitana de Londres é o americana, em contraste com a Polícia Metro-
resultado de um processo de mudanças e expe- politana de Londres, uma forte dependência
riências organizacionais contínuo e vigoroso, dos contextos políticos locais, o que refletiu

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que vinha se desenvolvendo desde meados do de forma substantiva no controle e comporta-
século XVIII, lastreado por uma longa tradi- mento dos policiais.
ção histórica (EMSLEY, 1996; MANNING,
1997, p. 72-82). Assim, uma característica das nascentes
polícias americanas era a sua total imersão na
Os Estados Unidos compartilham desta política local, uma vez que representavam uma
tradição com os ingleses, especialmente no importante possibilidade de exploração políti-
que se refere à ideia de que a autoridade go- ca, seja por meio dos cargos a serem oferecidos,
vernamental e, por consequência, a autoridade seja pelo poder potencial que representavam
policial devem ser limitadas em virtude das ne- contra possíveis adversários. Logo, a compo-
cessidades de proteção dos direitos individuais. sição dos departamentos de polícia refletia as
Em seguida vêm o controle local sobre as ins- clivagens étnicas e religiosas da comunidade
tituições do sistema de justiça criminal, inibin- local, bem como as forças políticas de mo-
do a criação de organizações nacionais, e, em mento, não sendo incomum que quase todo
virtude desta característica, um alto nível de o departamento de polícia fosse substituído,
descentralização e fragmentalização associado no caso de uma mudança eleitoral (WALKER,
ao funcionamento do sistema de justiça crimi- 1992, p. 8).
nal (WALKER, 1992:4).
A autoridade policial no contexto democrá-
Herdando do sistema inglês os constables tico americano emerge, portanto, muito mais
e watchers, a polícia americana foi evoluindo do indivíduo do que da instituição, baseando-
organizacionalmente de forma muito rápida se mais na proximidade com os cidadãos e suas
durante o século XIX, o que representou a mu- expectativas informais sobre o trabalho poli-
dança paulatina de uma estrutura tradicional, cial do que em normas legais ou estamentos
semiprivada, ligada às cortes e funcionando sob burocráticos. Se o policial impessoal londrino
demanda ou recompensa, para uma estrutura era um burocrata profissional, o policial ame-
burocrática firmemente associada à adminis- ricano era essencialmente um amador visto
tração governamental local (MONKKONEN, como pouco mais do que um cidadão comum
1981, p. 31). a quem foi delegado poder legal, e o contro-

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le partidário da polícia foi a mais importante debate político americano, oferecendo como
consequência deste sentimento antiprofissio- bônus aos seus controladores uma pletora de
nal (MILLER, 1999, p. 16-17). cargos e posições públicas, a atividade de con-
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trole social, controle eleitoral e o controle de


Dessa maneira, em vez de depender de sua atividades como jogo e prostituição, que ge-
legitimidade institucional, de um código for- ravam corrupção e dinheiro de proteção. Um
mal de comportamento e de um sistema de dos grandes obstáculos ao amadurecimento
supervisão, de uma forma muito objetiva, cada institucional das polícias americanas foi o con-
policial americano tinha que estabelecer sua flito entre as elites administrativas, políticas e
própria autoridade entre os cidadãos que ele pa- étnicas sobre o seu controle (MONKKONEN,
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trulhava. Isso não seria evidentemente possível 1981, p. 44).


se ele constantemente contraditasse padrões e
expectativas locais em prol de um ideal buro- Assim, os primeiros departamentos de
crático impessoal. Logo, embora isso signifique Polícia compartilhavam deste estilo de admi-
diferentes padrões de policiamento em diversos nistração descentralizada, típico dos sistemas
locais, a polícia tenderá a refletir e vocalizar os quase-privados anteriores. O particularismo da
conflitos da comunidade, em vez de estabelecer vizinhança, do distrito local, significava que os
e manter padrões que os transcendam. policiais eram recrutados pelos líderes políticos
locais, de um determinado distrito ou bairro.
Dentro do contexto genérico das expecta- Em muitos casos, policiais de diferentes distri-
tivas públicas, o patrulheiro americano tinha tos ou bairros usavam, numa mesma cidade,
menos poder, mas com menos limites legais e uniformes diferentes, o que dá uma ideia sobre
institucionais do que os seus correspondentes a dificuldade de implantação de critérios uni-
londrinos, e com muito maior discrição no versais básicos, mesmo em uma única adminis-
exercício cotidiano do seu trabalho. Isso era tração municipal (WALKER, 1977, p. 8).
possível porque o policial americano, vincula-
do intimamente ao sistema político partidário, Dado que a polícia era primariamente uma
acabava se tornando accountable indiretamente ferramenta política, a composição da força era
ao sistema político, da mesma forma que qual- muito importante, principalmente na ausência
quer autoridade eleita, o que reduzia a possibi- da noção de que a atividade policial demanda
lidade do exercício arbitrário do poder – num conhecimento, habilidade ou treinamento espe-
“vigilantismo delegado, ele faria o que a maio- cial – lealdade política era a única qualificação
ria das pessoas faria se estivessem na posição real para o cargo. Treinamento formal era virtu-
dele” (MILLER, 1999, p. 20). almente inexistente, e mesmo o uso do unifor-
me era considerado um sinal de status inferior
De fato, como uma das primeiras buro- da profissão (WALKER, 1977, p. 12-13).
cracias urbanas a unificar as comunicações e
o controle territorial sobre a cidade, a polícia Com a introdução do patrulhamento pre-
se situava numa posição relevante dentro do ventivo, um dos problemas que se tornaram

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mais prementes foi o da supervisão do trabalho mente a demandas das elites sobre o controle
policial. Este é, na opinião de Walker (1977, p. dos trabalhadores ou das classes perigosas, a
13), um dos grandes motivos que subsidiaram despeito de a polícia oferecer serviços desta na-

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os movimentos de profissionalização da polí- tureza. As administrações públicas urbanas nos
cia americana – a busca de meios eficazes de Estados Unidos, na última metade do século
supervisão dos policiais de linha –, no que se XIX, passaram a se orientar para a oferta de
refere tanto ao desenvolvimento organizacio- um crescente conjunto de serviços racionaliza-
nal das polícias americanas, quanto ao uso e dos (tais como a polícia, bombeiros, esgoto e
à adoção de tecnologias. Muito do desenvol- saúde pública), que antes eram disponibiliza-
vimento institucional da atividade policial se dos por entes privados diversos.

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deve a tentativas para resolver esta questão.
Para as grandes cidades, o sucesso da Po-
Seja como for, a polícia uniformizada lícia Metropolitana de Londres representava
se massificou nos Estados Unidos entre as um modelo a ser seguido, uma vez que eventos
décadas de 1850 e 1880, transformando-se diversos precipitavam as necessidades de mu-
em lugar comum tanto nas grandes cidades dança dos antigos sistemas. Progressivamente,
como em pequenos condados do interior. pequenos municípios também passaram a ado-
Segundo Monkkonen (1981, p. 50-52), três tar a polícia uniformizada como solução, con-
explicações são usualmente associadas a este solidando, progressivamente, a polícia como
fenômeno: a incapacidade dos antigos siste- uma tendência da governança urbana america-
mas de enfrentarem tendências crescentes de na (MONKKONEN, 1981, p. 53-57).
criminalidade e percepção de insegurança;
demandas mais severas de controle social as- Nesse sentido, sinais de institucionalização
sociadas à cada vez mais frequente intolerân- progressiva da polícia poderiam ser identifica-
cia das elites com relação a motins e revoltas dos não apenas pelo uso sistemático do unifor-
de natureza sindical ou étnica; insegurança me, mas também pelo recrutamento interno
simbólica advinda dos processos de imigra- para os postos de liderança, pela separação en-
ção em massa e suas consequências no meio tre as funções de patrulhamento e investiga-
urbano das grandes cidades. ção, pela especialização nas funções em cada
área de atuação, pela criação e uso de critérios
Para o autor, entretanto, uma forma mais universais, não discricionários, meritocráticos
razoável de observar estas mudanças refere-se e impessoais para a condução das atividades in-
ao reconhecimento de um processo de inova- ternas da organização, enfim, pelo desenvolvi-
ção na administração pública americana e sua mento das burocracias policiais. A consequên-
subsequente difusão. A massificação da polícia cia previsível destas mudanças apontava para
uniformizada nos Estados Unidos, até os anos a despolitização das polícias americanas, como
1880, estaria relacionada ao crescimento mais uma necessidade do processo mais amplo de
amplo das burocracias de serviços públicos ur- racionalização e uniformização (MONKKO-
banos do final do século XIX e não simples- NEN, 1981, p. 58-59).

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Algumas das dificuldades de institucionali- tos de manutenção da ordem pública e do
zação das polícias nos Estados Unidos também monopólio do exercício legítimo da violência
foram observadas no Brasil, com as devidas por parte das autoridades coloniais. Este de-
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ressalvas, fruto das diferenças sociais e de cul- senvolvimento, entretanto, foi profundamente
tura política e judicial. marcado, de um lado, pelas características do
Estado patrimonialista português e, de outro,
pela resistência e rebeldia de vários setores da
O desenvolvimento institucional da população, especialmente entre aqueles que
polícia no Brasil detinham poder econômico ou militar.
Do ponto de vista histórico, uma das ques-
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tões fundamentais na definição do Sistema de Durante o século XVIII floresceram as or-


Justiça Criminal brasileiro pode ser apontada a denanças e milícias, que compreendiam, no
partir do contexto do século XVIII, que mar- primeiro caso, tropas civis convocadas pelo
ca a expansão e consolidação da atividade de rei e, no segundo, corpos militares de vassalos
mineração do ouro e a consequente mudança não pertencentes às forças regulares do exército
do foco da coroa portuguesa na, então, colônia português (COTTA, 2006, p. 53). Em ambos
brasileira: da produção do açúcar do Nordeste os casos, entretanto, sua atividade estava mais
brasileiro, administrado a partir da cidade de voltada para vigilância ao desvio do quinto
Salvador, para o ouro das Minas balizado pela do ouro, perseguição aos escravos revoltosos
mudança da capital e da burocracia para a ci- e proteção das instalações coloniais (LIMA
dade do Rio de Janeiro. JÚNIOR, 1960, p. 56-57). Neste sentido,
as ordenanças e milícias eram completamen-
As características da exploração do ouro im- te dependentes dos desígnios das elites locais
punham uma nova abordagem para o controle e de suas intenções militares, econômicas ou
das riquezas e da tributação. Se o engenho de políticas, sendo, frequentemente, instrumen-
açúcar demandava alto investimento na cons- talizadas a partir de seus interesses, como na
trução do maquinário, plantação da cana, co- rebelião em Vila Rica, em 1720, quando a eli-
lheita, processamento e exportação do açúcar te da cidade se revoltou contra a cobrança do
e, portanto, carência de muitos anos para o quinto do ouro por parte da coroa portuguesa
retorno do investimento, o ouro apresentava (ANASTASIA, 1998).
outra dinâmica de produção, bastante diversa,
mais barata e menos intensiva e, em virtude de O século XIX trouxe, com a chegada da co-
sua característica de equivalente universal, ofe- roa portuguesa ao Rio de Janeiro, a Intendên-
recia novos problemas para a questão da ordem cia Geral de Polícia para o Brasil, que, baseada
colonial (ANASTASIA, 1998, p. 11-12). em sua congênere lisboeta, foi estabelecida a
partir do molde da L’intendance de Police fran-
Assim, um aspecto fundamental da con- cesa, constituindo, de um lado, “instrumento
solidação da exploração colonial na época do do príncipe para impor sua própria presença
ouro foi o desenvolvimento dos instrumen- e autoridade contra as forças tradicionais da

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sociedade imperial” (CARVALHO, 2008, p. livres que eram, coincidentemente, alvos im-
110) e, de outro, lugar de administração, onde portantes da repressão policial.
se desenrolavam as funções de urbanização, sa-

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neamento, saúde pública, iluminação pública, Como instituição, a meta da GRP era repri-
etc. (COTTA, 2006, p. 41). De fato, além das mir e subjugar, mantendo um nível aceitável de
funções de polícia política, segurança pública e ordem e tranquilidade que possibilitasse o fun-
promoção do bem-estar geral, a Intendência de cionamento da cidade no interesse das classes do-
Polícia também trazia uma ideia mais ilustrada à minantes (HOLLOWAY, 1997, p. 47-55). De
renovação da sociedade colonial, “o instrumen- fato, citando trabalho de Leila Algranti, Hollo-
to do governo português que levaria à transfor- way evidencia que a quase totalidade dos casos

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mação da cidade do Rio de Janeiro em sede do julgados pelo intendente de polícia, no período
Império” (CARVALHO, 2008, p. 131). 1810-1821, referia-se, de alguma forma, à ques-
tão dos escravos (41,2% eram ofensas a ordem
O intendente ocupava o cargo de desem- pública, tais como capoeira, desordens, suspeito,
bargador, com status de ministro de Estado e, vadiagem, etc.; 18,8% correspondiam à fuga de
no que se refere à segurança pública, detinha escravos; 23% contra a propriedade e 12% con-
o poder de decidir sobre os comportamentos tra a pessoa), sendo que, do total, 80% eram es-
a serem considerados criminosos, estabelecer a cravos e 15% ex-escravos (HOLLOWAY, 1997,
punição que julgasse apropriada e então pren- p. 51-52 e 266-267).
der, levar a julgamento, condenar e supervi-
sionar a execução da sentença. Representava A Intendência Geral de Polícia e a sua GRP,
o monarca absoluto e, de forma coerente com entretanto, se restringiam à cidade do Rio de
a sobreposição de poderes típica da adminis- Janeiro e não representam, portanto, uma pre-
tração colonial, seu cargo englobava poderes tensão de âmbito mais amplo na construção de
legislativos, executivos e judiciários (HOLLO- um sistema policial mais substantivo, de possi-
WAY, 1997, p. 46). bilidade duvidosa para a época (VELLASCO,
2007, p. 242).
A Guarda Real de Polícia (GRP) era o prin-
cipal instrumento à disposição do intendente A Constituição de 1824, o Código Penal de
para o exercício do controle social nas ruas do 1830, a crise do Primeiro Império em 1831 e o
Rio de Janeiro. Criada em 1809, constituía, Código de Processo Penal de 1832 abriram o es-
no universo de uma sociedade escravocrata, a paço para a experimentação institucional e a mo-
força de manutenção da ordem social imperial, dernização das instituições de justiça criminal.
sendo formada por homens pagos, usualmente
egressos dos regimentos de linha do exército Uma das inovações mais importantes é a do
imperial, que trabalhavam em emprego de juiz de paz que introduzia mudanças significati-
tempo integral. Organizada desde o seu nas- vas na forma de funcionamento da justiça:
cedouro como instituição de natureza militar, (...) com atribuições administrativas, policiais
seus praças saíam das classes sociais inferiores e judiciais, o juiz de paz, eleito, acumulava

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amplos poderes até então distribuídos por di- locais e, no limite, incapaz de se impor dian-
ferentes autoridades, ou reservados aos juízes te até dos estratos mais baixos da população.
letrados (tais como o julgamento de pequenas Logo, o funcionamento da organização judici-
Artigos

demandas, feitura do corpo de delito, forma- ária dependia, de forma muito substantiva, da
ção de culpa, prisão, etc...). O exercício do existência de grupos locais hegemônicos e inte-
juiz de paz envolvia a justiça conciliatória e o ressados na manutenção e reprodução do equi-
julgamento de causas cujo valor e/ou a pena líbrio de forças e do controle social. Assim, se
não ultrapassasse certo limite, a imposição em grandes cidades ou comarcas importantes o
dos termos de bem viver, a manutenção da juiz de paz era normalmente recrutado entre as
ordem pública e o emprego da força pública, mais altas elites letradas locais, em termos ou
A evolução institucional da Polícia no século XIX: Inglaterra,
Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada
Eduardo Cerqueira Batitucci

o cumprimento das posturas municipais(...) vilas mais distantes, a função frequentemente


(VELLASCO, 2004, p. 100). permanecia vaga ou era ocupada com um alto
padrão de rotatividade, o que indicava o pres-
O juizado de paz surgia, assim, como uma al- tígio social relativo do cargo ou sua duvido-
ternativa institucional ao Judiciário tradicional, sa cotação como moeda política para as elites
moroso, decadente e distante, uma experimen- (VELLASCO, 2004, p. 126-130).
tação, cuja expectativa apontava para a extensão
dos mecanismos de implantação da justiça pelo Tal não era, entretanto, o caso para a Guar-
território brasileiro. De fato, os juízes de paz re- da Nacional – GN, fundada em 1831. Pensada
presentariam, em arraiais e distritos distantes, a como força nacional estabilizadora, “um instru-
primeira autoridade local formal, até então exis- mento paramilitar específico dos grandes pro-
tente (VELLASCO, 2004, p. 120). prietários, destinado a neutralizar, em qualquer
eventualidade, as tendências da tropa regular”
A nova organização judiciária das comarcas (SODRÉ, 1965, p. 120), deveria substituir as
determinava a extinção dos cargos que ainda milícias paramilitares e as ordenanças, herdadas
sobreviviam do período colonial (ouvidores, do regime colonial. Além dos deveres genéri-
juízes de fora e ordinários), surgindo, em seu cos de defender a Constituição, a pátria, etc., a
lugar, o juiz de direito (máximo de três por co- GN ajudaria o Exército na defesa das fronteiras
marca), nomeado pelo imperador entre bacha- do país e, como força policial interna, deveria
réis formados, o juiz municipal e o promotor “preservar ou restabelecer a ordem pública”,
público, nomeados pela Corte e presidentes de ficando formalmente subordinada ao ministro
Província, por indicação de lista tríplice da Câ- civil da Justiça, em nível federal, e “sob controle
mara Municipal, preferencialmente graduados de autoridades políticas e judiciárias locais, no-
em Direito (VELLASCO, 2004, p. 121). meadas pelo governo central e os Juízes de Paz”
(HOLLOWAY, 1997, p. 88).
Vellasco, entretanto, aponta para a extrema
precariedade desta estrutura, sempre envolvida Para Graham (1997:49-51), a Guarda Na-
em disputas internas, constantemente ques- cional reproduzia as divisões sociais na socie-
tionada em sua legitimidade pelos poderosos dade brasileira, com suas fileiras distinguindo

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seus componentes por meio de critérios de forças policiais e o uso dos postos da guarda
classe, pois os oficiais – eleitos, como ocorria para o clientelismo típico das elites brasilei-
antes de 1850, ou nomeados – vinham sempre ras do século XIX. Em 1873, no entanto, a

Artigos
das classes mais abastadas. O nascimento legí- Guarda Nacional perdeu suas funções policiais
timo fornecia apenas um dos vários quesitos (GRAHAM, 1997, p. 92), sendo que seus pos-
para a nomeação (que também implicava um tos e graduações transformaram-se unicamente
critério de renda mínima) e, de modo geral, os em prebendas honoríficas.
oficiais eram políticos, letrados, donos de terra
ou de escravos, sendo que possuir uma patente Uma segunda inovação é representada pelo
servia como declaração da posição social. Em Corpo de Guardas Municipais Permanentes – ins-

A evolução institucional da Polícia no século XIX: Inglaterra,


Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada
Eduardo Cerqueira Batitucci
contraste, os soldados eram artistas, operários, tituição que originou as Polícias Militares con-
posseiros ou “homens de cor”. As instruções temporâneas –, subordinado ao ministro civil da
governamentais excluíam especificamente de- Justiça na corte e aos presidentes de Província,
terminadas pessoas do corpo de oficiais e, além no interior. Organizava-se por patrulhas em ser-
disso, como existiam duas categorias (mem- viço de 24 horas, nos grandes centros urbanos e
bros ativos e reservistas), pessoas com algum quando a situação assim exigisse.
cabedal político ou econômico só serviriam
como oficiais. Vellasco afirma que as fontes criminais e ju-
diciais deste período apontam para uma clara
O serviço na Guarda Nacional não era re- divisão entre a polícia e a justiça: na primeira,
munerado e, em vez de duplicar ou simples- a grande parte dos casos se relaciona às ativi-
mente reforçar a estrutura da autoridade exis- dades de vigilância das ruas e manutenção da
tente, a GN visava estender a responsabilidade ordem e “tranquilidade pública”, evidencian-
pela defesa da propriedade e da ordem social do o predomínio do papel da vigilância sobre
aos membros da sociedade que tinham inte- os comportamentos indesejados, do controle
resse na manutenção do status quo. Na prática, social sobre escravos, pobres, desviantes, bêba-
entretanto, quem decidia sobre o alistamento dos e prostitutas. Já no caso da justiça, os cri-
eram as juntas locais, presididas pelos juízes de mes violentos aparecem com mais frequência
paz e das quais participavam as autoridades lo- e os homens livres em proporções superiores
cais, o que abria o caminho para que determi- aos escravos e subcidadãos, cabendo às cortes,
nado tipo de pessoas evitasse ou fosse dispen- portanto, a resolução dos conflitos mais graves
sado do serviço ativo e, “em áreas urbanas, o (VELLASCO, 2007, p. 240-241).
serviço recaía, especialmente, sobre pequenos
comerciantes e artesãos, que não tinham in- O primeiro regulamento dos permanentes
fluência para obter dispensa” (HOLLOWAY, (ou Força Policial, como passou a ser designa-
1997, p. 89). do em Minas Gerais a partir de 1835) deter-
minava que “poderiam alistar-se cidadãos bra-
São inúmeros os depoimentos sobre con- sileiros, de 18 a 40 anos, que tenham descen-
flitos entre a Guarda Nacional e as outras dência, sobriedade e robustez e que servirão

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enquanto quiserem”.3 Além disso, bastava um pelo menos um ano de experiência no exercício
atestado do juiz de paz ou autoridade equiva- da advocacia”. O número de juízes em cada
lente sobre a vida pregressa do candidato. comarca era determinado pela população da
Artigos

cidade (um máximo de três juízes para cidades


A partir de 1841, a força policial se vincu- muito populosas, como Rio de Janeiro, Recife,
lava ao chefe de polícia provincial, numa es- São Luiz e Salvador), com jurisdições sobre-
trutura hierarquizada que incluía os delegados postas, dos quais um seria nomeado o chefe
e subdelegados de polícia, a Guarda Nacional de polícia. Entre as funções deste novo órgão,
e as autoridades locais. Entretanto, na provín- incluíam-se fiscalização, supervisão e instrução
cia de Minas Gerais, a título de exemplo, as dos juízes de paz, que a ele se subordinariam.
A evolução institucional da Polícia no século XIX: Inglaterra,
Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada
Eduardo Cerqueira Batitucci

informações apontam para a eterna carência


de tropas, alta rotatividade e dificuldades de A partir de 1841, os delegados, subordina-
manutenção, sendo que o seu número sempre dos aos chefes de polícia provincial, assumiram
ficou em torno de 400 policiais para toda a a maioria das funções dos juízes de paz, poden-
província, até próximo do final do século XIX do acusar, reunir provas, ouvir testemunhas e
(VELLASCO, 2007, p. 246). apresentar ao juiz municipal um relatório es-
crito da investigação, no qual este baseava o
Cotta (2006, p. 73-83) narra uma miríade seu veredicto. Além disso, o delegado expedia
de corpos auxiliares que foram sendo criados mandatos de prisão e estabelecia fianças, assim
e extintos durante todo o século XIX para au- como julgava, ele mesmo, delitos menores, tais
xiliar a força policial em virtude dos seus pro- como a infração de posturas municipais. Ele
blemas de efetivo, o que evidencia as graves podia contar com instrumentos legais pode-
questões de profissionalização, instabilidade e rosos para o exercício de suas atividades, tais
rotatividade, para o período. como o direito de decretar prisão preventiva e
de exigir “termos de bem viver” que, se viola-
A terceira e última inovação do período da dos, poderiam resultar em prisão e condenação
regência, e que completa a definição do siste- praticamente certa (GRAHAM, 1997, p. 88).
ma de justiça criminal consolidado durante o
século XIX, é a Chefia de Polícia e os seus dele- Para auxílio e cumprimento de suas ativida-
gados e subdelegados de polícia, os equivalentes des, o delegado podia requisitar a força policial
funcionais das Polícias Civis contemporâneas. ou depender de pedestres a ele subordinados, que
se encontravam no limite inferior da hierarquia
O Código de Processo de 1832 determina- dos agentes de segurança, “homens cuja posição
va que os “juízes de direito”, isto é, os juízes social só suplantava a dos escravos” (VELLAS-
responsáveis pelo julgamento de causas mais CO, 2007, p. 249). Estes, empregados em ou-
graves, que se colocavam acima dos limites es- tros ofícios, tais como artesãos, carroceiros, etc.,
tabelecidos pela jurisdição do juiz de paz, de- se prestavam aos serviços de ronda eventual ou
veriam ser “nomeados entre homens, com idade sob demanda, mediante um pequeno pagamen-
mínima de 22 anos, formados em direito, com to mensal. Para Vellasco (2007, p. 252), isso

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revela uma característica praticamente comunal formação de culpa do acusado, mas os resul-
na estrutura da época, semelhante à estrutura tados desse inquérito eram entregues aos pro-
anterior e que vai vagarosamente definhando motores públicos ou juízes para sua avaliação

Artigos
com o passar do século XIX. e decisão final. Assim, nem o chefe de polícia
ou os seus delegados podiam tomar uma de-
O juiz de paz e a nova organização judici- cisão final sobre culpa ou inocência, embora
ária representaram o auge da influência liberal mantivessem considerável poder de facto nos
no desenvolvimento institucional do sistema de casos de crime, conforme a diligência ou mo-
justiça criminal no Império. Baseada no poder rosidade através das quais dirigiam as investi-
local, esta estrutura evidenciava um corte no gações (HOLLOWAY, 1997:228).

A evolução institucional da Polícia no século XIX: Inglaterra,


Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada
Eduardo Cerqueira Batitucci
processo inicial de centralização representado
pelas iniciativas de Dom João VI, e sobreviveu Para Vellasco, finalmente, os dados disponí-
por apenas dez anos, sendo mitigada nas refor- veis sobre as instituições do sistema de justiça
mas de 1841. Neste momento, o governo cen- criminal brasileiro neste período indicam que,
tral reformou a estrutura judiciária, redefinindo em virtude das inúmeras carências e deficiências,
poderes e atribuições, promovendo a centraliza- as atividades possíveis para estes atores estariam
ção do sistema de justiça e retirando poder das muito mais próximas das de manutenção da
instâncias locais. A maioria das atribuições do ordem e do controle de comportamentos des-
juiz de paz foi transferida para os delegados de viantes ou indesejáveis, do que daquelas da pre-
polícia, submetidos ao chefe de polícia da pro- venção e/ou combate às atividades criminosas,
víncia, recrutado entre os juízes de direito e su- que supõem algum perfil de profissionalização,
bordinado diretamente ao Ministério da Justiça inalcançável a estas organizações (VELLASCO,
(VELLASCO, 2004, p. 135-145). 2007, p. 258-259). De fato, a “polícia de mo-
leque”, como era conhecida, originou-se tanto
Com o avançar do século, ficava clara a ne- na fraqueza real e institucional quanto em sua
cessidade de profissionalização de todo o corpo missão difusa, voltada essencialmente para o
policial, em suas várias dimensões. O fracasso controle dos escravos e subcidadãos livres, úni-
da Guarda Urbana4 evidenciava a necessidade co lugar social onde poderia afirmar sua posição
de profundas mudanças no sistema, consolida- hierárquica superior (VELLASCO, 2007, p.
das na reforma judicial de 1871, que separava 260) e, mesmo neste caso, ainda sujeita à nego-
definitivamente a polícia da justiça. A partir ciação e aceitação, caso a caso, junto à miríade
daquele momento, o chefe de polícia estava im- confusa de autoridades.
pedido de julgar qualquer caso, encaminhando
o resultado de suas investigações (o Inquérito
Policial) aos juízes de direito e seus auxiliares, Conclusão
que passaram a se encarregar do julgamento de A análise empreendida evidencia algumas das
todas as causas criminais. Assim, características e limitações do desenvolvimento
Pela nova Lei, os chefes de polícia continu- institucional no aparato moderno da polícia na
avam encarregados de reunir provas para a Inglaterra, nos Estados Unidos e no Brasil.

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O final do século XIX e o início do XX trou- Muitos autores (BRETAS, 1991 e 1997;
xeram o amadurecimento da profissionalização KANT DE LIMA, 1995 e 2000; PAIXÃO,
do aparato policial, especialmente na Europa 1982, entre outros) apontam, no que se refere
Artigos

e nos Estados Unidos, através do surgimento às características do desenvolvimento institu-


do que se convencionou a chamar de “mode- cional da polícia no Brasil durante os séculos
lo profissional-burocrático” de policiamento XIX e XX, para a prevalência de continuidades
(WALKER, 1977), largamente baseado nas culturais e institucionais, como o predomínio
características do modelo inglês, mas consoli- da vigilância sobre a prevenção, informaliza-
dado nos Estados Unidos, especialmente pela ção das práticas, personalismo na decisão e na
reforma administrativa e burocratização, mili- gestão e uma alta discricionariedade associada
A evolução institucional da Polícia no século XIX: Inglaterra,
Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada
Eduardo Cerqueira Batitucci

tarização, incentivos à formação profissional e, à prática do policial de linha. Muitas destas


a partir do início do século XX, uso intensivo questões estão relacionadas à complexidade
de tecnologia (principalmente por meio do au- e características da evolução do Estado e da
tomóvel, do telefone e do rádio). democracia no Brasil, às nossas características
culturais, aos limites econômicos e aos dilemas
Enredada nas disputas políticas e corpora- associados à modernização periférica.
tivas, desfocada na perseguição e vigilância ao
perigo representado pelas “classes perigosas” Este artigo procurou evidenciar que exis-
e incapacitada pela crônica fraqueza e expe- tem continuidades entre características his-
rimentação institucional, a profissionalização tóricas do desenvolvimento institucional da
das forças policiais no Brasil foi tardia, formal- polícia no Brasil e alguns dos dilemas da pro-
mente se completando, do ponto de vista do fissionalização do nosso aparato policial, tendo
seu arcabouço institucional, apenas no decor- por referência a experiência de outras culturas
rer do século XX. e suas características.

1. Este artigo é uma versão resumida de um capítulo da tese de Doutorado, defendida na UFMG. O autor agradece as críticas dos professores Paula
Poncioni, Arthur Costa, Luís Flávio Sapori e Telma Menicucci, ao orientador, professor Otávio Dulci, e a leitura atenciosa do professor Marcus Vinícius Cruz.

2. Parlamentar britânico reconhecido como uma das pessoas que conceberam o desenho institucional da Polícia Metropolitana e autor da Lei que
aprovou a sua criação, o Metropolitan Police Act.

3. Citado por Vellasco (2007, p. 244) e Cotta (2006, p. 75).

4. Instituição de natureza civil, criada durante a Guerra do Paraguai, para aliviar a necessidade de policiamento na corte, em virtude da convocação
da maioria dos permanentes para a Guerra. Criada em 1866, foi extinta em 1885, diante das muitas críticas com relação à sua incompetência e
brutalidade (HOLLOWAY, 1997, p. 221).

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Eduardo Cerqueira Batitucci

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A evolução institucional da Polícia no século XIX:
Inglaterra, Estados Unidos e Brasil em
perspectiva comparada

Artigos
Eduardo Cerqueira Batitucci

Resumen Abstract
La evolución institucional de la Policía en el siglo XIX: Institutional development of the Police in nineteenth-

A evolução institucional da Polícia no século XIX: Inglaterra,


Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada
Eduardo Cerqueira Batitucci
Inglaterra, Estados Unidos y Brasil en una perspectiva century England, the United States and Brazil: a
comparada comparative perspective
El artículo presenta una reflexión sobre las características This paper presents a reflection on the features of police
del desarrollo institucional de la Policía durante el institutional development in nineteenth-century Brazil,
siglo XIX en Brasil, Inglaterra y Estados Unidos, de England and the United States in comparative perspective.
forma comparada, intentando poner de manifiesto It is an attempt to highlight the key features in the process
las principales características de la consolidación del of consolidation of the police apparatus in these three
aparato policial en estas tres realidades, así como las countries in the period described above. It also looks into
posibles continuidades entre características históricas del potential links between historical developments in the
desarrollo institucional de la policía en Brasil y algunos institutional evolution of the Brazilian police and some of
de los dilemas planteados para la profesionalización de the dilemmas around the professionalization of the police
nuestras policías. in this country.

Palabras clave: Policía. Historia de la Policía. Keywords: Police. Police History. Professionalization of
Profesionalización de la Policía. the Police.

Data de recebimento: 11/05/2010


Data de aprovação: 25/05/2010

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