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A evolução institucional da
Polícia no século XIX: Inglaterra,
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Eduardo Cerqueira Batitucci é pesquisador do Núcleo de Estudos em Segurança Pública da Fundação João Pinheiro e doutor
eduardo.batitucci@fjp.mg.gov.br
Resumo
O artigo apresenta uma reflexão sobre as características do desenvolvimento institucional da Polícia durante o século
XIX no Brasil, Inglaterra e Estados Unidos, de forma comparada, procurando evidenciar as principais características
da consolidação do aparato policial nestas três realidades, bem como as possíveis continuidades entre características
históricas do desenvolvimento institucional da polícia no Brasil e alguns dos dilemas colocados para a profissionalização
das nossas polícias.
Palavras-Chave
Polícia. História da Polícia. Profissionalização da Polícia.
pecificamente para a ideia de que a polícia foi a vida privada das pessoas, até então inédito.
concebida, pelo menos em parte, como uma (MILLER, 1999, p. 4; LOWE, 1990, p. 219).
força direcionada para a construção de uma
mediação política entre o povo e as elites. Nes- Logo, se, por um lado, é suposto que a
te sentido, a polícia deveria: visão das pessoas sobre a polícia reflete, em
(...) prevenir o crime, sem recorrer de forma algum grau, a ideia que elas têm do governo
repressiva à sanção legal e procurando evitar a que esta polícia representa, por outro, a polícia
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Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada
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intervenção militar em distúrbios domésticos pode ter um papel ativo na criação de sua pró-
(tais como em motins e revoltas populares); pria imagem pública, sendo que, neste sentido,
gerenciar a ordem pública de forma não vio- um desenho institucional adequado pode ser
lenta, com a aplicação de recursos violentos de grande ajuda. Dessa forma, Sir Robert Peel2
apenas como última possibilidade para conse- deliberadamente procurou moldar as caracte-
guir obediência e concordância; minimizar e rísticas organizacionais da polícia de Londres,
mesmo reduzir, se possível, a divisão ou sepa- em virtude da tradicional desconfiança britâni-
ração entre a polícia e o público, e demonstrar ca na autoridade oficial, no sentido de garan-
eficiência através da ausência de crime ou de- tir que seus policiais não fossem vistos como
sordem, e não através da ação policial voltada alguma forma de exército doméstico a servi-
para este fim (MANNING, 1997, p. 92-93). ço da proteção da coroa em detrimento ou ao
custo das liberdades individuais (SKOLNICK;
Estas características implicariam uma série FYFE, 1993, p. 117).
de novas demandas organizacionais, incompa-
tíveis com os antigos sistemas de policiamen- Assim, a Polícia Metropolitana de Londres
to casuais ou esporádicos até então funcionais introduziu vários elementos que fizeram parte,
na sociedade inglesa: os vigias noturnos (night daí para diante, da ideia moderna de policia-
watchers), os “detetives” das cortes e os “Juiza- mento (WALKER, 1992, p. 5): um sentido de
dos de Paz”, atores privados ou semiprivados, missão, relacionado à noção de prevenir o cri-
que agiam mediante contrato, pagamento, ou me antes que ele ocorra, em que a estratégia era
imposto específico. Assim, a “nova polícia” se- a patrulha preventiva; uma estrutura organiza-
ria, por exemplo, a primeira a desenvolver a cional definida, no caso em pauta, baseada na
ideia de prevenção do crime por meio de pa- estrutura das forças armadas, em especial o seu
trulha constante, em vez da simples apreensão sistema de comando e disciplina; e a presença
de ofensores após a ocorrência do fato (MIL- contínua da polícia na comunidade por meio
LER, 1999, p. 2). da patrulha preventiva em tempo integral.
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de Londres foi sua insistência na aplicação de processo político – pela conquista do direito
normas burocráticas estritas no funcionamento ao voto e a representação parlamentar, princi-
da organização e a nomeação de seus dois pri- pal fonte de resistência à organização policial
meiros comandantes, estabelecendo as princi- – como de políticas e estratégias organizacio-
pais características da Polícia de Londres, sua nais deliberadas, desenvolvidas no sentido de
organização e sistema de disciplina, os sistemas dotar a polícia de condições institucionais para
de patrulha, o uniforme e outros detalhes da a conquista de legitimidade social por meio,
• accountability: a despeito de não haver sentido profissional baseado nos critérios de ad-
controle formal por nenhum corpo eleito, missão e treinamento, na regularidade procedi-
entendia-se que a polícia era accountable à lei, mental e na adesão ao mandato da lei e o desen-
em virtude de que suas ações eram revistas volvimento de um espírito público por parte do
pelas cortes, mas, especialmente, à população, policial, através da sua identificação simbólica
através de um processo de identificação entre com a população e com a sua missão.
a polícia e as classes populares, incentivado
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maior de mudanças estruturais na sociedade características do pluralismo político, do loca-
inglesa, levando a uma relativa pacificação das lismo na alocação da responsabilidade política
relações sociais entre trabalhadores e proprie- e da diversidade étnica. Essas características
tários (REINER, 1992, p. 61). Ao mesmo demandaram dos departamentos de polícia
tempo, a Polícia Metropolitana de Londres é o americana, em contraste com a Polícia Metro-
resultado de um processo de mudanças e expe- politana de Londres, uma forte dependência
riências organizacionais contínuo e vigoroso, dos contextos políticos locais, o que refletiu
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os movimentos de profissionalização da polí- tureza. As administrações públicas urbanas nos
cia americana – a busca de meios eficazes de Estados Unidos, na última metade do século
supervisão dos policiais de linha –, no que se XIX, passaram a se orientar para a oferta de
refere tanto ao desenvolvimento organizacio- um crescente conjunto de serviços racionaliza-
nal das polícias americanas, quanto ao uso e dos (tais como a polícia, bombeiros, esgoto e
à adoção de tecnologias. Muito do desenvol- saúde pública), que antes eram disponibiliza-
vimento institucional da atividade policial se dos por entes privados diversos.
ressalvas, fruto das diferenças sociais e de cul- senvolvimento, entretanto, foi profundamente
tura política e judicial. marcado, de um lado, pelas características do
Estado patrimonialista português e, de outro,
pela resistência e rebeldia de vários setores da
O desenvolvimento institucional da população, especialmente entre aqueles que
polícia no Brasil detinham poder econômico ou militar.
Do ponto de vista histórico, uma das ques-
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neamento, saúde pública, iluminação pública, Como instituição, a meta da GRP era repri-
etc. (COTTA, 2006, p. 41). De fato, além das mir e subjugar, mantendo um nível aceitável de
funções de polícia política, segurança pública e ordem e tranquilidade que possibilitasse o fun-
promoção do bem-estar geral, a Intendência de cionamento da cidade no interesse das classes do-
Polícia também trazia uma ideia mais ilustrada à minantes (HOLLOWAY, 1997, p. 47-55). De
renovação da sociedade colonial, “o instrumen- fato, citando trabalho de Leila Algranti, Hollo-
to do governo português que levaria à transfor- way evidencia que a quase totalidade dos casos
demandas, feitura do corpo de delito, forma- ária dependia, de forma muito substantiva, da
ção de culpa, prisão, etc...). O exercício do existência de grupos locais hegemônicos e inte-
juiz de paz envolvia a justiça conciliatória e o ressados na manutenção e reprodução do equi-
julgamento de causas cujo valor e/ou a pena líbrio de forças e do controle social. Assim, se
não ultrapassasse certo limite, a imposição em grandes cidades ou comarcas importantes o
dos termos de bem viver, a manutenção da juiz de paz era normalmente recrutado entre as
ordem pública e o emprego da força pública, mais altas elites letradas locais, em termos ou
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das classes mais abastadas. O nascimento legí- Guarda Nacional perdeu suas funções policiais
timo fornecia apenas um dos vários quesitos (GRAHAM, 1997, p. 92), sendo que seus pos-
para a nomeação (que também implicava um tos e graduações transformaram-se unicamente
critério de renda mínima) e, de modo geral, os em prebendas honoríficas.
oficiais eram políticos, letrados, donos de terra
ou de escravos, sendo que possuir uma patente Uma segunda inovação é representada pelo
servia como declaração da posição social. Em Corpo de Guardas Municipais Permanentes – ins-
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com o passar do século XIX. e decisão final. Assim, nem o chefe de polícia
ou os seus delegados podiam tomar uma de-
O juiz de paz e a nova organização judici- cisão final sobre culpa ou inocência, embora
ária representaram o auge da influência liberal mantivessem considerável poder de facto nos
no desenvolvimento institucional do sistema de casos de crime, conforme a diligência ou mo-
justiça criminal no Império. Baseada no poder rosidade através das quais dirigiam as investi-
local, esta estrutura evidenciava um corte no gações (HOLLOWAY, 1997:228).
1. Este artigo é uma versão resumida de um capítulo da tese de Doutorado, defendida na UFMG. O autor agradece as críticas dos professores Paula
Poncioni, Arthur Costa, Luís Flávio Sapori e Telma Menicucci, ao orientador, professor Otávio Dulci, e a leitura atenciosa do professor Marcus Vinícius Cruz.
2. Parlamentar britânico reconhecido como uma das pessoas que conceberam o desenho institucional da Polícia Metropolitana e autor da Lei que
aprovou a sua criação, o Metropolitan Police Act.
4. Instituição de natureza civil, criada durante a Guerra do Paraguai, para aliviar a necessidade de policiamento na corte, em virtude da convocação
da maioria dos permanentes para a Guerra. Criada em 1866, foi extinta em 1885, diante das muitas críticas com relação à sua incompetência e
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Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada
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Resumen Abstract
La evolución institucional de la Policía en el siglo XIX: Institutional development of the Police in nineteenth-
Palabras clave: Policía. Historia de la Policía. Keywords: Police. Police History. Professionalization of
Profesionalización de la Policía. the Police.