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histórico-filosófica.
Introdução
Não é possível precisar o momento exato em que foram escritos os poemas Hesiódicos,
o que a historiografia nos apresenta é que fora em meados do século VIII e VII, século em que
a Grécia passou por um intenso processo de ‘organização’ sócio-política, sobretudo no que diz
respeito a organização das polis e as cidades estados. Aqui, com maior ênfase, a continuada
prática da política, o discurso e a palavra dita possuem valores praticamente inconcebíveis para
nós, homens presos a veracidade da escrita, nesse período não há uma ampla divulgação da
palavra escrita, ainda que achados arqueológicos nos apresentem vasos que datam o período
micênico do linear B, cujo alguns glifos idiomáticos foram detectados, em todo caso, não trata-
se de uma período cujo a cultura letrada era de fato decisiva (MOSSÉ, 1989, 21). Nesse
contexto, muito do que se aprendia, no que tange as tradições, a religião e a justaposição dos
lugres sociais, devia-se a constante ação dos oradores; esses detentores do poder da palavra e
do desvelo – aletheia – o disseminavam em variados espaços – e aqui, possivelmente estamos
nos referindo a espaços das elites – as tradições, o passado mítico, a história. Sim, a história,
hoje comumente compreendida ora como ciência, ora como literatura, certamente teve seus
momentos iniciais em expressões geridas pelos antigos oradores, esses responsáveis, entre
outras coisas, pela educação histórico-cultural da sociedade. Era capaz de fazer surgir das
experiências do presente os múltiplos significados de suas causas e, acima de tudo, situá-las no
contexto que lhes era dado.
Nesse contexto temos Hesíodo. Nascido em Ascra, passou parte de sua vida na Beócia,
onde exercia o oficio de pastor de ovelhas. Especula-se que Hesíodo tenha tido uma vida não
exatamente ligada a bens materiais, mas se levarmos em consideração a ausência do letramento
no período em que escreveu suas poesias, certamente o encararemos como um indivíduo com
algum nível de instrução; além disso, é o caráter auto-biográfico que chama a atenção na poesia
de Hesíodo. Ao contrário do que ocorre com as recitas Homéricas, que são atribuídas a ele ainda
que não haja comprovações exatas de sua existência, Hesíodo ‘assina’ seus poemas o que nos
fornece uma gama de possibilidades interpretativas no que diz respeito aos seus reais objetivos.
Ainda sobre esse carácter autobiográfico, os versos 29, 32 da Teogonia trazem claramente estes
aspectos e são a partir deles que realizaremos uma reflexão histórico-filosófica em prol de
estabelecer possíveis hipóteses acerca das subjetividades existentes nesse trecho, subjetividades
essas que evocam a relação entre Hesíodo e as Musas. Os versos demarcam uma experiência
de aproximação entre ambos, acompanhado de uma espécie de iniciação em que Hesíodo recebe
das próprias deusas o dom do belo canto.
Em seu livro, Mito e Realidade, Mircea Eliade (2011) nos apresenta uma perspectiva
inovadora acerca do Mito; para ele não se trataria de uma mentira ou um de um conjunto de
narrativas fictícias, contrapondo uma historiografia positiva e as perspectivas antropológicas
com tendências estoicas, do século XIX. O autor defende que o mito teria um papel substancial
e relevante na história da humanidade, seja no que diz respeito estruturação, a relação de
alteridade e, por fim, as reflexões e entendimentos acerca de si e do mundo; o mito é
compreendido pelo autor como uma ferramenta com a qual se pode atribuir significados usuais
as coisas e não mais como uma produção narrativa baseada em ações do instinto e de uma
suposta bestialidade. Ele é, mais uma vez, percebido como uma “história verdadeira” e,
ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo” (ELIADE,
2011,7). O que Eliade traz, trata-se, portanto, de um exercício reflexivo que coloca em questão
a dita supremacia da racionalização diante das outras formas, mais subjetivas, de operar e
perceber o mundo; colocando a narrativa mítica enquanto algo válido e também funcional, tanto
no âmbito sociorganizacionais quanto no individual.
[...] o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido
no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o
mito narra como, graças as façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade
passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento:
uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição.
É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo
foi produzido e começou a ser (ELIADE, 2011, 11).
Enquanto narrativa, o mito assume um caráter informativo, é dele o ‘fardo’ de
trazer para as gerações vindouras a história e a forma de ação dos deuses e das experiências
sagradas dos ancestrais; as origens do mundo, das coisas e daquilo que as compõe, seria,
também, uma expressão religiosa e histórica (VERNANT, 2012, 15). Religiosa por reverberar
uma memória social e, a partir dessa memória, provocar uma espécie de (re)ligação (religare)
com os elementos primordiais por ela apresentados e história por remontar, a partir destes
elementos, toda uma tradição sóciocultural e organizacional. Por outro lado, o religar parece
possível a partir das particularidades desta narrativa, daquilo que ela é capaz de dizer sem que
precise ser objetiva; em seu plano de fundo, seu arcabouço experiencial. Logo, uma
interpretação do mito quanto experiência, o faria preceder logos, ele seria, necessariamente,
uma comunhão com o sagrado que ainda que possível através da relação com a narrativa – o
contato com uma apresentação de um Aedo seja um espaço público ou privado – procederia a
mesma, uma vez que é resultado da ação do Homem frente as limitações impostas pela
linguagem. Em resumo, o mito enquanto experiência também seria mito, porém indizível em
sua totalidade e qualquer tentativa de expô-lo se converteria em uma analogia, uma
representação, uma narrativa, o que comumente concebemos como mito(logia).
O filosofo Eudoro de Souza, em seu livro, Mitologia, é quem afirma essa divergência
entre o Mito narrativo (mitologia) e a experiência mítica (Mito experiência). Para o autor, o
mythos não apenas precederia o logos, mas sempre o precede; o que faz do mito um elemento,
provocador de um impulso à ação, que pode configurar-se, ou não, numa narrativa mítica, uma
vez que a finalidade última do mythos, se é que podemos falar de uma, não seria
necessariamente uma produção linguística. Porém tal disparidade, ainda que pontual, não
coloca a experiência mítica como algo contrário ou separado do mito enquanto narrativa – o
que seria algo desnecessário uma vez que a narrativa, imbuída da experiência mítica, a narrativa
é resultante de um sagrado previamente manifesto – uma vez que ela salvaguarda formas, ainda
que nos limites da linguagem, de acesso à experiência mítica e sendo também ao próprio mito.
Conclusão
Pontuadas estas questões, compreendamos que o mito enquanto objeto da História perpassa
tanto aquilo que o texto objetificamente nos fornece – a narrativa mitológica – quanto aquilo
que suas entrelinhas nos fornecem – o conjunto de experiência social desenvolvida a partir dele
– o mito torna-se, desta forma, um elemento plural que abarca tanto as estruturais dos
significados previamente atribuídos a eles, como se renova constantemente em sua pratica, o
dito rito ou ritual, resinificando-se na busca de retomar a origem; “é protológico, por isso seu
olhar volta-se para o passado ou para o presente como retorno do passado, segundo a visão
cíclica de tempo” (GALIMBERTI, 2003, 83), portanto, de uma orientação histórica do homem
enquanto ente. Sendo assim, podemos concluir que o “elemento propriamente mítico”
apresentado por Snell não se distância, ou é posto em segundo plano na Teoginia de Hesíodo,
o que ocorre está aparentemente muito ligado a um relato de uma experiência mítica, uma vez
que, ainda que a partir de uma revelação do divino, traz consigo reorientação temporal do
homem grego antigo, pois ainda que este não tenha, a partir dos escritos de Hesíodo, uma
clareza sobre como os deuses afetam o seu cotidiano diretamente, ele pode reconhecer o seu
lugar de homem enquanto mortal a partir de um contraponto correspondente que é o próprio
deus. Trata-se então de algo Numinoso, algo cujo poder é tão múltiplo e amplo que consegue
causa àqueles com quem se relaciona uma absoluta sensação de pequenez, o que Rudolf Otto
(2005) traduz como o sentimento de criatura. Um estado que se desenvolve diante do terror do
inexplicável, da magnitude e do inalcançável; relegando àquele por ele arrebatado a experiência
máxima de alteridade e de alto reconhecimento enquanto aquilo que é diante da plenitude e
infinitude de um outro <<sagrado>>. É o que lhe faz ínfimo e individual, é “o sentimento de
criatura que se abisma no seu próprio nada e desaparece perante ao que está acima de toda a
criatura” (OTTO, 2005, 19). Logo, a sensação de distanciamento entre deuses e homens,
percebido por Snell como um afastamento do mítico, pode ser compreendido justamente como
o contrário; como o outro lado da medida que os aproxima. Em outras palavras, os deuses para
Hesíodo não são exatamente ausentes, mas independentes das vontades humanas, eles fazem,
exatamente, o que pretendem da forma que pretendem, mas tais vontades não passam
despercebidas pela humanidade, que além de compreender-se enquanto tal em uma relação de
alteridade com os deuses, sofrem as ações ‘positivas’ e ‘negativas’ desse divino. O que
aparentemente a mensagem que Hesíodo deixa nas entrelinhas desse distanciamento, parece a
mesma encontradas as portas de Delfos.
Referências:
DETIENNE, Marcel. Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições 70, 1984.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2012.