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Título: O Aprendiz das Musas: a relação entre Hesíodo a as Musas a partir de uma interpretação

histórico-filosófica.

Autor: Andrey Sá Barreto Souza.

Resumo: Enquanto categoria narrativa o mito é um elemento que resguarda possibilidades de


leitura e interpretação acerca das relações culturais estabelecidas pelo homem antigo, com
ênfase suas experiências mágico-religiosas, relações de poder, relações de gênero e cultura
marcial. Nesse sentido, a leitura mais usual que se faz das narrativas míticas perpassa as noções
de representação apresentadas pelo historiador francês Roger Chartier; que visam uma
aproximação entre as perspectivas apresentadas nas narrativas míticas com as demandas
socioculturais das sociedades a que se referem e/ou são originais. No entanto, tendo em vista o
reconhecimento da pluralidade teórica que dispomos na atualidade, o objetivo desse trabalho é
realizar uma reflexão que vise aproximar duas perspectivas aparentemente distintas: a que traz
o mito enquanto uma história real e significante, apresentada pelo historiador Mircea Eliade, e
a que apresenta o mito enquanto uma experiência significada do “eu”, apresentada pelo filosofo
Eudoro de Souza. Tendo em vista, a análise da relação entre o poeta Hesíodo e as Musas
(TEOGONIA, vv. 23,24). Atendando, nesse sentido, para a construção de uma reflexão
histórico-filosófica que busque compreender as possíveis expressões de subjetividade nesse
trecho do poema de Hesíodo e, por conseguinte, sua relação com o elemento divino – Musa –
que circunda toda a obra.

Palavras chave: Teogonia, Musa, Relação com o divino.

Introdução

Não é possível precisar o momento exato em que foram escritos os poemas Hesiódicos,
o que a historiografia nos apresenta é que fora em meados do século VIII e VII, século em que
a Grécia passou por um intenso processo de ‘organização’ sócio-política, sobretudo no que diz
respeito a organização das polis e as cidades estados. Aqui, com maior ênfase, a continuada
prática da política, o discurso e a palavra dita possuem valores praticamente inconcebíveis para
nós, homens presos a veracidade da escrita, nesse período não há uma ampla divulgação da
palavra escrita, ainda que achados arqueológicos nos apresentem vasos que datam o período
micênico do linear B, cujo alguns glifos idiomáticos foram detectados, em todo caso, não trata-
se de uma período cujo a cultura letrada era de fato decisiva (MOSSÉ, 1989, 21). Nesse
contexto, muito do que se aprendia, no que tange as tradições, a religião e a justaposição dos
lugres sociais, devia-se a constante ação dos oradores; esses detentores do poder da palavra e
do desvelo – aletheia – o disseminavam em variados espaços – e aqui, possivelmente estamos
nos referindo a espaços das elites – as tradições, o passado mítico, a história. Sim, a história,
hoje comumente compreendida ora como ciência, ora como literatura, certamente teve seus
momentos iniciais em expressões geridas pelos antigos oradores, esses responsáveis, entre
outras coisas, pela educação histórico-cultural da sociedade. Era capaz de fazer surgir das
experiências do presente os múltiplos significados de suas causas e, acima de tudo, situá-las no
contexto que lhes era dado.

Mas, enquanto a cidade permaneceu viva, a atividade poética continuou a


exercer esse papel de espelho que devolvia ao grupo humano sua própria
imagem, permitindo-lhe apreender-se em sua dependência em relação ao
sagrado, definir-se ante os Imortais, compreender-se sua duração, sua
permanência através do fluxo das gerações sucessivas (VERNANT, 2001, 16)
Assim eram os antigos bardos, os griôs e os poetas gregos, indivíduos que – a partir da
leitura do que restou de suas obras – possuíam uma capacidade empática extraordinária capaz
de fazer falar praticamente todas as coisas, desde os deuses até os homens mais comuns;
oradores das possibilidades humanas. Especificamente no caso dos poetas gregos, há se se
convir que as elites aristocráticas lhes fizeram grande proveito, os mesmos eram ‘convidados’
a cantar em muitos espaços, desde a ágora até os grandes espetáculos públicos da polis; muitas
vezes com objetivo de legitimar o lugar social desta elite, demarcar sua importância social e,
sobretudo, sua antecedência historicamente ligada aos deuses a partir dos antigos heróis. A
palavra proferida pela boca dos poetas, possuíam um valor empírico, pois ele cantava não só
aquilo que fora, mas o que também continuava a ser mediante a lógica estrutural (centralista)
da sociedade grega arcaica. Marcel Detienne em sua obra Mestres da verdade na Grécia arcaica,
ressalta a importância do discurso para o poeta Grego, abrindo vaga referente ao seu lugar
social. Detienne identifica que a palavra que emana do poeta é Karainen (DETIENNE, 2013),
o discurso profético da finalidade, o que aproxima bastante o poeta da condição de vidente,
sobretudo no que diz respeito a aproximação de ambos aos elementos divinos, os poetas,
sobretudo Hesído, parecem possuir um conhecimento sagrado, uma forma de acessá-lo e, por
fim, transpô-lo ao contexto social. Trata-se de um ‘inspirado’, um alguém capaz de
compreender o que as nuances ocultas da natureza, Bios, essa que constantemente oculta-se.
A memória sacralizada é, em primeiro lugar, privilégio de alguns grupos
organizados em confrarias: como tal, ela se diferencia radicalmente do poder
de rememorar-se, dos outros indivíduos. Nesses meios de poetas inspirados, a
Memória é uma onisciência de caráter divinatório; tal como o saber mântico,
define-se pela fórmula: “ o que é, o que será, o que foi” (DETIENNE, 2013,15)
Hesíodo e as Musas

Nesse contexto temos Hesíodo. Nascido em Ascra, passou parte de sua vida na Beócia,
onde exercia o oficio de pastor de ovelhas. Especula-se que Hesíodo tenha tido uma vida não
exatamente ligada a bens materiais, mas se levarmos em consideração a ausência do letramento
no período em que escreveu suas poesias, certamente o encararemos como um indivíduo com
algum nível de instrução; além disso, é o caráter auto-biográfico que chama a atenção na poesia
de Hesíodo. Ao contrário do que ocorre com as recitas Homéricas, que são atribuídas a ele ainda
que não haja comprovações exatas de sua existência, Hesíodo ‘assina’ seus poemas o que nos
fornece uma gama de possibilidades interpretativas no que diz respeito aos seus reais objetivos.
Ainda sobre esse carácter autobiográfico, os versos 29, 32 da Teogonia trazem claramente estes
aspectos e são a partir deles que realizaremos uma reflexão histórico-filosófica em prol de
estabelecer possíveis hipóteses acerca das subjetividades existentes nesse trecho, subjetividades
essas que evocam a relação entre Hesíodo e as Musas. Os versos demarcam uma experiência
de aproximação entre ambos, acompanhado de uma espécie de iniciação em que Hesíodo recebe
das próprias deusas o dom do belo canto.

Assim falaram as filhas palavra ajustada do grande Zeus ,


E me deram cetro, galho vicejante de louro,
após o colher, admirável; sopraram-me voz
inspirada para eu glorificar o que será e foi, (TEOGONIA. vv.29,32).
Para melhor entender as nuances desta ‘relação’, situemos as musas segunda a
concepção de Hesíodo. Para o poeta, elas são filhas de Zeus e Minemosine a (memória) o que
nos possibilita compreender, a grosso modo, que os domínios da Memória (a tradição, o
conhecimento, a História e a verdade) está intimamente vinculada a uma ‘aristocrácia’ olímpica,
a um poder legislador e organizador do universo. As musas como filhas direta dessa expressão
de poder, resguardam em si boa parte dele, sendo capazes de inspirar homens e deuses através
de suas capacidades artísticas; as musas, nesse sentido, são a definição exata da inspiração, uma
inspiração de natureza ‘desveladora’ que atropela quem quer que elas queiram e a quem quer
que seja, trazendo a este a capacidade de ver – ver aqui também possui o sentido de relacionar-
se com as coisas – o que anteriormente não eram capazes. Se observarmos bem de perto,
perceberemos que essa genealogia das Musas, se transportada para situação em que os versos
anteriormente citados trazem, torna-se possível estabelecer relações minimamente analógicas
pois, “a poesia, derivando da suma divindade, goza de uma particular dignidade e importância,
e que sua função principal é a de conservar objeto de representação na memória dos homens”
(SNELL, 2012, 42). Em outras palavras, a atividade do poeta seria então sagrada e resguardaria
ao mesmo uma vinculação direta às Musas. Um outro ponto importante é a justaposição do
lugar social do poeta igualmente salientado por Hesíodo nos versos 91,96 da Teogonia; aqui o
autor deixa claro que aquele que é tocado pelas deusas é destacado entre os seus, revela uma
certa magnitude – uma espécie de inspiração que emana de si – desperta, desta forma, pelas
próprias deuses.

Ao se mover na praça, como um deus o propiciam


Com respeito amável, e destaca-se na multidão.
Tal é a sacra dádiva das Musas aos homens.
Pois as Musas, vê, e de Apolo acerta-alvo
Vêm os varões cantores sobre a terra e os citaredos.
e de Zeus, os reis (TEOGONIA. vv. 91,96).
Além disso, a Tegonia, visivelmente, trata-se de um texto que organiza de maneira
cronológica a origem do mundo partindo até mesmo de seres que o precedem, sendo assim,
Hesíodo não só deteria o conhecimento histórico da tradição humana, mas acesso a um tempo
mítico, a uma ‘memória do mundo’. Desta forma, além de compor o quadro dos poetas
inspirados pelo divino, Hesíodo revela uma forma de pensar organizadamente a origem do
universo, dispondo tanto os elementos físicos quanto metafísicos de maneira hierárquica, talvez
esse seja o primeiro momento em que tem-se claramente deliberações de importância entre os
deuses, deliberações estas em que as Musas, deusas que inspiram Hesíodo, são denominadas
por eles de Olímpicas, que em outras palavras significa próximas a Zeus; no mais alto patamar
hierárquico. Sendo assim, é perceptível que, segundo Hesíodo, ele próprio, quando tocado pelas
musas, teria alcançado um local diferente no cosmos pois viria de um deus, o próprio Apolo,
do mesmo que os reis viriam de Zeus. Essa aproximação entre reais e poetas e de ambos com
os deuses é o que legitimaria seus lugares sociais (DETIENNE. VV, 91,96); sobretudo no que
diz respeito aos poetas, a Teogonia está repleta de passagens a proximidade do poeta com o
divino, entre os versos 99-100, Hesíodo define o poeta como Mousáon Therápon (assistente
das musas), ao passo que nos versos 93-97 diz haver boa aventurança para aqueles que são
Mousai Phílontai (que as musas têm amor).

Situadas as Musas, tratemos da experiência de Hesíodo. Snell nos force o ponto de


partida para tais considerações, segundo o autor existem diferenças substancias entre o modo
de conceber o divino de Hesíodo e Homéro; aparentemente o autor defende que os deuses em
Homero possuem uma ‘influência’ mais ampla e mais interligada a sua esfera de origem – talvez
pela demarcação Homérica sobre a área de influência dos deuses e sua participação constante
no desenrolar da Guerra de Tróia – interferindo mais diretamente no curso das coisas; já em
Hesíodo, uma vez que o mesmo compreende os deuses de uma maneira mais ‘sistêmica’ esta
influência estaria intimamente vinculada a uma experiência epífanica do poeta. Ou seja, em
Hesíodo o acesso aos deuses torna-se mais claro a partir do revelar-se deles aos homens mortais.

É só quando Hesíodo descreve sua sagração de poeta e o encontro com as


Musas, que a aparição das divindades se torna algo de verdadeiramente vivo
também para nós. Já em Homero, onde os deuses intervêm com frequência no
curso da narração, nós os vemos, por assim dizer, em sua atividade natural, e
seu agir justifica o que acontece (SNELL, 2012, 46).
De fato, no decorrer de toda a Teogonia, o afastamento entre os deuses e mortais são
evidenciados sobretudo a partir dos castigos estabelecidos por Zeus à humanidade; os deuses
parecem distantes e parecem querer manter em foco essa distância, realizando obras para si
mesmos e estabelecendo contato com os homens quando assim lhes é conveniente fazer. Os
deuses em Hesíodo são demarcados de maneira separadas do cotidiano humano, parecem ser,
muitas vezes, figuras distantes cuja beleza e imortalidade devem ser suficiente para inspirar e
modificar em certos aspectos a vida humana. Logicamente, há ressalvas, se pensarmos por
exemplo que Zeus, segundo Hesíodo, é o grande organizador do universo, chegaremos a rápida
conclusão de que esse simples fato faz desse deus um elemento decisivo sobre o mundo e a
forma em que ele é conhecido para o antigo homem grego; trata-se de uma influência direta
nesse sentido, ainda que essencialmente distante. Contudo, há um outro ponto problemático,
Snell defende que ao contrário do é colocado nas narrativas Homéricas, Hesíodo também daria
menos importância ao elemento mítico uma vez que afasta da vida cotidiana dos homens a
presença dos deuses.

Em Hesíodo passa para segundo plano também o elemento propriamente


mítico, isto é, as histórias de deuses em que eles aparecem como personagens
no ato de praticarem ações particulares. Ao procurar, ao contrário, oferecer
um panorama geral de todo o divino que existe no mundo, Hesíodo abstrai, de
certo modo, os deuses das situações concretas e particulares em que o homem
lhe percebe a presença e trata-os em pé de igualdade com as plantas e os
animais, como se pertencessem à natureza objetivamente dada: e assim os
pode reduzir a uma grande árvore genealógica, a uma espécie de sistema de
Lineu (SNELL, 2012, 46).
Esta forma diferente de tratar o elemento mítico apresentada por Senell evoca
um problema de cunho conceitual acerca do dito “elemento propriamente mítico”, e, é a partir
de uma reflexão acerca do mesmo que poderemos situar que é possível conceber uma
experiência intimamente mítica na Teogonia e que, as diferentes formas de interferência dos
deuses no cotidiano humano não parecem limitar ou “lançar para segundo plano” o mítico.
Porém, antes de mais, faz-se necessária uma reflexão prévia sobre duas principais correntes de
definições do que que é o Mito: as perspectivas do mito enquanto uma categoria narrativa
produtora de significados e a que defende o mito enquanto experiência pré-logos. Assim, tornar-
se-á possível a compreensão do lugar da experiência de sagração poética de Hesíodo no
contexto do mito.

Em seu livro, Mito e Realidade, Mircea Eliade (2011) nos apresenta uma perspectiva
inovadora acerca do Mito; para ele não se trataria de uma mentira ou um de um conjunto de
narrativas fictícias, contrapondo uma historiografia positiva e as perspectivas antropológicas
com tendências estoicas, do século XIX. O autor defende que o mito teria um papel substancial
e relevante na história da humanidade, seja no que diz respeito estruturação, a relação de
alteridade e, por fim, as reflexões e entendimentos acerca de si e do mundo; o mito é
compreendido pelo autor como uma ferramenta com a qual se pode atribuir significados usuais
as coisas e não mais como uma produção narrativa baseada em ações do instinto e de uma
suposta bestialidade. Ele é, mais uma vez, percebido como uma “história verdadeira” e,
ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo” (ELIADE,
2011,7). O que Eliade traz, trata-se, portanto, de um exercício reflexivo que coloca em questão
a dita supremacia da racionalização diante das outras formas, mais subjetivas, de operar e
perceber o mundo; colocando a narrativa mítica enquanto algo válido e também funcional, tanto
no âmbito sociorganizacionais quanto no individual.

[...] o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido
no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o
mito narra como, graças as façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade
passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento:
uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição.
É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo
foi produzido e começou a ser (ELIADE, 2011, 11).
Enquanto narrativa, o mito assume um caráter informativo, é dele o ‘fardo’ de
trazer para as gerações vindouras a história e a forma de ação dos deuses e das experiências
sagradas dos ancestrais; as origens do mundo, das coisas e daquilo que as compõe, seria,
também, uma expressão religiosa e histórica (VERNANT, 2012, 15). Religiosa por reverberar
uma memória social e, a partir dessa memória, provocar uma espécie de (re)ligação (religare)
com os elementos primordiais por ela apresentados e história por remontar, a partir destes
elementos, toda uma tradição sóciocultural e organizacional. Por outro lado, o religar parece
possível a partir das particularidades desta narrativa, daquilo que ela é capaz de dizer sem que
precise ser objetiva; em seu plano de fundo, seu arcabouço experiencial. Logo, uma
interpretação do mito quanto experiência, o faria preceder logos, ele seria, necessariamente,
uma comunhão com o sagrado que ainda que possível através da relação com a narrativa – o
contato com uma apresentação de um Aedo seja um espaço público ou privado – procederia a
mesma, uma vez que é resultado da ação do Homem frente as limitações impostas pela
linguagem. Em resumo, o mito enquanto experiência também seria mito, porém indizível em
sua totalidade e qualquer tentativa de expô-lo se converteria em uma analogia, uma
representação, uma narrativa, o que comumente concebemos como mito(logia).

O filosofo Eudoro de Souza, em seu livro, Mitologia, é quem afirma essa divergência
entre o Mito narrativo (mitologia) e a experiência mítica (Mito experiência). Para o autor, o
mythos não apenas precederia o logos, mas sempre o precede; o que faz do mito um elemento,
provocador de um impulso à ação, que pode configurar-se, ou não, numa narrativa mítica, uma
vez que a finalidade última do mythos, se é que podemos falar de uma, não seria
necessariamente uma produção linguística. Porém tal disparidade, ainda que pontual, não
coloca a experiência mítica como algo contrário ou separado do mito enquanto narrativa – o
que seria algo desnecessário uma vez que a narrativa, imbuída da experiência mítica, a narrativa
é resultante de um sagrado previamente manifesto – uma vez que ela salvaguarda formas, ainda
que nos limites da linguagem, de acesso à experiência mítica e sendo também ao próprio mito.

Hoje, não há seguramente, quem ouse acreditar em semelhante absurdo: pela


história, bem se sabe que o mythos precedeu o logos. O que não se sabe nem
se quer saber, é que o próprio Projecto da história nos oculta o que parece mais
evidente, e o que mais evidente parece é que mito não só uma vez precedeu o
logos, mas que sempre precede, que o precede em cada momento, em todos
os momentos. Mas agora, o que entrou em pauta foi o mito tautegórico, o mito
que vem carregado de significação, do mesmo modo e pelo mesmo modo em
que se expressa. A pergunta fatal: <<Que significa...?>>, a resposta é: <<o
mito da significação ao que por si a não tinha>>. Pois se a não tinha,
certamente não poderia dar significado ao que quer que fosse e, muito menos,
à fonte de todas as significações. Este mito ainda <<significa>>, mas só no
sentido em que <<significar>>significa dar significação, de dentro de si, e
não, o recebê-la de fora (SOUSA, 1984, 42, v.22).

Conclusão

Pontuadas estas questões, compreendamos que o mito enquanto objeto da História perpassa
tanto aquilo que o texto objetificamente nos fornece – a narrativa mitológica – quanto aquilo
que suas entrelinhas nos fornecem – o conjunto de experiência social desenvolvida a partir dele
– o mito torna-se, desta forma, um elemento plural que abarca tanto as estruturais dos
significados previamente atribuídos a eles, como se renova constantemente em sua pratica, o
dito rito ou ritual, resinificando-se na busca de retomar a origem; “é protológico, por isso seu
olhar volta-se para o passado ou para o presente como retorno do passado, segundo a visão
cíclica de tempo” (GALIMBERTI, 2003, 83), portanto, de uma orientação histórica do homem
enquanto ente. Sendo assim, podemos concluir que o “elemento propriamente mítico”
apresentado por Snell não se distância, ou é posto em segundo plano na Teoginia de Hesíodo,
o que ocorre está aparentemente muito ligado a um relato de uma experiência mítica, uma vez
que, ainda que a partir de uma revelação do divino, traz consigo reorientação temporal do
homem grego antigo, pois ainda que este não tenha, a partir dos escritos de Hesíodo, uma
clareza sobre como os deuses afetam o seu cotidiano diretamente, ele pode reconhecer o seu
lugar de homem enquanto mortal a partir de um contraponto correspondente que é o próprio
deus. Trata-se então de algo Numinoso, algo cujo poder é tão múltiplo e amplo que consegue
causa àqueles com quem se relaciona uma absoluta sensação de pequenez, o que Rudolf Otto
(2005) traduz como o sentimento de criatura. Um estado que se desenvolve diante do terror do
inexplicável, da magnitude e do inalcançável; relegando àquele por ele arrebatado a experiência
máxima de alteridade e de alto reconhecimento enquanto aquilo que é diante da plenitude e
infinitude de um outro <<sagrado>>. É o que lhe faz ínfimo e individual, é “o sentimento de
criatura que se abisma no seu próprio nada e desaparece perante ao que está acima de toda a
criatura” (OTTO, 2005, 19). Logo, a sensação de distanciamento entre deuses e homens,
percebido por Snell como um afastamento do mítico, pode ser compreendido justamente como
o contrário; como o outro lado da medida que os aproxima. Em outras palavras, os deuses para
Hesíodo não são exatamente ausentes, mas independentes das vontades humanas, eles fazem,
exatamente, o que pretendem da forma que pretendem, mas tais vontades não passam
despercebidas pela humanidade, que além de compreender-se enquanto tal em uma relação de
alteridade com os deuses, sofrem as ações ‘positivas’ e ‘negativas’ desse divino. O que
aparentemente a mensagem que Hesíodo deixa nas entrelinhas desse distanciamento, parece a
mesma encontradas as portas de Delfos.

Referências:

DETIENNE, Marcel. Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2011.

GALIMBERTI, Umberto. Rastros do Sagrado. São Paulo: Paulus, 2003.

HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Hedra, 2013.

MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: Edições 70, 1984.

OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, 2005.

SNELL, Bruno. A Cultura Grega e As Origens do Pensamento Europeu. São Paulo:


Perspectiva, 2012.

SOUZA, Eudoro de. Mitologia. Lisboa: Guimarães Editora, 1984,

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

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