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O que aconteceu com a Era das Trevas?

Como os bárbaros salvaram a Civilização Clássica1

Ralph W. Mathisen
University of Illinois

Desde a chegada e o assentamento dos bárbaros na parte ocidental do Império Romano


durante o século V, as pessoas procuram explicações de como e porquê isso aconteceu, além de
tentar entender as consequências. Diversos modelos emergiram. Na Antiguidade, o modelo
reclame de Deus foi popular. As invasões bárbaras foram frequentemente interpretadas como
sendo simplesmente a vontade de Deus, como, por exemplo, sugerido por Salviano de Marselha,
que assumiu

Se Deus […] se preocupa conosco, nos ama e nos guia […] Por que ele permite que nós
soframos e sejamos conquistados pelos bárbaros? Por que ele permitiu que sejamos
súditos do governo de nossos inimigos? Para responder brevemente, ele nos faz sofrer e
passar por essas provações porque nós as merecemos.

Os modelos modernos, no entanto, têm buscado explicações mais terrestres para a queda
do Império Romano Ocidental.
Num modelo prevalente desde O declínio e a queda do Império Romano de Edward
Gibbon, ou mesmo antes, que pode ser chamado de “modelo catástrofe”, os bárbaros que
estabeleceram reinos independentes no solo romano foram condenados por muitas coisas más. As
hordas bárbaras foram execradas pelas “ondas de invasão” que causaram o declínio e a queda do
Império Romano Ocidental. Os invasores bárbaros foram culpados pelo declínio dos níveis de
produtividade econômica; eles foram julgados pela destruição da arquitetura e arte romana.
De fato, no modelo catástrofe, os bárbaros ocidentais não apenas destruíram o Império
Romano, mas também, consciente ou inconscientemente, destruíram a civilização clássica e
criaram um período de barreira cultural conhecido de maneira ignomiosa como a “Era das
Trevas”, quando apenas vislumbres da civilização clássica foram preservados por monges
dedicados entrevados em mosteiros.
Essa imagem da Era das Trevas é uma das coisas que mais, ou até mesmo apenas, nós
aprendemos nos dias de nossa junventude. Nós vemos a Era das Trevas na erudição e no ensino,
na cultura popular, na metáfora moderna e no humor. Esta não é a única Era das Trevas – há
também a Era das Trevas Grega e a Era das Trevas Cosmológica. A imagem do bárbaro
selvagem, rude e iliterado que destruiu a cultura clássica e que causou diretamente a Era das
Trevas também pervade a historiografia moderna. Henri-Irenée Marrou, por exemplo, estabeleceu

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Tradução e notas a cura do Prof. Dtdo. Renan Marques Birro (Universidade Federal do Amapá/Universidade de São
Paulo), revisão do Prof. Dtdo. Otávio Pinto (University of Leeds). Seguem meus agradecimentos ao Prof. Dr. Ralph
W. Mathisen, que gentilmente disponibilizou sua conferência para ser publicada com fins didáticos.
corajosamente que “no século VI, a escuridão do barbarismo descendeu e a cultura declinou no
Ocidente, ameaçando fazê-la desaparecer [...] As invasões germânicas [...] destruíram a cultura
Romana”. E Walter Goffart falou das invasões bárbaras como “o Sol padrão, além do qual alguém
pode apenas ver a aurora da Era das Trevas”.
Nas décadas recentes, porém, tem se notado o desenvolvimento de um modelo diferente
em relação ao impacto dos assentamentos bárbaros no Mundo Romano. O que tem sido chamado
de “Modelo de transformação” nota amplamente a integração pacífica e assimilação dos povos
bárbaros no mundo germânico, com apenas exemplos esporádicos de conduta violenta. O nível de
declínio cultural, o que colocamos em xeque agora, não foi tão rápido ou tão completo como já
imaginaram certa vez. No início do século XXI, o Modelo de transformação, podemos dizer,
tornou-se a nova ortodoxia.
No entanto, os últimos anos tem observado uma chamada pela revisão do modelo
catástrofe, no qual os horríveis bárbaros causarem diretamente a destruição da civilização
romana. Bryan Ward-Perkins, por exemplo, estabeleceu: “um ponto alto do empreendimento
humano, a civilização greco-romana, foi destruída no Ocidente por invasões hostis durante o
século V. Invasores [...] [permitiram] a dissolução não apenas da estrutura política romana, mas
também do modo de vida romano”. Ele concluiu que a “civilização antiga chegou ao fim no
Ocidente com a queda do Império”. Palavras fortes! A Era das Trevas como a representação do
fim de uma civilização ainda se sustenta na imaginação popular.
Dada à continuidade do debate sobre a natureza do “declínio e queda” do Império Romano
Ocidental e o papel dos bárbaros nele, eu gostaria de começar sugerindo alguns problemas
potenciais no modelo dos “bárbaros como destruidores”. A tese dos bárbaros como destruidores
condena os bárbaros por tudo, da queda do Império Ocidental ao declínio do padrão de vida,
passando pela apreciação da cultura clássica. Implícita nesta tese é a assertiva que se os bárbaros
não tivessem tomado o Ocidente, nós poderíamos ainda falar o latim e ser governado por
imperadores romanos. Apoiadores do modelo dos bárbaros como destruidores argumentam, em
suma, post hoc, propter hoc, isto é, por causa da desintegração do Império Ocidental e do declínio
observável da “sofisticação” cultural após o assentamento bárbaro, esses fenômenos teriam sido
causados pelo assentamento bárbaro. Eu, porém, gostaria de sugerir que esse argumento em
particular e o modelo da catástrofe em geral tem algumas falhas intelectuais potenciais.
Inicialmente, a questão é o que acontece quando um povo incivilizado ou “bárbaro” entra
em contato com um povo “civilizado”. Através da História, os povos “bárbaros” invadiram,
ocuparam ou assentaram o território dos povos civilizados. Em quase todos os casos, os povos
bárbaros assimilaram a cultura civilizada e tornaram-se civilizados. Assim, no Antigo Oriente

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Próximo, os acádios assimilaram a cultura dos sumérios, os babilônicos a cultura dos acádios, e
assim em diante.
No Ocidente, os gregos micênicos assimilaram a cultura dos minóicos para criar sua
própria civilização sofisticada. E os bárbaros romanos, por sua vez, quando ocuparam a Itália e
extenderam sua influência sobre o Mediterrâneo Oriental, assimilaram a cultura dos etruscos e
gregos para moldar uma civilização própria. Todos esses povos lançaram fora o estigma de serem
“bárbaros”; tornaram-se “civilizados” e aplicaram o termo “bárbaro”, por sua vez, aos outros.
Mas o que ocorreu aos bárbaros da Antiguidade Tardia? O modelo de transformação é
consistente com o modelo de assimilação que valeu para todos os outros bárbaros invasores da
Antiguidade. Mas, no modelo catástrofe, os padrões mudam. Neste caso, os bárbaros ocidentais
não receberam o crédito de serem capazes de apreciar, assimilar e transmitir os atributos da
civilização. Pelo contrário: no modelo catástrofe, os bárbaros são culpados por destruir a
civilização e criar a Era das Trevas. Eles não dispõem de qualidades redentoras. No modelo
catástrofe, os pobres bárbaros da Antiguidade Tardia não tem respeito.
Não está claro que os bárbaros são completamente culpados pela desintegração política do
Império Romano Ocidental. Desde a metade do século III, a unidade interna do Império Romano
foi se quebrando como o resultado da crescente localização e “provincialização”. Alguém poderia
sugerir que se os reinos bárbaros não se desenvolveram com identidades “bárbaras”, seria possível
que o Império Ocidental não tivesse se fragmentado em reinos independentes governados por
aristocratas provinciais como Egídio no Norte da Gália, Conde Bonifácio na África e o rei Arthur
na Britânia.
Eu também questiono assertiva necessária de que o modelo dos bárbaros destruidores, que
dispõe os bárbaros como selvagens incivilizados totalmente diferentes dos civilizados e
sofisticados romanos. Acima de tudo, os bárbaros estavam em contato com a cultura romana por
séculos e tinham assimilado muito dela. Ainda no primeiro século, o historiador Cássio Dio
comentou “os bárbaros [...] estavam se adaptando ao mundo Romano. Eles estavam fazendo
mercados e encontros pacíficos. Eles não encontravam dificuldades de mudar suas vidas e eles
estavam se tornando diferentes sem tomar conta disso”. Em adição, desde o reino de Augusto,
centenas de milhares de “bárbaros” foram reassentados dentro do Império, como visto na Coluna
de Trajano aqui [encontrar imagem], ou neste medalhão de ouro do fim do terceiro século
descrevendo um Alamanni cruzando a ponte entre o Reno e o Mainz. Este e muitos outros
bárbaros assimilaram-se ao formato de vida romano e eventualmente tornaram-se cidadãos
romanos. No século V, os invasores bárbadores devem ter se olhado e sentido pouca diferença
entre eles e os romanos provinciais.

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Ademais, é difícil encontrar muitos exemplos de bárbaros realmente destruindo algo.
Foram os romanos, de fato, quem “destruíram” as cidades. Os únicos bárbaros que engajaram-se
em atos de destruição em larga escala foram os Hunos; mas os Hunos foram facilmente os menos
romanizados e irrepresentativos de todos os povos invasores: eles nunca assentaram o Império
Romano e eles não provocaram um impacto de longa duração. Outrossim, as invasões bárbaras
foram bem medidas [mannered, ou ponderadas?]. O assim chamado “saque de Roma” de 410, por
exemplo, causou notavelmente pouca destruição material. De fato, há poucos exemplos
espetaculares de destrutividade bárbara: alguém poderia pensar inicialmente do saque vândalo de
Roma de 455. Mas este mesmo alguém não encontraria muitos outros exemplos de bárbaros
destruindo prédios, monumentos ou qualquer outra coisa.
Outro problema com o modelo catástrofe para a queda do Império Ocidental tem relação
com o conceito de declínio. Proponentes do modelo bárbaros como destruidores tem
argumentado que há muitos tipos de declínio durante os séculos V, VI e VII que podem
responsabilizar os bárbaros. Mas esse pressuposto, obviamente, depende de como alguém define
declínio.
Eu estou certo que todos somos familiares com vários critérios subjetivos que tem sido
usados para sugerir que a Antiguidade Tardia foi um período de “declínio”. Num nível muito
simples, métodos tradicionais de mensurar declínio sempre manifestam um elemento muito
subjetivo de connoisseur, no qual as produções culturais – artística, literária ou qualquer outra –
de um período são tomadas como padrãos em relação a outro período. Assim, a produção artística
do período clássico é “boa”, e a produção artística da Antiguidade Tardia e do período pós-
romano é “ruim”, uma evidência do “declínio”.
Conceitos tradicionais de “declínio” também tendem a supor que “mais” de algo é
necessariamente “bom”, e “menos” de algo é “ruim”. Assim, mais comércio, mais produção
literária ou mais fabricação de potes é “bom”, e menos disso, não importa quais as razões, é
“ruim”. Mas, para minha mente, há muitos problemas este método de definir “declínio”. Para uma
coisa, qualquer coisa que pode ser mensurada, seja o número de potes, a atividade construtiva ou a
produção literária, deve-se relacionar com as necessidades de seu próprio tempo, e os tempos
mudam. Assim, muito frequentemente um declínio de algo mensurável é contrabalanceado com a
produção de outra coisa. Por exemplo, a respeito da arquitetura, o declínio dos prédios públicos
tradicionais como teatros, banhos, templos, mercados e curiæ na Antiguidade Tardia foi
complementada com um grande crescimento na construção de igrejas nas cidades e de villas
fortificadas nos campos. Neste caso, uma forma de construção foi substituída por outra forma
mais adaptada às necessidas de seu tempo.

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Em adição, alguns proponentes do “declínio” estão tão convictos de que eles estão certos
que eles deixam de considerar todas as evidências. Como observado numa assertiva comum,
houve um declínio da produção literária no período tardo e pós-romano. Sim, durante a
Antiguidade Tardia, ocorreu um declínio na produção de formas tradicionais de literatura secular,
e para os filologistas clássicos tradicionais, há certas indicações de “declínio”. Mas, ao mesmo
tempo, houve uma grande explosão na produção de vários tipos de literatura eclesiástica. E, deste
modo, a assertiva padrão que alguém não poderia estudar nos séculos V e VI por causa da falta de
evidência literária é simplesmente incorreta.
Igualmente, a assertiva comum que as instituições de educação seculares simplesmente
desapareceram no Ocidente após a queda do Império Ocidental, como proposto por Henri Marrou
e Alan Cameron, também está errada. Se alguém observa o problema, notará, no caso da Gália,
por exemplo, muitos professores seculares ensinando o currículo clássico, de Virgílio ao Código
de Teodósio, mesmo no século VII. E se a educação clássica secular continuou num nível
reduzido, isto ocorreu porque houve uma redução da educação burocratizada nas menos
complexas administrações seculares bárbaras.
Assim, se houve um declínio na educação secular e na produção literária secular, isso não
se deu pela destruição bárbara, mas porque elas não serviam aos mesmos propósitos para o qual
foram desenvolvidas durante o Principado e o Dominato. Mas isso não significa que a educação e
a produção literária foram interrompidas. De maneira alguma: a educação e a produção literária
continuaram mais adequadas àquele tempo.
De maneira a propor um caso mais convincente de declínio, alguns historiadores tem
tentado provar que ocorreu vários tipos quantitativos de “declínio” no Mundo Romano tardio e
Pós-Romano, como “o declínio na produção de potes”, ou “o declínio na circulação de moedas”.
Ward-Perkins, por exemplo, afirmou ter produzido uma medida exata de como os “níveis de
prosperidade e complexidade econômica” mudaram com o tempo entre os séculos IV e VIII.
Neste modelo, os níveis de prosperidade no Ocidente declinaram aproximadamente no ano 400,
com as invasões ocidentais bárbaras, enquanto o declínio oriental não começou até o início do
século VII, com as invasões muçulmanas. Evidência convincente, Ward-Perkins pode ter
acreditado, ao suportar o modelo catástrofe. Aqui, o declínio é apresentado como uma certeza
matemática. Pouca atenção nos foi dada de como “prosperidade” e “complexidade”, e em
particular como as mudanças em curtos períodos, foram medidas.
Ainda, este tipo de quantificação pode ser errôneam e eu estou lembrado de uma frase
popularizada pelo escritor americano Mark Twain, que certa vez comentou: “há três tipos de
mentiras: mentiras, mentiras malditas e estatísticas”. Esse tipo de suposta evidência objetiva pode

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ser apresentada de uma maneira diferente para chegar na conclusão contrária. Por exemplo, um
gráfico demonstrando o declínio do valor (contente) da prata da Roma dos antoninos durante o
terceiro século, e então dirigida a demonstrar o declínio da economia Romana, pode ser justaposta
com o gráfico hipotético do crescimento da importância da cunhagem de ouro, para demonstrar
um crescimento na prosperidade baseada na circulação de ouro. Ou se alguém escolher um
critério não-romanófilo de medida, como “as oportunidades para os assentamentos bárbaros”, o
período do mundo Romano tardio ou pós-Romano pode parecer um tempo de oportunidade real.
Mas adotando um modelo de “declínio”, que privilegia características associadas ao mundo
clássico do segundo século e marginaliza as características associadas ao século V, nós temos um
modelo pré-definido que faz qualquer forma de “transformação” tornar-se ruim.
Uma chave interpretative adicional e insuficiente para compreender esse tipo de declínio,
eu creio, é que ele depende de qual referência de “declínio” será mensurada. Se alguém define o
máximo de algo – oportunidades educacionais, produção de potes, construção de prédios públicos,
o que seja – como “normal”, então, qualquer movimento daquele ponto ipso facto será qualificado
como declínio. Agora, se o máximo que serve como um ponto de referência resulta de um
acontecimento natural, com causas auto-sustentáveis, então alguém está justificado a patologizar o
declínio que se seguem. Mas se o ponto mais alto é o resultado de uma passageira, anormal e
artificial circunstância, então ninguém pode assumir esse ponto alto como “normal”. Assim, a
questão é, o nível de prosperidade econômica, complexidade administrativa, paz política,
produtividade cultural característica da Europa dos sécs. II ao IV foi sustentável e
autoperpetuável, ou o resultado de circunstâncias especiais e artificiais?
O modelo catástrofe patologiza todo declínio em qualquer coisa medida com a assertiva
que o ponto alto precedente ao declínio é natural e autossustentável, e que algo “ruim” causou o
declínio. Apoiadores da transformação, por outro lado, podem argumentar que o alto nível de
prosperidade econômica encontrado no segundo século foi largamente o resultado artificial de
situações anormais, de ambiente favorável às condições políticas, ou ainda a inflação artificial da
produtividade econômica causada pela intervenção imperial, especialmente em apoio ao exército
romano. Quando esses subsídios foram removidos, alguém pode argumentar, o nível de
prosperidade econômica retornou para qualquer “normalidade” que precedeu o avanço artificial.
O mesmo argumento pode ser aplicado à educação e à produtividade literária secular.
Durante o período romano, a necessidade de burocratas educados resultou na criação de um
sistema educacional patrocinado e apoiado que artificialmente multiplicou o número pessoas
educadas nos moldes clássicos no Império. O declínio do sistema administrativo romano no
Ocidente no século V trouxe severos cortes no sistema educacional apoiado pelo Estado, resultado

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no concomitante declínio no número de pessoas educadas nos moldes clássicos, e um declínio
quantitativo no fenômeno associado com a superestrutura educada à luz dos clássicos, como nos
trabalhos literários escritos na tradição clássica.
O modelo de transformação, não elimina o declínio, mas o contextualiza numa via que
não necessita uma intervenção externa dramática para trazê-lo à baila. O que é tradicionalmente
conhecido como o “declínio” do Império Romano foi meramente um retorno a situação mais
normal e menossustentável social, econômico e politicamente. A civilização clássica não
terminou, mas retornou para um nível que poderia ser suportado por um longo período de tempo.
Contra este background, nós agora podemos considerar o destino da civilização clássica –
e em particular na cultura literária clássica – no período romano tardio e pós-romano. Sim, por
uma variedade de razões houve um declínio na educação secular e na produção literária quando
comparada aos séculos II ao IV. Mas ela não foi interrompida em todas as maneiras. Mas não foi,
como eu argumentei outrora, qualquer “declínio” clara ou diretamente como um resultado da
destrutividade bárbara. Todavia, meu papel aqui não é apenas considerar os bárbaros como “não
culpados” por destruir a cultura clássica ou causar “o fim da civilização”, e não meramente para
argumentar que os bárbaros não foram tão ruins. Não: minha meta é argumentar que alguns
bárbaros atualmente ajudaram a apoiar e preservar a civilização clássica.
Agora, na perseguição deste tópico, eu poderia tomar um caminho fácil e argumentar que
a maioria daqueles que fomentaram a “Renascença carolíngia” – como o godo espanhol Teodulfo
de Orléans, ou o anglo-saxão Alcuíno, ou ainda o franco Angilberto – foram bárbaros de origem.
Mas isso seria muito fácil. Não tomarei o caminho fácil e focarei nos primeiros bárbaros como
Dionísio Exíguo, que foi um pleno participante na intelectualidade grega e latina mas é raramente
reconhecido pela erudição clássica tradicional. Não, eu proponho discutir como os verdadeiros
bárbaros que foram supostamente responsáveis pela queda do Império Romano de fato ajudaram a
preservar a cultura literária clássica tradicional.
Esta proposta me atria para um dos meus atuais projetos de pesquisa, o antitético tópico de
“intelectuais bárbaros na Antiguidade Tardia”. Um tópico estranho, alguns podem pensar. Acima
de tudo, os bárbaros ocidentais foram descritos de muitas maneiras, mas nunca como
“intelectuais”. Mesmo entre os historiadores que aceitam as atrações que o mundo romano exercia
sobre os bárbaros nortenhos – como a reserva de alimento disponível, boa terra, uma qualidade de
vida melhor, a oportunidade econômica, o avanço de carreira – a erudição moderna tem um ponto
cego peculiar quando questionamos o encanto educacional. Nenhum bárbaro, alguém pode crer,
encontrou qualquer atração intelectual para viver do lado romano da fronteira. Mesmo quando o
rei ostrogodo Teodorico, o grande (493-526), disse no início do século VI que “os romanos

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pobres imitam os godos e os godos ricos imitam os romanos”, os pesquisadores modernos
poderiam nos fazer acreditar que essa imitação não se extende aos assuntos educacionais.
De fato, os bárbaros ocidentais foram frequentemente caracterizados por sua falta de
conhecimento. A imperitia e inscitia dos bárbaros foram um lugar comum e continuam a ser até
hoje. No século II, por exemplo, Galeno comentou: “Eu não estou escrevendo o que eu escrevo
para os germânicos, ou para outros povos selvagens e bárbaros; também não, para o que importa,
para ursos, leões, javalis ou outros animais selvagens”, e no século IV, o poeta cristão hispânico
Prudêncio observou: “Mas os romanos estão tão distantes dos bárbaros quanto os quadrúpedes são
separados dos bípedes, ou os mudos dos falantes”. E nos dias modernos, a ideia de intelectuais
bárbaros ainda é tratada como uma piada. Mas qual a razão disto neste caso? Muito
provavelmente porque o pensamento dos bárbaros tendo interesses intelectuais parece uma
absoluta contradição em termos.
Mas foram os bárbaros tardo-antigos, particularmente os bárbaros ocidentais, realmente
“mente fechadas” como os estereótipos sugerem? Muitas considerações apontam outra direção,
como as supramencionadas observações a respeito do longo contato que os bárbaros tiveram
como o mundo romano e uma longa tradição de assentamentos bárbaros no Império. Pode alguém
realmente argumentar que quão pouco da cultura romana foi absorvida por estes bárbaros? Como
testemunho, há uma tradição romana de educação provida aos bárbaros. Conforme Plutarco, o
rebelde romano Sertorius (79-72 a.C.) estabeleceu uma escola na Hispania para jovens celtiberos
(ou celtibéricos?): “Aqueles de alto nascimento ele reuniu [...] e dispôs a eles professores de
conhecimento grego e latino [...] pagando suas taxas por eles, mantendo exames frequentes,
distribuindo prêmios [...]”. Em sequência, no início do primeiro século, Velleius Paterculus
comentou: “Agora, todos os panônios possuíram não apenas um conhecimento da disciplina
romana mas também da língua romana, muitos também dispunham de alguma medida de cultura
literária, e o exercício do intelecto não era incomum entre eles”.
Tal processo de assimilação das tradições intelectuais romanas continuou conforme outros
bárbaros foram absorvidos no mundo romano nos séculos subsequentes. Muitos bárbaros da
Antiguidade Tardia deram testemunho da imagem de bárbaro obtuso. Por exemplo, a respeito de
Silvano, um meste de soldados franco que tentou usurpar o trono em meados de 350, Aurélio
Victor comentou: “Conquanto nascido de um pai bárbaro, ele foi muito refinado e tolerante como
resultado da instrução romana [institutione romana]”. No Leste, por sua vez, Zózimo descreveu o
mestre de soldados oriental Fravitta, consul em 401, como “bárbaro de nascimento, mas, por outro
lado, um grego, não apenas nos hábitos, mas também no caráter e religião”.

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Agora eu gostaria de estreitar meu foco ao Império Ocidental, eos bárbaros que
supostamente trouxeram a “Era das Trevas”. Posteriormente, no século IV, outros bárbaros
ocidentais foram ainda mais longe que Silvano, um participamente ativo dos círculos sociais
aristocráticos e literários romanos. O cônsul franco e meste de soldados Bauto, por exemplo,
trocou correspondências com Símaco e teve um panegírico em sua honra composto por
Agostinho; sua filha Eudóxia casou com o imperador Arcádio, fazendo dele o avô de Teodósio II.
Outro mestre de soldados franco, Richomer, similarmente trocou cartas com Símaco, que
escreveu para ele; “Eu admiro suas virtudes [...] o que tinha de melhor em Roma migrou para
você”. Richomer também foi um amigo do retórico e futuro imperador Eugênio (392-394).
Esses barbaros de alto nascimento funcionavam numa sociedade aristocrática gentílica
como outros senadores romanos. Por exemplo, o historiador Zózimo reportou que Richomer
recomendou seu amigo Eugênio ao metre de armas franco Arbogastes. Alguém pode ponderar
onde esses “escaladores sociais” bárbaros estavam recebendo supervisão retórica e literária deste
distinto professor. Entrementes, Arbogastes também frequentemente jantou com Ambrósio de
Milão. Eu imagino sobre o que eles conversavam: talvez sobre bons tipos de cerveja ou a melhor
forma de vestir peles...
Outro bárbaro romanizado foi o meio-vândalo Estilicão, filho de um general vândalo.
Estilicão foi mestre de soldados no Ocidente entre 394 e 408, e duas vezes cônsul: ele foi casado
com Serena, filha do imperador Honório, e frequentemente correspondia com Símaco. Suas filhas
Maria e Termântia casaram com Honório (em sucessão), e ele esperou que seu filho, Euquério,
não apenas pudesse casar com Galla Placídia, filha de Honório, mas até mesmo se tornasse
imperador. De acordo com o poeta Claudiano, Maria foi educada na literatura grega e latina.
Ademais, Claudiano foi um cliente da família de Estilicão, na mesma medida em que
outros senadores influentes serviram como patronos das artes, e recompensou seu influente
patrono propondo uma propaganda pró-Estilicão. De fato, os poemas históricos e políticos
conectados com Estilicão dispunham de uma tradição manuscrita separada do restante de seus
trabalhos, sugerindo que eles foram preservados como uma coleção independente, talvez por
Estilicão ou Serena, após a morte de Claudiano em c.404.
Bárbaros e pessoas de descendência bárbara como estes circularam nos altos níveis da
sociedade educada romana sem encontrar qualquer referência deliberada a sua origem “bárbara”.
Em diversas ocasiões, Símaco referiu-se as trocas de cartas entre ele e estes generais bárbaros. Ele
escreveu sobre os “iucunditas” e “voluptas” que as suas cartas e as de Richomer forjaram para
eles, e sobre como as numerosas cartas de Bauto “inter praecipua gaudiorum”, e “quanto mais ele
as recebia, mais ele queria receber”. Símaco era apenas polido, alguém poderia presumir?

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Certamente ele foi, mas este tipo de polidez aristrocrática que lubrificavam as rodas das interações
sociais romanas tardias.
E o que, nós podemos perguntar, Símaco realmente pensava das habilidades literárias
desses generais bárbaros? Bom, num determinado ponto ele comentou para Bauto: “Você não
deve temer ao considerar ingrato alguém tão desejoso de afeição e suas cartas”; um polido
reconhecimento, talvez, que o estilo literário de Bauto pode não ter ultrapassado os padrões de
Símaco. Mas este também foi parte de uma tradição literária tardo-romana e aristocrática.
Ninguém foi criticado e todos os esforços literários de qualquer um foram elogiados. Então, cerca
de um século depois, Sidônio Apolinário pode escrever para um jovem amigo, curiosamente
nomeado “Burgúndio”, que estava preocupado sobre como um exercício escolar deveria ser
recebido : “Todos que ouvem aprovarão, todos encorajarão”, Sidônio reafirmou.
Mais do que providenciar uma lista ainda mais longa de bárbaros romanizados, o que eu
gostaria de fazer agora é focar num grande detalhe sobre como os bárbaros foram ilustrados, em
especial demonstrando vias de como os bárbaros ocidentais tornaram-se completamente
integrados numa vida cultural romana e, de uma forma ou de outra, apoiaram a sobrevivência da
cultura clássica. Meu primeiro “garoto de pôster” neste assunto é Flavius Valila qui et
Theodovius, um bárbaro niceno, provavelmente godo, que serviu como mestre de soldados de
segunda categoria para Ricimer no Império Ocidental em c.470. Em 17 de Abril de 471, Valila
ditou, corrigiu e enviou para uma carta estabelecendo uma igreja em Tivoli. Na carta de Valila é
possível ler: “Eu ditei esse rascunho [scriptura] de minha bolsa, para ser redigida pelo meu
notário Feliciano, e eu a subscrevo com minha própria mão após ter eu próprio a revisado”. Este é
uma atitude de um bárbaro iletrado?
Valila também doou para Igreja a causa de Junius Bassus na Colina Esquilina, que foi
então consagrada pelo papa Simplício (468-4883) como a Igreja de santo André; a inscrição
elegíaca de dedicação sobreviveu como segue: “o espírito de Valila deixou esse estado para ti,
Cristo, para aquele que concedeu todas as suas riquezas”. Agora, deve ser observado que esta não
foi nenhuma casa. Junius Bassus tinha sido Consul em 331, e a casa posteriormente possuída por
Valila incluía uma basílica decorada com extraordinários paines de mármore fabricados secção.
Valila, então, possuía um palácio que tinha pertencido a uma das mais importantes famílias
senatoriais cristãs de Roma e fez esforços muito visíveis para demonstrar que ele estava
completamente integrado na aristocracia senatorial nicena de Roma, incluindo a garantia da
preservação do palácio de Bassus como uma Igreja.
Concomitante com a preservação da tradição clássica, os barbarous também participaram
da criação da cultura clássica. Uma pessoa de aparente tradição bárbara que escreveu literature

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latina é meu “garoto de pôster” número dois, Flávio Merobaudes, um suposto descendente de
Flavius Merobaudes mestre de soldados na década de 370, três vezes cônsul e um presumido
bárbaro, talvez de Trier. O jovem Merobaudes sucedeu seu padrasto Astírio – cônsul em 449 –
como um mestre de soldados na Espanha em 443, onde ele defendeu os Bacaudae2. Merobaudes
foi um pleno participante na produção literária clássica tradicional, escrevendo diversos trabalhos
como o existente Carmen de Christo e dois parcialmente ainda existentes panegíricos em honra
do generalíssimo romano Aëtius, fragmentos que sobreviveram num famoso palimpsexto, o
Codex Sangallensis 908. E, como Flavius Valila, ele também demonstrou apoio para a igreja
Nicena, se ele deve ser identificado como o “Merobaudes patricius” lembrado como doador de um
mosteiro na Gália Central.
Alguém pode perguntar, no entantto, quão “bárbaro” Merobaudes foi considerado ser.
Teria ele talvez sido tão afastado de sua ancestralidade bárbara que ele tinha se tornado um
romano em tudo, exceto no nome? Ele pode ser qualificado como um intelectual “bárbaro”?
Ninguém pode saber em qual nível ele rejeitou sua origem bárbara, mas algumas considerações
sugerem que ele pode ter sido muito orgulhoso de sua herança bárbara.
Por um lado, o primeiro panegírico de Merobaudes para Aëtius foi comemorao com uma
estátua no Fórum de Trajano, cuja inscrição louva-o como “um homem tanto bravo quanto
educado [...] [que] age igualmente com a caneta e a espada”, notou que “no meio da guerra ele
peleou com a literatura”. Assim, Merobaudes foi descrito num papel atípico de um homem
culturalmente militar que também tinha habilidades literárias. O foco nas habilidades militares de
Merobaudes, mesmo se entrasse em rota de colisão com seus talentos literários, poderia ser pouco
consistente com o que se esperava dos bárbaros.
Em adição, pode ser também por suas habilidades literárias que Merobaudes foi
recompensado com uma posição de oficial. Mas para uma pessoa de origem bárbara, até mesmo
um literato e culturado como Merobaudes, um cargo military podia parecer mais adequado.
Outros bárbaros do século V também apoiaram a tradição clássica. Um descendente do
general Arbogastes da década de 390 foi outeo Arbogastes, conde de Trier na década de 470, meu
terceiro poster boy como um intelectual bárbaro. O jovem Arbogastes foi um aspirante a sábio a
seu próprio modo. O culturado e conceituado Sidônio Apolinário pode escrever para ele, ainda
que de forma condecendente,

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Os bacaudes (ou bagaudes) foram um grupo de camponeses insurgentes durante a “crise do século III”. O
movimento persistiu até o fim do Império Romano Ocidental.

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Assim, a glória do discurso de Roma, se existe agora em qualquer lugar […] reside em ti
[…] Eu me regozijo muito que ao menos em teu ilustre peito vestígios de nossa cultura
sumidoura permaneça. Assim, tu estás familiarizado com os bárbaros, mas tu, no entanto,
estás desfamiliarizado com os barbarismos.

Neste caso, não há dúvidas sobre as afiliações bárbaras percebidas em Arbogastes. Ele
parece ter herdado o interesse familiar na religião e convidou Sidônio a escrever alguma exegese
bíblica, mas Sidônio fez referência sobre ele para o bispo Auspício de Toul, que encaminhou para
Arbogastes uma carta laudatória própria, não menos que uma elegiac em dísticos. Ele descreveu o
franco como “sábio” (sapiens) e assertou “tu assombras tua poderosa categoria com teu ilustre
intelecto”. E, se podemos sorrir indulgentemente para estas imagens e considerá-las sem base, se
não for apenas base ou lisojnja, talvez é porque nós fomos vítimas de nossos próprios
estereótipos.
No século VI, a transição de Roma para Europa bárbara estava completa. A participação
bárbara na cultura literária clássica não era mais incomum. De fato, alguém pode sugerir que ela
tornou-se a norma. Os bárbaros entusiasticamente elogiavam a minima habilidade literária que
eles pudessem manifestar, de maneira similar como os romanos faziam. Fazer isso tornou-se um
lugar comum e, na mesma medida, como alguém pode duvidar que Sidônio laudou os talentos
literários de seus amigos, não há razão para nós acreditarmos na glorificação extravagante das
atividades culturais bárbaras. Mas o que esses tipos de elogios fizeram foi colocar todos no
mesmo campo cultural.
Na Itália, por exemplo, a rainha ostrogótica Amalasuntha, filha de Teodorico, o grande,
dizem ter sido educada nos moldes clássicos: em 533, Casiodoro elogiou-a no Senado de Roma:
“Em que lingua ela ainda não foi provada no aprendizado? Ela é fluente no explendor da oratória
grega, ela brilha na glória da eloquência romana; a onda do discurso ancestral traz a ela a glória;
ela supera todos em suas próprias línguas e é igualmente maravilhosa em cada uma delas”. Estava
Casiodoro exagerando suas habilidades literárias? Talvez, mas não mais do que ele exageraria por
qualquer romano que estivesse elogiando. Mas, se alguém aceita o lugar-comum da ignorância
bárbara, é mais fácil ignorer esse testemunho como simples banalidades, ou apenas ignorá-lo; e
isso é, de fato, como as evidências da educação bárbara tem sido tratadas.
O que não quer dizer, obviamente, que alguns bárbaros não continuaram a participar
plenamente da cultura literária. Talvez o mais famoso autor bárbaro é meu quarto poster boy
literário bárbaro, Jordanes – como Dionísio Exíguo, um godo dos Balcãs – que na década de 550
escreveu a Origem e os feitos dos Godos e Sobre um sumário dos tempos, da Origem aos Atos do
povo romano. No epílogo da Getica, ele estabeleceu que “Tu, que lês isto, sabe que eu segui os
escritos dos meus ancestrais […] não deixes ninguém acreditar que eu adicionei algo, apesar do

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que eu li ou aprendi ao inquiri, para vantagem da raça da qual falei, conquanto eu possa traçar
minha própria descendência dela”. Jordanes, além disso, veio de uma família literária: seu pai,
Paria, foi secretário (notaries) de Candac, rei dos esciros, em meados do século V. Ele mesmo foi
secretário do mestre de soldados bizantino Gunthigis qui et Baza.Jordanes distinguiu-se por ser o
primeiro bárbaro conhecido a escrever a história de seu próprio povo, e Riché afirmou, refletindo
o disparate convencional das habilidades literárias bárbaras que ele é “o único godo que nós
sabemos que foi um autor”. Mas muitos outros exemplos – como os autores eclesiásticos godos
que nós vamos discutir agora – podem ser encontrados.
De fato, outro escritor godo do século VI foi o visigodo João de Biclara (c.540-624). De
acordo com Isidoro de Sevilha, “João, bispo de Gerona, de nacionalidade goda, quando jovem
viajou até Constantinopla e foi educado na língua grega e latina”. Em sequência, João escreveu
uma crônica do século VI, cobrindo os anos de 567 a 590, além de uma regra monástica e outros
trabalhos agora perdidos.
Ademais, na segunda metade do século VI, a Europa Ocidental estava plena de bárbaros
culturados, tanto na Gália quanto na Espanha. Gregório de Tours considerou importante o
suficiente comentar duas vezes que o rei franco Chilperico (561-584) escreveu não apenas hinos,
mas também “muitos livros em verso na maneira de Sedúlio”, agora perdidos. Gregório,
obviamente, não pode resistir aos esforços disparatados de Chilperico, dizendo “ele não entende
esses versos; ele coloca sílabas pequenas nas longas e assinala as longas nas curtas”. Alguém
pode se perguntar, porém, se Gregório poderia fazer muito melhor.
Enquanto isso, Venâncio Fortunato aplicou ao irmão de Chilperico, Chariberto I (561-
567), o mesmo lugar comum que Cassiodoro ofertou a Amalasuntha, isto é, que ele era
igualmente eloquente em latim e germânico. Venâncio também descreveu Vilithuta, uma mulher
romana de Paris, como “bárbara de nascimento, romana de educação”, e comparou Gogo, o
professor de Childeberto II (570-590) enquanto criança no final da década de 570 como “de Orfeu
e Cícero”; quarto de suas cartas sobreviveram. Comentadores modernos como Riché assimilaram
o disparate tradicional da falta de habilidade literária dos bárbaros, arrogantemente negando esses
elogios como “elogios cortesãos, sem dúvida”. Mas os bárbaros realmente sofreram algum
bloqueio mental que os impedia de compor e apreciar a literatura latina?
Enquanto compunham literature latina na tradição clássica, os bárbaros da Antiguidade
Tardia também contribuiam para preserver a cultura literária latina de outras formas. Em Ravena,
por exemplo, “mestre Viliarico, o copista”, supervisionou um scriptorium que produziu
manuscritos em latim e gótico, incluindo um texto latino de Orósio, além de muitas cópias da
Bíblica gótica, incluindo o famoso Codex argenteus. E o supramencionado rei franco Chilperico

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tomou uma responsabilidade ainda mais direta ao direcionar o future da cultura clássica: conforme
Gregório, ele adicionou letras ao alfabeto, “e ele escreveu para todas as cidades de seu reino que
os livros escritos anteriormente deveriam ser apagados com pedras-pome e reescritos”.
A lista de exemplos dos bárbaros que, no século VI, participaram das atividades literárias
clássicas tradicionais poderia prosseguir – Eu estou certo que alguns de vocês podem adicionar
nomes a lista. Mas eu espero que o ponto de vista tenha sido atingido. Apesar da condição geral
da cultura clássica na Europa Ocidental no final do século VI, ninguém poderia assinalar os
bárbaros como sendo a causa de nenhum “declínio”. Barbáros como estes não estiveram
engajados na destruição da civilização clássica, mas em sua preservação, assim como muitos
indivíduos descendentes de Roma fizeram o mesmo.
Esses exemplos demonstram a aristocracia bárbara e dignatários participando da vida
intelectual e social romana tradicional, da mesma maneira que a aristocracia e oficiais romanos
fizeram. Se não fossem os nomes e a etnicidade, alguém poderia assumir sem objeções que esses
indícios tratam sobre atividades ordinárias de indivíduos totalmente integrados na herança social e
cultural aristocrática romana. Poucos bárbaros, obviamente, deixaram qualquer lembrança de
atividades intelectuais, mas, igualmente, poucos romanos o fizeram. Ninguém duvida, porém, a
habilidade dos romanos de seguir ou dividir estas atividades, ou seu interesse em fazê-lo. Parece
que não há razão para inscrever o mesmo interesse e habilidade dos participantes bárbaros como
um todo. Sem dúvidas, a grande maioria dos bárbaros foram, de fato, rudes e desintelectualizados
– mas alguém poderia dizer o mesmo da grande maioria da população “romana” também. Não há
evidência que os bárbaros, ou qualquer outro desse extrato, trouxeram o “fim da civilização” para
o Mundo Romano Ocidental. De fato, eu sugeriria que os mesmos bárbaros acusados de encerrar a
civilização occidental foram, de fato, os responsáveis por apoiá-la e preservá-la.

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