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Sumário

LIVRO 1 - POR QUE VOCÊ É ASSIM


Capítulo 1 - Como as pessoas funcionam
Capítulo 2 - Quem é você

Capítulo 3 - Vai ser assim para sempre?


Apêndice - Os 16 perfis do teste Myers-Briggs

LIVRO 2 - ANSIEDADE - MANUAL DO USUÁRIO


Prólogo - Eu, ansioso
Capítulo 1 - A ansiedade é boa
Capítulo 2 - A anatomia da ansiedade
Capítulo 3 - O piloto automático
Capítulo 4 - Somos muito burros
Capítulo 5 - A pandemia da ansiedade

LIVRO 3 - AMOR - POR QUE ELE COMEÇA, COMO ELE VICIA, POR QUE ELE ACABA
Prólogo - Cego e essencial
Capítulo 1 - Amor genético
Capítulo 2 - A química do amor
Capítulo 3 - Quando o amor dói
Capítulo 4 - Temporada de caça
Capítulo 5 - Entre iguais

Epílogo - Qualquer forma vale a pena

Créditos
Como as pessoas funcionam

Timidez, poder de sedução,


indisciplina, procrastinação,
otimismo. E por que é tão bom falar
mal dos outros. Conheça os traços
mais importantes da personalidade
humana. E saiba como lidar com
eles.
A FOLHA EM BRANCO
Todos os homens nascem iguais. Essa frase está por toda parte: na Declaração dos Direitos
Universais do Homem, de 1776, estampada na história (e na bandeira) da Revolução Francesa, e até
no Livro Vermelho do líder comunista chinês Mao Tsé-tung. Essa repetição foi útil. Graças a esse
ensinamento, muita gente aprendeu a respeitar os outros e a tolerar comportamentos culturais,
religiosos e sexuais diferentes dos dela. O problema é que, quando se fala de personalidade, o
princípio da igualdade é balela.
O filósofo inglês John Locke acreditava no conceito da tabula rasa. Para ele, todos nós somos
folhas de papel em branco, que vão sendo preenchidas com tudo aquilo que aprendemos vida afora.
Locke tinha boas intenções. A tese de que todo conhecimento vem da experiência fundou o
Empirismo e influenciou pensadores figurões como David Hume e Immanuel Kant (graças à
experiência na base da ciência, você pode ser tratado por um médico se passar mal em vez de
recorrer a um curandeiro). A ideia de que nascemos todos com as mesmas características
ultrapassou os portões da filosofia e foi parar na psicologia.
Na primeira década do século 20, o psicólogo John Watson era desses que precisam ver para crer.
Como o inconsciente é invisível, ele resolveu ignorá-lo. Surgiu o behaviorismo, braço mais objetivo
da psicologia, que só leva em conta o que pode ser observado e explicado. Para Watson, a
personalidade humana era como uma massa de modelar. Bastava pressioná-la da maneira certa para
que ela se transformasse em qualquer outra coisa. Para os pais dos anos 1910, a possibilidade de
moldar um filho perfeito causava tanta curiosidade (e espanto) quanto os avanços da engenharia
genética de hoje. E Watson não se fazia de rogado. Ele entrou para a história da ciência ao dizer
que, se tivesse uma dúzia de bebês recém-nascidos, poderia criá-los aleatoriamente de maneiras
diferentes até que um se tornasse artista, outro médico, outro advogado, outro ladrão,
independentemente de suas supostas tendências ou da origem étnica de seus pais. Seria a prova
máxima de que todo comportamento pode ser aprendido. Só que não é bem assim.
Enquanto Watson pregava aos quatro cantos que podia ensinar pais a criar os filhos perfeitos só
na base das punições e das recompensas, como se as crianças fossem ratos de laboratório, o outro
lado da psicologia tinha uma ideia bem diferente, emprestada da medicina. Eles defendiam a ideia
de que você é do jeito que é porque já nasceu assim. Essa turma da psicologia acreditava naquilo
que a sua avó dizia: “esse menino é teimoso assim desde criancinha”. De acordo com esse
raciocínio, além de definir a cor da sua pele, a textura do seu cabelo e a sua predisposição para
engordar, o seu código genético também entregaria as características da sua personalidade e diria o
que você seria quando crescesse – líder político ou pianista.
Nas últimas décadas, os argumentos evoluíram nos dois lados. O behaviorismo já não é tão
radical a respeito do comportamento. A própria psicologia admitiu que o princípio da igualdade
pode continuar valendo na política sem que todo mundo precise ser exatamente igual aos olhos da
biologia. O outro lado aprendeu que havia mais exceções do que regras e percebeu que não dava
mais para jogar toda a culpa no DNA. O debate ganhou um nome mais refinado: nature x nurture
(algo como natureza x criação). Agora, as duas partes tentam compreender melhor como você virou
você.

O QUE NASCEU COM VOCÊ


A expressão nature versus nurture ficou famosa na língua inglesa graças à insistência do
antropólogo Francis Galton. Para descobrir se o interesse pela ciência era uma característica
hereditária, Galton pediu uma ajuda a alguns amigos da Real Sociedade de Londres para o
Progresso do Conhecimento da Natureza, uma espécie de clubinho que reúne grandes mentes da
ciência britânica desde o século 17. Cada membro da sociedade tinha de responder a um
questionário com perguntas pessoais, como a etnia e a profissão dos pais, e a ordem de nascimento
dos irmãos. Aplicado em pleno final do século 19, esse provavelmente foi o primeiro teste
psicológico da história. Não deu muito certo. Os resultados inconclusivos forçaram Galton a tentar
de novo, dessa vez com outra dúvida na cabeça. O objetivo da nova pesquisa era investigar casos de
irmãos gêmeos que cresceram separados em ambientes bem diferentes e acabaram se tornando
pessoas parecidas no quesito personalidade.
A segunda pesquisa de Galton na área do comportamento era bem mais interessante que a
primeira - e mais profética, também. Até hoje, casos de irmãos gêmeos aparecem nos livros de
psicologia e nas pesquisas de laboratório. Uma pesquisa da Universidade de Minnesota descobriu
que gêmeos idênticos podem tomar decisões mais semelhantes se forem criados separadamente.
Mais de 60 anos depois da morte de Galton, um caso do tipo chamou a atenção dos psicólogos. Jim
Springer e Jim Lewis eram gêmeos idênticos que cresceram em famílias adotivas diferentes.
Passaram a vida inteira sem ter contato um com o outro, mas fizeram escolhas exatamente iguais. O
nome da primeira mulher dos dois era o mesmo: Linda. Depois do divórcio, ambos casaram-se
novamente com moças chamadas Betty e deram aos filhos (e aos cachorros de estimação) os
mesmos nomes.
As pesquisas com gêmeos também aparecem no outro lado da discussão. É o caso das irmãs
iranianas Laleh e Ladan Bijani, gêmeas siamesas que viraram notícia no mundo médico em 2003.
Apesar de compartilharem os mesmos genes e terem vivido literalmente grudadas a vida toda, eram
completamente diferentes. Laleh, mais introvertida, gostava de jogar videogame e sonhava virar
jornalista em Teerã. Ladan, falante e interessada em computação, queria ser advogada em Shiraz.
Prova de que, quando se fala em comportamento, seu DNA não é seu destino. É o seu ponto de
partida.
Por mais de 30 anos, a Universidade do Texas acompanhou o desenvolvimento de 700 crianças
que foram adotadas na infância, em uma das maiores pesquisas já feitas sobre o tema. Os cientistas
chegaram à conclusão de que, mesmo tendo passado décadas sem contato com suas famílias
originais, as pessoas ficaram mais parecidas com os seus pais biológicos que com os adotivos.
Um bebê nasce com cerca de 35 mil genes, guardados em 23 pares de cromossomos. Disso, você
e a ciência estão cansados de saber. Mas a relação comprovada entre o seu comportamento e os
seus genes ainda é novidade. Antes, a psicologia já desconfiava do óbvio. Imagine, por exemplo, uma
criança que desde cedo se destaca como a mais bonita do berçário. A conclusão natural é que ela se
torne, no futuro, um adulto com a autoestima nas alturas. Uma boa autoimagem é meio caminho
andado para um comportamento extrovertido.
Não é só chutômetro. Nos últimos dez anos, a ciência foi além das associações óbvias como a que
acabamos de fazer. Sabe aquela moça que fica sempre de olho nas calorias das refeições porque tem
“tendência para engordar”? Comportamento também é assim. Centenas de estudos apontaram que
traços psicológicos, como impulsividade e capacidade de memorização, por exemplo, podem ser
afetados por fatores genéticos. Uma predisposição como essa faz muita diferença para quem
escolher carreiras na matemática ou na linguística, profissões que dependem da boa memória. Uma
pesquisa realizada no Centro de Genética Humana da Fundação Wellcome Trust, no Reino Unido,
indicou que mutações em certo gene do cromossomo 7 podem fazer com que você tenha
dificuldades na linguagem. Um problema de fala na infância pode contribuir para que uma pessoa
cresça tímida, resignada e submissa. Os indícios não param aí. A genética também faz variar a
maneira como o seu corpo aceita e regula certas substâncias químicas. Como a dopamina, o
neurotransmissor relacionado à sensação de prazer. É por isso que algumas pessoas são mais
vulneráveis a se viciar em drogas do que as outras. Com o álcool, acontece algo parecido. Em 2011,
a revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos publicou um estudo feito com mais
de 47 mil pessoas em vários países da Europa. Os autores analisaram os hábitos de consumo de
álcool nos voluntários e descobriram a existência de um gene ligado ao alcoolismo - o AUTS2.
Mas um gene sozinho não faz você gaguejar na hora de apresentar um trabalho na sala de aula
ou insistir em esvaziar o próximo copo de chope. Primeiro, por causa do livre-arbítrio, o argumento
certeiro da filosofia que representa a sua vontade de mudar seu destino, independentemente do que
está no seu DNA. Depois, porque seu código genético faz planos que podem nunca sair do papel.
Uma pessoa que nunca colocou uma gota de álcool na boca pode simplesmente ter o AUTS2
adormecido, graças ao ambiente em que viveu e às influências externas que recebeu.

O QUE VOCÊ APRENDEU


Em 1799, uma criança que trotava, farejava, rosnava e comia raízes foi encontrada em uma floresta
na França. O menino, que ficou conhecido como o “Selvagem de Aveyron” e aparentava ter entre 11
e 13 anos, tinha passado a vida toda isolado da sociedade, em meio aos lobos e cavalos. Mesmo sem
provavelmente ter tido contato com humanos adultos por pelo menos uma década, a primeira lição
que a criança aprendeu foi a mesma que a sua vida na cidade te ensinou: imitar é viver (essa
história até
virou filme em 1970: O Garoto Selvagem, de François Truffaut). Desde pequenos, enfim,
aprendemos observando nossas referências mais próximas. Descobrimos com os nossos pais (ou, na
falta de uma referência humana, com os animais mais próximos) como lidar com o mundo, tomar
decisões, dar nomes às coisas.
Para Freud, a primeira grande participação do seu pai na formação da sua personalidade foi
simplesmente estar lá. A presença dos pais é o suficiente para causar nos filhos uma angústia
inconsciente que vai definir seu comportamento, seus pontos fracos e até a sua sexualidade para
sempre. A essa altura, a ciência já não leva as palavras de Freud ao pé da letra. Mas algumas coisas
nunca mudaram, como a ideia de que o desenvolvimento da personalidade passa por várias fases na
infância. Os pais que reprimem a criança que está descobrindo os próprios órgãos sexuais podem
estar fabricando um adulto agressivo e imaturo. Até a maneira como um pai fala, gesticula e se
veste ainda faz diferença na vida de um menino. Um estudo realizado em 1991 com 20 mil crianças
nos Estados Unidos concluiu que aquelas cujos pais tinham o hábito de ler tiravam notas melhores.
Também faz sentido pensar na situação inversa. Seus pais podem virar referências que você rejeita.
Isso explica mães conservadoras que têm filhos liberais e moderninhos. São muitas as teorias sobre
a maneira como a criação influencia a personalidade. A maior parte delas só apareceu nos últimos
cem anos.
Antes de existir sociedade, os homens caçavam para sobreviver. A corrida pela gratificação
biológica - ou seja, matar a fome - era a principal motivação dos seus ancestrais. Agora, a gente não
quer só comida. Você precisa respeitar leis e conviver de forma pacífica com os outros, e tem outras
necessidades psicológicas, como reconhecimento na carreira e relacionamentos afetivos
duradouros. Viver em sociedade fez você ficar mais ansioso e inseguro em relação à forma correta
de agir e lhe deu vontade de descobrir mais sobre o seu “eu interior”. Graças aos neurônios-espelho
(os mesmos que fazem você sentir “vergonha alheia” ao presenciar uma situação embaraçosa
envolvendo outras pessoas), você pensa sobre seus pensamentos desde bem cedo e de uma maneira
bem mais complexa do que o seu ancestral da Idade da Pedra. Um dos motivos para isso ter
acontecido foi a mudança na relação entre pais e filhos que aconteceu de lá para cá.
Não precisamos voltar tanto assim no tempo. Até o século 18, por exemplo, pais eram,
literalmente, donos do destino dos filhos. Ninguém se importava muito com os possíveis efeitos
nefastos de maus-tratos, negligência ou autoritarismo na vida futura da criança. No século 20, John
Watson, o mesmo psicólogo que disse que era possível transformar uma criança em qualquer coisa
com as punições e os estímulos corretos, aconselhava os pais a não demonstrar afeto demais pelos
filhos. Isso poderia deixá-los mal acostumados e transformá-los em pequenos tiranos. A evolução
desse pensamento é o que deu origem aos livros e cartilhas que ensinam os pais a transformarem
seus filhos em pessoas empreendedoras ou mantê-los longe das drogas.

OUTROS TEMPOS, OUTROS LUGARES


Amar os filhos incondicionalmente é exclusividade da cultura ocidental moderna. É o que a psicóloga
Judith Rich Harris afirma no seu livro Diga-me Com Quem Andas. Ela conta a história de uma mãe e seu filho em
Khalapur, uma vila rural na Índia nos anos 50. Quando perguntada sobre o que queria que a criança fosse quando
crescesse, a mãe respondeu que sua opinião não faria diferença. O destino não estava nas mãos dela. Em Khalapur,
assim como em muitas outras tribos e comunidades isoladas, um bebê não é um “objeto de ansiedade”. Ou seja, os
pais não se preocupam tanto com o que pode dar errado na criação. Era mais ou menos assim com os nossos
antepassados também. Um filho recém-nascido não era o queridinho da mamãe, e sim um novo membro do grupo.
Em algumas tribos amazônicas, quem cria os pequenos são os primos e irmãos mais velhos. A formação da
personalidade simplesmente não importa.

Hoje, o sonho de quase todas as mães que você conhece é criar bem seus filhos. O investimento
começa cedo - elas conversam com as próprias barrigas e ouviram dizer que faz bem colocar música
clássica para o bebê que ainda não nasceu. Quando nasce, a criança vira o centro das atenções da
família. Se uma nova gravidez acontece, a mãe pode até se esforçar para não fazer a criança mais
velha se sentir rejeitada e enciumada, e tentar tratar todos os filhos do mesmo jeito. Mas não
adianta. Em 1996, o biólogo norte-americano Frank Sulloway liderou um estudo que mostra que
66% dos pais com mais de um filho têm seu favorito. A maior parte das mães admite e confirma
(menos a sua, claro).
É que crianças diferentes são criadas de jeitos diferentes. O menino tímido que não tem amigos
vai ser colocado na aula de futebol pelos pais preocupados em garantir sua sociabilidade. Já seu
irmão extrovertido e falante dará menos trabalho - e receberá menos atenção. Os primeiros traços
de personalidade que os filhos demonstram também mudam a vida dos pais. Uma pesquisa de 1994
feita pela Universidade da Pensilvânia mostrou que alguns pais que têm filhos autistas podem se
tornar um pouco indiferentes. Da mesma forma, o mais bonito dos irmãos tende a ser também o
mais mimado.
Se cada filho é tratado de um jeito diferente, faz sentido concluir que cada um cresce em um
ambiente diferente. Imagine os irmãos do parágrafo anterior. O mais retraído vive à sombra do
outro, que se comunica melhor e que faz bonito ao contar piadinhas na casa da avó no fim de
semana. O irmão extrovertido, por outro lado, tem de lidar com o fato de que os pais dão mais
atenção ao tímido. Duas realidades bem diferentes sob o mesmo teto. Frank Sulloway analisou a
ordem de nascimento de mais de 6 mil personalidades mundiais e concluiu o que o senso comum já
desconfiava: primogênitos são mais conservadores e independentes, caçulas são mais criativos e
revolucionários. É a Teoria dos Nichos, que diz que cada criança procura desempenhar um papel
diferente dos irmãos mais velhos no ambiente familiar.
Talento para o desenho, gosto pela leitura, identificação com valores religiosos e até a escolha
precoce da profissão - os pais e os irmãos até podem ter a ver com algumas decisões que você fez na
infância (as que duram até hoje e as que ficaram esquecidas). Mas, para a psicóloga americana
Judith Rich Harris, a coisa mais importante que seus pais fizeram por você foi escolher onde você ia
morar e estudar. É que foi no playground do prédio ou no pátio da escola que você conheceu seus
amigos. Essas relações, que aconteceram entre os seis e os 16 anos, moldaram a sua vida.
A história concorda. Desde que surgiu, a espécie humana precisou se unir para sobreviver. As
pessoas que mais deixaram descendentes foram aquelas que pertenciam aos grupos maiores e mais
fortes, principalmente as que ocupavam posições de destaque. A noção de grupo e o sentimento de
pertencimento passaram de pai para filho até chegar a você. Pense na sua infância e você
provavelmente se lembrará de que compartilhava muita coisa com seus amiguinhos, como a
preferência por um time (ou, pelo menos, o gosto pelo futebol). Pergunte à sua mãe e ela dirá
quantas vezes você deixou escapar um palavrão que aprendeu com os colegas.
Identificar-se com um grupo é uma ação natural. Uma pesquisa divulgada em 2012 concluiu que
bebês criam laços e formam amizades antes mesmo de começarem a falar. Pesquisadores da
Universidade Charles Sturt, na Austrália, acoplaram pequenas câmeras à cabeça de crianças por
alguns minutos para acompanhar de perto o ponto de vista delas. Usando o contato visual e
pequenos gestos e risadas, os bebês criaram jogos sociais tão sutis que só quem estivesse
observando bem de perto poderia perceber. Um dos bebês fingia que ia entregar um brinquedo ao
outro e o afastava no último segundo, quando o outro estava prestes a alcançá-lo. Outra criança
tentou confortar um bebê que parecia assustado oferecendo a ele um pedaço de pano que poderia
protegê-lo. Não é de hoje que a ciência tenta desvendar o mundo secreto dos bebês. Quase 20 anos
antes, as psicólogas Carol Eckerman e Sharon Didow observaram duas crianças de cerca de um ano
de idade em uma sala cheia de brinquedos, acompanhadas pelas respectivas mães. Apesar de nunca
terem se visto e de ainda não falarem, as crianças trocaram risadas, compartilharam brinquedos e
se tocaram. Interagiram muito mais entre si do que com as mulheres adultas presentes.
Isso não significa que um bebê não precise dos cuidados da mãe. Mas nos leva a acreditar que o
sentimento de pertencimento ao grupo pode substituir a dependência materna em casos extremos. A
psicanalista especializada em crianças Anna Freud (filha de Sigmund) estudou o comportamento de
seis crianças que passaram por um campo de concentração nazista. No princípio, os meninos - todos
eles órfãos entre três e quatro anos de idade - eram hostis e agressivos. Com o passar dos anos, o
grupo criou laços fortes de amizade e nunca mais quis se separar. Mesmo com o trauma do
holocausto, tornaram-se adultos normais e saudáveis.
Ok, já vimos como o grupo de amigos pode influenciar a formação da personalidade de uma
criança. Mas tem um problema aí. A maior parte de nós pertenceu a mais de um grupo durante a
infância. É interessante notar como misturar os amigos do colégio com o pessoal do condomínio e a
turma da escolinha de futebol não é uma coisa natural para a maioria das crianças. É que nosso
comportamento pode variar de um grupo para o outro. Imagine só uma família de imigrantes
chineses que veio para o Brasil com um filho pequeno. É bem provável que a criança se torne um
“pequeno brasileiro”, assimilando os hábitos e a cultura da nova pátria. E também é possível que,
algumas gerações mais tarde, a família já não preserve mais nenhum traço do tradicionalismo
asiático, além das características físicas.
A mudança nem precisa ser drástica. Sua personalidade pode virar outra coisa por muito menos.
Psicólogos da Universidade de Hong Kong notaram que estudantes chineses que falavam inglês
fluentemente pareciam muito mais extrovertidos e abertos a novas experiências quando usavam o
idioma. Se estivessem conversando em inglês com um estrangeiro, então, a nova personalidade
ficava ainda mais proeminente. Neste caso, o ajuste no comportamento veio por causa da imagem
que os chineses têm das pessoas que falam inglês – tenham elas a personalidade que for.
Opa, então agora complicou. Seu comportamento pode ter um fundo genético, pode ter sido
influenciado por alguma experiência inconsciente da sua infância, pode ser motivado pela
convivência com seu grupo de amigos de infância, e agora depende também do idioma que você
estiver falando? É exatamente isso. Ninguém disse que seria fácil entender você e todo mundo ao
seu redor. Mas as próximas páginas trazem bons palpites que podem ajudar a colocar alguns pingos
nos is.

POR QUE É TÃO DIFÍCIL TER DISCIPLINA?


João vai fazer vestibular neste ano. Ainda falta muita matéria para revisar, fórmulas para decorar e
problemas matemáticos para resolver, mas ele não consegue sair da frente do computador.
Ana está se achando acima do peso. Ela é bailarina e, no mundo da dança, manter a silhueta
alongada é fundamental. Mesmo assim, ela não resiste à tentação de comer sobremesa todos os
dias. No fundo, a dificuldade de concentração de um e a de seguir uma dieta da outra vêm do
mesmo problema: disciplina. Se depender dos livros de autoajuda, a solução também é a mesma:
força de vontade, autossugestão, persistência, pensamento positivo.
Manter o copo meio cheio não faz mal. E não foi a australiana Rhonda Byrne, autora do best-
seller O Segredo, que inventou a fórmula. Uma das primeiras vezes que se falou em pensamento
positivo foi nos anos 50. O escritor Norman Vincent Peale acreditava que é possível mudar o mundo
com a força da mente. A maior parte das teorias que apareceram depois recorre a argumentos
pseudocientíficos para tentar provar que um pensamento pode gerar resultados. Mas existem
estudos sérios também.
Em uma pesquisa de Harvard publicada em 2002, 670 homens de 60 anos fizeram exames de
saúde e testes de personalidade que indicavam se eram otimistas ou pessimistas. Oito anos depois,
pesquisadores concluíram que os que pensavam positivo tinham sistema imunológico mais
resistente a doenças pulmonares. Inclusive os fumantes.
Otimismo também faz bem para o coração. O Instituto Delfland de Saúde Mental, na Holanda,
acompanhou homens idosos durante 15 anos e percebeu que a incidência de infartos e derrames foi
menor entre os que pensavam no copo meio cheio. Não é só porque as pessoas que veem o lado bom
da vida tendem a ter hábitos mais saudáveis. Os otimistas se estressam menos - e, por isso, têm
sistemas imunológicos melhores. É que o estresse estimula a produção de cortisona, um hormônio
das glândulas suprarrenais que baixa as defesas do seu corpo. Mas o principal argumento dos que
defendem a força de vontade está no magnetismo. Segundo a Lei da Atração, base de livros como O
Segredo, um pensamento positivo cria um “campo energético” que literalmente atrai coisas boas.
Para a Física, isso é besteira. A energia liberada durante as sinapses não é suficiente para interagir
com outras energias do universo. Ou seja, na perspectiva da ciência, só a vontade de João de
desligar o computador para ir estudar não bastaria.
Em janeiro de 2012, o número de usuários da internet chegou a 2,1 bilhões, um terço da
população mundial na data. Só no Brasil, são quase 80 milhões de usuários, que ficam conectados
quase 70 horas por mês. É só uma média. Você certamente conhece alguém que passa mais de duas
horas por dia on-line. Por falta de evidências científicas, o vício da internet ainda não é uma doença
de verdade, de acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, a bíblia dos
profissionais da saúde mental. Mas não quer dizer que não precisemos nos preocupar. Na China,
14% dos jovens urbanos (ou 24 milhões de pessoas) abusam do tempo no computador. Cientistas
analisaram os cérebros de 18 chineses que passavam até 12 horas por dia em jogos virtuais, e
comparou com outros 18 que ficavam menos de duas horas na rede. O estudo revelou que algumas
regiões do cérebro dos viciados encolheram significativamente. Coisa de até 20%.
Os principais componentes sólidos do seu cérebro são a massa cinzenta e a matéria branca,
formada principalmente por mielina. É um tipo de gordura que envolve os axônios - aquela parte
mais comprida dos neurônios. A mielina está lá para melhorar a condução da eletricidade e ajudar a
coordenar melhor seus movimentos e pensamentos. Mas a distribuição de mielina é desigual - a
concentração é maior naquelas partes do cérebro que você costuma usar mais. Um bebê recém-
nascido só abre os olhos depois que a mielina em seu cérebro se depositou nos lugares certos. Um
idoso, cuja concentração de mielina decaiu, já não consegue se movimentar com a mesma agilidade
de antes. A análise do cérebro dos viciados em internet concluiu que há mais matéria branca no
hipocampo, área do cérebro responsável pela formação da memória, e menos na parte ligada a
funções cognitivas. Quanto mais antigo o vício, maior a redução. Quanto maior a redução, mais
difícil fica largar o computador. Isso pode explicar por que João e você não conseguem estudar.
E o problema da Ana? Nos anos 70, pesquisadores da Universidade de Stanford elaboraram um
teste para medir o autocontrole na infância. Era simples: a criança ficava sozinha em uma sala, de
frente para um prato contendo um marshmallow. Se aguentasse esperar uns minutinhos sem comer,
ganharia como recompensa outro marshmallow. O que você faria? Se você respondeu que não
perderia tempo e comeria o doce de uma vez, está com a maioria. Apenas um terço dos pequenos
conseguia esperar.
Mas esse experimento abrange algo bem mais importante que a vontade de comer doce. Os
pesquisadores acompanharam o desenvolvimento das crianças nos anos seguintes e fizeram uma
descoberta surpreendente: as crianças que se controlaram se deram melhor na vida: tinham mais
amigos e notas maiores no SAT (o Enem dos EUA). Ou seja: passar vontade pode ser mais eficiente
do que você imagina.
A tentação é o objeto de uma boa polêmica no mundo da psicologia. De um lado, acredita-se que
ela atrapalha a sua tomada de decisões e faz você escolher o caminho errado - ou seja, a compulsão.
Do outro lado, há quem acredite que a tentação fortaleça o seu autocontrole. É como se ficasse mais
fácil recusar um brigadeiro se você olhasse bem para o doce todos os dias na vitrine da padaria sem
jamais comprá-lo. O problema é que o seu comportamento pode mudar dependendo das
circunstâncias. Se você ouvir uma colega falando sobre o brigadeiro que ela comeu no dia anterior,
as chances de você comprar o doce na próxima vez que passar perto da padaria são maiores.
Um estudo da Universidade Northwestern (EUA) publicado em 2011 comprovou essa tendência.
Em um dos testes, a fidelidade de 49 homens comprometidos foi avaliada em duas situações. Na
primeira, eles precisavam olhar para imagens de estudantes atraentes supostamente solteiras
depois de terem assistido a um filme erótico. Na segunda, eles viram as fotografias depois de
assistir à gravação de um desfile de moda. Os homens do primeiro grupo olharam as fotos por mais
tempo, o que mostra que resistir a uma tentação é mais difícil quando você está em um “estado
visceral” (fome, sede, desejo sexual, por exemplo). Segundo os pesquisadores, as pessoas têm a
tendência de pensar que a razão sempre serve a interesses de longo prazo, e a paixão serve a
gratificações imediatas – algo como o anjinho em um ombro e o diabinho no outro. Então, quando
você está com fome ou excitado, sucumbir ao diabinho é o caminho mais provável. O problema é que
a tentação transforma o anjinho em outro diabinho. Com duas influências negativas, é bem mais
difícil resistir mesmo.
Em 2009, o New England Journal of Medicine publicou os resultados de um grande estudo sobre
as dietas, feito em Harvard. Mais de 800 pessoas acima do peso foram divididas em quatro grupos.
Cada grupo passou por uma dieta com diferentes concentrações de proteína, carboidrato e gordura.
No final do primeiro semestre, a média de perda de peso nos quatro grupos foi a mesma: seis quilos.
A parte boa é que não é a base da dieta que faz diferença, mas o número de calorias. Se você ingere
mais energia do que gasta, engorda mesmo. A má notícia é que, dois anos depois, a média de perda
de peso dos voluntários caiu para quatro quilos, no total. Sinal de que o autocontrole não é ilimitado.
A sua mente conspira para que você volte aos hábitos normais com os quais ela já está acostumada.
Seu corpo também.
Você precisa de energia para viver - e a sua principal fonte são os carboidratos que estão no
prato. Se a sua dieta é pouco calórica, o organismo busca outros combustíveis para funcionar
normalmente. É assim que ele consome gordura abdominal e deixa você mais magro. Mas se a dieta
for muito radical, seu corpo vai se reprogramar para que você tenha mais fome e fique ainda menos
satisfeito com a pouca comida que comer. Uma redução gradativa na ingestão de calorias faz muito
mais sentido - e evita que você ganhe mais quilos do que perdeu na dieta frustrada. É mais
complicado para quem já nasceu gordinho. Cientistas acreditam que até 70% da causa da obesidade
possa estar no seu código genético. Mas não é impossível.
Tanto no caso da concentração quanto no das dietas, a palavra-chave para o autocontrole parece
ser a motivação. Mudar a sua atitude significa mudar os seus hábitos - e, em muitos casos, os da sua
família e amigos também. Pensando assim, é muito mais importante arranjar um parceiro para
acompanhar você na dieta do que escolher a dieta em si. Um estudo da Universidade de Yale já
mostrou que casais que fazem dieta juntos tendem a perder mais peso do que pessoas solteiras.
Frequentar aquela cantina italiana que tem massas incríveis também não vai ajudar você a manter a
dieta.
Para ter autocontrole, é importante ter foco. João quer passar no vestibular, não ganhar um
Nobel. O objetivo de Ana é estar magra na apresentação da companhia de dança no final do ano, não
ser uma top model magérrima. Motivação, enfim, é a noção da existência do futuro. Você controla
seus impulsos porque, lá no fundo, sabe que eles têm consequências.

POR QUE DEIXAMOS TANTA COISA PARA A ÚLTIMA HORA?


Vovó já dizia: não deixe para amanhã aquilo que você pode fazer hoje. Sob a ameaça de ficar sem
sobremesa, você cedia e ia logo guardar os brinquedos e arrumar o quarto. Aí você cresceu. A
responsabilidade das suas obrigações é só sua, e as consequências também. Como não existe mais a
ameaça de ficar sem sobremesa, você deixa para depois o que já poderia ter feito ontem. É a
procrastinação - coisa que quase todo mundo pratica. Diferentemente dos preguiçosos, que fogem
do trabalho, os procrastinadores até gostam de se envolver em novos projetos, mas perdem a
empolgação inicial e passam a adiar as obrigações até o último minuto.
Enrolar pode até fazer bem, aliás. É o que acreditam pesquisadores da Universidade Nacional de
Singapura. Um estudo apresentado em 2011 sobre o tema concluiu que navegar na internet após
logos períodos de trabalho faz mais bem para a sua mente do que uma conversa com os amigos.
No experimento, 96 universitários divididos em três grupos precisavam fazer um longo exercício
de 20 minutos tentando encontrar todas as letras “E” em um texto de 3.500 palavras. Em seguida,
os voluntários ganharam novas orientações para os próximos 10 minutos: os estudantes do primeiro
grupo tiveram de fazer outra tarefa igualmente trabalhosa; os do segundo grupo poderiam usar o
tempo para descansar; os do terceiro poderiam usar a internet.
Em seguida, os pesquisadores propuseram outra tarefa parecida com a primeira. O desempenho
dos voluntários que usaram a internet foi 16% melhor que o dos que tiveram a folga de 10 minutos,
e 39% melhor do que os que não pararam um minuto de trabalhar. E os níveis de exaustão mental
também foram menores entre os membros do terceiro grupo. Um teste de produtividade também foi
aplicado em ambientes de trabalho, e o resultado foi parecido. A pausa para a navegação livre e não
relacionada ao trabalho é essencial.
Mas nem toda forma de procrastinação vale a pena, claro. A pesquisa apontou que o uso do e-
mail pessoal no trabalho pode afetar a produtividade de um jeito negativo, porque responder e
enviar mensagens escritas exige mais atenção do que ler notícias e assistir a vídeos. O psicólogo
Piers Steel, que pesquisa a enrolação há anos, descobriu que a maioria dos procrastinadores da
escola e do escritório vive com baixa autoestima e sentimento de culpa. Fora que você pode afetar
outras pessoas se enrolar para fazer a revisão do carro ou para pagar o plano de saúde.
A procrastinação pode ter a ver com o perfeccionismo e com o medo de errar. Se você acha que
vai ter mais tempo para se dedicar ao trabalho da faculdade no domingo, prefere se divertir na noite
de sexta e curtir o ócio no sábado. No fundo, é pura insegurança. Ou o fato de as recompensas pelo
cumprimento da tarefa não serem claras o suficiente, como a sobremesa que a sua avó ameaçava
tirar de você. Para Piers Steel, temos tendência a dar valor para o presente e para as gratificações
imediatas, como 5 minutos a mais de sono.
A procrastinação também pode ser causada pela falta de organização. Em The Now Habit, o
pesquisador Neil Fiore diz que os funcionários que passam tempo demais no escritório não
trabalham bem. Ao contrário do que o senso comum acredita, acumular tarefas longas e estabelecer
prazos distantes é quase garantia de correria nos momentos finais. É mais produtivo resolver
compromissos imediatamente e incluir períodos de folga na agenda.

A FORÇA DO PENSAMENTO NEGATIVO, E OS MALES DO PENSAMENTO POSITIVO


Durante os últimos 50 anos, a autoajuda tentou convencer você dos benefícios do pensamento
positivo. E mesmo quem não acredita não vê problema nisso: “se o pensamento positivo não ajuda,
também não atrapalha”, diz o senso comum. O mesmo senso comum vê o pessimismo com maus
olhos: a maioria considera que, sim, ele atrapalha. E faz mal.
Mas a ciência deixa claro que a realidade é bem mais complexa. Para começar, o seu pensamento
negativo pode ter nascido com você. De acordo com um estudo da Universidade de Michigan, a
maneira como você vê o mundo é afetada pela quantidade de neuropeptídeo Y (NPY) - uma
substância que atua na comunicação entre os seus neurônios. A pesquisa concluiu que o excesso de
NPY faz com que você tenha dificuldade em lidar com situações estressantes e assuma um
comportamento mais pessimista.
Mas o pessimismo tem seu lado bom: ele ajuda a antever o que pode dar errado. Imagine que
você é um controlador de voo. Acreditar que os aviões nunca vão colidir e descartar a hipótese de
um caos aéreo é o primeiro passo para o desastre. Em profissões como essa, relaxar pode ser fatal.
Não precisa ir para o trabalho todo dia imaginando que o pior vai acontecer, mas uma dose de
estresse pode ajudar. Em 2011, a Universidade de New South Wales, na Austrália, divulgou um
estudo em que defende os efeitos positivos do mau humor.
Segundo os pesquisadores, um pouquinho de negatividade faz você ficar mais atento e menos
influenciável. O que, na prática, significa que você toma decisões melhores e erra menos.
Se uma postura pessimista diante da vida pode ser boa, uma otimista pode ser má. Você já ouviu
que “as expectativas baixas evitam decepções”? É o que achava o filósofo alemão Arthur
Schopenhauer. Ele costumava dizer que o otimismo é a causa de todo sofrimento existencial. Um
estudo da Universidade de Waterloo, no Canadá, corrobora com a visão do filósofo: pesquisadores
de lá observaram que pacientes com autoestima baixa tendem a piorar quando são obrigados a
pensar positivamente. Schopenhauer vai mais fundo. Para ele, o desapontamento pode vir mesmo se
tudo der certo. É como o vazio que você sente ao terminar de ler um bom livro. A vida perde sentido
em curto prazo, até que você encontre uma nova motivação e entre novamente no ciclo. Do ponto de
vista do filósofo, o verdadeiro sentido da vida é aprender a lidar com o que deu errado.
Ou seja: sua personalidade pode tender mais ao otimismo ou ao pessimismo. Mas você pode
muito bem ser um otimista eternamente insatisfeito. Ou um pessimista de bem com a vida.

O SEGREDO DOS BEM-SUCEDIDOS


Mozart era um menino prodígio. Aos 3 anos, começou a tocar piano. Antes que pudesse encostar os
pés no chão ao se sentar no banquinho, já tinha composições próprias e colecionava apresentações
nos salões mais nobres da Europa. A primeira ópera completa veio aos 12 anos. Puro talento. Um
Mozart do mundo contemporâneo é o norte-americano Gregory Smith. Em vez das partituras, Smith
tem o dom de decifrar números e fórmulas complexas. Em 2003, ele se formou em matemática no
Randolph-Macon College e viajou o mundo inteiro levando bandeiras de causas humanitárias. E
você?
Para a psicologia moderna, você já nasceu com quase tudo o que precisava para virar um popstar
ou um gênio da matemática. E o que deu errado no caminho? Bom, talvez você não tenha se
dedicado o bastante. O psicólogo Anders Ericsson, que estuda o sucesso na Universidade da Flórida,
diz que o segredo é a transpiração, assim como no dito popular. Ericsson avaliou dezenas de pessoas
bem-sucedidas mundo afora e concluiu que, em todos os casos, a perfeição só vinha com a prática. E
o tempo médio de treino são 10 mil horas. Se você for um atleta ou um artista profissional, até que
não é tanto assim. Três anos e meio é o suficiente para quem pode passar oito horas por dia
treinando uma só habilidade. Mas se você quer aperfeiçoar um hobby - como tocar guitarra - e não
está disposto a gastar mais que uma hora por dia, prepare-se para passar os próximos 27 anos
ensaiando antes de tocar realmente bem.
A ciência tem uma boa explicação para a eficácia do treino duro. Lembra quando falamos sobre a
função da mielina na concentração? Olha ela aí outra vez: a mielina se acumula mais nos cérebros
das pessoas que treinam com afinco. Ou seja: a prática, por si só, tem o poder de alterar uma
característica da sua personalidade. O acúmulo de mielina indica que alguém naturalmente
dispersivo consegue mitigar essa tendência e se tornar mais focado. Disciplina gera disciplina - e, se
tudo der certo, algum grau de sucesso.
Treinar significa errar também. E isso é fundamental. Quando você erra, seu cérebro emite dois
sinais rápidos. O primeiro funciona como uma mensagem de erro do seu computador - ele serve
para avisar que algo não saiu como o esperado. O segundo é uma tentativa imediata de identificar e
corrigir a pane. Tudo isso acontece em menos de um segundo. Depois disso, o seu cérebro emite
uma espécie de relatório de erro, essencial para que a falha não aconteça novamente. Estudos
mostram que essa habilidade de impedir novos erros é mais proeminente nas pessoas que têm visão
positiva sobre a própria inteligência - ponto para os otimistas.
Bom, agora mesmo dissemos que você nasceu com quase tudo o que precisava para se tornar um
popstar como Mozart. Quase. Mozart era filho de um professor de música, tocava o dia inteiro e
desde cedo demonstrava habilidade para identificar sons sem a ajuda de referências como um
instrumento musical. É que ele tinha ouvido absoluto - uma habilidade compartilhada por outros
figurões da música, de Beethoven a Hermeto Pascoal, que conseguem escrever música usando só a
imaginação. Se Mozart conversasse com você, poderia descrever a melodia da sua frase em uma
partitura, por exemplo. A ciência sempre acreditou que o ouvido absoluto era o verdadeiro talento
musical. Mas foi só recentemente que pesquisas mostraram que até mesmo essa habilidade - antes
considerada raríssima - pode ser aprendida. Desde que se comece cedo.
É muito mais fácil acumular mielina na infância - não por acaso, é a época da vida em que você
aprende mais coisas ao mesmo tempo. As influências externas - da família e dos amigos - são
essenciais para configurar uma boa autopercepção nesse período. A criança que começa a estudar
matemática avançada cedo demais precisa ter certeza do caminho que escolheu. Afinal, são muitos
anos de prática pela frente até a perfeição. Com menos de 2 anos, o geniozinho Gregory Smith já
resolvia problemas de álgebra e memorizava trechos completos de livros. A inteligência do menino
pode ter sido motivo de satisfação dos pais, que o matricularam em uma escola para crianças
especiais na Flórida. Mas são as próprias escolhas dele que impressionam mais: Gregory fundou
uma organização para promover os princípios da paz e da tolerância entre os jovens mundo afora,
participou de congressos políticos e encontros da ONU, e foi indicado ao Nobel da Paz quatro vezes
antes dos 16 anos.
Se você passou da idade, não há motivo para desanimar. Até dá para aprender a jogar um novo
esporte, falar um novo idioma ou tocar um novo instrumento se você começar agora. Mas as
chances de você ser um craque no rúgbi, raciocinar com rapidez em romeno e tocar bem a gaita de
fole depois dos 30 é bem menor, a menos que seja por uma boa causa. Sem uma boa motivação - a
palavra-chave que você já sabe por que é importante -, fica difícil ter autocontrole e mais fácil
desviar do foco.
Não queremos enganar ninguém: sorte também é importante. Se não fosse o fato de estar na
hora certa, no lugar certo, o baterista Ringo Starr nunca teria sido o substituto de Pete Best,
demitido na última hora antes do estouro dos Beatles. O acaso também garantiu o sucesso do
bacteriologista Alexander Fleming. Em 1928, ele saiu de férias e deixou destampada uma placa com
uma colônia de bactérias no laboratório. A colônia mofou e as bactérias morreram. Em vez de jogar
tudo fora, Fleming decidiu analisar o mofo – e descobriu que um fungo raro liberava uma substância
que inibia o crescimento das bactérias inofensivas aos seres humanos e letais contra bactérias
infecciosas. Era a penicilina.

POR QUE TODO MUNDO MENTE TANTO


Não é só você. O babuíno Paul também mente de vez em quando. Ele foi flagrado várias vezes por
primatologistas pregando peças em outros animais da mesma espécie, no sul da África. Uma de suas
trapaças recorrentes era a seguinte: sempre que um outro animal conseguia arrancar uma raiz da
terra nos arredores de onde ele vive, Paul gritava fingindo que estava sentindo dor, como se tivesse
apanhado. O grito atraía logo a sua mãe, que acreditava na lorota e expulsava o animal. Assim, Paul
podia comer a raiz sozinho. O caso apareceu em um estudo publicado nos anos 80 que reunia mais
de 250 casos de mentiras no mundo animal. O motivo da enganação é o clássico: luta pela
sobrevivência.
Um chimpanzé que encontra comida e não conta para o resto do bando está aproveitando a
oportunidade de se fortalecer perante os outros - e conquistar mais espaço no grupo. Uma presa
terá mais chances de sobreviver na batalha contra um predador se souber mentir bem. Camaleões
se camuflam no ambiente para enganar outros. Insetos e lagartas se misturam com os troncos e
folhas das árvores para viver mais tempo. Até as borboletas às vezes se misturam a outras de outra
espécie para iludir pássaros. Mas nenhuma outra espécie é tão convincente na hora de manter uma
farsa do que a humana, que mente o tempo todo.
Tanta desenvoltura se deve a muito treino (mais de 10 mil horas de mentiras?). Você aprendeu
cedo - e isso foi importante para o desenvolvimento da sua personalidade. Contar para o colega o
que fazia do seu pai melhor que o dele era uma maneira de satisfazer um desejo seu. Mas nem toda
mentira que as crianças contam é inocente. A situação do babuíno Paul poderia ter acontecido com
uma criança. Um menino que coloca a culpa no irmão depois de quebrar um vaso de porcelana está
expressando o desejo de ver o outro castigado. A competição é natural e vai ajudar a definir o futuro
das crianças. E provavelmente, graças ao famoso conjunto família-sociedade-amizades-genética, a
mentira fará parte desse futuro. Uma pesquisa feita nos Estados Unidos mostrou que 93% das
pessoas mentem com regularidade. No Brasil, certamente o número é parecido.
É bem provável que, a esta hora, você já tenha mentido hoje. Um estudo feito no Reino Unido em
2011 mostrou que mulheres contam três mentiras por dia. Ao todo, são 1.092 lorotas em um ano.
Achou muito? Saiba que os homens mentem o dobro. As histórias furadas mais manjadas são as
clássicas “não há nada errado, estou bem”, “não foi tão caro”, “estou com dor de cabeça”, “não,
você não fica gorda nesta roupa”.
Não são mentiras com o intuito de fazer o mal, mas atalhos. Atalhos para evitar aborrecimentos
ao longo do dia, como ter de explicar por que você está de cara amarrada, confessar que talvez
tenha gasto mais dinheiro do que deveria ou deixar outra pessoa triste com o seu julgamento real
sobre a calibragem dos pneuzinhos dela. Mentimos para poupar energia.
Sabe aquele seu ancestral da Idade da Pedra? Na época dele, já era comum trapacear pelos
motivos que a gente conhece: sobrevivência e prestígio no grupo. As mentiras que você pode ter
contado hoje também é responsabilidade dele. A diferença é que, se ele fosse flagrado, poderia ser
banido do grupo e ficar bem mais vulnerável aos predadores e aos grupos rivais. Se alguém
descobrir que você não conhece bem aquela banda que você jurou ser fã, não será o fim do mundo.
Enquanto a maior parte dos animais dá um jeitinho de distorcer a realidade quando se encontra em
uma situação de perigo ou de disputa por um parceiro sexual, a espécie humana mente sem parar,
só porque pode. Mas pode mesmo?
O psicoterapeuta americano Brad Blanton acha que não é por aí. Para ele, nem os seus ancestrais
e nem ninguém pode livrar você da responsabilidade de ter contado uma mentira. Em seu livro mais
famoso, Blanton propõe a “honestidade radical”. É simples: você deixa de mentir para si mesmo
sobre suas fraquezas e suas capacidades, e fica mais fácil contar apenas a verdade para os outros.
Blanton acredita que a eliminação das mentiras não faria a sociedade entrar em colapso, mas criaria
relações mais honestas entre as pessoas. Seja como for, a única certeza sobre um mundo sem
mentiras ainda é uma só: ele é uma utopia.

PSICOPATAS: MENTIROSOS POR NATUREZA


A psicoterapia confirma: suas mentiras entregam verdades sobre a sua vida. Dá para dizer muito sobre uma pessoa a
partir do desconforto psicológico que ela sente ao sustentar uma história falsa. Envergonhar-se depois de aumentar
um ponto em um conto é sinal de que você consegue distinguir o certo do errado e de que, de alguma forma, valoriza
a verdade. Mas quando uma pessoa não expressa nenhum sentimento de culpa depois de inventar uma lorota, a
coisa é mais grave. A capacidade de mentir compulsivamente e sem culpa é uma das principais características de um
psicopata. Para a medicina, quem sofre do Transtorno de Personalidade Antissocial é incapaz de demonstrar empatia.
Isso quer dizer que um psicopata não consegue se colocar no lugar do outro. Assim fica mais fácil entender as outras
características típicas dos psicopatas, como egocentrismo exagerado, incapacidade de demonstrar amor e baixa
tolerância à frustração. Há 69 milhões de psicopatas pelo mundo, 5 milhões no Brasil. Um estudo realizado em 2011
pela Universidade de Wisconsin teve conclusões importantes. Os pesquisadores descobriram que o cérebro dos
psicopatas apresenta menos conexões entre o córtex pré-frontal ventromedial - área ligada aos sentimentos de culpa
e empatia - e a amígdala - relacionada ao medo e à ansiedade. Em outras palavras, há uma falha na comunicação
entre essas duas partes do cérebro que ajudam a regular o comportamento social.
O neurocientista James Fallon, da Universidade da Califórnia, descobriu que tinha quase tudo para se tornar um
psicopata. Por acaso, ele percebeu que tinha em comum com alguns assassinos em série uma falha na função do
córtex órbito-frontal (região associada com a tomada de decisões e conduta ética). O que o desviou do caminho da
psicopatia, segundo o próprio, foi um outro ingrediente: uma infância psicologicamente saudável.

PERSONALIDADES SEDUTORAS
Imagine a seguinte situação: você teve um dia longo e cansativo no trabalho. Minutos antes do
expediente acabar, recebe uma mensagem de um grande amigo convidando para sair. Os motivos
para você recusar o convite são muitos: é quarta-feira; o bar fica longe da sua casa, o que vai fazer
com que você precise pegar um táxi para voltar; no dia seguinte, você tem uma reunião importante
e precisa descansar. Também há razões para você aceitar o convite: já faz
algum tempo que você não se diverte; o bar é exatamente aquele que você sempre quis ir e nunca
teve oportunidade. Faria alguma diferença se o seu amigo dissesse que toda a turma, inclusive
aqueles colegas que nunca aparecem, já confirmou presença? E se ele prometesse te dar uma
carona para a casa cedo e ainda te pagasse uma cerveja? A persuasão requer técnica. Além de
prever reações, ter uma argumentação infalível e saber dizer exatamente o que o outro quer ouvir,
você precisa ir além. Um brinde, como a cerveja grátis que o nosso personagem hipotético ganharia
caso aceitasse o convite, pode ser o suficiente. Nos próximos parágrafos, você vai ver algumas
dessas técnicas. Mas antes de aprender como fazer amigos e influenciar pessoas, você precisa
aprender por que nos deixamos levar pelas pessoas. A primeira lição é tão inacreditável quanto
simples: pessoas populares sabem ler mentes.
Pelo menos é essa a conclusão de um estudo feito nas universidades de Oxford e Liverpool, na
Inglaterra. Depois de terem o cérebro analisado por meio de ressonância magnética na
Universidade de Liverpool, 40 voluntários da mesma faixa etária e escolaridade tiveram de fazer
uma lista com todas as pessoas com quem haviam se envolvido socialmente na última semana. Os
que tinham mais amigos ou haviam conhecido mais pessoas novas tinham mais volume no córtex
órbito-frontal, parte do cérebro que regula as habilidades sociais e a capacidade de se colocar no
lugar da outra pessoa.
Os populares também se deram melhor em tarefas de mentalising, como identificar o estado
emocional das pessoas só de olhar para suas fotos. Basicamente, isso significa que as pessoas que
têm muitos amigos têm mais sensibilidade para ler os sinais que os outros dão e entender suas
emoções. Essa habilidade é o ponto de partida para um comportamento persuasivo. Mas não é o
único. Cientistas já desconfiavam que a chave para a sua capacidade de se deixar levar também
pudesse estar no cérebro. Para identificar as regiões relacionadas com o conformismo, os
pesquisadores das universidades de Nova York, Aarhus e College London usaram ressonâncias
magnéticas para medir os volumes das áreas cerebrais de 28 participantes. Cada voluntário teve de
avaliar 20 músicas com notas de 1 a 10. Então, os cientistas pediram que os voluntários avaliassem
novamente a lista, depois de ouvirem a opinião de um crítico especializado sobre cada música. Na
análise das ressonâncias magnéticas, percebeu-se que a quantidade de massa cinzenta no córtex
órbito-frontal lateral – região do cérebro associada aos processos cognitivos e à tomada de decisões
– era ligeiramente menor nas pessoas que mudaram de opinião na segunda avaliação.
Essa diferença levou os cientistas a concluírem que os sinais de conflito social também estão
associados a esta região do cérebro – e que mudar de opinião é uma questão estrutural e genética.
Não foi a primeira vez que a ciência mostrou que algumas pessoas nasceram para ser
manipuladas. Um estudo da Universidade Estadual de Montclair, nos Estados Unidos, indicou que
pessoas ambidestras são mais fáceis de persuadir. A vulnerabilidade pode estar ligada ao tamanho
do corpo caloso (uma estrutura que fica entre os dois hemisférios do cérebro), maior entre os
ambidestros. Um corpo caloso grande aumenta a comunicação entre os dois lados do cérebro - e
também a maneira como a pessoa reage aos argumentos dos outros. Apesar dos indícios da
genética, o conformismo e a persuasão ainda são temas obscuros e carregados de subjetividade,
principalmente quando analisamos a função do ambiente. Imagine que o sujeito do primeiro
parágrafo resolveu aceitar o convite do amigo e foi, em plena quarta-feira, para o bar. Lá, conheceu
uma moça morena e tímida, por quem se interessou.
Mas o amigo não aprovou a escolha e o aconselhou a puxar conversa com outra mulher no bar,
uma loira estonteante, estilo mulher fatal. A essa altura, você já conhece o nosso personagem o
suficiente para supor que ele vai se deixar levar pelos argumentos do outro e anular a própria
vontade mais uma vez.
Esse comportamento é mais normal do que você imagina. Uma pesquisa da Universidade de
Edimburgo mostrou que tanto homens quanto mulheres escolhem seus parceiros potenciais
copiando as escolhas das outras pessoas - e preferem ficar com as opções mais óbvias (a loira fatal,
por exemplo). No teste, 80 alunos foram convidados a assistir vídeos com encenações de encontros
entre homens e mulheres. Alguns desses encontros foram bem-sucedidos, outros não. Os voluntários
deveriam escolher, entre as pessoas mostradas nos filminhos, aquelas com as quais imaginavam se
relacionar. E não é que a maior parte dos alunos escolheu os homens e as mulheres que faziam parte
dos casais que protagonizaram encontros bem-sucedidos? Ou seja, foram mais persuadidos pelas
encenações do que pelas pessoas. Segundo os cientistas, os seres humanos tendem a seguir o fluxo
do grupo social em certas situações, assim como os pássaros que voam em bando e os peixes que
nadam em cardumes. Você pode imaginar como isso faz sentido se voltar no tempo e se lembrar do
seu grupo de amigos na infância. Ser igual aos outros era mais importante para você do que ser
diferente e único. Mais uma vez, herança dos seus antepassados, que preferiam se destacar no
grupo pela força bruta do que por qualquer elemento que o identificasse como o “estranho”. Quem
não tinha condições de conquistar prestígio se virava como podia: misturando-se aos outros e
seguindo o líder.
Essa tendência de fazer o que o resto do grupo está fazendo, sem pensar, tem nome: “efeito
manada”. O comportamento foi formalmente identificado nos anos 50 pelo psicólogo norte-
americano Solomon Asch. Em uma série de experimentos, ele reuniu grupos de pessoas para as
quais mostrou muitas linhas de comprimentos
diferentes desenhadas em um cartão. Depois, perguntou aos grupos qual era a mais longa. A
armadilha é que todas as pessoas de cada grupo haviam sido orientadas para escolher a resposta
errada. Menos uma. Em um terço dos casos, a pessoa acabava concordando com o resto do grupo.
Um efeito parecido acontece quando nossa opinião entra em conflito com a de alguém que está em
uma posição de
poder. Por isso, é mais comum - e mais inteligente - acatar as decisões de alguém que está
hierarquicamente acima de você do que resistir e contestar. Assim como faz sentido que pessoas em
posição de poder se sintam privilegiadas.
O resultado curioso de uma pesquisa realizada pela Universidade Cornell em parceria com a
Universidade de Washington mostrou que quem ocupa cargos de destaque e responsabilidade se
acha, inclusive, mais alto do que realmente é.
Há uma linha tênue entre o conformismo e a intimidação. Pessoas emocionalmente vulneráveis
são mais facilmente convencidas de que opiniões em que antes não acreditavam estão certas. E não
há nada que deixe o seu cérebro mais vulnerável do que a surpresa. Como você já sabe, a palavra
final quando você tem de tomar uma decisão é do córtex pré-frontal, responsável pelo raciocínio
complexo. Quando você é pego desprevenido (em um assalto, por exemplo), seu cérebro ignora toda
a burocracia e delega a função de decidir o que fazer para outras áreas. Era assim que os
comunistas faziam com os soldados norte-americanos na época da Guerra da Coreia. Com torturas
físicas, os soldados eram intimidados e submetidos a um processo intensivo de sugestionamento que
você talvez conheça como lavagem cerebral, até serem convencidos a mudar de lado na batalha. A
propaganda não tortura, mas também usa armas eficientes para tentar convencer você a comprar.
Um experimento realizado em junho de 2010 em Laguna Beach, costa oeste dos EUA, levou cinco
atores a viver fingindo que eram uma família rica e feliz. Durante quatro meses, pai, mãe e filhos de
mentirinha fizeram propagandas de carros, roupas, perfumes, joias e várias outras coisas para os
vizinhos sem que eles percebessem. A estratégia funcionou, e os habitantes de Laguna Beach
passaram a comprar e falar mais sobre os produtos anunciados pela família falsa. Quando a
encenação acabou, as 200 pessoas que interagiram com os atores nem sequer se aborreceram.
Não precisa se assustar com a sua própria vulnerabilidade. Também existe uma receita para que
você caia menos na lábia alheia. Quanto mais redes cognitivas o seu cérebro tiver, menos
manipulável você fica. Procure desenvolver sua criatividade, aprender coisas novas, ler e escrever
mais. Exercitando essas habilidades, você se fortalece mais para acreditar menos nos planos
mirabolantes dos seus amigos influenciadores - e, de quebra, nas promessas de políticos
persuasivos.

OS INFLUENCIADORES DE PESSOAS
A ciência do comportamento mapeou as táticas que as pessoas mais persuasivas usam no dia a dia para conseguir o
que querem. Veja algumas.

O VENDEDOR
Os melhores vendedores imitam a linguagem corporal do cliente quando falam com ele. Oferecem várias opções, mas
não mais do que dez. Aproveitam-se do “efeito manada” e dizem como o produto fez sucesso com outros clientes.
Dão informações “exclusivas”. Dizem que o produto “está para acabar”, o que faz o comprador valorizar mais a
oportunidade. Oferecem um desconto, mas obedecem a um limite rígido para não saírem no prejuízo.

O COLEGA
Os persuasivos não medem esforços para conquistar a confiança dos colegas de trabalho - já que isso será útil no
futuro. Para tanto, usam muito a tática do morde-e-assopra: falam de um pequeno defeito que você tem, depois
tecem loas a uma grande qualidade.

O SEDUTOR
Vista roupas que favoreçam seu corpo. Se você é homem, provoque sua pretendente com perguntas curiosas. Elogie,
mas não demonstre interesse demais. Ela vai ficar confusa - e mais interessada. Se você é mulher, olhe nos olhos do
seu alvo. Tome iniciativa antes e surpreenda falando sobre um assunto inesperado.

O CÃO SEM DONO


Na hora de pedir um favor, falam sem parar para não dar a oportunidade de serem interrompidos. Justificam-se muito
- sabem que é mais fácil obter um favor quando há um motivo sólido. Antes de pedirem um favor muito grande,
pedem algum menor e mais bobo, como teste.

POR QUE FALAR MAL DOS OUTROS É TÃO BOM


Você está com fones de ouvido no elevador. Bem naquele intervalo de silêncio entre uma música e
outra, acaba ouvindo um pedaço da conversa entre duas moças. Aparentemente, uma está contando
para a outra sobre como flagrou a traição do namorado. Parece bem interessante, mas antes que
você saiba como a história acaba, outra música começa alta no seu fone. O que você faz? Prefere
imaginar sozinho a resolução do caso ou abaixa o volume sem ninguém perceber para ouvir mais um
pedacinho da conversa?
Não precisa ficar constrangido. E caso você seja homem, não adianta fingir que não se identifica
com a fofoca só porque ela seria uma característica feminina. Pesquisas mostram que eles fofocam
mais com suas parceiras e elas gostam mais de espalhar mexericos com as amigas. Fato é que os
dois gêneros são igualmente fofoqueiros. Todo mundo, enfim, gosta de ouvir uma boa história,
principalmente quando estão em jogo informações negativas (como a traição do namorado da moça
do elevador). Foi a essa conclusão que chegaram pesquisadores da Universidade Northeastern, nos
EUA, em 2011. Os voluntários viam fotos de pessoas desconhecidas e ouviam histórias sobre elas –
algumas bem cabeludas, outras monótonas.
Aí, os pesquisadores fizeram os participantes usarem um estereoscópio – um instrumento que faz
você ver uma coisa diferente com cada olho. De um lado, via-se uma foto de um objeto neutro
qualquer. Do outro, a foto das pessoas com histórias cabeludas. Quando cada olho vê uma imagem
diferente, o cérebro é obrigado a decidir em qual das duas vai prestar mais atenção. Qual das
imagens você acha que atraiu mais a atenção dos
voluntários? A das pessoas, claro. Quanto mais negativa a fofoca, por mais tempo a foto era olhada.
A explicação é biológica e nos remete à lei da selva. Se você conhece a má fama de um inimigo e
já sabe de que tipo de atrocidades ele é capaz, o seu cérebro fica mais alerta aos movimentos dele.
Imagine só como seria se, na continuação da situação do primeiro parágrafo deste capítulo, as
portas do elevador se abrissem e o suposto namorado traidor entrasse.
Ok, isso explica por que você gosta de saber mais sobre a separação daquele casal famoso ou
sobre a estudante bêbada que virou hit no Youtube, mesmo que nenhuma dessas situações tenha
influência na sua vida. Mas e quando chega a sua vez de dar uma opinião sobre a vida alheia? É
melhor ainda. De acordo com pesquisadores da Universidade de Staffordshire, falar mal dos outros
faz você se sentir bem sobre você mesmo. A conclusão – que, confesse, você já sabia – veio depois
que os voluntários precisaram fazer comentários de uma pessoa fictícia e elaborar um relatório
sobre a autoestima em seguida. Até quando os mexericos vêm sem maldade (como descrever o
cabelo de uma pessoa sem dizer se acha feio ou bonito), a autoestima melhora em até 5%.
O psicólogo Frank T. McAndrew é um grande pesquisador da fofoca no mundo científico e afirma:
você não é o primeiro da sua espécie chegado em uma conversa mole sobre a vida dos outros. Para
ele, a vida nas pequenas tribos, em que o clima de competição pelo prestígio era pesado, fez com
que nossos ancestrais adquirissem uma habilidade bem especial: ouvir mais do que falar. Observar
as pessoas ao seu redor (e decorar os pontos fracos delas) deixa você em vantagem em caso de
disputa declarada. Foi assim que surgiu a intriga.
Mas o que servia para ressaltar as competições também funcionava na hora de criar laços entre
as pessoas. Pense em um reality-show como o Big Brother. A maior parte das edições brasileiras
trouxe exemplos de alianças para fazer “o mal” (no caso, combinar votos e tirar outros participantes
da casa). Mesmo quando o público reprova a aliança (votando seguidamente pela eliminação de
integrantes da panelinha), os grupos permanecem unidos. McAndrew confirma: estamos sempre
dispostos a espalhar notícias ruins sobre nossos inimigos, assim como gostamos de ouvir coisas boas
sobre os amigos.
O efeito terapêutico é mais forte quando a fofoca aparece para ajudar os outros. Você pode ficar
bem aliviado se contar para o seu chefe que seu colega de trabalho tem embolsado dinheiro da
empresa. Um estudo da Universidade de Berkeley concluiu que, além de fazer bem, a fofoca cumpre
um papel de manutenção da ordem por meio da crítica. A simples ameaça de ser alvo de fofocas
negativas faz com que você preste mais atenção nos seus atos. Se você não sentisse medo de ser
flagrado e não se preocupasse com as opiniões alheias, provavelmente teria atitudes menos
louváveis – e o corrupto da empresa poderia ser você.

ESSA MINHA TIMIDEZ


Imagine-se de volta à infância. A professora chama o seu nome e você não tem outra opção a não ser
levantar, caminhar devagar até a frente da sala e começar a falar sobre o seu trabalho. Parece fácil.
Aí você se lembra da possibilidade de tropeçar - nas próprias pernas e nas palavras. A ansiedade
embrulha o seu estômago e embaralha o seu raciocínio. Não tem mais jeito. Tudo o que você ensaiou
fugiu do seu pensamento, e você vai ter de improvisar. Então você se lembra de que é um péssimo
improvisador - e estraga tudo.
Anos depois, recordar o episódio traumático da infância e reviver a péssima sensação da
humilhação pública faz com que você também perca o fio da meada em uma reunião profissional ou
em um trabalho da faculdade. Entre a possibilidade de se humilhar novamente e se calar, a segunda
opção parece bem mais tentadora. Todo mundo é ou já foi tímido, pelo menos em certas
situações. Mas, para uma parte das pessoas, é bem mais difícil superar a timidez - principalmente
para quem já nasce tímido.
Usando imagens de ressonância magnética, pesquisadores da Universidade de Vanderbilt, nos
EUA, descobriram que algumas pessoas que se diziam tímidas tinham falhas em duas regiões do
cérebro – a amígdala e o hipocampo. No experimento, adultos tiveram de ver imagens de pessoas
desconhecidas repetidas vezes. Entre as pessoas comuns, a atividade cerebral na amígdala e no
hipocampo ia diminuindo à medida que as imagens iam se tornando familiares. Mas, no caso dos
tímidos, a atividade não diminuiu. Segundo os pesquisadores, isso indica que o problema dos
tímidos pode ser a incapacidade de se familiarizar com pessoas e situações. O resultado também
pode estar relacionado à síndrome de ansiedade social, problema de medo crônico que, nos EUA,
afeta 10% da população.
Em um estudo bem parecido, um pesquisador da Universidade San Raffaele, em Milão, mostrou
uma série de fotografias a 49 crianças. Nas imagens, apareciam pessoas com diferentes expressões
faciais, e as crianças tinham de tentar identificar cada uma delas. As crianças consideradas mais
tímidas tiveram maior dificuldade em decifrar expressões neutras e raivosas. Isso mostra que a
timidez está relacionada com uma certa inaptidão social. Crianças que não conseguem identificar o
que diz a linguagem corporal de outras pessoas tendem a ficar na defensiva e chegam a demonstrar
sintomas de ansiedade.
Judith Rich Harris defende que os acontecimentos mais importantes na hora de definir a sua
personalidade acontecem entre os seis e os 16 anos, no ambiente em que você se relaciona com os
seus amigos. Se uma criança extrovertida e falante dessa faixa etária se muda para uma nova cidade
e vai estudar em uma escola em que não conhece ninguém, a chance de ela se isolar é grande. A
impopularidade na infância pode causar uma sequela incurável na autoestima de uma pessoa,
principalmente se o indivíduo em questão estiver fora dos padrões estéticos aceitos pela maioria.
Uma pesquisa feita com 1.520 crianças e adolescentes nos Estados Unidos mostrou que o índice de
autoestima entre pessoas acima do peso não só cai significativamente entre os nove e os 14 anos
como isso vem acompanhado de sentimentos como solidão, tristeza e ansiedade.
A internet é o reduto dos tímidos. Em 2011, um projeto da Escola de Economia e Ciências
Políticas de Londres entrevistou 25 mil adolescentes em 25 países europeus e descobriu que 45%
dos jovens se sentem mais confortáveis ao se expressar pela internet do que olhando nos olhos de
outras pessoas. Teclar em um serviço de mensagem instantânea dá aos tímidos a liberdade de falar
sobre assuntos que poderiam não ser abordados em uma conversa cara a cara. A opinião dos jovens
europeus se reflete nos números. Um estudo da Universidade de Windsor, no Canadá, mostrou que
tímidos passam até 30 minutos a mais no Facebook do que não tímidos. Mas faz bem?
De acordo com uma pesquisa da Universidade Cornell, sim. Os resultados do estudo de 2010
mostraram que os voluntários que passaram três minutos checando seu perfil revelaram maior
autoestima do que quem não acessou a rede social. Mas outros dados divulgados em 2011 pela
Universidade de Waterloo, no Canadá, indicam que o efeito positivo das interações nas redes sociais
não acontece em quem já tem problemas de autoestima. Aliás, pode até piorar.
Os pesquisadores perguntaram a voluntários como eles se sentiam em relação ao Facebook. Os
que disseram ter encontrado na ferramenta um consolo para o desconforto das relações sociais
eram também os que postavam mais comentários com visões negativas sobre a vida. Por se sentirem
mais confortáveis em compartilhar na internet seus sentimentos e ideias, as pessoas acabam
inundando o ambiente virtual dos amigos com comentários pessimistas. É que boa parte dos nossos
amigos no Facebook são, na verdade, meros conhecidos – e não se sentem na obrigação de nos
aconselhar ou consolar. Por outro lado, no mundo off-line as pessoas que ficam constrangidas
facilmente são consideradas mais generosas e confiáveis, segundo os resultados de um estudo
publicado no Journal of Personality and Social Psychology em 2011.
O psicólogo Jerome Kagan, um dos maiores estudiosos do mundo sobre o tema, acompanhou o
desenvolvimento de 500 crianças com testes periódicos ao longo de nove anos. A pesquisa também
revelou o lado bom da timidez: as crianças tímidas eram mais sérias, cuidadosas, sensíveis e alertas
que as desinibidas. A conclusão é que ser tímido não é exatamente ser fechado ao mundo exterior.
Muito pelo contrário. É ser sensível demais a ele. Alguns especialistas preferem usar a palavra
“reativo” no lugar de “tímido”. Uma pessoa mais fechada seria, na verdade, mais “reativa” ao
ambiente - mais sensível a novas experiências. Essa sensibilidade em excesso leva à introspecção - o
tímido prefere o conforto de viver dentro da própria cabeça que o incômodo de enfrentar o mundo
exterior. Para alguns especialistas, essa característica torna os tímidos melhores cientistas,
escritores e pensadores. Talvez não seja à toa que muitos gênios tenham em comum uma
personalidade mais acanhada.
O resultado principal da grande pesquisa de Jerome Kagan, no entanto, não surpreendeu: dois
terços dos bebês que haviam mostrado sinais de timidez quando mais novos permaneceram no time
dos tímidos. A “cura” da timidez não tem fórmula. A terapia pode identificar a causa de uma fobia
social e atenuar seus efeitos, deixando a vida prática mais fácil. Mesmo assim, é baixo o número de
pessoas que considera buscar ajuda médica para se livrar da timidez. Uma boa parte dos tímidos
simplesmente não vê problemas em falar pouco e observar mais. O problema pode estar na
concepção de que é preciso ser extrovertido para ser normal.

AUTISTAS
As crianças tímidas acham complicado diferenciar uma pessoa com expressão de cansaço de uma outra com raiva.
As autistas podem nem distinguir uma pessoa de um objeto. Quando você vê o rosto de alguém, uma pequena região
no seu córtex cerebral chamada giro fusiforme entra em atividade. Graças a essa estrutura, você consegue
“escanear” o rosto e segui-lo com o olhar. No cérebro de um autista, imagens de rostos são processadas pela mesma
estrutura que identifica objetos inanimados, o giro inferior temporal. Se um autista não olha nos seus olhos, é
simplesmente porque, para ele, isso
pode fazer tanto sentido quanto olhar para os “olhos” de um fogão. Esse detalhe do cérebro não necessariamente faz
de alguém autista. Apesar de ainda não ter conseguido isolar ou sequer provar a existência do gene do autismo, a
ciência já observou coincidências interessantes: a síndrome é mais comum entre os homens, e ter um irmão gêmeo
autista aumenta em 375 vezes as suas chances de ser um também. Autismo não é questão de comportamento.
Confundir as características comuns da síndrome, como o pensamento repetitivo
e a introversão, com aspectos da personalidade, é ignorar todos os avanços da medicina neste campo. Até porque
existem vários tipos diferentes de autismo. Pacientes com síndrome de Asperger, por exemplo, tendem a ser criativos
e persistentes.
Quem
é você

Você pode ser introvertido,


intuitivo, racional e perceptivo. Ou
extrovertido, sensitivo, emotivo e
julgador. Ou muito pelo contrário.
Hora de descobrir quem você é.
VOCÊ É UM NEURÓTICO
Somos todos neuróticos. Freud explicou: a neurose é uma estrutura psíquica que se desenvolve a
partir de tentativas ineficazes de lidar com conflitos e traumas inconscientes. Traduzindo do
psicologiquês, neurose é uma reação exagerada a uma experiência que você está vivendo que
acontece por causa de outra que você já viveu (e, provavelmente, não se lembra mais). Levando em
conta os fundamentos da psicanálise, se não fôssemos neuróticos, pertenceríamos ao grupo dos
psicóticos - onde estão os depressivos e os maníacos - ou ao dos perversos - ao qual pertencem os
psicopatas antissociais. Por isso, ser neurótico é a melhor coisa que poderia acontecer na sua vida.
Se é assim, por que não estamos todos sob acompanhamento psicológico? É que a maior parte de
nós consegue encontrar uma “solução razoável” para lidar com as nossas neuroses. Quem leva a
neurose para níveis um pouco mais preocupantes - como uma fobia inexplicável de altura ou a
obsessão que certas pessoas têm por servir o café sempre às oito em ponto da manhã - acaba
virando apenas o “medroso” ou o “metódico”. No fim das contas, todos os neuróticos temos algo em
comum: sempre nos falta algo.
Quando você era bebê, o seu contato com o mundo era direto, sem intermédio da linguagem oral.
Um chocalho era só um chocalho, e você nem precisava saber o nome do objeto para ter contato
com ele. Aí você aprendeu a falar e foi obrigado a abandonar o “mundo real” para entrar no mundo
dos símbolos. Não houve outra saída. Você teve de se virar com esses sinais abstratos chamados
palavras para se referir às coisas concretas.
E as consequências foram sérias: seu inconsciente ainda guarda um certo rancor pelo fato de
terem lhe tirado o mundo real. E o vazio causado por essa perda nunca mais foi preenchido. Nos
anos seguintes, vários outros espaços em branco foram se formando na sua vida. Como a presença
do seu pai, que tirou a atenção que a sua mãe deveria estar dando a você, ou a moral e os bons
costumes, que não permitiam que você tivesse reações sexuais na infância. A esses vazios, a
psicologia dá o nome de “leis”.
No clube dos neuróticos, somos todos controlados pelas leis. E também estamos unidos pela
angústia da falta. É provavelmente por causa desse sentimento que você às vezes para e pensa no
que diabos está fazendo da vida - mesmo naqueles dias em que tudo parece bem. Também é por
causa dele que você abriu este livro e espera encontrar aqui algum sentido nas suas atitudes.
Freud morreu em setembro de 1939. Boa parte das suas conclusões, como o papel dos pais e das
frustrações sexuais da infância na formação do caráter, já não é mais consenso, mas entender a
neurose do jeito que ele ensinou é o primeiro passo para que você compreenda melhor a sua
personalidade.
O MAPA DA PERSONALIDADE
Antes de prosseguir, adiantamos o óbvio: dificilmente você conseguirá explorar os mapas da sua
personalidade sozinho. Apesar da tendência narcisista que alguns de nós apresentam, você não pode
negar que passa muito mais tempo do dia sendo visto do que vendo a própria imagem. Isso explica o
porquê da sua dificuldade em explicar com detalhes “quem é você” em uma entrevista de emprego.
E também o que leva você a escolher palavras genéricas ou citações de outras pessoas para
descrever a si mesmo em perfis de redes sociais.
A ciência já provou que não nos conhecemos tão bem assim. Um artigo feito por pesquisadores da
Universidade de Washington publicado em 2011 concluiu que pessoas próximas podem ter
impressões mais exatas de quem somos do que nós mesmos. O que te atrapalha a enxergar a
verdade nua e crua são, entre outros fatores, os seus impulsos inconscientes para manter uma
autoimagem. A avaliação externa é mais eficiente e precisa no que diz respeito a características que
podem ser medidas, como inteligência, criatividade e habilidade de comunicação. Mas fique
tranquilo. Há aspectos sobre os quais ninguém pode saber mais do que você mesmo, como o seu
nível de ansiedade e como anda a sua autoestima. E, olha só, você pode até disfarçar na hora de
contar uma mentira e esconder os sinais quando fica
irritado. Maquiar alguns aspectos da nossa personalidade é natural. Quantas vezes você não definiu
uma pessoa como arrogante e depois descobriu que ela, na verdade, era insegura?
Então, a dica é prestar atenção no que os seus amigos dizem (e, claro, seus inimigos também).
Pode confiar nas palavras de quem diz que você é inteligente, por exemplo. Junte tudo isso com as
certezas que você já tem – você não se aguenta de ansiedade quando está esperando a resposta de
um e-mail importante, fica uma fera quando fecham o seu caminho no trânsito e não tem a menor
disciplina para seguir uma dieta. E o mais importante: lembre-se de deixar um espaço nesta soma
para aquelas características que nem você (e muito menos os seus amigos) imaginava que tinha.
O problema é que não há uma lista de características físicas ou psíquicas que você possa utilizar
como guia para comparar o seu temperamento com o de outras pessoas. Aliás, esse parece ser o
grande problema das ciências que estudam a personalidade: ninguém sabe dizer exatamente o que
ela é e quais são os critérios que a definem. Em cinco séculos do pensamento ocidental moderno,
cada ciência chegou às suas próprias conclusões - mas não existe quase nenhum consenso.
Para a Sociologia, por exemplo, o mais importante é a manifestação exterior da personalidade.
Não são os traços da personalidade de cada pessoa que definem como ela vai ser vista na sociedade.
É a própria sociedade - por meio de vários observadores - que vai construindo a personalidade da
pessoa ao longo do tempo. Funciona mais ou menos como aquelas imagens divulgadas nas redes
sociais que juntam, de maneira bem-humorada, o jeito como a sua família vê você, o jeito como seus
amigos o imaginam, o jeito como a sociedade quer que você se comporte e, finalmente - e de
maneira normalmente mais autopiedosa -, o jeito como você enxerga a si mesmo.
A Antropologia se dedica a estudar mais a maneira como a sociedade e a cultura vão fornecendo
as pecinhas para o quebra-cabeça que é a sua personalidade. Já a Filosofia está mais concentrada
nas relações e nos conflitos do homem com o seu interior. Esses conflitos normalmente dão início a
encruzilhadas filosóficas. De um lado, o livre-arbítrio, do outro, o determinismo; de um lado, o que
está previsto pela sua genética, do outro, aquilo que você aprende no ambiente em que vive, e assim
por diante. Influenciada em maior ou menor grau por essas e outras ciências, a Psicologia foi mais
longe nas tentativas de explicar por que você é assim.

PSICOLOGIA ARCAICA
Como quase tudo o que diz respeito ao conhecimento, a primeira classificação da personalidade veio
da Grécia Antiga. Tudo começou com a teoria de Empédocles de Acragas (490-430 a.C.), que
acreditava que todas as substâncias do universo eram compostas por quatro elementos: ar, terra,
fogo e água. Hipócrates (460-377 a.C) foi um pouco além e associou os quatro elementos a
características marcantes do comportamento humano. Para ele, cada característica correspondia à
predominância de um dos quatro fluidos corporais no corpo: sangue, bílis preta (atrabílis), bílis
amarela e fleuma (linfa). A dosagem química natural desses líquidos no seu corpo definiriam o seu
temperamento - que, no grego, quer dizer equilíbrio. E o excesso de um dos fluidos provocaria
doenças e traços exagerados da personalidade. Segundo Hipócrates, a coisa funcionava assim:

• A predominância de sangue no corpo causaria reações rápidas e fracas, além de propiciar o otimismo, a irritabilidade e a
impulsividade.
• Uma concentração alta de atrabílis levaria ao temperamento melancólico e às reações lentas e intensas: pessimismo, rancor e
solidão.
• A bílis em excesso determinaria o temperamento colérico e as reações rápidas e intensas - ambição e dominação são
características típicas.
• Por fim, quando a linfa é o líquido predominante, as reações são fracas e lentas - o indivíduo é mais sonhador, pacífico e dócil.

Hoje nada disso parece ter o menor cabimento. Mas, na falta de outra explicação, essa teoria
permaneceu por dois milênios, até a biologia moderna apresentar ao mundo os hormônios, os
neurotransmissores e outras substâncias do sistema nervoso (endorfinas, etc.) que fizeram cair por
terra os humores de Hipócrates. Da Antiguidade até hoje, houve tempo para que surgissem outras
teorias que parecem partir de associações aleatórias para explicar a personalidade.
Uma delas foi formulada pelo alemão Ernst Kretschmer nos anos 20. Ele buscava relacionar os
traços da personalidade com a forma física. Dizia a teoria que as pessoas altas e esguias de ombros
estreitos seriam mais sensíveis e teriam maior tendência para a esquizofrenia. Os baixinhos de rosto
redondo e barriga saliente seriam mais tranquilos, mas poderiam apresentar variações drásticas de
humor. Já quem tivesse corpo atlético, pescoço grosso e ombros largos seria tenaz e explosivo - com
uma tendência à epilepsia. A teoria morfológica deu origem a uma série de outros estudos com
conclusões similares.
O raciocínio não é totalmente absurdo. Afinal, a sua forma física pode afetar a sua autopercepção,
modificar seus interesses e sua motivação, e esse processo acaba se refletindo no seu
comportamento. Isso sem contar os jeitos como a opinião alheia em relação às suas características
físicas pode influenciar as suas atitudes. Com o passar do tempo, o desenvolvimento dos métodos de
avaliação psicológica negou as teorias morfológicas. Mas o caminho a ser percorrido até o
mapeamento da personalidade ainda era longo.

A VISÃO DE FREUD
A psicanálise não surgiu de repente. Ela foi se manifestando aos poucos, ao longo da vida de
Sigmund Freud na medicina. Na penúltima década do século 19, Freud teve contato com algumas
pacientes histéricas, que mostravam sintomas como cegueiras e alucinações. Depois de muita
conversa, ele percebeu que todas as pacientes tinham em comum memórias quase esquecidas de
cunho sexual.
Essa se tornou uma das bases fundamentais da psicanálise: no fundo das nossas mentes, há um
lugar onde nossas memórias e desejos reprimidos se escondem - o inconsciente. Além de apresentar
uma divisão da mente humana em camadas - algo até então inédito -, a psicanálise estuda a maneira
como lidamos com nossa libido: começamos a vida desenvolvendo um apego sexual por nossas mães.
Como é impossível satisfazer esse desejo, a sexualidade humana ficaria reprimida até o início da
adolescência.
Nos primeiros anos do século 20, as primeiras obras de Freud que divulgavam conceitos
psicanalíticos não foram muito bem recebidas - afinal, não deve ter sido fácil compreender o
Complexo de Édipo naquela época. Mas Freud logo chamou a atenção de outros psicólogos
europeus. Um deles foi o norte-americano Gordon Allport. Ele dava valor às novidades que Freud
tentava emplacar no mundo científico, mas achava exagerada a importância que o austríaco (e a
psicanálise) dava ao desejo sexual na hora de explicar a personalidade. Allport - como boa parte dos
psicólogos de hoje - estava mais interessado na descrição dos sintomas do que no motivo dos
problemas.
Em 1937, Allport listou 50 definições diferentes para o termo “temperamento” - que, muitas
vezes, substitui “personalidade” nas teorias da psicologia - na tentativa de definir o que exatamente
estava procurando descobrir. E ele não era o único. O apego pela descrição da personalidade
influenciou dezenas de teorias na
primeira metade do século 20. Para facilitar o trabalho, era comum os psicólogos pegarem
emprestado das ciências exatas alguns elementos para categorizar padrões de personalidade. Era a
psicometria: a matemática trabalhando em favor da psicologia. O método mais eficiente para chegar
ao resultado - ou seja, à medição da personalidade – era, e é até hoje, aplicar testes. O
correspondente contemporâneo a esses testes psicométricos é aquela avaliação que você
possivelmente já fez quando concorria a uma vaga em uma empresa ou passava por uma orientação
vocacional.
A tendência teve consequências. Pipocaram testes diferentes que avaliavam os traços da
personalidade ou agrupavam pessoas em tipos psicológicos distintos. Cada pesquisador queria fazer
prevalecer o seu método. A dificuldade em encontrar uma acepção definitiva para “personalidade”
continuou assombrando os pesquisadores nas sete décadas seguintes. Mas, por enquanto, voltemos
a Freud.
Em 1906, já fazia algum tempo que o austríaco tentava emplacar entre os psiquiatras da Europa
os conceitos de inconsciente, recalque e repressão. A Interpretação dos Sonhos, obra publicada seis
anos antes, trazia algumas dessas ideias - importantes para que a comunidade compreendesse o que
ele estava querendo dizer com aquela tal psicanálise. Quando Freud recebeu pelo correio algumas
cópias de trabalhos com uma base conceitual parecida com as ideias que tinha criado, ele se sentiu
como se tivesse ganhado na loteria.
O remetente era Carl Jung, um médico suíço interessado em sonhos, religião e outros mistérios da
mente.

O SALTO DE JUNG
Jung tinha uma relação peculiar com o inconsciente - o inconsciente dele próprio, no caso. Quando
criança, ele imaginava ter duas personalidades completamente distintas. Uma era a dele mesmo: um
estudante típico de seu tempo, o final do século 19; a outra, a de um homem autoritário do século
18. Sua distração era fazer pequenos rituais que incluíam escrever mensagens em um idioma
inventado e levá-las ao sótão de sua casa, onde escondia um pequeno boneco de madeira que ele
mesmo construiu. Depois de ser empurrado por um colega de escola e desmaiar, Jung desenvolveu
um bloqueio em relação ao ambiente escolar. Sempre que tentava se esforçar para fazer as tarefas
de casa, desmaiava novamente. Qualquer um o consideraria neurótico. Talvez tenha sido esse o
motivo do grande entusiasmo de Freud com o novo amigo, que considerava como um filho.
Trocaram mais de 300 cartas e, depois de se conhecerem pessoalmente, em 1907, passavam horas a
fio discutindo os mistérios da mente.
Eles nem sempre concordavam, diga-se. O primeiro ponto de discórdia era o mesmo que havia
aproximado os dois: o conceito de inconsciente. Enquanto o inconsciente freudiano era apenas um
depósito de emoções e desejos reprimidos, o de Jung envolvia também o que ele chamou de
“inconsciente coletivo”. É como se existisse um inconsciente comum a todos nós, que herdamos da
natureza e que se manifesta no nosso comportamento. É nesse inconsciente coletivo que Jung
acreditava que podemos encontrar os arquétipos, ou seja, os padrões de comportamento, os tipos
diferentes de personalidade. Os estudos de Jung o fizeram tomar um caminho bem diferente do que
havia sido trilhado por Freud. Em 1913, os dois romperam a parceria intelectual e a amizade. Menos
de dez anos depois, Jung publicou a Teoria dos Tipos Psicológicos, que inaugurou o que se conhece
hoje como Psicologia Analítica.
De acordo com essa teoria, todo mundo pode ser enquadrado em quatro categorias chamadas
“funções psicológicas”. As duas primeiras funções que Jung descreve são racionais, ou seja, estão
mais relacionadas à maneira como você julga o mundo. Já as duas últimas são irracionais, e são
formas de perceber e absorver aquilo que você vê.

RAZÃO
Parece óbvio. É por meio do pensamento que você desenvolve planos, teorias e bases para defender as coisas em
que acredita. A razão tem a ver com a verdade – e com tudo o que você faz para encontrá-la. Usar a lógica para
resolver um dilema, por exemplo, é um comportamento relacionado a esta função. A quem se orienta mais pela
razão, Jung chamou de pensador.
EMOÇÃO
Os sensíveis, que se orientam pela emoção, vivem suas experiências com mais intensidade. O aspecto material não
importa muito: uma decisão deve ser tomada tendo como base a experiência própria e as próprias noções de certo
ou errado.

SENSAÇÃO
Pessoas imediatistas, que se apegam aos detalhes e aos fatos palpáveis para analisar uma situação, segundo Jung,
pertencem ao grupo dos sensoriais.

INTUIÇÃO
Diante de uma nova situação, os intuitivos procuram associações nas suas próprias experiências.

Cada uma das funções pode ser modificada por duas atitudes típicas: introversão e extroversão. A
extroversão é o direcionamento da energia vital (ou libido) para o exterior - do sujeito para o objeto.
O objeto é o foco do interesse do indivíduo. A introversão é, como você pode supor, o direcionamento
da libido para o interior. Nesse caso, o sujeito é o seu próprio foco de interesse. Sendo assim,
teríamos oito possibilidades de
descrever a sua personalidade:

• Pensador introvertido
• Pensador extrovertido
• Sensível introvertido
• Sensível extrovertido
• Sensorial introvertido
• Sensorial extrovertido
• Intuitivo introvertido
• Intuitivo extrovertido

Essa teoria influenciou outros psicólogos na busca de classificações baseadas em dicotomias.
“Dicotomia” no sentido de que você só pode ser classificado como uma coisa ou outra. Ou seja, você
pode ser extrovertido ou introvertido, nunca as duas coisas ao mesmo tempo.
Algumas ganharam bastante visibilidade, especialmente nos anos 70 e 80. Mas foi antes disso,
durante a Segunda Guerra Mundial, que começou a ser desenvolvida a classificação tipológica de
Myers-Briggs, um dos métodos de avaliação de personalidade mais famosos. Vamos a ele.

O TESTE MYERS-BRIGGS
O período da guerra foi marcado pela entrada das mulheres no mercado de trabalho. Com
questionários de avaliação, a psicóloga Katharine Cook Briggs e sua filha Isabel Briggs Myers
pretendiam ajudar moças a escolher serviços que combinassem mais com suas personalidades.
Baseado nos questionários aplicados por mãe e filha, o método foi publicado algum tempo depois,
em 1962. E ficou conhecido internacionalmente como MBTI (Myers-Briggs Type Indicator).
Inspiradas pela classificação que Jung tinha bolado quatro décadas antes, Myers e Briggs criaram
quatro dicotomias, que funcionariam como critérios para a avaliação da personalidade:

Extroversão (E) x Introversão (I)


Sensação (S) x Intuição (N)
Razão (T) x Emoção (F)
Julgamento (J) x Percepção (P)

De acordo com essa classificação, todo mundo se aproxima mais de um lado ou de outro em cada
um dos quatro critérios. Tender mais para um polo ou outro funcionaria como outras habilidades
que nasceram com você ou as que você aprendeu ao longo da vida. O fato de você ser canhoto ou
destro, por exemplo. Se uma pessoa escreve sempre com a mão direita, vai ter muita dificuldade em
escrever com a esquerda. Da mesma forma, uma pessoa introvertida não se comportará como uma
extrovertida com a mesma facilidade - nem mesmo se praticar muito.
O resultado do questionário inclui você em um dos 16 tipos possíveis. Cada tipo está associado a
um conjunto de características de comportamento e valores. Conhecê-los pode ser útil para
identificar traços da sua personalidade. Cada tipo é identificado por quatro letras (as iniciais das
palavras equivalentes em inglês, exceto no caso de “Intuição”, identificada pela letra “N”, para não
confundir com “Introversão”, que ficou com a letra “I”). Nota: como a maior parte das palavras é
latina (“Extroversion”, “Perception” etc.), as iniciais em inglês funcionam em português. As exceções
são apenas “Razão” (que é “T”, de “thinking”) e “Emoção” (representada pela letra “F”, de
“feeling”).
Seja como for, o que o Myers-Briggs faz é usar essa sopa de letrinhas para tentar definir de forma
mais precisa quem, afinal, você é. Como são quatro letras possíveis para definir cada aspecto da
personalidade, você pode ser um entre 16 tipos - ISTP (Introversão, Sensação, Razão, Percepção),
ENFJ (Extroversão, Intuição, Emoção, Julgamento), INTP (Introversão, Intuição, Razão, Percepção),
e por aí vai. Nas próximas páginas, vamos explicar tudo isso em detalhes.

O SISTEMA
Se um dia foi útil para ajudar mulheres a escolher um trabalho, hoje o MBTI é usado com frequência
em orientação vocacional, dinâmicas de grupo, marketing, programas de treinamento empresarial e
até no aconselhamento pré-nupcial. Com o passar do tempo, o teste original foi revisado e
incrementado. Na década de 1980, foi criado um sistema de pontuação com mais de 290 itens, que
avalia outros aspectos mais profundos da personalidade, como o conforto/desconforto. Em 2009, a
empresa que publica o questionário estimou que o método atual era usado 2 milhões de vezes, todos
os anos, no mundo inteiro. O teste é simples, com perguntas na linha “como você reage ao conhecer
pessoas novas?” São dezenas de questões, talhadas para traçar suas características psicológicas. E
os aplicadores do questionário devem seguir regras éticas, como jamais considerar um resultado
“certo” ou “errado”.
No apêndice deste livro, há uma descrição dos 16 tipos psicológicos do Myers-Briggs. Mas, antes
de ir até lá, entenda melhor o que significam as quatro letras.

INTROVERSÃO E EXTROVERSÃO - I E E
Se as suas funções cognitivas operam mais no mundo do comportamento, das ações, das pessoas e
das coisas, você é extrovertido. Isso significa que você gasta a sua energia vital em ações - e
geralmente pensa depois de agir. Se as funções cognitivas estiverem mais direcionadas ao mundo
das ideias e das reflexões, você é introvertido. Os conceitos parecem bem óbvios para quem passou
a vida inteira ouvindo as duas palavras como adjetivos banais, como se fossem sinônimos de timidez
ou comunicabilidade.

EXTROVERTIDOS x INTROVERTIDOS
Se orientam pelas ações Se orientam pelas ideias
Procuram aprofundar seus conhecimentos e influências Procuram expandir seus conhecimentos e influências
Preferem interações frequentes Preferem interações sólidas
Repõem sua energia passando tempo sozinhos Repõem sua energia passando tempo com pessoas

SENSAÇÃO E INTUIÇÃO - S E N
Sensação e intuição descrevem a maneira como você compreende e interpreta novas informações.
Quem prefere usar a sensação confia mais nas informações que podem ser compreendidas pelos
sentidos - coisas tangíveis e concretas - e presta mais atenção nos detalhes e nos fatos. Já a intuição
é mais usada por quem se apega mais ao abstrato e às hipóteses, e se interessa mais pelas
possibilidades do futuro. São essas pessoas que normalmente acreditam em insights, ideias que
parecem ter vindo do nada.

SENSITIVOS x INTUITIVOS
Valorizam a experiência do agora Se preocupam mais com o futuro do que com o presente
Preferem as situações práticas São mais atraídos pelas teorias
São realistas e confiantes Se permitem ter mais dúvidas

RAZÃO E EMOÇÃO - T E F
Razão e emoção são funções de julgamento, voltadas para a tomada de decisões. É uma dessas
funções que você usa depois de interpretar as informações do ambiente com uma das funções
descritas no parágrafo anterior. Quem prefere a razão tem a tendência de tomar decisões lógicas,
levando em conta as relações de causa e efeito, baseadas em regras consistentes. Essas pessoas
geralmente são francas e não lidam bem com outras que não se baseiam na lógica. Os que pendem
para o lado da emoção tomam decisões por associação ou por empatia, e buscam chegar à harmonia
e ao consenso para as pessoas envolvidas na situação.

RACIONAIS x EMOCIONAIS
Estão mais interessados em sistemas, estruturas e padrões Preferem o elemento humano e gostam dos sentimentos
Têm dificuldades em lidar com sentimentos Valorizam sentimentos como amor e paixão
Avaliam as coisas a partir da noção de certo e errado Avaliam as coisas a partir da noção de bom e ruim

JULGAMENTO E PERCEPÇÃO - J E P
Além das funções e das atitudes, Myers e Briggs criaram outra dimensão da personalidade, que
chamaram de “estilo de vida”. Compreendê-la é um pouco mais complexo do que entender as
classificações anteriores. Usamos o julgamento e a percepção quando vamos nos relacionar com o
mundo que está fora de nossas mentes. Quando desenvolvemos a preferência pelo julgamento,
normalmente mostramos para os outros ou a nossa tendência ao pensamento ou ao sentimento (ou
seja: ou à razão ou à emoção). Este estilo é próprio das pessoas que gostam de resolver logo seus
problemas. Os que preferem a percepção em vez do julgamento costumam deixar suas opções
abertas e mostram para os outros se são mais sensoriais ou mais intuitivos.
O J e o P indicam as funções dominantes e são essenciais para a classificação, porque
determinam quais são as suas preferências racionais ou irracionais mais visíveis para os outros.
Vamos usar o exemplo de uma pessoa cujo resultado do teste indicou que é do tipo ENTJ. Podemos
concluir, de cara, que ela é extrovertida.
O J indica que a função dominante é uma função racional – portanto T (razão). A função auxiliar é
uma das irracionais – ou seja, N (intuição). A função terciária é a sensação (oposta à intuição), e a
função inferior, o sentimento (oposto à razão).

JULGADORES x PERCEPTIVOS
Não deixam questões mal resolvidas Fazem várias coisas ao mesmo tempo, e podem não terminá-
las
Se planejam com antecedência Normalmente agem sem se planejar
São estáveis e não se sentem confortáveis com mudanças de São curiosos, inovadores e preferem a liberdade à obrigação
decisão



Segundo o modelo de Myers-Briggs, cada um de nós usa uma das quatro funções com mais
desenvoltura. Se você é uma pessoa que se preocupa mais com o futuro do que com o presente e se
permite ter dúvidas, por exemplo, a sua função dominante é a intuição. Mas isso não quer dizer que
você vá excluir as características típicas de outras funções do seu comportamento. É que, além da
função dominante, a gente também usa as outras três, só que de forma bem mais infantil.
A função auxiliar, por exemplo, é parcialmente desenvolvida. Se a função dominante é a intuição
(ou seja, é irracional), a auxiliar será racional: razão, por exemplo. A função inferior é como se fosse
a sombra da dominante – e pode se manifestar de maneira inconsciente. Para continuar com o
mesmo exemplo, podemos dizer que alguém cuja função dominante é a intuição tem como função
inferior a sensação.

CRÍTICAS
O MBTI enfrenta alguns ataques. Em 1993, quando o método já havia ganhado repercussão
internacional, o psicólogo David J. Pittenger, da Marietta College, nos Estados Unidos, publicou um
artigo que reúne argumentos que colocam o valor do MBTI em questão. O texto refletiu a visão
negativa de muitos psicólogos da época sobre o teste, e até hoje é citado como referência. Para
Pittenger, o problema central do MBTI está nas dicotomias - que não seriam exatamente
dicotômicas.
O que acontece é que a preferência por uma ou outra atitude deixa de levar em conta tudo o que
está entre elas. “O resultado da maior parte das pessoas está entre os dois extremos. O que significa
que, apesar de uma pessoa ser classificada como E, seu resultado pode ser bem similar aos das
pessoas do tipo I”, diz Pittenger em Measuring the MBTI... And Coming Up Short (algo como
“Medindo o MBTI... e ficando abaixo do esperado”, em tradução livre). O psicólogo também aponta
um problema de confiabilidade no teste - o que, na prática, representa uma falha de consistência. De
acordo com uma medição feita em 1979 - quando o MBTI ainda era relativamente novidade no
mundo da psicologia -, 50% das pessoas que refaziam o teste até nove meses depois de já terem
feito pela primeira vez eram classificadas em um tipo diferente. Como você pode supor, uma
margem de erro tão alta é suficiente para que se desconfie do resultado.
O teste é propriedade intelectual da The Myers and Briggs Foundation - portanto, não podemos
publicá-lo aqui. Seja como for, existem outros testes nessa linha. E um dos mais célebres é o Big
Five, protagonista das páginas seguintes.

A TEORIA DO BIG FIVE


Existe uma hipótese na psicologia que se desenrola desde o século 19 e que vem,
surpreendentemente, se manifestando em teorias e estudos empíricos desde então. É a “hipótese
lexical”. Funciona assim: as características mais marcantes da sua personalidade acabam por fazer
parte do seu vocabulário. Quanto mais importante o traço que descreve o seu comportamento, mais
intenso ele aparece na sua fala. A princípio, a hipótese parece tão furada quanto a teoria dos
humores de Hipócrates ou a teoria morfológica de Kretschmer nos anos 20. Mas se você parar para
pensar - e prestar atenção nos próximos parágrafos -, até que não é absurdo.
Quem cantou a pedra pela primeira vez foi Francis Galton, primo de Charles Darwin, do qual
você já ouviu falar neste livro. Em 1884, ele examinou um dicionário da língua inglesa e encontrou
mais de mil palavras que descreveriam traços de personalidade. Nas décadas seguintes, outras
medições parecidas (G. E. Partridge em 1910, M. L. Perkins em 1926, Ludwig Klages em 1929)
deram de cara com até 4 mil palavras que expressam comportamentos. Em 1936, a coisa começou a
ficar séria. Uma lista de palavras relacionadas à personalidade, organizada por Gordon Allport
(aquele que você conheceu algumas páginas atrás) e H. S. Odbert, incluía 17.953 termos.
Descontados os sinônimos e eliminadas as ambiguidades, a lista foi reduzida a 171 palavras nos
anos 40. Elas foram separadas em 35 grandes grupos, que foram usados como base para testes de
personalidade organizados pelo psicólogo Raymond Cattell. Mais tarde, ele mesmo reduziu os
grupos para 16 e criou o teste de personalidade conhecido como 16PF. Como nada se perde e tudo
se transforma, a hipótese lexical também evoluiu - e as décadas seguintes trouxeram algumas
pesquisas que reduziram ainda mais o número de grupos de características da personalidade para
cinco.
Esta evolução aconteceu ao mesmo tempo em que a psicologia social começou a achar que
nenhum tipo de teste de personalidade poderia prever o comportamento de uma pessoa. Fazia
sentido. Estudos comprovaram que os testes de personalidade em uso não eram suficientemente
válidos para os padrões científicos da psicologia.
Nos anos 80, as coisas mudaram de figura. Em vez de tentar prever traços concretos do
comportamento das pessoas, as pesquisas passaram a se dedicar a identificar padrões de
comportamento. Diante das mudanças, a resistência da psicologia social ao conceito de
personalidade diminuiu. O psicólogo norte-americano Lewis Goldberg, do Instituto de Pesquisas do
Oregon, aproveitou a deixa para desenvolver seu próprio projeto lexical. Nos anos 90, uma iniciativa
parecida foi desenvolvida por Paul T. Costa e Robert R. McCrae no Instituto Nacional de Saúde dos
Estados Unidos. O resultado é o que conhecemos hoje como Big Five - a teoria dos “Cinco Grande
Fatores”.
Por causa das diversas iniciativas paralelas que ajudaram a formar a avaliação, ainda não há um
consenso sobre os nomes dos cinco fatores. Mas, independente da versão, as características de cada
dimensão psicológica permanecem iguais. Todos os grandes traços do modelo Big Five possuem
duas polaridades: Abertura à experiência X Convencionalidade, Neuroticismo X Estabilidade, etc.
Vamos a elas:

ABERTURA À EXPERIÊNCIA X CONVENCIONALIDADE


Pessoas aventureiras e curiosas normalmente têm mais proeminente o traço de “Abertura à experiência”. É ele que
determina, por exemplo, o gosto pelas ideias originais e, é claro, a receptividade às novas ideias, sensações e
experiências. A criatividade e o interesse pelo ambíguo e pelo sutil também prevalecem. O traço oposto está
presente nas pessoas chamadas de “convencionais” pelo Big Five, que valorizam a tradição e são mais resistentes às
mudanças. O desinteresse pelas ciências e pela arte também caracteriza os indivíduos não abertos a novas
experiências.

CONSCIÊNCIA X INESCRUPULOSIDADE
Organização e eficiência são palavras de ordem de quem é classificado como “consciente” pelo Big Five. A
consciência, segundo o modelo, é uma característica típica das pessoas determinadas, disciplinadas, que fazem de
tudo para atingir seus objetivos. Na hora do trabalho, o que vale é o planejamento a longo prazo e o controle dos
impulsos. Um estudo da Universidade do Estado de Michigan indicou que esse traço normalmente está mais presente
nos jovens adultos, e um pouco menos forte entre as pessoas de meia-idade. Do lado oposto estão as pessoas
espontâneas, que se deixam levar por impulsos e que trabalham melhor quando improvisam.

NEUROTICISMO X ESTABILIDADE
Algumas pessoas simplesmente tendem a ver o lado ruim das coisas - são as vítimas do neuroticismo. Pessoas
emocionalmente instáveis, que se irritam facilmente, são ansiosas e apresentam sintomas de depressão. As reações
emocionais negativas, como o desânimo em relação à vida depois de uma frustração pequena, são sinais de que o
traço de neuroticismo é elevado. Esta característica da personalidade pode atrapalhar na hora de tomar decisões. Por
isso, considera-se que pessoas com o traço oposto pensam com mais clareza e são mais calmas. Mas isso não
significa que essas pessoas só tenham sentimentos positivos.

EXTROVERSÃO X INTROVERSÃO
Aqui voltamos para as descrições básicas de Jung: pessoas extrovertidas valorizam envolvimento com o mundo
exterior, o trabalho em grupo e a companhia de outras pessoas. Diferentemente das pessoas com grau elevado de
neuroticismo, os extrovertidos tendem a expressar emoções positivas, como o entusiasmo em relação a um novo
projeto. Já a introversão é uma característica presente nas pessoas mais ponderadas e menos dependentes da
interação social.

AMABILIDADE X ANTISSOCIABILIDADE
A harmonia social é uma das principais motivações de quem tem níveis altos de amabilidade. Para alcançá-la, essas
pessoas tendem a superar diferenças individuais para manter uma boa relação com os outros. São respeitosas,
amigáveis, prestativas e comprometidas – e têm tendência a confiar na bondade alheia. O oposto deste traço
psicológico está presente nas pessoas que colocam o interesse próprio acima da harmonia social. Como as boas
relações e o bem-estar alheio não lhes interessam, elas podem ser taxadas como menos amigáveis e egoístas.

É isso. Quer saber quem é você segundo o Big Five? Faça o teste em http://abr.io/superbigfive

CRÍTICAS
Na comparação com outras medições, como o MBTI, o resultado do Big Five parece bem menos
certeiro - o que se deve ao fato de ser mais abrangente e eficiente ao identificar tendências. A maior
parte das alternativas usadas no questionário são frases curtas ou mesmo palavras com as quais
você pode concordar ou discordar. Como todos os outros métodos de avaliação da personalidade que
vimos antes, o Big Five também não está imune às críticas. Em 2010, o psicólogo Jack Block resumiu
falhas que encontrou no modelo. Além de apontar o fato de que a interpretação do resultado pode
variar de um teste aplicado para outro, Block também criticou sua utilização como uma maneira
definitiva de descrever a personalidade. O problema, para ele, é a ausência de outros fatores
considerados importantes para a compreensão do perfil psicológico de cada um, como capacidade
de julgamento, noção de identidade, motivação, religiosidade e até questões relativas à
masculinidade e à feminilidade.
A psicologia, seja como for, é uma ciência como outra qualquer. Ou seja: ela não dá uma resposta
final, mas uma boa aproximação. Não traz uma verdade absoluta; ilumina a nossa busca por ela. Por
esse ponto de vista, o MBTI e o Big Five são, sim, ótimos faróis para o autoconhecimento. E agora é
hora de darmos um passo adiante. Depois de entender o que é a personalidade, você já está pronto
para saber por que você é assim. No próximo capítulo.
Vai ser assim
para sempre?

Mudar de personalidade não é como


trocar a cor do cabelo, mas existem
ferramentas para hackear suas
características mais profundas: ler e
aprender outros idiomas. Saiba por
quê.
DÁ TEMPO DE MUDAR?
Velhos hábitos são difíceis de mudar. Principalmente quando eles parecem ter nascido com você. A
questão da mudança drástica de comportamento é quase tão complexa quanto a própria definição
do comportamento. No geral, os especialistas costumam dizer que a personalidade está em
formação até certo ponto da vida. Mas apontar uma idade correta a partir da qual seu
comportamento brinca de estátua é arriscado.
O psicólogo Steven Pinker, professor da Universidade de Harvard e um dos mais importantes
pesquisadores do comportamento humano da atualidade, acredita que é tudo obra do acaso. Apesar
de fazer o papel de Salomão e defender a noção de que 50% do que você é vem dos genes e os
outros 50% da sua criação, ele aponta outros fatores importantes para a formação da personalidade.
Um acidente de carro que marcou a sua vida, uma doença que o obrigou a faltar às aulas ou uma
experiência traumática, como um terremoto, por exemplo.
Basicamente, qualquer eventualidade que acontecer antes de você ser um adulto formado,
independente e maduro pode ser uma nova pecinha definitiva no seu quebra-cabeça. Depois desse
ponto, fica bem mais difícil mudar. Uma pesquisa norte-americana avaliou os hábitos e ambições de
pessoas em dois momentos da vida - durante a juventude e 45 anos depois. Jovens que
demonstravam ser criativos, curiosos e liberais tinham se tornado velhos com hobbies artísticos e
que preferiam assistir a programas alternativos. E os que na juventude eram mais conservadores e
com os pés no chão viraram idosos que se divertiam costurando, cozinhando, cuidando do jardim e
vendo shows de auditório.
Para quem quer mudar seu jeito de ser, a dica da ciência é começar pelos detalhes. Pesquisadores
da Universidade de Washington e Lee, nos Estados Unidos, descobriram uma receita infalível para
que você seja considerado uma pessoa mais simpática. Não é só sorrir para estranhos, segurar a
porta do elevador e desejar “bom dia” ao cobrador do ônibus. O segredo da simpatia pode estar na
leitura. Os cientistas pediram que os voluntários lessem uma história curta. Em seguida, fizeram
perguntas para identificar o quanto cada um tinha se identificado com a trama. Depois, derrubaram
um monte de canetas no chão. Aí veio a revelação: as pessoas que se ofereceram para ajudar a
recolher as canetas foram aquelas que mais gostaram da história que leram. É obra dos neurônios-
espelho. Quando você lê uma história de ficção marcante, sente empatia pelos personagens e
também consegue se tornar uma pessoa mais agradável.
Um estudo parecido feito na Universidade de Buffalo concluiu que também tendemos a imitar
características de personagens dos nossos livros preferidos. Se você acaba de ler um livro de
fantasia como O Senhor dos Anéis, pode até ficar mais sugestionável a acreditar na mitologia criada
por J. R. R. Tolkien. Segundo os cientistas, o efeito é sutil e dura pouco tempo. Mas já é o suficiente
para indicar o efeito de uma atitude pequena no seu comportamento.
Uma outra pesquisa investigou a racionalidade e, de quebra, deu uma dica para aumentar a sua
capacidade de resolver pequenos dilemas do dia a dia. Psicólogos da Universidade de Chicago
descobriram que pensar em um idioma estrangeiro faz você mudar sua forma de raciocínio.
Profundamente. Para testar a teoria, propuseram que os voluntários resolvessem desafios como o
seguinte:
Uma epidemia se espalha rapidamente pelo país e, sem medicamento, 600 mil pessoas morrerão.
Você precisa escolher entre dois remédios:
1. Medicamento A: 200 mil pessoas serão salvas;
2. Medicamento B: há um terço de chances de salvar 600 mil pessoas e dois terços de chances de
não salvar ninguém.
Quando o desafio foi dado em inglês, a maior parte das pessoas escolheu a situação 1, preferindo
a certeza de salvar uma parte pequena da população ao risco de não salvar ninguém. Nos casos em
que o desafio foi passado em outro idioma (espanhol, no caso), os voluntários preferiram arriscar
salvar as 600 mil pessoas que deixar 400 mil morrerem. Ao que tudo indica, a estratégia também
serve para outras situações cotidianas.
O resultado aponta algo aparentemente surreal: ao pensar em outro idioma, as pessoas ficaram
mais arrojadas, mais propensas a correr riscos em busca de uma recompensa. É como se você, ao
pensar em português o que fazer com o seu dinheiro, escolhesse a caderneta de poupança, que
rende pouco, mas não traz risco de perda (a não ser que apareça outro Collor!), e ao pensar em
inglês pendesse para a bolsa de valores, que dá alto potencial de ganho com um risco de perda
maior ainda. Conclusão: existe um Dr. Jekyll e um Mr. Hyde dentro de você. E mudar o idioma pode
ativar o Mr. Hyde.
Mas tem um detalhe. Lembre-se do que falamos na parte 2 deste livro. Um destro que tenta
escrever pela primeira vez com a mão esquerda só vai produzir garranchos. Depois de muito treino,
pode até conseguir escrever de maneira legível. Mas muito dificilmente terá a mesma caligrafia
caprichada da mão direita. Com a personalidade é a mesma coisa. Uma pessoa introvertida, para
citarmos o termo clássico de Jung, jamais poderá se transformar em piadista da turma ou a pessoa
mais sociável do trabalho de uma hora para outra - nem um conservador xiita vai se transformar
num Indiana Jones do arrojo ao pensar em outro idioma. É aquela
história: a timidez excessiva, como vimos antes, pode ser trabalhada para que a pessoa consiga viver
normalmente. Mas o máximo que você poderá fazer é suavizá-la.
Transformar uma pessoa emocionalmente instável só é possível à base de terapia. Características
como desânimo, irritabilidade, ansiedade e desinteresse apareceram entre os principais motivos de
divórcio ou infelicidade no casamento de 300 casais norte-americanos que participaram de uma
pesquisa publicada em 1987. Mesmo consciente dos problemas que encontrou no parceiro (ou em si
mesma), a maior parte dos casais não evitou as brigas e, em alguns casos, a separação. Se levarmos
em consideração as classificações psicológicas propostas pelo modelo do Big Five, todas essas
características difíceis de mudar estão ligadas ao neuroticismo. Não por acaso, esses traços estão
entre os mais incômodos e mais propensos a se tornarem problemas psiquiátricos sérios.
Se um traço da sua personalidade incomoda, a psicologia está pronta para ajudar. Você pode
adquirir consciência do seu problema, encontrar serenidade para aceitá-lo e até arrumar motivação
(e inspiração) para tentar resolvê-lo. Mas, no final das contas, é importante lembrar que sua
personalidade é o que faz de você único. E isso não vai mudar.
Apêndice

Os 16 perfis
do teste
Myers-Briggs

Uma descrição básica de cada um


dos perfis psicológicos do MBTI.
ISTJ
INTROVERSÃO, SENSAÇÃO, RAZÃO, JULGAMENTO
É prático, mantém os pés no chão. É realista e responsável. Usa a lógica para decidir o que deve ser
feito e trabalha duro para chegar lá, sem ligar para distrações. Tem prazer em deixar tudo
organizado - seu trabalho, sua casa, sua vida. Valoriza tradições e lealdade.

ISFJ
INTROVERSÃO, SENSAÇÃO, EMOÇÃO, JULGAMENTO
É tranquilo, simpático, responsável e consciente. Cumpre suas obrigações com empenho. É
meticuloso, preciso, leal, dedicado, lembra-se de detalhes sobre pessoas importantes, e é
preocupado com os sentimentos alheios. Esforça-se para criar um ambiente harmonioso e
organizado no trabalho e em casa.

INFJ
INTROVERSÃO, INTUIÇÃO, EMOÇÃO, JULGAMENTO
Está sempre em busca de significados e conexões em ideias, relações e posses materiais. Quer
entender o que motiva as pessoas e é perspicaz em relação aos outros. É consciente e comprometido
com seus valores. Procura sempre a melhor forma de servir o bem comum. É organizado e decidido
para colocar sua visão em prática.

INTJ
INTROVERSÃO, INTUIÇÃO, RAZÃO, JULGAMENTO
Tem grande força de vontade para colocar suas ideias em prática e alcançar seus objetivos.
Consegue reconhecer padrões em acontecimentos rapidamente e entender seus motivos. É cético e
independente, e tem padrões de competência e desempenho elevados - que aplica a si mesmo e aos
outros.

ISTP
INTROVERSÃO, SENSAÇÃO, RAZÃO, PERCEPÇÃO
É tolerante, flexível, e observa silenciosamente até surgir um problema. Então, age rapidamente
para encontrar soluções viáveis. Analisa o funcionamento das coisas e identifica rapidamente o
centro de problemas práticos. Interessa-se pela causa e pelo efeito das coisas e organiza fatos
usando princípios lógicos. Valoriza a eficiência.

ISFP
INTROVERSÃO, SENSAÇÃO, EMOÇÃO, PERCEPÇÃO
É tranquilo, amigável, sensível e gentil. Aproveita o momento presente e presta atenção ao que está
acontecendo ao seu redor. Gosta de ter seu próprio espaço e trabalhar no seu próprio ritmo. É leal,
mostra comprometimento com seus valores e com as pessoas importantes. Não gosta de conflitos e
discordâncias, por isso não obriga os outros a aceitar seus valores e opiniões.

INFP
INTROVERSÃO, INTUIÇÃO, EMOÇÃO, PERCEPÇÃO
É idealista, fiel aos seus princípios e às pessoas importantes. Almeja uma vida que esteja de acordo
com os seus valores. É curioso, enxerga possibilidades rapidamente, pode ser catalisador de ideias.
Procura compreender as pessoas e ajudá-las a explorar seu potencial. Consegue se adaptar bem a
novas situações, é flexível e receptivo, exceto quando um de seus valores está em jogo.

INTP
INTROVERSÃO, INTUIÇÃO, RAZÃO, PERCEPÇÃO
Procura desenvolver explicações lógicas para tudo o que lhe interessa. É teórico e abstrato e se
interessa mais pelas ideias que pelas interações sociais. É calmo, contido, flexível e adaptável. Tem
uma habilidade incomum para se concentrar e resolver problemas em sua área de interesse. É
cético e às vezes crítico, mas sempre analítico.

ESTP
EXTROVERSÃO, SENSAÇÃO, RAZÃO, PERCEPÇÃO
É flexível e tolerante. Costuma ter uma abordagem pragmática focada em resultados imediatos.
Teorias e explicações o chateiam - ele quer agir energicamente para resolver o problema.
Concentra-se no aqui e agora, é espontâneo, aprecia cada momento em que pode interagir com
outros. Gosta de conforto material e estilo. Aprende fazendo.

ESFP
EXTROVERSÃO, SENSAÇÃO, EMOÇÃO, PERCEPÇÃO
É extrovertido, amigável e receptivo. Preza a vida, as pessoas e o conforto material. Gosta de
trabalhar em conjunto para fazer as coisas acontecerem. Traz o senso comum e uma abordagem
realista para o trabalho - e faz com que a obrigação seja divertida. É flexível e espontâneo, adapta-se
facilmente a novas pessoas e ambientes. Aprende melhor explorando novas habilidades com outras
pessoas.

ENFP
EXTROVERSÃO, INTUIÇÃO, EMOÇÃO, PERCEPÇÃO
Tem imaginação fértil e entusiasmo contagiante. Vê muitas possibilidades na vida. Faz conexões
entre os eventos e informações rapidamente, e segue em frente com confiança, levando em conta os
padrões que reconhece. Quer muita afirmação dos outros, e está pronto para dar suporte e
reconhecimento. É espontâneo e flexível, e frequentemente confia nas próprias habilidades para
improvisar e na sua fluência verbal.

ENTP
EXTROVERSÃO, INTUIÇÃO, RAZÃO, PERCEPÇÃO
É rápido, engenhoso, estimulante, alerta e franco. Tem habilidade para resolver problemas novos e
complicados. Gosta de gerar possibilidades conceituais e, mais tarde, analisá-las estrategicamente.
É bom em compreender outras pessoas. A rotina lhe dá tédio - raramente ele vai fazer a mesma
coisa da mesma forma.

ESTJ
EXTROVERSÃO, SENSAÇÃO, RAZÃO, JULGAMENTO
É prático, realista e mantém os pés no chão. É decidido e se mexe rapidamente para colocar suas
decisões em prática. Organiza projetos e delega funções para realizar coisas, e se concentra em
obter resultados da forma mais eficiente possível. Cuida dos detalhes de rotina. Tem um conjunto
claro de padrões lógicos, que segue sistematicamente - e quer que os outros o façam também. É
enérgico na hora de colocar planos em prática.

ESFJ
EXTROVERSÃO, SENSAÇÃO, EMOÇÃO, JULGAMENTO
É caloroso, consciente e cooperativo. Gosta de harmonia em seu ambiente e trabalha com
determinação para alcançá-la. Gosta de trabalhar em conjunto para completar tarefas com precisão
em tempo hábil. É leal mesmo em pequenas coisas. Percebe com facilidade o que os outros precisam
e tenta suprir essas necessidades. Gosta de ser reconhecido por quem é e pela sua contribuição.

ENFJ
EXTROVERSÃO, INTUIÇÃO, EMOÇÃO, JULGAMENTO
É empático, caloroso, sensível e responsável. Está sempre ligado nas emoções, necessidades e
motivações das outras pessoas. Encontra potencial em todos e gosta de ajudar os outros a explorar
seu potencial. Pode agir como catalisador para o crescimento individual e do grupo. É leal, sensível
a elogios e críticas. Sociável, sempre facilita o trabalho em grupo e é um líder inspirado.

ENTJ
EXTROVERSÃO, INTUIÇÃO, RAZÃO, JULGAMENTO
É honesto, decidido e assume a liderança rapidamente. Identifica com facilidade procedimentos e
políticas ineficientes e ilógicos, enquanto desenvolve e coloca em prática sistemas abrangentes para
resolver problemas. Gosta de fazer planos a longo prazo e estabelecer metas claras. Normalmente é
bem informado, gosta de expandir seus conhecimentos - e compartilhá-los com os outros. É
contundente na hora de apresentar suas ideias.

OS TIPOS MAIS COMUNS. E OS MENOS


Não há pesquisas globais sobre a prevalência dos tipos psicológicos na população, mas esta
estimativa ajuda bem. Ela foi feita pelo Centro de Aplicações de Tipos Psicológicos (CAPT), e indica
a distribuição dos perfis nos EUA. Resultado:

Prólogo

Eu,
ansioso





Um ansioso escrever um livro sobre a ansiedade é uma piada pronta. Eu me sento de frente para o
computador, bato minha perna, dou uma olhada no Facebook e logo corro até a cozinha, ver o que
está na geladeira. Aproveito e boto a chaleira para ferver - algo me diz que, se não me intoxicar de
cafeína, não conseguirei me concentrar e passarei a tarde inteira lendo notícias on-line. Sento-me
novamente de frente para o computador.
Esboço essas palavras com medo de que não entregarei este livro a tempo. Então, olho para a
janela - “está chovendo torrencialmente, e um raio acabará queimando todos os eletrônicos de
casa”. Penso então no piano digital, que está na tomada - “e, ah, preciso estudar mais, pois a compra
que parcelei em dez vezes no cartão de crédito precisa valer a pena.”
Levanto-me e desligo alguns eletrônicos, menos a tomada na qual estão ligados o roteador, a
televisão e o aparelho de som, e fico torcendo para que eles não queimem com um raio. Volto a me
sentar de frente para o computador. Começo a bater o pé. Respiro fundo. Fecho os olhos. Logo vêm
à mente as contas a pagar. Aluguel. O contrato está acabando, e tenho de começar a procurar um
novo apartamento.
As pernas começam a bater mais rápido. Não posso me esquecer de fazer o exame de colesterol,
pois logo terei a consulta do cardiologista. Toda a família da minha mãe tem colesterol alto. Parte da
família do meu pai tem problemas cardíacos. Se eu não cuidar da saúde, já era. Preciso ir à
academia. Dou uma coçada na nuca. E penso: “tenho de me acalmar, senão terei mais uma crise de
gastrite”. Abro novamente o Facebook, respondo um e-mail do meu contador e volto à cozinha para
ver se a água está fervendo. Preciso de café.
Desde criança sou ansioso. Muito ansioso. Pessoas próximas a mim sempre reclamaram que eu
não fico quieto. Há quem não consiga estudar na biblioteca por ficar entediado. Eu, não. Nunca
estudei na biblioteca porque só consigo entrar num livro de pé, andando. Em casa, na rua, no
parque. Já atropelei alguns postes e já quase fui atropelado por carros enquanto lia. Já quebrei o
botão de mudar de canal do controle remoto da tevê. Já terminei namoros porque não combino com
calmaria. Nos últimos dez anos, mudei de endereço 11 vezes, e neste ano devo mudar pela 12ª.
Escolhi estudar jornalismo, pois qualquer outra profissão teria uma rotina monótona demais. Mas,
ao começar a trabalhar, vi que mesmo repórteres têm uma rotina surpreendentemente monótona.
Então, o máximo de tempo que fiquei num mesmo emprego foram sete meses. Restou-me trabalhar
como freelancer, a cada hora com um projeto diferente. O problema é que isso significa escrever em
casa. E trabalhar em casa dá uma ansiedade...
Por isso este livro significa tanto para mim. Prefiro não escrever na primeira pessoa, pois acho
que minha vida é completamente irrelevante para você, leitor. Mas, neste caso, tenho de ser honesto
e falar que não sou desinteressado no assunto. Cada informação nova que encontrei nas pesquisas
para este livro teve um impacto pessoal extremo. E um impacto positivo. Descobri que a ansiedade
que nos faz sofrer num grau maior ou menor não é um defeito, mas uma valiosa adaptação evolutiva
que nos protege das mais remotas ameaças. Ela funciona como o alarme de incêndio que dispara
mesmo com a fumaça de um cigarro.
No capítulo 1, entenderemos, sob o ponto de vista da psicologia evolutiva, que essa emoção
angustiante foi uma adaptação que livrou nossos ancestrais de vários apuros - e que hoje, nos
tempos em que a caça foi trocada pelo supermercado, vive dando tilts. No capítulo 2, vestiremos os
óculos da neurociência para entender os mecanismos mentais e corporais envolvidos na ansiedade.
Isso permitirá explicar como aprendemos a sentir medo e ansiedade diante de situações muito
diferentes daquelas que nossos ancestrais enfrentaram na savana. Será então a hora de partir para
a psicologia cognitiva e entender, no capítulo 3, que a mente é dividida entre intuição e raciocínio, e
que, na hora de avaliar riscos, somos levados pela intuição. No capítulo 4, descobriremos as
estratégias da nossa mente para identificar intuitivamente riscos possíveis no mínimo de tempo e
com o mínimo de informações - e como isso nos deixa ansiosos diante de riscos ilusórios. Quando
esse nível de ansiedade causar muito sofrimento, desvantagem e invalidez, psiquiatras podem
diagnosticá-lo como um transtorno mental. É o que veremos no capítulo 5, quando também
discutiremos as razões por que sentimos tanta ansiedade no mundo de hoje, mesmo que a
humanidade nunca tenha sido tão próspera e saudável.
Boa leitura.
A ansiedade é boa

Sem a ansiedade, não teríamos


chegado até aqui. A habilidade de
sentir medo daquilo que ainda não
aconteceu nos tornou mais
prevenidos. E isso foi essencial para
que os nossos ancestrais
sobrevivessem por milhões de anos
aos perigos da savana. Só tem um
problema: não estamos mais na
savana.
Cada espécie tem seu habitat. O dos ursos panda é bastante específico: as florestas de regiões
montanhosas do sudeste da China, onde encontram cavernas para se acomodar e muito bambu,
cujas folhas e brotos são comidos com voracidade. Já trutas vivem em águas cristalinas frias muito
oxigenadas, e por isso são encontradas em rios de regiões montanhosas da América do Norte, da
Ásia e da Europa.
E o homem? Seu habitat original é a savana africana - rica em mamíferos de grande porte, que se
alimentam de capim e que viram alimento dos humanos. Nesse ambiente surgiu o primeiro animal
que realmente podia ser chamado de “humano”: o Homo erectus, de 2 milhões de anos atrás, nosso
ancestral direto.
Para que o erectus desse origem ao Homo sapiens (nós, com nossos cérebros gigantes de 1.400
centímetros cúbicos), foram mais 1,8 milhão de anos de seleção natural. Ou seja, 1,8 milhão de anos
em que certas mutações genéticas foram passadas para novas gerações, levando a características
vantajosas para a sobrevivência e para a reprodução dos indivíduos que as carregavam. Perto desse
oceano de tempo, parecem recentes o ano 10 mil a.C., quando a agricultura foi introduzida, e o ano
2600 a.C., quando foi fundada a primeira cidade de que se tem notícia.
Por isso, ficamos diante de uma grande limitação quando tentamos entender o funcionamento da
mente humana somente a partir de situações da vida cotidiana. Precisamos analisar o ambiente
onde o homem evoluiu - bandos de caçadores-coletores, que desbravavam amplas paisagens com
predadores, água e caminhos à vista, pontuadas por árvores que oferecem sombra e proteção - e
também as diferenças entre esse ambiente e aquele em que o homem vive hoje. Afinal, ele
conseguiu se estabelecer em todas as paisagens do mundo, transformando-as ou adaptando-se a
elas.
Ele foi o único animal com esse mérito, graças à sua inteligência. Com ela, consegue transformar
florestas em savanas artificiais. Ele queima floresta para que o capim cresça e seja possível
domesticar animais de grande porte. E para que sejam visíveis o horizonte e outros referenciais -
como rochas, montanhas, rios, lagos. O biólogo George Orians descobriu, por exemplo, que crianças
acham as savanas as paisagens mais bonitas, mesmo que nunca tenham estado em uma.
Não se convenceu? Então responda em que ambiente você se sentiria menos ansioso - numa
paisagem do cerrado brasileiro ao lado de um rio, no meio da floresta amazônica, em dunas do
deserto do Saara ou em montanhas de mais de 3.500 metros de altitude nos Andes. Florestas,
desertos e montanhas podem ser bons cenários para filmes de suspense, enquanto o cerrado está
mais próximo de um ambiente habitável. Esse instinto ambiental não se limita à natureza. Um
apartamento valorizado não estará entre os primeiros andares, mas nos últimos, onde é possível ter
uma vista do horizonte. O prédio em que fica esse apartamento valorizado terá um recuo ocupado
por um gramado com algumas árvores e possivelmente esculturas - afinal, valorizamos espaços e
marcos geográficos. Terá também uma piscina e uma área de lazer com abrigo. O mesmo acontece
em condomínios fechados - o que paisagistas fazem nos terrenos não são florestas tropicais,
plataformas de concreto nem dunas de areia, mas uma composição de gramado, arbustos e uma ou
outra árvore frondosa. Com as cidades é a mesma coisa. De forma geral, elas também são mais
agradáveis se tiverem essas características - parques, ruas arborizadas, pontos de referência
monumentais, massas de água, como rios, lagos ou o mar, e tudo mais que nos permita criar um
mapa mental do ambiente e encontrar abrigos seguros para quando fizer muito sol ou chover.
O nosso habitat natural - e ambientes que remetam a ele - nos deixa tranquilos. Só que ele
também traz ameaças. Ele é compartilhado por outras espécies que competem por recursos, que
mantêm conosco uma relação de presa e predador, ou que possuem defesas, como venenos. Ele
também possui obstáculos físicos, como chuvas, secas, precipícios e a escuridão da noite, que
podem ser menos perigosos para nossa espécie do que o frio das montanhas ou a aridez do deserto,
mas que representam riscos reais à vida. E quando percebemos que estamos sob alguma forma de
ameaça, sentimos um desconforto. Uma inquietação...
Uma ansiedade.
Essa ansiedade é uma de tantas adaptações que trouxeram sucesso evolutivo a várias espécies -
uma adaptação muito parecida com a dor. E quando um animal sente dor? Quando ele é exposto a
algum estímulo que possa levar a lesões (seja um esforço físico grande, seja uma pressão ou uma
alta temperatura sobre a pele). O corpo recebe esse estímulo, o sistema nervoso o transforma em
dor e manda o corpo reagir para fugir dele. O mesmo acontece com o medo e a ansiedade. Eles são
estados do corpo e da mente que nos tornam aptos para tomar decisões com rapidez, para agir de
forma a evitar algo que possa nos fazer mal.
Essa ameaça pode não ser muito grande. Pode até ser um engano. Digamos que um homem vá
coletar água num poço ao lado de uma bela e frondosa árvore no nascer do sol na região de savana
do Serengueti - um parque nacional na Tanzânia. De repente, ouve um ruído longínquo. Pode ser o
rugido de um leão faminto, de um rinoceronte ou apenas uma rajada de vento. Se ele ficar
apavorado e sair correndo desesperadamente até um lugar seguro, antes que um possível leão se
aproxime, vai ter gasto quase 200 calorias em 10 minutos. Mas, se não correr e depois for
surpreendido por um leão, perderá seu corpinho inteiro - isto é, 200 mil calorias. Por esse raciocínio
frio e puramente matemático, dá para concluir que ter um ataque de pânico vale a pena se a
probabilidade de o ruído ser de um leão for maior que 1 em 1.000. Isso não é uma ilação vazia, mas
a conclusão do psiquiatra Randolph Nesse, da Universidade de Michigan, em sua empreitada em
busca das causas evolutivas de transtornos mentais.
Pelo ponto de vista de Nesse, é por isso que sentimos medo mesmo quando a ameaça é bem
pequena. É uma apreensão antipredatória. E ansiedade é basicamente isso: o medo de uma ameaça
futura que ainda não é real (e que possivelmente nunca será). Mesmo assim, aqueles que nascessem
sem essa capacidade de responder exageradamente diante de um risco tenderiam a não viver tempo
o bastante para levar seus genes à frente – reproduzir-se, enfim. Superestimar uma ameaça tornou-
se uma adaptação por aumentar a chance de sobrevivência em relação àqueles que subestimam uma
ameaça. Para exemplificar isso, Nesse levantou outros medos e ansiedades que sentimos hoje e
traçou suas origens evolutivas:
– Você está diante de um abismo - digamos que seja a sacada da cobertura de um prédio. O seu
medo é tamanho que, em vez de sair correndo, você fica completamente imobilizado. O risco de cair
pode ser muito pequeno, mas essa adaptação deixou nossos ancestrais menos suscetíveis a quedas
em precipícios e buracos.

– A enfermeira amarra seu braço com um elástico, insere uma agulha em sua veia e, assim que o
sangue começa a pular na ampola, você passa a suar frio. Já pálido, percebe que a visão escurece. E
você desmaia. O nome disso é “síncope vasovagal” e, por mais desagradável que seja, ela salvou a
vida de seus ancestrais quando eram feridos. Motivo: a visão do sangue ou de um ferimento faz os
batimentos cardíacos e a pressão arterial diminuírem para evitar uma perda de sangue muito
rápida. Com isso, diminui a irrigação do cérebro, o que causa o desmaio - desagradável, mas na
savana isso inibia o ataque de predadores. E pode ficar tranquilo: basta ficar na horizontal para que
o sangue volte para o cérebro e você recupere a consciência.

– Você acaba de chegar a Pequim. Sabe que a cidade tem índices baixíssimos de criminalidade,
que tem ótimo transporte público e que está cheia de pontos de referência para você não se perder.
Mas aquele lugar aberto, cheio de gente, de repente dispara um terror. Calma. Isso é apenas uma
versão intensificada de medos que protegem qualquer espécie de animal territorial de eventuais
perigos quando ele está fora de seu próprio território. Para o homem da savana, era importante ficar
atento a predadores e a inimigos ao entrar num território desconhecido - afinal, qualquer pessoa
que não pertencesse ao seu bando seria um rival na busca por alimentos e outros recursos. No
homem de hoje, não é muito diferente: viagens para lugares desconhecidos, por si só, já são capazes
de engatilhar crises de ansiedade.

– Seu chefe o convidou para um jantar com o pessoal do seu novo trabalho, mas basta aceitar o
convite para você se arrepender. Você deveria levar um vinho para o anfitrião? Mas sua escolha não
vai acabar mostrando que você não entende nada de vinho? E sua roupa? Se for formal demais, as
pessoas vão rir de você; se for muito informal, vão achar que você é um pé-rapado. E se você tiver
gases bem naquele dia? E se espirrar na mesa? E se tiver uma caca no seu nariz ou estiver com mau
hálito? E se a sua braguilha abrir quando você se levantar? E se não souber usar os talheres? Esse
tipo de insegurança pode ser desagradável e privá-lo de boas oportunidades de fazer marketing
pessoal. Mas levou seus antepassados a seguir normas de seus respectivos grupos, tornando-os mais
coesos e menos conflituosos.

O QUE, AFINAL, É A ANSIEDADE?


Somos capazes de diferenciar facilmente pela intuição aquilo que é medo (sentimos medo numa
situação bem específica, como uma arma apontada para a cabeça) e o que é ansiedade (ela é menos
definida, e às vezes nem percebemos a causa de nossa ansiedade). O fato é que os dois são estados
mentais e corporais muito parecidos - são “estados aversivos”, ou seja, que nos fazem evitar alguma
coisa. Mas, enquanto o medo é uma resposta do seu corpo para se livrar ou se defender de uma
ameaça percebida imediatamente, a ansiedade é desencadeada a partir da avaliação do que pode
trazer riscos futuramente.
Temos medo de algo no presente, e nos sentimos ansiosos por algo no futuro - uma incerteza. A
causa do medo está perto, a da ansiedade, longe. O medo torna nosso corpo apto para se defender
ou fugir de uma situação de frente para nós, e a ansiedade antecipa essa prontidão, deixando a
mente sob alerta e o corpo apto para encarar ou evitar o possível risco. Ou seja, no final das contas,
a ansiedade acaba engajando os mesmos mecanismos do medo, mas, antes de chegar a isso, ela vai
ter ativado outros circuitos mais complexos, responsáveis pelo planejamento, organização e
raciocínio.
Só que uma ameaça não dispara apenas o medo (ou a ansiedade). Ela engatilha várias outras
emoções ao mesmo tempo, o que resulta numa emoção com várias cores: o medo, a tristeza, o
desânimo e a repulsa diante de algo que possa trazer desvantagem, ou a felicidade e a excitação
diante de algo que possa trazer vantagem. Por isso, é difícil imaginar qual é a sensação de sentir o
medo e a ansiedade puros. Eles são um sentimento com vários matizes e cores sobrepostos.
Suponhamos que seus pais tenham viajado para a casa de um tio e ficado de telefonar quando
chegassem lá. As horas passam, você não recebe notícias deles, e suas ligações caem na caixa
postal. Você fica ansioso. De tempos em tempos, pensa num acidente de carro e visualiza o velório
dos seus pais. Então sua ansiedade assume cores de medo. Conforme o tempo passa, também
poderá sentir tristeza, como se sentisse antecipadamente sua perda. Liga, liga, liga, e ninguém
atende. E da ansiedade você parte para o desânimo - não há mais esperança, melhor é se conformar
e pensar no que fazer de sua vida sem seus pais. Até que finalmente você recebe o telefonema deles
avisando que ficaram presos num congestionamento numa área sem sinal de celular, mas que já
estão chegando ao destino. Ufa... Alívio.
Essa sucessão de emoções poderia acontecer na Índia, na China, na Malásia, no México ou em
qualquer parte do mundo. Durante a crise de ansiedade, um hindu poderia fazer uma oferenda a um
de seus vários deuses, um ateu poderia roer as unhas, um muçulmano poderia voltar-se a Meca, e
um católico mexicano poderia se prostrar diante de uma imagem de Nossa Senhora de Guadalupe.
Mas, com maior ou menor intensidade, uma cor a mais e outra a menos, a ansiedade estaria lá. Do
ponto de vista evolutivo, as emoções não são apenas resultado da criação da pessoa e da cultura
dela. São padrões de resposta naturalmente selecionados ao longo da evolução do ser humano. Elas
alteram nosso organismo, e nosso organismo as altera. Mudam nossa motivação, nossa fisiologia,
nossa memória, e assim nos tornam mais aptos a agir de uma forma que, nos tempos da savana, foi
mais adequada para esse tipo de situação. Por isso, para entender por que as emoções existem e
para que elas servem, é preciso definir as situações em que são úteis e quais os desafios adaptativos
relacionados a essas situações, defende Randolph Nesse.
É aí que começam a surgir alguns problemas. Não vivemos mais na savana. Aranhas, cobras,
grandes carnívoros, precipícios, sangramentos e ambientes desconhecidos eram ameaças concretas.
Mas hoje andamos em ruas com centenas ou até milhares de pessoas à nossa volta, voamos em
aviões a milhares de metros de altura, fazemos tratamentos médicos e odontológicos que incluem
bisturis, agulhas, brocas, furadeiras e martelinhos, e precisamos falar diariamente com completos
estranhos, às vezes com audiências preparadas para apontar cada deslize. Racionalmente, sabemos
que isso faz parte de nosso mundo. Que os instrumentos cortantes de cirurgiões nos curam, que
dificilmente alguém sairá da plateia para nos agredir fisicamente por não aprovar o que falamos,
que aviões são dos meios de transportes mais seguros. Mas como aprendemos a ligar emoções a
estímulos que não existiam em nosso ambiente natural? E como mudar as emoções que sentimos
diante de estímulos que, em nosso ambiente natural, eram nocivos, mas que hoje são benéficos? Se
um ianomâmi viver culturalmente isolado e for posto numa montanha-russa, possivelmente essa será
a experiência mais traumática de sua vida. Mas se lhe for explicado que montanha-russa é uma
coisa bacana, ele pode curtir a coisa e até desejar voltar a se aventurar nela. Como é possível que
isso aconteça? É o que veremos a seguir.
A anatomia da ansiedade

Emoções como a ansiedade são


fundamentais na hora de tomar as
decisões mais importantes da sua
vida. Sem ela, o risco de você
cometer erros, como escolher a
profissão errada, seria bem maior.
Nós quase não pensamos sobre o presente. Quando pensamos, geralmente é para decidir o que
faremos no futuro. De resto, funcionamos no automático. E mesmo algumas decisões são tomadas
sem pensar. Talvez, a maioria delas. “Eu agi por impulso”, diria qualquer um que tomasse uma
decisão precipitada, seja comprar uma roupa, seja dar um murro na cara de algum desafeto. Mas,
algumas vezes, acontece também em momentos muito menos urgentes, como aceitar um trabalho do
qual não conseguirá dar conta, ou pedir demissão diante de um grande estresse. O que nos faz agir
assim certamente não é a nossa capacidade de raciocinar, mas um padrão estranho com o qual
talvez tenhamos nascido, talvez tenhamos aprendido. Para um dos mais importantes neurocientistas
da história, o português António Damásio, o nome desse padrão é “marcador somático”. Como
veremos, eles são essenciais para aprender quais emoções sentimos diante das diferentes situações
que enfrentamos ao longo da vida. Incluindo o medo - e, por consequência, a ansiedade.
Em Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano, Damásio propõe três cenários que
nos forçam a agir - do mais automático até o que exige mais raciocínio. Primeiro, a fome. Quando
você está sem comer há certo tempo, o nível de glicose do seu sangue cai, e neurônios no seu
hipotálamo detectam essa alteração - seu corpo não está nas condições ideais de funcionamento. Há
uma situação pedindo uma ação, há um conhecimento fisiológico dessa situação em seu hipotálamo,
e há uma estratégia num circuito neural que trará a resposta “fome”, que por sua vez fará você
procurar por comida. Isso é o que se chama de “homeostase” - a propriedade de um organismo
manter suas condições ideais de funcionamento. É o mesmo que acontece quando estamos numa
temperatura baixa - sentimos frio, automaticamente nossos pelos ficam eriçados e, conscientemente,
buscamos abrigo ou roupas -, numa temperatura alta - sentimos calor, começamos a suar e
conscientemente começamos a nos abanar - e quando somos feridos - sentimos dor, nosso cérebro
dispara mecanismos analgésicos, como a produção de opioides naturais, e automaticamente nos
afastamos do objeto que causa dor, para depois conscientemente cuidarmos do ferimento.
No segundo exemplo proposto por Damásio, há um objeto caindo. Há uma situação pedindo ação,
há opções de ação (pegar ou não o objeto), cada um com uma consequência diferente. Mas não há
tempo para que se construa uma estratégia racional para escolher a opção. Se nunca tivéssemos
visto um objeto cair, não reagiríamos. Só que a experiência que tivemos ao longo da vida com
situações parecidas nos faz agir dentro de um padrão. O objeto cai e, antes que a gravidade termine
seu trabalho, você o pega. Estímulo e resposta passam a ser fortemente ligados.
O terceiro cenário é a escolha de uma carreira. Diferentemente da segunda situação, essa
escolha exige o raciocínio. São muitas as opções, suas consequências têm inúmeras ramificações,
que, por sua vez, envolvem curto, médio e longo prazo, com vantagens e desvantagens em diversas
instâncias. Tudo precisa ser pesado e mediado pelo raciocínio. Ele avaliaria o custo e o benefício de
cada escolha e chegaria à melhor. Mas será que quem manda nas nossas decisões - mesmo as mais
complexas - é de fato o raciocínio?
Digamos que sua família seja de médicos bem-sucedidos e que você tenha preparo para passar
num vestibular de medicina. Por outro lado, você sabe que o curso exigiria pelo menos seis anos de
graduação mais uns dois anos de residência. E que você é muito mais interessado em cinema do que
no tratamento de doenças de desconhecidos. Ao mesmo tempo, você sabe que o mercado de
trabalho de profissionais do audiovisual é mais restrito do que o de médicos, e que um médico
mediano tem mais sucesso financeiro do que um diretor mediano. Se você ficar nessa lenga-lenga de
pensar o que é melhor para você, dificilmente chegará a uma conclusão. Talvez você acabe
decidindo se tornar jornalista, para fazer matérias sobre saúde na televisão - um meio-termo que
não satisfará nem a ambição financeira, nem o prazer pessoal.
Mas isso não é exatamente o que acontece com as pessoas. Algo interfere em nossas decisões
racionais. Algo muito imediato. Algo que se parece muito mais com o cenário da fome e o do objeto
caindo do que com a razão pura. E esse algo é o tal do marcador somático de Damásio. “Quando um
marcador somático é justaposto a um resultado futuro em particular, a combinação funciona como
um sinal de alerta. Quando em vez disso é justaposto um marcador somático positivo, ele se torna
um incentivo”, escreve Damásio.
Ao pensar em ser cineasta, você sente um grande prazer que não tem nada a ver com a razão.
Mas, quando imagina um cenário bastante realista - o de um cineasta sem sucesso que, em vez de
receber prêmios em Cannes, vê-se obrigado a filmar vídeos institucionais para empresas de pequeno
porte para pagar seu aluguel -, você sente um medo ainda maior. Em seguida, vem a imagem de um
contracheque inferior ao valor da soma de contas mensais - aluguel, prestação de eletrodomésticos,
gás, eletricidade, condomínio etc. Não, o que você imagina não é uma simples conta negativa. É o
desespero sem escapatória, que começa no arrepiar de seus pelos e no acelerar de seu coração,
dizendo: “Não estudarás cinema.”
Então, você pensa em se tornar médico. Mas logo se lembra de como seus pais se sacrificaram
em plantões de 24 horas seguidas. Seria horrível se você não pudesse acompanhar de perto o
crescimento de seus filhos, não? É aí que você sente uma leve tristeza. Como já não está mais muito
otimista, chuta o balde e começa a imaginar quantos acidentados com corpos destroçados
sangrando até a morte você terá de enfrentar nesses plantões. E, de repente, seu estômago se
revira: “Não estudarás medicina.”
Nesse breve tempo, você sentiu diferentes ameaças se aproximarem de você. Pobreza, solidão,
sangue. E isso o faz rejeitar imediatamente qualquer um dos caminhos, diminuindo com isso as
alternativas que lhe restam. Não quer dizer que sua razão tenha ido água abaixo. Você continuará a
pensar de forma racional, mas os marcadores somáticos já terão reduzido suas alternativas. De
repente, jornalismo e administração de empresas parecem alternativas extremamente racionais -
embora tenham sido peneiradas por um processo seletivo altamente emocional.
Constantemente, adquirimos marcadores somáticos. Eles são emoções que, seja por experiência
própria, seja por meio da comunicação, se colam a certos cenários futuros que fazemos. Quando a
imagem de uma consequência negativa está conectada a um marcador negativo ligado, por exemplo,
ao medo e à aversão, você experimenta em suas entranhas um sentimento desagradável. E se está
ligada a um marcador positivo de prazer ou felicidade, você experimenta um sentimento agradável.
É por esse sentimento ser físico que Damásio o considera somático, e por estar relacionado a uma
imagem que ele lhe deu o nome de marcador. A ação desse marcador é imediata, e protege você de
possíveis perdas futuras.
A publicidade usa o medo e o prazer para influenciar nossas escolhas inconscientes. A
propaganda política faz o mesmo para apoiar este ou aquele candidato. Nossos pais e professores
fazem o mesmo para tentar moldar nosso comportamento - com maior ou menor sucesso.
Intencionalmente ou não, notícias e filmes também têm esse impacto.
Escolher a profissão não era um problema quando vivíamos na savana. Ou caçávamos - o que em
geral ficava a cargo dos homens - ou coletávamos vegetais - o que ficava a cargo das mulheres e dos
homens quando faltava o que caçar. Mas o mecanismo que cria os marcadores somáticos evoluiu da
mesma forma que o medo de cobras, de solidão e de contaminação. Para aprender a se proteger e a
tirar vantagem de situações novas - e não apenas de padrões selecionados pela evolução -, nossos
ancestrais precisavam aprender a ter medo e desejo por meio da experiência e das histórias
contadas por seus familiares. Com a capacidade de adquirir marcadores somáticos, aprendiam, por
exemplo, a reagir imediatamente diante do uso de uma nova arma de um inimigo, ou a evitar sem
pestanejar uma fruta venenosa que matou um irmão. Com os marcadores somáticos, nosso corpo
aprende a reagir da mesma forma diante da possível ameaça de um leão, da água de um lago
contaminado e da perspectiva de não conseguir pagar as contas no futuro.
Mas, afinal, como é que o corpo reage a emoções?

A ANATOMIA DAS EMOÇÕES


Temos muitos tipos de emoções - estados do corpo que nos deixam aptos a um tipo específico de
ação. As mais básicas delas - que compartilhamos com outros mamíferos - são emoções primárias.
Felicidade, tristeza, medo, raiva, surpresa e aversão - nascemos com todas elas, e para cada uma
delas temos uma expressão facial universal. O centro dessas emoções é o sistema límbico, que tem,
entre outras estruturas, a amígdala (envolvida na sinalização de medo e recompensa, além do
comportamento sexual), o hipocampo (que permite comparar experiências atuais com experiências
passadas), a área tegmental ventral (que libera a dopamina, hormônio do prazer) e o hipotálamo
(que sintetiza neuro-hormônios, que, por sua vez, controlam a secreção de hormônios responsáveis
pela alteração do corpo em diferentes estados emocionais).
Evoluímos programados para reagir emocionalmente a alguns estímulos. Quando isso acontece, o
sistema límbico prepara o corpo para a reação correspondente a esse estímulo fazendo três coisas:
- manda o sistema nervoso autônomo (SNA, parte do sistema nervoso que controla funções da
“vida vegetativa”, como a respiração, a circulação do sangue, o controle de temperatura e a
digestão) dizer às vísceras que fiquem no estado certo;
- manda o sistema motor dizer aos músculos esqueléticos que fiquem na postura corporal e na
expressão facial certa para a reação certa;
- manda o sistema endócrino produzir hormônios que causem as mudanças corporais e mentais
certas.
Vamos pegar o exemplo de quando encaramos uma cobra preparada para dar o bote. Quando a
amígdala recebe esse estímulo, ela manda o tronco encefálico (manda-chuva do SNA) e o hipotálamo
(manda-chuva do sistema endócrino) agirem no que é chamado de resposta de “luta ou fuga” - a
preparação de condições ideais do corpo para se livrar da ameaça. O fígado começa a liberar glicose
para você poder ter uma reação física; aumentam a pressão arterial e os batimentos cardíacos, para
o sangue circular mais rapidamente; a respiração fica rápida, para aumentar a absorção de oxigênio
e a liberação de monóxido de carbono; dilatam-se as pupilas; as artérias da pele e do sistema
digestivo se contraem, para mandar sangue aos músculos (daí o friozinho na barriga e na pele); os
músculos se enrijecem; a face se contrai, formando a típica expressão de medo; os trajetos de
processamento da dor são bloqueados, e a atenção se torna completamente focada no risco (você
não vai pensar em comida enquanto foge de uma cobra). Alternativamente, ficamos paralisados, com
respiração superficial e batimentos cardíacos desacelerados, para não chamarmos a atenção de
nosso possível atacante.
Isso é o que acontece com o medo. Já a tristeza desacelera o raciocínio e nos leva a ruminar a
situação que a desencadeou. A alegria acelera o raciocínio e focaliza a atenção a um só tópico. E
assim seguem as emoções.
Só que o sistema límbico não basta para reagirmos emocionalmente às situações tão variáveis
que o humano enfrenta. É verdade que sentimos o medo de um trovão, a felicidade de um prato de
comida quando sentimos fome e a aversão ao cheiro de cadáveres. Mas, até aí, não somos muito
diferentes de um cachorro. A nossa grande diferença são as emoções secundárias - aquelas que
sentimos quando aprendemos a relacionar essas emoções primárias a novas categorias de objetos e
situações.
Para isso, precisamos estabelecer relações entre o sistema límbico e a parte do cérebro humano
que mais se desenvolveu em comparação com outros animais: o neocórtex. Ou, mais
especificamente, o córtex pré-frontal (implicado no planejamento, na expressão da personalidade,
na decisão e na moderação do comportamento social) e os córtices somatossensoriais (cada um
responsável pela visão, audição, olfato, paladar e toque).
Ao longo da vida, passamos por um processo de educação por parentes e autoridades, que
tendem a incorporar as convenções sociais e éticas de uma cultura, e também enfrentamos
diferentes experiências. Todos esses tipos de objetos e situações ocorrem sob uma coloração
emocional, geralmente por meio de recompensas e punições. Assim, eles são processados em nossos
córtices de forma associada a essas emoções. É o que cria a conexão entre um tipo de objeto ou
situação e uma emoção.
Vamos ver o caso de quando ouvimos falar que uma pessoa querida morreu. Quando isso
acontece, segundo Damásio, nosso pensamento cria, em diversos córtices sensoriais, imagens
mentais com aspectos do seu relacionamento com essa pessoa. Imagens, sons, sensações que você
compartilhou com ela.
Automática e inconscientemente, redes neurais no córtex pré-frontal respondem a essas imagens
mentais, comparando-as aos pares de situação/objeto e emoção secundária. “Ou seja, essa emoção
vem de representações dispositivas adquiridas, e não inatas, embora as disposições adquiridas
sejam obtidas sob a influência de disposições inatas”, escreve Damásio. Assim, nossa biografia vai
acumular um repertório único de emoções, com diferentes estímulos-chave para diferentes emoções-
fechadura em cada pessoa. O que me causa medo não é necessariamente amedrontador para você.
Mas, uma vez dado esse passo de aprendizado de emoções, essas disposições são passadas de
forma automática e inconsciente para o sistema límbico. A partir daí, segue-se o mesmo caminho
das emoções primárias.
Para mostrar como emoções secundárias são diferentes das primárias, podemos pegar o exemplo
de pessoas que, por alguma lesão ou por algum déficit neurológico, tenham uma ativação menor do
córtex pré-frontal - parte do cérebro que processa os pares de situação aprendida e emoção
secundária. Dito de forma mais simples, pessoas que não conseguem aprender emoções. É o caso do
que o psicólogo canadense Robert Hare classifica como psicopatas.
É comum dizer que psicopatas não sentem emoção. Isso não é verdade. Eles sentem, sim. Mas
apenas emoções primárias, inatas. Tal como nós, eles ficam com raiva quando sua vontade não é
acatada, sentem prazer com sexo, comida, status social, e assim por diante. Ainda assim, não se
comovem com a morte de um conhecido, não internalizam valores morais e não sentem culpa ou
indignação quando tais valores são violados.
Psicopatas são especialistas em mentir, e são muito mais propensos a roubar, estuprar, matar e
cometer outros crimes menos graves. Em geral, são espertos, mas, apesar de saberem que suas
ações podem prejudicar os outros e ser punidas pelo sistema legal ou pelo rancor de suas vítimas,
tendem a repetir seus atos. Isso porque a maquinaria neurológica que constrói e ativa os
marcadores somáticos não funciona normalmente neles.
Geralmente, pessoas têm, sim, emoções primárias automatizadas, estruturadas em nossos genes.
Mas, diferentemente dos psicopatas, elas também têm um espaço enorme para emoções pessoais,
aprendidas e muito variáveis conforme a cultura. Japoneses tendem a ser mais contidos em suas
demonstrações de emoção do que italianos não necessariamente por alguma diferença genética,
mas possivelmente por diferenças entre suas culturas. A cultura influencia na coleção de
marcadores somáticos de um indivíduo. Da mesma forma, pessoas que vivem em grandes cidades
violentas são mais ansiosas do que moradores de pequenos vilarejos de pescadores por diferenças
entre suas experiências de vida - e pela diferença de marcadores somáticos por elas criados e pelas
situações em que eles serão ativados.
Marcadores somáticos - que são sentimentos especiais gerados a partir de emoções secundárias -
não bastam para tomarmos decisões. Mas eles reduzem alternativas, destacam certas opções e
influenciam a escolha final. Depois de passar por essa peneira emocional, tomar decisões racionais
se torna mais rápido e fácil. Numa situação cheia de custos e benefícios a curto e longo prazo - como
a escolha de uma profissão que exige muito tempo de estudo -, um marcador somático muito
positivo conectado à consequência a longo prazo pode nos fazer escolher essas opções pouco
imediatas. Ainda que o tempo entre sacrifício e recompensa apenas aumente nossa ansiedade. Tal
como o que acontece quando se escreve um livro.
O piloto
automático

O homem raramente é racional. Na


maior parte do tempo, sua mente
funciona à base da intuição, um
piloto automático que percebe
ameaças e oportunidades com um
mínimo de informações. Somente
quando a intuição não dá conta do
recado é que passamos a raciocinar
- já influenciados por uma intuição
imperfeita.
Escreva a palavra SUPERINTERESSANTE. Imagine agora que você tenha respingado sobre ela um
tanto de tinta, que acabou escondendo partes de cada uma das letras. Se seu cérebro fosse um
identificador de caracteres desses usados para digitalizar textos impressos, nenhuma das letras
manchadas poderia ser lida. Mas não é o que acontece. Você continua sendo capaz de ler a palavra.
Agora, se você lesse letra por letra, as manchas poderiam não deixar claro se uma letra é “P”, “R”
ou “B”, “N” ou “H”, “E” ou “F”. Mesmo assim, você não acharia que a palavra era
“SUBFPIHTFPFSSAHTF”. Mesmo se algumas letras inteiras fossem borradas, continuaria a ler
“SUPERINTERESSANTE”. E mais: mesmo se alguém trocar algumas letras de ordem - escrevendo,
por exemplo, “SUPREINETERSSANTE” -, dificilmente você se daria o trabalho de procurar no
dicionário o significado dessa palavra inexistente. Pelo contrário. Pode sequer perceber o erro. Isso
porque nosso cérebro não tem uma lista de vocábulos perfeitinhos com os quais comparamos a
realidade, tal como um computador. Se um programador errar uma única letra, o programa poderá
não funcionar. Afinal, para computadores, uma coisa é ou não é. Já para nosso cérebro, tudo pode ou
não pode ser. Trabalhamos com associações automáticas. Você vê uma palavra grande começando
com “S” e terminando com “SSANTE”, contendo as letras “U”, “P”, “R”, “E”, “I”, “N”, “S”, num texto
escrito na SUPER. Automaticamente, puxará da memória “SUPERINTERESSANTE”, mesmo que a
palavra não seja essa.
Digamos agora que você veja um objeto do tamanho de um punho fechado, peludo e com um rabo
comprido, movendo-se em sua direção. Esse objeto tem três patas. Você não deixará de reconhecê-lo
como um rato por ele não se encaixar dentro de todas as características de um rato, muito menos
pensar que se trata de um animal não mamífero jamais classificado por biólogos - afinal, não existem
mamíferos com três patas. Vai ter fugido dele antes mesmo de perceber que ele não tem quatro
patas. E, se perceber, vai imaginar que ele perdeu a quarta pata num acidente - ou que nasceu com
alguma mutação genética. Somos ótimos generalizadores. Se uma condição não se encaixa com a
maioria das condições, não achamos que o objeto pertence a outra categoria; apenas ignoramos o
que está fora do padrão. Além disso, se dois objetos são semelhantes em algumas coisas, supomos
que serão semelhantes também no resto, mesmo que não possamos verificá-lo.

AS DUAS MENTES
Ao ver uma fotografia de um homem de seus 40 anos falando ao celular, de paletó, com expressão de
raiva, somos capazes de, imediatamente, julgar o que ele sente e imaginar que é um executivo
discutindo sobre alguma decisão errada tomada por algum subordinado. Por outro lado, se virmos o
seguinte cálculo - 782 x 43 -, precisaremos de papel e caneta para chegar ao resultado. Na pressa,
arredondamos a conta para algo como 800 x 40, e não demorará muito para chegarmos a 32.000 -
nada mal, quando o resultado correto seria 33.626. Mas precisamos dar vários passos para chegar a
um resultado impreciso. Arredondamos os números para uma potência de 10, somamos o número de
zeros, multiplicamos 8 por 4 e colocamos depois do resultado o total de zeros. Já um computador
fará o cálculo exato imediatamente. Mas não chegaria aos pés de nossa intuição ao identificar o
homem de paletó como um executivo nervoso. E o que os humanos precisam para se guiar pelo
ambiente não é de números exatos, mas, sim, da intuição - formada a partir de emoções primárias
inatas e dos marcadores somáticos sobre os quais acabamos de falar.
Nossa intuição é uma vantagem enorme para nosso sucesso evolutivo. Se não fosse isso, não
conseguiríamos identificar características comuns aos vegetais que comemos, odores de alimentos
podres, animais que provavelmente serão perigosos. Ouvimos um trovão e sabemos que choverá.
Percebemos que uma superfície é úmida e sabemos que não é uma boa ideia dormir sobre ela.
Identificamos a raiva de um interlocutor nas primeiras palavras que ele enuncia ao telefone.
Mudamos de faixa na estrada diante dos mais sutis sinais de agressividade do carro de trás. Mas o
mesmo mecanismo também nos torna péssimos para julgar e tomar decisões em situações mais
complexas. Somos cegos em estatística.
Os responsáveis pelos estudos mais respeitados sobre como avaliamos as coisas diante de
situações incertas foram o psicólogo Daniel Kahneman e seu parceiro já falecido Amos Tversky. Suas
pesquisas - que começaram na década de 1970 na Universidade Hebraica de Jerusalém - renderam o
Nobel de Economia, e foram resumidas junto a descobertas relevantes na área em 2011 no livro
Thinking, Fast and Slow. Sua base está em propor que a mente funciona com dois sistemas distintos.
Um opera automaticamente, com quase nenhum controle. São as intuições, impressões, intenções e
sentimentos. Ele dá origem às nossas impressões e sentimentos, comanda nossas crenças e nossas
decisões deliberadas. O outro exige que foquemos nossa atenção em computações complexas, passo
a passo.
O primeiro sistema - vamos chamá-lo de “Sistema 1” - nos permite identificar se um objeto está
mais distante do outro, faz-nos responder a um estímulo com uma expressão facial, reconhece
logotipos de marcas comerciais e riscos em potencial. Assim, percebemos o mundo à nossa volta,
reconhecemos objetos imediatamente e identificamos o que pode nos trazer um benefício ou uma
perda. Conforme somos educados, treinamos habilidades específicas que se tornam também
automáticas. Um engenheiro pode olhar para uma estrutura e sentir que ela não é estável, e um
médico não precisa mais do que olhar para uma garganta inflamada para chegar a um diagnóstico
preliminar. Se não fosse isso, cairíamos no primeiro exemplo deste capítulo - a incapacidade de
entender a palavra “SUPREINETERSSANTE” como “SUPERINTERESSANTE”.
Mas basta exigir um pouco de atenção para que mudemos para o segundo sistema, que
chamaremos de “Sistema 2”. Precisamos fazer esse tipo de operação toda vez que nosso piloto
automático não consegue dar conta daquilo que encontramos à frente. Por exemplo, quando
mentalizamos quem é quem num livro com uma árvore genealógica complexa como a de Cem Anos
de Solidão. Ou quando paramos para lembrar de quem é aquela música que tocava no carro que
passou por você no trânsito. Ou quando tentamos agir de forma apropriada numa situação social a
que não estamos acostumados. Ou quando procuramos uma pessoa em específico na multidão. Ou
quando percebemos que o rato tem três patas. Sem prestar atenção, não conseguiremos completar
essas tarefas.
O problema é que a atenção é cara. Quando nos ocupamos com uma única atividade mental,
deixamos de lado outros estímulos que podem ter importância. No livro The Invisible Gorilla: And
Other Ways Our Intuitions Deceive Us, Christopher Chabris e Daniel Simons relatam um
experimento com milhares de voluntários. Eles deviam assistir a um vídeo com dois times passando
bolas de basquete, um vestindo uniforme preto, outro, branco. Um grupo deveria contar o número
de passes do time de branco, ignorando os de preto, enquanto o outro apenas assistiria ao vídeo. Na
metade do jogo, uma mulher fantasiada de gorila passou pela quadra por 9 segundos. Metade dos
voluntários que contavam os passes não percebeu a presença do gorila, enquanto todos os do outro
grupo perceberam. A conclusão do estudo é de que nos tornamos cegos quando estamos atentos a
uma coisa só. E deixar de ver o que está à nossa volta é receita para ser comido por um leão. O peso
evolutivo disso é enorme.
É por isso que passamos a maior parte do tempo rodando predominantemente no Sistema 1,
enquanto o Sistema 2 trabalha no modo de economia de energia. “Essa divisão de tarefas é muito
eficiente: minimiza esforços e otimiza o desempenho”, diz Kahneman. Mesmo quando nossa atenção
é capturada e passamos a raciocinar, o Sistema 1 continua a influenciar o Sistema 2. “Se forem
endossadas pelo Sistema 2, impressões e intuições se tornam crenças, e impulsos se tornam ações
voluntárias. Se tudo for bem - o que acontece na maior parte do tempo - o Sistema 2 aceita as
sugestões do Sistema 1 com pouca ou nenhuma alteração. Você geralmente acredita em suas
impressões e age conforme seus desejos.”
Mas toda vez que o Sistema 1 não dá conta de entender um evento menos familiar ou que viola as
regras que o comandam, sentimos surpresa. E a surpresa nada mais é do que o Sistema 1 chamando
o Sistema 2 para resolver o problema. É o que acontece, por exemplo, quando andamos na “Casa
Maluca” de parques de diversões, e bolas se movem sozinhas sobre a superfície plana da mesa de
bilhar. Paramos e, a partir de nosso repertório de leis da física e de outros estímulos que
percebemos em nosso entorno, concluímos que, na verdade, a casa inteira está inclinada. A bola não
está andando sozinha, mas, sim, é “puxada” pela gravidade.
E o que isso tem a ver com a ansiedade? Simples. A evolução se encarregou também de
selecionar aqueles indivíduos que tivessem um Sistema 1 capaz de aprender com a criação, com a
experiência e com a educação. Afinal, os estímulos que representavam alguma ameaça à
sobrevivência e à reprodução não eram apenas animais perigosos, solidão, traição do cônjuge,
pessoas desconhecidas, ambientes pouco familiares e altura. Situações novas traziam novas
ameaças e novas recompensas. E, da mesma forma como aprendemos a realizar novas tarefas por
meio da comunicação, aprendemos a identificar novos riscos. De início, isso pode exigir um enorme
esforço de memorização, coordenação, avaliação. Inserir uma agulha numa veia, afinar um violão,
reconhecer o ponto de cocção de um peixe, fazer a baliza de um carro e identificar o comportamento
suspeito de um assaltante em potencial podem exigir uma
quantidade enorme de raciocínio do Sistema 2. Mas, conforme praticamos essas tarefas, o Sistema 1
passa a internalizá-las.
Como o Sistema 1 é, por definição, automático, ele não pode se dar o luxo de pesar as inúmeras
variáveis necessárias para que uma coisa de fato represente uma ameaça. Ele cria um estereótipo
do que é o risco e imediatamente desencadeia uma reação. Afinal, quanto menos variáveis tiverem
de ser pesadas, mais rápida a reação, e maior a chance de sobrevivência diante de um risco.
Por exemplo, em vez de observar os vários traços comportamentais de pessoas à sua volta, ele já
guarda um estereótipo mental do que é o ladrão. Se, ao longo de suas experiências de vida, uma
pessoa criar um estereótipo de que ladrões são homens jovens e negros vestidos com roupas largas
que andam em ruas vazias e mal iluminadas, ela vai provavelmente mudar de calçada quando
encontrar alguém com essas características.
É claro que ela pode usar o Sistema 2 para chegar a melhores estratégias numa situação dessas.
Mas mesmo o Sistema 2, que consideramos tão racional, levará em conta a intuição informada pelo
Sistema 1.
Assim, aprendemos a viver em constante alerta diante de muitas coisas, mesmo sem entender
qual a real dimensão de seu risco.
Para então deixar as coisas mais claras, vamos resumir esses dois sistemas e compará-los. Afinal,
trabalharemos com esses dois conceitos até o final deste livro.

SISTEMA 1:
1 - É holístico.
2 - É afetivo: orienta-se pelo prazer e pela dor.
3 - Faz conexões associativas.
4 - Traz comportamentos mediados pelo que sente de experiências passadas.
5 - Codifica realidade e imagens concretas, metáforas e narrativas.
6 - Tem um processamento rápido - é orientado para a ação imediata.
7 - Valida a experiência própria - viver algo é acreditar.

SISTEMA 2:
1 - É analítico.
2 - É lógico: orienta-se pelo que é razoável.
3 - Faz conexões lógicas.
4 - Traz comportamentos mediados pela avaliação consciente de acontecimentos.
5 - Codifica a realidade em símbolos abstratos, palavras e números.
6 - Tem um processamento lento - é orientado para a ação atrasada.
7 - Exige justificação pela lógica e por provas.
(fonte: Slovic, Finucane, Peters, MacGregor, 2004)

Agora, falta entender quais são as estratégias que o Sistema 1 adota para chegar a conclusões
rápidas. É o que veremos no capítulo a seguir.
Somos muito burros

Às vezes algo extremamente


perigoso parece seguro. E vice-
versa. A mente não sabe ler o
mundo real. E isso deixa você ainda
mais ansioso. Entenda por quê.
Sua casa é tóxica. Algumas tintas de parede a óleo amarelas e verdes têm concentrações de chumbo
que, quando inaladas na forma de poeira, podem prejudicar o desenvolvimento do cérebro de
crianças - e ninguém quer que um filho seja menos inteligente do que seus genes permitem. O
amianto, por ser barato, forte, resistente ao calor e ao fogo, tornou-se um material mágico utilizado
como isolante térmico em telhas, caixas d’água, construção naval, tijolos e pisos. Mas ele aumenta o
risco de câncer. Segundo a OMS, 125 milhões de pessoas são expostas a amianto e, todos os anos,
100 mil trabalhadores morrem por doenças relacionadas a ele. O policarbonato - um tipo de plástico
transparente, duro e flexível usado em potes, revestimentos de latas de alimentos e mamadeiras de
plástico - traz outra ameaça: o bisfenol A. No policarbonato, ele serve para endurecer e tornar esse
plástico próprio para guardar alimentos, mas em mamíferos há evidências científicas de que ele
altera o funcionamento do sistema hormonal, com riscos maiores para grávidas (o que inclui aborto)
e crianças de até 18 meses. Isso para não falar dos ácaros que vivem nas camas, no bolor
proliferado em ambientes úmidos, nos compostos orgânicos voláteis que se desprendem durante a
aplicação e a secagem de resinas, colas e tintas, nas bactérias que formam um biofilme por todo o
banheiro.
Seu carro também pode ser tóxico. E não apenas pelos gases que saem do escapamento de
carangos velhos e desregulados. Segundo o grupo ambientalista americano The Ecology Center,
éteres difenil-polibromados - usados para deixar espumas menos inflamáveis - e ftalatos - que
tornam o PVC mais flexível - podem atingir níveis tóxicos no “cheiro de carro novo”, afirmação que
já foi desmentida por uma equipe da Universidade Técnica de Munique, Alemanha. Entre um
parecer e outro, resta a dúvida.
Os brinquedos de seus filhos também podem ser tóxicos. Entre 1.500 brinquedos testados pelo
The Ecology Center, um em cada três tinha níveis prejudiciais de produtos tóxicos: chumbo,
mercúrio, arsênico, cádmio, bromo e outras substâncias relacionadas a desde defeitos de
nascimento até o câncer.
Cosméticos também são tóxicos. Alguns métodos de alisamento de cabelo usam formaldeído
(formol), que causa irritação, alergia e câncer, segundo a Agência Internacional de Pesquisa em
Câncer. Uma análise da ProTeste - um órgão brasileiro de defesa do consumidor - encontrou em
esmaltes de unhas uma série de substâncias que causam alergia: o dibutilftalato, o tolueno (a
famosa “cola de sapateiro”) e o furfural. São tantos componentes químicos que já nos sentimos
inseguros só de ler o nome dos componentes - mesmo quando eles não fazem mal nenhum.
E, claro, comida é tóxica, mesmo quando não há intoxicações alimentares. E até quando não
estamos falando dos riscos da ingestão excessiva de gorduras saturadas, de sódio, de colesterol e do
glutamato monossódico - um aditivo clássico para reforçar o sabor em temperos prontos, mas que
tem sido associado a dificuldades de aprendizado, Mal de Alzheimer, Parkinson e câncer. Amarelo
crepúsculo, tartrazina, vermelho 40, vermelho bordeaux S, vermelho ponceau 4R e grande parte dos
conservantes podem provocar reações alérgicas e são suspeitos de estar relacionados ao transtorno
de déficit de atenção e hiperatividade.
Até o corante caramelo, considerado seguro, pode ter em seu processo de produção um
subproduto relacionado ao câncer em estudos com ratos: o 4-metilimidazol. Para um humano
receber a mesma dose administrada para os animais de laboratório, seriam necessárias mais de mil
latinhas diárias, segundo a agência que controla a comercialização de alimentos e remédios nos
EUA. Mas foi o suficiente para a Pepsi e a Coca-Cola mudarem o processo para a obtenção do
corante de suas bebidas. Há ainda os alimentos transgênicos - não se sabe se são seguros ou não - e
os tomates e pimentões tratados com agrotóxicos. Comer é perigoso.
O cigarro é obviamente tóxico, seja a fumaça de primeira ou de segunda mão. O que não é tão
óbvio assim é que, segundo o pediatra americano Jonathan Winickoff, suas toxinas fazem mal mesmo
quando são de terceira mão - por causa de camadas que se depositam com o tempo em superfícies,
tecidos e que se misturam à poeira doméstica.
Mas não basta o mundo ser tóxico. Ele é infeccioso. Nosso ar está contaminado pelos vírus da
gripe, da rubéola, da catapora, da caxumba, do sarampo. A água é contaminada pelo vírus da
hepatite A, pelo vibrião da cólera, pelo rotavírus, por protozoários como a giárdia e a ameba.
Enchentes aumentam o risco de contrair leptospirose. Ovos têm salmonela, enlatados dão botulismo.
Pisou num prego enferrujado, pegou tétano. Foi mordido por um cachorro, gato ou morcego, pegou
raiva. E tem ainda as picadas de insetos. Dengue. Malária. Febre amarela. Doença de Chagas.
Leishmaniose, doença do sono. Como se isso não bastasse, de tempos em tempos, surgem novas
ameaças. A gripe aviária. A gripe suína. O ebola. E as cartas infectadas com o antrax.
Sim, cartas. Porque a ameaça não vem apenas da natureza. Temos o terrorismo. No 11 de
Setembro, foram 3 mil mortos nas Torres Gêmeas de Nova York. No 11 de Março, 191 no metrô de
Madri. Em 2004, 200 foram mortos num ginásio da cidade russa de Beslan. Em 2008, 200 foram
mortos em dois hotéis e num centro judaico de Mumbai.
O Brasil pode estar longe do epicentro dos atentados terroristas. Mas aqui temos a violência
urbana. Em 2008, o País teve 50 mil homicídios e, de todos os jovens que morreram naquele ano,
39,7% foram assassinados. O homem é mesmo o lobo do homem.
Mas não é necessário que a ameaça seja contra sua integridade física. Temos medo de vírus de
computador. Temos medo de que nosso carro seja roubado. De perder o emprego. De fazer feio
diante dos colegas de trabalho. De levar um não de uma paquera. E até de que balas e chicletes que
nossos filhos compram nas portas de escolas contenham cocaína - sim, essa lenda urbana se tornou
paranoia no início da década de 1990, na mesma época da história de agulhas infectadas por HIV
instaladas em assentos de cinema. Isso foi poucos anos após o lançamento do disco Xou da Xuxa,
cuja faixa Doce Mel conteria a mensagem “sangue, sangue, sangue” quando tocada no sentido anti-
horário.
Tirando as lendas urbanas do último parágrafo, as informações acima são verdadeiras - ou ao
menos comprovadas por algum estudo. Não nascemos sabendo que uma pesquisa ou outra tenha
concluído que um alimento com certo corante amarelo pode aumentar o risco de câncer. Afinal,
evoluímos escolhendo legumes e frutas amareladas e evitando plantas com espinhos. Um vegetal
carnudo e amarelo tem cara de comestível, e exatamente por isso indústrias alimentícias usam esses
corantes. Mas aprendemos ao ler uma notícia ou ouvir de um conhecido que tal corante é nocivo.
Seja qual for a pesquisa, ela concluiu que existe o risco de câncer. E câncer é uma coisa que
ninguém quer. Ele traz imagens horríveis de sofrimento, mutilação. Conhecemos celebridades,
amigos, familiares que morreram da doença. Não queremos isso por nada neste mundo. Assim o
Sistema 1 aprende a dizer “não” ao tal conservante - e a qualquer outra situação que aprendemos
que traz risco. Além disso, ele influencia o Sistema 2 quando deparamos com escolhas mais
sofisticadas - como, por exemplo, escolher entre um alimento com aditivos e outro sem. É por isso
também que baixamos antivírus, compramos seguro de carro, fazemos de tudo para continuar no
emprego - mesmo quando não gostamos do que fazemos -, compramos alimentos orgânicos,
tomamos multivitamínicos.
Só que o mundo que nos rodeia é bem diferente do mundo que essas informações - ainda que
corretas - nos fazem crer. Nunca vivemos em um mundo tão pacífico, e nunca a expectativa de vida
foi tão elevada. Ainda assim, o Sistema 1 domina o Sistema 2 com as poucas informações que
recebe. Nosso cérebro busca sempre o caminho mais econômico e fácil. Ele é preguiçoso. É
automático em suas generalizações. Uma vez tendo aprendido que uma coisa faz mal, ele passa a
evitá-la, deixa de levar em consideração inúmeras variáveis necessárias para que essa coisa de fato
faça mal. Onde houver o mal, o Sistema 1 vai identificá-lo e barrá-lo imediatamente, sem perder
tempo levantando dados em fontes confiáveis. Afinal, foi esse mecanismo que garantiu o sucesso de
nossa sobrevivência ao longo da evolução.
Como esses dois sistemas interagem para chegar a decisões que não condizem com a realidade e
que refletem nossos medos e ansiedades? Kahneman estudou ao longo de sua carreira acadêmica
uma série de mecanismos. Comecemos com um exemplo matemático que o psicólogo gosta de dar
em suas palestras. Um taco e uma bola valem, juntos, US$ 1,10. O taco custa um dólar a mais que a
bola. Quanto custa a bola? Kahneman perguntou isso para estudantes de Harvard, MIT e Princeton.
Mais de 50% dos estudantes dessas instituições de elite deram a resposta errada: US$ 0,10.
Errada? Claro. Se a bola custar US$ 0,10 e o taco custar um dólar a mais, ele sairá por US$ 1,10.
E o total da compra daria
US$ 1,20. O certo seria a bola custar US$ 0,05 e o taco, US$ 1,05. Mas a intuição se prende à
informação US$ 0,10. Por que isso acontece? Porque responder US$ 0,10 exige menos cálculos do
que os necessários para chegar à resposta correta. Ou seja, diante de um problema, nós não
realizamos o raciocínio que nos leva à resposta certa, mas o que exige menos esforços para chegar a
uma conclusão plausível. A partir desta premissa - nossa preguiça mental -, vamos procurar a seguir
os atalhos que usamos para resolver problemas.
Em termos filosofais, vamos explorar a “heurística”.
A todo momento, precisamos fazer previsões. Sem elas, não seríamos capazes de tomar decisões
tão simples quanto sair de casa com um guarda-chuva ou não. Algumas dessas previsões dependem
da análise de dados muito precisos - por exemplo, quanto concreto será necessário para construir
um prédio. Um engenheiro levará em consideração o projeto, o tamanho do prédio, a espessura das
lajes e paredes, as fundações necessárias e, a partir de cálculos e de tabelas, chegará à previsão.
Mas a maioria de nossas previsões é feita a partir da intuição - ou seja, do Sistema 1 - resultante ou
da nossa experiência acumulada ou da troca de perguntas difíceis por outras mais fáceis - ou seja,
da heurística.
Se um problema não puder ser resolvido imediatamente, procuramos sempre um caminho mais
fácil para resolvê-lo. Mas, enquanto esse caminho mais fácil nos ajuda a economizar tempo e
energia, nem sempre ele nos leva a uma verdade. Vamos imaginar algumas perguntas difíceis para
demonstrar isso.
Qual é o risco de ser assaltado na cidade onde moro? Bom, o Sistema 2 precisaria de muitas
informações indisponíveis para chegar a uma conclusão - índices de criminalidade, cruzamento
entre horários de maior risco e horários em que você se expõe a ele, regiões mais perigosas,
condições que predispõem uma vítima ao assalto... Mas existem informações muito mais simples à
disposição: casos de amigos que já foram assaltados e notícias vistas na padaria, quando você foi
comer uma coxinha. Então a pergunta é transformada em “de quantos casos de assalto eu já ouvi
falar?”. E a resposta será “muitos”.
Vamos a outro exemplo. Uma pesquisa com estudantes alemães, citada por Kahneman, fazia duas
perguntas:

O quão feliz você se sente ultimamente?
Com quantas pessoas você ficou no último mês?

Pessoas que tiveram mais “ficadas” não se sentiam mais felizes do que outras. Bom, as mesmas
perguntas foram feitas para outro grupo de estudantes, mas desta vez na ordem inversa.

Com quantas pessoas você ficou no último mês?
O quão feliz você se sente ultimamente?

Os resultados se transformaram - aqueles que ficaram com mais pessoas agora eram os que se
diziam mais felizes. Os voluntários passaram a fazer uma correlação entre o número de ficadas e a
felicidade. A emoção que a questão sobre sua vida amorosa disparou mudou o conteúdo da pergunta
sobre felicidade. Ela se transformou em “o quão feliz você está com sua vida amorosa?”.
Ao se contaminar pela pergunta anterior, o participante da pesquisa pôde encontrar uma resposta
mais fácil.

TRATADO SOBRE A CEGUEIRA ESTATÍSTICA


Gabriel Monteiro é um município do Estado de São Paulo da região de Birigui. Em 2010, sua taxa de
mortalidade infantil foi de 111,1 por cada mil nascidos vivos - resultado próximo ao do Mali, país
africano com o 175º pior índice de desenvolvimento humano do mundo, segundo dados da ONU.
Assustador, não? E qual poderia ser o motivo? O lugar tem apenas 2.856 habitantes. Podemos
imaginar que talvez isso aconteça porque lugares tão pequenos não têm serviços públicos
suficientes para garantir a sobrevivência de crianças com problemas de saúde. Mas vamos ver o que
acontece com um município vizinho: o de Bilac, do qual Gabriel Monteiro já foi distrito. No mesmo
ano, Bilac teve zero de mortalidade infantil. Bilac também é um município pequeno - tem 6.088
habitantes. Podemos imaginar então que nenhuma criança morreu lá porque a qualidade de vida
fora de grandes cidades é muito maior. Nada de poluição, trânsito, assaltos, tráfico de drogas,
atiradores malucos, balas perdidas. Acontece que, em 2006, Gabriel Monteiro também teve zero
mortes de crianças, enquanto Bilac teve uma taxa de 13,7 por 100 mil. Como pode um Mali ter sido
melhor do que a Islândia quatro anos antes, e um lugar melhor que a Islândia ter sido igual à
Bósnia-Herzegovina?
O fato é que nenhuma justificativa que possamos tirar do bolso imediatamente pode justificar
esses números. Simplesmente porque a base de cálculo é pequena demais para ter alguma
importância estatística. A mortalidade infantil é calculada pelo número de mortes em comparação
ao número de nascidos vivos num mesmo período. Em 2010, duas crianças morreram em Gabriel,
mas apenas 48 nasceram. Se uma não tivesse morrido, diminuiria pela metade a taxa de
mortalidade.
Como esse exemplo mostra, somos péssimos estatísticos. Ficamos muito atentos à história que
uma pesquisa conta, mas temos pouca sensibilidade ao tamanho da amostra e a outros fatores que
influem na validade de um número. É como afirma Kahneman: “A não ser que você seja um
profissional, não reagirá de forma muito diferente a uma amostra de 150 ou a uma de 3 mil
pessoas.” Vamos agora a outros problemas estatísticos:
- NÚMEROS INVISÍVEIS. Há dados que são impossíveis de serem computados. Por exemplo, um
grande jornal paulistano publicou, em abril de 2012, uma estatística segundo a qual o número de
roubos registrados no Estado de São Paulo ultrapassou o registrado no Estado do Rio de Janeiro. A
comparação era de 755 por 100 mil habitantes contra 660. Para ter uma dimensão do que isso
significa, a matéria publicou que nos EUA foram registrados 533 em 2009 (último dado disponível).
As razões para isso podem ser muitas. Por exemplo, talvez o número de roubos registrados no Rio
tenha diminuído, talvez o de São Paulo tenha aumentado. Mas uma coisa é certa: é impossível saber
exatamente qual é a real taxa de roubos nesses Estados, pois o levantamento depende do registro
feito pelas vítimas de roubos. Talvez os números mostrem menos o risco de roubo e mais a
propensão da vítima de ir até a polícia registrar um boletim de ocorrência. No entanto, isso não
interessa. Quem ler essa informação pode concluir que São Paulo se tornou uma cidade mais
violenta que o Rio.
- APRESENTAÇÃO. A forma como o número é apresentado pode mudar seu significado. Por
exemplo, uma revista americana publicou uma matéria mostrando um estudo segundo o qual 200
mil pessoas nos EUA tinham traços de stalker (perseguidor obsessivo). Depois, um talk-show disse:
“Há 200 mil stalkers nos EUA, e esses são apenas aqueles rastreáveis.” Outra revista viria com o
alerta de que “cerca de 200 mil pessoas nos EUA perseguem celebridades. Não se sabe quantos
perseguem o resto de nós, mas o número é provavelmente mais alto”. Ao passar de boca para boca,
a informação pode ser deturpada como na brincadeira do telefone sem fio. Uma pessoa pode falar
que há 200 mil americanos com traços de stalkers, e que é difícil rastreá-los. Talvez esse número
seja uma estimativa que inclui os não rastreados, mas a forma como foi apresentado pode levar a
segunda pessoa a dizer que os 200 mil são apenas os rastreados. Quando essa segunda pessoa diz a
uma terceira que os 200 mil são apenas os stalkers rastreados, a terceira pode entender como
stalkers aquelas pessoas que perseguem celebridades obsessivamente. E logo dirá a uma quarta que
há nos EUA 200 mil perseguidores de celebridades.
- QUESTÃO IMPRECISA. Quando se faz uma pesquisa estatística, ela deve ser muito bem
definida. E nem sempre isso acontece. Por exemplo, durante o recenseamento brasileiro de 2010, foi
perguntado se algum membro da casa havia morado no exterior por alguns anos. Bom, se uma
pessoa mora durante seis meses com endereço fixo na Inglaterra, estudando fotografia, talvez ela
tenha morado no exterior, sim. Mas se outra pessoa tiver passado um ano dando uma volta ao
mundo, nunca ficando mais do que uma semana no mesmo lugar, poderíamos dizer que ela morou
no exterior? Nesse caso específico, a pergunta imprecisa não chega a ser estatisticamente
importante, pois o número de mochileiros que passam um ano viajando é pequeno. Mas o que dizer
quando a definição imprecisa é, por exemplo, agressão física de homem contra mulher? Espancar
uma mulher é, sem dúvida, uma agressão física. Pessoalmente, acredito que dar um tapa no rosto
também seja. Mas talvez uma mulher que tenha recebido essa agressão não a considere da mesma
forma. Pode achar que foi uma reação esquentada, que depois de um tempo foi perdoada. Se a
pergunta não definir o que é essa agressão, o resultado será distorcido - seja a distorção intencional
ou não do ponto de vista do pesquisador.
- AMOSTRAGEM. Uma amostra precisa representar a população que uma pesquisa quer estudar.
O primeiro problema é o tamanho dessa amostra, como já vimos. Quanto maior o número de
entrevistados, menor a margem de erro. E isso é muito importante, pois pessoas levam em
consideração não as extremidades de um dado estatístico, mas o seu centro. Por exemplo, se numa
pesquisa eleitoral, com dois pontos de margem de erro para cima e para baixo, um candidato tiver
34 (32 a 36) pontos e outro tiver 31 (29 a 33), é possível dentro dessa margem de erro que aquele
com 31 pontos esteja na verdade à frente do que tem 34 pontos. Mas o segundo problema de
amostragem é ainda maior. Uma amostra precisa ser aleatória. E em muitos casos isso é impossível.
Por exemplo, pesquisas feitas em grandes centros urbanos americanos concluem que crianças
criadas por casais homossexuais não têm mais transtornos mentais (depressão, déficit de atenção,
transtorno de conduta...) do que aquelas criadas por casais heterossexuais. Isso é verdade em
grandes centros urbanos americanos. Mas para poder afirmar o mesmo em pequenas cidades
brasileiras seria necessário fazer outra pesquisa. Provavelmente seriam encontrados poucos casais
homossexuais que criem crianças no interior do Brasil. Muitos fatores exteriores à criação dentro de
casa poderiam entrar em jogo - por exemplo, a disponibilidade de crianças para adoção por
homossexuais e o preconceito por parte do resto da família e da comunidade em que vivem. E, do
ponto de vista estatístico, um problema maior: o tamanho da amostra. Digamos que sejam
encontrados apenas dez casais homossexuais, e que para dois desses casais estavam disponíveis
apenas crianças com transtorno de conduta, que já haviam sido rejeitadas por outros pais adotivos
em potencial. Isso é apenas uma suposição. Mas, caso acontecesse, essa amostragem aumentaria
em pelo menos 20% a prevalência de transtorno de conduta entre crianças adotivas criadas por
casais homossexuais. E isso bastaria para se entender - de forma errada - esse tipo de adoção como
uma fábrica de delinquentes.
Se estatística tem tantas falhas, há como se preparar para não ser enganado por elas? Claro que
há. Perguntas como “quem criou a estatística?”, “por que ela foi criada?” e “como ela foi criada?”
podem ajudar a compreendê-las melhor.
Buscar conhecer a metodologia usada também é importante. Mas isso não basta. Uma vez visto
um número, nosso Sistema 1 já se ancora nele e parte para uma série de suposições intuitivas
baseadas somente na nossa experiência pessoal.
E há mais. Mesmo que a estatística seja a mais imparcial e metodologicamente bem feita
possível, nosso cérebro não se ancora apenas em números. Ele tem uma capacidade muito maior de
registrar informações em volta do número e fazer conclusões precipitadas - tal como o problema do
taco e da bola. Para o nosso cérebro, mais do que os números, importa se a história relacionada a
esse dado foi bem contada, que padrões de pensamento nossa experiência pessoal tende a ligar a
ele, que tipo de emoção essas experiências carregam, e que conclusões intuitivas essas experiências
podem tirar a partir dele. Toda informação nova é uma oportunidade para nossa mente criar uma
ficção verossímil, e essa ficção será mais útil se ela aumentar nossas chances de sobrevivência.
Como a chance de sobrevivência de uma pessoa aumenta quando ela evita ameaças e busca
benefícios, é natural que essas ficções sejam guiadas por estímulos aversivos (ansiedade ou medo) e
por estímulos reforçadores (fissura ou prazer).

ESTEREÓTIPOS VENCEM A PROBABILIDADE – MEDOS FALSOS, MAS APARENTES


Bruno é muito tímido e retraído. Até que ele gosta bastante de ajudar pessoas, mas tem pouco
interesse por elas e pelo mundo real. Com sua mente organizadora, ele sente necessidade de ordem
e estrutura, e se interessa por detalhes. Diga o que é mais provável - que Bruno seja um
bibliotecário, um camponês, um vendedor, um físico ou um piloto de avião?
Provavelmente você respondeu que ele é bibliotecário, ou talvez físico. Afinal, ele se encaixa
dentro do estereótipo de bibliotecários.
Mas vamos analisar essas probabilidades sem levar em conta a descrição. O Brasil tem 5,2
milhões de estabelecimentos agrícolas, segundo o IBGE, e 4.763 bibliotecas. Como é possível que a
probabilidade de Bruno ser bibliotecário seja maior que a de ser agricultor? Um agricultor pode
perfeitamente ter as características descritas no parágrafo acima, mas quem se agarrou ao
estereótipo de bibliotecário ignorou um dado inicial: o de que a probabilidade de ser agricultor é
muito maior.
Kahneman decidiu pôr em prática um estudo que provasse a insensibilidade à prova inicial diante
de estereótipos. Apresentou a um grupo de estudantes de graduação voluntários a seguinte
descrição:

Linda tem 31 anos, é solteira, sincera e muito inteligente. Ela se graduou em filosofia. Quando
era estudante, ela se preocupava profundamente com questões de discriminação e justiça social, e
também participou de protestos antinucleares.

Depois, pediu que ordenassem a seguinte lista de afirmações de acordo com a probabilidade:

Linda é uma professora do ensino fundamental.
Linda trabalha numa livraria e faz aula de ioga.
Linda é ativa no movimento feminista.
Linda é uma assistente social psiquiátrica.
Linda é membro da Liga de Mulheres Eleitoras.
Linda é caixa de banco.
Linda é uma vendedora de seguros.
Linda é caixa de banco e é ativa no movimento feminista.

A surpresa de Kahneman foi que a maioria colocou “caixa de banco feminista” acima de “caixa de
banco”. Bom, “caixa de banco feminista” é um subconjunto do conjunto “caixa de banco”, que
contém tanto as feministas quanto as não-feministas. Portanto, é impossível que pertencer a um
subconjunto seja mais provável do que pertencer a seu respectivo conjunto.
Então, Kahneman decidiu tentar verificar esse resultado com um grupo especialmente treinado
para entender estatísticas. Foi até a Escola de Administração da Universidade de Stanford e aplicou
o teste em estudantes de pós-graduação. Deles, 85% colocaram “caixa de banco feminista” como
sendo mais provável do que “caixa de banco”.
Bom, talvez o problema fosse o tamanho da lista. O que aconteceria se reduzissem as opções para
apenas “Linda é caixa de banco” e “Linda é caixa de banco e é ativa no movimento feminista”?
Kahneman aplicou o teste em estudantes de graduação de diversas universidades, e entre 85% e
90% deles deram a resposta errada. Quando perguntou para um estudante se ele tinha dado conta
de que acabara de violar uma lei básica de lógica, a resposta foi: “Eu achava que você tinha apenas
perguntado a minha opinião”.
O que aconteceu? Para avaliar a probabilidade de uma coisa, é necessário utilizar o Sistema 2 -
nossa mente lógica. Mas os estudantes foram influenciados primeiro pelo Sistema 1, que trabalha
com a ideia de
representatividade - ou seja, de estereótipos. Satisfeito com isso, o Sistema 2 endossou tal
conclusão. A descrição de Linda representa uma feminista, e isso bastou para os estudantes
trocarem “probabilidade” por “representatividade”.
Essa troca acontece por duas causas: a representatividade (encaixar uma situação num
estereótipo) é mais econômica do que a probabilidade, e geralmente ela dá conta do recado.
Podemos achar surpreendente que o jogador Sócrates tivesse formação em medicina e que o chef
Alex Atala tivesse sido punk na juventude, pois isso não encaixa no estereótipo de jogadores de
futebol e de chefs de cozinha. Mas em geral jogadores de futebol de fato não têm formação em
medicina e chefs não são punks.
Vamos a outros exemplos dados por Kahneman. Pessoas que têm um comportamento amigável
geralmente são amigáveis. Atletas altos e magros tendem mais a jogar basquete do que futebol.
Homens jovens têm probabilidade maior de dirigir agressivamente do que velhinhas. Situações que
têm cara de ser perigosas muitas vezes o são, e isso nos ajuda a evitá-las.
Mas isso traz dois problemas. O primeiro é que nossa intuição nos leva a viver em constante
ansiedade - afinal, numa cidade, encaramos o tempo todo situações que achamos ser perigosas, e
não são. E, segundo, isso leva a não buscar provas que confirmem o estereótipo, o que significa
decisões erradas. Embora o estereótipo seja apenas uma dentre várias informações muito mais
relevantes sobre uma situação, ele pode se sobrepor. Estereótipos não fazem apenas pessoas
acharem estranho que Sócrates tenha tido formação médica ou julgarem mais provável Linda ser
caixa de banco feminista do que simplesmente caixa de banco. Fazem um empregador não contratar
pessoas talentosas e produtivas por não terem o diploma de uma universidade “top” ou por não se
comportarem segundo a etiqueta desejável na entrevista de emprego. Fazem uma pessoa perder a
oportunidade de construir amizades valiosas por elas morarem no bairro “errado”. Fazem também
um policial matar cidadãos honestos por terem a aparência “errada” na situação errada. Para piorar,
grupos de interesse podem agir deliberadamente para reforçar esses estereótipos. Assim fizeram os
nazistas para criar a “ameaça judia”, assim fez a administração de McCarthy para criar o “terror
vermelho”, assim fez a administração stalinista para realizar o expurgo dos quadros de seu próprio
Partido Comunista, assim fez a administração neoconservadora americana para criar a “ameaça
islâmica”, assim fazem administrações xenófobas para criar a ameaça de imigrantes. E assim faz a
indústria de produtos de higiene para criar uma caça aos “germes”, a indústria farmacêutica para
transformar em ameaça primordial à saúde, fatores de risco secundários, que podem ser tratados
com medicamentos.
O medo e a ansiedade são ferramentas eficientes para interferir em nossas escolhas, e manipulá-
las garante votos e clientes.

GRANDES HISTÓRIAS, GRANDES TEMORES – MEDOS FALSOS, MAS MEMORÁVEIS


O risco de uma missão de uma viagem ao redor do mundo é medido pela capacidade de imaginar
problemas que o viajante não é capaz de enfrentar. Digamos que ele vá começar pela Bolívia, subir
até o Canadá, atravessar a Rússia, descer até o Oriente Médio, atravessar o Canal de Suez, descer a
costa leste da África e, de Joanesburgo, voltar de avião ao Brasil. Nessa altura, já podem se imaginar
roubo no trem da morte e acidente na Rodovia da Morte na Bolívia, febre amarela na Amazônia
peruana, sequestro pelas Farc na Colômbia, bala perdida ao passar por El Salvador, mais sequestro
e tortura no México, morte por sede no deserto da fronteira americana, sequestro aéreo nos EUA,
congelamento no frio canadense, mais congelamento no frio russo, intoxicação por vodca realizada
por traficantes de órgãos da máfia russa, ataque terrorista ao chegar aos Cáucasos, ataque das
tropas do governo sírio, ataque terrorista em Israel, sequestro por beduínos no Egito, fome na
Somália, ataque de piratas somális, ataque de terroristas somális, ataque por leões e hipopótamos
no Quênia e na Tanzânia e, finalmente, infecção por HIV e assassinato na África do Sul. Mas todos
esses países - com exceção da Somália - recebem milhares de mochileiros todos os anos, e os
problemas mais comuns encontrados por eles são burocracia na hora de fazer vistos e atravessar
fronteiras. O problema é que os riscos acima permanecem mais vívidos em nossa memória. Estamos
acostumados a assistir a filmes, ler notícias e ouvir boatos sobre esses tipos de incidentes.
Já quando um risco é pouco familiar e não envolve uma carga emocional, acabamos
subestimando-o. Por exemplo, a contaminação por radônio é a segunda causa de morte de câncer
pulmonar nos Estados Unidos, com 21 mil mortes anuais, segundo a Agência de Proteção ao Meio
Ambiente dos EUA. Só fica atrás do cigarro. E essa contaminação não se dá por usinas nucleares,
mas sim pelo solo. Por ser um gás, ele atravessa o solo e entra em construções por meio de seus
alicerces. Mas quantas histórias você já ouviu sobre pessoas que morreram de câncer por
contaminação radioativa de gases extremamente rarefeitos emergidos do subsolo da casa?
Ou seja, um grupo de exemplos muito memoráveis parecerá mais frequente do que um grupo de
exemplos pouco memoráveis. Para provar isso, Kahneman apresentou para voluntários diferentes
listas de celebridades, umas com homens mais famosos, outras com mulheres mais famosas. Depois,
perguntou em qual lista havia mais nomes de homens do que de mulheres. Em cada uma das listas,
os voluntários julgaram erroneamente que os grupos representados por pessoas mais famosas eram
os mais numerosos.
A forma como um evento é percebido também é essencial para que ele seja memorável. Um
exemplo chocante disso foi calculado pelo psicólogo alemão Gerd Gigerenzer, especialista em risco
do Instituto Max Planck para o Desenvolvimento Humano. Após o atentado ao World Trade Center,
por exemplo, o medo levou milhares de americanos a trocar o avião pelo carro. Nos três primeiros
meses pós-ataque, a milhagem total rodada aumentou 5,2%. Nos três meses seguintes, foram mais
3,7% em relação ao mesmo período do ano anterior. E, depois de mais seis meses, 2,2%. Mas andar
de carro é muito mais perigoso do que de avião. Esse aumento de viagens rodoviárias, segundo a
avaliação de Gigerenzer, matou mais de 1.500 pessoas – pessoas que estariam vivas se tivessem
escolhido viajar de avião. Diagnóstico: elas guardaram uma memória bem mais vívida das Torres
Gêmeas em chamas do que de inúmeros acidentes vistos ao vivo ou em notícias.
Outro exemplo é o aumento de venda de seguros de casa após terremotos. Esse tipo de
acontecimento geológico não é aleatório. Quanto maior for a pressão entre placas tectônicas, maior
o risco de terremoto. Mas, assim que um acontece, a pressão é diminuída, e, com ela, o risco de um
segundo evento. Porém, o medo é causado pela experiência vívida e bem narrada, e não pela calma
de anos sem nenhum abalo sísmico.
Em resumo, acontecimentos salientes - como escândalos sexuais de celebridades -, dramáticos -
como atentados terroristas e desastres naturais - e pessoais - como a morte de um amigo íntimo que
tinha câncer - têm muito mais impacto, mesmo que sejam estatisticamente mais raros do que se
sente. Às vezes, tudo o que acontece é que lemos muito sites de fofoca, notícias catastróficas ou
simplesmente somos azarados. Mas nosso cérebro preguiçoso está preparado para priorizar o que é
mais surpreendente, mais emocionante e mais próximo de nós.

DISPONIBILIDADE E AFETO – MEDOS FALSOS, MAS ATERRORIZANTES


Ter uma emoção vinculada a uma questão não apenas faz com que ela seja mais lembrada. Faz com
que ela seja sentida de maneira mais forte. Afinal, nosso Sistema 1, responsável pelos nossos
julgamentos imediatos de risco, é essencialmente emotivo, enquanto o Sistema 2 é racional, porém
lento e influenciado pelo Sistema 1.
Vamos aqui falar do afeto - não como o afeto que nutrimos por uma pessoa, mas como o
sentimento de quanto um estímulo é sentido como “mau” ou “bom”. Essa é a categoria com que o
Sistema 1 trabalha constantemente na hora de decidir se algo deve ser evitado ou buscado. É o que
já abordamos ao descrever os “marcadores somáticos” de António Damásio.
Digamos que você tenha acabado de conhecer uma mulher num jantar de amigos. O nome dela é
Joana. Ela é simpática, bonita e tem uma personalidade agradável. São necessárias poucas falas
para que você simpatize com ela. O que você sabe sobre sua generosidade? Nada. Mas, caso você
julgue a generosidade uma característica boa e goste de pessoas generosas, provavelmente vai
julgar Joana uma pessoa generosa, afirma Kahneman. Mesmo que em nenhum momento da conversa
a generosidade dela tenha sido demonstrada ou questionada. Essa lacuna foi preenchida
automaticamente pela “aura” positiva que ela lhe passou. É o que o psicólogo behaviorista
americano Edward Thorndike chamou de “efeito halo” na década de 1920, enquanto estudava a
forma como oficiais do exército avaliavam seus soldados - e que no dia a dia chamamos de “a
primeira impressão é a que fica”. Não havia muitas nuances sobre o que os oficiais diziam sobre
seus subalternos, embora várias categorias fossem questionadas - físico, inteligência, liderança e
caráter. Consideravam-nos ou bons ou ruins de forma geral. Nada de dizer que se saíam bem em
algumas coisas e mal noutras. Não é difícil ver como isso se estende a vários setores da vida. Numa
entrevista de emprego, o responsável pela contratação pode se impressionar com a desenvoltura de
um candidato e assumir que ele seria bom nas demais características necessárias para o cargo. A
aura positiva de um colega carismático pode contaminá-lo de otimismo de tal
forma que você começa a confiar nele mais do que deveria - afinal, carisma não é sinônimo de
credibilidade.
O efeito halo pode dar mais um passo e ser usado na construção do medo e da ansiedade. Quando
a primeira impressão se torna uma emoção usada para justificar uma decisão, é chamada de
“heurística da comoção”, no termo usado por Paul Slovic. Se o sentimento em relação a uma
atividade for favorável, seus riscos vão ser avaliados como baixos, e seus benefícios como altos. Se o
sentimento for negativo, o oposto acontecerá com seu julgamento. Mesmo que a realidade não bata
com os seus sentimentos. Ou seja, a primeira emoção prevalece sobre argumentos factuais.
Isso ocorre, por exemplo, com a energia nuclear. Antes que pensemos quantas pessoas morrem
ou têm a saúde afetada por usinas e lixo nucleares em comparação com aquelas vitimadas pelas
minas de carvão e pela poluição de termelétricas, ouvimos a palavra “energia nuclear” e já
concluímos: é algo ruim. E quando o Sistema 1 percebe um estímulo conectado a uma emoção forte,
ele age imediatamente, deixando para trás o Sistema 2, que buscaria por informações para avaliar o
verdadeiro risco. O Sistema 1 vai nos perguntar - “Eu gosto disso?”, “Eu odeio isso?”, “Como me
sinto diante disso?”. Mais uma vez, uma pergunta complexa vai ser trocada por uma bastante
simples.
Não dá para acreditar? Slovic perguntou a participantes de um estudo se concordavam que o
risco de 1 em 10 milhões (menos do que ser morto por um raio) de desenvolver câncer durante a
vida devido à exposição de uma substância específica era tão pequeno que não justificaria ter
preocupação. Um terço das pessoas discordou, e disse que se preocuparia mesmo assim. Em outro
estudo, apresentou aos participantes uma série de causas de morte, e pediu que comparassem sua
probabilidade. Embora a morte por doença seja 18 vezes mais comum do que morte por todos os
acidentes combinados, os dois foram avaliados como igualmente frequentes. E morte por acidente
foi considerada 300 vezes mais comum do que morte por diabetes - enquanto a proporção real é de
1 para 4.

AZAR, SORTE E CONCLUSÕES PRECIPITADAS – MEDOS FALSOS, MAS PRESENTES


Digamos que, nos tempos de escola, sua média em português fosse 7. E que seus pais se
perguntassem qual seria a melhor estratégia para você se tornar um aluno melhor. Deveriam eles
elogiá-lo em frente a seus irmãos quando tirasse mais que 9, ou esculachá-lo quando tirasse menos
que 5? Se você colocar isso em prática, poderá concluir que o esculacho é mais eficaz do que o
elogio. Mesmo que isso seja uma mentira. Vamos ver isso em prática.
Certo dia, você vai muito bem e tira 9,5. Antes do jantar, seus pais pedem silêncio à mesa e dizem
que, por conta de sua nota, você não precisará ajudar a lavar a louça - enquanto seus irmãos fazem
essa tarefa, você poderá jogar videogame.
Na prova seguinte, sua nota é 8. Diante desse 1,5 ponto a menos, seus pais pensam que de nada
adiantaram tantos elogios. O silêncio impera à mesa de jantar.
Então chega o bimestre seguinte. Numa prova de português em que você estava especialmente
mal, você tira a nota 4,5. Você nunca teve uma nota tão baixa. “Que vergonha. Esperávamos mais de
você ao trabalhar tanto para pagar sua escola”, esfregam na sua cara. Você fica sem sobremesa e é
obrigado a lavar toda a louça, enquanto seus irmãos vão jogar videogame. Na prova de recuperação,
você tira a nota 8 - abaixo da nota-limite para receber elogios. Novamente, silêncio à mesa.
Depois desse experimento, seus pais concluem categoricamente que o elogio é menos eficaz do
que a crítica. E eles não poderiam estar mais errados. O fato é que, sem levar em consideração a
sua média histórica, eles não têm como avaliar se você está de fato indo melhor ou não. Se a sua
média for 7, dificilmente uma nota acima de 9 seria seguida por outra nota acima de 9, e
dificilmente a nota abaixo de 5 seria seguida por outra abaixo de 5. Independentemente de elogios
ou críticas, qualquer nota tende a ser seguida por uma nota próxima à média.
Isso é relativamente tranquilo na escola, pois é a média anual que define se passamos ou não de
ano, e não o resultado de uma única prova. Mas vamos pensar em exemplos compostos por um único
evento.
Processos seletivos. Seja vestibular, seja concurso público. Neles, uma única avaliação definirá se
você está ou não está qualificado. Mas, espera aí. Uma pergunta pode avaliar tão-somente o fato de
você ter estudado recentemente o tema em detrimento de outro. Um erro pode significar desatenção
ao repassar o gabarito, ou um desempenho pior pode entrar na conta de uma enxaqueca, que
coincidiu de aparecer bem no dia da prova. Qualquer evento único exclui a possibilidade de
“regressão à média”. E isso pode mais avaliar a sorte no momento do que o mérito ou a capacidade
de uma pessoa.
Eventos únicos não se limitam a vestibulares. Podemos nos apaixonar pela pessoa errada e ter
com ela experiências ruins a ponto de perder a fé no amor. Podemos nos dar mal no primeiro
trabalho sério e, a partir daí, sentir-nos desiludidos com a profissão. Assim como podemos encontrar
a pessoa certa na primeira vez e fazer o trabalho dos sonhos logo de cara. Até partirmos para o
próximo relacionamento ou emprego e nos sentirmos um lixo pela nova experiência não ser tão boa.
Às vezes, as coisas vão mal por puro azar, sem que haja razão alguma para isso. Mas o fenômeno da
regressão à média é estranho à mente humana. “É tão estranho que foi identificado e entendido pela
primeira vez 200 anos depois da teoria da gravidade e do cálculo diferencial”, escreve Kahneman.
O problema é que só é possível regredir à média quando há exemplos suficientes à disposição
para estabelecer essa média. Senão, caímos na mesma situação que, nos jogos de azar, chamamos
de “sorte de iniciante”. O sucesso em jogos de cartas depende de uma composição de raciocínio,
memória, capacidade de blefar - e sorte, muita sorte. Afinal, não há tanto o que fazer quando se
recebe uma mão ruim. Ao longo do histórico de jogadas, podemos calcular sua média, numa
regressão que anula os fatores sorte e azar. Assim é possível avaliar o peso dos outros fatores que
influem no desempenho de um jogador. Mas quem começa a jogar não tem como regressar a essa
média. Ele pode ir muito bem numa primeira jogada e dar a impressão de ser um bom jogador.
Se não nos conformarmos com o fato de que às vezes temos sorte e, outras vezes, azar, o que
fazemos então? Confiamos extremamente em um evento único; afinal, não se trata de imaginação -
ele de fato aconteceu. Então, usamos nossa intuição para encontrar uma relação de causa e efeito
coerente, mesmo onde ela não exista. Tendemos a acreditar que uma criança que se alfabetizou
precocemente será um adulto bem-sucedido, e ignoramos que nem todos os fatores que levam ao
sucesso coincidem com os fatores que permitem a uma criança reconhecer palavras aos quatro anos
de idade. Tendemos a acreditar que um raio não cairá duas vezes no mesmo lugar, embora
estatisticamente esse evento não tenha influência sobre os eventos subsequentes. Somos
prisioneiros do futuro e de suas incertezas, e fazemos de tudo para tentar domá-lo, justificá-lo.
Usamos nossa intuição para encontrar algo de modo a evitar fracassos e tornar o sucesso mais
provável. Para construir histórias mais plausíveis e imagináveis do que a frieza de um cálculo
estatístico. “Não há o que se possa fazer” não é uma resposta satisfatória, embora às vezes seja a
única verdadeira.

EVENTOS SIMULTÂNEOS E CONCLUSÕES PRECIPITADAS – MEDOS FALSOS, MAS


COERENTES
Você já deve ter ouvido muitas vezes sua mãe falar, em dias de frio, para você vestir um casaco para
não pegar gripe. Isso parece muito sensato. Afinal, no inverno a prevalência de gripe é muito maior
do que em estações mais mornas. Mas, do ponto de vista médico, sua mãe falou um absurdo.
Várias pesquisas foram feitas a partir da década de 1950 para avaliar a influência da temperatura
na incidência de infecções respiratórias no inverno. Nenhuma delas encontrou evidências de que a
exposição ao frio aumentava o risco. Ao contrário. A frequência de gripes e resfriados era maior
entre quem se mantinha em ambientes fechados. Isso acontece porque essas doenças são causadas
não pela temperatura, mas por vírus transmitidos pela respiração e por superfícies infectadas.
Pegamos mais gripe no inverno porque ficamos em ambientes mais fechados - um ônibus ou uma
sala de aula de janelas fechadas, por exemplo. É por isso que as doenças respiratórias aumentam
também entre aqueles que, no verão, trabalham em ambientes climatizados. Não é que o frio do ar
condicionado faça mal, mas ele leva a dois problemas: o ambiente fica fechado, o que deixa os vírus
circularem mais, e o ar é desidratado, o que, por sua vez, resseca o muco das vias aéreas,
destruindo anticorpos e enzimas que combatem vírus e bactérias do exterior.
Mas dizer para manter as janelas abertas quando faz frio é contraintuitivo. O Sistema 1 associa a
gripe não a um vírus presente em partículas de água liberadas pelo nosso sistema respiratório
(afinal, ele não está disponível aos nossos órgãos de sentido), mas à situação em que ela é contraída:
dias frios. Como “frio” e “casos de gripe” aumentam juntos, parecem ser diretamente ligados. A
memória associativa do Sistema 1 estabelece então uma relação falsa de causa e efeito, pois essa é a
história mais plausível que ele consegue criar com os elementos à mão. Afinal, o elo verdadeiro não
está disponível. E a regra primordial do Sistema 1 é que “não há nada senão o que você vê”.
Outros exemplos não faltam, pois a vida não para de exigir previsões que diminuam o risco de
fracasso e aumentem as chances de sucesso. Pais morrem de medo que seus filhos se exponham a
germes. Essa aversão inata à contaminação nos salvou de inúmeras intoxicações que poderiam ter
acabado com nossa espécie. Sem ela, nossa expectativa de vida não teria aumentado tanto. Mas esse
mesmo estilo de vida pode aumentar a incidência de várias doenças. De 1980 para cá, por exemplo,
dobrou o número de americanos com algum tipo de alergia. Essa é a Teoria da Higiene - estar
exposto à sujeira faz o sistema imunológico se preparar contra ela. E mais. Quando nossas células
de defesa não encontram ameaças, passam a procurar novos inimigos. Isso vai desde o amendoim,
que antes causava alergia a poucos, até as células do nosso próprio corpo - caso das doenças
autoimunes. Segundo essa teoria, o consumo excessivo de antibióticos e desinfetantes bactericidas
faz bem apenas para
uma coisa - a venda de antibióticos e desinfetantes bactericidas.
Quando transformamos um acontecimento numa história - ou seja, numa narrativa -, buscamos
simplificar as relações entre seus elementos. Novamente, inventamos causas e efeitos convincentes.
Assim, damos importância para o talento e para a incapacidade, para os sacrifícios, para as
intenções. Sorte e azar ficam em segundo plano - acabam servindo apenas para desqualificar seus
personagens.
Isso não poderia ser diferente. Raramente temos todas as informações necessárias para tomar
uma decisão sensata. Raramente temos tempo para fazer os cálculos e análises necessários para a
decisão sensata. Raramente uma decisão é tão importante para que façamos todos esses cálculos.
Construir a melhor história possível com as informações à mão funciona na maioria das vezes,
mesmo que o resultado não seja completamente preciso. Se a história que você construiu for
coerente, você passa a acreditar nela. Nisso, tanto faz haver ou não provas de que a história é
válida. Basta ela ser bem construída para que acreditemos nela. E quanto menos detalhes tiver essa
história, menos contradições haverá para derrubá-la. Por isso, somos ótimos em ignorar o que não
nos convém. O resultado é que pensamos num mundo mais simples e previsível do que aquele em
que vivemos. Essa simplificação é essencial para diminuirmos nossa ansiedade sobre um futuro
extremamente incerto. Mas também é essencial para aumentarmos nossa ansiedade quando uma
história convincente mostra haver um futuro com mais riscos do que a realidade.

ANSIEDADE COMO FERRAMENTA RETÓRICA


Após os ataques de 11 de Setembro, o Congresso americano aprovou uma lei que fez tremer a base
da sociedade americana: o respeito às liberdades individuais. Para defender o país de uma ameaça
terrorista, o Patriot Act mudou o foco do combate: em vez de prender e punir terroristas depois de
um ataque, deu ferramentas para prevenir que esse ataque acontecesse. Isso incluiu interceptar
sem ordem judicial e-mails, telefonemas e conversas orais, e aumentar o controle de fronteira,
permitindo a detenção indeterminada de qualquer estrangeiro suspeito de poder causar um ato
terrorista. Afinal, o país estava em um tipo completamente novo de guerra - contra o terrorismo, que
é um inimigo invisível, sem território nem nação. Essa luta também incluiu a guerra preventiva
contra dois países - o Afeganistão e o Iraque. Ou seja, uma guerra baseada não numa agressão, mas
na possibilidade de agressão.
Não é difícil de entender por que americanos abriram mão de sua privacidade e permitiram
tamanho gasto financeiro, humano e político. O 11 de Setembro deixou o país em pânico. Para ter
uma ideia da dimensão desse medo, Jennifer Lerner, do Departamento de Ciências Sociais e de
Decisão da Universidade Carnegie Mellon, perguntou a 973 americanos o risco de uma série de
eventos negativos acontecerem a um americano médio nos 12 meses seguintes. Os participantes da
pesquisa avaliaram que o risco de ser ferido num ataque terrorista era de 47,8%, e o de ser vítima
de um crime violento era de 43%. Se essa impressão correspondesse à realidade, a população
americana deveria cair quase pela metade em apenas 12 meses.
O uso do medo e da ansiedade para obter apoio não é novo. Durante o período entre as guerras
mundiais, o medo do comunismo trouxe como resposta o apoio a Mussolini na Itália e a Hitler na
Alemanha. No Brasil, o golpe de 1964 foi impulsionado pela classe média e o alto comando militar,
que tinham medo de uma guinada à esquerda - exemplificada por decretos como a nacionalização de
refinarias de petróleo, desapropriação de terras para reforma agrária aqui no Brasil e pelos
acontecimentos que haviam se passado durante a Revolução Cubana de 1959.
Mas não é apenas a direita que usa o medo como ferramenta política. Al Gore - político
democrata que foi vice-presidente no governo de Bill Clinton - perdeu as eleições presidenciais para
Bush em 2000. Depois da derrota, saiu pelo mundo para dar mais de mil palestras sobre o
aquecimento global e escreveu o livro Uma Verdade Inconveniente, que virou um documentário com
cenas apocalípticas. O filme ganhou duas estatuetas no Oscar de 2007 - e Gore, o Nobel da Paz.
Segundo ele, a calota de gelo da Groenlândia deve derreter “no futuro próximo”, levando a uma
“elevação de 7 metros” do nível do mar. Já o Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática
da ONU diz que o mar deve se elevar a até 59 centímetros em 2100, e não 7 metros - já o
derretimento da Groenlândia deve acontecer em milênios. As neves do Kilimanjaro estariam
derretendo por causa do aquecimento global - o que é falso. Segundo um grupo de pesquisa da
Universidade de Innsbruck, a verdade é que a neve do Kilimanjaro é um remanescente da última
glaciação, e vem derretendo desde então, mesmo antes do aquecimento global causado pelas
atividades humanas. O aquecimento global é fato, mas recorrer a dados com comprovação científica
teria menos impacto político do que distorcê-los e mostrá-los de forma emotiva. Novamente, o
Sistema 1 se sobrepõe ao Sistema 2.
O medo também serve de arma de um país contra outro. Em 2001, o Canadá vetou a entrada de
carne brasileira, afirmando não haver provas de que nosso rebanho não estivesse contaminado pela
Doença da Vaca Louca - uma doença que destrói o cérebro até deixá-lo como uma esponja. Mas
nenhum caso havia sido confirmado no Brasil - principalmente porque a transmissão se dava quando
o gado se alimentava de ração feita com carcaça de gado infectado, o que não era uma prática
comum no Brasil. De qualquer forma, o Ocidente vivia uma medo generalizado desse mal, cuja
suspeita já custara mais de 3 milhões de cabeças de gado sacrificadas nas décadas de 1980 e 1990.
Na França, 8 mil fazendeiros tinham parado o centro de Clermont-Ferrand. Em Brest, uma rede de
restaurantes que vende carne argentina fora alvo de manifestações - ainda que até a época não
tivessem sido registrados casos da doença nas Américas. Jogar dúvidas sobre a carne brasileira
seria uma forma efetiva de castigar o país não por seu rebanho, mas porque a Embraer recebia
ajuda do programa brasileiro às exportações. E a Embraer é concorrente da canadense Bombardier.
Medo e ansiedade também rendem consumidores. O setor de segurança privada faturou R$ 15
bilhões em 2011, com crescimento anual de 14%, segundo a Associação das Empresas Prestadoras
de Serviço. O setor de seguros faturou R$ 218,6 bilhões em 2011 - 17,1% a mais que no ano
anterior. Novas marcas de sabonetes e outros produtos de higiene trazem bactericidas como o
triclosan ou triclocarban, e os divulgam em anúncios que mostram o risco que nossos filhos correm
ao manter suas mãos infectadas por micro-organismos. Por outro lado, não contam que o uso
excessivo de bactericidas pode abrir espaço para superbactérias mais resistentes, e que o sistema
imunológico precisa de um pouco de sujeira para preparar seu repertório de anticorpos. Mas parece
completamente racional que uma mãe compre um sabonete antisséptico para evitar que seu filho
fique com dor de barriga depois de comer algo usando as mãos infectadas.
Acreditar que sua casa é tóxica, que seu carro é tóxico, que os brinquedos do seu filho são
tóxicos, que sua comida é tóxica e que o mundo é infeccioso pode ajudar você a se proteger de
ameaças. Mas também pode servir a interesses.
A pandemia da ansiedade

Trânsito, violência, excesso de


trabalho. Tudo isso está deixando a
humanidade cada vez mais ansiosa,
certo? Errado: o problema pode
estar no tamanho do seu carro.
Vimos até agora que a ansiedade é uma estratégia importante para nos protegermos de riscos.
Nisso, ela é extremamente parecida com o medo, com uma única diferença central: o que nos deixa
ansiosos não é uma ameaça direta - por exemplo, uma arma apontada para nossa cabeça -, mas
possíveis ameaças futuras - andar em bairros que percebemos como perigosos, em horários que
percebemos como arriscados, em situações que percebemos como ruins. Enquanto nosso Sistema 1
aprende a relacionar imediatamente certos objetos e situações ao perigo, produzindo a emoção
“medo” quando enfrenta presencialmente esses objetos e situações, nosso Sistema 2 calcula não só
o grau desse perigo de acordo com o contexto, como também tenta prever os perigos que poderá
enfrentar no futuro se diferentes decisões forem tomadas. Nessa relação entre perigo e futuro é que
está a ansiedade.
Vimos também que, na hora de fazer avaliações e tomar decisões, nossa mente busca o caminho
mais fácil, rápido e econômico. Isso foi uma grande vantagem evolutiva, pois nos permite realizar
várias ações em pouco tempo, mesmo quando possuímos poucas informações para chegar a uma boa
conclusão.
Mas, ao mesmo tempo, essas avaliações muitas vezes acabam não condizendo com a realidade. E,
quanto mais complexa for a realidade, mais erros nossa intuição poderá produzir. Por meio da
ciência, humanos conseguiram produzir energia atômica, supercomputadores, máquinas voadoras e
alimentos geneticamente modificados. Para avaliar os riscos dessas tecnologias, é necessário
também o método científico. Ainda assim, o que usamos é a mesma
boa e velha intuição, que garantiu a sobrevivência de nossa espécie. O Homo sapiens é também
Homo anxius.
Aquele sentimento que nos faz correr atrás dos prazos e fugir de situações de risco antes que
acabem é a ansiedade saudável. Mas, dependendo do grau de ansiedade, ela se torna um
desconforto pouco útil. E, quando ela toma conta de nós, atrapalhando a vida, vira transtorno
mental. É nesse momento que precisamos deixar um pouco de lado as psicologias evolutiva e
cognitiva - que dão conta de explicar por que algo aparentemente desconfortável é na verdade uma
adaptação ou uma avaliação de risco errada - e entrar na área de atuação da psiquiatria, que se
ocupa em entender quando a ansiedade se torna um transtorno, e não uma adaptação.
A psiquiatria possui uma espécie de “Bíblia” de diagnósticos de transtornos mentais: o “DSM”
(Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da sigla em inglês), da Associação
Americana de Psiquiatria. Nele são caracterizados os tipos de transtornos e seus critérios de
diagnóstico. No grupo de transtornos de ansiedade estão, entre outros, o “transtorno do pânico”, as
“fobias específicas”, a “fobia social”, o “transtorno obsessivo-compulsivo”, o “transtorno de estresse
pós-traumático” e o “transtorno de ansiedade generalizada”. Para fazer um diagnóstico preciso, é
necessária a avaliação de um psiquiatra. Portanto, as descrições que você vai ver agora são apenas
uma breve caracterização dos transtornos, e não um guia para fazer um autodiagnóstico.

TRANSTORNO DE PÂNICO – O MEDO QUE CAUSA MEDO


Ataque de pânico e transtorno (ou síndrome) de pânico são duas coisas diferentes. O ataque é um
período bem delimitado - em geral, atinge o auge em 10 minutos - marcado pela ocorrência
repentina de uma apreensão intensa seguida de um medo ou de um terror associado a uma
catástrofe iminente. Quem tem ataque de pânico sente ao menos quatro dos seguintes sintomas:
falta de ar, palpitações, transpiração excessiva, sensação de anestesia ou de formigamento, náusea
ou desconforto abdominal, vertigem, tontura ou desmaio, calafrios e ondas de calor, estranhamento
com o ambiente ou consigo mesmo, tremores, dor ou desconforto no peito, sensação de asfixia ou de
nó na garganta, medo de ficar louco ou de perder o controle de si e, finalmente, medo de morrer.
Esse ataque pode ser disparado ou favorecido quando se expõe a um evento desencadeador - por
exemplo, uma pessoa com fobia social pode ter um ataque de pânico antes de fazer um discurso em
público, e uma pessoa com aracnofobia pode ter um ataque de pânico ao ver uma aranha por perto.
Quando uma pessoa tem um ataque de pânico numa situação específica - por exemplo, ao dirigir ou
fazer compras num lugar lotado -, ela pode desenvolver alguns medos irracionais chamados fobias,
sobre as quais falaremos mais tarde. Isso pode levar a um nível de ansiedade tamanho que até
mesmo a ideia de participar das atividades que precederam o primeiro ataque passa a engatilhar
novos ataques.
Esses ataques podem se tornar recorrentes sem que haja nenhum motivo aparente, e o temor de
que sofrerá mais um ataque leva a pessoa a mudar seu comportamento. É nesse ponto de medo do
medo que pode acontecer o transtorno do pânico. Sem saber de onde vem tal medo e seus sintomas
físicos, surgem crenças como a de que esses sintomas são subjacentes a uma condição médica não
diagnosticada. Mesmo que todos os exames médicos provem o contrário, a pessoa acredita ter
doenças cardíacas, epilepsia ou outras condições. Depois de um número de episódios de pânico,
passa a ter medo do próprio medo. Acha que vai perder a razão, o controle de si. Alguns podem até
negar ter medo de outros ataques, mas abandonam seu trabalho, hesitam em ficar sozinhos, em ir
muito longe de casa, frequentar lugares públicos e encarar qualquer outra situação em que possa
sentir-se desamparado no caso de um novo ataque. Assim, a ansiedade toma controle da pessoa
mesmo quando não acontece um ataque de pânico.
E como funciona o ataque de pânico? Segundo Reid Wilson, professor de psiquiatria da
Universidade da Carolina do Norte, ele segue uma série de passos rapidíssimos, a maioria deles
inconscientes. Ele pode começar com a ansiedade antecipatória - quando se imagina aproximar-se
de uma situação temida. Automaticamente, seu Sistema 1 traz à mente os fracassos passados em
encarar essa situação. O corpo então passa a responder a esse pensamento como se a situação
propriamente dita acontecesse naquele momento. Isso é o que acontece, por exemplo, quando
emoções positivas surgem ao vermos a foto de uma pessoa amada ou quando nos lembramos de um
acontecimento bom. Só que, desta vez, as emoções são tremendamente negativas. Então, o Sistema
1 diz: “com base nos meus fracassos anteriores, acho que não suportarei essa situação”. Vou entrar
em pânico e perder o controle. Mentalmente, visualiza-se o pior cenário, e o corpo é instruído a se
preparar fisicamente para ele. É o caso de se proteger contra o fracasso, contra uma emergência.
Entra em cena a velha reação de luta e fuga, que causa o aceleramento do coração, a
hiperventilação, o suor frio, o desconforto abdominal.
Ou seja, o problema não é a reação do seu corpo, mas a interpretação que o Sistema 1 faz de um
pensamento. Ele acha que uma situação de perigo se aproxima, relaciona-a a experiências passadas,
cria a imagem de um trauma e instrui o corpo a responder como se a situação imaginada estivesse
acontecendo de fato.
Esse foi o primeiro estágio do pânico - uma ansiedade antecipatória em geral inconsciente. O
segundo estágio, segundo o professor Wilson, é o ataque de pânico propriamente dito, que deixa de
ser inconsciente. As reações do corpo desencadeadas pela ansiedade antecipatória são muito fortes,
e, como elas não têm causa aparente, acabam provocando medo. Afinal, por que será que o coração
está trotando? Por que o ar que se respira não parece dar conta? Por que a boca está seca? Por que
os músculos estão tensos? A resposta do corpo é mais emergência. E, assim, os sintomas
relacionados à reação de luta e fuga acabam se fortalecendo.
Lembra-se de todos os detalhes desse tipo de reação? Uma de suas características é que a
atenção passa a ser focada em um só ponto - a ameaça. E, como os sintomas da reação de fuga e
luta é a própria causa do medo nesse segundo estágio, a pessoa em pânico passa a se focar neles.
Assim, o corpo entra numa corrida armamentista contra si mesmo.
Para piorar, a reação de luta e fuga aumenta o ritmo da respiração. Isso seria importante se
precisasse sair correndo de uma ameaça - o esforço físico produziria uma grande quantidade de
dióxido de carbono, que precisaria ser eliminado e substituído por oxigênio. Mas, quando não há
esse esforço físico, o equilíbrio entre dióxido de carbono e oxigênio no sangue é alterado. E isso é a
causa de uma série de sintomas do ataque de pânico: a tontura, a sensação de asfixia ou de nó na
garganta, a dor no peito, a confusão mental.

FOBIA ESPECÍFICA – OS MEDOS VISÍVEIS


O ditador norte-coreano Kim Jong-il tinha medo de avião. Isso não era um problema grande - voar
não é tão necessário num país de dimensões pequenas e quase totalmente isolado politicamente.
Mas foi esse medo que o levou ao absurdo de atravessar, em seu trem pessoal blindado, mais de 9
mil quilômetros da Ferrovia Transiberiana para se encontrar em 2001 com o então presidente russo
Vladimir Putin em Moscou. É claro que um chefe de Estado com tantos inimigos tem motivos
bastante racionais para evitar o voo - acidentes aéreos são surpreendentemente comuns entre
políticos. Foi assim que morreram o presidente filipino Ramon Magsaysay (1957), o presidente
paquistanês Muhammad Zia-ul-Haq (1988), o presidente de Ruanda Juvénal Habyarimana (1994), o
do Burundi Cyprien Ntaryamira (1994) e, mais recentemente, o presidente polonês Lech Kaczyński
(2010) junto com sua mulher, o ex-presidente Ryszard Kaczorowski e uma lista de oficiais de alta
patente do governo. Mas, em entrevista a uma revista japonesa, o embaixador sueco em Pyongyang
disse que o motivo do medo de voar de Kim Jong-il não era político, mas um trauma pessoal: em
1976, quase morrera num acidente de helicóptero.
Já a chanceler alemã Angela Merkel tem medo de cachorros - quando era criança, foi mordida por
um. Embora essa fobia pareça ter menos implicações políticas, não há fraqueza alheia que não
renda dividendos. Para o espanto de diplomatas alemães, em 2006 o colega Putin deu a Merkel um
filhotinho de cachorro e tornou hábito trazer seu labrador Koni para seus encontros com a alemã.
Esses são exemplos de fobias específicas - ansiedades clinicamente significativas disparadas por
um estímulo bem delimitado. Elas podem assumir a forma de ataque de pânico (o que não aconteceu
nos encontros entre Merkel e Putin), mas com uma diferença essencial em relação ao transtorno do
pânico. Enquanto este não tem um disparador específico conscientemente reconhecível, as fobias
específicas são engatilhadas por estímulos bem claros para quem sofre delas.
Esses estímulos são classificados em animal (cachorro, gato, lagartixa, cobra, aranha e insetos),
ambiental (altura, água, trovões), situacional (transporte público, túneis, pontes, elevadores, viagens
aéreas, direção) ou aqueles relacionados a sangue e acidentes. Mas a ansiedade na fobia específica
não se limita à exposição ao estímulo propriamente dito. Ela pode ser engatilhada pelo medo de
perder o controle diante dele. Por exemplo, medo de desmaiar ao ver sangue, de ter vertigens ao
subir às alturas, de começar a chorar ao entrar num ambiente fechado.
A esta altura, você já pode imaginar que tem alguma fobia específica. Mas, como em qualquer
transtorno de ansiedade, é preciso diferenciar o que é um medo natural e saudável do que é
patológico.
Portadores adultos de fobias têm consciência de que seu medo é excessivo ou nada razoável. Por
exemplo, se alguém tiver muito medo de entrar num elevador por estar convicto de que ele foi
sabotado e não tiver motivos verdadeiros para achar isso - e não reconhecer que seu medo é
excessivo ou nada razoável -, o diagnóstico possivelmente será de transtorno delirante, e não de
fobia específica. Mas o pensamento racional de quem tem fobia específica é atropelado pelo medo.
Novamente, é o Sistema 1 falando primeiro e mais alto do que o Sistema 2. Para ele, de nada
adianta saber que a probabilidade de morrer num acidente de avião é muito menor do que a de
morrer num acidente de carro. O medo vem automaticamente, e o recurso mais simples de lidar com
ele é evitar o estímulo amedrontador.
As fobias específicas podem se desenvolver rapidamente. Por exemplo, passar por episódios
traumáticos - como o acidente de helicóptero de Kim Jong-il e o ataque canino de Merkel -, ou ver
alguém passando por um episódio desse tipo. As causas também podem ser evolutivas - não é
necessário passar por um trauma para que se tenha medo - em algumas pessoas patológico - de
cobras. Mas também podem ser construídas ao passar dos anos, por meio do aprendizado e da
exposição a exemplos.

FOBIA SOCIAL – O MEDO DE SER DESAPROVADO


Diante da plateia composta por chefes e colegas de trabalho, você procura respirar fundo e espera
não perder o equilíbrio. Não há por que temer, pois você está bem preparado para essa
apresentação. Mas eis que seu coração começa a acelerar, uma pressão se forma no peito, a língua
engrossa, o pensamento é tomado por uma nuvem, e logo vem o branco. Você não sabe nem sequer
o que você veio falar. Suas mãos estão molhadas de suor, suas roupas parecem completamente
inadequadas à situação, e tudo que resta é a certeza de que você cairá em desgraça diante daquelas
dezenas de olhares prontos para julgá-lo. Como um palhaço que se esqueceu de trazer a piada ao
picadeiro.
No dia seguinte, você é chamado para uma reunião de trabalho com todos os seus colegas para
discutir um novo projeto. Fica calado o tempo todo, mesmo que tenha uma contribuição a dar. Afinal
de contas, você acha que não vai conseguir expressar com precisão o que quer falar, e acabará se
passando por idiota. Fica tão desconcertado que acaba se levantando para ir ao banheiro. Mas eis
que outro colega faz o mesmo e entra antes. Você então segue em frente até a máquina de café -
melhor esperar do que encarar alguém no banheiro.
Toda situação social constrangedora pode nos deixar nervosos. Isso é normal. Ser tímido também
é normal. Já entre as pessoas com fobia social, expor-se ao escrutínio alheio, falar com
desconhecidos e parecer despreparado, mal articulado ou plenamente burro quando atenções se
voltam a elas, leva a uma ansiedade clinicamente significativa, que pode chegar a um ataque de
pânico. E mais: situações simples como comer num refeitório ou pedir informações a um
desconhecido parecem tão constrangedoras quanto seria para a média das pessoas uma
apresentação em público.
Quando a ansiedade estoura, os sintomas visíveis do pânico alimentam-na ainda mais, pois
expõem sua ansiedade ao público.
O fóbico social acha que todos se focarão em suas mãos e voz trêmulas, e em sua camisa empapada
de suor.
Essa ansiedade é tão grande que o portador passa a evitar tais situações, ainda que possa
enfrentá-las com um sofrimento intenso. Pode até passar semanas sofrendo antecipadamente antes
de um evento social acontecer. Não é de surpreender que isso leve o fóbico social a ter resultados
acadêmicos ou profissionais
abaixo de suas capacidades. Fica ansioso demais para fazer uma prova ou para participar
ativamente de aulas, evita o contato com figuras de autoridade e com colegas. Em casos mais
graves, pode acabar abandonando seus estudos e não procurando trabalho, amizades e outras
relações afetivas.

TRANSTORNO OBSESSIVO-COMPULSIVO (TOC) – PENSAMENTOS E RITUAIS QUE


ENCARCERAM
Eis um transtorno que se popularizou bastante entre adeptos do autodiagnóstico. Qualquer
preocupação repetitiva - por exemplo, saber se a janela foi fechada mesmo - basta para que alguém
diga “isso é TOC”. Mas é normal se perguntar se você esqueceu uma janela aberta quando já está no
caminho para casa. Talvez tenha deixado, talvez não. Então, tenta reconstruir mentalmente as
últimas ações antes de sair de casa. Se concluir que não fechou, acaba voltando para casa. Ou deixa
estar - tudo bem, hoje não deve chover.
Já para quem tem transtorno obsessivo-compulsivo, essas obsessões ou compulsões são
recorrentes e graves o suficiente para levar à perda de tempo - por exemplo, mais de uma hora por
dia -, à interferência nas suas tarefas habituais, na sua vida profissional e social, ou a um sofrimento
significativo.
Primeiramente vamos diferenciar o que é uma obsessão e uma compulsão. Uma obsessão é um
pensamento persistente, intrusivo e inapropriado, que leva a uma ansiedade ou a um sofrimento
importante.
As obsessões mais comuns são contaminação (num simples aperto de mãos, por exemplo),
dúvidas repetitivas, necessidade de colocar coisas numa ordem em particular.
Já as compulsões são comportamentos repetitivos (como lavar as mãos, organizar objetos numa
determinada ordem) ou atos mentais (como rezar, contar, repetir palavras silenciosamente) com o
objetivo de evitar ou diminuir a ansiedade, e não para obter prazer. Em geral, a pessoa se sente
forçada a realizar uma compulsão de forma ritualística para reduzir uma obsessão. Por exemplo,
quem tem obsessão por limpeza pode ter a compulsão de lavar as mãos.
Quando uma pessoa com TOC tenta parar seu ritual, é tomada por uma ansiedade forte, ou até
mesmo por um ataque de pânico. Então, volta aos pensamentos e ações. Em sua cabeça, somente
eles vão evitar consequências desastrosas - como pegar uma doença terrível por não ter lavado
perfeitamente as mãos depois de encostar em alguém. A maioria dos portadores de TOC sabe que
suas obsessões são irracionais. Mas a ansiedade vem mesmo assim. Se tentar resistir a elas, elas só
se tornam piores. Sua convicção é de que, ao se preocupar, evitará que algo trágico aconteça - por
mais que saiba que isso é irracional.

TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO – HORROR EM FLASHBACK


Qualquer pessoa passa por eventos difíceis que marcam nossa memória, como acontecimentos que
ameaçam a vida ou a integridade física, o testemunho de algo que tenha ameaçado a vida de alguém
ou a notícia da morte ou da agressão de alguém próximo. Mas portadores deste transtorno não
apenas se lembram de um acontecimento traumático. Eles o revivem. O estresse pós-traumático traz
persistentemente um medo intenso, um sentimento de falta de esperança ou de horror por mais de
um mês, que altera as atividades habituais dessas pessoas.
É o caso, entre outros, do combate militar, de agressões de pessoas violentas, do abuso sexual, de
sequestros, de ataques terroristas, de tortura, do encarceramento, de catástrofes, de acidentes
graves e de diagnósticos de doenças fatais, a morte inesperada de um membro da família ou de um
amigo próximo.
Em geral, o evento traumático volta à mente repetitivamente ou por meio dos sonhos de forma
vívida, acompanhado de um sofrimento profundo. Em casos raros, a pessoa volta por segundos ou
mesmo horas àquele acontecimento em flashbacks, principalmente em situações que remetam a ele
- como aniversários do evento. Os sintomas começam habitualmente nos três primeiros meses após
o trauma - embora possa haver um atraso de mais meses ou até de anos. Ele pode ser agudo,
quando os sintomas persistem por menos de três meses, ou crônico, se passar disso.
Conforme a ansiedade, o pânico, as imagens traumáticas, os pesadelos e a depressão se
fortalecem, a pessoa começa a se distanciar do resto do mundo, mostrar menos emoções e perder o
interesse por coisas e pessoas que antes eram importantes. Para escapar disso, é comum partir para
drogas e álcool.

TRANSTORNO DE ANSIEDADE GENERALIZADA – PREOCUPAÇÃO A TODA HORA


O centro da ansiedade generalizada é uma ansiedade e preocupação excessivas e incontroláveis em
relação a vários acontecimentos e atividades durante a maior parte do tempo - ao longo de pelo
menos um semestre, de acordo com o DSM-IV-TR. A intensidade, a duração e a frequência da
ansiedade e das preocupações são desproporcionais à probabilidade ou ao impacto real dos
acontecimentos que as causam - por exemplo, responsabilidades profissionais,
problemas financeiros, saúde de membros da família, responsabilidade sobre os filhos.
Junto a isso vêm alguns sintomas ligados a seis sistemas do corpo. No sistema cardiovascular, a
ansiedade aumenta a pressão arterial e a velocidade do coração, com o sangue saindo da periferia
do corpo e se acumulando nos músculos esqueléticos. No sistema gastrointestinal, ela diminui a
salivação (boca seca), cria espasmos no esôfago (dificuldade para engolir) e alteração no estômago
(frio na barriga) e intestino (barulho de gases, cólica e diarreia ou prisão de ventre). No sistema
respiratório, leva à hiperventilação. No sistema genito-urinário, há o aumento na urinação, maior
dificuldade de manter ereção em homens e maior dificuldade de atingir o orgasmo em mulheres. No
sistema músculo-esquelético, os músculos ficam tensos, o que pode levar a tremores e dores de
cabeça ou em outras partes do corpo. No sistema nervoso, a pessoa fica mais apreensiva, vigilante,
impaciente, irritadiça. Pode ter dificuldade para se concentrar e dormir, além de sentir fadiga.
Qualquer pessoa tem preocupações. A diferença entre as preocupações de quem tem transtorno
de ansiedade generalizada é que esses pensamentos são repetitivos, improdutivos, pouco
controláveis e só levam à ansiedade.

VIVEMOS UMA PANDEMIA DE ANSIEDADE?


De todos os transtornos mentais, os de ansiedade são os mais frequentes, indica uma prévia do
primeiro levantamento comparando a prevalência, a gravidade e o tratamento de transtornos
mentais em diferentes países do mundo, realizado pela Organização Mundial da Saúde. O
levantamento, com 26 países de diferentes continentes e graus de desenvolvimento, ainda está
sendo realizado, mas a primeira parcial com 14 países (EUA, Japão e mais seis países europeus
desenvolvidos, além de China, Colômbia, Líbano, México, Nigéria e Ucrânia) mostrou que o único
país onde os transtornos de ansiedade não são os mais prevalentes é a Ucrânia. Em termos
numéricos, a predominância desses transtornos vai de 2,4%, na cidade chinesa de Xangai, a 18,2%,
na população americana em geral. E, em 2012, foi a vez de o Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas da USP trazer os dados epidemiológicos da Região Metropolitana de São Paulo. Resultado:
batemos o recorde. Num período de 12 meses, 19,9% da população teve ao menos um quadro clínico
de ansiedade. Ou seja, 4 milhões de pessoas. Vamos aos dados descobertos por essa pesquisa:

Prevalência de transtornos mentais num período de 12 meses entre moradores da Região
Metropolitana de São Paulo:

TRANSTORNOS DE ANSIEDADE (total: 19,9%)
Transtorno do pânico - 1,1%
Transtorno da ansiedade generalizada - 2,3%
Fobia social - 3,9%
Fobia específica - 10,6%
Agorafobia sem pânico - 1,6%
Transtorno Obsessivo-Compulsivo - 3,9%
Transtorno da separação adulta - 2%

TRANSTORNOS DE HUMOR (total: 11%)
Distimia - 1,3%
Transtorno depressivo - 9,4%
Transtorno bipolar - 1,5%

TRANSTORNOS DO CONTROLE DOS
IMPULSOS (total: 4,2%)
Transtorno desafiador opositivo - 0,5%
Transtorno de déficit de atenção - 0,9%
Transtorno explosivo intermitente - 3,1%
TRANSTORNOS DO ABUSO DE SUBSTÂNCIA
(total: 3,6%)
Abuso de álcool - 2,7%
Dependência de álcool - 1,3%
Abuso de drogas - 0,6%
Dependência de drogas - 0,5%

(Fonte: ANDRADE, Laura, 2012: “Mental Disorders in Megacities: Findings from the São Paulo
Megacity Mental Health Survey, Brazil”)

É possível que a violência - ou a percepção dela por meio de veículos de comunicação - tenha
alguma influência. Afinal, em comparação com a média de homicídios mundiais, São Paulo é
relativamente violenta - tem uma taxa de 13 homicídios por 100 mil habitantes, contra a média
mundial de 6,9. Isso já foi bem pior: em 2000, havia 64,9 mortos para cada 100 mil paulistanos.
Mas a violência não se resume a homicídios. Segundo o estudo do IPQ, 54,6% dos moradores da
Região Metropolitana de São Paulo já viveram pelo menos algum evento traumático relacionado ao
crime, e 6,1% passaram por três ou mais.
Vamos decompor esses números:

Exposição de habitantes da Região Metropolitana de São Paulo a eventos traumáticos

35,7% já testemunharam alguém ser ferido ou morto, ou inesperadamente viram um corpo morto;
34% já foram assaltados à mão armada ou ameaçados com arma;
5,5% já foram perseguidos obsessivamente
(ou seja, foram vítimas de stalkers);
5,2% já viram uma pessoa próxima ser sequestrada, torturada ou estuprada;
3,5% já testemunharam alguma atrocidade ou carnificina;
0,5% já foram sequestrados ou mantidos em cativeiro;
1,6% já foi vítima de sequestro-relâmpago.

(Fonte: ANDRADE, Laura, 2012: “Mental Disorders in Megacities: Findings from the São Paulo
Megacity Mental Health Survey, Brazil”)

Passar por apenas uma dessas situações já aumenta o risco de transtornos de ansiedade, de
humor (como depressão) e de controle de impulso. E, entre os que passaram por três ou mais
acontecimentos desses, 40% tiveram algum transtorno, contra 20% dos que foram expostos a um ou
dois.
Pronto: nosso Sistema 1 já reuniu informações dizendo que São Paulo é uma fábrica de ansiedade
- e possivelmente outras metrópoles brasileiras também. E o Sistema 2 vai procurar razões para isso
a partir de nossas experiências pessoais e aquilo que vemos na televisão. Ao encontrar várias causas
possíveis - trânsito caótico, violência, trabalho... -, vai concluir que nunca na história e na pré-
história da humanidade tivemos tantos motivos para ficar ansiosos. Mas será que isso é verdade?
Não é possível saber, pois não há estudos que mostrem em épocas e eras passadas qual a
prevalência de ansiedade. Talvez sejamos mais ansiosos, talvez menos. E temos razões para as duas
coisas. Vamos começar pelo caminho contrário ao da nossa intuição: o passado tinha enormes razões
para nossos ancestrais serem muito ansiosos.
No livro The Better Angels of Our Nature, o neurocientista Steven Pinker afirma que nunca
vivemos num mundo tão pacífico, tão saudável e tão próspero. E ele tem boas razões para afirmar
isso. Permita-me fazer com o doutor Pinker uma breve história da ansiedade humana. Desde o ano
200 mil a.C. até o ano 10 mil a.C. (ou até hoje, em sociedades coletoras-caçadoras contemporâneas),
vivíamos em bandos nômades pequenos sem hierarquia. Qualquer disputa por predominância no
bando e qualquer conflito entre diferentes bandos era razão para violência. Pesquisas feitas com a
análise de esqueletos encontrados em sítios arqueológicos de sociedades nômades da Ásia, África,
Europa e Américas entre 14 mil a.C. e 1770 d.C. mostram que causas violentas variavam de 0 a 60%
das mortes, com uma média de 15%. Já dados de sociedades caçadoras-coletoras contemporâneas
ou recentes das Américas, Filipinas e Austrália mostram que entre 4% e 30% das mortes têm causa
violenta, com uma média de 14%. Pesquisas etnográficas com tais grupos mostram que 65% a 70%
deles entram em guerra pelo menos uma vez a cada dois anos, e 90% entram pelo menos uma vez a
cada geração. Ou seja, temos boas razões para viver atentos para o risco de violência em nosso
estado natural.
Isso se refere apenas à violência entre humanos. O que dizer então do risco de fome quando não
se domina a agricultura e a criação de animais domésticos? O que dizer do risco de morrer por
doenças e pelo ataque de animais, de aranhas a leões? O que dizer do risco de seu filho não ser
legítimo quando não existem métodos anticoncepcionais?
A partir do ano 10 mil a. C., um fenômeno interessante começou a acontecer em várias partes do
mundo - no Crescente Fértil, na China, na Índia, na África Ocidental, na Meso-América e nos Andes:
populações se assentaram em territórios onde cultivaram grãos, legumes e animais domesticados.
Foi o grande passo para a aceleração da multiplicação da humanidade. Tribos se uniram por
semelhanças culturais, e delas surgiram as primeiras sociedades organizadas em volta de um chefe -
algo parecido com o que existe nas áreas tribais do oeste paquistanês, no Afeganistão e na Somália.
Essa organização não foi pacífica. A formação e a sustentação de uma hierarquia social são feitas
por meio da violência. Mas, uma vez estabelecida, ela cria ordem entre os membros dessa
sociedade. O cultivo de cereais e a domesticação de animais trouxe uma certa segurança alimentar
para nossa espécie, que havia evoluído para aguentar períodos de fome e de fartura. Famílias
nucleares passaram a se organizar em famílias expandidas. Ter uma quantidade grande de filhos
deixou de ser um peso e se tornou uma vantagem: agora, filhas podiam
ser cedidas em casamentos arranjados para forjar alianças entre famílias, e filhos passavam a ajudar
na plantação e no pastoreio.
Mas, ao mesmo tempo em que algumas causas de ansiedade diminuíram, novas surgiram. Um
capricho meteorológico significa até um ano de fome para agricultores. A maior densidade
populacional também trouxe novas doenças infecciosas causadas pela contaminação da água. E a
propriedade do solo se tornou razão para disputas e ansiedade. A família que perdesse sua terra em
um conflito perderia também sua subsistência.
O domínio de uma tribo sobre a outra levou à concentração do poder naquilo que se tornariam os
primeiros Estados, surgidos a partir do século 4 a.C. - entre eles, as cidades-Estado da
Mesopotâmia, o Império Egípcio, o Império do Vale do Rio Indo e a dinastia Xia, na China. Essas
sociedades eram divididas entre uma nobreza de sacerdotes e de guerreiros e uma massa de
camponeses presos a terra, obrigados a dar ao Estado o excedente de sua produção e a trabalhar
em obras públicas, como sistemas de irrigação.
Ser subjugado por uma teocracia que extorque parte do que esses camponeses produzem podia
ser um motivo para ansiedade. E quando a figura do chefe de Estado se mistura à de um Deus, como
acontecia no caso do faraó e do César, o medo invade suas crenças espirituais. No entanto, os
sistemas de irrigação e as estradas que construíram com trabalho obrigatório aumentaram sua
segurança alimentar - uma seca é menos devastadora quando se pode desviar água de um rio -, e o
monopólio de uso legítimo da violência com o qual o império oprime seus súditos também é usado
para evitar invasões bárbaras. Assim, diminui o risco de estrangeiros matando, escravizando ou
expulsando camponeses da terra da qual tiram seu sustento. Até o século 20, nunca o mundo tinha
vivido um período com menos guerras entre potências do que durante o Império Romano.
O que dizer então da Idade Média? A pulverização do Império Romano em vários reinos com
governo descentralizado em múltiplas camadas de nobres acabou com o império da lei. No lugar
dela mandavam a honra e a glória da espada. Na pequena cidade de Oxford do século 14, a taxa de
homicídios era de 110 pessoas para cada 100 mil habitantes - quatro vezes maior do que a do Rio de
Janeiro. Já a Londres de hoje em dia tem aproximadamente um homicídio para cada 100 mil
habitantes.
Mas o problema das cidades medievais não se resumia a duelos, latrocínios e execuções em praça
pública. Elas concentravam uma quantidade imensa de pessoas sem que houvesse saneamento
básico para evitar a disseminação de epidemias, como a peste negra. Não faltavam motivos para
viver com ansiedade constante.
Depois da Idade Média, temos a Idade Moderna, com seus absolutismos, suas constantes guerras
por almas e por territórios, suas colonizações. Ela foi seguida pela era dos nacionalismos,
alimentada pelas máquinas da Revolução Industrial. A Europa se transformou de um continente
agrícola numa colcha de cidades poluídas com fábricas com jornadas de trabalho imensas - o que
incluía o trabalho infantil - e salários famélicos, além de minas de carvão que causavam doenças
respiratórias e mortes por soterramento. Na Inglaterra do século 19, a expectativa de vida não
chegava aos 40 anos. As más condições de vida de trabalhadores levaram à formação de
movimentos sociais que, em 1917, culminaram na Revolução Bolchevique. Estados burgueses, que
tinham nos outros Estados seus rivais, viam nascer dentro de sua própria sociedade uma nova
ameaça - o comunismo, que propunha a queda de suas elites e a ditadura do proletariado.
As indústrias que alimentaram as economias de Estados nacionalistas e colonialistas no século 19
alimentaram, na primeira metade do século 20, a máquina bélica das duas Guerras Mundiais. Na
Segunda Guerra, 55 milhões de pessoas foram mortas em batalha - um número que supera os 36
milhões mortos na Revolta An Lushan na China do século 8 e os 40 milhões mortos nas conquistas
mongóis.
Mas o século 20 não parou em 1945. Desde o fim da 2ª Guerra, nenhum país da Europa Ocidental
entrou em guerra um com o outro. Nenhum país desenvolvido expandiu seu território, e nenhum
país internacionalmente reconhecido deixou de existir por meio de conquista. Foi um período de paz
relativa nunca antes visto desde o Império Romano. Isso não quer dizer que guerras tenham
acabado. De 1946 a 2008, 260 conflitos mataram 9,4 milhões de pessoas. Quase a metade disso foi
causada por cinco guerras (Coreia do Sul e do Norte, Vietnã do Sul e do Norte, Irã-Iraque, China e
Afeganistão). O restante foi resultado de inúmeras guerras civis desencadeadas principalmente após
a descolonização da África e a queda da URSS. E, por mais que guerras civis sejam traumáticas, são
menos letais do que guerras entre Estados.
Enquanto isso, a expectativa de vida aumentou em praticamente todo o planeta. A Revolução
Verde - o desenvolvimento de tecnologias agrícolas como pesticidas, sementes híbridas, fertilizantes
sintéticos e expansão da irrigação - aumentou tremendamente a produção de alimentos na Ásia e na
América Latina. Avanços da medicina e programas de vacinação derrubaram a ocorrência de
doenças infecciosas como difteria, tuberculose, sarampo, coqueluche, poliomielite e febre tifoide.
Mesmo países extremamente pobres e com alta prevalência de HIV, como Moçambique, têm uma
expectativa de vida superior à da Inglaterra durante a Revolução Industrial. E, por fim, a taxa anual
de homicídios no mundo é de 6,9 por 100 mil terráqueos. Na França do século 19, ela era de 70 por
100 mil. E, segundo Pinker, passa de 500 por 100 mil entre sociedades caçadoras-coletoras
contemporâneas.
Com exceção de Estados falidos como a Somália, governos conseguem exercer num grau maior
ou menor o monopólio da violência legítima para fazer sua lei valer. Mas nem só pela força se
consegue a paz. O interesse mútuo em fortalecer relações comerciais e o cosmopolitismo trazido por
imigrantes também tornam conflitos armados opções menos interessantes para países integrados na
economia mundial.
Ou seja, considerando as causas de ansiedade relacionadas diretamente à morte, teríamos hoje
boas razões para ser mais calmos do que em qualquer outro momento da história e da pré-história.

EM CIMA DA PIRÂMIDE
Mas a ansiedade não é disparada apenas pelo risco de morrer de fome, de doença ou de morte
matada. O mesmo processo civilizatório que aumentou a expectativa de vida trouxe novas causas
para ansiedade. Voltemos ao levantamento da OMS sobre prevalência de transtornos mentais ao
redor do mundo. A ansiedade é o mais comum deles. Para entender o que nos deixa tão ansiosos
hoje é necessário entender quais as novas causas para preocupação no estágio civilizatório a que
chegamos. Quem nos ajuda a chegar a essas pistas é Márcio Bernik, chefe do ambulatório de
ansiedade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. Para ele, há muitas respostas
para a ansiedade na civilização: as inúmeras hierarquias em que nos encaixamos numa sociedade
complexa, a grande carga horária de trabalho (enquanto suas provisões não acabassem, caçadores-
coletores podiam se dedicar ao lazer, e dificilmente precisariam trabalhar depois de o sol se pôr), a
quantidade e qualidade de informação a que se expõe por meios de comunicação, o afastamento de
grupos e de núcleos familiares, e a violência urbana. E em primeiro lugar, para Bernik, está o
ranking hierárquico. Se nossos ancestrais se comparavam com seus irmãos e cunhados, hoje você se
compara com Eike Batista. Aprendemos o significado de bilhões de reais e o que eles compram.
E sabemos que nunca chegaremos lá.
Não concorda? Vamos então fazer um teste. Pense na sua vida. Você acorda e vê que seu cônjuge
não é a Gisele Bündchen nem o George Clooney. Ou acorda sozinho. E, no espelho do banheiro,
percebe que você também não é Malvino Salvador nem Sabrina Sato. Toma o café da manhã - que
não é servido por empregadas da novela. Pega o seu carro e sai de seu bairro, que não é
Higienópolis nem o Leblon. Nas ruas da cidade que não é Nova York, vê os carros que não são o seu:
um sedã alemão aqui, uma SUV americana ali, enquanto você mal pagou as prestações de seu hatch
compacto. Chega ao seu trabalho - que não é na Apple nem no Itamaraty - e estaciona o carro numa
vaga distante (ao lado da entrada, vê mais sedãs alemães, e fica mais doído ainda diante do Mini
Cooper da sua chefe). No lobby, cumprimenta as pessoas que vestem Hugo Boss, Armani ou alguma
coisa trazida de Londres. Antes de começar a trabalhar, toma um expresso ordinário com adoçante,
enquanto o pessoal lá de cima não sabe qual variedade de Nespresso escolher. No escritório, vê a
bancada com vários computadores capengas, duas mesonas individuais com iMacs e a salinha de
persiana entreaberta do chefe do departamento. Senta-se no seu lugar (adivinhe qual é) e se lembra
mais uma vez de que demorará anos até que uma promoção o tire dessa cadeira bamba de estofado
rasgado e o coloque numa Herman Miller. Depois de você ter começado a trabalhar, uma revoada de
“bons dias” atravessa o andar até chegar a sua vez de cumprimentar o chefe. No almoço, você vai ao
quilo enquanto outros vão ao japonês. Paga com o seu cartão que não é platinum. Na saída, toma um
café - agora coado, servido numa garrafa térmica de plástico, na porta do restaurante. À tarde, visita
um cliente num escritório na região da Avenida Berrini. Entra na fila para fazer o cadastro na
recepção. E, ao apertar a mão do cliente, vê o relógio suíço. Antes de voltar para casa, passa na
academia - que não é de grife, mas cabe no seu bolso. Se você for mulher, vai engolir a barriga e
lamentar que nunca terá disposição para ficar com os glúteos daquela garota à direita (de qualquer
forma, deve ser uma desocupada que só vive na academia). Se for homem, vai engolir a barriga, mas
vai ficar no seu canto, para não passar vergonha perto do cara que coloca 40 quilos de cada lado do
supino (de qualquer forma, deve ser um desocupado que só vive na academia). No vestiário, abaixa
a cabeça ou só tira a cueca dentro da cabine do chuveiro - a comparação dói, compadre. De volta
para casa, liga a tevê - que ainda é daquelas de tubo de raios catódicos -, senta-se numa poltrona
que não é de designer escandinavo e começa a assistir às notícias ao lado daquela que não é Gisele
Bündchen ou daquele que não é George Clooney. Ou sozinho. Afinal, você não é um Malvino
Salvador nem uma Sabrina Sato.
Isso não é um manifesto antimaterialista nem mais um texto sobre como a classe média sofre.
Seres sociais são hierárquicos, e para eles o sucesso e o fracasso em sua hierarquia têm importância
tal como a sobrevivência e a reprodução. Só que, nas sociedades de caçadores e coletores, pessoas
pertenciam à hierarquia de seu bando. E, em sociedades complexas, elas pertencem a inúmeras.
Mesmo que você seja bonito, bom de cama e esteja no cargo máximo de uma empresa, encontrará
alguma situação na qual estará na parte inferior de uma hierarquia. Por exemplo, sua empresa pode
ser café-com-leite num mercado bem competitivo - e você pode ser um fracasso entre os jogadores
do clube de golfe do qual você é sócio.
Agora, comparemos isso a uma sociedade de caçadores e coletores. É verdade que nelas há
indivíduos mais dominantes e outros mais subordinados. Mas essa relação hierárquica é
influenciada por outros tipos de laço: os de amizade e os de família, que exploramos no volume
sobre o Amor desta coleção da SUPER. E laços de amizade e de família são mediados por emoções
como simpatia, gratidão, confiança, rancor e desconfiança. Uma pessoa de status alto que nutrir
simpatia por outra de status baixo tenderá a ter um comportamento altruísta. Isso faz o inferior
alimentar a gratidão pelo superior e tender a retribuir a ajuda no futuro. Essa relação constrói a
confiança entre os dois de tal forma que, quando houver a oportunidade de um trair o outro para
conseguir vantagem, acabe não cedendo
à tentação, por sentir culpa. Já quem acabar traindo quebrará a confiança e levará o outro ao rancor
e à vingança. Altruísmo de um lado e rancor de outro mantêm os laços de amizade. Em famílias,
indivíduos têm, além dessas emoções, o enorme interesse de ajudar uns aos outros para garantir o
sucesso daqueles que compartilham seus genes.
Tudo muda quando as sociedades se tornam mais complexas. Nasce a frase “amigos, amigos,
negócios à parte”. Para que um Estado ou uma empresa funcionem, é necessário deixar de lado os
laços de amizade e parentesco. Por exemplo, se um servidor público ou um político beneficiar um
parente, ele seguirá os interesses de seus genes, mas do ponto de vista do Estado seu ato será
nepotismo. Se um chefe promover apenas os seus amigos, seu ato jamais será um exemplo de má
gestão. E se um oficial do Exército de um país em guerra ajudar um amigo de uma nação inimiga,
passando informações confidenciais, será um traidor, provavelmente sujeito à pena de morte.
O que isso tem a ver com a ansiedade? Ser subordinado gera mal-estar, baixa a autoestima, faz
desejar ser o que não é e ter o que não tem. O risco de cair de hierarquia causa ansiedade. E o
amortecedor de sentimentos das relações de amizade e de parentesco não vale para as hierarquias
típicas de sociedades complexas. Para piorar, o estilo de vida urbano distancia o indivíduo de sua
família e de seus amigos. Quando um migrante se muda do campo para a cidade, ou um casal se
muda de um bairro para outro, diminui drasticamente o contato com sua família estendida - pais,
avós, tios, primos, sobrinhos. Ao entrar para o mercado de trabalho, diminui o convívio com a família
nuclear para a hora da janta e do café da manhã, e amigos ficam para os finais de semana. De resto,
sobram relações hierárquicas em que amizade não tem vez - mesmo o convívio entre colegas de
trabalho pode ser prejudicado pela competição interna por metas e promoções. E, para qualquer
canto que olhe, o indivíduo lembrará que há alguma hierarquia na qual ele está lá embaixo. Da
roupa ao futebol - ou golfe.
Não adianta falar que as sociedades complexas promoveram a expectativa de vida, a riqueza e as
baixas taxas de homicídio - um subordinado pode não passar fome nem ter o risco de ser morto por
um bando adversário que quiser ganhar o controle sobre um lago. Mas vai saber que seu salário é
inferior ao de outros colegas, vai lembrar-se de que precisou parcelar suas roupas em dez vezes e só
terá o melhor carro da rua se morar num bairro muito desvalorizado. E a ansiedade que isso
provoca tem impacto direto sobre sua saúde. Foi o que descobriu uma série de estudos iniciada no
fim da década de 1960, a começar com o Estudo Whitehall, feito pela University College of London.
Ele acompanhou por
dez anos o estado de saúde de 18 mil funcionários públicos britânicos e descobriu que, quanto mais
baixo seu status, mais obesos, mais fumantes, mais sedentários e mais hipertensos eram os
indivíduos - embora todos tivessem acesso a um sistema de saúde pública eficiente e a um salário
digno (lembrando, o estudo foi feito no Reino Unido). Uma possível causa para isso era a maior
produção de cortisol entre os funcionários de baixa hierarquia. O cortisol é conhecido como
hormônio do estresse. Quando seu nível aumenta, ele deixa o corpo pronto para tomar decisões com
mais rapidez e encarar desafios e perigos - a memória fica mais ativa e é liberada a adrenalina,
relacionada à já tão comentada reação de “luta ou fuga”. Isso é bom quando ocorre com parcimônia.
Mas, a partir de certo nível, esses efeitos são revertidos. O cérebro falha, a memória é prejudicada e
o sistema imunológico fica menos eficiente. Como essas ameaças são constantes, não há tempo para
o corpo se recuperar da corrida armamentista de cortisol e adrenalina, e o corpo acaba doente.
É o que acontece quando um indivíduo enfrenta ameaças frequentes: a competitividade no
trabalho, a instabilidade do emprego, a falta de aprovação social por não usar a marca de roupa
“correta” e o risco de falhar num encontro romântico - não ter um carro legal nem dinheiro para
pagar um bom restaurante. E, não vamos esquecer, com nosso Sistema 1 nos alertando
constantemente para coisas erradas, essas ameaças não precisam ser realistas.
Será que o estresse, a ansiedade e os problemas de saúde física não vêm das más condições
materiais de quem tem um status baixo? O doutor Bernik afirma que não: “Pegue um príncipe
africano e um afro-americano que vive num gueto de Detroit, nos EUA. Mesmo que o afro-americano
tenha acesso a muito mais bens materiais, provavelmente sua saúde - mental, inclusive - será
inferior à do príncipe. Enquanto um está na base da hierarquia, o outro está no topo.”
Isso é uma hipótese, e testá-la em humanos teria implicações éticas sérias. Mas podemos fazer
isso com outros seres sociais, como os macacos rhesus. Foi o que fizeram os pesquisadores Jenny
Tung e Yoav Gilad, da Universidade de Chicago. Eles analisaram as alterações na forma como os
genes desses primatas se expressam de acordo com seu status social. Genes não são ditadores - eles
se expressam de uma forma ou de outra de acordo com sua interação com o ambiente.
E a hierarquia é um fator ambiental importante para seres sociais.
No experimento, Tung e Gilad selecionaram 49 macacas rhesus de status intermediário em seu
grupo e mapearam 6 mil genes (cerca de 30% de seu genoma). Depois, separaram-nas em novos
grupos de quatro ou cinco macacas. Essa nova organização trouxe uma nova hierarquia dentro de
cada grupo. Novamente, analisaram aqueles 6 mil genes. A surpresa foi que a expressão de um em
cada seis genes das macacas mudou - principalmente entre os genes relacionados à regulação do
sistema imunológico e à sua resposta ao estresse.
Alguns genes ficaram mais ativos nas macacas que adquiriram um
status superior, outros, nas que adquiriram um status inferior. Ou seja, o organismo das macacas
mudou para ficar em conformidade com sua nova hierarquia. Uma hierarquia social inferior levou
também a uma saúde pior. Conforme o estudo continuou, sete macacas mudaram novamente de
posição na hierarquia. Resultado: aquelas que subiram de degrau social também tiveram uma
melhora de saúde,
no nível genético.
Agora, vamos ao caso específico de São Paulo. Uma cidade como ela reúne todos os fatores
disparadores de ansiedade que Bernik apontou. Sua sociedade possui muitas hierarquias, e sua
desigualdade social e concentração de renda são grandes. Além do tempo que passa trabalhando, o
paulistano perde em média 2 horas e 42 minutos em deslocamentos, segundo a “Pesquisa do Dia
sem Carro” de 2010, feita pelo Ibope. Isso diminui o pouco tempo que lhe resta de ócio com
familiares e amigos - e é ainda pior entre quem mora fora do centro expandido, em bairros-
dormitório sem estrutura de lazer. Os paulistanos também são bastante sedentários - segundo a
Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, metade dos habitantes do Estado é sedentária.
Meios de comunicação também mostram ao Sistema 1 o quão baixo é seu status em diversos
rankings
sociais e como a cidade está infestada de ameaças - mesmo aquelas que não são estatisticamente
importantes. Cidades do Sul da Europa são belas, agradáveis e relativamente ricas, mas é possível
que sua porcentagem de ansiosos em 2012 esteja acima da paulistana por conta do crescente
desemprego durante a crise econômica europeia. Afinal, quem está desempregado teme não
sustentar sua família, e quem está empregado teme perder o trabalho. O Japão pode ter uma
qualidade de vida altíssima, mas vive sob a sombra de desastres naturais. E a população americana
vive o nível mais alto de riqueza material de qualquer sociedade de todos os tempos, mas convive
com o medo do terrorismo, da perda do papel de única superpotência global com o crescimento da
China, da crise econômica, da obesidade, de adolescentes que matam colegas de escola com
metralhadoras, dos germes.
A ansiedade não é uma epidemia localizada no tempo ou num lugar. Ela é uma adaptação
evolutiva, que continuará a existir independentemente da prosperidade e da segurança da sociedade
em que vivermos, e continuará a ser disparada tanto diante de ameaças muito claras e reais quanto
diante de outras sutis, às vezes ilusórias. Ela continuará sendo uma ferramenta de sobrevivência
eficiente e um peso emocional, que nos fará sofrer enquanto não soubermos domar nossa intuição e
nosso raciocínio. Também continuará sendo uma ferramenta eficiente para nos convencer a tomar
decisões - seja apoiar uma guerra contra um suposto inimigo, seja comprar uma roupa que nos faça
parecer mais bem-sucedidos do que de fato somos.
Mas há uma forma de você controlá-la. Nos casos de transtornos clinicamente graves, é melhor
procurar um terapeuta e um psiquiatra - o objetivo deste livro não é servir de autodiagnóstico nem
de autoajuda. Já naquela ansiedade que incomoda a qualquer um, a estratégia é entender como o
Sistema 1 e o Sistema 2 funcionam e se proteger contra os erros da nossa intuição. Informar-se a
partir das fontes mais confiáveis para entender se um problema é de fato um problema, ou apenas
um erro de percepção. E, quando ele for real, buscar a solução do que tiver solução e aceitar que o
que não tem solução está solucionado. No momento em que termino de escrever este livro, estou
tomando café loucamente. Estou preocupado com a minha saúde e com a daqueles que eu amo.
Estou preocupado com minhas contas a pagar. Estou preocupado com a aceitação deste livro por
você, leitor - Será que eu fui claro? Será que os exemplos que escolhi são ilustrativos? Estou
preocupado também com o meu namoro, com a gravidez da minha irmã, com os conflitos no Oriente
Médio, com o aquecimento global. Sinto que o que aprendi com as pesquisas, leituras e entrevistas
que foram necessárias para completar este texto não curou a minha ansiedade - e tenho certeza de
que ela nunca será curada. Mas sinto, com a maior sinceridade, que elas me ajudaram a entender
essa emoção. A aceitá-la mais. A vê-la como necessária, e até boa. Agora, sinto que tenho mais
meios para entender o que de minhas preocupações é real e o que é pura encanação. Quem sabe, no
futuro, essa melhor compreensão faça com que eu e você sejamos pessoas melhores?...
Prólogo

Cego e
essencial





Comédias românticas não existiriam se fôssemos capazes de escolher quem amamos. Ele fez a
simpática garçonete Carol ficar com Melvin, o escritor misantropo, racista, homofóbico e obsessivo-
compulsivo interpretado por Jack Nicholson em Melhor É Impossível. Fez a Penny, a loira bonitona
de The Big Bang Theory, se apaixonar por Leonard Hofstadter, um físico experimental com 173
pontos de QI cujo charme é composto por intolerância a lactose, miopia e apneia.
Também não existiriam romances dramáticos. Você sabe: foi o amor que levou adiante tantas
variações do tema de Romeu e Julieta - Amor, Sublime Amor, Romeu Tem Que Morrer, O Rei Leão 2,
A Dama e o Vagabundo e assim por diante, com ou sem morte no final. E certamente já levou você a
fazer algumas escolhas amorosas das quais se arrependeu, mas que na época parecia a única coisa
que lhe traria felicidade.
Talvez melhor seria se o amor fosse como uma ferramenta de busca num site de relacionamentos.
Peguemos um exemplo fictício: Renato, um estudante de engenharia. Como em sua classe as
mulheres são poucas, e se envolver com alguém da empresa onde faz estágio pode atrapalhar sua
vida profissional, ele decide procurar sua cara-metade num site.
Seu tipo é “mulherão”. Mas não qualquer mulherão. Ele gosta das altas de quadris largos e seios
não muito grandes, mas que preencham suas mãos - desde que elas sejam mais baixas que ele. Elas
têm de ser fogosas na cama, porém não dominadoras. Devem ter cultura e inteligência, mas não das
que argumentem demais. E, como nada o assusta mais do que a possibilidade de ser traído, devem
valorizar muito o relacionamento - mas, como não abre mão dos amigos, não quer nenhuma
ciumenta.
Colocados os parâmetros e as palavras-chave na busca do site, surgem os resultados. Clica nas
fotos que mais agradam - altura nota 7, quadril nota 8, seios nota 6, mas os erros de ortografia o
fazem pular automaticamente para o próximo perfil. Outro não, mostra corpo demais, e Renato
pensa: “Essas são só para transar”. E assim segue até encontrar cinco mulheres dentro de seus
padrões. Duas parecem boas demais e, acuado, acaba só tendo coragem de enviar mensagem para
três. Delas, duas respondem com um “tudo bem”. Trocam alguns elogios, contam o que fazem da
vida, de que música gostam. Uma até parece bastante com ele - os dois gostam dos mesmos seriados
de TV, e conseguem até lembrar alguns diálogos dos personagens. É Débora, e é com ela que ele
acaba marcando um encontro numa hamburgueria.
Os encontros se repetem. Os amigos de Renato até começam a reclamar que não sai mais tanto
com eles e dizem que é hora de lhes apresentar a tal ficante, quase namorada. E é nesse momento
que Renato volta a olhar para os lados, pensando em outras mulheres.
Débora é uma companhia agradável, e o sexo vai bem. É a mulher ideal. Mas o casal percebe que
é hora de decidir se o namoro é para valer ou se os dois voltam à caça. E Renato não tem
taquicardia, insônia ou tremedeiras quando pensa em Débora.
Ele não sabe definir muito bem o que é o amor, mas não lhe resta dúvidas quanto ao que é sentir-se
amando. E conclui que não ama sua ficante. Diante da necessidade de fazer a escolha, Débora vira
um peso em sua vida. Continuar com ela não vale mais tanto a pena - significa apenas abrir mão de
uma mulher ainda mais perfeita que possa aparecer na sua vida. Renato não se acha um cafajeste.
Muito pelo contrário. Mas se deu conta de que não é capaz de amar uma categoria. E, a não ser pela
amizade que desenvolveu com Débora, seu relacionamento não é baseado em nada mais além de
uma intersecção de categorias. Altura, quadris, cintura, seios, idade, nível socioeconômico e gostos.
Ele gostaria de poder amá-la, mas não consegue. E, no fundo, sabe que ela também não o ama.
Talvez tenha se impressionado com seu cavalheirismo e se reconfortado com seu carinho. Mas
Débora sente que o estaria explorando se continuassem juntos sem se amarem.
Sim, o amor é cego, leva a escolhas irracionais e é valorizado exatamente por isso. Quem se une
por amor é virtuoso - e vai ser ainda mais virtuoso se o amado for pobre, doente ou feio. Tal como a
Rose de Titanic, que larga seu noivo milionário para ficar com Jack, um pobretão que só conseguiu
entrar no navio depois de ganhar a passagem numa partida de pôquer. Ou como a doutora Cameron,
de House, que se casa com um homem com câncer terminal e desde então carrega o trauma de sua
morte para seus futuros relacionamentos. Ou como a Bela, que se casa com a Fera - ainda que, no
fim do conto, a Fera se torne um príncipe, pois toda virtude há de ser recompensada. Já quem se
casa por motivos racionais é interesseiro.
A razão é dinheiro? Golpe do baú. A razão é beleza? Sexismo!
Ainda assim, o amor foi uma das ferramentas mais importantes para que os humanos evoluíssem
como seres inteligentes, capazes de se adaptar a qualquer ambiente e habitar todos os pontos secos
da Terra. Como isso foi possível? Para entender, precisamos dar uma breve olhada em como a nossa
cabeça funciona.

SALVAR AUTOMATICAMENTE
Nossa mente é um complexo software com várias ferramentas para realizar diferentes tarefas -
comer, reproduzir-se, defender-se, e assim por diante. Nesse software, cálculos e julgamentos são
apenas algumas dessas ferramentas, e estão longe de ter primazia sobre outras. Na tarefa de nos
reproduzir, falam alto ferramentas como o amor (isto é, o amor romântico que chamamos de paixão),
o tesão, a ligação e o ciúme.
Para a Teoria Evolucionista, a espécie humana não foi criada com essas ferramentas. Elas são
resultado de uma soma de mutações que deram certo na nossa tentativa de sobreviver e nos
multiplicar. Essas mutações acontecem bem ao acaso. A maioria desaparece rapidamente, por não
permitir a sobrevivência ou a reprodução do indivíduo. Essas mutações deletérias são como um bug
num aplicativo, que faz com que usuários não adotem sua versão ruim e esperem por próximas
atualizações. Outras mutações podem atrapalhar sem incapacitar, e acabam sendo passadas para
frente. São como o Clippy - um clipezinho animado do Microsoft Office 97 que, sem ser convidado,
pulava na tela para oferecer um tutorial toda vez que o usuário começava uma tarefa. Apesar de ser
eleito pela revista Time como uma das 50 piores invenções contemporâneas, o Clippy não impediu
que milhões comprassem o Office 97. O pacote de programas foi muito útil, mesmo com falhas.
Temos, por fim, as mutações que nos interessam: as que, ao longo de gerações, em meio a tantas
outras mutações deletérias e inúteis, contribuíram na formação de adaptações, ou seja, estratégias
que ajudaram na tarefa de sobreviver e nos reproduzir. Temos as adaptações. Se a mente é um
software, as adaptações são as ferramentas úteis desse software.
Vamos pegar o exemplo de um software editor de texto, como o Word. Em seus primórdios, esses
programas se limitavam a registrar e apagar caracteres. Era pouco, mas bastava para a tarefa de
escrever textos. Com o passar de suas versões, eles adotaram e aprimoraram ferramentas como
biblioteca de fontes, alinhamento de parágrafo, “salvar automaticamente”, corretor ortográfico,
dicionário de sinônimos, controle de alterações. Quanto mais úteis foram na tarefa de editar texto,
mais bem estabelecidas ficaram essas ferramentas. Hoje, textos são facilmente editados para ter a
aparência mais adequada, o menor número de erros ortográficos, o melhor vocabulário e o máximo
de segurança para não perder informações em caso de queda de energia.
Na tarefa de nos reproduzir, o amor romântico - assim como o tesão, a ligação e o ciúme -
aumentou as chances de termos filhos capazes de atingir a idade reprodutiva. É verdade que ele é
uma ferramenta imprevisível e incontrolável - é o “salvar automaticamente” do nosso editor de texto
reprodutivo. Ele nos foca em uma única pessoa, torna-a intransferível, nossa metade perdida. Ele
nos inunda de emoções que nos envolvem e nos fazem dispostos a tudo para nos relacionar com
nossa metade. Quando amamos, exageramos as qualidades e diminuímos os defeitos de nossa
pessoa preferida. Ficamos cheios de energia, hiperativos, insones, impulsivos, eufóricos, instáveis.
Lutamos, imploramos, mendigamos por atenção até conquistar o amado.
Mas o amor pelo amor não basta. Para nos reproduzir, precisamos do tesão - uma ferramenta que
nos faz atraídos por qualquer pessoa portadora de características sexualmente estimulantes. Para
manter o relacionamento e cuidar de nossos filhos, precisamos da ligação - que faz com que
continuemos unidos também a nossos familiares e amigos. E, para garantir que nosso amado não
queira outra pessoa, assim como nós não queremos ninguém senão ele, precisamos do ciúme.
Ganhamos todas as forças para transformar nossa vida numa comédia ou num drama.

UNIVERSAL, PORÉM ÚNICO


O amor é igual para todos. Em levantamentos de 166 culturas diferentes, antropólogos encontraram
provas de amor romântico em 147 - nas demais, não é que não houvesse, mas os pesquisadores não
conseguiram examinar esse aspecto da vida, segundo a antropóloga Helen Fisher, da Universidade
Rutgers. Ela também realizou uma pesquisa sobre o que se sente ao estar apaixonado com 437
americanos e 402 japoneses, divididos por idade, afiliação religiosa, grupo étnico, orientação sexual
e nacionalidade.
Os voluntários responderam a 54 questões. Em 82% delas, as respostas não tiveram nenhuma
diferença estatística significativa em grupo nenhum. O restante foi de questões envolvendo
diferenças culturais muito grandes. Aí, japoneses e americanos podem ir a extremos opostos. Por
exemplo, 24% dos americanos concordam que têm medo de dizer algo errado quando estão com a
pessoa amada, contra 65% de japoneses - isso, segundo Fisher, possivelmente porque jovens
japoneses em geral têm relações mais formais com o sexo oposto do que os americanos. Já as
respostas relacionadas aos sentimentos de amor romântico eram muito semelhantes.
Não é difícil entender por que o amor é universal. O período em que o homem evoluiu em
sociedades caçadoras-coletoras das savanas africanas foi um oceano de tempo, contra um copo de
migrações pelos continentes e uma gota do que chamamos de civilizações. Nossas adaptações
evolutivas refletem as necessidades do homem da savana, e não de garçonetes, físicos
experimentalistas e escritores nova-iorquinos de best-sellers.
Isso não quer dizer que somos vítimas de nossos antepassados caçadores-coletores. Num
software editor de texto, ferramentas não determinam o conteúdo do que você escreve. O mesmo
“salvar automaticamente” que o previne de perder uma carta de amor protege um relatório anual de
produtividade e uma tese de doutorado. Se você quiser, pode ainda inserir tabelas e imagens de
outros programas com ferramentas “importar”. Dá até para você ir contra suas ferramentas, usando
um idioma estrangeiro não reconhecido por seu corretor ortográfico. Todo seu texto ficará grifado
em vermelho, uma ou outra palavra será alterada automaticamente, alguns acentos terão de ser
pescados fora do teclado, e certas escritas precisarão ser transcritas para o alfabeto romano. Mas
ainda assim você conseguirá escrever sua história. E assim é o amor - uma ferramenta tão universal
e ao mesmo tempo tão genérica que permite escrever qualquer história em qualquer cultura e
tempo, contra ou a favor de seu propósito primordial.
Este livro explicará duas coisas. A primeira é a evolução de um mecanismo tão irracional e cego,
responsável pela nossa escolha biológica mais importante: a pessoa que fornecerá a outra metade
dos genes de nossos filhos. A segunda é como esse mecanismo age em nossa mente e nosso corpo
para que percamos a cabeça num momento em que a razão nos levaria a uma escolha muito melhor.
Mas, antes de tudo isso, precisamos saber mais sobre outra, e não menos importante, forma de
amor: o amor familiar, que nutrimos pelos nossos parentes. Esse é o assunto do primeiro capítulo.
Amor
genético

Genes criam e usam nossos corpos


com um único objetivo: construir o
máximo de cópias de si mesmos.
Um interesse egoísta, mas que está
por trás de tudo de bom que
sentimos por nossos pais, irmãos,
filhos, cônjuges e amantes.
Para entender o amor, temos de entender o altruísmo - nada mais altruísta, afinal, do que amar
alguém. E para entender o altruísmo temos de olhar para os campeões mundiais nessa categoria.
Monges budistas? Não: insetos. Mais especificamente insetos sociais, os maiores exemplos de
dedicação à coletividade em detrimento do interesse individual.
O caso mais extremo é o da abelha operária. Ela não apenas passa a vida produzindo mel e cera,
construindo favos e coletando néctar, pólen e água para alimentar a rainha e suas larvas, como
também se suicida para defender a colmeia de predadores. Quando vê um mamífero se
aproximando, inicia uma operação kamikaze: espanta o predador em potencial com uma ferroada
venenosa. Junto ao seu ferrão, ela perde órgãos vitais. Em poucos minutos, a operária morre pela
colmeia. A imagem é a mesma de um soldado que morre em combate, abrindo mão da vida pela
pátria.
Esse caso de aparente altruísmo suicida parece contrariar a teoria da evolução. Afinal, a seleção
natural não é uma escolha de características que beneficiem a coletividade nem o indivíduo. Ela
nada mais é que o sucesso de certos genes em se replicar num certo ambiente. Vão para frente não
necessariamente aqueles que expressam um comportamento que faz o indivíduo viver melhor, mas
que o deixa mais apto a passar seus genes adiante. E nesse ponto não há moral nem empatia. Para
os genes, segundo o biólogo britânico Richard Dawkins, autor do clássico O Gene Egoísta, os seres
vivos nada mais são do que máquinas de sobrevivência. Não importa o bem-estar dessa máquina -
caso contrário, não envelheceríamos, não teríamos doenças nem morreríamos. O que importa é que
ela consiga se reproduzir em mais máquinas que carreguem seus genes.
O comportamento suicida das abelhas operárias parece ir contra a lógica dos genes egoístas.
Afinal, a morte de sua máquina de sobrevivência significa menos chances de serem passados
adiante. Mas há um detalhe que muda tudo isso. A reprodução de animais sociais do grupo
Hymenoptera - como formigas, abelhas e vespas - é atípica. Enquanto a imensa maioria das espécies
de reprodução sexuada compartilha metade dos genes maternos e metade dos genes paternos, os
Hymenoptera compartilham metade dos genes da mãe e todos os genes do pai.
Aí é só fazer a conta: irmãs dessas espécies compartilham entre si 75% dos genes, enquanto, se
tivessem filhos, estes teriam apenas 50% dos seus genes. Ou seja, do ponto de vista do gene egoísta,
é mais interessante para as abelhas fêmeas transformar sua mãe numa máquina de produzir irmãs
(ou, posto de forma mais elegante, numa rainha) do que ter filhos próprios. O que parece ser o mais
altruísta dos comportamentos - literalmente abrir mão de sua vida para o benefício da colmeia - é na
verdade a expressão máxima do egoísmo dos genes.
E assim evoluíram todos os animais - com adaptações que não refletem necessariamente o
interesse do indivíduo, do grupo, da espécie ou do ecossistema, mas sim o interesse replicador de
seus genes.
A ideia de que somos apenas receptáculos provisórios de genes que nos usam para se replicarem
em nossos descendentes parece não refletir valores humanistas, baseados na igualdade e no
altruísmo. Ela indica o contrário: o maior adversário de uma máquina de sobrevivência é outra
máquina de sobrevivência da mesma espécie. Afinal, elas competem pelas mesmas coisas. Para um
homem, um gorila é um adversário menor do que outro homem. Enquanto ele competirá com o
gorila apenas por algumas frutas, com outro homem terá em disputa território, comida e mulheres.
A máxima hobbesiana está correta - o homem é o lobo do homem.
Se o homem é o maior inimigo do homem - e o mesmo vale para outras espécies -, como é
possível que a Terra seja tão habitada? Para Hobbes, os humanos estabelecem um contrato social
que evita o constante estado de guerra de todos contra todos. Mas, para Richard Dawkins, o acordo
de não agressão foi tão importante para que as espécies sobrevivessem que ele foi selecionado
naturalmente e impresso em nosso genoma. O contrato social é uma adaptação. Isso porque, num
sistema grande e complexo de rivalidades, acabar com um rival não produz necessariamente um
benefício. Muito pelo contrário. Outros rivais podem se beneficiar mais de uma morte do que o
próprio indivíduo responsável por ela. Para entender por que matar rivais não é o comportamento
mais adequado numa disputa, precisamos ir para a Teoria dos Jogos.
Suponhamos que três homens estejam presos numa casa com uma geladeira de três prateleiras.
Seria melhor para o homem A matar o homem B para ter as prateleiras A e B. Mas, se fizer isso,
duas coisas podem acontecer. Para matar o homem B, o homem A gastará bastante energia. Na hora
de sua vitória, poderá ficar cansado e mais vulnerável a ataques de C, que se apoderaria de todas as
três prateleiras. Outro risco é que C poderia perceber que o plano de A o fortaleceria no futuro -
afinal, uma pessoa com duas prateleiras pode se alimentar muito mais. Isso poderia fazê-lo se unir
com B para matar A antes deste colocar seu plano em prática.
Fica então claro que a estratégia do assassinato dentro da própria espécie é pouco estável, pois é
passível de retaliação de outros indivíduos. E, para um gene se replicar ao longo de gerações e se
tornar bastante presente numa espécie, ele precisa expressar uma estratégia evolutivamente
estável. E estratégias altruístas podem ser evolutivamente mais estáveis do que estratégias egoístas,
mesmo que, no nível dos genes, só haja egoísmo.
É o que acontece com as relações familiares. Do ponto de vista do gene egoísta, tanto faz que sua
cópia esteja numa máquina de sobrevivência ou em outra. O que interessa é que ele se replique o
máximo de vezes possível. Uma cópia é uma cópia, independentemente do indivíduo que a contenha.
Como indivíduos aparentados compartilham cópias dos mesmos genes, o cuidado mútuo de parentes
para assegurar sua sobrevivência e sua reprodução é uma estratégia altruísta muito eficiente.
Vamos ver matematicamente como isso faz sentido para os interesses de nossos genes. Há uma
chance em duas de que qualquer gene dos pais tenha uma cópia num filho, porque filhos têm
metade de seus genes copiados de cada um de seus genitores. Irmãos também têm uma chance em
duas de terem qualquer gene em comum. A cada grau de parentesco de que se distancia, a
quantidade de cópias em comum é cortada pela metade. Entre pais e filhos, há ½ de genes em
comum. Entre meios-irmãos, há ¼ (dois graus de distância em relação a um parente em comum), e
em irmãos, ½ (dois graus de distância, mas dois parentes em comum). Entre primos, é necessário ir
do primo A até o avô em comum e depois voltar ao primo B e então fazer o mesmo com a avó em
comum. Ou seja, 1/16 + 1/16, que dá ⅛.
Isso significa que, do ponto de vista das cópias de genes, a vida de nosso corpo vale tanto quanto
a vida do corpo de dois irmãos (ou seja, 2 vezes ½), de quatro meios-irmãos (4 vezes ¼) ou de oito
primos (8 vezes ⅛). Aí está a raiz dos sentimentos que nutrimos por familiares. Sentimos prazer com
o bem-estar do outro e sofremos com os danos causados a outros mesmo sem compartilharmos os
mesmos corpos. Isso porque, no nível genético, parentes literalmente carregam parte de nós. Aí está
a razão pela qual nós cuidamos uns dos outros. O egoísmo de nossos genes nos fez capazes de amar
nossos parentes.
Mas existem mais parâmetros para modular esse amor familiar além do grau de parentesco. A
expectativa de vida reprodutiva do beneficiário também nos faz sentir mais ou menos empatia. Pais
se sacrificam pelos filhos mais do que os filhos pelos pais, pois jovens terão uma longa vida
reprodutiva pela frente, enquanto os pais já fizeram sua tarefa de pôr seus genes em mais máquinas
de sobrevivência. Ajudar os filhos serve mais aos interesses de nossos genes do que ajudar os pais.
Mais: filhos não são amados da mesma forma por toda a vida. Quando são bebês, suas vidas
valem menos do que quando atingem a maturidade sexual. É só comparar o nível de sofrimento de
uma mãe que perde um bebê de poucos meses e o da que perde um filho de 18 anos. Na
adolescência, os pais já vão ter investido muito tempo e energia no filho para que ele morra. Já a
morte de um filho de 40 anos doerá menos do que a de um de 18, pois ele já terá vivido grande parte
de sua vida reprodutiva. Além disso, existe a lei Paul McCartney. Como o ex-beatle canta em sua
música The End: the love you take is equal to the love you make (o amor que você recebe é igual ao
amor que você dá). Em termos mais científicos: gostamos tanto de nossos avós não porque vão
propagar nossos genes, mas porque eles nos amam.
É claro que essas relações não são conscientes. Não pensamos da seguinte forma: “Amo minha
mãe porque eu e ela compartilhamos metade de meus genes”. Não. O que a teoria do gene egoísta
quer dizer é que: se nós amamos nossos parentes, isso só ocorre porque tiveram mais sucesso em se
reproduzir aqueles humanos que carregavam genes responsáveis por um comportamento específico:
cuidar instintivamente de seus familiares. Um comportamento que precede a razão e a consciência.
Mas o amor não se limita àqueles com quem compartilhamos genes. Sentimos afeição por amigos
- os de mais confiança, chamamos de brother, mano, irmão camarada. Apaixonamo-nos loucamente
por nossos amantes e nos casamos com eles como se pudéssemos nos unir sanguineamente.
Religiões dizem que Deus é pai, que devemos amar uns aos outros como irmãos. Ideologias
nacionalistas retratam a pátria como mãe - ainda que a palavra “pátria” venha do termo latino para
“pai”. Líderes populistas se apresentam como pais do povo.
Será que o amor entre pessoas sem vínculos familiares é simplesmente cultural? Bom, se ele
fosse presente somente em uma ou outra cultura, a resposta poderia ser sim. Mas a amizade, o
sentimento de pertença e o amor romântico são presentes em qualquer cultura. Como a biologia
explica então isso?

IRMÃOS CAMARADAS
Vamos entender como é possível agir altruisticamente mesmo com pessoas que não compartilham
genes conosco. Para isso, Richard Dawkins propôs o seguinte cenário: uma ave é parasitada por um
carrapato transmissor de uma doença perigosa. Se não removê-lo, o bando inteiro pode sucumbir.
Catar parasitas com seu bico não é nenhum desafio para aves - exceto quando o bicho está no topo
da cabeça. Uma ave A seria beneficiada se uma ave B tirasse os carrapatos de sua cabeça. Mais
tarde, B poderia ser beneficiada pela ajuda de A. As aves capazes de adotar esse comportamento
teriam uma vantagem em relação a outras - e não é de surpreender que catar parasitas uns dos
outros seja um comportamento comum entre aves e mamíferos.
Mas há um risco nesse hábito. Um mutante trapaceiro C pode oferecer sua cabeça à ave A para
que a limpe; porém, quando A lhe pedir que retribua o favor, a ave C pode se negar a fazê-lo. Ser
trapaceiro é uma vantagem: quem burla regras recebe benefícios imediatos sem ter de arcar com os
custos futuros.
Diante do trapaceiro, as aves colaboradoras fazem um trabalho sem receber nada em troca.
Vamos chamá-las de trouxas. Bom, o ganho médio da ave trapaceira é maior que o da ave trouxa (a
primeira pode gastar seu tempo procurando parcerias sexuais ou alimentos, enquanto a segunda
cata carrapatos nos outros), seus genes tendem a aumentar na população dessa espécie de ave. E
isso pode seguir em diante até que os trouxas sejam extintos.
Isso até que surja uma terceira estratégia: a da ave rancorosa. Aves rancorosas se comportam de
forma altruística, como as aves trouxas. Mas, se uma trapaceira enganá-las, elas se lembrarão da
traição e lhes guardarão rancor, recusando-se a catar parasitas no futuro. Se a população de
rancorosas aumentar, elas conseguirão ganhos médios maiores que a das trapaceiras, que acabarão
expostas às doenças transmitidas pelos carrapatos.
Não há dúvidas de que os humanos são altruístas. Ajudamos uns aos outros em momentos de
perigo como acidentes e agressões, compartilhamos comida, ajudamos os doentes, feridos, infantes
e velhos, compartilhamos artefatos e conhecimento. E que somos também trapaceiros - roubamos,
enganamos, matamos - e rancorosos, a ponto de nossas sociedades formarem tribunais para
determinar penas contra quem infringir suas regras, desde conselhos de anciãos até sistemas
judiciários. Para a teoria evolutiva, foi o nosso complexo jogo de engano, desengano e reparação que
deu origem a sentimentos básicos que regem nossas relações sociais.
Ser explicitamente trapaceiro não é um bom negócio numa espécie que evoluiu com rancorosos
tão sagazes. Quando trapaceamos, procuramos fazer isso de forma sutil, para que o “trouxa” não
perceba a trapaça ou se veja obrigado a ceder. O que o trapaceiro busca então fazer? Fazer-se de
altruísta e retribuir um pouco os favores - só que numa medida muito inferior ao oferecido pelos
outros. Um tiquinho de retribuição garante ao trapaceiro grandes vantagens.
Vamos supor o caso de um carreteiro autônomo. Um dia ele pega uma grande mudança para
fazer - e precisa de um ajudante. Então chama um vizinho que está desempregado há meses. E lhe
paga só metade do que carreteiros costumam pagar para ajudantes - afinal, o outro está
desempregado, poxa. Ainda assim, nosso amigo carreteiro mostrará que é “melhor um pássaro na
mão do que dois voando”. E o vizinho permite ser explorado para não perder migalhas que, naquele
momento, são valiosas.
Entre os humanos, esse tipo de relação é modulado por emoções de cunho moral - foi o que
percebeu na década de 1970 o sociobiólogo Robert Trivers. O começo de tudo é a afeição. A seleção
privilegiou a tendência de gostar de pessoas que são bacanas conosco. Essa emoção nos faz entrar e
nos manter numa parceria altruísta. Mas pessoas altruístas estão sempre numa situação vulnerável,
por causa dos trapaceiros. A seleção natural, então, favoreceu um mecanismo de defesa: a
indignação.
A indignação contrapõe-se à tendência do altruísta de agir quando não há reciprocidade, de
educar o trapaceiro ameaçando-o caso não mude de comportamento - e, em casos extremos,
machucando, matando ou exilando o egoísta.
Como o custo de se machucar, exilar ou morrer é muito grande, dois outros sentimentos
evoluíram para nos sentirmos mal por nossas trapaças: a culpa e a vergonha. Quando a trapaça
permanece secreta, sentimo-nos culpados. Se ela vem a público, ficamos envergonhados. Esses
sentimentos são tão desagradáveis que acabamos evitando trapacear mesmo quando vale a pena.
Do lado oposto da trapaça, temos o desejo de ajudar os fracos e necessitados. Esse sentimento é
a simpatia. Quando alguém que sente simpatia por nós realiza um ato altruísta, que lhe custou
bastante e nos ajudou muito, sentimos por ele a gratidão - uma disposição de retribuir esse ato
assim que tivermos meios para isso.
Com o tempo, trapaceiros vão buscar formas cada vez mais sutis de traições, e, por
consequência, rancorosos criarão formas mais precisas de percebê-las. O sistema de crime e castigo
se tornará cada vez mais complexo, numa verdadeira corrida armamentista cognitiva.
Aprendemos, por exemplo, a simular generosidade e amizade para obter retribuição quando não
a merecemos. Mas, da mesma forma, também sabemos que nem sempre podemos acreditar que
alguém sente afeição por nós, ou que está realmente indignado. Por isso evoluíram a confiança e a
desconfiança. Com elas, protegemo-nos da hipocrisia. Aprendemos a identificar e memorizar sinais
de que a generosidade, a culpa, a simpatia ou a gratidão são falsas.
A confiança e a desconfiança não dependem somente de nossas experiências. A seleção favoreceu
aqueles que conseguiam aprender por meio de terceiros se uma pessoa tem tendência a ser altruísta
ou trapaceira. Ou seja, as fofocas são uma adaptação evolutiva. Atacamos a imagem de uma pessoa
que nos traiu para que nossa rede de amigos desconfie dela, e proclamamos as virtudes de outras
que nos ajudaram para que outros confiem nela. Assim construímos nosso sistema de confiança e
desconfiança.
O passo seguinte é agirmos para que nossa credibilidade seja honrada. Não basta mais apenas
ser altruísta diante de uma pessoa necessitada. Exibimos nossa generosidade e simpatia
publicamente, da mesma forma como demonstramos nosso ultraje quando nossas virtudes são
questionadas. Precisamos cuidar de nossa reputação para garantir que outras pessoas confiem em
nós - e, consequentemente, julguem-nos merecedores de sua colaboração. O sistema de confiança e
desconfiança se tornou então um sistema de honra muito mais complexo do que simples atos
altruístas ou trapaceiros.
Afeição, simpatia, gratidão e confiança. Amizades são calcadas em sentimentos assim - que
Aristóteles descreve em Ética a Nicômaco como philia. É o amor com cores de amizade
compartilhado por melhores amigos, por pais e filhos, por companheiros de viagem e de armas, por
membros da mesma comunidade ou religião. É um amor baseado na vantagem mútua, no prazer
mútuo e na admiração mútua, que nos faz ter a crença de que o outro aja conforme o combinado.
Permite que algo tão improvável quanto dois seres humanos localizados em pontos distantes em
quilômetros cheguem aproximadamente no mesmo horário em um mesmo lugar - digamos, um
cinema -, estabeleçam um diálogo e assistam ao mesmo filme lado a lado. Tudo isso a partir de uma
única troca de mensagens via celular.

UM JEITO ROMÂNTICO DE SER


Finalmente podemos chegar ao amor romântico - aquele entre homem e mulher. Ele também pode
acontecer entre homem e homem ou mulher e mulher, mas olharemos esse caso mais adiante. O
amor romântico é diferente do amor materno, paterno ou fraterno. Duas pessoas que se amam
romanticamente em geral não são da mesma família. Ao contrário. Por razões que abordaremos mais
adiante, sentimos menor atração sexual quanto maior for o parentesco. E, ainda assim, adotamos
nosso cônjuge como se fosse um familiar, pois é com ele que planejamos ter nossos filhos. O amor
romântico também vai além do amor que sentimos por amigos. Podemos até dizer que nosso cônjuge
é nosso melhor amigo, mas apenas num sentido figurado. O amor romântico vai muito além do
companheirismo (caso contrário, seríamos apaixonados por nossos melhores amigos, do sexo oposto
ou não). E, por fim, amor romântico não é sexo. Podemos sentir tesão por qualquer bonitona que
passa pela rua ou por um galã qualquer da novela. Mas disso para querermos abrir nossa vida e nos
doar a um desconhecido há um enorme passo.
Se o amor de família ou de amizade foi definido pelos gregos como philia, esse amor pela cara-
metade recebe, por sua vez, o nome de erôs - em referência ao deus do amor Eros, ou Cupido, para
os romanos. No Banquete de Platão, o poeta Aristófanes explica a origem do sentimento de erôs. No
início, a natureza dos humanos era diferente - eram unidades completas, “de forma esférica, com
costas e flancos arredondados, com quatro mãos, o mesmo número de pernas, dois rostos
totalmente idênticos num pescoço perfeitamente redondo, mas uma cabeça única para o conjunto
desses dois rostos opostos um ao outro. Tinham quatro orelhas, dois órgãos de geração e todo o
resto em conformidade”, descreve Aristófanes. Uns, descendentes do Sol, tinham duas partes
masculinas; outros, descendentes da Terra, tinham duas partes femininas - isso lhes dava uma força
tamanha que os fez escalar o céu para combater os deuses. Zeus, em punição, cortou-os em dois,
nascendo assim a divisão entre homem e mulher. Acabou-se assim a unidade e a felicidade humana,
e cada metade passou a procurar seu correspondente para recuperar a completude.
Claro, isso é mitologia. Não tem validade científica. Mas, como metáfora, explica a busca
obsessiva pela cara-metade que caracteriza o amor romântico - que explicaremos em seguida.
Quando amamos, sentimos mais que afeição, simpatia, gratidão, confiança, tesão, admiração.
Sentimos algo louco que nos faz escrever cartas ridículas, ficar sem dormir ou comer, deixar os
amigos em segundo lugar, abandonar a casa dos pais e não pensar em outra pessoa. O amor
romântico é um sentimento que nos faz querer viver só com uma pessoa até a morte - mesmo que
esse mesmo sentimento possa durar bem menos que nossa vida, como atestam os 243 mil divórcios
registrados no Brasil em 2010. Há quem diga que ele é uma invenção cultural. Mas quando amamos
não temos dúvida de que ele exista e que seja muito mais do que algo restrito à nossa cultura.
Sentimos que ele é universal - e há fortes indícios de que ele o seja, mesmo em sociedades nas quais
o cônjuge é escolhido pela família,
e não pelos noivos. O psicólogo David Buss fez um estudo com 10 mil homens e mulheres de 37
diferentes culturas espalhadas pelo mundo, perguntando o que lhes atraía num cônjuge. Em todas
elas, o amor mútuo foi avaliado como a condição mais importante na hora de escolher um cônjuge.
Por que o amor existe, se o sexo já basta para a nossa reprodução? Você deve já ter percebido
que este livro busca ser fiel a um argumento central - o egoísmo genético tal como explicado por
Richard Dawkins. Não é de surpreender então que a resposta esteja na replicação dos genes.
Homens não podem ter filhos sozinhos, e tampouco as mulheres. Um precisa do DNA do outro. Esse
problema se resolveria com o sexo casual à moda dos cachorros de rua. Eles rodeiam a cadela no
cio, disputam-na entre si, e pronto.
Mas o caso dos humanos é diferente. Sim, sentimos tesão por qualquer parceiro sexual em
potencial. Parece que temos de tudo para não ser monogâmicos. Mas temos também um sentimento
que nos une a uma única pessoa, e esse mesmo sentimento nos faz querer fazer sexo com ela - ainda
que tenhamos de forçar nosso radar sexual a se desligar para não querermos traí-la. Somos
monogâmicos e não o somos. Somos fiéis imperfeitos, capazes de transar amando ou não, mas
sempre idealizando uma união entre sexo e amor.

A ORIGEM DA GUERRA DOS SEXOS


A princípio, não existe razão para conflitos entre homens e mulheres. Ambos querem se reproduzir,
e um tem o que o outro não tem. Eles têm os espermatozoides, e elas, os óvulos. A conta parece se
fechar redondamente numa relação de ganho para os dois lados, como se o sexo nos unisse de volta
ao ser redondo e completo descrito por Aristófanes. Mas não é o que acontece.
O cortejo entre machos e fêmeas é definido pelo tamanho do investimento em produzir um filho.
Fêmeas nascem com um número limitado de células sexuais, bem maiores do que as dos machos, e,
na maioria das espécies, gastam uma quantidade grande de energia, nutrientes e tempo para que a
cria consiga crescer até a idade em que se vira sozinha.
Entre os mamíferos, o investimento feminino é claramente maior que o masculino. A fêmea
carrega em seu útero um feto que lhe suga nutrientes, alimenta com seu leite os filhos e os protege
até que eles se tornem independentes. Isso demora de meses a anos. Já os machos gastam de
segundos a alguns minutos para ejacular seus pequenos e numerosos espermatozoides. Pronto, aí
está feito o trabalho.
O resultado da discrepância entre a disponibilidade de espermatozoides e a de óvulos é o mesmo
que há em qualquer descompasso entre oferta e demanda. Fêmeas são altamente desejáveis, e sua
conquista terá um alto preço. Machos as disputam com outros machos, e os mais fortes podem
fertilizar várias fêmeas, deixando os fracos sem parceiras. Quanto mais fêmeas arranjar, maior o
sucesso em propagar seus genes.
Já fêmeas não veem vantagem nenhuma em cruzar com uma grande quantidade de machos. Isso
porque, enquanto os espermatozoides são produzidos à vontade, os óvulos são pouco disponíveis.
Mesmo que em seu período fértil copule com 50 machos, a quantidade de filhos será a mesma que
teria com apenas uma cópula. É por serem tão pouco disponíveis que fêmeas podem escolher o
parceiro com melhores genes. Não é de se admirar que a mulher sinta uma empreitada masculina
indesejada como assédio sexual, e a cópula forçada como estupro. E ela está certa: as consequências
da cópula são graves demais para que sua escolha possa ser atropelada.
Essa relação entre machos e fêmeas se inverte em espécies cujos machos têm papel importante
na criação do filhote. Por exemplo, nas aves em que isso acontece, as fêmeas disputam o macho, que
fica cuidando do ninho e dos ovos. O pinguim imperador macho choca os ovos da fêmea num frio de
50 ºC negativos durante todo o inverno antártico e só encontra novamente a parceira sexual na
primavera, quando ela volta e vomita peixe para os filhotes. Já o cavalo marinho macho recebe os
óvulos fertilizados da fêmea e cuida deles até que os filhotes estejam maduros para se virar
sozinhos.
Em geral, isso não acontece com os machos mamíferos - com a exceção dos humanos. De fato, o
investimento das mulheres na reprodução é infinitamente maior do que o dos homens: são nove
meses de gestação e até quatro anos de amamentação, contra 2 a 5 mililitros de sêmen, facilmente
eliminados na masturbação. Mas crianças precisam de anos da dedicação permanente de adultos até
obterem um mínimo de independência - o que acontece por volta dos sete anos em sociedades
caçadoras-coletoras. É aí que entra o segundo papel do homem - um papel em que somos muito mais
parecidos com pinguins do que com macacos.
O único esforço que os pais orangotangos fazem por sua prole é fornecer seu sêmen. Os pais
gorila, chimpanzé e gibão oferecem proteção, e pronto. Mas os pais humanos caçadores-coletores
precisam transmitir conhecimentos e habilidades complexos pelo aprendizado. Uma formiga é capaz
de instintivamente buscar alimento em caminhos tortuosos e longos, e voltar para a toca em linha
reta, sem precisar de nenhum ponto de referência. Está geneticamente programada para isso. Já os
humanos têm poucas capacidades inatas que nos permitam sobreviver sozinhos. Precisamos
aprender por meio da comunicação quais são as substâncias comestíveis, como produzir e utilizar
ferramentas e como nos proteger de diferentes predadores. Nosso software é complexo e maleável
demais para que consigamos usá-lo sem a ajuda inicial de instrutores. Essa capacidade de aprender
nos permitiu alimentar-nos de milhares de espécies de plantas e animais, adaptar-nos a diferentes
climas e, por fim, colonizar todo canto do planeta. Mas também obrigou os adultos a dedicar mais
tempo e energia à criação dos filhos do que qualquer outra espécie. Aqueles homens caçadores-
coletores que não alimentaram, protegeram nem ensinaram seus filhos não puderam levar seus
genes adiante.

EM CONFLITO POR NATUREZA


Não é difícil perceber que temos os pés em duas jangadas. Do ponto de vista dos genes do macho,
quanto maior o número de parceiras, melhor. Se pudessem, homens seriam como o deus olímpico
Zeus - que traçou Métis, deusa da prudência, Atenas, deusa da guerra, sua tia Têmis, deusa da
Justiça, a oceânide Eurínome, Mnemósine, deusa da memória, Leto, deusa do anoitecer, Hera, que
era sua irmã, além de 115 mulheres mortais e um rapaz. Basta ver um rabo de saia ou uma imagem
em pixels emitidos numa tela de cristal líquido para que o homem se excite. No já citado estudo
multicultural de David Buss, as respostas dos homens sobre o que procuravam nas mulheres
refletiam bastante o físico delas: juventude, saúde e aparência.
Mas isso não basta do ponto de vista de seus genes. Antes de mais nada, ele precisa que ao
menos uma parceira seja fixa e inquestionavelmente fiel. Isso garante que venham dele os genes do
filho em cuja criação ele dedicará tempo e energia. Não é de surpreender que Zeus mantivesse
controle total sobre Hera, sua esposa oficial, e que a tenha castigado de forma tão impiedosa na
ocasião em que ela conspirou contra ele: pendurou-a no céu por braceletes de ouro pelos punhos e
uma bigorna amarrada a cada calcanhar, vulnerável às chibatadas do marido. Noutro ato à revelia
de Zeus - quando Hera dá à luz um filho concebido sozinha por partenogênese -, sua criança nasce
feia, fraca e deformada, com quadris deslocados e pés tortos. O homem vê sua honra espelhar-se
nos genes do filho.
Já do ponto de vista dos genes da fêmea, o que importa não é a quantidade de homens, mas a
qualidade de seus genes. Ainda assim, não basta a imagem de um bom reprodutor para deixá-la
morrendo de desejo. No caso específico dos genes da mulher, o homem desejável é um que tenha
meios e disponibilidade para cuidar dos filhos. Nas culturas pesquisadas por Buss, mulheres
apontaram como as qualidades desejadas num homem a ambição, diligência, inteligência,
confiabilidade, criatividade, personalidade animada e senso de humor. Todas essas características
contribuem para o homem obter sucesso na busca de recursos e status - e consequentemente na
criação de seu filho.
O resultado desse conflito entre genes e segurança é que a mulher tenderá a se resguardar ao
máximo até se casar com o melhor provedor possível, mas também sentirá desejo em fazer sexo com
o melhor reprodutor possível, mesmo que essas duas figuras não coincidam no corpo do mesmo
homem.
O psicólogo evolucionista canadense Steven Pinker traz essa situação para a lei da oferta e da
procura. No jogo econômico-sexual, muitas mulheres disputarão o melhor partido. Disso se pode
concluir que o homem médio conseguirá uma esposa de “qualidade” alta - ou seja, bastante disposta
ao compromisso -, mas não conseguirá amantes tão boas assim, e acabaria partindo para prostitutas
ou pornografia. Já muitos homens disputarão a melhor parceira sexual. Disso se pode concluir que a
mulher média conseguirá facilmente um amante - ou seja, não terá de pagar por sexo nem usar
pornografia -, mas será mais difícil conseguir um marido de “qualidade” - ou seja, bom provedor.
Mas espera aí. Como é possível que uma estratégia sexual definida por um macho buscando
copular com o maior número possível de fêmeas, e fêmeas se resguardando para o macho com mais
recursos, tenha se mantido? Isso não inviabilizaria o comprometimento de um homem à mesma
mulher? Não levaria todas as mulheres a se entregar a uma minoria de homens poderosos, deixando
a massa de pobretões sem mulheres e, logo, incapacitados de se reproduzir? Não. E é aí que entra a
dobradinha do relacionamento: o amor romântico e o ciúme - o que exploraremos com profundidade
mais tarde, nos capítulos 2 e 3.
É verdade que buscamos escolher nossos parceiros pelas características mais vantajosas para a
reprodução. Porém, ser muito racional nesse momento traz um risco grande. Bastaria encontrar
uma pessoa com características físicas e materiais melhores para você querer abandonar o parceiro
atual. E isso inviabilizaria o interesse maior do gene: que nos reproduzamos e criemos nossos filhos
até que eles se tornem capazes de gerar nossos netos.
O amor romântico impede que a razão fale mais alto quando o parceiro não é o mais belo, o mais
forte ou o mais rico da vizinhança. A ferramenta “salvar automaticamente” de nosso software
mental é uma espécie de contrato cujo termo de rescisão prevê uma multa tão alta que raramente
vale a pena ser quebrado. Mesmo que a riqueza, a saúde e a beleza não sejam mais as do início do
relacionamento, o custo da separação continua alto demais.
Ainda assim, a conta não fechou. Não existe lei biológica que obrigue o amor a ser correspondido
na mesma intensidade e na mesma forma pelas duas partes do casal. E isso significa que, enquanto
o amor evita que quem ama queira trair, ele não garante a fidelidade do amado. Por mais próximas
que duas pessoas sejam, elas não compartilham sistemas nervosos nem endócrinos. São separadas
por seus corpos, e por isso o amor nem sempre é correspondido na mesma intensidade. Nada
garante que, enquanto nos cegamos de amor, nosso parceiro não procure aventuras sexuais,
conforto emocional e satisfação material com outras pessoas. É por isso que, junto ao amor
romântico, evoluiu o ciúme. Ele nos faz ameaçar rivais que cheguem perto, aumentar a vigilância
diante de sinais de traição e demonstrar afeto a nossos parceiros para comunicar nosso
comprometimento. Tal como o amor, não podemos racionalizar o ciúme. Caso contrário, homens não
se incomodariam com traições quando suas mulheres tomassem anticoncepcionais, nem
homossexuais teriam motivos para sentir ciúme. O ciúme é irracional, instintivo, e sem ele não
seríamos humanos.
Entendemos já como o egoísmo de nossos genes nos fez capazes de amar nossos familiares,
nossos amigos e nosso par romântico. Vamos entender no próximo capítulo como funciona o amor -
esse trio de paixão, tesão e ligação entre duas pessoas mutuamente dependentes.
A química
do amor

O amor é feito de paixão, tesão e


ligação. E tudo isso não passa de
impulsos guiados por uma série de
hormônios – dopamina,
testosterona, ocitocina... Saiba
como essas substâncias fazem você
perder a cabeça.
“Você acaba de se apaixonar loucamente?”, dizia o anúncio que a antropóloga Helen Fisher afixou
no quadro de avisos para alunos de psicologia da Universidade do Estado de Nova York. Desde
1996, ela já pesquisava como o amor funcionava em 166 diversas culturas, e seus estudos
concluíram que o mecanismo que amarra os amantes era universal. Agora, ela queria saber como o
amor funcionava no cérebro das pessoas.
Inúmeros voluntários entraram em contato. Depois de entrevistas detalhadas, Fisher selecionou
20 homens e mulheres que estavam profundamente apaixonados e felizes.
Para entender o que acontecia na cabeça desses amantes, Fisher comparou imagens por
ressonância magnética de quando viam a fotografia do amado com as de quando viam a de um
conhecido qualquer. Diante da foto de seus amados, muitas partes do cérebro se ativaram, mas duas
pareceram ter um papel essencial no amor romântico: a área tegmentar ventral (VTA, na sigla em
inglês) e o núcleo caudado. Essas são partes importantes do centro de recompensas - circuitos
cerebrais responsáveis pela excitação e pelo prazer. Toda vez que nos sentimos satisfeitos, quem de
fato se satisfaz é esse circuito, seja ao usar drogas, ao fazer sexo, ao gastar horas em jogos de azar
ou ao encontrar a pessoa amada. Se esse sistema estiver em baixa, buscaremos algum estímulo que
o ative novamente para receber uma injeção de ânimo.
O núcleo caudado (região em forma de C no interior do cérebro, envolvida no aprendizado de
hábitos) ajuda a detectar, discriminar, escolher e antever uma recompensa. Quanto mais apaixonado
o voluntário, maior a ativação do núcleo caudado ao ver a foto do amado. Mas o responsável por
essa ativação é a VTA. É ela que armazena em vesículas o neurotransmissor dopamina, a “molécula
do prazer”, e o distribui por meio de seus axônios para diversos alvos no cérebro (como o próprio
núcleo caudado), estimulando-os. Quando a VTA faz isso, nós conseguimos ter uma atenção muito
mais focada, uma motivação extrema, muita energia, hiperatividade e até certos quadros de mania.
Tudo isso para alcançar um objetivo.
“Não surpreende que os amantes conversem a noite toda ou andem até o amanhecer, escrevam
poemas extravagantes e e-mails reveladores, atravessem oceanos para se abraçar apenas por um
fim de semana, mudem de emprego ou de estilo de vida e até morram um pelo outro”, escreve
Fisher em Por Que Amamos, livro em que descreve seu experimento. “Louco de amor” não é uma
expressão tão figurada assim. Ficamos fissurados pelo amor da mesma forma como quem para de
fumar se sente por um cigarro.
A descoberta central disso para Fisher foi a de que o amor romântico não é uma emoção, mas sim
um impulso. Emoções vêm e vão e se focam em diferentes objetos; já impulsos precisam ser
resolvidos e se focam em um único objeto. E impulsos são associados a altos níveis de dopamina.
Eles orientam nosso comportamento para atingir uma necessidade biológica, como a sede para
buscar água, o frio para buscar calor, a fome para buscar comida, o tesão para buscar parceiros
sexuais, e o instinto maternal para cuidar de nossos filhos. O amor evoluiu para que busquemos
construir e manter um relacionamento com uma pessoa específica – apesar do instinto masculino de
buscar o maior número possível de parceiras sexuais, para levar seus genes adiante, e do instinto
feminino de buscar o homem com os melhores genes, sem que ele seja necessariamente o que ela
escolheu para compartilhar a criação de seus filhos. O amor romântico é a chave que resolve o
conflito primordial entre o tesão e a necessidade de apoio mútuo.

TESÃO
Fisher acredita que o tesão também tem uma receita química: a testosterona, hormônio presente em
homens e mulheres, mas com concentração maior nos homens, nos quais é responsável pelo
desenvolvimento e pela manutenção de características sexuais. E há motivos para Fisher apostar no
papel da testosterona como afrodisíaco. Homens e mulheres com maiores níveis desse hormônio no
sangue tendem a fazer mais sexo; atletas que aplicam testosterona também têm mais pensamentos
sexuais e mais ereções; mulheres sentem mais desejo sexual na ovulação, quando seu nível de
testosterona é mais alto, e homens têm seu pico de libido no início dos 20 anos, quando têm mais
desse hormônio. Já ⅔ das mulheres de meia-idade não sentem queda do desejo, uma vez que a
queda do estrogênio com a menopausa aumenta os níveis de testosterona; e aquelas que perdem
libido após a cirurgia de remoção de ovários aumentam seu desejo sexual ao aplicarem emplastros
com testosterona.
Mas falta ainda entender por que e como isso acontece. Hormônios não viajam pela circulação
sanguínea sem eira nem beira. Eles são captados em diferentes partes do corpo, onde têm efeitos
diferentes, e também são transformados em diversos hormônios com a ajuda de enzimas. A 5a-
redutase, presente em folículos pilosos, por exemplo, transforma a testosterona em
dihidrotestosterona - uma versão bem mais poderosa do hormônio, responsável tanto pela maior
quantidade de pelos grossos no corpo masculino quanto pela calvície.
Já a aromatase, uma outra enzima, presente no cérebro, transforma a testosterona em estradiol,
um hormônio feminino. Ou seja, um comportamento desencadeado quando há uma alta
concentração de testosterona no sangue não significa que foi causado por uma alta concentração do
mesmo hormônio no cérebro. Sua atuação é complexa e depende da interação com outras enzimas
que a transforma em diferentes hormônios. Em resumo, a única certeza é de que a presença de
muita testosterona no sangue está relacionada à presença de muita libido, seja qual for a razão para
isso.
E como funciona o tesão no cérebro? De forma muito semelhante ao amor - deixando nossos
cérebros na fissura por dopamina, e depois satisfeitos. A equipe da neurocientista Kim Wallen, da
Universidade Emory, EUA, fez um teste semelhante ao de Fisher, só que comparando imagens de
sexo com imagens neutras. Tanto homens quanto mulheres tiveram ativados seus circuitos de
recompensa - o que tinha acontecido com apaixonados no experimento anterior. Mas houve uma
grande diferença: no estudo de Fisher, os apaixonados desligaram os centros de julgamentos e
cognição social do córtex cerebral; já no estudo de Wallen, as imagens de conteúdo sexual ativaram
áreas corticais, responsáveis por funções mais complexas, incluindo as de processamento visual,
atenção e funções motora e somatossensória. Isto é: paixão e tesão compartilham sentimentos
prazerosos, mas são coisas diferentes.
Comparado à paixão, o tesão é um impulso muito simples. De pé no ônibus cheio, deitado sozinho
na cama, assistindo à novela - a qualquer momento ele pode surgir. Pode ser dirigido a uma atriz
estrangeira ou a um cantor que você jamais encontrará, e logo passar para a primeira pessoa que
cruzar o seu caminho. O que importa é ser desaguado em alguém, enquanto na paixão o que importa
é que seja aquela pessoa em específico. Mas será que o amor romântico nos faz sentir mais tesão?
Se a testosterona realmente for o hormônio da libido, a resposta será bastante ambígua.
Foi o que descobriu em 2004 a psiquiatra italiana Donatella Marazziti. Ela não é figura nova em
estudos sobre amor e cérebro. Quatro anos antes da descoberta, ela identificou que, em
apaixonados, os níveis de serotonina - um neurotransmissor que regula o estado de ânimo - podiam
ficar tão baixos quanto os de pessoas com transtorno obsessivo-compulsivo. Em outras palavras, isso
significa uma propensão maior para a depressão. Desta vez, ela decidiu partir para as alterações de
níveis de vários hormônios na circulação sanguínea. Escolheu 12 homens e 12 mulheres que diziam
ter se apaixonado nos seis meses anteriores e comparou seus níveis com os de outros 24 voluntários
solteiros ou em relacionamento estável.
A primeira constatação não foi nenhuma grande surpresa: a paixão estressa. Tanto mulheres
quanto homens apaixonados tinham níveis maiores de cortisol - o hormônio do estresse - do que os
grupos de controle, possivelmente por causa das reviravoltas do cortejo e da adaptação a um novo
relacionamento. Mas a descoberta mais impressionante foi que a testosterona caiu em homens e
subiu nas mulheres diante do novo amor romântico.
É como se a natureza aparasse as diferenças entre os sexos nesse momento para aumentar o
tesão nas mulheres e segurar um pouco a agressividade e a pulsão sexual masculina (homens com
altos níveis de testosterona se casam menos, têm mais casos, cometem mais abusos contra esposas
e se divorciam mais). Com essa menor discrepância hormonal, tanto o homem quanto a mulher
ficam mais propensos a iniciar um relacionamento. Mas basta esse relacionamento se estabilizar
para que a paixão vá embora e os níveis de testosterona e cortisol voltem ao normal.
Mas vamos com calma. Hormônios não controlam nosso comportamento sexual da mesma forma
como controlam o de ratos. Quando uma rata está no cio, suas costas se arqueiam expondo a vulva
para quem a queira. Quando um rato sente o cheiro de sua fêmea no cio, é só correr atrás. Já o
comportamento dos humanos é muito mais complexo. Mulheres sentem vontade de transar mesmo
fora de seu período fértil, e homens não precisam do cheiro do cio para ficar com tesão. Em nós, os
hormônios influenciam o tesão, mas quem nos controla é nossa mente.

LIGAÇÃO
E eis que o amor esfria. Uma relação estável não precisa mais da coragem, da energia e da
motivação de um apaixonado para correr atrás de uma pessoa. O comportamento que a seleção
natural escolheu não foi a busca constante por grandes amores, mas a formação de casais unidos,
em que um parceiro tome conta do outro, e juntos criem seus filhos. Enquanto a ativação da VTA e a
consequente liberação de dopamina deixam de ser tão intensas na maioria dos relacionamentos
conforme eles se desenvolvem, outras substâncias passam a ter uma importância maior. São a
ocitocina e a vasopressina - hormônios produzidos no hipotálamo, nos ovários e nos testículos. Elas
são as responsáveis pelo sentimento de união com um parceiro de longo prazo.
A ocitocina é um hormônio multitarefa. Sua ação começa no parto. Do hipotálamo ela cai na
corrente sanguínea e estimula as contrações uterinas. Depois, estimula a produção de leite nas
mamas. Mas não para por aí. O hipotálamo produz uma grande quantidade do hormônio quando a
mãe tem seu filho nos braços. É isso que garante que ela instintivamente cuide do bebê. Os
batimentos cardíacos e a pressão arterial da mãe diminuem, e ela se sente calma. É como se a
ocitocina tornasse mãe e filho numa única coisa.
Mas o papel da ocitocina não se limita à maternidade. O hormônio age na formação de qualquer
laço afetivo e social, seja em homens, seja em mulheres.
É o hormônio da confiança. Para aferir esse papel à ocitocina, o neurocientista Thomas
Baumgartner, da Universidade de Zurique, aplicou o “jogo da confiança” em 49 voluntários. Nele, o
jogador 1 deve escolher entre manter consigo uma certa quantia (R$ 10, digamos) ou entregá-la
para o jogador 2 fazer um investimento que triplicará a grana. Depois disso, a quantia pode ser
dividida entre os dois igualmente (com R$ 15 para cada) ou ficar toda com o jogador 2. O dilema é
óbvio: se o jogador 1 confiar no jogador 2, pode tanto receber 150% do investimento quanto perdê-
lo todo.
A hipótese de Baumgartner era a de que, pelo fato de a ocitocina fortalecer os laços sociais, sua
aplicação em jogadores aumentaria a confiança entre eles, faria com que continuassem a investir
mesmo depois de serem traídos. Metade dos voluntários recebeu ocitocina por via nasal, e o
restante, um placebo. Enquanto os que receberam placebo diminuíram a quantia que dispunham a
investir depois de serem traídos, os que receberam o hormônio não diminuíram seus investimentos.
Isso não bastou. Baumgartner queria saber o que acontecia no cérebro dos voluntários durante o
jogo. Para isso, observou os padrões de ativação cerebral por meio de imagens de ressonância
magnética. No grupo exposto à ocitocina, houve menor ativação da amígdala - envolvida no
aprendizado de emoções e do medo - e do núcleo caudado - como já sabemos, relacionado ao
circuito de recompensa. Para os autores, isso indica que o hormônio diminui o medo de ser traído e
a dependência de respostas positivas para que se tome decisões. E não é só isso. Outras pesquisas
mostram que a administração de ocitocina aumenta a capacidade de perceber o estado emocional de
uma pessoa mesmo em retratos.
No caso de homens, mais uma substância semelhante à ocitocina tem influência sobre a
fidelidade: a vasopressina. Os neurocientistas Sue Carter e Tom Insel injetaram o hormônio nos
cérebros de machos de arganazes-do-campo, espécie de roedores semelhantes a camundongos com
comportamento sexual monogâmico. Imediatamente os roedores começaram a defender o espaço
em torno deles. Quando um deles foi apresentado a uma fêmea, ele ficou extremamente possessivo
em relação a ela - em um dia de noivado já expulsava outras fêmeas que se aproximassem e era
capaz de matar para garantir que sua noiva não fosse fertilizada por outro macho. Já quando
cientistas bloquearam a síntese de vasopressina, o roedor deixou de ser monogâmico e começou a
procurar uma fêmea depois da outra.

VICIADOS EM AMOR
Voltemos ao centro de recompensas, fortemente ativado nos cérebros de apaixonados ao ver
fotografias de seus amados. Esse circuito é implicado nos mais diversos prazeres - mas também em
vários transtornos mentais, como anorexia, transtorno obsessivo-compulsivo, hiperatividade,
esquizofrenia... E em vícios. O amor nos faz sentir prazer. E isso basta para que nos viciemos nele.
Sentimo-nos bem. Depois, precisamos de mais e mais dele. E então o desejo vira necessidade. Se
nos distanciarmos do estímulo, entramos em crise de abstinência - depressão, crise de choro,
ansiedade, irritabilidade. E disso para a recaída é só um passo.
Vamos entender como o vício funciona no cérebro detalhando a descrição que já demos de
quando nos apaixonamos.
Certas informações eletroquímicas de várias partes do cérebro ativam os neurônios na VTA.
Quando isso acontece, pequenos sinais elétricos partem do corpo de suas células ao longo de seus
axônios - fibras que transmitem informações, como se fossem cabos elétricos, que desembocam em
terminais.
Os terminais dos axônios que partem da VTA vão em direção a outras partes-alvo do cérebro
relacionadas ao circuito de recompensa - por exemplo, o núcleo accumbens; a amígdala e o córtex
cingulado anterior, que são centros emocionais; o corpo estriado, envolvido no aprendizado de
hábitos; o hipocampo, envolvido na memória para fatos e acontecimentos, e o córtex pré-frontal,
região que controla o julgamento e o planejamento.
Quando os sinais elétricos atingem os terminais do axônio, eles engatilham a liberação do
neurotransmissor dopamina, armazenado em vesículas do terminal. Esse neurotransmissor então é
liberado na fenda sináptica - o pequeno espaço entre o terminal do axônio e os dendritos do
neurônio-alvo. Receptores nos dendritos do neurônio-alvo captam então a dopamina, estimulando
essa célula nervosa. Transportadores de dopamina trazem o neurotransmissor de volta para o
terminal do axônio, para que a fossa sináptica não fique encharcada.
Enfim: quaisquer experiências que levem à liberação de dopamina serão sentidas como
prazerosas, assim como ações, pensamentos e estímulos ligados de alguma forma a essas
experiências serão lembrados e associados com sentimentos positivos - tal como o perfume do
amado, o sabor de seu prato preferido ou a lembrança de pequenos acontecimentos compartilhados.
E essa sensação de prazer vai nos levar a repetir tais experiências. Está pronto o vício. Isso pode
valer para álcool, cigarro, cocaína, comida, exercícios físicos, jogos, filantropia, meditação, sexo - e
também amor. “O prazer é a nossa bússola, não importa que caminho tomemos”, diz o
neurocientista David Linden, no livro The Compass of Pleasure.
O amor pode então ter muito em comum com as drogas, mas existem duas diferenças básicas
entre cocaína, heroína, anfetamina e o amor. Primeiro, o amor ativa predominantemente o circuito
no hemisfério direito do cérebro - o lado holístico, atemporal e não racional do cérebro -, enquanto
drogas estimulam ambos. Mas o mais importante é que, além de, como o amor, ativar o centro de
recompensas, as drogas impedem que a dopamina seja recapturada. Passado o estímulo prazeroso,
transportadores de dopamina limpam a fossa sináptica e trazem o neurotransmissor de volta para
ser reciclado e armazenado em vesículas. Certas drogas, como anfetaminas e cocaína, bloqueiam
esses transportadores, criando assim um sinal mais intenso e mais duradouro. É como diz sobre a
heroína o viciado Mark Renton no filme Trainspotting: “Pegue o melhor orgasmo que você já teve.
Multiplique por mil e você ainda não está nem perto do barato dela.” Tudo bem, nessa altura a
heroína já tinha tirado tanto a libido de Renton que talvez ele não pudesse mais se lembrar de como
havia sido o melhor orgasmo de sua vida. Mas, do ponto de vista do circuito de recompensa de seu
cérebro, ele tinha alguma razão.
Então estamos entendidos. O amor é um impulso complexo em que pelo menos três substâncias
estão diretamente envolvidas.
A dopamina determina o foco e a energia que investimos sobre o ser amado; a testosterona cuida do
tesão e, por fim, a ocitocina e a vasopressina mediam o sentimento de ligação que nutrimos pela
pessoa com quem convivemos ao longo do tempo.
Mas o amor não basta para manter um relacionamento. Ele funciona em par com o ciúme - nosso
impulso de manter controle sobre o parceiro para garantir seu amor. E, quando o relacionamento
parece acabar, outra ferramenta nos faz entrar em estado de protesto, raiva e depressão. Perdemos
nosso orgulho para nos humilhar diante do amado e mendigar pela sua volta da mesma forma como
um viciado em abstinência perde o controle de seus atos para conseguir sua droga de volta. Agimos
de forma irracional, descontando nossa frustração em tudo ao nosso redor. Até que somos tomados
pela depressão - um estado que nos faz ruminar nossos problemas e atrair comiseração de nossos
amigos para conseguirmos desistir de nosso fracasso amoroso e mudar nossas prioridades. No
próximo capítulo, vamos entender como funciona a mais batida das rimas da língua portuguesa: a
dor de amor.
Quando o
amor dói

Dor e amor são duas faces da


mesma moeda. Entenda qual é a
importância real do sofrimento na
sua vida amorosa. E veja por que é
impossível viver sem o lado ruim da
vida a dois.
Não seríamos a mesma espécie sem o ciúme. Como já falamos no primeiro capítulo, esse sentimento
possessivo e controlador é o outro lado da moeda do amor. Enquanto deixamos de trair porque
amamos, não deixamos de ser traídos porque sentimos ciúme. Esse mecanismo é tão eficiente como
uma barreira de acesso alheio ao corpo de nossos parceiros que evoluiu com tanto sucesso quanto o
amor. Não adianta, não podemos controlar - o ciúme é uma adaptação evolutiva.
Ele não acontece apenas quando uma ameaça concreta de traição acontece. Ele é uma emoção
preventiva - tal como a ansiedade. Ao ouvir o telefone tocar de madrugada, não ficamos ansiosos
porque sabemos que algo de ruim aconteceu, mas porque existe uma possibilidade considerável de
que um telefonema a essas horas seja para comunicar algo de ruim. Um ciúme moderado nos deixa
mais sensíveis a sinais de possível traição e nos faz agir afastando rivais com ameaças verbais e
expressões faciais, e fortalecendo a ligação com o parceiro, seja com uma vigilância maior, seja com
uma dose extra de afeto. Da mesma forma como uma ansiedade moderada garante que você esteja
preparado para situações adversas. “O ciúme, de acordo com essa perspectiva, não é um sinal de
imaturidade, mas uma paixão supremamente importante, que ajudou nossos ancestrais - e muito
provavelmente continua a nos ajudar hoje - a lidar com uma série de ameaças reprodutivas”, escreve
Buss em The Dangerous Passion. Com ele, um relacionamento que pode valer a pena é reforçado, e
o que já está fracassando descamba de vez.
E como ele evoluiu? Diante da possibilidade de traição, você pode errar de duas formas: acreditar
que seu parceiro é 100% fiel, quando na verdade ele o trai, ou acreditar que seu parceiro o traiu,
quando na verdade ele foi fiel. Enquanto o custo de ver pelo em ovo é considerável - estresse, brigas
e possivelmente um fim de relacionamento -, o de se deixar trair é muito maior: o homem vai correr
o risco de cuidar de um filho biológico de outro, e a mulher poderá acabar sendo abandonada por
outra mais bonita e mais jovem. Por isso, evoluímos com a capacidade de interpretar como traição
os mínimos indícios.
Quando bate o ciúme, somos extremamente reativos. Identificamos um cheiro estranho, uma
mudança no desejo sexual, telefonemas estranhos ou um simples fio de cabelo longo no paletó como
ameaça, mesmo que possamos estar redondamente enganados.
Basta um sinal para que caiamos numa série de raciocínios. Será que a traição já aconteceu ou
ainda está só na fase do flerte? O rival seria mais atraente e mais bem-sucedido do que eu? Esse tipo
de comportamento já aconteceu antes? Essa ameaça desencadeará uma reação que vai do aumento
da vigilância sobre o parceiro até a agressão física.
E o ciúme aumenta entre homens com disfunções eréteis. Num estudo com 36 casos de ciúme
patológico, problemas de ereção e ejaculação estiveram presentes em 19. A razão é que um homem
broxa acredita que sua mulher buscará um amante para satisfazer-se sexualmente. O abuso do
álcool também deixa mais ciumento. Num estudo de 1985 com 100 alcoólatras, 35% deles foram
diagnosticados com ciúme extremo - e 27% sem que tenha sido provada a traição do cônjuge. Só que
aqui há o problema do ovo e da galinha: tanto o álcool exacerba suspeitas já existentes e piora a
qualidade do relacionamento, como também pessoas com problemas conjugais tendem a beber mais.
Ao decorrer da vida a dois, também é normal que surjam espaços para o ciúme. Num casal de jovens
de 20 anos com mesmo nível sócioeconômico e educacional, a mulher pode passar a ser vista como
menos atraente com o tempo, e sentir-se mais insegura e ciumenta - principalmente se ele for
adulado por um monte de estagiárias. Mas ela pode também crescer na carreira, se tornar
independente do marido e conviver com homens mais poderosos e mais ricos do que ele. Não há
dúvida de que isso abre um espaço para o ciúme.

CIUMENTOS VS. CIUMENTAS


Embora esteja presente tanto em homens quanto em mulheres, o ciúme tem causas evolutivas
diferentes em cada sexo. Para a reprodução e para garantia de que nossos descendentes cheguem à
idade mínima para serem autônomos, o homem precisou da mulher da mesma forma que a mulher
precisou do homem. Mas o relacionamento amoroso não é um pacto simétrico entre dois iguais.
A mulher sente ciúme porque, ao longo da evolução, precisou garantir o apoio contínuo e
incondicional para se reproduzir e criar os filhos até que se tornassem autossuficientes. Ela tem um
gasto de energia e tempo na reprodução e criação muito maior do que o homem. Gesta por nove
meses um ser que sequestra sua energia e nutrientes, sofre um parto extremamente traumático por
conta da cabeça superdesenvolvida dos humanos, nutre a criança de meses a anos com o leite
produzido pelo seu próprio corpo e precisava cuidar dos filhos até pelo menos os sete anos de idade,
quando a criança conseguia se virar minimamente para sobreviver na savana.
Na maioria das sociedades atuais, a mulher alcançou grande autonomia econômica, além de ter
apoio da família estendida, de sua rede de amigos e do Estado. Mas, ao longo da evolução, esse
papel provedor foi do homem. E por isso teme a possibilidade de ser abandonada emocional e
financeiramente.
Para ela, foi importante garantir que essa fonte de dedicação afetiva e material não se desviasse
para outra mulher. E o risco é grande. Afinal, o homem tem uma motivação evolutiva extremamente
simples para trair. Seus genes o incentivam a fecundar o maior número de óvulos possível. Simples
assim. Mas essa traição física não é o pior dos mundos para a mulher. O risco é que outra mulher
consiga não apenas o esperma, mas a dedicação do homem. Quanto mais a mulher incentivá-lo a
ficar com ela e desmotivá-lo a procurar outras mulheres, menor o risco de ter seus recursos afetivos
e materiais compartilhados ou eliminados.
Agora vamos ao homem. Ele também tem grandes motivos para sentir ciúme. A imagem da
santinha é uma construção social - ela mostra o que a coletividade espera dela, e não o que ela de
fato é. Ao longo da evolução a mulher traiu, sim, e teve três motivos bem complexos para isso -
todos diferentes das razões masculinas. Seu interesse, diferentemente do que ocorre com o homem,
não é buscar o maior número de parceiros sexuais. Afinal, como já vimos, ela é fecundada por
apenas um espermatozoide por vez e por isso é importante escolher a qualidade genética, e não a
quantidade de parceiros. Vamos então aos verdadeiros motivos para a traição feminina. O primeiro é
que, uma vez estabelecida com um bom provedor, foi de interesse de seus genes buscar um parceiro
sexual com melhores genes - mais forte e mais saudável do que seu parceiro. O segundo motivo é
que manter amantes garantiu um “seguro-homem” para o caso de o titular morrer numa caça ou a
abandonar. Isso pode não ser importante em sociedades com expectativa de vida masculina alta,
mas o era num ambiente em que a sobrevivência era precária.
O terceiro motivo (e esse é um ponto extremamente polêmico, mas que encontra base nas relações
existentes nas sociedades de caça e coleta) é que ela pôde usar o sexo para obter o que lhe faltava.
A caça era uma atividade predominantemente masculina - afinal, mulheres ficavam ocupadas demais
carregando, amamentando e criando os filhos, de tal forma que lhes restava coletar vegetais.
Quando um homem pegava um animal grande, dividia a carne com outros caçadores. Afinal, a caça
depende da sorte. Vai que os colegas retribuam o favor no futuro? O homem também investia o
excedente naqueles que carregavam seus genes - os filhos - e naquela que garantia a sobrevivência
de seus filhos - a mãe. Mas nesse momento três coisas poderiam acontecer: o homem ainda não ter
uma parceira, sua mulher não estar acessível, ou ele querer fazer uma troca com outra mulher.
Mulheres podiam oferecer basicamente duas coisas em troca da carne: vegetais coletados ou sexo.
Vegetais tinham uma vantagem sobre a carne: eram menos perecíveis quando não era possível
aumentar a validade da carne com o sal e a geladeira. E o sexo era um atrativo irresistível para
solteiros, homens cujas mulheres não estavam imediatamente disponíveis ou aqueles que
simplesmente queriam diversificar suas parcerias sexuais. Foi assim que se abriu o portal da troca
entre sexo e proteína de alta biodisponibilidade. Essa troca permanece hoje - não com carne, mas
com atenção, presentes ou dinheiro, no caso da prostituição. Isso pode ser considerado imoral. Mas,
em tempos de escassez material, foi apenas mais um comportamento que aumentou a chance de
sobrevivência.
Se homem e mulher têm razões diferentes para sentir ciúme, é de se esperar que em cada um
esse sentimento tenha evoluído ao seu modo. E essas especificidades de gênero no ciúme são
encontradas hoje nas mais diversas culturas, descobriram estudos de psicologia evolutiva em vários
países, como EUA, Holanda, Alemanha, Japão, Coreia e Zimbábue.
O que é pior para você: descobrir que seu parceiro está desenvolvendo um relacionamento
emocional profundo, trocando confidências um com o outro, ou que seu parceiro está fazendo sexo
com outra pessoa, com posições sexuais que você somente imaginou? Em todos os estudos, a
maioria dos homens considerou a infidelidade sexual, enquanto a maioria das mulheres considerou a
quebra do comprometimento afetivo o que mais doía. E por isso o interesse de nossos genes
egoístas é de que o homem controle o máximo possível o acesso ao corpo de sua mulher.

A ESPIRAL DO CIÚME
A esta altura, já está mais do que claro que ao longo da evolução mulheres buscaram homens
dispostos ao compromisso. E, para garantir isso, elas buscam neles indícios de disposição a se
comprometer. Mas, como a primeira coisa que o homem procura não é o comprometimento, e, sim, a
diversidade de parceiras, pode ter evoluído entre eles a estratégia de dar falsos indícios de
comprometimento. Assim, eles podem convencer parceiras a fazer sexo, e depois abandoná-las. Por
sua vez, mulheres buscaram formas de identificar homens que tentam enganá-las. E assim segue a
espiral evolutiva.
O ciúme é apenas mais um elemento dessa espiral. Quem ama busca garantir a fidelidade feminina e
o comprometimento masculino. Assim, passa a buscar sinais de traição. No entanto, a traição passa
a ser feita de forma mais sutil - e assim segue o refinamento das técnicas de engano e detecção.
Uma das ferramentas para testar o comprometimento no relacionamento é provocar o ciúme
intencionalmente flertando com outros homens. Um homem realmente comprometido espera
fidelidade da mulher - ou seja, sente ciúmes. Se ele parecer comprometido, mas não o for de fato,
provavelmente não demonstrará ciúmes. Por outro lado, essa estratégia também fortalece o
comprometimento do homem. Se outros homens demonstrarem interesse por ela, seu parceiro
perceberá que ela mais é desejável do que achava antes, e, com a ameaça de perdê-la, aumentará
seu comprometimento.

REJEIÇÃO
Helen Fisher decidiu repetir o experimento dos apaixonados - mas desta vez com rejeitados. Todos
os entrevistados pareciam não apenas deprimidos, mas tomados pela raiva. A raiva do abandono. A
rejeição provoca dores emocionais profundas. Tristeza e raiva são acendidas com tamanha força que
não se consegue comer nem dormir. É dividida em duas fases: protesto e resignação.
Durante o protesto, o cérebro continua insistindo no circuito de recompensa: a presença e as
lembranças do amado trazem prazer, então o cérebro do abandonado continuará fazê-lo buscar
obsessivamente a reconquista. Tudo por uma recompensa em forma de dopamina. Energia e atenção
se voltam para ele tal como fazia quando estava apaixonado: o rejeitado bisbilhota durante a
madrugada a vida do amado nas redes sociais, visita os lugares que frequentavam esperando
encontrá-lo por acaso, escreve e-mails e SMSs que sabe que não serão respondidos, humilha-se
aparecendo no trabalho da ex trazendo flores - só para ser barrado na recepção. Uma breve
aparição do amado e migalhas de atenção bastam para sentir-se feliz brevemente, tal como aquele
cigarrinho escondido que um ex-fumante consegue tragar numa escapada ou o deslize na dieta
durante uma visita à casa da mãe no fim de semana.
Protestar mais alto às vezes adianta, com promessas de que tudo será diferente e de que o
relacionamento começará do zero. Mas, se não funcionar, o abandonado não pode permanecer o
resto da vida num estado de autoengano, correndo atrás de quem não o ama. Isso traz uma segunda
reação comum à rejeição: a raiva.
O responsável no cérebro pelo julgamento racional de tudo o que percebemos é o córtex pré-frontal.
Quando avalia que esforços para recuperar o amado são vãos, ele envia sinais para nosso regulador
da sexualidade e da agressividade, a amígdala. É como se chegasse para a amígdala e falasse:
“Somos uma criança e roubaram o nosso doce. Precisamos fazer algo em relação a isso”.
A amígdala então manda o hipotálamo desencadear a secreção de uma série de hormônios que
preparam nosso corpo para a luta. O sangue vai para as mãos, os batimentos cardíacos se aceleram,
começamos a suar mais, ainda que não haja um inimigo real à frente. Quando isso acontece, não
conseguimos pensar direito, apenas agir. Nosso inimigo de repente vira a mesa à qual sentamos, o
celular que está à nossa mão, ou o carro que dirigimos.
Se o estouro de raiva é uma reação típica no fim de relacionamentos, deve ter sido uma
adaptação evolutiva que resolveu problemas por milhares de gerações. Uma possibilidade é que
essa raiva permite que os amantes frustrados se distanciem de vez de quem não os quer mais. A
raiva nos purga, nos liberta de quem amamos. Afinal, a pessoa nem era mesmo tudo aquilo que você
achava, não é? Mas mais importante do que a raiva é a depressão. Aqui entra a segunda fase do fim
de um relacionamento - a resignação. Quando é jogada a pá de cal no relacionamento, ficamos
tristes, muito tristes. Num levantamento com 114 homens e mulheres rejeitados por seus parceiros,
40% entraram em depressão clínica, sendo que 12% tiveram depressão moderada ou grave. E como
a depressão, algo que nos aprisiona no sofrimento, pode ser uma adaptação? Protegendo-nos de
objetivos errados que podem nos ferir, segundo o médico evolucionista Randolph Nesse, da
Universidade de Michigan. Sua função é a mesma da dor: garantir nossa sobrevivência diante de um
risco. Quando um tecido está prestes a ser lesionado durante alguma atividade física, nossos
neurônios transmitem um estímulo que nos impede de ir além de nossos limites. A depressão
funciona da mesma forma - mas, em vez de impedir fisicamente de assumir um risco, atua no ânimo.
Um dos primeiros cientistas a pensar isso como uma adaptação foi o psicólogo americano Eric
Klinger. Num artigo de 1975, ele analisou como o humor melhorava conforme se progredia na busca
de um objetivo. A euforia nos motiva a continuar a nos esforçar e assumir riscos cada vez maiores.
Quando esses esforços começam a falhar, uma piora no ânimo nos faz voltar atrás, preservar nossas
reservas e reconsiderar opções. A depressão leve abre espaço para introspecção e auto-exame
intensos necessários para tomar decisões difíceis, como não procurar mais o amado, evitar situações
em que ele pode ser encontrado e buscar outros caminhos. A tristeza é uma oportunidade para
meditar, ruminar seus problemas e propor a si metas mais realistas. Quando conseguimos nos
encaixar nos trilhos das novas metas, o ânimo volta a subir. Já se não desistirmos do impossível, o
risco é de que caiamos numa depressão profunda.
Outro benefício da depressão é que ela pesca a empatia alheia. Às vezes falamos como nos
sentimos para amigos ou parentes, mas palavras só não bastam - as pessoas ouvem e pronto. Mas
quando estamos fisicamente debilitados pela depressão, conseguimos um apoio grande dos amigos e
parentes. A tristeza faz companheiras levarem a garota ao shopping para fazer um banho de
compras, e companheiros levarem o camarada na fossa até o boteco para tomar um pileque de lavar
a alma. Se a separação é pesada demais para ser carregada sozinha, o desespero traz a nós pessoas
que ajudarão a nos reerguer.

AS FACES CRIMINOSAS DO CIÚME


Como vimos, o ciúme é uma adaptação. Só que, tal como o excesso de ansiedade deixa de ser
saudável e se torna pânico, o ciúme em excesso é muito prejudicial. Ele imobiliza e mata. Se o ciúme
extremo teve função na savana, hoje entra em choque com valores que a civilização ocidental
acredita serem universais.
Temos aqui, então, um conflito claro entre evolução e cultura. Uma cultura evolui no ritmo das
palavras e do aprendizado, enquanto os genes evoluem no ritmo das gerações de sobreviventes.
Esse descompasso causa tilts em vários tipos de comportamento. Por exemplo, não há nada mais
contrário à vontade de nossos genes egoístas do que o celibato. Afinal, o objetivo deles é se replicar
em novas máquinas de sobrevivência. Ainda assim, sacerdotes católicos voluntariamente adotam o
celibato. Uns seguem a vida sem sexo; outros violam esse voto, seja às escuras, seja abandonando a
batina. Genética não é determinismo, mas tem o seu peso.
O mesmo acontece com o ciúme. Com métodos anticoncepcionais, o homem não precisa ter tanto
medo de que o filho que sua mulher carrega na barriga seja de outro homem, e, com a emancipação
econômica da mulher e com o Estado de bem-estar social, ela não precisa mais do homem para
garantir sua sobrevivência e a de seus filhos. Mas, da mesma forma como ainda sentimos mais medo
de cobras e leões do que de carros, mesmo morando em cidades onde esses animais matam menos
do que o trânsito, homens e mulheres continuam odiando a mínima possibilidade de ser traídos.
Muitos se controlam. Outros não. Homens cerceiam, espancam e matam - e mulheres também.
Num levantamento da Organização Mundial da Saúde, a proporção de mulheres que já sofreram
violência física de um parceiro homem vai de 13% no Japão a 61% no interior do Peru (e não se
limita a um tapa; das japonesas, 2% já levaram soco do parceiro, contra 42% das peruanas rurais). A
violência também vai além do físico. Agressão verbal - como insultos, humilhação na frente dos
outros e ameaças - acontece com 20% a 75% das mulheres, dependendo do país, e o controle
abusivo - como impedir de ver amigos, familiares, insistir onde está o tempo todo e acusar de ser
infiel -, com 21% das japonesas a 90% das tanzanianas.
Nessas estatísticas, o Brasil vai mal. Em 2011, a Central de Atendimento da Secretaria Especial
de Políticas para a Mulher recebeu uma média de 1.828 ligações diárias. Delas, 205 foram
denúncias de violência. E quem eram os agressores? Em 72,2% dos casos, o marido, e em 11,82%, o
ex-marido. Segundo um levantamento de 2011 do Instituto Perseu Abramo, 34% das mulheres
brasileiras já foram vítimas de violência doméstica. Foram ameaçadas ou violentadas fisicamente,
24% (o que inclui 6% de mulheres ameaçadas com faca ou arma de fogo); cerceadas de sua
liberdade, 7%; violentadas psicologicamente, 21%; forçadas a fazer sexo quando não queriam, 10%,
e estupradas, 3%. Embora alguns estudiosos liguem violência à condição socioeconômica, essa
pesquisa encontrou dados relativamente parecidos em todas as classes sociais, todas as cores, todas
as religiões e todas as regiões do país. Só um dado traz uma grande diferença: mulheres separadas
sofreram muito mais.
Comparadas a 39% das casadas e 36% das solteiras, 63% das mulheres separadas já sofreram
violência. Delas, 46% sofreram controle ou cerceamento, 45% foram violentadas ou ameaçadas
fisicamente e 44% sofreram violência psicológica. Uma justificativa evolutiva para a violência
doméstica é que ela torna o custo da infidelidade mais alto. Com ataques e ameaças, o marido pode
aterrorizar suas mulheres e mantê-las sob controle. Ou seja, fique comigo ou você vai ter de pagar
caro, muito caro. E o mais repugnante é que muitas vezes funcionam. Depois de seus maridos
violentos mostrarem que suas ameaças são para valer, algumas mulheres acabam de fato
diminuindo o contato com outros homens, usando roupas mais reservadas, obedecendo mais aos
desejos do marido e diminuindo os sinais de traição. Em casos de mulheres que buscam abrigo para
fugir dos maridos, muitas acabam voltando diante da ameaça de mais violência.
A violência doméstica pode crescer até seu limite máximo - a morte. Um estudo canadense com
homicídios registrados entre 1974 e 1990 mostrou que mulheres têm risco três vezes maior de ser
mortas por um parceiro sexual do que por um desconhecido. E, quando se trata de mulheres
casadas, esse risco triplica.
Se o crime passional é relativamente comum, teria ele uma razão evolutiva? Não para os autores
desse estudo, os psicólogos evolutivos canadenses Martin Daly e Margo Wilson. Segundo eles, os
crimes aconteceriam quando o agressor perde o controle de trazer a mulher de volta. Eles usam a
violência para que suas ameaças sejam críveis, e acabam exagerando.
Buss não concorda com a teoria do “escorregão”. “Muitos homicídios são premeditados, e não
parecem ser apenas acidentes ou deslizes”. Ou seja, ele acredita na motivação do “se não for meu,
não será de ninguém”.
Em sociedades poligâmicas, a morte de uma esposa infiel serve de lição para as outras. Em
outras culturas, a reputação do homem é que justifica o assassinato. A perda do relacionamento
pode ainda ser tão traumática que traz à tona ideias homicidas. E a infidelidade representa um
golpe na capacidade reprodutiva do homem, que pode, a partir de então, questionar todo o
investimento de tempo e recursos gastos com os filhos existentes e os que planejava ter. Matar sua
mulher seria um meio de estancar sua perda - e também de atacar o sucesso reprodutivo de seu
rival, caso ela esteja grávida. Ou seja, em uma série de circunstâncias específicas, matar a esposa
infiel se tornaria uma vantagem reprodutiva - desde que o relacionamento tenha acabado de vez.
O crime passional não é uma simples explosão. É um crime em câmera lenta, em que meses de
violência física ou psíquica se arrastam na tentativa de persuadir o parceiro ou a parceira - até
chegar à morte. Pesquisas americanas indicam que 80% das mulheres que são mortas por seus ex-
parceiros foram antes perseguidas obsessivamente. Eles a acompanham a cada passo, telefonam
tantas vezes que não têm mais coragem de atender. Bombardeiam seu celular com mensagens
nunca respondidas, ameaçam conhecidos. Aparecem nos seus lugares preferidos. Param em frente
de casa à espera do acender e apagar das luzes. E eventualmente partem para a agressão. São como
a música de The Police - a cada respiro seu, estarão de olho em você.
Temporada
de caça

As mulheres preferem os homens


bem-comportados, mas nem
sempre. Os homens querem sexo
sem compromisso, quase sempre.
Mas o que os dois desejam mesmo é
que o parceiro seja seu antibiótico
ambulante. Entenda por quê.
Não podemos escolher quem amamos - mas sabemos muito bem o que nos atrai numa pessoa. E,
nesse ponto, homens também são diferentes de mulheres - foi o que Helen Fisher descobriu no
mesmo estudo sobre apaixonados feito com imagens de ressonância magnética apresentado no
capítulo 2. Ao olhar para fotos de suas amadas, homens tendiam a apresentar uma atividade maior
nas partes do cérebro associadas com o processamento visual - além da associada com a ereção
peniana. Ele olha e fica com tesão. Já as mulheres tinham atividade maior nas partes relacionadas à
motivação, à atenção, ao processamento da emoção e à recuperação de lembranças.
A interpretação de Fisher é de que o homem pode enxergar muitas características físicas
femininas que indicarão se ela poderá oferecer e criar bebês; já a mulher não pode simplesmente
ver características que indiquem a capacidade de um homem de proteger e prover - é necessário
computar essa capacidade a partir de dados que ela armazenou na memória ao longo do convívio
com o homem.
Neste capítulo, veremos quais são as características que nos atrai em nossos parceiros: distância
da família, sistemas imunológicos diferentes, traços simétricos e comuns, características sexuais
secundárias exacerbadas em mulheres, mas não tanto em homens - pois a testosterona indica
agressividade -, aparência saudável, personalidade e valores semelhantes, e, claro, talento na hora
de seduzir.

A TRAGÉDIA DE ÉDIPO
Que cônjuge poderia ser melhor do que nossos irmãos? Um irmão e uma irmã são homem e mulher
de idades próximas, e isso já deveria bastar para haver interesse sexual entre os dois. Mais do que
isso, ter um filho entre eles traria um benefício extraordinário: a criança teria 75% dos genes de
cada um dos pais, contra 50% com filhos feitos com alguém sem parentesco. O mesmo vale no sexo
entre filho e mãe ou filha e pai, o que nos faz supor que a evolução poderia na verdade privilegiar o
incesto. Lembra-se do caso das abelhas operárias? A vantagem genética de compartilhar 75% dos
genes das irmãs as faz hiperalimentar a mãe - que de tão bem nutrida vira rainha - e se prontificar
ao suicídio pela colmeia, em vez de se reproduzir por conta própria.
Mas não procuramos ter filhos com nossos irmãos nem pais. Muito pelo contrário. Só de pensar
na ideia do incesto já sentimos asco. Essa repulsa vale para todas as sociedades humanas, o que já é
um indício de ser uma adaptação evolutiva. E de fato ela é. O custo de ter um filho com um parente
direto é muito maior do que o benefício.
Para entender o porquê, precisamos lembrar como funcionam genes dominantes e recessivos.
Nosso DNA está cheio de mutações danosas. Quando o gene mutante danoso é dominante, já era -
ele se expressará em seu portador, que ficará incapacitado. Como a busca por parceiros sexuais é
feita a partir de sinais de bons genes, o portador terá menos chances de conseguir alguém com
quem se reproduzir. Seus genes são eliminados pela seleção natural.
Isso já não acontece quando o gene mutante é recessivo. Para que a mutação se expresse, é
necessário que ela esteja presente no DNA de ambos os pais. Isso é menos provável de acontecer
quando uma pessoa procura outra com carga genética bem diferente. Mas, como parentes diretos
compartilham metade de nossos genes, o risco de combinar os mesmos genes recessivos é
imensamente maior se tivermos pais ou irmãos como parceiros sexuais.
Ter um filho com maior probabilidade de ser natimorto ou incapacitado é um investimento muito
alto e arriscado para uma mulher. São nove meses e um parto doloroso para produzir algo com
menor chance de ter sucesso na replicação de seus genes. Está nesse risco a origem evolutiva da
repulsa ao incesto.
É de se esperar que, além dessa repulsa, tenha evoluído a capacidade de identificar quem é e
quem não é nosso parente. Mas só obtivemos tal capacidade virtualmente infalível no final do século
20, com o teste de DNA. Até então, precisávamos usar três pistas: a proximidade da pessoa, o
convívio com ela e o que dizem fontes confiáveis.
É um sistema bastante falho, por sinal: foi a falta dessas três pistas que levou Édipo a ser
protagonista de uma tragédia grega. Conforme o texto de Sófocles, Édipo era filho de Laio, rei de
Tebas, e Jocasta. Laio recebeu do oráculo de Delfos a profecia de que seu filho o mataria e se casaria
com a mãe. Diante disso, abandonou o filho numa montanha. Édipo foi encontrado por um pastor e
então adotado como filho legítimo pelo rei de Corinto.
Já crescido, foi ao oráculo de Delfos e recebeu a profecia de que ele mataria seu pai e se casaria
com a mãe. Horrorizado com a ideia do patricídio e incesto, fugiu da terra de seus pais adotivos. No
caminho para Tebas, encontrou-se com o orgulhoso rei Laio, que exigiu a Édipo que lhe desse
passagem. Como Édipo se recusou a mudar seu caminho, o carroceiro de Laio o empurrou, iniciando
uma luta na qual Édipo acabou matando seu verdadeiro pai. Ao seguir para Tebas, Édipo encontrou
a Esfinge - um monstro que devorava todos os forasteiros que chegassem à cidade caso não
resolvesse o seguinte enigma: “Que animal tem quatro patas de manhã, duas ao meio-dia e três à
noite?” Édipo respondeu que era o homem, que engatinhava na infância, andava quando adulto e
usava bengala na velhice. Ao derrotar a Esfinge, que já assombrava Tebas havia tempos, Édipo foi
recebido pela população como o novo rei, e recebeu a mão da mãe-viúva Jocasta - realizando a
segunda profecia de Delfos. Édipo só descobriria que Laio era seu pai e Jocasta era sua mãe quando
já tinha quatro filhos com ela.
Mas nosso sistema de identificação é mais eficiente do que a tragédia e o Complexo de Édipo
formulado por Freud fazem crer. Casos de incesto são raros porque simplesmente não sentimos
atração por pessoas com quem crescemos juntos. A razão é simples. Quanto maior o grau de
parentesco, mais próximos uns dos outros viviam os humanos nas sociedades caçadoras-coletoras
em que evoluímos. Por isso, aqueles que se relacionavam com uma pessoa muito próxima tinham
menos sucesso em levar para frente seus genes. Dessa condição, foi naturalmente selecionado o
seguinte comportamento: você sentirá atração por desconhecidos. Mistério e novidade é sexy.
Rotina, não. Até por isso que, quando você começa a trabalhar com alguém muito bonito, a atração
nas primeiras semanas é uma, e nos meses e anos seguintes é outra - bem menor; às vezes
inexistente, como se aquela pessoa que um dia mexeu com a sua cabeça tivesse virado algo tão
sexualmente nulo quanto um irmão ou uma irmã.
Mesmo que não vivamos mais em grupos pequenos e estáveis como acontecia com nossos
ancestrais caçadores-coletores, essa estratégia continua a funcionar. Por exemplo, quando uma
criança é adotada ainda bebê, ela também não se interessará sexualmente pelos membros de sua
família de criação - mesmo que não compartilhe seus genes. Do ponto de vista biológico, ela até
poderia se atrair. Mas não é o que acontece. A receita do desinteresse não está no laço familiar, mas
na proximidade durante os seis primeiros anos de vida.
O mesmo desinteresse acontecia entre crianças que cresciam nos kibutzim - comunidades
agrícolas utópicas fundadas no início do século 20 em Israel. Num kibutz, crianças de ambos os
sexos compartilhavam a moradia desde o início da vida até o final da adolescência. Mesmo que não
houvesse segregação de gênero, era raro que, ao atingir a maturidade sexual, casassem ou tivessem
relações sexuais entre si. Em geral, procuravam um parceiro de fora do kibutz. Foi o que observou
um estudo com 2.769 matrimônios contraídos por filhos de kibutz. Deles, só 13 aconteceram entre
membros da mesma comunidade, e todos esses 13 foram entre pessoas que entraram para o kibutz
já com mais de seis anos de idade.

AQUELA QUÍMICA
A atração sexual entre a maioria dos animais é bastante simples: durante o período fértil, a fêmea
deixa para os machos pistas químicas e visuais de sua disponibilidade. Seja uma formiga, seja um
elefante, animais se comunicam por meio de feromônios - pequenas moléculas liberadas por um
indivíduo para disparar um comportamento em outro indivíduo. Existem vários tipos dessas
substâncias comunicativas - os que indicam sexo, status reprodutivo e idade, os que incitam a
atração sexual ou a reação de luta ou fuga, os que alteram o estado emocional alheio, e assim por
diante.
Mas nós somos uma exceção. Não está provado se somos capazes de influenciar diretamente o
comportamento de nossos iguais por substâncias assim. No lugar de cheiros, trocamos palavras e
gestos. Trocamos olhares intencionados, convidamos um parceiro em potencial para jantar, tocamos
o braço do outro, mexemos o cabelo, demonstramos gentileza. E falamos muito.
Mesmo assim, cientistas procuram substâncias responsáveis por aquele tipo de atração que não
somos capazes de explicar. Ainda não foi provada nos humanos a comunicação por meio de
feromônios. Mas existem substâncias que, embora não tenham a função de provocar um
comportamento específico num outro indivíduo da mesma espécie, acabam nos fazendo atraídos por
ele por tabela. Essas substâncias são as proteínas expressas pelo complexo principal de
histocompatibilidade (MHC, da sigla em inglês).
Bom, esse fenômeno é um tanto complicado, então precisamos seguir passo a passo para
entendê-lo. Vamos partir do seguinte pressuposto: quanto mais diferente for o sistema imunológico
de um parceiro sexual em relação ao nosso, mais diverso será o de nossos filhos. Isso é
extremamente importante para a garantia da sobrevivência deles, pois agentes externos nocivos
estão em mutação contínua. Com um sistema imunológico diferente do nosso, nossos filhos poderão
se proteger de novos agentes infecciosos.
Vamos agora ao segundo passo. Nossas células precisam de algo que identifique substâncias que
não deveriam estar onde estão, e que sinalizem para nosso sistema imunológico essa anormalidade
para que ele possa agir. Esse reconhecimento é feito por proteínas-bandeira expressas na membrana
de nossas células. Por exemplo, se essas proteínas reconhecerem que uma bactéria ou célula
infectada por vírus não deveria estar lá, elas avisam o sistema imunológico para que matem esse
invasor.
O grupo de genes responsável pela codificação dessas proteínas é o já mencionado MHC. Isso
significa que quanto mais diverso for o MHC de uma pessoa, mais diversas serão essas proteínas.
Disso podemos concluir que, quanto mais diverso for o MHC (e suas respectivas proteínas-bandeira)
de uma pessoa para outra, melhores parceiros sexuais serão - pelo menos do ponto de vista
imunológico.
É de se esperar que tenhamos nos adaptado com a capacidade de perceber se uma pessoa tem
um MHC parecido ou não. Só que como isso seria possível, se não somos capazes de fazer o mapa
genético de cada parceiro em potencial? É simples: pelo olfato.
Aqui vamos para mais um passo. As proteínas-bandeira codificadas pelo MHC se soltam das
membranas das células, o que permite que possamos percebê-las pelo cheiro e pelo sabor da saliva.
Como o MHC é extremamente variável, cada pessoa tem uma espécie de identidade imunológica (e
olfativa) própria. Pessoas com essa identidade bastante diferente da nossa serão percebidas como
atraentes - independentemente de serem bonitas ou feias, ricas ou pobres. É provavelmente essa a
razão por que sentimos aquela química incrível com algumas pessoas, mesmo que estejam anos-luz
de distância do nosso ideal de parceiro. E por que alguns beijos são inexplicavelmente deliciosos. A
diferença entre os sistemas imunológicos explica.
Sim, a explicação parece complexa demais para nos convencer logo de cara. É necessário testar
essa hipótese na prática. E foi o que fez em 1995 o biólogo suíço Claus Wedekind num famoso
experimento com camisetas usadas em estudantes universitários.
Primeiro, Wedekind e sua equipe mediram os sistemas imunológicos dos participantes. Depois,
pediram que ficassem alguns dias sem consumir nada com cheiro. Alho, curry, cigarro, desodorante,
perfume, sabão aromatizado... tudo isso foi proibido. Então, os voluntários dormiram vestindo uma
camiseta de algodão, devolvida aos pesquisadores no dia seguinte.
As camisetas foram então alinhadas para que novos participantes fossem dar uma cheirada nelas.
O resultado foi que os julgadores preferiram as camisetas usadas por quem tinha um sistema
imunológico diferente. Já o odor das vestidas por quem tinha sistema imunológico parecido foi
considerado desagradável. Um sistema era a tampa da panela do outro.

VISUAL HARMÔNICO
Maravilha, sentimos tesão pelas proteínas desprendidas pelas células de pessoas com sistema
imunológico diferente do nosso. Mas fotografias não têm cheiro, e isso não nos impede de avaliar se
um rosto retratado é bonito ou não. Para nós, o visual conta muito. E quanto mais simétricos e
comuns forem os traços de uma pessoa, mais agradáveis serão para nosso cérebro.
Dobre longitudinalmente uma fotografia em que você está de pé com postura reta. Seus braços,
pernas, orelhas e olhos de um lado vão se encontrar de outro. Isso não aconteceria com uma
fotografia de seus órgãos internos - temos um coração, um pâncreas, um fígado. Mas ao menos por
fora somos predominantemente simétricos. Essa simetria não é necessária e, se observarmos bem,
perceberemos que ela tem suas falhas. É comum mulheres terem mamilos vesgos, homens terem um
testículo mais baixo do que o outro e o pênis torto, uma narina ter formato diferente da outra, um
olho um pouco mais fechado do que o outro. Ainda assim, na média nossa simetria surpreende.
Em várias espécies, a simetria serve como sinal de saúde e interfere na escolha de parceiros
sexuais. Isso porque ela pode indicar algum defeito de desenvolvimento antes e depois do
nascimento, causado por doenças, toxinas ou altos níveis de estresse.
A qualidade e a quantidade de nutrientes passados da mãe ao feto podem variar muito. A
deficiência de vitamina B, por exemplo, diminui a produção de DNA e pode causar mudanças no
código genético. Isso faz com que os “tijolos” para construir o corpo não parem no lugar certo na
hora certa. Uma criança que cresce infectada gravemente por doenças pode ter seu
desenvolvimento prejudicado - e sua simetria também.
Além disso, a simetria não pode ser simulada com facilidade. Podemos passar uma base na pele
para esconder rugas e manchas, tingir os cabelos para eliminar fios brancos, implantar fios ou usar
uma peruca para não parecer careca, mas não é da noite para o dia que a coluna, os dentes e o nariz
ficarão perfeitamente alinhados. A simetria pode não ser garantia, mas é um indicador fiel de que o
parceiro em potencial terá menor probabilidade de carregar tanto mutações genéticas indesejáveis
quanto um sistema imunológico deficiente.
A pessoa cresceu conforme o plano e provavelmente dará filhos conforme o plano.
Outro fator que influi na beleza é a normalidade dos traços. Rostos que se aproximam da média
dos traços faciais de uma população são considerados bonitos. Essa descoberta veio por acaso: dois
séculos atrás, na busca de uma hipotética aparência típica de criminosos, Francis Galton começou a
misturar rostos de pessoas diferentes a partir de fotografias. E se surpreendeu que, conforme os
rostos eram misturados, mais bonito ficava o resultado.
Disso surgiram duas possibilidades. Conforme as fotografias eram fundidas, a textura da pele
parecia mais suave, pelo desaparecimento das rugas; disso se conclui que quanto mais jovem
parecesse a pele, mais atraente era o rosto. A outra hipótese era de que a média de feições
eliminava traços muito incomuns.
Os dois argumentos são válidos. Uma pele com mais manchas e rugas não mostra só idade como
também doenças, e traços muito fora do normal podem ser associados a doenças físicas e mentais.
Mas, do ponto de vista evolutivo, a segunda hipótese é mais forte: escolher um rosto comum
aumenta a chance de ter filhos sem mutações prejudiciais.
Podemos assim entender por que um rosto é bonito. Mas o que dizer de um rosto extremamente
bonito? Uma supermodelo é mais bonita do que a média dos traços de uma população. Gérard
Depardieu era um sex-symbol quando jovem, embora seus traços não fossem nada simétricos nem
comuns. A atriz estrábica Cristiana Oliveira virou modelo de beleza quando interpretou Juma
Marruá na novela Pantanal. Essas pessoas têm algo a mais. Algo extraordinário. O que é, afinal, que
as pessoas lindas têm?

SUPERMULHERES
Vamos propor uma hipótese. Se a função do sexo é procriar, a atração sexual pode ter evoluído de
forma a tornar visualmente mais desejáveis os indivíduos mais aptos à procriação. Se mulheres
desenvolvem quadris e seios maiores do que os dos homens para dar à luz e amamentar seus filhos,
seria natural que as curvas femininas fossem percebidas como sensuais. O psicólogo Devendra
Singh, da Universidade do Texas, foi o pioneiro no estudo da atração sexual e o corpo de violão.
Mostrou para centenas de pessoas de diferentes idades e culturas, corpos femininos de diferentes
tamanhos e formas. Todas consideraram a razão de 7 ou menos para cintura e 10 para quadril a
mais atraente. Mediu também a proporção corporal de ganhadoras de concursos de beleza por sete
décadas e de garotas das capas da revista Playboy. O resultado foi o mesmo. Depois, partiu para
imagens de ressonância magnética para identificar quais proporções estimulavam mais os centros
de recompensa no cérebro de homens. Novamente, a que os deixava mais satisfeitos foi a de 7 por
10.
Só que essa explicação não basta quando vamos além das curvas do corpo. Por que certos traços
do rosto são lindos? Cabe aqui então mais uma hipótese: a de que, quanto menos se parecer com um
homem, mais linda será a mulher. Ela já vai ser bonita se estiver bem próxima da média dos traços
de mulheres. Mas se tornará mais linda quanto menos características masculinas e mais femininas
tiver. E isso vale tanto para o corpo quanto para o rosto.
Quando chegamos à adolescência, nossos corpos começam a se transformar sob a influência dos
hormônios sexuais. A testosterona interfere no crescimento ósseo. No homem, a testa se projeta na
altura das sobrancelhas de forma mais acentuada, a linha que liga as maçãs passando pelo nariz
também se expande e o maxilar se alarga. Já a mulher tem uma quantidade maior de estrogênio, que
impede tamanho crescimento ósseo. Por isso, ela mantém traços do rosto infantil - sobrancelhas e
maxilar pouco proeminentes e com curvas suaves, lábios grossos, nariz pequeno e olhos grandes em
relação ao restante do rosto. Traços masculinizados nelas indicariam muita testosterona no sangue,
o que interfere na ovulação e aumenta a dificuldade de engravidar. É o que acontece, por exemplo,
com a síndrome do ovário policístico.
Seguindo esses parâmetros, o professor David Perrett, especialista em reconhecimento facial da
Universidade St. Andrews, na Escócia, criou no computador imagens feminilizadas, neutras e
masculinizadas de rostos de mulheres descendentes de europeus, africanos e asiáticos. Dos
respondentes, 95% afirmaram que as imagens feminilizadas eram mais atraentes. A exceção
aconteceu entre homens da Jamaica rural, que preferiram traços levemente masculinos em suas
mulheres. Segundo Perrett, esse maior grau de masculinização pode ser percebido por camponeses
jamaicanos como sinal de vigor físico.
Mas não é necessário manipular digitalmente fotografias de mulheres para entender como a
exacerbação de traços femininos embeleza as mulheres. Basta ver o que fazem a maquiagem e
várias outras ferramentas estéticas.
Saltos altos fazem os pés parecerem menores, as panturrilhas parecem mais firmes, a lombar fica
mais curva (a famosa lordose), o que arrebita o bumbum e os seios, e os movimentos dos membros
inferiores destacam os quadris. A depilação elimina os pelos, tão masculinos. No século 19, o
corselete ajustava a cintura para valorizar as formas de violão - o que hoje é feito com próteses de
silicone e enchimentos. Com pinças ou raios laser, as sobrancelhas são afinadas e depois delineadas
com lápis num desenho arqueado para suavizar a testa. O batom deixa os lábios coloridos para
parecerem mais cheios - isso quando não se parte para o colágeno. Sombras em volta dos olhos
fazem-nos parecer maiores.
A juventude em mulheres também é um parâmetro de atração física. Segundo a pesquisa de
David Buss, homens em diversas culturas querem em média uma noiva 2,66 anos mais nova, e
mulheres, um noivo 3,42 anos mais velho. A razão evolutiva é simples: mulheres jovens que ainda
não tiveram filhos têm uma longa vida reprodutiva pela frente, e não carregam filhos de outros
homens. Por isso, a pele rija, lisa, hidratada, a ausência de estrias e os seios firmes são tão
desejáveis. Bom, em sociedades mais afluentes de hoje em dia, o desejo por mulheres muito mais
novas pode ser menos importante. Elas têm menos bebês, são expostas a menos doenças,
alimentam-se muito melhor e enfrentam menos eventos traumáticos, como a morte de filhos,
estupros, guerras tribais. Mesmo assim, mulheres correm atrás do tempo, alimentando uma
indústria de cosméticos e de cirurgia plástica para cuidar de suas peles e de demais sinais da idade.
E essa preocupação das mulheres com sua beleza não as transformaria em meros objetos dos
homens? Não é o que pensa Steven Pinker. Para eles, as sociedades realmente machistas são
aquelas que escondem a mulher - que impedem que elas saiam sozinhas de casa, que lhes obrigam a
cobrir o corpo até a cabeça, que impedem que explorem sua beleza. “Ao longo da história, os críticos
da beleza têm sido homens poderosos, líderes religiosos, às vezes mulheres mais velhas e médicos.
As entusiastas são as próprias mulheres”, diz em Como a Mente Funciona. Em sociedades liberais,
mulheres podem usar sua aparência como vantagem na competição por maridos, status e atenção de
homens com poder e recursos. Já em sociedades opressivas, homens tiram de suas mulheres e filhas
essa vantagem, barrando o uso da beleza.
A esta altura, você pode se perguntar se a percepção da beleza não seria influenciada pela
cultura. De fato, convivemos com pessoas que dizem o que é bonito e o que é feio. Além disso,
pertencemos a subculturas de tatuadores, emos, metaleiros, fisiculturistas, ursos, góticos, carecas,
mauricinhos. Mas um corte de cabelo diferente, piercings, tatuagens, dreadlocks, alargadores de
lóbulo de orelha, anéis extensores de pescoço, sombras verdes, azuis, metálicas, uso de couro e
outras alterações e acessórios no corpo indicam apenas o quão rica, bem relacionada, feroz e na
moda é a pessoa. Podem ser importantes para indicar a que grupo pertence, mas isso tem tanto
impacto na escolha do parceiro quanto a religião e o posicionamento político. Mas não dizem
respeito ao que realmente conta para a atração sexual: a saúde. Dentes tortos ou ausentes,
deformidades físicas, pele enrugada, manchada ou com lesões, cabelos ralos - tudo isso é visto como
ponto negativo na escala de atração, independentemente da cultura.
Por outro lado, alguns gostos aparentemente culturais podem esconder motivações biológicas. O
peso, por exemplo. Sociedades rurais e nômades que passam pelo risco de desnutrição tendem a
valorizar mulheres mais carnudas, pois esse é um indício de afluência e de maior chance de
sobreviver durante a carestia. Já sociedades urbanas nas quais a oferta de alimentos é abundante,
ser mais magro é um sinal de menor risco de doenças cardiovasculares.
Ainda assim, a gordura e a magreza desejáveis nas mais diversas culturas não extrapolam uma
faixa de peso e uma proporção entre cintura e quadril ideais, como observou Singh. O que dizer de
modelos esquálidas em revistas de moda? Sim, elas podem até parecer elegantes. Mas raramente
você encontrará um homem heterossexual numa banca em busca de satisfação sexual com editoriais
de moda. Como diz Pinker, modelos posam para outras mulheres. Sua magreza não é sexy, mas sim
um símbolo de status entre mulheres em sociedades onde o difícil não é ganhar peso, mas sim
perdê-lo. É como um homem fisiculturista com veias saltando pela testa. Não atrai mulheres, apenas
a admiração ou inveja de outros homens. Para entender o que realmente faz homens babarem, é
preciso folhear outro tipo de revista - aquelas em que o foco não são as roupas que as modelos
usam, mas o que as modelos escondem sob suas roupas.

PARA A CASA OU PARA A CAMA?


Depois de analisar as características sexuais secundárias das meninas e como elas interferem na
percepção da beleza feminina, tudo levaria a crer que traços extremamente masculinos seriam
valorizados em homens. Mas foi aí que Perrett teve uma surpresa em suas pesquisas.
Homens podem até desejar ter traços masculinos meio exagerados, pois eles indicam uma
superioridade física em relação a seus rivais. Fisiculturistas, por exemplo, não buscam
necessariamente impressionar as mulheres, mas aumentar sua autoestima frente a outros homens.
E, se tentarem impressioná-las com bíceps de 50 centímetros de diâmetro, provavelmente não terão
sucesso. Perrett observou que, ao mostrar conjuntos de três imagens de homens - uma sem
retoques, outra com traços masculinizados e outra com traços afeminados -, mulheres de diversas
culturas preferiram as afeminadas. Para elas, as fotografias masculinizadas pareciam mostrar
homens menos emotivos, menos honestos, menos cooperativos e menos aptos a ser bons pais.
“Esses julgamentos parecem estereotipados, mas ainda assim podem ter ao menos alguma base
no comportamento real (...). Num experimento em que jogadores podem ganhar recursos, defendê-
los e roubar, homens com traços masculinos tenderam a optar por retaliar agressivamente quando
outros jogadores roubavam deles - e então roubá-los em troco. Já os com traços femininos tinham
maior probabilidade de construir defesas contra infrações futuras”, conta Perrett em In Your Face.
Por outro lado, mulheres consideraram os rostos masculinos mais fortes e dominantes.
Se você for um homem de traços muito masculinos, porém romântico, não se desespere. Você não
é apenas um brinquedo sexual para mulheres no período fértil. Mulheres veem num homem muito
mais do que a largura do seu queixo. Vamos ver o caso de atores brasileiros. Tanto Rodrigo
Lombardi quanto Alexandre Frota têm traços fortemente masculinos. No entanto, a imagem de um é
de galã, e a do outro, de bad boy. O componente que torna o galã um parceiro desejável é simples: o
sorriso. Afinal, homens com uma aparência positiva e amigável parecem ter chance maior de ser
bons com crianças - e com a esposa também, claro. O bom humor é atraente e, por isso, uma
ferramenta eficaz na hora de flertar.
A razão para elas não procurarem garanhões para se casar não é nenhum segredo. É só
lembrarmos o que a mulher da savana procurava em seu parceiro nos tempos da caça e coleta. O
que ela disputou ao longo da evolução com outras mulheres não eram reprodutores (cujas
características desejáveis são visuais) e, sim, provedores (cujas características desejáveis são
observadas a partir de ações espalhadas no tempo).
Isso conta muito na forma como a mulher percebe o homem. Para começar, a aparência do
parceiro não é tão importante - tanto que, ao ver imagens de seu parceiro romântico, a mulher ativa
menos as partes de processamento visual no cérebro do que o homem. Afinal, o ideal de provedor
não era exatamente um caçador de queixo largo, testa projetada e músculos definidos, mas, sim, um
companheiro fiel e solícito, disposto a dedicar seu tempo e energia à criação dos filhos. Entre força
e comprometimento, o que contava era o comprometimento, ainda que a força fosse desejável.
Pelo menos na maior parte do tempo. Mulheres são de fase. Quando atingem o auge do período
fértil, elas tendem a mudar de preferência. Homens com traços fortemente masculinos passam a ser
mais desejáveis. Quando chega a hora de escolher os genes que se combinarão com os seus para ter
filhos, o bruto de rosto quadrado, comportamento assertivo e voz grossa se torna sexy. Ou seja, faz
sentido do ponto de vista biológico que mulheres procurem um bom moço para viver, mas que, no
momento em que estão mais férteis, fantasiem com um garanhão, que tem maior probabilidade de
produzir filhos fortes e saudáveis.
Isso significa que mulheres são naturalmente predispostas à traição? Talvez, mas provavelmente
não. O ciclo menstrual é apenas um fator dentre inúmeros outros que influenciam o comportamento
sexual da mulher. Ela não é uma refém de seus hormônios. Essas substâncias podem modular seu
comportamento, mas não o determinam. Os estímulos para não trair são mais fortes. E aí a
qualidade do relacionamento tem uma importância enorme. Quando uma mulher se compromete
com um relacionamento que inclui filhos, a vantagem de buscar genes de um pai mais forte e
saudável fora do relacionamento se torna muito menor do que o custo de perder um companheiro
dedicado e bom provedor. Nas sociedades caçadoras-coletoras, a fidelidade foi necessária para
manter essa parceria. Sem ela, uma espécie que precisa de tutela por sete anos para sobreviver não
teria evoluído. É verdade que muitos pais não sabem que seus filhos não são biologicamente seus -
mas não numa proporção tamanha que teria acabado com os cuidados paternos.

ALMA GÊMEA OU CARA-METADE?


Saiamos agora do físico e vamos aos hábitos e personalidade. Será que procuramos alguém igual a
nós, ou opostos realmente se atraem? Psicólogos tentam descobrir isso desde a década de 1980 em
dezenas e dezenas de pesquisas com centenas a milhares de casais. E até hoje não temos uma
resposta convincente. O que as pesquisas concluem é que algumas características tendem a ser
mais compartilhadas, e outras, menos. E não há provas de que a coincidência de certas
características seja resultado de uma busca ativa por uma alma gêmea, ou se aconteça
simplesmente porque essas características são bem comuns no meio a que uma pessoa pertence.
O consumo de álcool e de cigarro tem correlação significante. Se numa escala de correlação -1
significar que todo mundo busque no outro a característica oposta, +1 significar que todo mundo
busca a mesma característica, álcool e cigarro têm uma correlação de + 0,57 e + 0,51 nos EUA. Isso
também acontece com posição política (+ 0,51) e religiosidade (+ 0,60).
Mas essa correlação pode significar três coisas diferentes. Digamos que evangélicos procurem
também parceiros evangélicos - ou que seus namoros com pessoas de outra crença ou sem crença
nunca tenham dado certo a ponto de chegarem ao casamento. Aí, teremos uma preferência de fato.
Mas podemos considerar também que evangélicos tenham mais contato social com seus iguais, seja
pelas amizades da família, pelo bairro onde moram, pelo grupinho na escola ou pelas pessoas que
conheceram na igreja. Não é que um tenha procurado outro evangélico - apenas aconteceu de ter
menos contato com pessoas de outra crença. Aí, o que há não é preferência, mas “homogamia”. E há
ainda outra possibilidade: talvez seu cônjuge tenha se convertido e passado a frequentar a igreja
com o passar do tempo. É o caso da convergência.
Vamos para outras características. Escolaridade, inteligência e valores contam bem menos do que
política e religião. Mas ainda contam. Já traços de personalidade têm uma correlação muito pequena
ou nenhuma. Justamente a personalidade, aquele conjunto de características que atribuímos à nossa
alma gêmea. Isso tem uma possível explicação também na homogamia. Você pode conviver com
muitas pessoas de idade, status socioeconômico, religião e nível educacional parecidos. Mas nas
suas panelinhas haverá provavelmente pessoas muito diferentes nos cinco grandes traços de
personalidade analisados por psicólogos: extroversão, amabilidade, meticulosidade, abertura para o
novo e estabilidade emocional.
Ou seja, nossa alma gêmea não parece ser tão definida assim pela semelhança de sua alma.
Bom, se não podemos concluir que procuramos intencionalmente pessoas com atitudes e
personalidade iguais às nossas, vamos mudar nosso parâmetro. Será que pessoas parecidas têm
casamentos mais felizes? Pesquisas americanas mostram que não há correlação importante entre a
qualidade de seu relacionamento e a escolha de cônjuges de religião, posicionamento político,
valores ou personalidade parecidos.
Talvez a questão esteja toda posta de forma errada. A personalidade influi na felicidade? Sim.
Uma pessoa tende a ser mais feliz quanto mais altos forem os níveis das cinco dimensões da
personalidade. E esse bem-estar é contagiante. Cônjuges de pessoas mais amáveis, meticulosas e
emocionalmente estáveis também são mais felizes no relacionamento e na vida, descobriu a
psicóloga Portia Dyrenforth, da Hobart and William Smith Colleges, de Nova York, num estudo com
mais de 10 mil casais. Ou seja, importante não é ter personalidade parecida, mas ser agradável,
cuidadoso e estável.
Entre
iguais

Uma porção considerável da


humanidade se atrai por parceiros
do mesmo sexo. Saiba por que
algumas pessoas nascem
homossexuais. E, de quebra,
conheça o movimento gay do mundo
animal.
As fêmeas dos macacos da neve - uma espécie que só existe no Japão - passam até uma semana
cortejando umas as outras, mesmo quando não faltam machos para satisfazê-las - o que não impede
que elas copulem também com machos e fiquem grávidas. O carneiro selvagem vive a maior parte
do ano em sociedades estritamente homossexuais, cujo comportamento inclui o estímulo oral e anal.
Os machos das girafas, dos golfinhos-nariz-de-garrafa, das orcas e de muitos outros mamíferos
fazem orgias gays, enquanto bonobos se beijam e fazem luta de espada e masturbação mútua.
Leões, elefantes e outros 30 mamíferos e 70 aves vivem relacionamentos homossexuais duradouros.
O pássaro-cantor atrai um macho para construir um ninho e criar os ovos abandonados. Esses são
alguns dos comportamentos homossexuais de 450 espécies descritas pelo biólogo americano Bruce
Bagemihl em 1999 nas 750 páginas do livro Biological Exuberance: Animal Homosexuality and
Natural Diversity.
Disso já surgiram várias teorias. Carneiros e outros machos fazem para promover a intimidade,
ligação e diminuir a agressão entre indivíduos do mesmo sexo, segundo Joan Roughgarden,
professora de biologia de Stanford. Os bonobos, por exemplo, vivem em grupos de 20 ou mais
indivíduos e precisam aliviar a tensão trazida pela concorrência por comida e atenção. Pássaros
aumentam a chance de sobrevivência de filhotes ao cuidarem deles em parcerias homossexuais. Ou
seja, os comportamentos que favorecem a reprodução e a sobrevivência vão muito além da relação
entre macho e fêmea.
Mas uma coisa é um comportamento homossexual. Outra é a preferência pelo mesmo sexo em
detrimento do sexo oposto. E esse comportamento é especificamente raro. Até hoje, foi observado
em 8% dos carneiros domesticados - e em parte considerável dos humanos. A sexóloga Carmita
Abdo fez em 2000 um estudo com 2.835 brasileiros. Dos homens, 3,9% se declararam homossexuais
e 4,7%, bissexuais; das mulheres, 1,9% se declarou homossexual e 1,2%, bissexual. Entre nós, a
homossexualidade está presente em culturas por todo o globo, é constante ao longo da vida e não
tem nenhuma evidência científica de que possa ser revertida.
Tudo indica, então, que a atração pelo mesmo sexo tenha uma causa biológica. Como é possível,
no entanto, explicar que um possível “gene gay” tenha sobrevivido, apesar de, por definição, a
homossexualidade não ajudar no sucesso reprodutivo? Que diferença física pode ser responsável por
um comportamento sexual diferente do da maioria?

PARADOXO EVOLUTIVO
O psiquiatra da Universidade de Boston Richard Pillard é gay - assim como seu irmão e sua irmã.
Ele descobriu que seu pai também era. E que sua filha é bissexual. Não foi surpreendente, portanto,
a escolha por sua área de pesquisa: homossexualidade em famílias.
Em suas pesquisas, encontrou que entre 7% e 16% dos irmãos de gays também eram gays - mais
do que na população em geral. No caso de gêmeos idênticos, isso sobe para 50%. Pesquisas
semelhantes foram feitas em vários países: na Austrália, encontraram-se taxas de 30% para gêmeos
homens e 50% a 60% para gêmeas mulheres; na Suécia, 34% a 39% para homens e 18% a 19% para
mulheres. Na Finlândia, 45% para homens e 50% para mulheres. Apesar da variação, esses estudos
indicam que parte considerável da homossexualidade é herdada.
Agora, haveria um “gene gay” humano? A ciência ainda não sabe. Vamos supor que ele exista. Se
assim for, temos um aparente paradoxo: homossexuais têm menos probabilidade de ter filhos, o que
diminuiria a chance de levar um “gene gay” para frente. Mas a questão é mais complexa do que
parece.
Existem, sim, genes que sobrevivem apesar de diminuírem o sucesso reprodutivo. Se forem
recessivos, eles só se expressarão se forem herdados tanto do pai quanto da mãe (arranjo
homozigoto). Já uma pessoa que o herdar de um só lado (heterozigoto) poderá passá-lo para frente
“escondido”, sem que ele se expresse. E, mesmo que a homossexualidade acabe com o interesse
pelo sexo oposto, homossexuais historicamente se obrigaram ou foram obrigados a se casar e ter
filhos.
Por outro lado, o “gene gay” pode trazer um sucesso reprodutivo indireto. Mesmo que não
tenham filhos, em famílias grandes eles podem contribuir no sucesso reprodutivo de seus irmãos e
irmãs, ajudando-os na criação de sobrinhos. Numa família de caçadores-coletores, um adulto sem
filhos é valioso para a preservação do grupo: ele pode usar a energia que gastaria para alimentar
seus rebentos indo atrás de comida para os filhos de seus irmãos. Esses sobrinhos, no ambiente
inóspito de dezenas de milhares de anos atrás, naturalmente teriam mais chance de sobreviver do
que as outras crianças da savana. E levariam para frente o “gene gay” da família - gene que tinha se
manifestado apenas naquele tio. Mas que nas próximas gerações apareceria nos descendentes dos
sobrinhos. Ou seja: o tal gene talvez tenha mais ajudado na reprodução de seus donos do que
atrapalhado - e por isso mesmo ele continuou firme e forte.
Outra hipótese - mas que só explicaria a homossexualidade masculina - é a de que exista um gene
responsável por engatilhar uma espécie de “atração extra” por homens - seria o “gene da
androfilia”. Em mulheres, esse gene faria com que fossem “hiper-heterossexuais”, com mais vontade
de fazer sexo com homens - e assim seria passado para frente com eficiência. Mas, em homens,
levaria ao comportamento homossexual. Ou seja, continuaria a passar para frente ao influenciar o
comportamento sexual da mãe, apesar de diminuir o sucesso reprodutivo do filho homem. Isso
parece ser apoiado por estudos que mostram taxas de reprodução maior entre mulheres com
parentes gays do que entre outras, e por outros que mostram que homossexualidade é mais comum
entre meios-irmãos que são filhos da mesma mãe - e menos comuns entre os meios-irmãos que
compartilham o mesmo pai. Por esse ponto de vista, os gays são gays por causa da mãe - só que de
uma forma bem diferente daquela que Freud pudesse imaginar.
E uma última hipótese é que não há gene da homossexualidade. Ela seria só parte de um pacote
de vários traços femininos - o que inclui maior empatia e menor agressividade. Homens com essas
características, como já vimos, atraem mais as mulheres. Quando esse pacote vem com pouca força,
o homem tem menos chance de atrair uma mulher (fica “macho demais”, digamos). Quando vem
com muita força, por outro lado, ele acaba com menos chances de se sentir atraído por uma mulher.
Isso, em tese, gera a situação de equilíbrio que observamos na sociedade - o equilíbrio que
mantém uma participação minoritária constante de gays e de ogros. Essa hipótese ganhou peso com
estudos do Instituto de Pesquisa Médica de Queensland, Austrália, que mostraram que homens com
leves características femininas têm um número maior de parceiras sexuais, e mulheres com leves
características masculinas têm um número maior de parceiros sexuais.

CÉREBRO GAY
Não existe, portanto, nada senão hipóteses sobre um “gene gay”, “androfílico” ou “afeminado”. Mas
uma coisa já está provada. Os cérebros de heterossexuais e de homossexuais têm diferenças entre si
da mesma forma como existem diferenças entre os cérebros de mulheres e de homens. Em alguns
aspectos, cérebros de gays se assemelham aos de mulheres heterossexuais, e os de lésbicas, aos de
homens heterossexuais. E neurocientistas interpretam como a grande responsável por isso a
exposição de testosterona durante um período crítico quando a pessoa ainda é um feto. Ou seja, não
é nada que seja determinado pelos programas de televisão a que uma criança assiste ou pelas
amizades que um adolescente cultiva.
Para entender como isso acontece, vamos voltar aos anos 70, quando o neuroanatomista Roger
Gorski, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, identificou pela primeira vez diferenças entre
cérebros de machos e fêmeas de ratos. Enquanto estudava o hipotálamo - uma região na base do
cérebro com papel importante na regulação da fome, da sede e de comportamentos sexuais -, sua
equipe observou que a área pré-óptica medial possuía um conjunto de células muito maior nos
machos do que nas fêmeas. Chamaram então essa área de núcleo dimórfico da área pré-óptica.
Estudos seguintes mostraram essa diferença em outros mamíferos, incluindo primatas.
Humanos também têm uma área correspondente, que é chamada de terceiro núcleo intersticial
do hipotálamo anterior (INAH3). Em homens, é de duas a três vezes maior do que em mulheres.
Passadas duas décadas, o neurocientista Simon LeVay, autor do livro Gay, Straight, and the
Reason Why, observou em autópsias que o tamanho do INAH3 de homens gays era menor do que
em héteros. Era a primeira evidência científica de que gays tinham alguma diferença na constituição
de seu cérebro. Em 2008, o neurocientista Qazi Rahman, do Instituto Karolinska, da Suécia,
comparou 90 cérebros de homens e mulheres homo e heterossexuais e identificou que gays
compartilham com mulheres heterossexuais uma simetria entre hemisférios direito e esquerdo do
cérebro, enquanto lésbicas e homens heterossexuais têm o hemisfério direito levemente maior.
Dessa vez, a descoberta não era diretamente relacionada com o comportamento sexual, mas sim
com diferenças cognitivas entre gays e héteros que já haviam sido identificadas em estudos
anteriores. Por exemplo: gays têm menos percepção espacial do que homens heterossexuais. Isso
significa que eles têm mais dificuldade na hora de encontrar o caminho de volta quando estão
perdidos, por exemplo - sim, o clichê do marido que não gosta de pedir informação na rua porque
tem certeza de que sempre sabe onde está tem base científica. Por outro lado, os gays geralmente
têm maior fluência linguística, tal como mulheres - sim, o clichê do cabeleireiro que não para quieto
também tem base científica.
Mas de onde vêm essas diferenças na arquitetura do cérebro de acordo com o sexo e com a
orientação sexual? Para saber isso, precisamos explicar primeiro como os cérebros de homens e de
mulheres se diferenciam ainda no útero da mãe. Enquanto mulheres possuem dois cromossomos X,
homens têm um par XY. É um dos genes presentes no cromossomo Y - o SRY - o grande responsável
pela iniciação do desenvolvimento do homem. Sem ele, o corpo se desenvolveria dentro do “molde”
feminino, sendo ou não sendo mulher.
Na quinta semana da gestação de um feto masculino, o SRY instrui dois retalhos de tecido
embrionário a se desenvolver em testículos, enquanto barra a formação do útero. E, da 8ª à 24ª
semana, esses testículos passam a produzir altos níveis de testosterona no feto masculino. Essa
diferença hormonal entre fetos masculinos e femininos vai ser responsável por uma série de
diferenças no desenvolvimento do cérebro que só ocorrem nesse período específico.
Como tantos outros fatores durante a gestação, essa exposição a hormônios androgênicos varia a
cada caso. Um feto masculino pode ter, naquele período extremamente específico, uma exposição
menor à testosterona, e um feto feminino pode ter uma exposição maior. Cabe aqui, portanto, uma
hipótese: a de que esse nível de testosterona levará ao desenvolvimento de um cérebro com
características mais femininas ou mais masculinas, apesar do sexo do feto.
Isto é, mentes com características masculinas ou femininas variam não só conforme o sexo da
pessoa, como também entre indivíduos do mesmo sexo. Assim como homens são mais agressivos e
sistematizadores do que mulheres, alguns homens podem ser mais empáticos do que outros. E isso
pode se estender a seu comportamento sexual.
Se isso é determinado por genes, continua em aberto. Afinal, há mais variáveis em jogo, explica
LeVay. Genes não organizam o cérebro em detalhes tão precisos. Eles apenas instruem tendências, o
que dá margem para bastante variação aleatória. E há ainda influências ambientais sobre o que
acontece no útero. É o que acontece com ratas grávidas. Quando elas passam por estresse muito
forte durante o período de diferenciação sexual do cérebro de seus fetos, o nível de testosterona fica
mais baixo do que o normal - e os filhotes mais tarde acabam tendo um comportamento sexual
afeminado. Por exemplo, têm maior probabilidade de exibir lordose (comportamento típico feminino
para atrair machos) e de preferir machos.

BRINCAR DE BONECA
Não há mais dúvidas de que meninos e meninas nascem com cérebros diferentes, e que isso leva a
diferenças cognitivas. Quando ainda são bebês, elas preferem olhar para faces, enquanto eles
preferem olhar para móbiles. Mais tarde, eles em geral se dão melhor em tarefas visuo-espaciais,
como acertar alvos e fazer rotação mental de imagens tridimensionais. São também mais ativos. Já
elas em geral têm maior fluência verbal e se interessam mais por pessoas do que por objetos.
Algumas teorias afirmam que essas diferenças são resultado do encorajamento dos pais, da pressão
do grupo e de outras formas de socialização. Pode haver, de fato, influência do ambiente. Mas a
explicação da neurociência é outra. Como acabamos de ver, nascemos assim por causa da exposição
à testosterona entre a 8ª e a 24ª semana de gestação. Uma menina pode ter um cérebro mais
masculino - ou seja, mais sistematizador - e um menino pode ter um cérebro mais feminino - ou seja,
mais empático.
Para verificar essa hipótese - que também tem impacto em transtornos mentais relacionados à
sistematização, como o autismo -, cientistas do Centro de Pesquisa do Autismo da Universidade de
Cambridge fizeram vários estudos comparando o nível de testosterona no líquido amniótico de mães
grávidas com as características comportamentais e cognitivas dessas crianças quando tinham entre
seis e dez anos. E, de fato, crianças expostas a mais testosterona se tornaram mais
sistematizadoras, e as expostas a menos testosterona se tornaram mais empáticas -
independentemente de seu sexo.
Vamos dar agora um pulo para diferenças cognitivas em adultos homossexuais. De seis estudos
com tarefas visuo-espaciais, cinco mostraram que homens gays têm um desempenho pior em tarefas
visuo-espaciais do que homens heterossexuais, e um não mostrou diferença nenhuma, enquanto dois
estudos mostraram que lésbicas têm melhor desempenho nessas tarefas do que mulheres
heterossexuais, e quatro ou não mostraram diferença ou não incluíam lésbicas. Outro estudo mediu
a fluência verbal entre homens e mulheres homossexuais e heterossexuais. Gays e mulheres
heterossexuais se deram melhor do que lésbicas e homens heterossexuais.
Temos agora o ponto A e o ponto B. Seria possível ligá-los e afirmar que um menino que não
gosta de jogar bola vai virar gay, e uma menina que não se interessa por bonecas vai virar lésbica?
Não necessariamente. Mas dezenas de estudos já mostraram uma correlação forte entre crianças
que se tornarão adultos homossexuais e suas características comportamentais e cognitivas.
A maioria desses estudos se baseia em entrevistas sobre como adultos hétero e homossexuais
eram na infância. Uma pesquisa canadense de 1983 concluiu que gays eram, quando crianças,
fisicamente menos agressivos do que os meninos que se tornariam adultos heterossexuais. Outro
estudo da UCLA com 792 pessoas mostrou que crianças que se tornariam homossexuais
participavam menos de atividades típicas de seu sexo e mais de atividades atípicas. A comparação
de 41 estudos semelhantes confirma que a homossexualidade é relacionada a um comportamento
não-conformista com o gênero já na infância - mais em meninos, e menos em meninas.
Um dos poucos estudos que, em vez de fazer retrospectiva, acompanhou o desenvolvimento de
crianças foi o feito pelo psicólogo Richard Green. Ele observou 44 meninos que diziam querer ser
meninas e 35 meninos não-afeminados. Dos não-afeminados, todos se tornaram heterossexuais aos
18 anos. Dos 44 afeminados, 11 se tornaram heterossexuais, e os demais, homo ou bissexuais. Como
outros estudos, esse mostrou que uma criança que não se encaixa em seu gênero na infância tem
mais chance de se tornar homossexual, ainda que isso não ocorra em todos os casos.
E o que dizer quando homossexuais amam? Nesse ponto, a diferença entre hétero e
homossexuais é pequena. Estudos mostram que gays são como homens heterossexuais no forte
interesse por estímulos visuais, por parceiros jovens para relacionamentos estáveis (e dão uma
envelhecida quando procuram relacionamentos passageiros), e na busca por sexo sem compromisso.
A diferença é que os gays não têm de enfrentar a relutância feminina, então eles tendem a ter mais
parceiros sexuais do que a média dos héteros ao longo da vida. Já lésbicas têm o mesmo baixo
interesse em sexo sem comprometimento ou em parceiros múltiplos como mulheres heterossexuais -
porém, mais interesse em estímulos visuais.
Já quando a questão é o ciúme, gays são mais parecidos com mulheres heterossexuais, e lésbicas
são mais parecidas com homens homossexuais, concluiu um estudo da psicóloga Pieternel
Dijkstra com 138 gays e 99 lésbicas holandeses em 2001. Quando lhes perguntaram o que mais
incomodaria, a infidelidade emocional ou sexual, gays enfatizaram mais a emocional, e lésbicas, a
sexual.
Epílogo

Qualquer forma vale a pena

Mães solteiras, mulheres chefes-de-


família, casais sem filhos: como a
humanidade está reinventando o
universo dos relacionamentos – e
exercendo um poder de escolha
inédito na história.
Já passavam 40 minutos desde a meia-noite de 16 de junho de 1977 quando o último - e decisivo -
voto aprovou no Congresso Nacional a emenda constitucional que tornava o Brasil o 128º de 133
países-membros da ONU a legalizar o divórcio. Ao ouvir um “sim”, as 1.600 pessoas que
acompanhavam a votação nas galerias da Câmara gritavam pelo nome do autor da emenda, o
senador Nélson Carneiro. A votação, que começara de manhã, tinha sido incendiada por declarações
como a do deputado padre Nobre - para quem o Congresso perdia “um tempo precioso com
propostas inócuas” -, a do deputado Antônio Bresolin - que chamou o divórcio de “mercado de carne
humana” e “fabricação de menores abandonados” - e por uma ameaça de pancada do deputado Nina
Ribeiro contra o senador Benedito Ferreira - que o chamara de “moleque, moleque, moleque”. Foi
necessária a intervenção de parlamentares e funcionários para que os dois não se pegassem.
Isso não quer dizer que não houvesse separações. Casamentos podiam ser anulados diante de
uma condição: se o marido descobrisse que a mulher escondeu que não era virgem antes de se
casarem. Sim, isso era previsto num artigo do Código Civil de 1916, que só foi revogado em 2003.
Em outras situações, um casal podia no máximo se “desquitar”, sem poder casar-se novamente.
Passados 34 anos desde a lei do divórcio, o Supremo Tribunal Federal brasileiro votou a favor do
reconhecimento da união civil de homossexuais como análoga à da família. Algo tem mudado muito
rápido na forma como nos relacionamos afetivamente. E a razão para isso não está em nossos genes.
A evolução pode influenciar tudo, mas não está sozinha.
Cada ato nosso é resultado de uma interação entre nossos genes, a anatomia do cérebro, seu
estado bioquímico, a educação recebida da família, os estímulos específicos que a pessoa recebe - e
a interação do indivíduo com a sociedade. E sociedades podem mudar rapidamente.
“Nos últimos cem anos, o casamento mudou mais do que nos 10 mil anteriores”, afirma Helen
Fisher, “e pode mudar ainda mais nos próximos 20 anos do que nos últimos cem”.
Nas sociedades nômades, como já vimos, mulheres eram responsáveis por uma parte muito
importante das provisões - os vegetais -, enquanto homens caçavam. Por conta disso e da constante
mobilidade, raramente casais podiam manter mais do que dois filhos. Uma mulher que precisasse
dar de mamar a um filho não teria condições de ter mais outro - precisaria esperar até que sua
criança tivesse idade suficiente para andar com suas próprias pernas. Isso justifica por que de 15%
a 50% dos bebês nascidos antes do desenvolvimento da agricultura eram mortos, segundo estudo de
1968 do antropólogo da Universidade da Califórnia Joseph Birdsell. Mesmo hoje, o infanticídio
acontece entre mães sob influência do estado mental logo após o parto - razão por que o Código
Penal brasileiro prevê ao infanticídio uma pena reduzida em relação ao homicídio.
As relações entre homem, mulher e seus filhos mudou muito quando passamos para sociedades
agrícolas. Fixados ao solo, casais passaram a ver em batalhões de filhos homens a ajuda para
produzir mais e mais no campo. Mulheres se recolheram em casa e filhas se
tornaram moeda de troca para alianças entre famílias, por meio de casamentos arranjados.
Isso não quer dizer que o amor deixara de existir. Mas ele passou a competir com os interesses
das famílias, num desequilíbrio de interesses que até hoje dá pano para manga para o cinema da
Índia - país onde a maioria dos casamentos é arranjada.
Quando passamos para sociedades urbanas, casamentos arranjados deixaram de fazer sentido,
conforme as famílias estendidas deram espaço para famílias nucleares. Filhos deixaram de ser mais
um braço para ajudar na produção, e se tornaram um custo enorme - enquanto um menino de sete
anos na savana atingia certa independência dos pais, na era industrial ele apenas ingressava no
longo período de educação formal que acaba no mínimo ao atingir a idade adulta. Mesmo em
culturas que valorizam a reprodução, como a muçulmana, as taxas de natalidade baixam
tremendamente conforme sua sociedade se industrializa. É o caso do Irã - de sete filhos por mulher
em 1984 caiu para 1,9 em 2006 - e 1,5 na capital, Teerã. Já no Egito, a fertilidade caiu de 5,9 filhos
em 1970 para 2,7 em 2010.
Com a casa esvaziada de filhos, altos gastos domésticos e uma crescente necessidade de mão de
obra, principalmente em tempos de guerra, a mulher tornou-se também provedora em casa. E uma
mulher capaz de sustentar a si - e a seus filhos - pode preocupar-se menos em encontrar um bom
partido e mais em satisfazer-se com um grande amor. Aquele amor que não sai em busca de
características desejáveis como se vasculhasse tabelas comparativas na hora de comprar um
automóvel, mas que foca nossa atenção e nossos sentimentos em uma pessoa única e intransferível.
O modelo de família continua a se transformar nas sociedades industrializadas. Agora, ele não é
mais único. Um casal com filhos continua sendo uma família. Mas também o são o casal sem filhos, o
casal com filhos adotados, o pai divorciado com filhos, a mãe solteira - e, em uma porção de países
ocidentais, também os casais homossexuais, com ou sem filhos, adotados ou biológicos. Outro ator
também entra no mercado do amor - a terceira idade. A industrialização aumentou não só a
expectativa de vida, como também criou artifícios que estimulam o desejo e a autoestima de pessoas
que já passaram da menopausa e da andropausa: reposição hormonal, medicamentos para
disfunções eréteis, cosméticos, cirurgias plásticas...
São muitas as formas de amar. E elas não são incompatíveis com nossos genes. Embora eles
possam influenciar nossos desejos e nossos comportamentos, os objetivos que cultivamos como
indivíduos não se resumem a reproduzir nossos genes. Steven Pinker, por exemplo, pode ser um dos
grandes nomes da psicologia evolutiva, mas sua crença na evolução não o obrigou a ter filhos. Pelo
contrário - ele não tem filhos seus, apenas duas enteadas, filhas de sua terceira mulher. Foi o mesmo
caminho que seguiram Beethoven, Brahms, Newton, Wittgenstein, Virginia Woolf e Oprah Winfrey.
No Brasil, a participação de casais com filhos no Brasil caiu de 56,6% para 48,9% de 1997 para
2007, segundo o IBGE. E os solteiros totalizam 42,8% dos brasileiros acima dos 15 anos.
Evoluímos com mais tipos de satisfações além de nos reproduzir. Temos a satisfação de subir na
hierarquia social, transferindo o foco da maternidade e da paternidade para o sucesso profissional.
Temos a satisfação de explorar o espaço, deixando para mais tarde os planos de ter um
relacionamento para dedicar anos de nossa vida viajando pelo mundo, sem nenhum laço que nos
prenda à casa. Temos a satisfação de explorar a consciência por meio de drogas legais e ilegais ou
de explorar a espiritualidade, dedicando-nos à meditação, ao ascetismo, ao cumprimento de dogmas
religiosos. Não somos marionetes nas mãos de nossos genes, e somos muito bons em trapaceá-los.
Temos a satisfação de deixar nossa presença no mundo não só pela propagação de trechos de nosso
DNA, mas também pela propagação de nossas ideias, de nossas palavras impressas em livros,
entoadas em canções, moldadas em mármore ou em pinceladas de tinta a óleo. Conforme
explicamos na analogia inicial deste livro, nossa mente é um complexo programa com inúmeras
ferramentas - ferramentas que nos permitem também fazer coisas para as quais não foram criadas.
Nossos dilemas não se resumem à reprodução e à sobrevivência, e incluem conflitos com atores que
não existiam na savana, como o Estado, a Igreja, a escola, as empresas, os sites de relacionamento e
redes sociais.
É verdade que não podemos ignorar completamente nossos instintos. Em alguns casos, genes
derrubam utopias. É o que aconteceu com o amor livre. Por mais que movimentos sociais tenham
abraçado ao longo do século 20 o “ninguém é de ninguém”, eles não puderam ignorar impulsos
como a ligação e a dupla amor/ciúme. É possível que uma pessoa sinta atração por vários parceiros
sexuais e nutra ligação afetiva por outros. Isso é um fato.
Mas o amor é intransferível.


Bibliografia


LIVRO 1
POR QUE VOCê É ASSIM

CIALDINI, Robert B., GOLDSTEIN, Noah J. e MARTIN, Steve J. Sim! - 50 segredos da


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LIVRO 2
ANSIEDADE - MANUAL DO USUÁRIO

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LIVRO 3
AMOR - POR QUE ELE COMEÇA, COMO ELE VICIA, POR QUE ELE ACABA

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© 2013, MAURÍCIO HORTA e OTAVIO COHEN

Diretora-superintendente: Helena Bagnoli
Diretor adjunto: Dimas Mietto
Diretor de redação: Denis Russo Burgierman
Diretor de arte: Fabrício Miranda
Redator-chefe: Alexandre Versignassi
Capa: Sattu e Sergio Bergocce
Projeto gráfico: Paula Bustamante
Diagramação: Michell Lott

Ícones: por Marcus Michaels, por Ilsur Aptukov e por iconoci (todos do The Noun

Project)
Revisão: Alexandre Carvalho dos Santos
Produção gráfica: Anderson C. S. de Faria
Conversão para ePub: Cumbuca Studio

S959
Superinteressante : como as pessoas funcionam . – São Paulo : Ed. Abril,
2013. 312p. ; 23 cm.
ISBN 978-85-364-1658-8
1. Psicologia – Obras populares. 2. Emoções e sentimentos. I. Título.
CDD 152.4


2013
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA ABRIL S.A.
Av. das Nações Unidas, 7221
05425-902 – Pinheiros – São Paulo – SP - Brasil

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