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LIVRO 3 - AMOR - POR QUE ELE COMEÇA, COMO ELE VICIA, POR QUE ELE ACABA
Prólogo - Cego e essencial
Capítulo 1 - Amor genético
Capítulo 2 - A química do amor
Capítulo 3 - Quando o amor dói
Capítulo 4 - Temporada de caça
Capítulo 5 - Entre iguais
Créditos
Como as pessoas funcionam
Hoje, o sonho de quase todas as mães que você conhece é criar bem seus filhos. O investimento
começa cedo - elas conversam com as próprias barrigas e ouviram dizer que faz bem colocar música
clássica para o bebê que ainda não nasceu. Quando nasce, a criança vira o centro das atenções da
família. Se uma nova gravidez acontece, a mãe pode até se esforçar para não fazer a criança mais
velha se sentir rejeitada e enciumada, e tentar tratar todos os filhos do mesmo jeito. Mas não
adianta. Em 1996, o biólogo norte-americano Frank Sulloway liderou um estudo que mostra que
66% dos pais com mais de um filho têm seu favorito. A maior parte das mães admite e confirma
(menos a sua, claro).
É que crianças diferentes são criadas de jeitos diferentes. O menino tímido que não tem amigos
vai ser colocado na aula de futebol pelos pais preocupados em garantir sua sociabilidade. Já seu
irmão extrovertido e falante dará menos trabalho - e receberá menos atenção. Os primeiros traços
de personalidade que os filhos demonstram também mudam a vida dos pais. Uma pesquisa de 1994
feita pela Universidade da Pensilvânia mostrou que alguns pais que têm filhos autistas podem se
tornar um pouco indiferentes. Da mesma forma, o mais bonito dos irmãos tende a ser também o
mais mimado.
Se cada filho é tratado de um jeito diferente, faz sentido concluir que cada um cresce em um
ambiente diferente. Imagine os irmãos do parágrafo anterior. O mais retraído vive à sombra do
outro, que se comunica melhor e que faz bonito ao contar piadinhas na casa da avó no fim de
semana. O irmão extrovertido, por outro lado, tem de lidar com o fato de que os pais dão mais
atenção ao tímido. Duas realidades bem diferentes sob o mesmo teto. Frank Sulloway analisou a
ordem de nascimento de mais de 6 mil personalidades mundiais e concluiu o que o senso comum já
desconfiava: primogênitos são mais conservadores e independentes, caçulas são mais criativos e
revolucionários. É a Teoria dos Nichos, que diz que cada criança procura desempenhar um papel
diferente dos irmãos mais velhos no ambiente familiar.
Talento para o desenho, gosto pela leitura, identificação com valores religiosos e até a escolha
precoce da profissão - os pais e os irmãos até podem ter a ver com algumas decisões que você fez na
infância (as que duram até hoje e as que ficaram esquecidas). Mas, para a psicóloga americana
Judith Rich Harris, a coisa mais importante que seus pais fizeram por você foi escolher onde você ia
morar e estudar. É que foi no playground do prédio ou no pátio da escola que você conheceu seus
amigos. Essas relações, que aconteceram entre os seis e os 16 anos, moldaram a sua vida.
A história concorda. Desde que surgiu, a espécie humana precisou se unir para sobreviver. As
pessoas que mais deixaram descendentes foram aquelas que pertenciam aos grupos maiores e mais
fortes, principalmente as que ocupavam posições de destaque. A noção de grupo e o sentimento de
pertencimento passaram de pai para filho até chegar a você. Pense na sua infância e você
provavelmente se lembrará de que compartilhava muita coisa com seus amiguinhos, como a
preferência por um time (ou, pelo menos, o gosto pelo futebol). Pergunte à sua mãe e ela dirá
quantas vezes você deixou escapar um palavrão que aprendeu com os colegas.
Identificar-se com um grupo é uma ação natural. Uma pesquisa divulgada em 2012 concluiu que
bebês criam laços e formam amizades antes mesmo de começarem a falar. Pesquisadores da
Universidade Charles Sturt, na Austrália, acoplaram pequenas câmeras à cabeça de crianças por
alguns minutos para acompanhar de perto o ponto de vista delas. Usando o contato visual e
pequenos gestos e risadas, os bebês criaram jogos sociais tão sutis que só quem estivesse
observando bem de perto poderia perceber. Um dos bebês fingia que ia entregar um brinquedo ao
outro e o afastava no último segundo, quando o outro estava prestes a alcançá-lo. Outra criança
tentou confortar um bebê que parecia assustado oferecendo a ele um pedaço de pano que poderia
protegê-lo. Não é de hoje que a ciência tenta desvendar o mundo secreto dos bebês. Quase 20 anos
antes, as psicólogas Carol Eckerman e Sharon Didow observaram duas crianças de cerca de um ano
de idade em uma sala cheia de brinquedos, acompanhadas pelas respectivas mães. Apesar de nunca
terem se visto e de ainda não falarem, as crianças trocaram risadas, compartilharam brinquedos e
se tocaram. Interagiram muito mais entre si do que com as mulheres adultas presentes.
Isso não significa que um bebê não precise dos cuidados da mãe. Mas nos leva a acreditar que o
sentimento de pertencimento ao grupo pode substituir a dependência materna em casos extremos. A
psicanalista especializada em crianças Anna Freud (filha de Sigmund) estudou o comportamento de
seis crianças que passaram por um campo de concentração nazista. No princípio, os meninos - todos
eles órfãos entre três e quatro anos de idade - eram hostis e agressivos. Com o passar dos anos, o
grupo criou laços fortes de amizade e nunca mais quis se separar. Mesmo com o trauma do
holocausto, tornaram-se adultos normais e saudáveis.
Ok, já vimos como o grupo de amigos pode influenciar a formação da personalidade de uma
criança. Mas tem um problema aí. A maior parte de nós pertenceu a mais de um grupo durante a
infância. É interessante notar como misturar os amigos do colégio com o pessoal do condomínio e a
turma da escolinha de futebol não é uma coisa natural para a maioria das crianças. É que nosso
comportamento pode variar de um grupo para o outro. Imagine só uma família de imigrantes
chineses que veio para o Brasil com um filho pequeno. É bem provável que a criança se torne um
“pequeno brasileiro”, assimilando os hábitos e a cultura da nova pátria. E também é possível que,
algumas gerações mais tarde, a família já não preserve mais nenhum traço do tradicionalismo
asiático, além das características físicas.
A mudança nem precisa ser drástica. Sua personalidade pode virar outra coisa por muito menos.
Psicólogos da Universidade de Hong Kong notaram que estudantes chineses que falavam inglês
fluentemente pareciam muito mais extrovertidos e abertos a novas experiências quando usavam o
idioma. Se estivessem conversando em inglês com um estrangeiro, então, a nova personalidade
ficava ainda mais proeminente. Neste caso, o ajuste no comportamento veio por causa da imagem
que os chineses têm das pessoas que falam inglês – tenham elas a personalidade que for.
Opa, então agora complicou. Seu comportamento pode ter um fundo genético, pode ter sido
influenciado por alguma experiência inconsciente da sua infância, pode ser motivado pela
convivência com seu grupo de amigos de infância, e agora depende também do idioma que você
estiver falando? É exatamente isso. Ninguém disse que seria fácil entender você e todo mundo ao
seu redor. Mas as próximas páginas trazem bons palpites que podem ajudar a colocar alguns pingos
nos is.
PERSONALIDADES SEDUTORAS
Imagine a seguinte situação: você teve um dia longo e cansativo no trabalho. Minutos antes do
expediente acabar, recebe uma mensagem de um grande amigo convidando para sair. Os motivos
para você recusar o convite são muitos: é quarta-feira; o bar fica longe da sua casa, o que vai fazer
com que você precise pegar um táxi para voltar; no dia seguinte, você tem uma reunião importante
e precisa descansar. Também há razões para você aceitar o convite: já faz
algum tempo que você não se diverte; o bar é exatamente aquele que você sempre quis ir e nunca
teve oportunidade. Faria alguma diferença se o seu amigo dissesse que toda a turma, inclusive
aqueles colegas que nunca aparecem, já confirmou presença? E se ele prometesse te dar uma
carona para a casa cedo e ainda te pagasse uma cerveja? A persuasão requer técnica. Além de
prever reações, ter uma argumentação infalível e saber dizer exatamente o que o outro quer ouvir,
você precisa ir além. Um brinde, como a cerveja grátis que o nosso personagem hipotético ganharia
caso aceitasse o convite, pode ser o suficiente. Nos próximos parágrafos, você vai ver algumas
dessas técnicas. Mas antes de aprender como fazer amigos e influenciar pessoas, você precisa
aprender por que nos deixamos levar pelas pessoas. A primeira lição é tão inacreditável quanto
simples: pessoas populares sabem ler mentes.
Pelo menos é essa a conclusão de um estudo feito nas universidades de Oxford e Liverpool, na
Inglaterra. Depois de terem o cérebro analisado por meio de ressonância magnética na
Universidade de Liverpool, 40 voluntários da mesma faixa etária e escolaridade tiveram de fazer
uma lista com todas as pessoas com quem haviam se envolvido socialmente na última semana. Os
que tinham mais amigos ou haviam conhecido mais pessoas novas tinham mais volume no córtex
órbito-frontal, parte do cérebro que regula as habilidades sociais e a capacidade de se colocar no
lugar da outra pessoa.
Os populares também se deram melhor em tarefas de mentalising, como identificar o estado
emocional das pessoas só de olhar para suas fotos. Basicamente, isso significa que as pessoas que
têm muitos amigos têm mais sensibilidade para ler os sinais que os outros dão e entender suas
emoções. Essa habilidade é o ponto de partida para um comportamento persuasivo. Mas não é o
único. Cientistas já desconfiavam que a chave para a sua capacidade de se deixar levar também
pudesse estar no cérebro. Para identificar as regiões relacionadas com o conformismo, os
pesquisadores das universidades de Nova York, Aarhus e College London usaram ressonâncias
magnéticas para medir os volumes das áreas cerebrais de 28 participantes. Cada voluntário teve de
avaliar 20 músicas com notas de 1 a 10. Então, os cientistas pediram que os voluntários avaliassem
novamente a lista, depois de ouvirem a opinião de um crítico especializado sobre cada música. Na
análise das ressonâncias magnéticas, percebeu-se que a quantidade de massa cinzenta no córtex
órbito-frontal lateral – região do cérebro associada aos processos cognitivos e à tomada de decisões
– era ligeiramente menor nas pessoas que mudaram de opinião na segunda avaliação.
Essa diferença levou os cientistas a concluírem que os sinais de conflito social também estão
associados a esta região do cérebro – e que mudar de opinião é uma questão estrutural e genética.
Não foi a primeira vez que a ciência mostrou que algumas pessoas nasceram para ser
manipuladas. Um estudo da Universidade Estadual de Montclair, nos Estados Unidos, indicou que
pessoas ambidestras são mais fáceis de persuadir. A vulnerabilidade pode estar ligada ao tamanho
do corpo caloso (uma estrutura que fica entre os dois hemisférios do cérebro), maior entre os
ambidestros. Um corpo caloso grande aumenta a comunicação entre os dois lados do cérebro - e
também a maneira como a pessoa reage aos argumentos dos outros. Apesar dos indícios da
genética, o conformismo e a persuasão ainda são temas obscuros e carregados de subjetividade,
principalmente quando analisamos a função do ambiente. Imagine que o sujeito do primeiro
parágrafo resolveu aceitar o convite do amigo e foi, em plena quarta-feira, para o bar. Lá, conheceu
uma moça morena e tímida, por quem se interessou.
Mas o amigo não aprovou a escolha e o aconselhou a puxar conversa com outra mulher no bar,
uma loira estonteante, estilo mulher fatal. A essa altura, você já conhece o nosso personagem o
suficiente para supor que ele vai se deixar levar pelos argumentos do outro e anular a própria
vontade mais uma vez.
Esse comportamento é mais normal do que você imagina. Uma pesquisa da Universidade de
Edimburgo mostrou que tanto homens quanto mulheres escolhem seus parceiros potenciais
copiando as escolhas das outras pessoas - e preferem ficar com as opções mais óbvias (a loira fatal,
por exemplo). No teste, 80 alunos foram convidados a assistir vídeos com encenações de encontros
entre homens e mulheres. Alguns desses encontros foram bem-sucedidos, outros não. Os voluntários
deveriam escolher, entre as pessoas mostradas nos filminhos, aquelas com as quais imaginavam se
relacionar. E não é que a maior parte dos alunos escolheu os homens e as mulheres que faziam parte
dos casais que protagonizaram encontros bem-sucedidos? Ou seja, foram mais persuadidos pelas
encenações do que pelas pessoas. Segundo os cientistas, os seres humanos tendem a seguir o fluxo
do grupo social em certas situações, assim como os pássaros que voam em bando e os peixes que
nadam em cardumes. Você pode imaginar como isso faz sentido se voltar no tempo e se lembrar do
seu grupo de amigos na infância. Ser igual aos outros era mais importante para você do que ser
diferente e único. Mais uma vez, herança dos seus antepassados, que preferiam se destacar no
grupo pela força bruta do que por qualquer elemento que o identificasse como o “estranho”. Quem
não tinha condições de conquistar prestígio se virava como podia: misturando-se aos outros e
seguindo o líder.
Essa tendência de fazer o que o resto do grupo está fazendo, sem pensar, tem nome: “efeito
manada”. O comportamento foi formalmente identificado nos anos 50 pelo psicólogo norte-
americano Solomon Asch. Em uma série de experimentos, ele reuniu grupos de pessoas para as
quais mostrou muitas linhas de comprimentos
diferentes desenhadas em um cartão. Depois, perguntou aos grupos qual era a mais longa. A
armadilha é que todas as pessoas de cada grupo haviam sido orientadas para escolher a resposta
errada. Menos uma. Em um terço dos casos, a pessoa acabava concordando com o resto do grupo.
Um efeito parecido acontece quando nossa opinião entra em conflito com a de alguém que está em
uma posição de
poder. Por isso, é mais comum - e mais inteligente - acatar as decisões de alguém que está
hierarquicamente acima de você do que resistir e contestar. Assim como faz sentido que pessoas em
posição de poder se sintam privilegiadas.
O resultado curioso de uma pesquisa realizada pela Universidade Cornell em parceria com a
Universidade de Washington mostrou que quem ocupa cargos de destaque e responsabilidade se
acha, inclusive, mais alto do que realmente é.
Há uma linha tênue entre o conformismo e a intimidação. Pessoas emocionalmente vulneráveis
são mais facilmente convencidas de que opiniões em que antes não acreditavam estão certas. E não
há nada que deixe o seu cérebro mais vulnerável do que a surpresa. Como você já sabe, a palavra
final quando você tem de tomar uma decisão é do córtex pré-frontal, responsável pelo raciocínio
complexo. Quando você é pego desprevenido (em um assalto, por exemplo), seu cérebro ignora toda
a burocracia e delega a função de decidir o que fazer para outras áreas. Era assim que os
comunistas faziam com os soldados norte-americanos na época da Guerra da Coreia. Com torturas
físicas, os soldados eram intimidados e submetidos a um processo intensivo de sugestionamento que
você talvez conheça como lavagem cerebral, até serem convencidos a mudar de lado na batalha. A
propaganda não tortura, mas também usa armas eficientes para tentar convencer você a comprar.
Um experimento realizado em junho de 2010 em Laguna Beach, costa oeste dos EUA, levou cinco
atores a viver fingindo que eram uma família rica e feliz. Durante quatro meses, pai, mãe e filhos de
mentirinha fizeram propagandas de carros, roupas, perfumes, joias e várias outras coisas para os
vizinhos sem que eles percebessem. A estratégia funcionou, e os habitantes de Laguna Beach
passaram a comprar e falar mais sobre os produtos anunciados pela família falsa. Quando a
encenação acabou, as 200 pessoas que interagiram com os atores nem sequer se aborreceram.
Não precisa se assustar com a sua própria vulnerabilidade. Também existe uma receita para que
você caia menos na lábia alheia. Quanto mais redes cognitivas o seu cérebro tiver, menos
manipulável você fica. Procure desenvolver sua criatividade, aprender coisas novas, ler e escrever
mais. Exercitando essas habilidades, você se fortalece mais para acreditar menos nos planos
mirabolantes dos seus amigos influenciadores - e, de quebra, nas promessas de políticos
persuasivos.
OS INFLUENCIADORES DE PESSOAS
A ciência do comportamento mapeou as táticas que as pessoas mais persuasivas usam no dia a dia para conseguir o
que querem. Veja algumas.
O VENDEDOR
Os melhores vendedores imitam a linguagem corporal do cliente quando falam com ele. Oferecem várias opções, mas
não mais do que dez. Aproveitam-se do “efeito manada” e dizem como o produto fez sucesso com outros clientes.
Dão informações “exclusivas”. Dizem que o produto “está para acabar”, o que faz o comprador valorizar mais a
oportunidade. Oferecem um desconto, mas obedecem a um limite rígido para não saírem no prejuízo.
O COLEGA
Os persuasivos não medem esforços para conquistar a confiança dos colegas de trabalho - já que isso será útil no
futuro. Para tanto, usam muito a tática do morde-e-assopra: falam de um pequeno defeito que você tem, depois
tecem loas a uma grande qualidade.
O SEDUTOR
Vista roupas que favoreçam seu corpo. Se você é homem, provoque sua pretendente com perguntas curiosas. Elogie,
mas não demonstre interesse demais. Ela vai ficar confusa - e mais interessada. Se você é mulher, olhe nos olhos do
seu alvo. Tome iniciativa antes e surpreenda falando sobre um assunto inesperado.
AUTISTAS
As crianças tímidas acham complicado diferenciar uma pessoa com expressão de cansaço de uma outra com raiva.
As autistas podem nem distinguir uma pessoa de um objeto. Quando você vê o rosto de alguém, uma pequena região
no seu córtex cerebral chamada giro fusiforme entra em atividade. Graças a essa estrutura, você consegue
“escanear” o rosto e segui-lo com o olhar. No cérebro de um autista, imagens de rostos são processadas pela mesma
estrutura que identifica objetos inanimados, o giro inferior temporal. Se um autista não olha nos seus olhos, é
simplesmente porque, para ele, isso
pode fazer tanto sentido quanto olhar para os “olhos” de um fogão. Esse detalhe do cérebro não necessariamente faz
de alguém autista. Apesar de ainda não ter conseguido isolar ou sequer provar a existência do gene do autismo, a
ciência já observou coincidências interessantes: a síndrome é mais comum entre os homens, e ter um irmão gêmeo
autista aumenta em 375 vezes as suas chances de ser um também. Autismo não é questão de comportamento.
Confundir as características comuns da síndrome, como o pensamento repetitivo
e a introversão, com aspectos da personalidade, é ignorar todos os avanços da medicina neste campo. Até porque
existem vários tipos diferentes de autismo. Pacientes com síndrome de Asperger, por exemplo, tendem a ser criativos
e persistentes.
Quem
é você
PSICOLOGIA ARCAICA
Como quase tudo o que diz respeito ao conhecimento, a primeira classificação da personalidade veio
da Grécia Antiga. Tudo começou com a teoria de Empédocles de Acragas (490-430 a.C.), que
acreditava que todas as substâncias do universo eram compostas por quatro elementos: ar, terra,
fogo e água. Hipócrates (460-377 a.C) foi um pouco além e associou os quatro elementos a
características marcantes do comportamento humano. Para ele, cada característica correspondia à
predominância de um dos quatro fluidos corporais no corpo: sangue, bílis preta (atrabílis), bílis
amarela e fleuma (linfa). A dosagem química natural desses líquidos no seu corpo definiriam o seu
temperamento - que, no grego, quer dizer equilíbrio. E o excesso de um dos fluidos provocaria
doenças e traços exagerados da personalidade. Segundo Hipócrates, a coisa funcionava assim:
• A predominância de sangue no corpo causaria reações rápidas e fracas, além de propiciar o otimismo, a irritabilidade e a
impulsividade.
• Uma concentração alta de atrabílis levaria ao temperamento melancólico e às reações lentas e intensas: pessimismo, rancor e
solidão.
• A bílis em excesso determinaria o temperamento colérico e as reações rápidas e intensas - ambição e dominação são
características típicas.
• Por fim, quando a linfa é o líquido predominante, as reações são fracas e lentas - o indivíduo é mais sonhador, pacífico e dócil.
Hoje nada disso parece ter o menor cabimento. Mas, na falta de outra explicação, essa teoria
permaneceu por dois milênios, até a biologia moderna apresentar ao mundo os hormônios, os
neurotransmissores e outras substâncias do sistema nervoso (endorfinas, etc.) que fizeram cair por
terra os humores de Hipócrates. Da Antiguidade até hoje, houve tempo para que surgissem outras
teorias que parecem partir de associações aleatórias para explicar a personalidade.
Uma delas foi formulada pelo alemão Ernst Kretschmer nos anos 20. Ele buscava relacionar os
traços da personalidade com a forma física. Dizia a teoria que as pessoas altas e esguias de ombros
estreitos seriam mais sensíveis e teriam maior tendência para a esquizofrenia. Os baixinhos de rosto
redondo e barriga saliente seriam mais tranquilos, mas poderiam apresentar variações drásticas de
humor. Já quem tivesse corpo atlético, pescoço grosso e ombros largos seria tenaz e explosivo - com
uma tendência à epilepsia. A teoria morfológica deu origem a uma série de outros estudos com
conclusões similares.
O raciocínio não é totalmente absurdo. Afinal, a sua forma física pode afetar a sua autopercepção,
modificar seus interesses e sua motivação, e esse processo acaba se refletindo no seu
comportamento. Isso sem contar os jeitos como a opinião alheia em relação às suas características
físicas pode influenciar as suas atitudes. Com o passar do tempo, o desenvolvimento dos métodos de
avaliação psicológica negou as teorias morfológicas. Mas o caminho a ser percorrido até o
mapeamento da personalidade ainda era longo.
A VISÃO DE FREUD
A psicanálise não surgiu de repente. Ela foi se manifestando aos poucos, ao longo da vida de
Sigmund Freud na medicina. Na penúltima década do século 19, Freud teve contato com algumas
pacientes histéricas, que mostravam sintomas como cegueiras e alucinações. Depois de muita
conversa, ele percebeu que todas as pacientes tinham em comum memórias quase esquecidas de
cunho sexual.
Essa se tornou uma das bases fundamentais da psicanálise: no fundo das nossas mentes, há um
lugar onde nossas memórias e desejos reprimidos se escondem - o inconsciente. Além de apresentar
uma divisão da mente humana em camadas - algo até então inédito -, a psicanálise estuda a maneira
como lidamos com nossa libido: começamos a vida desenvolvendo um apego sexual por nossas mães.
Como é impossível satisfazer esse desejo, a sexualidade humana ficaria reprimida até o início da
adolescência.
Nos primeiros anos do século 20, as primeiras obras de Freud que divulgavam conceitos
psicanalíticos não foram muito bem recebidas - afinal, não deve ter sido fácil compreender o
Complexo de Édipo naquela época. Mas Freud logo chamou a atenção de outros psicólogos
europeus. Um deles foi o norte-americano Gordon Allport. Ele dava valor às novidades que Freud
tentava emplacar no mundo científico, mas achava exagerada a importância que o austríaco (e a
psicanálise) dava ao desejo sexual na hora de explicar a personalidade. Allport - como boa parte dos
psicólogos de hoje - estava mais interessado na descrição dos sintomas do que no motivo dos
problemas.
Em 1937, Allport listou 50 definições diferentes para o termo “temperamento” - que, muitas
vezes, substitui “personalidade” nas teorias da psicologia - na tentativa de definir o que exatamente
estava procurando descobrir. E ele não era o único. O apego pela descrição da personalidade
influenciou dezenas de teorias na
primeira metade do século 20. Para facilitar o trabalho, era comum os psicólogos pegarem
emprestado das ciências exatas alguns elementos para categorizar padrões de personalidade. Era a
psicometria: a matemática trabalhando em favor da psicologia. O método mais eficiente para chegar
ao resultado - ou seja, à medição da personalidade – era, e é até hoje, aplicar testes. O
correspondente contemporâneo a esses testes psicométricos é aquela avaliação que você
possivelmente já fez quando concorria a uma vaga em uma empresa ou passava por uma orientação
vocacional.
A tendência teve consequências. Pipocaram testes diferentes que avaliavam os traços da
personalidade ou agrupavam pessoas em tipos psicológicos distintos. Cada pesquisador queria fazer
prevalecer o seu método. A dificuldade em encontrar uma acepção definitiva para “personalidade”
continuou assombrando os pesquisadores nas sete décadas seguintes. Mas, por enquanto, voltemos
a Freud.
Em 1906, já fazia algum tempo que o austríaco tentava emplacar entre os psiquiatras da Europa
os conceitos de inconsciente, recalque e repressão. A Interpretação dos Sonhos, obra publicada seis
anos antes, trazia algumas dessas ideias - importantes para que a comunidade compreendesse o que
ele estava querendo dizer com aquela tal psicanálise. Quando Freud recebeu pelo correio algumas
cópias de trabalhos com uma base conceitual parecida com as ideias que tinha criado, ele se sentiu
como se tivesse ganhado na loteria.
O remetente era Carl Jung, um médico suíço interessado em sonhos, religião e outros mistérios da
mente.
O SALTO DE JUNG
Jung tinha uma relação peculiar com o inconsciente - o inconsciente dele próprio, no caso. Quando
criança, ele imaginava ter duas personalidades completamente distintas. Uma era a dele mesmo: um
estudante típico de seu tempo, o final do século 19; a outra, a de um homem autoritário do século
18. Sua distração era fazer pequenos rituais que incluíam escrever mensagens em um idioma
inventado e levá-las ao sótão de sua casa, onde escondia um pequeno boneco de madeira que ele
mesmo construiu. Depois de ser empurrado por um colega de escola e desmaiar, Jung desenvolveu
um bloqueio em relação ao ambiente escolar. Sempre que tentava se esforçar para fazer as tarefas
de casa, desmaiava novamente. Qualquer um o consideraria neurótico. Talvez tenha sido esse o
motivo do grande entusiasmo de Freud com o novo amigo, que considerava como um filho.
Trocaram mais de 300 cartas e, depois de se conhecerem pessoalmente, em 1907, passavam horas a
fio discutindo os mistérios da mente.
Eles nem sempre concordavam, diga-se. O primeiro ponto de discórdia era o mesmo que havia
aproximado os dois: o conceito de inconsciente. Enquanto o inconsciente freudiano era apenas um
depósito de emoções e desejos reprimidos, o de Jung envolvia também o que ele chamou de
“inconsciente coletivo”. É como se existisse um inconsciente comum a todos nós, que herdamos da
natureza e que se manifesta no nosso comportamento. É nesse inconsciente coletivo que Jung
acreditava que podemos encontrar os arquétipos, ou seja, os padrões de comportamento, os tipos
diferentes de personalidade. Os estudos de Jung o fizeram tomar um caminho bem diferente do que
havia sido trilhado por Freud. Em 1913, os dois romperam a parceria intelectual e a amizade. Menos
de dez anos depois, Jung publicou a Teoria dos Tipos Psicológicos, que inaugurou o que se conhece
hoje como Psicologia Analítica.
De acordo com essa teoria, todo mundo pode ser enquadrado em quatro categorias chamadas
“funções psicológicas”. As duas primeiras funções que Jung descreve são racionais, ou seja, estão
mais relacionadas à maneira como você julga o mundo. Já as duas últimas são irracionais, e são
formas de perceber e absorver aquilo que você vê.
RAZÃO
Parece óbvio. É por meio do pensamento que você desenvolve planos, teorias e bases para defender as coisas em
que acredita. A razão tem a ver com a verdade – e com tudo o que você faz para encontrá-la. Usar a lógica para
resolver um dilema, por exemplo, é um comportamento relacionado a esta função. A quem se orienta mais pela
razão, Jung chamou de pensador.
EMOÇÃO
Os sensíveis, que se orientam pela emoção, vivem suas experiências com mais intensidade. O aspecto material não
importa muito: uma decisão deve ser tomada tendo como base a experiência própria e as próprias noções de certo
ou errado.
SENSAÇÃO
Pessoas imediatistas, que se apegam aos detalhes e aos fatos palpáveis para analisar uma situação, segundo Jung,
pertencem ao grupo dos sensoriais.
INTUIÇÃO
Diante de uma nova situação, os intuitivos procuram associações nas suas próprias experiências.
Cada uma das funções pode ser modificada por duas atitudes típicas: introversão e extroversão. A
extroversão é o direcionamento da energia vital (ou libido) para o exterior - do sujeito para o objeto.
O objeto é o foco do interesse do indivíduo. A introversão é, como você pode supor, o direcionamento
da libido para o interior. Nesse caso, o sujeito é o seu próprio foco de interesse. Sendo assim,
teríamos oito possibilidades de
descrever a sua personalidade:
• Pensador introvertido
• Pensador extrovertido
• Sensível introvertido
• Sensível extrovertido
• Sensorial introvertido
• Sensorial extrovertido
• Intuitivo introvertido
• Intuitivo extrovertido
Essa teoria influenciou outros psicólogos na busca de classificações baseadas em dicotomias.
“Dicotomia” no sentido de que você só pode ser classificado como uma coisa ou outra. Ou seja, você
pode ser extrovertido ou introvertido, nunca as duas coisas ao mesmo tempo.
Algumas ganharam bastante visibilidade, especialmente nos anos 70 e 80. Mas foi antes disso,
durante a Segunda Guerra Mundial, que começou a ser desenvolvida a classificação tipológica de
Myers-Briggs, um dos métodos de avaliação de personalidade mais famosos. Vamos a ele.
O TESTE MYERS-BRIGGS
O período da guerra foi marcado pela entrada das mulheres no mercado de trabalho. Com
questionários de avaliação, a psicóloga Katharine Cook Briggs e sua filha Isabel Briggs Myers
pretendiam ajudar moças a escolher serviços que combinassem mais com suas personalidades.
Baseado nos questionários aplicados por mãe e filha, o método foi publicado algum tempo depois,
em 1962. E ficou conhecido internacionalmente como MBTI (Myers-Briggs Type Indicator).
Inspiradas pela classificação que Jung tinha bolado quatro décadas antes, Myers e Briggs criaram
quatro dicotomias, que funcionariam como critérios para a avaliação da personalidade:
De acordo com essa classificação, todo mundo se aproxima mais de um lado ou de outro em cada
um dos quatro critérios. Tender mais para um polo ou outro funcionaria como outras habilidades
que nasceram com você ou as que você aprendeu ao longo da vida. O fato de você ser canhoto ou
destro, por exemplo. Se uma pessoa escreve sempre com a mão direita, vai ter muita dificuldade em
escrever com a esquerda. Da mesma forma, uma pessoa introvertida não se comportará como uma
extrovertida com a mesma facilidade - nem mesmo se praticar muito.
O resultado do questionário inclui você em um dos 16 tipos possíveis. Cada tipo está associado a
um conjunto de características de comportamento e valores. Conhecê-los pode ser útil para
identificar traços da sua personalidade. Cada tipo é identificado por quatro letras (as iniciais das
palavras equivalentes em inglês, exceto no caso de “Intuição”, identificada pela letra “N”, para não
confundir com “Introversão”, que ficou com a letra “I”). Nota: como a maior parte das palavras é
latina (“Extroversion”, “Perception” etc.), as iniciais em inglês funcionam em português. As exceções
são apenas “Razão” (que é “T”, de “thinking”) e “Emoção” (representada pela letra “F”, de
“feeling”).
Seja como for, o que o Myers-Briggs faz é usar essa sopa de letrinhas para tentar definir de forma
mais precisa quem, afinal, você é. Como são quatro letras possíveis para definir cada aspecto da
personalidade, você pode ser um entre 16 tipos - ISTP (Introversão, Sensação, Razão, Percepção),
ENFJ (Extroversão, Intuição, Emoção, Julgamento), INTP (Introversão, Intuição, Razão, Percepção),
e por aí vai. Nas próximas páginas, vamos explicar tudo isso em detalhes.
O SISTEMA
Se um dia foi útil para ajudar mulheres a escolher um trabalho, hoje o MBTI é usado com frequência
em orientação vocacional, dinâmicas de grupo, marketing, programas de treinamento empresarial e
até no aconselhamento pré-nupcial. Com o passar do tempo, o teste original foi revisado e
incrementado. Na década de 1980, foi criado um sistema de pontuação com mais de 290 itens, que
avalia outros aspectos mais profundos da personalidade, como o conforto/desconforto. Em 2009, a
empresa que publica o questionário estimou que o método atual era usado 2 milhões de vezes, todos
os anos, no mundo inteiro. O teste é simples, com perguntas na linha “como você reage ao conhecer
pessoas novas?” São dezenas de questões, talhadas para traçar suas características psicológicas. E
os aplicadores do questionário devem seguir regras éticas, como jamais considerar um resultado
“certo” ou “errado”.
No apêndice deste livro, há uma descrição dos 16 tipos psicológicos do Myers-Briggs. Mas, antes
de ir até lá, entenda melhor o que significam as quatro letras.
INTROVERSÃO E EXTROVERSÃO - I E E
Se as suas funções cognitivas operam mais no mundo do comportamento, das ações, das pessoas e
das coisas, você é extrovertido. Isso significa que você gasta a sua energia vital em ações - e
geralmente pensa depois de agir. Se as funções cognitivas estiverem mais direcionadas ao mundo
das ideias e das reflexões, você é introvertido. Os conceitos parecem bem óbvios para quem passou
a vida inteira ouvindo as duas palavras como adjetivos banais, como se fossem sinônimos de timidez
ou comunicabilidade.
EXTROVERTIDOS x INTROVERTIDOS
Se orientam pelas ações Se orientam pelas ideias
Procuram aprofundar seus conhecimentos e influências Procuram expandir seus conhecimentos e influências
Preferem interações frequentes Preferem interações sólidas
Repõem sua energia passando tempo sozinhos Repõem sua energia passando tempo com pessoas
SENSAÇÃO E INTUIÇÃO - S E N
Sensação e intuição descrevem a maneira como você compreende e interpreta novas informações.
Quem prefere usar a sensação confia mais nas informações que podem ser compreendidas pelos
sentidos - coisas tangíveis e concretas - e presta mais atenção nos detalhes e nos fatos. Já a intuição
é mais usada por quem se apega mais ao abstrato e às hipóteses, e se interessa mais pelas
possibilidades do futuro. São essas pessoas que normalmente acreditam em insights, ideias que
parecem ter vindo do nada.
SENSITIVOS x INTUITIVOS
Valorizam a experiência do agora Se preocupam mais com o futuro do que com o presente
Preferem as situações práticas São mais atraídos pelas teorias
São realistas e confiantes Se permitem ter mais dúvidas
RAZÃO E EMOÇÃO - T E F
Razão e emoção são funções de julgamento, voltadas para a tomada de decisões. É uma dessas
funções que você usa depois de interpretar as informações do ambiente com uma das funções
descritas no parágrafo anterior. Quem prefere a razão tem a tendência de tomar decisões lógicas,
levando em conta as relações de causa e efeito, baseadas em regras consistentes. Essas pessoas
geralmente são francas e não lidam bem com outras que não se baseiam na lógica. Os que pendem
para o lado da emoção tomam decisões por associação ou por empatia, e buscam chegar à harmonia
e ao consenso para as pessoas envolvidas na situação.
RACIONAIS x EMOCIONAIS
Estão mais interessados em sistemas, estruturas e padrões Preferem o elemento humano e gostam dos sentimentos
Têm dificuldades em lidar com sentimentos Valorizam sentimentos como amor e paixão
Avaliam as coisas a partir da noção de certo e errado Avaliam as coisas a partir da noção de bom e ruim
JULGAMENTO E PERCEPÇÃO - J E P
Além das funções e das atitudes, Myers e Briggs criaram outra dimensão da personalidade, que
chamaram de “estilo de vida”. Compreendê-la é um pouco mais complexo do que entender as
classificações anteriores. Usamos o julgamento e a percepção quando vamos nos relacionar com o
mundo que está fora de nossas mentes. Quando desenvolvemos a preferência pelo julgamento,
normalmente mostramos para os outros ou a nossa tendência ao pensamento ou ao sentimento (ou
seja: ou à razão ou à emoção). Este estilo é próprio das pessoas que gostam de resolver logo seus
problemas. Os que preferem a percepção em vez do julgamento costumam deixar suas opções
abertas e mostram para os outros se são mais sensoriais ou mais intuitivos.
O J e o P indicam as funções dominantes e são essenciais para a classificação, porque
determinam quais são as suas preferências racionais ou irracionais mais visíveis para os outros.
Vamos usar o exemplo de uma pessoa cujo resultado do teste indicou que é do tipo ENTJ. Podemos
concluir, de cara, que ela é extrovertida.
O J indica que a função dominante é uma função racional – portanto T (razão). A função auxiliar é
uma das irracionais – ou seja, N (intuição). A função terciária é a sensação (oposta à intuição), e a
função inferior, o sentimento (oposto à razão).
JULGADORES x PERCEPTIVOS
Não deixam questões mal resolvidas Fazem várias coisas ao mesmo tempo, e podem não terminá-
las
Se planejam com antecedência Normalmente agem sem se planejar
São estáveis e não se sentem confortáveis com mudanças de São curiosos, inovadores e preferem a liberdade à obrigação
decisão
…
Segundo o modelo de Myers-Briggs, cada um de nós usa uma das quatro funções com mais
desenvoltura. Se você é uma pessoa que se preocupa mais com o futuro do que com o presente e se
permite ter dúvidas, por exemplo, a sua função dominante é a intuição. Mas isso não quer dizer que
você vá excluir as características típicas de outras funções do seu comportamento. É que, além da
função dominante, a gente também usa as outras três, só que de forma bem mais infantil.
A função auxiliar, por exemplo, é parcialmente desenvolvida. Se a função dominante é a intuição
(ou seja, é irracional), a auxiliar será racional: razão, por exemplo. A função inferior é como se fosse
a sombra da dominante – e pode se manifestar de maneira inconsciente. Para continuar com o
mesmo exemplo, podemos dizer que alguém cuja função dominante é a intuição tem como função
inferior a sensação.
CRÍTICAS
O MBTI enfrenta alguns ataques. Em 1993, quando o método já havia ganhado repercussão
internacional, o psicólogo David J. Pittenger, da Marietta College, nos Estados Unidos, publicou um
artigo que reúne argumentos que colocam o valor do MBTI em questão. O texto refletiu a visão
negativa de muitos psicólogos da época sobre o teste, e até hoje é citado como referência. Para
Pittenger, o problema central do MBTI está nas dicotomias - que não seriam exatamente
dicotômicas.
O que acontece é que a preferência por uma ou outra atitude deixa de levar em conta tudo o que
está entre elas. “O resultado da maior parte das pessoas está entre os dois extremos. O que significa
que, apesar de uma pessoa ser classificada como E, seu resultado pode ser bem similar aos das
pessoas do tipo I”, diz Pittenger em Measuring the MBTI... And Coming Up Short (algo como
“Medindo o MBTI... e ficando abaixo do esperado”, em tradução livre). O psicólogo também aponta
um problema de confiabilidade no teste - o que, na prática, representa uma falha de consistência. De
acordo com uma medição feita em 1979 - quando o MBTI ainda era relativamente novidade no
mundo da psicologia -, 50% das pessoas que refaziam o teste até nove meses depois de já terem
feito pela primeira vez eram classificadas em um tipo diferente. Como você pode supor, uma
margem de erro tão alta é suficiente para que se desconfie do resultado.
O teste é propriedade intelectual da The Myers and Briggs Foundation - portanto, não podemos
publicá-lo aqui. Seja como for, existem outros testes nessa linha. E um dos mais célebres é o Big
Five, protagonista das páginas seguintes.
CONSCIÊNCIA X INESCRUPULOSIDADE
Organização e eficiência são palavras de ordem de quem é classificado como “consciente” pelo Big Five. A
consciência, segundo o modelo, é uma característica típica das pessoas determinadas, disciplinadas, que fazem de
tudo para atingir seus objetivos. Na hora do trabalho, o que vale é o planejamento a longo prazo e o controle dos
impulsos. Um estudo da Universidade do Estado de Michigan indicou que esse traço normalmente está mais presente
nos jovens adultos, e um pouco menos forte entre as pessoas de meia-idade. Do lado oposto estão as pessoas
espontâneas, que se deixam levar por impulsos e que trabalham melhor quando improvisam.
NEUROTICISMO X ESTABILIDADE
Algumas pessoas simplesmente tendem a ver o lado ruim das coisas - são as vítimas do neuroticismo. Pessoas
emocionalmente instáveis, que se irritam facilmente, são ansiosas e apresentam sintomas de depressão. As reações
emocionais negativas, como o desânimo em relação à vida depois de uma frustração pequena, são sinais de que o
traço de neuroticismo é elevado. Esta característica da personalidade pode atrapalhar na hora de tomar decisões. Por
isso, considera-se que pessoas com o traço oposto pensam com mais clareza e são mais calmas. Mas isso não
significa que essas pessoas só tenham sentimentos positivos.
EXTROVERSÃO X INTROVERSÃO
Aqui voltamos para as descrições básicas de Jung: pessoas extrovertidas valorizam envolvimento com o mundo
exterior, o trabalho em grupo e a companhia de outras pessoas. Diferentemente das pessoas com grau elevado de
neuroticismo, os extrovertidos tendem a expressar emoções positivas, como o entusiasmo em relação a um novo
projeto. Já a introversão é uma característica presente nas pessoas mais ponderadas e menos dependentes da
interação social.
AMABILIDADE X ANTISSOCIABILIDADE
A harmonia social é uma das principais motivações de quem tem níveis altos de amabilidade. Para alcançá-la, essas
pessoas tendem a superar diferenças individuais para manter uma boa relação com os outros. São respeitosas,
amigáveis, prestativas e comprometidas – e têm tendência a confiar na bondade alheia. O oposto deste traço
psicológico está presente nas pessoas que colocam o interesse próprio acima da harmonia social. Como as boas
relações e o bem-estar alheio não lhes interessam, elas podem ser taxadas como menos amigáveis e egoístas.
É isso. Quer saber quem é você segundo o Big Five? Faça o teste em http://abr.io/superbigfive
CRÍTICAS
Na comparação com outras medições, como o MBTI, o resultado do Big Five parece bem menos
certeiro - o que se deve ao fato de ser mais abrangente e eficiente ao identificar tendências. A maior
parte das alternativas usadas no questionário são frases curtas ou mesmo palavras com as quais
você pode concordar ou discordar. Como todos os outros métodos de avaliação da personalidade que
vimos antes, o Big Five também não está imune às críticas. Em 2010, o psicólogo Jack Block resumiu
falhas que encontrou no modelo. Além de apontar o fato de que a interpretação do resultado pode
variar de um teste aplicado para outro, Block também criticou sua utilização como uma maneira
definitiva de descrever a personalidade. O problema, para ele, é a ausência de outros fatores
considerados importantes para a compreensão do perfil psicológico de cada um, como capacidade
de julgamento, noção de identidade, motivação, religiosidade e até questões relativas à
masculinidade e à feminilidade.
A psicologia, seja como for, é uma ciência como outra qualquer. Ou seja: ela não dá uma resposta
final, mas uma boa aproximação. Não traz uma verdade absoluta; ilumina a nossa busca por ela. Por
esse ponto de vista, o MBTI e o Big Five são, sim, ótimos faróis para o autoconhecimento. E agora é
hora de darmos um passo adiante. Depois de entender o que é a personalidade, você já está pronto
para saber por que você é assim. No próximo capítulo.
Vai ser assim
para sempre?
Os 16 perfis
do teste
Myers-Briggs
ISFJ
INTROVERSÃO, SENSAÇÃO, EMOÇÃO, JULGAMENTO
É tranquilo, simpático, responsável e consciente. Cumpre suas obrigações com empenho. É
meticuloso, preciso, leal, dedicado, lembra-se de detalhes sobre pessoas importantes, e é
preocupado com os sentimentos alheios. Esforça-se para criar um ambiente harmonioso e
organizado no trabalho e em casa.
INFJ
INTROVERSÃO, INTUIÇÃO, EMOÇÃO, JULGAMENTO
Está sempre em busca de significados e conexões em ideias, relações e posses materiais. Quer
entender o que motiva as pessoas e é perspicaz em relação aos outros. É consciente e comprometido
com seus valores. Procura sempre a melhor forma de servir o bem comum. É organizado e decidido
para colocar sua visão em prática.
INTJ
INTROVERSÃO, INTUIÇÃO, RAZÃO, JULGAMENTO
Tem grande força de vontade para colocar suas ideias em prática e alcançar seus objetivos.
Consegue reconhecer padrões em acontecimentos rapidamente e entender seus motivos. É cético e
independente, e tem padrões de competência e desempenho elevados - que aplica a si mesmo e aos
outros.
ISTP
INTROVERSÃO, SENSAÇÃO, RAZÃO, PERCEPÇÃO
É tolerante, flexível, e observa silenciosamente até surgir um problema. Então, age rapidamente
para encontrar soluções viáveis. Analisa o funcionamento das coisas e identifica rapidamente o
centro de problemas práticos. Interessa-se pela causa e pelo efeito das coisas e organiza fatos
usando princípios lógicos. Valoriza a eficiência.
ISFP
INTROVERSÃO, SENSAÇÃO, EMOÇÃO, PERCEPÇÃO
É tranquilo, amigável, sensível e gentil. Aproveita o momento presente e presta atenção ao que está
acontecendo ao seu redor. Gosta de ter seu próprio espaço e trabalhar no seu próprio ritmo. É leal,
mostra comprometimento com seus valores e com as pessoas importantes. Não gosta de conflitos e
discordâncias, por isso não obriga os outros a aceitar seus valores e opiniões.
INFP
INTROVERSÃO, INTUIÇÃO, EMOÇÃO, PERCEPÇÃO
É idealista, fiel aos seus princípios e às pessoas importantes. Almeja uma vida que esteja de acordo
com os seus valores. É curioso, enxerga possibilidades rapidamente, pode ser catalisador de ideias.
Procura compreender as pessoas e ajudá-las a explorar seu potencial. Consegue se adaptar bem a
novas situações, é flexível e receptivo, exceto quando um de seus valores está em jogo.
INTP
INTROVERSÃO, INTUIÇÃO, RAZÃO, PERCEPÇÃO
Procura desenvolver explicações lógicas para tudo o que lhe interessa. É teórico e abstrato e se
interessa mais pelas ideias que pelas interações sociais. É calmo, contido, flexível e adaptável. Tem
uma habilidade incomum para se concentrar e resolver problemas em sua área de interesse. É
cético e às vezes crítico, mas sempre analítico.
ESTP
EXTROVERSÃO, SENSAÇÃO, RAZÃO, PERCEPÇÃO
É flexível e tolerante. Costuma ter uma abordagem pragmática focada em resultados imediatos.
Teorias e explicações o chateiam - ele quer agir energicamente para resolver o problema.
Concentra-se no aqui e agora, é espontâneo, aprecia cada momento em que pode interagir com
outros. Gosta de conforto material e estilo. Aprende fazendo.
ESFP
EXTROVERSÃO, SENSAÇÃO, EMOÇÃO, PERCEPÇÃO
É extrovertido, amigável e receptivo. Preza a vida, as pessoas e o conforto material. Gosta de
trabalhar em conjunto para fazer as coisas acontecerem. Traz o senso comum e uma abordagem
realista para o trabalho - e faz com que a obrigação seja divertida. É flexível e espontâneo, adapta-se
facilmente a novas pessoas e ambientes. Aprende melhor explorando novas habilidades com outras
pessoas.
ENFP
EXTROVERSÃO, INTUIÇÃO, EMOÇÃO, PERCEPÇÃO
Tem imaginação fértil e entusiasmo contagiante. Vê muitas possibilidades na vida. Faz conexões
entre os eventos e informações rapidamente, e segue em frente com confiança, levando em conta os
padrões que reconhece. Quer muita afirmação dos outros, e está pronto para dar suporte e
reconhecimento. É espontâneo e flexível, e frequentemente confia nas próprias habilidades para
improvisar e na sua fluência verbal.
ENTP
EXTROVERSÃO, INTUIÇÃO, RAZÃO, PERCEPÇÃO
É rápido, engenhoso, estimulante, alerta e franco. Tem habilidade para resolver problemas novos e
complicados. Gosta de gerar possibilidades conceituais e, mais tarde, analisá-las estrategicamente.
É bom em compreender outras pessoas. A rotina lhe dá tédio - raramente ele vai fazer a mesma
coisa da mesma forma.
ESTJ
EXTROVERSÃO, SENSAÇÃO, RAZÃO, JULGAMENTO
É prático, realista e mantém os pés no chão. É decidido e se mexe rapidamente para colocar suas
decisões em prática. Organiza projetos e delega funções para realizar coisas, e se concentra em
obter resultados da forma mais eficiente possível. Cuida dos detalhes de rotina. Tem um conjunto
claro de padrões lógicos, que segue sistematicamente - e quer que os outros o façam também. É
enérgico na hora de colocar planos em prática.
ESFJ
EXTROVERSÃO, SENSAÇÃO, EMOÇÃO, JULGAMENTO
É caloroso, consciente e cooperativo. Gosta de harmonia em seu ambiente e trabalha com
determinação para alcançá-la. Gosta de trabalhar em conjunto para completar tarefas com precisão
em tempo hábil. É leal mesmo em pequenas coisas. Percebe com facilidade o que os outros precisam
e tenta suprir essas necessidades. Gosta de ser reconhecido por quem é e pela sua contribuição.
ENFJ
EXTROVERSÃO, INTUIÇÃO, EMOÇÃO, JULGAMENTO
É empático, caloroso, sensível e responsável. Está sempre ligado nas emoções, necessidades e
motivações das outras pessoas. Encontra potencial em todos e gosta de ajudar os outros a explorar
seu potencial. Pode agir como catalisador para o crescimento individual e do grupo. É leal, sensível
a elogios e críticas. Sociável, sempre facilita o trabalho em grupo e é um líder inspirado.
ENTJ
EXTROVERSÃO, INTUIÇÃO, RAZÃO, JULGAMENTO
É honesto, decidido e assume a liderança rapidamente. Identifica com facilidade procedimentos e
políticas ineficientes e ilógicos, enquanto desenvolve e coloca em prática sistemas abrangentes para
resolver problemas. Gosta de fazer planos a longo prazo e estabelecer metas claras. Normalmente é
bem informado, gosta de expandir seus conhecimentos - e compartilhá-los com os outros. É
contundente na hora de apresentar suas ideias.
Eu,
ansioso
Um ansioso escrever um livro sobre a ansiedade é uma piada pronta. Eu me sento de frente para o
computador, bato minha perna, dou uma olhada no Facebook e logo corro até a cozinha, ver o que
está na geladeira. Aproveito e boto a chaleira para ferver - algo me diz que, se não me intoxicar de
cafeína, não conseguirei me concentrar e passarei a tarde inteira lendo notícias on-line. Sento-me
novamente de frente para o computador.
Esboço essas palavras com medo de que não entregarei este livro a tempo. Então, olho para a
janela - “está chovendo torrencialmente, e um raio acabará queimando todos os eletrônicos de
casa”. Penso então no piano digital, que está na tomada - “e, ah, preciso estudar mais, pois a compra
que parcelei em dez vezes no cartão de crédito precisa valer a pena.”
Levanto-me e desligo alguns eletrônicos, menos a tomada na qual estão ligados o roteador, a
televisão e o aparelho de som, e fico torcendo para que eles não queimem com um raio. Volto a me
sentar de frente para o computador. Começo a bater o pé. Respiro fundo. Fecho os olhos. Logo vêm
à mente as contas a pagar. Aluguel. O contrato está acabando, e tenho de começar a procurar um
novo apartamento.
As pernas começam a bater mais rápido. Não posso me esquecer de fazer o exame de colesterol,
pois logo terei a consulta do cardiologista. Toda a família da minha mãe tem colesterol alto. Parte da
família do meu pai tem problemas cardíacos. Se eu não cuidar da saúde, já era. Preciso ir à
academia. Dou uma coçada na nuca. E penso: “tenho de me acalmar, senão terei mais uma crise de
gastrite”. Abro novamente o Facebook, respondo um e-mail do meu contador e volto à cozinha para
ver se a água está fervendo. Preciso de café.
Desde criança sou ansioso. Muito ansioso. Pessoas próximas a mim sempre reclamaram que eu
não fico quieto. Há quem não consiga estudar na biblioteca por ficar entediado. Eu, não. Nunca
estudei na biblioteca porque só consigo entrar num livro de pé, andando. Em casa, na rua, no
parque. Já atropelei alguns postes e já quase fui atropelado por carros enquanto lia. Já quebrei o
botão de mudar de canal do controle remoto da tevê. Já terminei namoros porque não combino com
calmaria. Nos últimos dez anos, mudei de endereço 11 vezes, e neste ano devo mudar pela 12ª.
Escolhi estudar jornalismo, pois qualquer outra profissão teria uma rotina monótona demais. Mas,
ao começar a trabalhar, vi que mesmo repórteres têm uma rotina surpreendentemente monótona.
Então, o máximo de tempo que fiquei num mesmo emprego foram sete meses. Restou-me trabalhar
como freelancer, a cada hora com um projeto diferente. O problema é que isso significa escrever em
casa. E trabalhar em casa dá uma ansiedade...
Por isso este livro significa tanto para mim. Prefiro não escrever na primeira pessoa, pois acho
que minha vida é completamente irrelevante para você, leitor. Mas, neste caso, tenho de ser honesto
e falar que não sou desinteressado no assunto. Cada informação nova que encontrei nas pesquisas
para este livro teve um impacto pessoal extremo. E um impacto positivo. Descobri que a ansiedade
que nos faz sofrer num grau maior ou menor não é um defeito, mas uma valiosa adaptação evolutiva
que nos protege das mais remotas ameaças. Ela funciona como o alarme de incêndio que dispara
mesmo com a fumaça de um cigarro.
No capítulo 1, entenderemos, sob o ponto de vista da psicologia evolutiva, que essa emoção
angustiante foi uma adaptação que livrou nossos ancestrais de vários apuros - e que hoje, nos
tempos em que a caça foi trocada pelo supermercado, vive dando tilts. No capítulo 2, vestiremos os
óculos da neurociência para entender os mecanismos mentais e corporais envolvidos na ansiedade.
Isso permitirá explicar como aprendemos a sentir medo e ansiedade diante de situações muito
diferentes daquelas que nossos ancestrais enfrentaram na savana. Será então a hora de partir para
a psicologia cognitiva e entender, no capítulo 3, que a mente é dividida entre intuição e raciocínio, e
que, na hora de avaliar riscos, somos levados pela intuição. No capítulo 4, descobriremos as
estratégias da nossa mente para identificar intuitivamente riscos possíveis no mínimo de tempo e
com o mínimo de informações - e como isso nos deixa ansiosos diante de riscos ilusórios. Quando
esse nível de ansiedade causar muito sofrimento, desvantagem e invalidez, psiquiatras podem
diagnosticá-lo como um transtorno mental. É o que veremos no capítulo 5, quando também
discutiremos as razões por que sentimos tanta ansiedade no mundo de hoje, mesmo que a
humanidade nunca tenha sido tão próspera e saudável.
Boa leitura.
A ansiedade é boa
AS DUAS MENTES
Ao ver uma fotografia de um homem de seus 40 anos falando ao celular, de paletó, com expressão de
raiva, somos capazes de, imediatamente, julgar o que ele sente e imaginar que é um executivo
discutindo sobre alguma decisão errada tomada por algum subordinado. Por outro lado, se virmos o
seguinte cálculo - 782 x 43 -, precisaremos de papel e caneta para chegar ao resultado. Na pressa,
arredondamos a conta para algo como 800 x 40, e não demorará muito para chegarmos a 32.000 -
nada mal, quando o resultado correto seria 33.626. Mas precisamos dar vários passos para chegar a
um resultado impreciso. Arredondamos os números para uma potência de 10, somamos o número de
zeros, multiplicamos 8 por 4 e colocamos depois do resultado o total de zeros. Já um computador
fará o cálculo exato imediatamente. Mas não chegaria aos pés de nossa intuição ao identificar o
homem de paletó como um executivo nervoso. E o que os humanos precisam para se guiar pelo
ambiente não é de números exatos, mas, sim, da intuição - formada a partir de emoções primárias
inatas e dos marcadores somáticos sobre os quais acabamos de falar.
Nossa intuição é uma vantagem enorme para nosso sucesso evolutivo. Se não fosse isso, não
conseguiríamos identificar características comuns aos vegetais que comemos, odores de alimentos
podres, animais que provavelmente serão perigosos. Ouvimos um trovão e sabemos que choverá.
Percebemos que uma superfície é úmida e sabemos que não é uma boa ideia dormir sobre ela.
Identificamos a raiva de um interlocutor nas primeiras palavras que ele enuncia ao telefone.
Mudamos de faixa na estrada diante dos mais sutis sinais de agressividade do carro de trás. Mas o
mesmo mecanismo também nos torna péssimos para julgar e tomar decisões em situações mais
complexas. Somos cegos em estatística.
Os responsáveis pelos estudos mais respeitados sobre como avaliamos as coisas diante de
situações incertas foram o psicólogo Daniel Kahneman e seu parceiro já falecido Amos Tversky. Suas
pesquisas - que começaram na década de 1970 na Universidade Hebraica de Jerusalém - renderam o
Nobel de Economia, e foram resumidas junto a descobertas relevantes na área em 2011 no livro
Thinking, Fast and Slow. Sua base está em propor que a mente funciona com dois sistemas distintos.
Um opera automaticamente, com quase nenhum controle. São as intuições, impressões, intenções e
sentimentos. Ele dá origem às nossas impressões e sentimentos, comanda nossas crenças e nossas
decisões deliberadas. O outro exige que foquemos nossa atenção em computações complexas, passo
a passo.
O primeiro sistema - vamos chamá-lo de “Sistema 1” - nos permite identificar se um objeto está
mais distante do outro, faz-nos responder a um estímulo com uma expressão facial, reconhece
logotipos de marcas comerciais e riscos em potencial. Assim, percebemos o mundo à nossa volta,
reconhecemos objetos imediatamente e identificamos o que pode nos trazer um benefício ou uma
perda. Conforme somos educados, treinamos habilidades específicas que se tornam também
automáticas. Um engenheiro pode olhar para uma estrutura e sentir que ela não é estável, e um
médico não precisa mais do que olhar para uma garganta inflamada para chegar a um diagnóstico
preliminar. Se não fosse isso, cairíamos no primeiro exemplo deste capítulo - a incapacidade de
entender a palavra “SUPREINETERSSANTE” como “SUPERINTERESSANTE”.
Mas basta exigir um pouco de atenção para que mudemos para o segundo sistema, que
chamaremos de “Sistema 2”. Precisamos fazer esse tipo de operação toda vez que nosso piloto
automático não consegue dar conta daquilo que encontramos à frente. Por exemplo, quando
mentalizamos quem é quem num livro com uma árvore genealógica complexa como a de Cem Anos
de Solidão. Ou quando paramos para lembrar de quem é aquela música que tocava no carro que
passou por você no trânsito. Ou quando tentamos agir de forma apropriada numa situação social a
que não estamos acostumados. Ou quando procuramos uma pessoa em específico na multidão. Ou
quando percebemos que o rato tem três patas. Sem prestar atenção, não conseguiremos completar
essas tarefas.
O problema é que a atenção é cara. Quando nos ocupamos com uma única atividade mental,
deixamos de lado outros estímulos que podem ter importância. No livro The Invisible Gorilla: And
Other Ways Our Intuitions Deceive Us, Christopher Chabris e Daniel Simons relatam um
experimento com milhares de voluntários. Eles deviam assistir a um vídeo com dois times passando
bolas de basquete, um vestindo uniforme preto, outro, branco. Um grupo deveria contar o número
de passes do time de branco, ignorando os de preto, enquanto o outro apenas assistiria ao vídeo. Na
metade do jogo, uma mulher fantasiada de gorila passou pela quadra por 9 segundos. Metade dos
voluntários que contavam os passes não percebeu a presença do gorila, enquanto todos os do outro
grupo perceberam. A conclusão do estudo é de que nos tornamos cegos quando estamos atentos a
uma coisa só. E deixar de ver o que está à nossa volta é receita para ser comido por um leão. O peso
evolutivo disso é enorme.
É por isso que passamos a maior parte do tempo rodando predominantemente no Sistema 1,
enquanto o Sistema 2 trabalha no modo de economia de energia. “Essa divisão de tarefas é muito
eficiente: minimiza esforços e otimiza o desempenho”, diz Kahneman. Mesmo quando nossa atenção
é capturada e passamos a raciocinar, o Sistema 1 continua a influenciar o Sistema 2. “Se forem
endossadas pelo Sistema 2, impressões e intuições se tornam crenças, e impulsos se tornam ações
voluntárias. Se tudo for bem - o que acontece na maior parte do tempo - o Sistema 2 aceita as
sugestões do Sistema 1 com pouca ou nenhuma alteração. Você geralmente acredita em suas
impressões e age conforme seus desejos.”
Mas toda vez que o Sistema 1 não dá conta de entender um evento menos familiar ou que viola as
regras que o comandam, sentimos surpresa. E a surpresa nada mais é do que o Sistema 1 chamando
o Sistema 2 para resolver o problema. É o que acontece, por exemplo, quando andamos na “Casa
Maluca” de parques de diversões, e bolas se movem sozinhas sobre a superfície plana da mesa de
bilhar. Paramos e, a partir de nosso repertório de leis da física e de outros estímulos que
percebemos em nosso entorno, concluímos que, na verdade, a casa inteira está inclinada. A bola não
está andando sozinha, mas, sim, é “puxada” pela gravidade.
E o que isso tem a ver com a ansiedade? Simples. A evolução se encarregou também de
selecionar aqueles indivíduos que tivessem um Sistema 1 capaz de aprender com a criação, com a
experiência e com a educação. Afinal, os estímulos que representavam alguma ameaça à
sobrevivência e à reprodução não eram apenas animais perigosos, solidão, traição do cônjuge,
pessoas desconhecidas, ambientes pouco familiares e altura. Situações novas traziam novas
ameaças e novas recompensas. E, da mesma forma como aprendemos a realizar novas tarefas por
meio da comunicação, aprendemos a identificar novos riscos. De início, isso pode exigir um enorme
esforço de memorização, coordenação, avaliação. Inserir uma agulha numa veia, afinar um violão,
reconhecer o ponto de cocção de um peixe, fazer a baliza de um carro e identificar o comportamento
suspeito de um assaltante em potencial podem exigir uma
quantidade enorme de raciocínio do Sistema 2. Mas, conforme praticamos essas tarefas, o Sistema 1
passa a internalizá-las.
Como o Sistema 1 é, por definição, automático, ele não pode se dar o luxo de pesar as inúmeras
variáveis necessárias para que uma coisa de fato represente uma ameaça. Ele cria um estereótipo
do que é o risco e imediatamente desencadeia uma reação. Afinal, quanto menos variáveis tiverem
de ser pesadas, mais rápida a reação, e maior a chance de sobrevivência diante de um risco.
Por exemplo, em vez de observar os vários traços comportamentais de pessoas à sua volta, ele já
guarda um estereótipo mental do que é o ladrão. Se, ao longo de suas experiências de vida, uma
pessoa criar um estereótipo de que ladrões são homens jovens e negros vestidos com roupas largas
que andam em ruas vazias e mal iluminadas, ela vai provavelmente mudar de calçada quando
encontrar alguém com essas características.
É claro que ela pode usar o Sistema 2 para chegar a melhores estratégias numa situação dessas.
Mas mesmo o Sistema 2, que consideramos tão racional, levará em conta a intuição informada pelo
Sistema 1.
Assim, aprendemos a viver em constante alerta diante de muitas coisas, mesmo sem entender
qual a real dimensão de seu risco.
Para então deixar as coisas mais claras, vamos resumir esses dois sistemas e compará-los. Afinal,
trabalharemos com esses dois conceitos até o final deste livro.
SISTEMA 1:
1 - É holístico.
2 - É afetivo: orienta-se pelo prazer e pela dor.
3 - Faz conexões associativas.
4 - Traz comportamentos mediados pelo que sente de experiências passadas.
5 - Codifica realidade e imagens concretas, metáforas e narrativas.
6 - Tem um processamento rápido - é orientado para a ação imediata.
7 - Valida a experiência própria - viver algo é acreditar.
SISTEMA 2:
1 - É analítico.
2 - É lógico: orienta-se pelo que é razoável.
3 - Faz conexões lógicas.
4 - Traz comportamentos mediados pela avaliação consciente de acontecimentos.
5 - Codifica a realidade em símbolos abstratos, palavras e números.
6 - Tem um processamento lento - é orientado para a ação atrasada.
7 - Exige justificação pela lógica e por provas.
(fonte: Slovic, Finucane, Peters, MacGregor, 2004)
Agora, falta entender quais são as estratégias que o Sistema 1 adota para chegar a conclusões
rápidas. É o que veremos no capítulo a seguir.
Somos muito burros
EM CIMA DA PIRÂMIDE
Mas a ansiedade não é disparada apenas pelo risco de morrer de fome, de doença ou de morte
matada. O mesmo processo civilizatório que aumentou a expectativa de vida trouxe novas causas
para ansiedade. Voltemos ao levantamento da OMS sobre prevalência de transtornos mentais ao
redor do mundo. A ansiedade é o mais comum deles. Para entender o que nos deixa tão ansiosos
hoje é necessário entender quais as novas causas para preocupação no estágio civilizatório a que
chegamos. Quem nos ajuda a chegar a essas pistas é Márcio Bernik, chefe do ambulatório de
ansiedade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. Para ele, há muitas respostas
para a ansiedade na civilização: as inúmeras hierarquias em que nos encaixamos numa sociedade
complexa, a grande carga horária de trabalho (enquanto suas provisões não acabassem, caçadores-
coletores podiam se dedicar ao lazer, e dificilmente precisariam trabalhar depois de o sol se pôr), a
quantidade e qualidade de informação a que se expõe por meios de comunicação, o afastamento de
grupos e de núcleos familiares, e a violência urbana. E em primeiro lugar, para Bernik, está o
ranking hierárquico. Se nossos ancestrais se comparavam com seus irmãos e cunhados, hoje você se
compara com Eike Batista. Aprendemos o significado de bilhões de reais e o que eles compram.
E sabemos que nunca chegaremos lá.
Não concorda? Vamos então fazer um teste. Pense na sua vida. Você acorda e vê que seu cônjuge
não é a Gisele Bündchen nem o George Clooney. Ou acorda sozinho. E, no espelho do banheiro,
percebe que você também não é Malvino Salvador nem Sabrina Sato. Toma o café da manhã - que
não é servido por empregadas da novela. Pega o seu carro e sai de seu bairro, que não é
Higienópolis nem o Leblon. Nas ruas da cidade que não é Nova York, vê os carros que não são o seu:
um sedã alemão aqui, uma SUV americana ali, enquanto você mal pagou as prestações de seu hatch
compacto. Chega ao seu trabalho - que não é na Apple nem no Itamaraty - e estaciona o carro numa
vaga distante (ao lado da entrada, vê mais sedãs alemães, e fica mais doído ainda diante do Mini
Cooper da sua chefe). No lobby, cumprimenta as pessoas que vestem Hugo Boss, Armani ou alguma
coisa trazida de Londres. Antes de começar a trabalhar, toma um expresso ordinário com adoçante,
enquanto o pessoal lá de cima não sabe qual variedade de Nespresso escolher. No escritório, vê a
bancada com vários computadores capengas, duas mesonas individuais com iMacs e a salinha de
persiana entreaberta do chefe do departamento. Senta-se no seu lugar (adivinhe qual é) e se lembra
mais uma vez de que demorará anos até que uma promoção o tire dessa cadeira bamba de estofado
rasgado e o coloque numa Herman Miller. Depois de você ter começado a trabalhar, uma revoada de
“bons dias” atravessa o andar até chegar a sua vez de cumprimentar o chefe. No almoço, você vai ao
quilo enquanto outros vão ao japonês. Paga com o seu cartão que não é platinum. Na saída, toma um
café - agora coado, servido numa garrafa térmica de plástico, na porta do restaurante. À tarde, visita
um cliente num escritório na região da Avenida Berrini. Entra na fila para fazer o cadastro na
recepção. E, ao apertar a mão do cliente, vê o relógio suíço. Antes de voltar para casa, passa na
academia - que não é de grife, mas cabe no seu bolso. Se você for mulher, vai engolir a barriga e
lamentar que nunca terá disposição para ficar com os glúteos daquela garota à direita (de qualquer
forma, deve ser uma desocupada que só vive na academia). Se for homem, vai engolir a barriga, mas
vai ficar no seu canto, para não passar vergonha perto do cara que coloca 40 quilos de cada lado do
supino (de qualquer forma, deve ser um desocupado que só vive na academia). No vestiário, abaixa
a cabeça ou só tira a cueca dentro da cabine do chuveiro - a comparação dói, compadre. De volta
para casa, liga a tevê - que ainda é daquelas de tubo de raios catódicos -, senta-se numa poltrona
que não é de designer escandinavo e começa a assistir às notícias ao lado daquela que não é Gisele
Bündchen ou daquele que não é George Clooney. Ou sozinho. Afinal, você não é um Malvino
Salvador nem uma Sabrina Sato.
Isso não é um manifesto antimaterialista nem mais um texto sobre como a classe média sofre.
Seres sociais são hierárquicos, e para eles o sucesso e o fracasso em sua hierarquia têm importância
tal como a sobrevivência e a reprodução. Só que, nas sociedades de caçadores e coletores, pessoas
pertenciam à hierarquia de seu bando. E, em sociedades complexas, elas pertencem a inúmeras.
Mesmo que você seja bonito, bom de cama e esteja no cargo máximo de uma empresa, encontrará
alguma situação na qual estará na parte inferior de uma hierarquia. Por exemplo, sua empresa pode
ser café-com-leite num mercado bem competitivo - e você pode ser um fracasso entre os jogadores
do clube de golfe do qual você é sócio.
Agora, comparemos isso a uma sociedade de caçadores e coletores. É verdade que nelas há
indivíduos mais dominantes e outros mais subordinados. Mas essa relação hierárquica é
influenciada por outros tipos de laço: os de amizade e os de família, que exploramos no volume
sobre o Amor desta coleção da SUPER. E laços de amizade e de família são mediados por emoções
como simpatia, gratidão, confiança, rancor e desconfiança. Uma pessoa de status alto que nutrir
simpatia por outra de status baixo tenderá a ter um comportamento altruísta. Isso faz o inferior
alimentar a gratidão pelo superior e tender a retribuir a ajuda no futuro. Essa relação constrói a
confiança entre os dois de tal forma que, quando houver a oportunidade de um trair o outro para
conseguir vantagem, acabe não cedendo
à tentação, por sentir culpa. Já quem acabar traindo quebrará a confiança e levará o outro ao rancor
e à vingança. Altruísmo de um lado e rancor de outro mantêm os laços de amizade. Em famílias,
indivíduos têm, além dessas emoções, o enorme interesse de ajudar uns aos outros para garantir o
sucesso daqueles que compartilham seus genes.
Tudo muda quando as sociedades se tornam mais complexas. Nasce a frase “amigos, amigos,
negócios à parte”. Para que um Estado ou uma empresa funcionem, é necessário deixar de lado os
laços de amizade e parentesco. Por exemplo, se um servidor público ou um político beneficiar um
parente, ele seguirá os interesses de seus genes, mas do ponto de vista do Estado seu ato será
nepotismo. Se um chefe promover apenas os seus amigos, seu ato jamais será um exemplo de má
gestão. E se um oficial do Exército de um país em guerra ajudar um amigo de uma nação inimiga,
passando informações confidenciais, será um traidor, provavelmente sujeito à pena de morte.
O que isso tem a ver com a ansiedade? Ser subordinado gera mal-estar, baixa a autoestima, faz
desejar ser o que não é e ter o que não tem. O risco de cair de hierarquia causa ansiedade. E o
amortecedor de sentimentos das relações de amizade e de parentesco não vale para as hierarquias
típicas de sociedades complexas. Para piorar, o estilo de vida urbano distancia o indivíduo de sua
família e de seus amigos. Quando um migrante se muda do campo para a cidade, ou um casal se
muda de um bairro para outro, diminui drasticamente o contato com sua família estendida - pais,
avós, tios, primos, sobrinhos. Ao entrar para o mercado de trabalho, diminui o convívio com a família
nuclear para a hora da janta e do café da manhã, e amigos ficam para os finais de semana. De resto,
sobram relações hierárquicas em que amizade não tem vez - mesmo o convívio entre colegas de
trabalho pode ser prejudicado pela competição interna por metas e promoções. E, para qualquer
canto que olhe, o indivíduo lembrará que há alguma hierarquia na qual ele está lá embaixo. Da
roupa ao futebol - ou golfe.
Não adianta falar que as sociedades complexas promoveram a expectativa de vida, a riqueza e as
baixas taxas de homicídio - um subordinado pode não passar fome nem ter o risco de ser morto por
um bando adversário que quiser ganhar o controle sobre um lago. Mas vai saber que seu salário é
inferior ao de outros colegas, vai lembrar-se de que precisou parcelar suas roupas em dez vezes e só
terá o melhor carro da rua se morar num bairro muito desvalorizado. E a ansiedade que isso
provoca tem impacto direto sobre sua saúde. Foi o que descobriu uma série de estudos iniciada no
fim da década de 1960, a começar com o Estudo Whitehall, feito pela University College of London.
Ele acompanhou por
dez anos o estado de saúde de 18 mil funcionários públicos britânicos e descobriu que, quanto mais
baixo seu status, mais obesos, mais fumantes, mais sedentários e mais hipertensos eram os
indivíduos - embora todos tivessem acesso a um sistema de saúde pública eficiente e a um salário
digno (lembrando, o estudo foi feito no Reino Unido). Uma possível causa para isso era a maior
produção de cortisol entre os funcionários de baixa hierarquia. O cortisol é conhecido como
hormônio do estresse. Quando seu nível aumenta, ele deixa o corpo pronto para tomar decisões com
mais rapidez e encarar desafios e perigos - a memória fica mais ativa e é liberada a adrenalina,
relacionada à já tão comentada reação de “luta ou fuga”. Isso é bom quando ocorre com parcimônia.
Mas, a partir de certo nível, esses efeitos são revertidos. O cérebro falha, a memória é prejudicada e
o sistema imunológico fica menos eficiente. Como essas ameaças são constantes, não há tempo para
o corpo se recuperar da corrida armamentista de cortisol e adrenalina, e o corpo acaba doente.
É o que acontece quando um indivíduo enfrenta ameaças frequentes: a competitividade no
trabalho, a instabilidade do emprego, a falta de aprovação social por não usar a marca de roupa
“correta” e o risco de falhar num encontro romântico - não ter um carro legal nem dinheiro para
pagar um bom restaurante. E, não vamos esquecer, com nosso Sistema 1 nos alertando
constantemente para coisas erradas, essas ameaças não precisam ser realistas.
Será que o estresse, a ansiedade e os problemas de saúde física não vêm das más condições
materiais de quem tem um status baixo? O doutor Bernik afirma que não: “Pegue um príncipe
africano e um afro-americano que vive num gueto de Detroit, nos EUA. Mesmo que o afro-americano
tenha acesso a muito mais bens materiais, provavelmente sua saúde - mental, inclusive - será
inferior à do príncipe. Enquanto um está na base da hierarquia, o outro está no topo.”
Isso é uma hipótese, e testá-la em humanos teria implicações éticas sérias. Mas podemos fazer
isso com outros seres sociais, como os macacos rhesus. Foi o que fizeram os pesquisadores Jenny
Tung e Yoav Gilad, da Universidade de Chicago. Eles analisaram as alterações na forma como os
genes desses primatas se expressam de acordo com seu status social. Genes não são ditadores - eles
se expressam de uma forma ou de outra de acordo com sua interação com o ambiente.
E a hierarquia é um fator ambiental importante para seres sociais.
No experimento, Tung e Gilad selecionaram 49 macacas rhesus de status intermediário em seu
grupo e mapearam 6 mil genes (cerca de 30% de seu genoma). Depois, separaram-nas em novos
grupos de quatro ou cinco macacas. Essa nova organização trouxe uma nova hierarquia dentro de
cada grupo. Novamente, analisaram aqueles 6 mil genes. A surpresa foi que a expressão de um em
cada seis genes das macacas mudou - principalmente entre os genes relacionados à regulação do
sistema imunológico e à sua resposta ao estresse.
Alguns genes ficaram mais ativos nas macacas que adquiriram um
status superior, outros, nas que adquiriram um status inferior. Ou seja, o organismo das macacas
mudou para ficar em conformidade com sua nova hierarquia. Uma hierarquia social inferior levou
também a uma saúde pior. Conforme o estudo continuou, sete macacas mudaram novamente de
posição na hierarquia. Resultado: aquelas que subiram de degrau social também tiveram uma
melhora de saúde,
no nível genético.
Agora, vamos ao caso específico de São Paulo. Uma cidade como ela reúne todos os fatores
disparadores de ansiedade que Bernik apontou. Sua sociedade possui muitas hierarquias, e sua
desigualdade social e concentração de renda são grandes. Além do tempo que passa trabalhando, o
paulistano perde em média 2 horas e 42 minutos em deslocamentos, segundo a “Pesquisa do Dia
sem Carro” de 2010, feita pelo Ibope. Isso diminui o pouco tempo que lhe resta de ócio com
familiares e amigos - e é ainda pior entre quem mora fora do centro expandido, em bairros-
dormitório sem estrutura de lazer. Os paulistanos também são bastante sedentários - segundo a
Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, metade dos habitantes do Estado é sedentária.
Meios de comunicação também mostram ao Sistema 1 o quão baixo é seu status em diversos
rankings
sociais e como a cidade está infestada de ameaças - mesmo aquelas que não são estatisticamente
importantes. Cidades do Sul da Europa são belas, agradáveis e relativamente ricas, mas é possível
que sua porcentagem de ansiosos em 2012 esteja acima da paulistana por conta do crescente
desemprego durante a crise econômica europeia. Afinal, quem está desempregado teme não
sustentar sua família, e quem está empregado teme perder o trabalho. O Japão pode ter uma
qualidade de vida altíssima, mas vive sob a sombra de desastres naturais. E a população americana
vive o nível mais alto de riqueza material de qualquer sociedade de todos os tempos, mas convive
com o medo do terrorismo, da perda do papel de única superpotência global com o crescimento da
China, da crise econômica, da obesidade, de adolescentes que matam colegas de escola com
metralhadoras, dos germes.
A ansiedade não é uma epidemia localizada no tempo ou num lugar. Ela é uma adaptação
evolutiva, que continuará a existir independentemente da prosperidade e da segurança da sociedade
em que vivermos, e continuará a ser disparada tanto diante de ameaças muito claras e reais quanto
diante de outras sutis, às vezes ilusórias. Ela continuará sendo uma ferramenta de sobrevivência
eficiente e um peso emocional, que nos fará sofrer enquanto não soubermos domar nossa intuição e
nosso raciocínio. Também continuará sendo uma ferramenta eficiente para nos convencer a tomar
decisões - seja apoiar uma guerra contra um suposto inimigo, seja comprar uma roupa que nos faça
parecer mais bem-sucedidos do que de fato somos.
Mas há uma forma de você controlá-la. Nos casos de transtornos clinicamente graves, é melhor
procurar um terapeuta e um psiquiatra - o objetivo deste livro não é servir de autodiagnóstico nem
de autoajuda. Já naquela ansiedade que incomoda a qualquer um, a estratégia é entender como o
Sistema 1 e o Sistema 2 funcionam e se proteger contra os erros da nossa intuição. Informar-se a
partir das fontes mais confiáveis para entender se um problema é de fato um problema, ou apenas
um erro de percepção. E, quando ele for real, buscar a solução do que tiver solução e aceitar que o
que não tem solução está solucionado. No momento em que termino de escrever este livro, estou
tomando café loucamente. Estou preocupado com a minha saúde e com a daqueles que eu amo.
Estou preocupado com minhas contas a pagar. Estou preocupado com a aceitação deste livro por
você, leitor - Será que eu fui claro? Será que os exemplos que escolhi são ilustrativos? Estou
preocupado também com o meu namoro, com a gravidez da minha irmã, com os conflitos no Oriente
Médio, com o aquecimento global. Sinto que o que aprendi com as pesquisas, leituras e entrevistas
que foram necessárias para completar este texto não curou a minha ansiedade - e tenho certeza de
que ela nunca será curada. Mas sinto, com a maior sinceridade, que elas me ajudaram a entender
essa emoção. A aceitá-la mais. A vê-la como necessária, e até boa. Agora, sinto que tenho mais
meios para entender o que de minhas preocupações é real e o que é pura encanação. Quem sabe, no
futuro, essa melhor compreensão faça com que eu e você sejamos pessoas melhores?...
Prólogo
Cego e
essencial
Comédias românticas não existiriam se fôssemos capazes de escolher quem amamos. Ele fez a
simpática garçonete Carol ficar com Melvin, o escritor misantropo, racista, homofóbico e obsessivo-
compulsivo interpretado por Jack Nicholson em Melhor É Impossível. Fez a Penny, a loira bonitona
de The Big Bang Theory, se apaixonar por Leonard Hofstadter, um físico experimental com 173
pontos de QI cujo charme é composto por intolerância a lactose, miopia e apneia.
Também não existiriam romances dramáticos. Você sabe: foi o amor que levou adiante tantas
variações do tema de Romeu e Julieta - Amor, Sublime Amor, Romeu Tem Que Morrer, O Rei Leão 2,
A Dama e o Vagabundo e assim por diante, com ou sem morte no final. E certamente já levou você a
fazer algumas escolhas amorosas das quais se arrependeu, mas que na época parecia a única coisa
que lhe traria felicidade.
Talvez melhor seria se o amor fosse como uma ferramenta de busca num site de relacionamentos.
Peguemos um exemplo fictício: Renato, um estudante de engenharia. Como em sua classe as
mulheres são poucas, e se envolver com alguém da empresa onde faz estágio pode atrapalhar sua
vida profissional, ele decide procurar sua cara-metade num site.
Seu tipo é “mulherão”. Mas não qualquer mulherão. Ele gosta das altas de quadris largos e seios
não muito grandes, mas que preencham suas mãos - desde que elas sejam mais baixas que ele. Elas
têm de ser fogosas na cama, porém não dominadoras. Devem ter cultura e inteligência, mas não das
que argumentem demais. E, como nada o assusta mais do que a possibilidade de ser traído, devem
valorizar muito o relacionamento - mas, como não abre mão dos amigos, não quer nenhuma
ciumenta.
Colocados os parâmetros e as palavras-chave na busca do site, surgem os resultados. Clica nas
fotos que mais agradam - altura nota 7, quadril nota 8, seios nota 6, mas os erros de ortografia o
fazem pular automaticamente para o próximo perfil. Outro não, mostra corpo demais, e Renato
pensa: “Essas são só para transar”. E assim segue até encontrar cinco mulheres dentro de seus
padrões. Duas parecem boas demais e, acuado, acaba só tendo coragem de enviar mensagem para
três. Delas, duas respondem com um “tudo bem”. Trocam alguns elogios, contam o que fazem da
vida, de que música gostam. Uma até parece bastante com ele - os dois gostam dos mesmos seriados
de TV, e conseguem até lembrar alguns diálogos dos personagens. É Débora, e é com ela que ele
acaba marcando um encontro numa hamburgueria.
Os encontros se repetem. Os amigos de Renato até começam a reclamar que não sai mais tanto
com eles e dizem que é hora de lhes apresentar a tal ficante, quase namorada. E é nesse momento
que Renato volta a olhar para os lados, pensando em outras mulheres.
Débora é uma companhia agradável, e o sexo vai bem. É a mulher ideal. Mas o casal percebe que
é hora de decidir se o namoro é para valer ou se os dois voltam à caça. E Renato não tem
taquicardia, insônia ou tremedeiras quando pensa em Débora.
Ele não sabe definir muito bem o que é o amor, mas não lhe resta dúvidas quanto ao que é sentir-se
amando. E conclui que não ama sua ficante. Diante da necessidade de fazer a escolha, Débora vira
um peso em sua vida. Continuar com ela não vale mais tanto a pena - significa apenas abrir mão de
uma mulher ainda mais perfeita que possa aparecer na sua vida. Renato não se acha um cafajeste.
Muito pelo contrário. Mas se deu conta de que não é capaz de amar uma categoria. E, a não ser pela
amizade que desenvolveu com Débora, seu relacionamento não é baseado em nada mais além de
uma intersecção de categorias. Altura, quadris, cintura, seios, idade, nível socioeconômico e gostos.
Ele gostaria de poder amá-la, mas não consegue. E, no fundo, sabe que ela também não o ama.
Talvez tenha se impressionado com seu cavalheirismo e se reconfortado com seu carinho. Mas
Débora sente que o estaria explorando se continuassem juntos sem se amarem.
Sim, o amor é cego, leva a escolhas irracionais e é valorizado exatamente por isso. Quem se une
por amor é virtuoso - e vai ser ainda mais virtuoso se o amado for pobre, doente ou feio. Tal como a
Rose de Titanic, que larga seu noivo milionário para ficar com Jack, um pobretão que só conseguiu
entrar no navio depois de ganhar a passagem numa partida de pôquer. Ou como a doutora Cameron,
de House, que se casa com um homem com câncer terminal e desde então carrega o trauma de sua
morte para seus futuros relacionamentos. Ou como a Bela, que se casa com a Fera - ainda que, no
fim do conto, a Fera se torne um príncipe, pois toda virtude há de ser recompensada. Já quem se
casa por motivos racionais é interesseiro.
A razão é dinheiro? Golpe do baú. A razão é beleza? Sexismo!
Ainda assim, o amor foi uma das ferramentas mais importantes para que os humanos evoluíssem
como seres inteligentes, capazes de se adaptar a qualquer ambiente e habitar todos os pontos secos
da Terra. Como isso foi possível? Para entender, precisamos dar uma breve olhada em como a nossa
cabeça funciona.
SALVAR AUTOMATICAMENTE
Nossa mente é um complexo software com várias ferramentas para realizar diferentes tarefas -
comer, reproduzir-se, defender-se, e assim por diante. Nesse software, cálculos e julgamentos são
apenas algumas dessas ferramentas, e estão longe de ter primazia sobre outras. Na tarefa de nos
reproduzir, falam alto ferramentas como o amor (isto é, o amor romântico que chamamos de paixão),
o tesão, a ligação e o ciúme.
Para a Teoria Evolucionista, a espécie humana não foi criada com essas ferramentas. Elas são
resultado de uma soma de mutações que deram certo na nossa tentativa de sobreviver e nos
multiplicar. Essas mutações acontecem bem ao acaso. A maioria desaparece rapidamente, por não
permitir a sobrevivência ou a reprodução do indivíduo. Essas mutações deletérias são como um bug
num aplicativo, que faz com que usuários não adotem sua versão ruim e esperem por próximas
atualizações. Outras mutações podem atrapalhar sem incapacitar, e acabam sendo passadas para
frente. São como o Clippy - um clipezinho animado do Microsoft Office 97 que, sem ser convidado,
pulava na tela para oferecer um tutorial toda vez que o usuário começava uma tarefa. Apesar de ser
eleito pela revista Time como uma das 50 piores invenções contemporâneas, o Clippy não impediu
que milhões comprassem o Office 97. O pacote de programas foi muito útil, mesmo com falhas.
Temos, por fim, as mutações que nos interessam: as que, ao longo de gerações, em meio a tantas
outras mutações deletérias e inúteis, contribuíram na formação de adaptações, ou seja, estratégias
que ajudaram na tarefa de sobreviver e nos reproduzir. Temos as adaptações. Se a mente é um
software, as adaptações são as ferramentas úteis desse software.
Vamos pegar o exemplo de um software editor de texto, como o Word. Em seus primórdios, esses
programas se limitavam a registrar e apagar caracteres. Era pouco, mas bastava para a tarefa de
escrever textos. Com o passar de suas versões, eles adotaram e aprimoraram ferramentas como
biblioteca de fontes, alinhamento de parágrafo, “salvar automaticamente”, corretor ortográfico,
dicionário de sinônimos, controle de alterações. Quanto mais úteis foram na tarefa de editar texto,
mais bem estabelecidas ficaram essas ferramentas. Hoje, textos são facilmente editados para ter a
aparência mais adequada, o menor número de erros ortográficos, o melhor vocabulário e o máximo
de segurança para não perder informações em caso de queda de energia.
Na tarefa de nos reproduzir, o amor romântico - assim como o tesão, a ligação e o ciúme -
aumentou as chances de termos filhos capazes de atingir a idade reprodutiva. É verdade que ele é
uma ferramenta imprevisível e incontrolável - é o “salvar automaticamente” do nosso editor de texto
reprodutivo. Ele nos foca em uma única pessoa, torna-a intransferível, nossa metade perdida. Ele
nos inunda de emoções que nos envolvem e nos fazem dispostos a tudo para nos relacionar com
nossa metade. Quando amamos, exageramos as qualidades e diminuímos os defeitos de nossa
pessoa preferida. Ficamos cheios de energia, hiperativos, insones, impulsivos, eufóricos, instáveis.
Lutamos, imploramos, mendigamos por atenção até conquistar o amado.
Mas o amor pelo amor não basta. Para nos reproduzir, precisamos do tesão - uma ferramenta que
nos faz atraídos por qualquer pessoa portadora de características sexualmente estimulantes. Para
manter o relacionamento e cuidar de nossos filhos, precisamos da ligação - que faz com que
continuemos unidos também a nossos familiares e amigos. E, para garantir que nosso amado não
queira outra pessoa, assim como nós não queremos ninguém senão ele, precisamos do ciúme.
Ganhamos todas as forças para transformar nossa vida numa comédia ou num drama.
IRMÃOS CAMARADAS
Vamos entender como é possível agir altruisticamente mesmo com pessoas que não compartilham
genes conosco. Para isso, Richard Dawkins propôs o seguinte cenário: uma ave é parasitada por um
carrapato transmissor de uma doença perigosa. Se não removê-lo, o bando inteiro pode sucumbir.
Catar parasitas com seu bico não é nenhum desafio para aves - exceto quando o bicho está no topo
da cabeça. Uma ave A seria beneficiada se uma ave B tirasse os carrapatos de sua cabeça. Mais
tarde, B poderia ser beneficiada pela ajuda de A. As aves capazes de adotar esse comportamento
teriam uma vantagem em relação a outras - e não é de surpreender que catar parasitas uns dos
outros seja um comportamento comum entre aves e mamíferos.
Mas há um risco nesse hábito. Um mutante trapaceiro C pode oferecer sua cabeça à ave A para
que a limpe; porém, quando A lhe pedir que retribua o favor, a ave C pode se negar a fazê-lo. Ser
trapaceiro é uma vantagem: quem burla regras recebe benefícios imediatos sem ter de arcar com os
custos futuros.
Diante do trapaceiro, as aves colaboradoras fazem um trabalho sem receber nada em troca.
Vamos chamá-las de trouxas. Bom, o ganho médio da ave trapaceira é maior que o da ave trouxa (a
primeira pode gastar seu tempo procurando parcerias sexuais ou alimentos, enquanto a segunda
cata carrapatos nos outros), seus genes tendem a aumentar na população dessa espécie de ave. E
isso pode seguir em diante até que os trouxas sejam extintos.
Isso até que surja uma terceira estratégia: a da ave rancorosa. Aves rancorosas se comportam de
forma altruística, como as aves trouxas. Mas, se uma trapaceira enganá-las, elas se lembrarão da
traição e lhes guardarão rancor, recusando-se a catar parasitas no futuro. Se a população de
rancorosas aumentar, elas conseguirão ganhos médios maiores que a das trapaceiras, que acabarão
expostas às doenças transmitidas pelos carrapatos.
Não há dúvidas de que os humanos são altruístas. Ajudamos uns aos outros em momentos de
perigo como acidentes e agressões, compartilhamos comida, ajudamos os doentes, feridos, infantes
e velhos, compartilhamos artefatos e conhecimento. E que somos também trapaceiros - roubamos,
enganamos, matamos - e rancorosos, a ponto de nossas sociedades formarem tribunais para
determinar penas contra quem infringir suas regras, desde conselhos de anciãos até sistemas
judiciários. Para a teoria evolutiva, foi o nosso complexo jogo de engano, desengano e reparação que
deu origem a sentimentos básicos que regem nossas relações sociais.
Ser explicitamente trapaceiro não é um bom negócio numa espécie que evoluiu com rancorosos
tão sagazes. Quando trapaceamos, procuramos fazer isso de forma sutil, para que o “trouxa” não
perceba a trapaça ou se veja obrigado a ceder. O que o trapaceiro busca então fazer? Fazer-se de
altruísta e retribuir um pouco os favores - só que numa medida muito inferior ao oferecido pelos
outros. Um tiquinho de retribuição garante ao trapaceiro grandes vantagens.
Vamos supor o caso de um carreteiro autônomo. Um dia ele pega uma grande mudança para
fazer - e precisa de um ajudante. Então chama um vizinho que está desempregado há meses. E lhe
paga só metade do que carreteiros costumam pagar para ajudantes - afinal, o outro está
desempregado, poxa. Ainda assim, nosso amigo carreteiro mostrará que é “melhor um pássaro na
mão do que dois voando”. E o vizinho permite ser explorado para não perder migalhas que, naquele
momento, são valiosas.
Entre os humanos, esse tipo de relação é modulado por emoções de cunho moral - foi o que
percebeu na década de 1970 o sociobiólogo Robert Trivers. O começo de tudo é a afeição. A seleção
privilegiou a tendência de gostar de pessoas que são bacanas conosco. Essa emoção nos faz entrar e
nos manter numa parceria altruísta. Mas pessoas altruístas estão sempre numa situação vulnerável,
por causa dos trapaceiros. A seleção natural, então, favoreceu um mecanismo de defesa: a
indignação.
A indignação contrapõe-se à tendência do altruísta de agir quando não há reciprocidade, de
educar o trapaceiro ameaçando-o caso não mude de comportamento - e, em casos extremos,
machucando, matando ou exilando o egoísta.
Como o custo de se machucar, exilar ou morrer é muito grande, dois outros sentimentos
evoluíram para nos sentirmos mal por nossas trapaças: a culpa e a vergonha. Quando a trapaça
permanece secreta, sentimo-nos culpados. Se ela vem a público, ficamos envergonhados. Esses
sentimentos são tão desagradáveis que acabamos evitando trapacear mesmo quando vale a pena.
Do lado oposto da trapaça, temos o desejo de ajudar os fracos e necessitados. Esse sentimento é
a simpatia. Quando alguém que sente simpatia por nós realiza um ato altruísta, que lhe custou
bastante e nos ajudou muito, sentimos por ele a gratidão - uma disposição de retribuir esse ato
assim que tivermos meios para isso.
Com o tempo, trapaceiros vão buscar formas cada vez mais sutis de traições, e, por
consequência, rancorosos criarão formas mais precisas de percebê-las. O sistema de crime e castigo
se tornará cada vez mais complexo, numa verdadeira corrida armamentista cognitiva.
Aprendemos, por exemplo, a simular generosidade e amizade para obter retribuição quando não
a merecemos. Mas, da mesma forma, também sabemos que nem sempre podemos acreditar que
alguém sente afeição por nós, ou que está realmente indignado. Por isso evoluíram a confiança e a
desconfiança. Com elas, protegemo-nos da hipocrisia. Aprendemos a identificar e memorizar sinais
de que a generosidade, a culpa, a simpatia ou a gratidão são falsas.
A confiança e a desconfiança não dependem somente de nossas experiências. A seleção favoreceu
aqueles que conseguiam aprender por meio de terceiros se uma pessoa tem tendência a ser altruísta
ou trapaceira. Ou seja, as fofocas são uma adaptação evolutiva. Atacamos a imagem de uma pessoa
que nos traiu para que nossa rede de amigos desconfie dela, e proclamamos as virtudes de outras
que nos ajudaram para que outros confiem nela. Assim construímos nosso sistema de confiança e
desconfiança.
O passo seguinte é agirmos para que nossa credibilidade seja honrada. Não basta mais apenas
ser altruísta diante de uma pessoa necessitada. Exibimos nossa generosidade e simpatia
publicamente, da mesma forma como demonstramos nosso ultraje quando nossas virtudes são
questionadas. Precisamos cuidar de nossa reputação para garantir que outras pessoas confiem em
nós - e, consequentemente, julguem-nos merecedores de sua colaboração. O sistema de confiança e
desconfiança se tornou então um sistema de honra muito mais complexo do que simples atos
altruístas ou trapaceiros.
Afeição, simpatia, gratidão e confiança. Amizades são calcadas em sentimentos assim - que
Aristóteles descreve em Ética a Nicômaco como philia. É o amor com cores de amizade
compartilhado por melhores amigos, por pais e filhos, por companheiros de viagem e de armas, por
membros da mesma comunidade ou religião. É um amor baseado na vantagem mútua, no prazer
mútuo e na admiração mútua, que nos faz ter a crença de que o outro aja conforme o combinado.
Permite que algo tão improvável quanto dois seres humanos localizados em pontos distantes em
quilômetros cheguem aproximadamente no mesmo horário em um mesmo lugar - digamos, um
cinema -, estabeleçam um diálogo e assistam ao mesmo filme lado a lado. Tudo isso a partir de uma
única troca de mensagens via celular.
TESÃO
Fisher acredita que o tesão também tem uma receita química: a testosterona, hormônio presente em
homens e mulheres, mas com concentração maior nos homens, nos quais é responsável pelo
desenvolvimento e pela manutenção de características sexuais. E há motivos para Fisher apostar no
papel da testosterona como afrodisíaco. Homens e mulheres com maiores níveis desse hormônio no
sangue tendem a fazer mais sexo; atletas que aplicam testosterona também têm mais pensamentos
sexuais e mais ereções; mulheres sentem mais desejo sexual na ovulação, quando seu nível de
testosterona é mais alto, e homens têm seu pico de libido no início dos 20 anos, quando têm mais
desse hormônio. Já ⅔ das mulheres de meia-idade não sentem queda do desejo, uma vez que a
queda do estrogênio com a menopausa aumenta os níveis de testosterona; e aquelas que perdem
libido após a cirurgia de remoção de ovários aumentam seu desejo sexual ao aplicarem emplastros
com testosterona.
Mas falta ainda entender por que e como isso acontece. Hormônios não viajam pela circulação
sanguínea sem eira nem beira. Eles são captados em diferentes partes do corpo, onde têm efeitos
diferentes, e também são transformados em diversos hormônios com a ajuda de enzimas. A 5a-
redutase, presente em folículos pilosos, por exemplo, transforma a testosterona em
dihidrotestosterona - uma versão bem mais poderosa do hormônio, responsável tanto pela maior
quantidade de pelos grossos no corpo masculino quanto pela calvície.
Já a aromatase, uma outra enzima, presente no cérebro, transforma a testosterona em estradiol,
um hormônio feminino. Ou seja, um comportamento desencadeado quando há uma alta
concentração de testosterona no sangue não significa que foi causado por uma alta concentração do
mesmo hormônio no cérebro. Sua atuação é complexa e depende da interação com outras enzimas
que a transforma em diferentes hormônios. Em resumo, a única certeza é de que a presença de
muita testosterona no sangue está relacionada à presença de muita libido, seja qual for a razão para
isso.
E como funciona o tesão no cérebro? De forma muito semelhante ao amor - deixando nossos
cérebros na fissura por dopamina, e depois satisfeitos. A equipe da neurocientista Kim Wallen, da
Universidade Emory, EUA, fez um teste semelhante ao de Fisher, só que comparando imagens de
sexo com imagens neutras. Tanto homens quanto mulheres tiveram ativados seus circuitos de
recompensa - o que tinha acontecido com apaixonados no experimento anterior. Mas houve uma
grande diferença: no estudo de Fisher, os apaixonados desligaram os centros de julgamentos e
cognição social do córtex cerebral; já no estudo de Wallen, as imagens de conteúdo sexual ativaram
áreas corticais, responsáveis por funções mais complexas, incluindo as de processamento visual,
atenção e funções motora e somatossensória. Isto é: paixão e tesão compartilham sentimentos
prazerosos, mas são coisas diferentes.
Comparado à paixão, o tesão é um impulso muito simples. De pé no ônibus cheio, deitado sozinho
na cama, assistindo à novela - a qualquer momento ele pode surgir. Pode ser dirigido a uma atriz
estrangeira ou a um cantor que você jamais encontrará, e logo passar para a primeira pessoa que
cruzar o seu caminho. O que importa é ser desaguado em alguém, enquanto na paixão o que importa
é que seja aquela pessoa em específico. Mas será que o amor romântico nos faz sentir mais tesão?
Se a testosterona realmente for o hormônio da libido, a resposta será bastante ambígua.
Foi o que descobriu em 2004 a psiquiatra italiana Donatella Marazziti. Ela não é figura nova em
estudos sobre amor e cérebro. Quatro anos antes da descoberta, ela identificou que, em
apaixonados, os níveis de serotonina - um neurotransmissor que regula o estado de ânimo - podiam
ficar tão baixos quanto os de pessoas com transtorno obsessivo-compulsivo. Em outras palavras, isso
significa uma propensão maior para a depressão. Desta vez, ela decidiu partir para as alterações de
níveis de vários hormônios na circulação sanguínea. Escolheu 12 homens e 12 mulheres que diziam
ter se apaixonado nos seis meses anteriores e comparou seus níveis com os de outros 24 voluntários
solteiros ou em relacionamento estável.
A primeira constatação não foi nenhuma grande surpresa: a paixão estressa. Tanto mulheres
quanto homens apaixonados tinham níveis maiores de cortisol - o hormônio do estresse - do que os
grupos de controle, possivelmente por causa das reviravoltas do cortejo e da adaptação a um novo
relacionamento. Mas a descoberta mais impressionante foi que a testosterona caiu em homens e
subiu nas mulheres diante do novo amor romântico.
É como se a natureza aparasse as diferenças entre os sexos nesse momento para aumentar o
tesão nas mulheres e segurar um pouco a agressividade e a pulsão sexual masculina (homens com
altos níveis de testosterona se casam menos, têm mais casos, cometem mais abusos contra esposas
e se divorciam mais). Com essa menor discrepância hormonal, tanto o homem quanto a mulher
ficam mais propensos a iniciar um relacionamento. Mas basta esse relacionamento se estabilizar
para que a paixão vá embora e os níveis de testosterona e cortisol voltem ao normal.
Mas vamos com calma. Hormônios não controlam nosso comportamento sexual da mesma forma
como controlam o de ratos. Quando uma rata está no cio, suas costas se arqueiam expondo a vulva
para quem a queira. Quando um rato sente o cheiro de sua fêmea no cio, é só correr atrás. Já o
comportamento dos humanos é muito mais complexo. Mulheres sentem vontade de transar mesmo
fora de seu período fértil, e homens não precisam do cheiro do cio para ficar com tesão. Em nós, os
hormônios influenciam o tesão, mas quem nos controla é nossa mente.
LIGAÇÃO
E eis que o amor esfria. Uma relação estável não precisa mais da coragem, da energia e da
motivação de um apaixonado para correr atrás de uma pessoa. O comportamento que a seleção
natural escolheu não foi a busca constante por grandes amores, mas a formação de casais unidos,
em que um parceiro tome conta do outro, e juntos criem seus filhos. Enquanto a ativação da VTA e a
consequente liberação de dopamina deixam de ser tão intensas na maioria dos relacionamentos
conforme eles se desenvolvem, outras substâncias passam a ter uma importância maior. São a
ocitocina e a vasopressina - hormônios produzidos no hipotálamo, nos ovários e nos testículos. Elas
são as responsáveis pelo sentimento de união com um parceiro de longo prazo.
A ocitocina é um hormônio multitarefa. Sua ação começa no parto. Do hipotálamo ela cai na
corrente sanguínea e estimula as contrações uterinas. Depois, estimula a produção de leite nas
mamas. Mas não para por aí. O hipotálamo produz uma grande quantidade do hormônio quando a
mãe tem seu filho nos braços. É isso que garante que ela instintivamente cuide do bebê. Os
batimentos cardíacos e a pressão arterial da mãe diminuem, e ela se sente calma. É como se a
ocitocina tornasse mãe e filho numa única coisa.
Mas o papel da ocitocina não se limita à maternidade. O hormônio age na formação de qualquer
laço afetivo e social, seja em homens, seja em mulheres.
É o hormônio da confiança. Para aferir esse papel à ocitocina, o neurocientista Thomas
Baumgartner, da Universidade de Zurique, aplicou o “jogo da confiança” em 49 voluntários. Nele, o
jogador 1 deve escolher entre manter consigo uma certa quantia (R$ 10, digamos) ou entregá-la
para o jogador 2 fazer um investimento que triplicará a grana. Depois disso, a quantia pode ser
dividida entre os dois igualmente (com R$ 15 para cada) ou ficar toda com o jogador 2. O dilema é
óbvio: se o jogador 1 confiar no jogador 2, pode tanto receber 150% do investimento quanto perdê-
lo todo.
A hipótese de Baumgartner era a de que, pelo fato de a ocitocina fortalecer os laços sociais, sua
aplicação em jogadores aumentaria a confiança entre eles, faria com que continuassem a investir
mesmo depois de serem traídos. Metade dos voluntários recebeu ocitocina por via nasal, e o
restante, um placebo. Enquanto os que receberam placebo diminuíram a quantia que dispunham a
investir depois de serem traídos, os que receberam o hormônio não diminuíram seus investimentos.
Isso não bastou. Baumgartner queria saber o que acontecia no cérebro dos voluntários durante o
jogo. Para isso, observou os padrões de ativação cerebral por meio de imagens de ressonância
magnética. No grupo exposto à ocitocina, houve menor ativação da amígdala - envolvida no
aprendizado de emoções e do medo - e do núcleo caudado - como já sabemos, relacionado ao
circuito de recompensa. Para os autores, isso indica que o hormônio diminui o medo de ser traído e
a dependência de respostas positivas para que se tome decisões. E não é só isso. Outras pesquisas
mostram que a administração de ocitocina aumenta a capacidade de perceber o estado emocional de
uma pessoa mesmo em retratos.
No caso de homens, mais uma substância semelhante à ocitocina tem influência sobre a
fidelidade: a vasopressina. Os neurocientistas Sue Carter e Tom Insel injetaram o hormônio nos
cérebros de machos de arganazes-do-campo, espécie de roedores semelhantes a camundongos com
comportamento sexual monogâmico. Imediatamente os roedores começaram a defender o espaço
em torno deles. Quando um deles foi apresentado a uma fêmea, ele ficou extremamente possessivo
em relação a ela - em um dia de noivado já expulsava outras fêmeas que se aproximassem e era
capaz de matar para garantir que sua noiva não fosse fertilizada por outro macho. Já quando
cientistas bloquearam a síntese de vasopressina, o roedor deixou de ser monogâmico e começou a
procurar uma fêmea depois da outra.
VICIADOS EM AMOR
Voltemos ao centro de recompensas, fortemente ativado nos cérebros de apaixonados ao ver
fotografias de seus amados. Esse circuito é implicado nos mais diversos prazeres - mas também em
vários transtornos mentais, como anorexia, transtorno obsessivo-compulsivo, hiperatividade,
esquizofrenia... E em vícios. O amor nos faz sentir prazer. E isso basta para que nos viciemos nele.
Sentimo-nos bem. Depois, precisamos de mais e mais dele. E então o desejo vira necessidade. Se
nos distanciarmos do estímulo, entramos em crise de abstinência - depressão, crise de choro,
ansiedade, irritabilidade. E disso para a recaída é só um passo.
Vamos entender como o vício funciona no cérebro detalhando a descrição que já demos de
quando nos apaixonamos.
Certas informações eletroquímicas de várias partes do cérebro ativam os neurônios na VTA.
Quando isso acontece, pequenos sinais elétricos partem do corpo de suas células ao longo de seus
axônios - fibras que transmitem informações, como se fossem cabos elétricos, que desembocam em
terminais.
Os terminais dos axônios que partem da VTA vão em direção a outras partes-alvo do cérebro
relacionadas ao circuito de recompensa - por exemplo, o núcleo accumbens; a amígdala e o córtex
cingulado anterior, que são centros emocionais; o corpo estriado, envolvido no aprendizado de
hábitos; o hipocampo, envolvido na memória para fatos e acontecimentos, e o córtex pré-frontal,
região que controla o julgamento e o planejamento.
Quando os sinais elétricos atingem os terminais do axônio, eles engatilham a liberação do
neurotransmissor dopamina, armazenado em vesículas do terminal. Esse neurotransmissor então é
liberado na fenda sináptica - o pequeno espaço entre o terminal do axônio e os dendritos do
neurônio-alvo. Receptores nos dendritos do neurônio-alvo captam então a dopamina, estimulando
essa célula nervosa. Transportadores de dopamina trazem o neurotransmissor de volta para o
terminal do axônio, para que a fossa sináptica não fique encharcada.
Enfim: quaisquer experiências que levem à liberação de dopamina serão sentidas como
prazerosas, assim como ações, pensamentos e estímulos ligados de alguma forma a essas
experiências serão lembrados e associados com sentimentos positivos - tal como o perfume do
amado, o sabor de seu prato preferido ou a lembrança de pequenos acontecimentos compartilhados.
E essa sensação de prazer vai nos levar a repetir tais experiências. Está pronto o vício. Isso pode
valer para álcool, cigarro, cocaína, comida, exercícios físicos, jogos, filantropia, meditação, sexo - e
também amor. “O prazer é a nossa bússola, não importa que caminho tomemos”, diz o
neurocientista David Linden, no livro The Compass of Pleasure.
O amor pode então ter muito em comum com as drogas, mas existem duas diferenças básicas
entre cocaína, heroína, anfetamina e o amor. Primeiro, o amor ativa predominantemente o circuito
no hemisfério direito do cérebro - o lado holístico, atemporal e não racional do cérebro -, enquanto
drogas estimulam ambos. Mas o mais importante é que, além de, como o amor, ativar o centro de
recompensas, as drogas impedem que a dopamina seja recapturada. Passado o estímulo prazeroso,
transportadores de dopamina limpam a fossa sináptica e trazem o neurotransmissor de volta para
ser reciclado e armazenado em vesículas. Certas drogas, como anfetaminas e cocaína, bloqueiam
esses transportadores, criando assim um sinal mais intenso e mais duradouro. É como diz sobre a
heroína o viciado Mark Renton no filme Trainspotting: “Pegue o melhor orgasmo que você já teve.
Multiplique por mil e você ainda não está nem perto do barato dela.” Tudo bem, nessa altura a
heroína já tinha tirado tanto a libido de Renton que talvez ele não pudesse mais se lembrar de como
havia sido o melhor orgasmo de sua vida. Mas, do ponto de vista do circuito de recompensa de seu
cérebro, ele tinha alguma razão.
Então estamos entendidos. O amor é um impulso complexo em que pelo menos três substâncias
estão diretamente envolvidas.
A dopamina determina o foco e a energia que investimos sobre o ser amado; a testosterona cuida do
tesão e, por fim, a ocitocina e a vasopressina mediam o sentimento de ligação que nutrimos pela
pessoa com quem convivemos ao longo do tempo.
Mas o amor não basta para manter um relacionamento. Ele funciona em par com o ciúme - nosso
impulso de manter controle sobre o parceiro para garantir seu amor. E, quando o relacionamento
parece acabar, outra ferramenta nos faz entrar em estado de protesto, raiva e depressão. Perdemos
nosso orgulho para nos humilhar diante do amado e mendigar pela sua volta da mesma forma como
um viciado em abstinência perde o controle de seus atos para conseguir sua droga de volta. Agimos
de forma irracional, descontando nossa frustração em tudo ao nosso redor. Até que somos tomados
pela depressão - um estado que nos faz ruminar nossos problemas e atrair comiseração de nossos
amigos para conseguirmos desistir de nosso fracasso amoroso e mudar nossas prioridades. No
próximo capítulo, vamos entender como funciona a mais batida das rimas da língua portuguesa: a
dor de amor.
Quando o
amor dói
A ESPIRAL DO CIÚME
A esta altura, já está mais do que claro que ao longo da evolução mulheres buscaram homens
dispostos ao compromisso. E, para garantir isso, elas buscam neles indícios de disposição a se
comprometer. Mas, como a primeira coisa que o homem procura não é o comprometimento, e, sim, a
diversidade de parceiras, pode ter evoluído entre eles a estratégia de dar falsos indícios de
comprometimento. Assim, eles podem convencer parceiras a fazer sexo, e depois abandoná-las. Por
sua vez, mulheres buscaram formas de identificar homens que tentam enganá-las. E assim segue a
espiral evolutiva.
O ciúme é apenas mais um elemento dessa espiral. Quem ama busca garantir a fidelidade feminina e
o comprometimento masculino. Assim, passa a buscar sinais de traição. No entanto, a traição passa
a ser feita de forma mais sutil - e assim segue o refinamento das técnicas de engano e detecção.
Uma das ferramentas para testar o comprometimento no relacionamento é provocar o ciúme
intencionalmente flertando com outros homens. Um homem realmente comprometido espera
fidelidade da mulher - ou seja, sente ciúmes. Se ele parecer comprometido, mas não o for de fato,
provavelmente não demonstrará ciúmes. Por outro lado, essa estratégia também fortalece o
comprometimento do homem. Se outros homens demonstrarem interesse por ela, seu parceiro
perceberá que ela mais é desejável do que achava antes, e, com a ameaça de perdê-la, aumentará
seu comprometimento.
REJEIÇÃO
Helen Fisher decidiu repetir o experimento dos apaixonados - mas desta vez com rejeitados. Todos
os entrevistados pareciam não apenas deprimidos, mas tomados pela raiva. A raiva do abandono. A
rejeição provoca dores emocionais profundas. Tristeza e raiva são acendidas com tamanha força que
não se consegue comer nem dormir. É dividida em duas fases: protesto e resignação.
Durante o protesto, o cérebro continua insistindo no circuito de recompensa: a presença e as
lembranças do amado trazem prazer, então o cérebro do abandonado continuará fazê-lo buscar
obsessivamente a reconquista. Tudo por uma recompensa em forma de dopamina. Energia e atenção
se voltam para ele tal como fazia quando estava apaixonado: o rejeitado bisbilhota durante a
madrugada a vida do amado nas redes sociais, visita os lugares que frequentavam esperando
encontrá-lo por acaso, escreve e-mails e SMSs que sabe que não serão respondidos, humilha-se
aparecendo no trabalho da ex trazendo flores - só para ser barrado na recepção. Uma breve
aparição do amado e migalhas de atenção bastam para sentir-se feliz brevemente, tal como aquele
cigarrinho escondido que um ex-fumante consegue tragar numa escapada ou o deslize na dieta
durante uma visita à casa da mãe no fim de semana.
Protestar mais alto às vezes adianta, com promessas de que tudo será diferente e de que o
relacionamento começará do zero. Mas, se não funcionar, o abandonado não pode permanecer o
resto da vida num estado de autoengano, correndo atrás de quem não o ama. Isso traz uma segunda
reação comum à rejeição: a raiva.
O responsável no cérebro pelo julgamento racional de tudo o que percebemos é o córtex pré-frontal.
Quando avalia que esforços para recuperar o amado são vãos, ele envia sinais para nosso regulador
da sexualidade e da agressividade, a amígdala. É como se chegasse para a amígdala e falasse:
“Somos uma criança e roubaram o nosso doce. Precisamos fazer algo em relação a isso”.
A amígdala então manda o hipotálamo desencadear a secreção de uma série de hormônios que
preparam nosso corpo para a luta. O sangue vai para as mãos, os batimentos cardíacos se aceleram,
começamos a suar mais, ainda que não haja um inimigo real à frente. Quando isso acontece, não
conseguimos pensar direito, apenas agir. Nosso inimigo de repente vira a mesa à qual sentamos, o
celular que está à nossa mão, ou o carro que dirigimos.
Se o estouro de raiva é uma reação típica no fim de relacionamentos, deve ter sido uma
adaptação evolutiva que resolveu problemas por milhares de gerações. Uma possibilidade é que
essa raiva permite que os amantes frustrados se distanciem de vez de quem não os quer mais. A
raiva nos purga, nos liberta de quem amamos. Afinal, a pessoa nem era mesmo tudo aquilo que você
achava, não é? Mas mais importante do que a raiva é a depressão. Aqui entra a segunda fase do fim
de um relacionamento - a resignação. Quando é jogada a pá de cal no relacionamento, ficamos
tristes, muito tristes. Num levantamento com 114 homens e mulheres rejeitados por seus parceiros,
40% entraram em depressão clínica, sendo que 12% tiveram depressão moderada ou grave. E como
a depressão, algo que nos aprisiona no sofrimento, pode ser uma adaptação? Protegendo-nos de
objetivos errados que podem nos ferir, segundo o médico evolucionista Randolph Nesse, da
Universidade de Michigan. Sua função é a mesma da dor: garantir nossa sobrevivência diante de um
risco. Quando um tecido está prestes a ser lesionado durante alguma atividade física, nossos
neurônios transmitem um estímulo que nos impede de ir além de nossos limites. A depressão
funciona da mesma forma - mas, em vez de impedir fisicamente de assumir um risco, atua no ânimo.
Um dos primeiros cientistas a pensar isso como uma adaptação foi o psicólogo americano Eric
Klinger. Num artigo de 1975, ele analisou como o humor melhorava conforme se progredia na busca
de um objetivo. A euforia nos motiva a continuar a nos esforçar e assumir riscos cada vez maiores.
Quando esses esforços começam a falhar, uma piora no ânimo nos faz voltar atrás, preservar nossas
reservas e reconsiderar opções. A depressão leve abre espaço para introspecção e auto-exame
intensos necessários para tomar decisões difíceis, como não procurar mais o amado, evitar situações
em que ele pode ser encontrado e buscar outros caminhos. A tristeza é uma oportunidade para
meditar, ruminar seus problemas e propor a si metas mais realistas. Quando conseguimos nos
encaixar nos trilhos das novas metas, o ânimo volta a subir. Já se não desistirmos do impossível, o
risco é de que caiamos numa depressão profunda.
Outro benefício da depressão é que ela pesca a empatia alheia. Às vezes falamos como nos
sentimos para amigos ou parentes, mas palavras só não bastam - as pessoas ouvem e pronto. Mas
quando estamos fisicamente debilitados pela depressão, conseguimos um apoio grande dos amigos e
parentes. A tristeza faz companheiras levarem a garota ao shopping para fazer um banho de
compras, e companheiros levarem o camarada na fossa até o boteco para tomar um pileque de lavar
a alma. Se a separação é pesada demais para ser carregada sozinha, o desespero traz a nós pessoas
que ajudarão a nos reerguer.
A TRAGÉDIA DE ÉDIPO
Que cônjuge poderia ser melhor do que nossos irmãos? Um irmão e uma irmã são homem e mulher
de idades próximas, e isso já deveria bastar para haver interesse sexual entre os dois. Mais do que
isso, ter um filho entre eles traria um benefício extraordinário: a criança teria 75% dos genes de
cada um dos pais, contra 50% com filhos feitos com alguém sem parentesco. O mesmo vale no sexo
entre filho e mãe ou filha e pai, o que nos faz supor que a evolução poderia na verdade privilegiar o
incesto. Lembra-se do caso das abelhas operárias? A vantagem genética de compartilhar 75% dos
genes das irmãs as faz hiperalimentar a mãe - que de tão bem nutrida vira rainha - e se prontificar
ao suicídio pela colmeia, em vez de se reproduzir por conta própria.
Mas não procuramos ter filhos com nossos irmãos nem pais. Muito pelo contrário. Só de pensar
na ideia do incesto já sentimos asco. Essa repulsa vale para todas as sociedades humanas, o que já é
um indício de ser uma adaptação evolutiva. E de fato ela é. O custo de ter um filho com um parente
direto é muito maior do que o benefício.
Para entender o porquê, precisamos lembrar como funcionam genes dominantes e recessivos.
Nosso DNA está cheio de mutações danosas. Quando o gene mutante danoso é dominante, já era -
ele se expressará em seu portador, que ficará incapacitado. Como a busca por parceiros sexuais é
feita a partir de sinais de bons genes, o portador terá menos chances de conseguir alguém com
quem se reproduzir. Seus genes são eliminados pela seleção natural.
Isso já não acontece quando o gene mutante é recessivo. Para que a mutação se expresse, é
necessário que ela esteja presente no DNA de ambos os pais. Isso é menos provável de acontecer
quando uma pessoa procura outra com carga genética bem diferente. Mas, como parentes diretos
compartilham metade de nossos genes, o risco de combinar os mesmos genes recessivos é
imensamente maior se tivermos pais ou irmãos como parceiros sexuais.
Ter um filho com maior probabilidade de ser natimorto ou incapacitado é um investimento muito
alto e arriscado para uma mulher. São nove meses e um parto doloroso para produzir algo com
menor chance de ter sucesso na replicação de seus genes. Está nesse risco a origem evolutiva da
repulsa ao incesto.
É de se esperar que, além dessa repulsa, tenha evoluído a capacidade de identificar quem é e
quem não é nosso parente. Mas só obtivemos tal capacidade virtualmente infalível no final do século
20, com o teste de DNA. Até então, precisávamos usar três pistas: a proximidade da pessoa, o
convívio com ela e o que dizem fontes confiáveis.
É um sistema bastante falho, por sinal: foi a falta dessas três pistas que levou Édipo a ser
protagonista de uma tragédia grega. Conforme o texto de Sófocles, Édipo era filho de Laio, rei de
Tebas, e Jocasta. Laio recebeu do oráculo de Delfos a profecia de que seu filho o mataria e se casaria
com a mãe. Diante disso, abandonou o filho numa montanha. Édipo foi encontrado por um pastor e
então adotado como filho legítimo pelo rei de Corinto.
Já crescido, foi ao oráculo de Delfos e recebeu a profecia de que ele mataria seu pai e se casaria
com a mãe. Horrorizado com a ideia do patricídio e incesto, fugiu da terra de seus pais adotivos. No
caminho para Tebas, encontrou-se com o orgulhoso rei Laio, que exigiu a Édipo que lhe desse
passagem. Como Édipo se recusou a mudar seu caminho, o carroceiro de Laio o empurrou, iniciando
uma luta na qual Édipo acabou matando seu verdadeiro pai. Ao seguir para Tebas, Édipo encontrou
a Esfinge - um monstro que devorava todos os forasteiros que chegassem à cidade caso não
resolvesse o seguinte enigma: “Que animal tem quatro patas de manhã, duas ao meio-dia e três à
noite?” Édipo respondeu que era o homem, que engatinhava na infância, andava quando adulto e
usava bengala na velhice. Ao derrotar a Esfinge, que já assombrava Tebas havia tempos, Édipo foi
recebido pela população como o novo rei, e recebeu a mão da mãe-viúva Jocasta - realizando a
segunda profecia de Delfos. Édipo só descobriria que Laio era seu pai e Jocasta era sua mãe quando
já tinha quatro filhos com ela.
Mas nosso sistema de identificação é mais eficiente do que a tragédia e o Complexo de Édipo
formulado por Freud fazem crer. Casos de incesto são raros porque simplesmente não sentimos
atração por pessoas com quem crescemos juntos. A razão é simples. Quanto maior o grau de
parentesco, mais próximos uns dos outros viviam os humanos nas sociedades caçadoras-coletoras
em que evoluímos. Por isso, aqueles que se relacionavam com uma pessoa muito próxima tinham
menos sucesso em levar para frente seus genes. Dessa condição, foi naturalmente selecionado o
seguinte comportamento: você sentirá atração por desconhecidos. Mistério e novidade é sexy.
Rotina, não. Até por isso que, quando você começa a trabalhar com alguém muito bonito, a atração
nas primeiras semanas é uma, e nos meses e anos seguintes é outra - bem menor; às vezes
inexistente, como se aquela pessoa que um dia mexeu com a sua cabeça tivesse virado algo tão
sexualmente nulo quanto um irmão ou uma irmã.
Mesmo que não vivamos mais em grupos pequenos e estáveis como acontecia com nossos
ancestrais caçadores-coletores, essa estratégia continua a funcionar. Por exemplo, quando uma
criança é adotada ainda bebê, ela também não se interessará sexualmente pelos membros de sua
família de criação - mesmo que não compartilhe seus genes. Do ponto de vista biológico, ela até
poderia se atrair. Mas não é o que acontece. A receita do desinteresse não está no laço familiar, mas
na proximidade durante os seis primeiros anos de vida.
O mesmo desinteresse acontecia entre crianças que cresciam nos kibutzim - comunidades
agrícolas utópicas fundadas no início do século 20 em Israel. Num kibutz, crianças de ambos os
sexos compartilhavam a moradia desde o início da vida até o final da adolescência. Mesmo que não
houvesse segregação de gênero, era raro que, ao atingir a maturidade sexual, casassem ou tivessem
relações sexuais entre si. Em geral, procuravam um parceiro de fora do kibutz. Foi o que observou
um estudo com 2.769 matrimônios contraídos por filhos de kibutz. Deles, só 13 aconteceram entre
membros da mesma comunidade, e todos esses 13 foram entre pessoas que entraram para o kibutz
já com mais de seis anos de idade.
AQUELA QUÍMICA
A atração sexual entre a maioria dos animais é bastante simples: durante o período fértil, a fêmea
deixa para os machos pistas químicas e visuais de sua disponibilidade. Seja uma formiga, seja um
elefante, animais se comunicam por meio de feromônios - pequenas moléculas liberadas por um
indivíduo para disparar um comportamento em outro indivíduo. Existem vários tipos dessas
substâncias comunicativas - os que indicam sexo, status reprodutivo e idade, os que incitam a
atração sexual ou a reação de luta ou fuga, os que alteram o estado emocional alheio, e assim por
diante.
Mas nós somos uma exceção. Não está provado se somos capazes de influenciar diretamente o
comportamento de nossos iguais por substâncias assim. No lugar de cheiros, trocamos palavras e
gestos. Trocamos olhares intencionados, convidamos um parceiro em potencial para jantar, tocamos
o braço do outro, mexemos o cabelo, demonstramos gentileza. E falamos muito.
Mesmo assim, cientistas procuram substâncias responsáveis por aquele tipo de atração que não
somos capazes de explicar. Ainda não foi provada nos humanos a comunicação por meio de
feromônios. Mas existem substâncias que, embora não tenham a função de provocar um
comportamento específico num outro indivíduo da mesma espécie, acabam nos fazendo atraídos por
ele por tabela. Essas substâncias são as proteínas expressas pelo complexo principal de
histocompatibilidade (MHC, da sigla em inglês).
Bom, esse fenômeno é um tanto complicado, então precisamos seguir passo a passo para
entendê-lo. Vamos partir do seguinte pressuposto: quanto mais diferente for o sistema imunológico
de um parceiro sexual em relação ao nosso, mais diverso será o de nossos filhos. Isso é
extremamente importante para a garantia da sobrevivência deles, pois agentes externos nocivos
estão em mutação contínua. Com um sistema imunológico diferente do nosso, nossos filhos poderão
se proteger de novos agentes infecciosos.
Vamos agora ao segundo passo. Nossas células precisam de algo que identifique substâncias que
não deveriam estar onde estão, e que sinalizem para nosso sistema imunológico essa anormalidade
para que ele possa agir. Esse reconhecimento é feito por proteínas-bandeira expressas na membrana
de nossas células. Por exemplo, se essas proteínas reconhecerem que uma bactéria ou célula
infectada por vírus não deveria estar lá, elas avisam o sistema imunológico para que matem esse
invasor.
O grupo de genes responsável pela codificação dessas proteínas é o já mencionado MHC. Isso
significa que quanto mais diverso for o MHC de uma pessoa, mais diversas serão essas proteínas.
Disso podemos concluir que, quanto mais diverso for o MHC (e suas respectivas proteínas-bandeira)
de uma pessoa para outra, melhores parceiros sexuais serão - pelo menos do ponto de vista
imunológico.
É de se esperar que tenhamos nos adaptado com a capacidade de perceber se uma pessoa tem
um MHC parecido ou não. Só que como isso seria possível, se não somos capazes de fazer o mapa
genético de cada parceiro em potencial? É simples: pelo olfato.
Aqui vamos para mais um passo. As proteínas-bandeira codificadas pelo MHC se soltam das
membranas das células, o que permite que possamos percebê-las pelo cheiro e pelo sabor da saliva.
Como o MHC é extremamente variável, cada pessoa tem uma espécie de identidade imunológica (e
olfativa) própria. Pessoas com essa identidade bastante diferente da nossa serão percebidas como
atraentes - independentemente de serem bonitas ou feias, ricas ou pobres. É provavelmente essa a
razão por que sentimos aquela química incrível com algumas pessoas, mesmo que estejam anos-luz
de distância do nosso ideal de parceiro. E por que alguns beijos são inexplicavelmente deliciosos. A
diferença entre os sistemas imunológicos explica.
Sim, a explicação parece complexa demais para nos convencer logo de cara. É necessário testar
essa hipótese na prática. E foi o que fez em 1995 o biólogo suíço Claus Wedekind num famoso
experimento com camisetas usadas em estudantes universitários.
Primeiro, Wedekind e sua equipe mediram os sistemas imunológicos dos participantes. Depois,
pediram que ficassem alguns dias sem consumir nada com cheiro. Alho, curry, cigarro, desodorante,
perfume, sabão aromatizado... tudo isso foi proibido. Então, os voluntários dormiram vestindo uma
camiseta de algodão, devolvida aos pesquisadores no dia seguinte.
As camisetas foram então alinhadas para que novos participantes fossem dar uma cheirada nelas.
O resultado foi que os julgadores preferiram as camisetas usadas por quem tinha um sistema
imunológico diferente. Já o odor das vestidas por quem tinha sistema imunológico parecido foi
considerado desagradável. Um sistema era a tampa da panela do outro.
VISUAL HARMÔNICO
Maravilha, sentimos tesão pelas proteínas desprendidas pelas células de pessoas com sistema
imunológico diferente do nosso. Mas fotografias não têm cheiro, e isso não nos impede de avaliar se
um rosto retratado é bonito ou não. Para nós, o visual conta muito. E quanto mais simétricos e
comuns forem os traços de uma pessoa, mais agradáveis serão para nosso cérebro.
Dobre longitudinalmente uma fotografia em que você está de pé com postura reta. Seus braços,
pernas, orelhas e olhos de um lado vão se encontrar de outro. Isso não aconteceria com uma
fotografia de seus órgãos internos - temos um coração, um pâncreas, um fígado. Mas ao menos por
fora somos predominantemente simétricos. Essa simetria não é necessária e, se observarmos bem,
perceberemos que ela tem suas falhas. É comum mulheres terem mamilos vesgos, homens terem um
testículo mais baixo do que o outro e o pênis torto, uma narina ter formato diferente da outra, um
olho um pouco mais fechado do que o outro. Ainda assim, na média nossa simetria surpreende.
Em várias espécies, a simetria serve como sinal de saúde e interfere na escolha de parceiros
sexuais. Isso porque ela pode indicar algum defeito de desenvolvimento antes e depois do
nascimento, causado por doenças, toxinas ou altos níveis de estresse.
A qualidade e a quantidade de nutrientes passados da mãe ao feto podem variar muito. A
deficiência de vitamina B, por exemplo, diminui a produção de DNA e pode causar mudanças no
código genético. Isso faz com que os “tijolos” para construir o corpo não parem no lugar certo na
hora certa. Uma criança que cresce infectada gravemente por doenças pode ter seu
desenvolvimento prejudicado - e sua simetria também.
Além disso, a simetria não pode ser simulada com facilidade. Podemos passar uma base na pele
para esconder rugas e manchas, tingir os cabelos para eliminar fios brancos, implantar fios ou usar
uma peruca para não parecer careca, mas não é da noite para o dia que a coluna, os dentes e o nariz
ficarão perfeitamente alinhados. A simetria pode não ser garantia, mas é um indicador fiel de que o
parceiro em potencial terá menor probabilidade de carregar tanto mutações genéticas indesejáveis
quanto um sistema imunológico deficiente.
A pessoa cresceu conforme o plano e provavelmente dará filhos conforme o plano.
Outro fator que influi na beleza é a normalidade dos traços. Rostos que se aproximam da média
dos traços faciais de uma população são considerados bonitos. Essa descoberta veio por acaso: dois
séculos atrás, na busca de uma hipotética aparência típica de criminosos, Francis Galton começou a
misturar rostos de pessoas diferentes a partir de fotografias. E se surpreendeu que, conforme os
rostos eram misturados, mais bonito ficava o resultado.
Disso surgiram duas possibilidades. Conforme as fotografias eram fundidas, a textura da pele
parecia mais suave, pelo desaparecimento das rugas; disso se conclui que quanto mais jovem
parecesse a pele, mais atraente era o rosto. A outra hipótese era de que a média de feições
eliminava traços muito incomuns.
Os dois argumentos são válidos. Uma pele com mais manchas e rugas não mostra só idade como
também doenças, e traços muito fora do normal podem ser associados a doenças físicas e mentais.
Mas, do ponto de vista evolutivo, a segunda hipótese é mais forte: escolher um rosto comum
aumenta a chance de ter filhos sem mutações prejudiciais.
Podemos assim entender por que um rosto é bonito. Mas o que dizer de um rosto extremamente
bonito? Uma supermodelo é mais bonita do que a média dos traços de uma população. Gérard
Depardieu era um sex-symbol quando jovem, embora seus traços não fossem nada simétricos nem
comuns. A atriz estrábica Cristiana Oliveira virou modelo de beleza quando interpretou Juma
Marruá na novela Pantanal. Essas pessoas têm algo a mais. Algo extraordinário. O que é, afinal, que
as pessoas lindas têm?
SUPERMULHERES
Vamos propor uma hipótese. Se a função do sexo é procriar, a atração sexual pode ter evoluído de
forma a tornar visualmente mais desejáveis os indivíduos mais aptos à procriação. Se mulheres
desenvolvem quadris e seios maiores do que os dos homens para dar à luz e amamentar seus filhos,
seria natural que as curvas femininas fossem percebidas como sensuais. O psicólogo Devendra
Singh, da Universidade do Texas, foi o pioneiro no estudo da atração sexual e o corpo de violão.
Mostrou para centenas de pessoas de diferentes idades e culturas, corpos femininos de diferentes
tamanhos e formas. Todas consideraram a razão de 7 ou menos para cintura e 10 para quadril a
mais atraente. Mediu também a proporção corporal de ganhadoras de concursos de beleza por sete
décadas e de garotas das capas da revista Playboy. O resultado foi o mesmo. Depois, partiu para
imagens de ressonância magnética para identificar quais proporções estimulavam mais os centros
de recompensa no cérebro de homens. Novamente, a que os deixava mais satisfeitos foi a de 7 por
10.
Só que essa explicação não basta quando vamos além das curvas do corpo. Por que certos traços
do rosto são lindos? Cabe aqui então mais uma hipótese: a de que, quanto menos se parecer com um
homem, mais linda será a mulher. Ela já vai ser bonita se estiver bem próxima da média dos traços
de mulheres. Mas se tornará mais linda quanto menos características masculinas e mais femininas
tiver. E isso vale tanto para o corpo quanto para o rosto.
Quando chegamos à adolescência, nossos corpos começam a se transformar sob a influência dos
hormônios sexuais. A testosterona interfere no crescimento ósseo. No homem, a testa se projeta na
altura das sobrancelhas de forma mais acentuada, a linha que liga as maçãs passando pelo nariz
também se expande e o maxilar se alarga. Já a mulher tem uma quantidade maior de estrogênio, que
impede tamanho crescimento ósseo. Por isso, ela mantém traços do rosto infantil - sobrancelhas e
maxilar pouco proeminentes e com curvas suaves, lábios grossos, nariz pequeno e olhos grandes em
relação ao restante do rosto. Traços masculinizados nelas indicariam muita testosterona no sangue,
o que interfere na ovulação e aumenta a dificuldade de engravidar. É o que acontece, por exemplo,
com a síndrome do ovário policístico.
Seguindo esses parâmetros, o professor David Perrett, especialista em reconhecimento facial da
Universidade St. Andrews, na Escócia, criou no computador imagens feminilizadas, neutras e
masculinizadas de rostos de mulheres descendentes de europeus, africanos e asiáticos. Dos
respondentes, 95% afirmaram que as imagens feminilizadas eram mais atraentes. A exceção
aconteceu entre homens da Jamaica rural, que preferiram traços levemente masculinos em suas
mulheres. Segundo Perrett, esse maior grau de masculinização pode ser percebido por camponeses
jamaicanos como sinal de vigor físico.
Mas não é necessário manipular digitalmente fotografias de mulheres para entender como a
exacerbação de traços femininos embeleza as mulheres. Basta ver o que fazem a maquiagem e
várias outras ferramentas estéticas.
Saltos altos fazem os pés parecerem menores, as panturrilhas parecem mais firmes, a lombar fica
mais curva (a famosa lordose), o que arrebita o bumbum e os seios, e os movimentos dos membros
inferiores destacam os quadris. A depilação elimina os pelos, tão masculinos. No século 19, o
corselete ajustava a cintura para valorizar as formas de violão - o que hoje é feito com próteses de
silicone e enchimentos. Com pinças ou raios laser, as sobrancelhas são afinadas e depois delineadas
com lápis num desenho arqueado para suavizar a testa. O batom deixa os lábios coloridos para
parecerem mais cheios - isso quando não se parte para o colágeno. Sombras em volta dos olhos
fazem-nos parecer maiores.
A juventude em mulheres também é um parâmetro de atração física. Segundo a pesquisa de
David Buss, homens em diversas culturas querem em média uma noiva 2,66 anos mais nova, e
mulheres, um noivo 3,42 anos mais velho. A razão evolutiva é simples: mulheres jovens que ainda
não tiveram filhos têm uma longa vida reprodutiva pela frente, e não carregam filhos de outros
homens. Por isso, a pele rija, lisa, hidratada, a ausência de estrias e os seios firmes são tão
desejáveis. Bom, em sociedades mais afluentes de hoje em dia, o desejo por mulheres muito mais
novas pode ser menos importante. Elas têm menos bebês, são expostas a menos doenças,
alimentam-se muito melhor e enfrentam menos eventos traumáticos, como a morte de filhos,
estupros, guerras tribais. Mesmo assim, mulheres correm atrás do tempo, alimentando uma
indústria de cosméticos e de cirurgia plástica para cuidar de suas peles e de demais sinais da idade.
E essa preocupação das mulheres com sua beleza não as transformaria em meros objetos dos
homens? Não é o que pensa Steven Pinker. Para eles, as sociedades realmente machistas são
aquelas que escondem a mulher - que impedem que elas saiam sozinhas de casa, que lhes obrigam a
cobrir o corpo até a cabeça, que impedem que explorem sua beleza. “Ao longo da história, os críticos
da beleza têm sido homens poderosos, líderes religiosos, às vezes mulheres mais velhas e médicos.
As entusiastas são as próprias mulheres”, diz em Como a Mente Funciona. Em sociedades liberais,
mulheres podem usar sua aparência como vantagem na competição por maridos, status e atenção de
homens com poder e recursos. Já em sociedades opressivas, homens tiram de suas mulheres e filhas
essa vantagem, barrando o uso da beleza.
A esta altura, você pode se perguntar se a percepção da beleza não seria influenciada pela
cultura. De fato, convivemos com pessoas que dizem o que é bonito e o que é feio. Além disso,
pertencemos a subculturas de tatuadores, emos, metaleiros, fisiculturistas, ursos, góticos, carecas,
mauricinhos. Mas um corte de cabelo diferente, piercings, tatuagens, dreadlocks, alargadores de
lóbulo de orelha, anéis extensores de pescoço, sombras verdes, azuis, metálicas, uso de couro e
outras alterações e acessórios no corpo indicam apenas o quão rica, bem relacionada, feroz e na
moda é a pessoa. Podem ser importantes para indicar a que grupo pertence, mas isso tem tanto
impacto na escolha do parceiro quanto a religião e o posicionamento político. Mas não dizem
respeito ao que realmente conta para a atração sexual: a saúde. Dentes tortos ou ausentes,
deformidades físicas, pele enrugada, manchada ou com lesões, cabelos ralos - tudo isso é visto como
ponto negativo na escala de atração, independentemente da cultura.
Por outro lado, alguns gostos aparentemente culturais podem esconder motivações biológicas. O
peso, por exemplo. Sociedades rurais e nômades que passam pelo risco de desnutrição tendem a
valorizar mulheres mais carnudas, pois esse é um indício de afluência e de maior chance de
sobreviver durante a carestia. Já sociedades urbanas nas quais a oferta de alimentos é abundante,
ser mais magro é um sinal de menor risco de doenças cardiovasculares.
Ainda assim, a gordura e a magreza desejáveis nas mais diversas culturas não extrapolam uma
faixa de peso e uma proporção entre cintura e quadril ideais, como observou Singh. O que dizer de
modelos esquálidas em revistas de moda? Sim, elas podem até parecer elegantes. Mas raramente
você encontrará um homem heterossexual numa banca em busca de satisfação sexual com editoriais
de moda. Como diz Pinker, modelos posam para outras mulheres. Sua magreza não é sexy, mas sim
um símbolo de status entre mulheres em sociedades onde o difícil não é ganhar peso, mas sim
perdê-lo. É como um homem fisiculturista com veias saltando pela testa. Não atrai mulheres, apenas
a admiração ou inveja de outros homens. Para entender o que realmente faz homens babarem, é
preciso folhear outro tipo de revista - aquelas em que o foco não são as roupas que as modelos
usam, mas o que as modelos escondem sob suas roupas.
PARADOXO EVOLUTIVO
O psiquiatra da Universidade de Boston Richard Pillard é gay - assim como seu irmão e sua irmã.
Ele descobriu que seu pai também era. E que sua filha é bissexual. Não foi surpreendente, portanto,
a escolha por sua área de pesquisa: homossexualidade em famílias.
Em suas pesquisas, encontrou que entre 7% e 16% dos irmãos de gays também eram gays - mais
do que na população em geral. No caso de gêmeos idênticos, isso sobe para 50%. Pesquisas
semelhantes foram feitas em vários países: na Austrália, encontraram-se taxas de 30% para gêmeos
homens e 50% a 60% para gêmeas mulheres; na Suécia, 34% a 39% para homens e 18% a 19% para
mulheres. Na Finlândia, 45% para homens e 50% para mulheres. Apesar da variação, esses estudos
indicam que parte considerável da homossexualidade é herdada.
Agora, haveria um “gene gay” humano? A ciência ainda não sabe. Vamos supor que ele exista. Se
assim for, temos um aparente paradoxo: homossexuais têm menos probabilidade de ter filhos, o que
diminuiria a chance de levar um “gene gay” para frente. Mas a questão é mais complexa do que
parece.
Existem, sim, genes que sobrevivem apesar de diminuírem o sucesso reprodutivo. Se forem
recessivos, eles só se expressarão se forem herdados tanto do pai quanto da mãe (arranjo
homozigoto). Já uma pessoa que o herdar de um só lado (heterozigoto) poderá passá-lo para frente
“escondido”, sem que ele se expresse. E, mesmo que a homossexualidade acabe com o interesse
pelo sexo oposto, homossexuais historicamente se obrigaram ou foram obrigados a se casar e ter
filhos.
Por outro lado, o “gene gay” pode trazer um sucesso reprodutivo indireto. Mesmo que não
tenham filhos, em famílias grandes eles podem contribuir no sucesso reprodutivo de seus irmãos e
irmãs, ajudando-os na criação de sobrinhos. Numa família de caçadores-coletores, um adulto sem
filhos é valioso para a preservação do grupo: ele pode usar a energia que gastaria para alimentar
seus rebentos indo atrás de comida para os filhos de seus irmãos. Esses sobrinhos, no ambiente
inóspito de dezenas de milhares de anos atrás, naturalmente teriam mais chance de sobreviver do
que as outras crianças da savana. E levariam para frente o “gene gay” da família - gene que tinha se
manifestado apenas naquele tio. Mas que nas próximas gerações apareceria nos descendentes dos
sobrinhos. Ou seja: o tal gene talvez tenha mais ajudado na reprodução de seus donos do que
atrapalhado - e por isso mesmo ele continuou firme e forte.
Outra hipótese - mas que só explicaria a homossexualidade masculina - é a de que exista um gene
responsável por engatilhar uma espécie de “atração extra” por homens - seria o “gene da
androfilia”. Em mulheres, esse gene faria com que fossem “hiper-heterossexuais”, com mais vontade
de fazer sexo com homens - e assim seria passado para frente com eficiência. Mas, em homens,
levaria ao comportamento homossexual. Ou seja, continuaria a passar para frente ao influenciar o
comportamento sexual da mãe, apesar de diminuir o sucesso reprodutivo do filho homem. Isso
parece ser apoiado por estudos que mostram taxas de reprodução maior entre mulheres com
parentes gays do que entre outras, e por outros que mostram que homossexualidade é mais comum
entre meios-irmãos que são filhos da mesma mãe - e menos comuns entre os meios-irmãos que
compartilham o mesmo pai. Por esse ponto de vista, os gays são gays por causa da mãe - só que de
uma forma bem diferente daquela que Freud pudesse imaginar.
E uma última hipótese é que não há gene da homossexualidade. Ela seria só parte de um pacote
de vários traços femininos - o que inclui maior empatia e menor agressividade. Homens com essas
características, como já vimos, atraem mais as mulheres. Quando esse pacote vem com pouca força,
o homem tem menos chance de atrair uma mulher (fica “macho demais”, digamos). Quando vem
com muita força, por outro lado, ele acaba com menos chances de se sentir atraído por uma mulher.
Isso, em tese, gera a situação de equilíbrio que observamos na sociedade - o equilíbrio que
mantém uma participação minoritária constante de gays e de ogros. Essa hipótese ganhou peso com
estudos do Instituto de Pesquisa Médica de Queensland, Austrália, que mostraram que homens com
leves características femininas têm um número maior de parceiras sexuais, e mulheres com leves
características masculinas têm um número maior de parceiros sexuais.
CÉREBRO GAY
Não existe, portanto, nada senão hipóteses sobre um “gene gay”, “androfílico” ou “afeminado”. Mas
uma coisa já está provada. Os cérebros de heterossexuais e de homossexuais têm diferenças entre si
da mesma forma como existem diferenças entre os cérebros de mulheres e de homens. Em alguns
aspectos, cérebros de gays se assemelham aos de mulheres heterossexuais, e os de lésbicas, aos de
homens heterossexuais. E neurocientistas interpretam como a grande responsável por isso a
exposição de testosterona durante um período crítico quando a pessoa ainda é um feto. Ou seja, não
é nada que seja determinado pelos programas de televisão a que uma criança assiste ou pelas
amizades que um adolescente cultiva.
Para entender como isso acontece, vamos voltar aos anos 70, quando o neuroanatomista Roger
Gorski, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, identificou pela primeira vez diferenças entre
cérebros de machos e fêmeas de ratos. Enquanto estudava o hipotálamo - uma região na base do
cérebro com papel importante na regulação da fome, da sede e de comportamentos sexuais -, sua
equipe observou que a área pré-óptica medial possuía um conjunto de células muito maior nos
machos do que nas fêmeas. Chamaram então essa área de núcleo dimórfico da área pré-óptica.
Estudos seguintes mostraram essa diferença em outros mamíferos, incluindo primatas.
Humanos também têm uma área correspondente, que é chamada de terceiro núcleo intersticial
do hipotálamo anterior (INAH3). Em homens, é de duas a três vezes maior do que em mulheres.
Passadas duas décadas, o neurocientista Simon LeVay, autor do livro Gay, Straight, and the
Reason Why, observou em autópsias que o tamanho do INAH3 de homens gays era menor do que
em héteros. Era a primeira evidência científica de que gays tinham alguma diferença na constituição
de seu cérebro. Em 2008, o neurocientista Qazi Rahman, do Instituto Karolinska, da Suécia,
comparou 90 cérebros de homens e mulheres homo e heterossexuais e identificou que gays
compartilham com mulheres heterossexuais uma simetria entre hemisférios direito e esquerdo do
cérebro, enquanto lésbicas e homens heterossexuais têm o hemisfério direito levemente maior.
Dessa vez, a descoberta não era diretamente relacionada com o comportamento sexual, mas sim
com diferenças cognitivas entre gays e héteros que já haviam sido identificadas em estudos
anteriores. Por exemplo: gays têm menos percepção espacial do que homens heterossexuais. Isso
significa que eles têm mais dificuldade na hora de encontrar o caminho de volta quando estão
perdidos, por exemplo - sim, o clichê do marido que não gosta de pedir informação na rua porque
tem certeza de que sempre sabe onde está tem base científica. Por outro lado, os gays geralmente
têm maior fluência linguística, tal como mulheres - sim, o clichê do cabeleireiro que não para quieto
também tem base científica.
Mas de onde vêm essas diferenças na arquitetura do cérebro de acordo com o sexo e com a
orientação sexual? Para saber isso, precisamos explicar primeiro como os cérebros de homens e de
mulheres se diferenciam ainda no útero da mãe. Enquanto mulheres possuem dois cromossomos X,
homens têm um par XY. É um dos genes presentes no cromossomo Y - o SRY - o grande responsável
pela iniciação do desenvolvimento do homem. Sem ele, o corpo se desenvolveria dentro do “molde”
feminino, sendo ou não sendo mulher.
Na quinta semana da gestação de um feto masculino, o SRY instrui dois retalhos de tecido
embrionário a se desenvolver em testículos, enquanto barra a formação do útero. E, da 8ª à 24ª
semana, esses testículos passam a produzir altos níveis de testosterona no feto masculino. Essa
diferença hormonal entre fetos masculinos e femininos vai ser responsável por uma série de
diferenças no desenvolvimento do cérebro que só ocorrem nesse período específico.
Como tantos outros fatores durante a gestação, essa exposição a hormônios androgênicos varia a
cada caso. Um feto masculino pode ter, naquele período extremamente específico, uma exposição
menor à testosterona, e um feto feminino pode ter uma exposição maior. Cabe aqui, portanto, uma
hipótese: a de que esse nível de testosterona levará ao desenvolvimento de um cérebro com
características mais femininas ou mais masculinas, apesar do sexo do feto.
Isto é, mentes com características masculinas ou femininas variam não só conforme o sexo da
pessoa, como também entre indivíduos do mesmo sexo. Assim como homens são mais agressivos e
sistematizadores do que mulheres, alguns homens podem ser mais empáticos do que outros. E isso
pode se estender a seu comportamento sexual.
Se isso é determinado por genes, continua em aberto. Afinal, há mais variáveis em jogo, explica
LeVay. Genes não organizam o cérebro em detalhes tão precisos. Eles apenas instruem tendências, o
que dá margem para bastante variação aleatória. E há ainda influências ambientais sobre o que
acontece no útero. É o que acontece com ratas grávidas. Quando elas passam por estresse muito
forte durante o período de diferenciação sexual do cérebro de seus fetos, o nível de testosterona fica
mais baixo do que o normal - e os filhotes mais tarde acabam tendo um comportamento sexual
afeminado. Por exemplo, têm maior probabilidade de exibir lordose (comportamento típico feminino
para atrair machos) e de preferir machos.
BRINCAR DE BONECA
Não há mais dúvidas de que meninos e meninas nascem com cérebros diferentes, e que isso leva a
diferenças cognitivas. Quando ainda são bebês, elas preferem olhar para faces, enquanto eles
preferem olhar para móbiles. Mais tarde, eles em geral se dão melhor em tarefas visuo-espaciais,
como acertar alvos e fazer rotação mental de imagens tridimensionais. São também mais ativos. Já
elas em geral têm maior fluência verbal e se interessam mais por pessoas do que por objetos.
Algumas teorias afirmam que essas diferenças são resultado do encorajamento dos pais, da pressão
do grupo e de outras formas de socialização. Pode haver, de fato, influência do ambiente. Mas a
explicação da neurociência é outra. Como acabamos de ver, nascemos assim por causa da exposição
à testosterona entre a 8ª e a 24ª semana de gestação. Uma menina pode ter um cérebro mais
masculino - ou seja, mais sistematizador - e um menino pode ter um cérebro mais feminino - ou seja,
mais empático.
Para verificar essa hipótese - que também tem impacto em transtornos mentais relacionados à
sistematização, como o autismo -, cientistas do Centro de Pesquisa do Autismo da Universidade de
Cambridge fizeram vários estudos comparando o nível de testosterona no líquido amniótico de mães
grávidas com as características comportamentais e cognitivas dessas crianças quando tinham entre
seis e dez anos. E, de fato, crianças expostas a mais testosterona se tornaram mais
sistematizadoras, e as expostas a menos testosterona se tornaram mais empáticas -
independentemente de seu sexo.
Vamos dar agora um pulo para diferenças cognitivas em adultos homossexuais. De seis estudos
com tarefas visuo-espaciais, cinco mostraram que homens gays têm um desempenho pior em tarefas
visuo-espaciais do que homens heterossexuais, e um não mostrou diferença nenhuma, enquanto dois
estudos mostraram que lésbicas têm melhor desempenho nessas tarefas do que mulheres
heterossexuais, e quatro ou não mostraram diferença ou não incluíam lésbicas. Outro estudo mediu
a fluência verbal entre homens e mulheres homossexuais e heterossexuais. Gays e mulheres
heterossexuais se deram melhor do que lésbicas e homens heterossexuais.
Temos agora o ponto A e o ponto B. Seria possível ligá-los e afirmar que um menino que não
gosta de jogar bola vai virar gay, e uma menina que não se interessa por bonecas vai virar lésbica?
Não necessariamente. Mas dezenas de estudos já mostraram uma correlação forte entre crianças
que se tornarão adultos homossexuais e suas características comportamentais e cognitivas.
A maioria desses estudos se baseia em entrevistas sobre como adultos hétero e homossexuais
eram na infância. Uma pesquisa canadense de 1983 concluiu que gays eram, quando crianças,
fisicamente menos agressivos do que os meninos que se tornariam adultos heterossexuais. Outro
estudo da UCLA com 792 pessoas mostrou que crianças que se tornariam homossexuais
participavam menos de atividades típicas de seu sexo e mais de atividades atípicas. A comparação
de 41 estudos semelhantes confirma que a homossexualidade é relacionada a um comportamento
não-conformista com o gênero já na infância - mais em meninos, e menos em meninas.
Um dos poucos estudos que, em vez de fazer retrospectiva, acompanhou o desenvolvimento de
crianças foi o feito pelo psicólogo Richard Green. Ele observou 44 meninos que diziam querer ser
meninas e 35 meninos não-afeminados. Dos não-afeminados, todos se tornaram heterossexuais aos
18 anos. Dos 44 afeminados, 11 se tornaram heterossexuais, e os demais, homo ou bissexuais. Como
outros estudos, esse mostrou que uma criança que não se encaixa em seu gênero na infância tem
mais chance de se tornar homossexual, ainda que isso não ocorra em todos os casos.
E o que dizer quando homossexuais amam? Nesse ponto, a diferença entre hétero e
homossexuais é pequena. Estudos mostram que gays são como homens heterossexuais no forte
interesse por estímulos visuais, por parceiros jovens para relacionamentos estáveis (e dão uma
envelhecida quando procuram relacionamentos passageiros), e na busca por sexo sem compromisso.
A diferença é que os gays não têm de enfrentar a relutância feminina, então eles tendem a ter mais
parceiros sexuais do que a média dos héteros ao longo da vida. Já lésbicas têm o mesmo baixo
interesse em sexo sem comprometimento ou em parceiros múltiplos como mulheres heterossexuais -
porém, mais interesse em estímulos visuais.
Já quando a questão é o ciúme, gays são mais parecidos com mulheres heterossexuais, e lésbicas
são mais parecidas com homens homossexuais, concluiu um estudo da psicóloga Pieternel
Dijkstra com 138 gays e 99 lésbicas holandeses em 2001. Quando lhes perguntaram o que mais
incomodaria, a infidelidade emocional ou sexual, gays enfatizaram mais a emocional, e lésbicas, a
sexual.
Epílogo
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S959
Superinteressante : como as pessoas funcionam . – São Paulo : Ed. Abril,
2013. 312p. ; 23 cm.
ISBN 978-85-364-1658-8
1. Psicologia – Obras populares. 2. Emoções e sentimentos. I. Título.
CDD 152.4
2013
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