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COLEÇÃO LEITURAS SOCIOLOGIA


Responsáveis:
Anna Maria de Castro Nancy Aléssio Magalhães

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO


Os capítulos I, II e V foram elaborados pela professora Anna Maria de Castro e oscapítulos III e IV pelo professor
Edmundo Fernandes Dias.
ANNA MARIA DE CASTRO E EDMUNDO FERNANDES DIAS

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

CONTEXTO HISTÓRICO DO APARECIMENTO DA SOCIOLOGIA

A revolução industrial e a nova ordem social

A Revolução Industrial, realmente, é o marco de uma nova era na história da humanidade, pois
deu início a uma etapa de acumulação crescente de população, bens e serviços, em caráter permanente
e sistemático sem precedente. É inseparável do desenvolvimento por ser, fundamentalmente, uma
revolução produtiva: uma Revolução na capacidade de produção e de acumulação do homem.
Não se trata, apenas, do crescimento da atividade fabril. A Revolução Industrial é fenômeno muito
mais amplo, constitui uma autêntica revolução social que se manifesta por transformações profundas da
estrutura institucional, cultural, política e social. (...) (S.1970,3)
A excepcional expansão experimentada pelas economias industriais, a partir da segunda metade do
século XIX, tem seus antecedentes mais próximos no período de gestação e triunfo da Revolução
Industrial que pode ser fixado, arbitrariamente, nos cem anos que vão dos meados do século XVIII até
igual período do século XIX.
(...) Um dos elementos essenciais na gestação das condições que possibilitaram a Revolução
Industrial foi a acumulação de recursos financeiros proporcionada pela intensificação do comércio
internacional e pela política mercantilista inglesa de épocas anteriores. O enriquecimento e o
fortalecimento dos grandes comerciantes e das empresas mercantis significou o advento de novo talento
empresarial e de importantes recursos de capital na atividade manufatureira e na agricultura. (...) (S.
1970,7-8)
(...) o capitalista comercial, originado na fase mercantilista anterior, foi levado a introduzir
modificações substanciais na atividade manufatureira, ainda de natureza artesanal, doméstica e
marcadamente rural: o capitalista-comerciante reorganiza o trabalho individual ou familiar que
prevalecia nas oficinas (os Work-shops), onde reúne grupo importante de artesãos a quem fornece
matéria-prima, energia mecânica, local de trabalho e organização de vendas. (S. 1970, 9).
Do ponto de vista da estrutura produtora, a Revolução Industrial acelerou a profunda
transformação da atividade agrícola, principalmente pela introdução de novas técnicas que
intensificaram o uso i do solo e incorporaram novos recursos naturais ao cultivo. Como
conseqüência, a produtividade inglesa aumentou substancialmente entre meados do século XVII e
fins do século XVIII.
A Revolução Industrial traduz-se, também, cm profunda transformação da estrutura da
sociedade. Por exemplo, na reordenação da sociedade rural, com a destruição sistemática da
servidão e da organização rural, centralizada na vila e na aldeia camponesa, e a conseqüente
emigração da população rural para os centros urbanos. A transmutação da atividade artesanal em
manufatureira e. por último, em atividade fabril, deu margem, também, a profundas reformas que
conduziram à criação do proletário urbano e do empresário capitalista: o primeiro, assalariado, e
sem acesso à propriedade pessoal dos meios de produção; o segundo, com a função precípua de
organizar a atividade produtiva na empresa,
A Revolução Industrial implicou, por isso mesmo, o fortalecimento e a ampliação de uma nova
classe social que vinha sendo configurada em períodos anteriores sobre a base da atividade comer-
cial e financeira; classe esta que passou a exercer considerável influência na criação das condições
institucionais e jurídicas indispensáveis ao seu próprio fortalecimento e expansão. (S.1970.11)
A Revolução Francesa é o fenômeno histórico que reflete com mais perfeição as aspirações e
exigências da nova classe burguesa em consolidação. De fato, a Revolução Francesa e a Revolução
Industrial, que ocorre paralelamente na Inglaterra, constituem as duas faces de um mesmo processo
- a consolidação do regime capitalista moderno. (S. 1970,12)

Os Mecanismos da Revolução Industrial

Na verdade, os progressos da revolução industrial foram realizados através de uma série de


desequilíbrios, fonte de perturbações na economia, mas ao mesmo tempo promotores de invenções
fecundas. (A.1970, 24)
A revolução técnica que se situa geralmente entre 1750 e 1850, que leva à instauração do
capitalismo liberal, não é senão um momento de uma longa evolução que leva paralelamente ao
controle da natureza, à tomada do poder pela burguesia e ao "laisser-faire", "lais-er-passer". Esta
mutação aparece primeiro na Grã-Bretanha, depois ia França, antes de se generalizar no fim do
período na Europa ocidental e nos Estados Unidos. (A. 1970, 13).
A partir de meados do século XVIII, as técnicas de produção oram profundamente modificadas;
em menos de dois séculos os homens vão adquirir um controle da natureza sem comparação com o
jue até então possuíam. Essa Revolução Industrial começa sob a égide da liberdade. Mas, essa
liberdade tem um significado particular. antes de qualquer outra coisa, trata-se de permitir aos
empresários industriais que desenvolvam e criem novas formas de produção e de enriquecer. Luta-
se contra os regulamentas, os costumes, as tradições 3 as rotinas, a fim de submeter a organização
da sociedade aos imperativos de uma classe social - a burguesia; progressivamente, no seu próprio
seio, um grupo predomina: os empresários industriais. Mais que a liberdade, o capitalismo liberal
estabelece o reino do capital, dos seus possuidores e dos imperativos de acumulação deste capital.
(A. 1970,11)

As Crises sociais e Econômicas do Capitalismo Liberal

O nascimento do capitalismo é marcado por graves crises econômicas e sociais. Elas atingem,
inicialmente, a Inglaterra, país que conheceu o primeiro capitalismo industrial, generalizando-se
pela Europa.
As primeiras crises sociais do capitalismo colocam o mundo agrícola inglês às voltas com o
cercamento dos campos, em seguida aparece a luta, antecipadamente perdida, entre os artesãos e a
indústria; rapidamente, porém, a luta social opõe os operários aos capitalistas.
(...) A maioria dos operários são camponeses e artesãos arruinados; expulsos das terras e das
aldeias, vivem em ignóbeis condições de alojamento e de promiscuidade. O artesão perde a sua
antiga qualificação (....) Estamos em presença de uma verdadeira castração de talento. Todos eles
são desenraizados, considerados pela burguesia como seres úteis mas perigosos. Na França, o
operário passa a ter uma carteira de trabalho que o submete ao controle da Polícia. Na Inglaterra, o
operário que deixa seu patrão é passível de ser preso. As condições de trabalho são duras. A jornada
é de pelo menos 12 horas e não há férias nem feriados. O trabalho das mulheres e das crianças é a
regra. Praticamente as crianças começam a trabalhar desde a idade de seis anos. É preciso esperar
pelos meados do século XIX para ver aparecer na França e na Inglaterra uma regulamentação
quanto ao trabalho da mulher e das crianças. (A. 1970, 46-47).
(...) no século XIX o ritmo da alteração econômica, no referente à estrutura da indústria e das
relações sociais, o volume de produção e a extensão e variedade do comércio mostrou-se inteira-
mente anormal, a julgar pelos padrões dos séculos anteriores; tão anormal a ponto de transformar
radicalmente as idéias do homem sobre a sociedade, de uma concepção mais ou menos estática de
um mundo onde. de uma geração para a outra, os homens estavam fadados a permanecer na posição
de vida que lhes fora dada ao nascimento, e onde o rompimento com a tradição era contrário à
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natureza, para uma concepção de progresso como lei da vida e da melhoria constante como estado
normal de qualquer sociedade sadia. (. . .) (D. 1971,313-314)

As novas formas de pensar

(...) é resultado parcial da revolução total do espírito europeu que, tendo se iniciado no
Renascimento, transformou, por inúmeras ações e reações, nossa maneira de ver o mundo e a vida.
Na Idade Média, a terra e a obra que a atividade humana cnou sobre ela gozavam de grande
estabilidade. A Autoridade divina, extra e supraterrena, era um firme ponto de referência. A
cultura e a natureza se justificavam e se explicavam sobre uma base transcendente. Porém, a razão
calculadora de Copérnico, Kepler, Galileu. Gassendi e outros fez virar a terra, os espaços se
ampliaram ao infinito e a humanidade se transformou cm um mero episódio da História do Mundo.
Este descobrimento deu um impulso decisivo à evolução espiritual que, por caminhos complexos,
trabalha até o presente na obra de substituir a visão transcendente do mundo pela visão imanente
(H. 1930, 17-18) O sistema medieval de concepção do mundo foi atingido mais profundamente,
inicialmente, no terreno religioso. Essa ruptura devia assim abalar as pretensões teóricas e práticas
de dominação do supranaturalismo da Igreja. No pensamento medieval, que tinha sua pedra angular
na tradição divina, não era possível um conflito entre a Revelação e a Razão, posto que a filosofia
não pretendia ser mais que uma serva e apologista da Teologia. Porém, no momento em que a
Razão se rebelou contra sua condição servil e proclamou sua autonomia, tinha que se desencadear a
luta contra a Teologia, socialmente dominante. A insuficiência da Razão proclamada pela Igreja foi
negada pela consciência dessa mesma Razão, fortalecida pelos dados que lhe forneciam a
experiência e os conhecimentos científico-naturais. Já a partir do século XVI, são muitas as pessoas
cultas que, renunciando a toda sanção sobrenatural, ordenam seu pensamento e sua vida pela
autonomia da razão (. . .) Partindo dessa autonomia e confiando apenas nela, chegou-se a uma
explicação do mundo a partir de um princípio matemático e mecânico. Essa explicação seguia em
harmonia com uma supranaturalidade da Razão mesma, admitindo um deísmo em que Deus
continuava sendo cnador, ainda que não governador da máquina do mundo que construiu, pois este
obedecia, em seu funcionamento, a leis próprias. (. ..) (H. 1930, 18-19)

O Racionalismo

Até o século XVIII o pensamento social caracterizava-se muito mais pela preocupação de
formular regras de ação do que pelo estudo, frio e objetivo, da realidade social, que gera e
determina todas as regras. A luta contra o drama e pelo livre-exame, expressões de profunda
revolução intelectual, vai encontrar, porém, na obra de Descartes e de Bacon, seu modelo mais
autêntico e a duração de sua influência permaneceu séculos.
O racionalismo daqueles pensadores preconizava que a atitude científica diante dos fenômenos
— embora não insistissem sobre a noção fundamental de que a realidade é exterior à consciência —
deve ser despida da influência dos idola e das praenotiones, com o que lançaram as bases do que
havia de ser o método científico, bases que podem ser resumidas nestes postulados fundamentais:
1. deve-se afastar, no estudo da realidade objetiva , toda e qualquer idéia preconcebida, toda
noção apriorística sobre os fatos que se estudam;
* Segundo Bacon, idola são os erros mais gerais e inveterados, contra os quais devemos nos
precaver, a fim de realizar a obra de instauração da ciência, (nota do organizador).
2-o espírito deve ser conduzido à pesquisa pela dúvida, dúvida metódica e construtiva, que analisa e
investiga, único meio de retirar a verdade dos fatos e não deformar os fatos para ajustá-los a uma verdade
revelada.
Apesar da função demolidora e construtiva que exerceu na história do pensamento humano e do
método científico, esse racionalismo não ultrapassou, nem podia ultrapassar, os limites de sua
determinação histórica, e acabou por cometer muitos dos erros que pretendia combater, resvalando
para a metafísica (, ..) (CP. 1965,36)
O Positivismo

A crise do antigo regime e a Revolução Industrial tomaram possível o aparecimento dessa nova
forma da inteligência que é o positivismo, cujo desenvolvimento estará vinculado ao processo
histórico desse mesmo sistema de contradições sociais que produzem sua gênese. O
desaparecimento do estado monárquico implica a dissolução da "ordem estamental": à pressuposta
harmonia do "corpo social unificado" organicamente como "corpo político" se sucede a luta
declarada de classes, chave do desenvolvimento econômico capitalista e determinante da de-
mocracia como nova forma política.
(...) Com a destruição revolucionária de sua própria alienação estatal, a sociedade se toma
autoconsciente de seu protagonismo histórico, de sua autêntica realidade: como tal sistema
autônomo de determinação sua realidade específica entra no primeiro plano da consciência
secularizada de seus membros: assim a sociedade se constitui como objetividade possível para o
conhecimento científico. "Em nosso tempo começou-se a observar uma série de fenômenos a que
antes não se podia destinar um lugar, quer na vida corrente, quer na ciência . . . Importantes
acontecimentos demonstraram . .. nos novos tempos que aqueles fenômenos se apoiam numa força
que penetra a existência inteira dos povos e, inclusive, a de cada indivíduo em particular, que se
acham numa conexão íntima e necessária, e que o conhecimento humano, ao ocupar-se deles,
chegou a uma dessas descobertas que nos permitem reconhecer, por assim dizer, por trás do mundo
conhecido até agora e da ordem deste mundo, outro organismo, ainda mais grandioso, de forças e
elementos. . . Trata-se da sociedade, seu conceito, seus elementos e movimentos." (M. 1970, 31-32)
Diante da velha definição ontológica da sociedade - sem sentido nesse mundo efervescente -
impõe-se um "conhecimento positivo" que torne possível sua reorganização. A ciência adquire um
sentido messiânico na hora de remediar a situação social: o padrão atual não é a decisão política,
ética ou teologicamente fundamentada, mas a aplicação técnica das leis científicas que regem a
sociedade humana. Deve-se, por conseguinte, construir "positivamente" a ciência social: como ciên-
cia da vida coletiva será um dos ramos fundamentais da ciência da vida em geral ou fisiologia, "uma
fisiologia social, constituída pelos fatos materiais que derivam da observação direta da sociedade, e
uma higiene, que contenha os preceitos aplicáveis a tais fatos, são, portanto, as únicas bases
positivas sobre as quais se pode estabelecer o sistema de organização reclamado pelo estado atual
da civilização" (Saint-Simon, op. cit., 58), A "positividade prática" da ciência social supõe sua
"positividade metodológica": do mesmo modo que a praxis médica supõe o conhecimento das leis
que regem a fisiologia humana, uma praxis política capaz de remediar a patológica situação social
só é possível a partir da investigação das leis científicas que regem a sociedade humana. Para
alcançá-las é preciso adotar o mesmo método das ciências naturais: a "fisiologia social" deverá
"basear todos os seus raciocínios sobre fatos observados e discutidos" (Saint-Simon, loc. cit., 67)
(...) (M. 1970, 33).

SOCIOLOGIA
O Aparecimento da Sociologia

(...) as transformações econômicas e sociais que assinalam a primeira metade do século XIX e o
desenvolvimento do método científico noutros setores do conhecimento humano, paralelos à
sociologia, criaram, a esse tempo, as condições práticas e teóricas, históricas e filosóficas, para a
organização da sociologia como disciplina, e só nesse quadro, ligando a evolução intelectual às
condições sociais da liquidação do "ancien regime" e da inauguração da era industrial, é possível
entender o momento histórico em que a sociologia começou a destacar-se como setor especializado
de conhecimento, sistematizando-se como ciência.
Interpretada por um prisma idealista, a evolução material, naquela época, parecia aos
contemporâneos um produto do desenvolvimento intelectual do homem, cujo pensamento
iluminava os passos da civilização, quando, em verdade, o progresso crescente dos modos de pensar
sobre fenômenos cada vez mais complexos - e disso a sociologia é uma prova - era produto direto
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das novas maneiras de viver e produzir. Nessa época, como se vê, é que a sociologia surgiu; surgiu,
portanto com a sociedade industrial, ou melhor, com os seus esboços. Surgiu quando do seu ventre
nasceu o proletariado, e essa circunstância, quase sempre esquecida, é de importância decisiva para
a compreensão de sua história, de seu método e de seus problemas de hoje. (CP. 1965,37)

A herança intelectual da Sociologia

A Sociologia não se limita ao estudo das condições de existência social dos seres humanos.
Todavia, essa constitui a porção mais fascinante ou importante de seu objeto e aquela que alimentou
a própria preocupação de aplicar o ponto de vista científico à observação e à explicação dos
fenômenos sociais. Ora, ao se falar do homem, como objeto de indagações específicas do
pensamento, é impossível fixar, com exatidão, onde tais indagações se iniciam e quais são os seus
limites. Pode-se, no máximo, dizer que essas indagações começam a adquirir consistência científica
no mundo moderno, graças à extensão dos princípios e do método da ciência à investigação das
condições de existência social dos seres humanos. Sob outros aspectos, já se disse que o homem
sempre foi o principal objeto da curiosidade humana. Atrás do Mito da Religião ou da Filosofia
sempre se acha um agente humano, que se preocupa, fundamental e primariamente, com questões
relativas à origem, à vida e ao destino de seus semelhantes.
Por isso, seria vão e improfícuo separar a Sociologia das condições histórico-sociais de
existência, nas quais ela se tornou intelectualmente possível e necessária. A Sociologia não se
afirma primeiro como explicação científica e, somente depois, como forma cultural de concepção
do mundo. Foi o inverso o que se deu na realidade. Ela nasce e se desenvolve como um dos
florescimentos intelectuais mais complicados das situações de existência nas modernas sociedades
industriais e de classes. E seu progresso, lento mas contínuo, no sentido do saber científico-positivo,
também se faz sob a pressão das exigências dessas situações de existência, que impuseram tanto ao
pensamento prático, quanto ao pensamento teórico, tarefas demasiado complexas para as formas
pré-científicas de conhecimento.
Daí a posição peculiar da Sociologia na formação intelectual do mundo moderno. Os pioneiros
e fundadores dessa disciplina se caracterizam menos pelo exercício de atividades intelectuais
socialmente diferenciadas, que pela participação mais ou menos ativa das grandes correntes de
opinião dominantes na época, seja no terreno da reflexão ou da propagação de idéias, seja no
terreno da ação. As ambições intelectuais de autores como Saint-Simon, Comte, Proudhon e Le
Play, ou de Howard, Malthus e Owen, ou de Von Stein, Marx e Riehl iam além do conhecimento
positivo da realidade social. Conservadores, reformistas ou revolucionários, aspiravam fazer do
conhecimento sociológico um instrumento da ação. E o que pretendiam modificar não era a
natureza humana em geral, mas a própria sociedade em que viviam.
Existe, portanto, fundamento razoável para a interpretação segundo a qual a Sociologia
constitui um produto cultural das fermentações intelectuais provocadas pelas revoluções industriais
e político-sociais, que abalaram o mundo ocidental moderno (...).
A explicação sociológica exige, como requisito essencial, um estado de espírito que permita
entender a vida em sociedades como estando submetida a uma ordem, produzida pelo próprio
concurso das condições, fatores e produtos da vida social. Por isso, tal estado de espírito não só é
anterior ao aparecimento da Sociologia como representa uma etapa necessária à sua elaboração. No
mundo moderno, pelo que se sabe, ele se constituiu graças à desagregação da sociedade feudal e à
evolução do sistema capitalista de produção, com sua economia de mercado e a correspondente
expansão das atividades urbanas. É que estes dois processos históricos-sociais se desenrolaram de
modo a ampliar, continuamente, as esferas da existência nas quais o ajustamento dinâmico às
situações sociais exigia o recurso crescente a atitudes secularizadas de apreciação dos móveis das
ações humanas, do significado dos valores e da eficiência das instituições.
No plano puramente intelectual, a secularização dos modos de conceber e de explicar o mundo
está relacionada com transformações radicais da mentalidade média. O efeito mais notável e
característico dessas transformações consiste no alargamento do âmbito da percepção social além
dos limites do que era sancionado pela tradição, pela Religião ou pela Metafísica.
Todo sujeito percebe o mundo exterior e as próprias tendências egotistas através de categorias
de pensamento herdadas da sociedade em que vive. Quando a herança cultural é constituída,
predominantemente, por categorias de pensamento modeladas pelo influxo direto e profundo das
tradições, de noções religiosas ou de explicações metafísicas de origem sacerdotal, a percepção
social acaba sendo condicionada de forma estática e recorrente, o que restringe as potencialidades
críticas e inconformistas dos agentes humanos em face de suas situações de existência. Qualquer
análise da conduta, da sociedade ou do destino humano esbarra com o caráter "absoluto",
"intangível" e "sagrado" das normas dos valores e das instituições sociais reconhecidos
culturalmente. Nem mesmo uma disposição objetiva ou neutra de reconhecimento das situações de
existência se torna facilmente acessível. Nas condições de inquietação e de instabilidade, ligadas à
desagregação da sociedade medieval e à formação do mundo moderno, as inconsistências daquelas
categorias absolutas e estáticas do pensamento se fizeram sentir com rapidez. Contudo, como se
estava em uma era de revolução social (e não apenas de transição de um período a outro de uma
mesma civilização), elas não foram simplesmente impugnadas e rejeitadas: as formas de saber de
que elas derivavam e que pareciam viciar, de diversas maneiras e sob diferentes fundamentos, o uso
da razão, é que foram condenadas e substituídas. Seja no plano prático, seja no plano teórico,
impunham-se tarefas que pressupunham novos padrões de apreciação axiológica, mais ou menos
livres dos influxos da tradição ou de concepções providencialistas. Portanto, o que se poderia
designar como consciência realista das condições de existência emerge e progride através de
exigências de novas situações de vida, mais complexas e instáveis. Daí o enriquecimento dos
conteúdos e o alargamento dos níveis da percepção social do sujeito, exposto a um cosmos moral
cm que a capacidade de julgar, de decidir e de agir passa a depender, de modo crescente, do grau de
consciência por ele alcançado sobre os móveis das ações dos outros ou os efeitos das possíveis
alterações da estrutura e funcionamento das instituições.
A essa transformação básica do horizonte intelectual médio, é preciso acrescentar outras duas
conseqüências, a ela relacionadas. De um lado, as modificações que se produziram na natureza e
nos alvos do conhecimento do senso comum; de outro, as inovações que se manifestaram no seio do
pensamento racional sistemático. As modificações por que passou o conhecimento do senso comum
têm sido subestimadas, em particular devido às inclinações intelectualistas dos autores que estudam
a história do pensamento no mundo moderno. Mas, elas possuem uma significação excepcional,
pois foi por meio delas que se projetaram na vida prática as diversas noções que fizeram da
atividade humana, individual ou coletiva, o próprio cerne de todo progresso econômico, político ou
cultural. Na verdade, foi o conhecimento do senso comum que se expôs e teve de enfrentar as
exigências mais profundas e imediatas das novas situações de existência social. Por isso, ele acabou
servindo como verdadeiro foco de formação e de cristalização das categorias de pensamento,
historicamente adequadas àquelas situações (...)
Em suma, aos efeitos do processo de secularização da cultura na modificação da mentalidade
média, do conhecimento do senso comum e do pensamento racional sistemático devem-se: a
formação do ponto de vista sociológico, a noção de que a vida humana em sociedade está sujeita a
uma ordem social, e as primeiras tentativas de explicação realista dos fenômenos de convivência
humana (...) (F. 1960, 273-279).

Papel inicial da Sociologia

(...) Cabia, (...) ao lado da demolição da ordem social do passado, demolição que a filosofia
enciclopedista tornara racional, racionalizar a construção de uma ordem nova, c com esta missão
nasceu a sociologia. (CP. 1965, 37-38)
A sociologia do século XIX marca incontestavelmente o momento da reflexão dos homens sobre eles
mesmos, aquele onde o social como tal é posto em questão, com seu caráter equívoco, ora enquanto
relação elementar entre os indivíduos, ora enquanto entidade global. Ela também exprime uma intenção
não radicalmente nova mas original por seu radicalismo, a de um conhecimento propriamente
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científico, baseado no modelo das ciências da natureza, tendo em vista o mesmo objetivo: o
conhecimento científico deveria dar aos homens o controle de sua sociedade e de sua história assim
como a física e a química lhes possibilitaram o controle das forças naturais. (A. 1967,16-17)
Creio ser legítimo encarar os autores do século XIX como participantes de um debate que era
sempre o mesmo, sobre a possibilidade de por em prática os princípios anteriormente proclamados pela
Revolução Francesa. Para sermos mais precisos, eles discutiam a viabilidade da criação de uma
sociedade racional nas condições de progresso industrial e com os materiais humanos existentes àquele
tempo. Para esses homens, o termo "racional" possuía um conteúdo social definido e implicava, ainda
que imprecisamente, a espécie de sociedade que permitiria ao homem tirar o máximo de proveito das
suas capacidades criativas (M. 1972,97-98)

SOCIOLOGIA COMO CIÊNCIA

A tarefa da Ciência

O objetivo da ciência é tomar inteligível o real. Sendo o real diverso, pode ser apreendido a partir
de diferentes pontos de vista, o que explica a multiplicidade das ciências, que por sua vez precisa ser
elucidada, já que é um aspecto do real. Este é o papel da epistemologia, que podemos definir como a
explicação dos diversos sistemas de explicação da realidade. Trata-se de um problema que sempre
ocupou a filosofia e que o desenvolvimento atual das ciências humanas coloca em termos novos: a
discordância entre a unidade da ciência como conceito e a variedade das pesquisas que dá origem a
ciências particulares, até mesmo divergentes. Em resumo, o problema consiste em conciliar a unidade da
ciência com a pluralidade das ciências. (F. 1973-75)

O método como um produto histórico

Um dos químicos contemporâneos que desenvolveu os métodos científicos mais minuciosos e mais
sistemáticos, Urbain, não hesitou em negar a perenidade dos melhores métodos. Para ele, não há método de
pesquisa que não acabe por perder sua fecundidade inicial. Chega sempre uma hora em que não se tem
mais interesse em procurar o novo sobre os traços do antigo, em que o espírito científico não pode
progredir senão criando novos métodos. Os próprios conceitos científicos podem perder sua
universalidade. Como diz Jean Perrin, "Todo conceito acaba por perder sua utilidade, sua própria
significação, quando nos afastamos pouco a pouco das condições experimentais em que ele foi
formulado". Os conceitos e os métodos, tudo é função do domínio da experiência; todo o pensamento
científico deve mudar ante uma experiência nova; um discurso sobre o método cientifico será sempre
um discurso de circunstâncias, não descreverá uma constituição definitiva do espírito científico. (B.
1968, 121)

As Ciências Humanas enquanto Ciências

As ciências históricas e humanas não são pois, de uma parte, como as ciências físico-químicas,
o estudo de um conjunto de fatos exteriores aos homens, o estudo de um mundo sobre o qual recai
sua ação. São ao contrário a análise dessa própria ação, de sua estrutura, das aspirações que a
animam e das alterações que sofre (...) (G. 1970, 27)
Na realidade, sabemos hoje que a diferença entre as condições de trabalho dos "físicos,
químicos e fisiológicos" e a dos sociólogos e dos historiadores não é de grau mas de natureza; no
ponto de partida da investigação física ou química há um acordo real e implícito entre todas as
classes que constituem a sociedade atual a respeito do valor da natureza e do fim da pesquisa. O
conhecimento mais adequado e mais eficaz da realidade física e química é um ideal que hoje não
choca nem os interesses nem os valores de qualquer classe social. Neste caso, a falta de objetividade
no trabalho de um cientista só pode ser causada por defeitos pessoais (espírito de sistema, falta de
penetração, caráter apaixonado, vaidade, e no limite, falta de probidade intelectual) (...)
Nas ciências humanas, ao contrário, a situação é diferente. Pois se o conhecimento adequado
não funda logicamente a validade dos juízos de valor, é certo porém que favorece ou desfavorece
psicologicamente essa validade na consciência dos homens. (...) (G. 1970, 32)
Ora, em tudo o que respeita aos principais problemas que se colocam para as ciências humanas,
os interesses e os valores sociais divergem totalmente. Em lugar da unanimidade implícita ou
explícita nos juízos de valor sobre a pesquisa e o conhecimento que está na base das ciências físico-
químicas, encontramos nas ciências humanas diferenças radicais de atitude, que se situam no início,
antes do trabalho de pesquisa, permanecendo muitas vezes implícitas e inconscientes. (...) (G. 1970,
32) (...) Retomemos somente: 1) a constatação de que todo pensamento histórico ou sociológico
sofre profundas influências sociais, no mais das vezes, não explícitas para o pesquisador individual,
influências que ele nunca poderá eliminar mas que, ao contrário, deverá tornar conscientes e
integrá-las na investigação científica para evitar ou para reduzir ao mínimo sua ação deformante; 2)
a necessidade, que se torna evidente nessa perspectiva, de um estudo sociológico das próprias
ciências sociais e, em termos mais precisos, de um estudo materialista e dialético do materialismo
dialético. ( . . . ) (G. 1970, 36)
Há sem dúvida muitas ocasiões para o pensamento do indivíduo ser influenciado pelo meio
com o qual entra em contato imediato; essa influência pode entretanto ser múltipla: adaptação mas
também reação de recusa ou de revolta, ou ainda síntese das idéias encontradas no meio com outras
vindas do exterior etc. ( . . . ) (G. 1970,48)
Os grandes escritores representativos são aqueles que exprimem, de uma maneira mais ou
menos coerente, uma visão do mundo que corresponde ao máximo de consciência possível duma
classe; é o caso sobretudo dos filósofos, escritores e artistas. Para o homem de ciência a situação às
vezes se apresenta diferente. Sua tarefa essencial é chegar ao conhecimento mais vasto e mais
adequado da realidade. Ora, precisamente a mencionada independência relativa do indivíduo em
relação ao grupo permite-lhe, em certos casos, corrigir os limites duma visão por conhecimentos
adequados, contrários a esta mas perfeitamente compatíveis com outra visão real duma classe
diferente, ou ainda ampliar os limites da consciência real da classe, numa dada época, pelas
possibilidades gerais dessa classe no conjunto do período histórico. (...) (G. 1970,48-49)
O fato de não termos ainda, na ciência social, leis comparáveis às das ciências naturais não
prova, por si mesmo, que tais leis nunca serão descobertas. Sem embargo, justifica que se pergunte,
mais uma vez, se a ciência social está no caminho certo ao fazer da busca dessas leis a sua principal
raison d'etre. As diferenças entre a ciência natural e a ciência social talvez pesem mais do que a
relativa imaturidade da ciência social. A estrutura lógica dos gêneros de conhecimento que
procuramos na ciência social pode não ser idêntica à das ciências naturais avançadas. (M. 1972,109)
(...) Achamos que a finalidade da Sociologia não é elaborar um sistema fechado de leis
definidas, mas permitir, pelo estudo científico, que as tornem cônscias de algumas das razões
sociais para os problemas sociais que experimentam e para serem capazes de dirigir sua atenção aos
tipos de remédios a eles adequados. Ela também pode ajudá-las a se compreenderem melhor. (C.
1972, 2S2, 256).

O PROBLEMA DA SUBJETIVIDADE

O Sociólogo enquanto pessoa

Em primeiro lugar, as proposições que (os sociólogos) fazem sobre as pessoas — como elas são
afetadas por pertencerem a certos tipos de grupos; na verdade, mais do que isso, a de que é
inconcebível pessoas sem grupos. Mannheim, o famoso sociólogo, assim o expõe: Pertencemos a
um grupo não só porque nascemos nele, não apenas por confessarmos pertencer a ele e, por último,
não porque lhe prestamos nossa lealdade e fidelidade, mas principalmente porque vemos o mundo e
certas coisas no mundo da maneira como ele vê (Mannheim, 1960, pág. 19). Mas os sociólogos
também são gente; por conseguinte, também são membros de grupos e, tanto quanto é válida a
afirmação acima, também tenderão a ver o mundo da maneira que o fazem os grupos a que
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pertencem. Logo, deveríamos esperar aprender algo sobre o que os sociólogos, como tais, dizem,
estudando a natureza dos diferentes tipos de grupos aos quais pertencem. (Aqui, estamos usando a
palavra grupo num sentido muito geral e não apenas pensando em pessoas que se encontram face a
face.) (C. 1972, 17)
O segundo problema para os sociólogos é que seu assunto está inextricavelmente ligado aos
tipos de problemas cuja solução, de um modo ou de outro, interessa a todo ser humano; sobre os
quais existem vastas discordâncias de âmbito continental; pelos quais muitos têm morrido —
problemas como guerra e paz, socialismo, pobreza, desemprego, as relações entre homens e
mulheres, etc. Sua investigação envolve os sociólogos em grandes argumentos históricos e lhes
torna muito difícil divorciar seus próprios pontos de vista, como cidadãos, do seu trabalho como
sociólogos. Alguns sociólogos têm tentado fugir a esse problema recusando-se resolutamente a
estudar qualquer coisa que possa, concebivelmente, ter importância social (cf. Moore, 1963). Mas
na verdade não há como escapar, já que mesmo a decisão quanto ao que estudar ou ao que não
estudar é uma decisão social e pode ser julgada em termos morais: "Pelo seu trabalho, todos os
estudiosos do homem e da sociedade assumem e subentendem decisões morais e políticas" (Mills,
1959, pág. 76). Assim, em maior ou menor grau e de várias maneiras, o sociólogo não pode evitar o
problema dos valores sociais em seu trabalho. (C. 1972,18-19)
As questões colocadas pelo sociólogo diante da realidade social não são necessariamente as
mesmas que as colocadas pelo homem de ação. As questões pertinentes em sociologia são da ordem
do conhecimento e da explicação: e somente permanecendo a sociologia fiel ao que ela é enquanto
disciplina científica é que sua contribuição na intervenção social será válida.
Três problemas principais dominam (...) a pesquisa teórica e empírica na sociologia geral.
Podem ser enunciadas nos seguintes termos:
—como explicar que as coletividades humanas existam e se mantenham? e correlativamente
como o indivíduo se liga a essas coletividades?
—como se organizam ou se estruturam os quadros sociais da vida humana?
—como se produz e se explica a mudança, a evolução das sociedades humanas? (R. 1968,10)

A lei do comprometimento

O sociólogo, como qualquer especialista em ciências sociais, está sempre condicionado, em sua
especulação, por um a priori de caráter existencial, tenha ou não consciência disso. Decorre o fato
de que sua consciência se elabora invariavelmente a partir do trato com os objetos e as pessoas do
mundo particular em que vive, Não existe um eu acósmico ou a-histórico capaz de postar-se diante
do mundo, livre de condicionamentos. O eu e a consciência do eu brotam do "nós" que os antecede
lógica e historicamente. A consciência ingênua não percebe a implicação recíproca do ser humano e
do mundo. Resíduo de ingenuidade se encontra na atitude do cientista que acredita numa ciência
imune de condicionamentos. Ao refletir sobre os supostos da atividade científica, ver-se-á que está
implicada numa teia de relações complexas que constituem o mundo tal como aparece ao cientista
que nele vive (...)
(...) O conhecimento, descritivamente, é uma relação entre a consciência cognoscente e o
objeto, na qual se verifica reciprocidade de influência, fato este que não foi visto pelas antigas
teorias gnoscológicas. No plano histórico-social essa reciprocidade de influência permite
compreender a idéia de mundo, que torna inteligíveis as relações entre o sujeito e o objeto. O
mundo não é uma coleção de objetos que possamos contemplar do lado de fora. Estamos
necessariamente no mundo e por ele somos constituídos. O homem é ser-no-mundo, não, porém,
como um par de sapatos está numa caixa, mas enquanto suas ações implicam o mundo, ou uma
visão prévia do mundo (Welt-anschauung). (G. 1965, 113-114)
(...) A atual teoria filosófica do mundo é tributária das indagações de pensadores alemães a
respeito do que são as visões do mundo. É comum a esses pensadores o ponto de vista de que a
visão do mundo não é adquirida por esforço intelectual, nem pode ser exposta como se explica uma
doutrina ou um sistema de idéias. A visão do mundo, apesar disso, é sistema porque é configuradora
de atos e de idéias, tem organicidade. Mas não é puramente intelectual e, por isso, não se pode
neutralizar seu efeito condicionador sobre a atividade científica. Porque nos integramos na
totalidade do mundo "de modo não intelectual" é que nossa existência supõe um a priori histórico-
social. Não aceitamos uma visão de mundo como esposamos uma doutrina ou nos convertemos a
uma religião. Vivemos necessariamente a visão de mundo de nossa época e de nossa nação. (G.
1965, 115)
(...) Supor que o homem teoriza primeiro e age depois é incorrer em erro. O homem não se
esgota no pensar, é também sentir e querer. O pensar é apenas um aspecto particular da vida, que
consiste em converter em objeto determinado conteúdo do agir humano. A nova teoria, resultante
do esforço de pensar, era, no agir humano, uma virtualidade. É precisamente a reflexão que torna
explícita e exprime, de modo elaborado, a virtualidade implícita no agir humano. A pergunta
famosa: "quem educa o educador? " só tem uma resposta — a sociedade, e não outro educador. E
assim se desfaz a polaridade entre teoria e prática. Por que a sociedade? Porque é um fenômeno
total. É pressuposto essencial da categoria de totalidade, a idéia de implicação. O verdadeiro
educador sabe que só conseguirá levar a efeito a pedagogia que lhe possibilitem as condições
sociais determinadas em que vive. Tem a consciência da implicação do homem no
mundo. (G. 1965, 116)
Há ainda um vício eurorocêntrico em tais estudos, expresso no academicismo que os afeta.
Aqui se verifica um limite imposto ao: estudioso europeu. A sua prática social entra em conflito com
a prática do estudioso de regiões subdesenvolvidas. 0 estudioso europeu só poderá ultrapassar esse
limite se, por um esforço de "desideologização", adotar, em caráter sistemático, o ponto de vista
universal da comunidade humana. Só assim transcenderá o seu contexto histórico-social particular.
(G. 1965, 118)
Nos países periféricos, é a adoção sistemática de um ponto de vista universal orientado para o
futuro que possibilita a redução sociológica. É o imperativo de acelerar, de modo historicamente
positivo, a transformação de contextos subdesenvolvidos que impõe ao cientista de países
periféricos a exigência de assimilar não mecanicamente o patrimônio científico estrangeiro. Esta
exigência se torna particularmente aguda quando, naqueles países, se deflagram impulsos concretos
de ordenação própria ou de articulação interna. Enquanto permanecem ordenados ou articulados
para fora, refendos a um centro dominante que lhes é exterior, carecem da condição mesma que os
habilitaria à prática da redução global de um país situado no âmbito de dominação de outro mais
poderoso, no sentido de obter capacidade autodeterminativa. Nesses países periféricos, a sociedade
não está fundada segundo critérios próprios, é algo a fundar (...) (R., 1965, 119)

A transformação do sociólogo em técnico

(...) o falso dilema teórico da sociologia na América Latina não se esclarece de modo completo
senão quando deslindamos a metamorfose do sociólogo em técnico. É que se diferenciam e se reno-
vam os papéis do cientista, explicitando-se assim novos significados da própria ciência.
Não há dúvidas de que a sociologia — como a economia política, a ciência política, a história, a
antropologia - está continuamente submetida a duas ordens de solicitações. Existe mesmo certa
duplicidade nos alvos da atividade científica do sociólogo. Por um lado, o círculo dos especialistas
estabelece objetivos e padrões de trabalho científico, em conformidade com o caráter cumulativo da
ciência. Em sua história e em seus desenvolvimentos teóricos, as diferentes correntes vão
selecionando conceitos e problemas, técnicas e concepções que implicam na constituição de um
corpo teórico, ao qual os sociólogos precisam ater-se. É óbvio que o problema da objetividade e da
neutralidade se colocam neste ponto ( . . . )
(...) O que alguns críticos apresentam como simples "especulação", "filosofia social" ou
"ensaísmo", muitas vezes são interpretações pioneiras, que abrem perspectivas novas à reflexão e à
pesquisa. (...)(I. 1971, 18-19)
A ciência não destrói a imaginação; ao contrário, ela tende; exercitar e disciplinar as suas
funções (...)
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"A imaginação sociológica habilita-nos a apanhar a história e i biografia, e as relações de


ambas no interior da sociedade. Essa é i sua tarefa e promessa. Nenhum estudo social se completa
se não estiver voltado para os problemas da biografia, da história e das suai conexões recíprocas na
sociedade" (C. Wright Mills, The Sociological Imagination)
Todavia, há outra ordem de solicitações. (...), a sociedade como um todo, ou certos círculos de
influência, solicitam à socióloga estudos especiais, voltados para determinados problemas
"práticos". A realidade social se impõe ao sociólogo, filtrada pelos interesses particulares ou gerais,
conforme a situação. Em última instância, solicita o trabalho do cientista para "validar" ou
"invalidar" uma dada configuração social presente, pelo estudo do próprio presente ou do passa do.
A UNESCO quando estimulou e subsidiou estudos sobre as relações raciais no Brasil, estava
interessada em conhecer para difundi em outras nações os característicos modelares de uma
"democrata racial". Foram também "necessidades práticas", isto é, a gravidade ei profundidade das
tensões sociais na sociedade rural brasileira que levaram o Centro Latino Americano de Pesquisas
em Ciências Sociais a programar e orientar a realização de estudos sobre o regime de posse e uso da
terra.
Essas são as duas "tendências" sempre ativas no trabalho i sociólogo. Inevitavelmente, elas
afetam tanto a seleção dos temi como o seu tratamento mais ou menos amplo. A realização apeni
descritiva ou ao modo interpretativo, analítica ou sintetizadora, monográfica ou de interpretação
global, depende da intensidade e da direções dessas influências. Não há dúvidas, contudo, de que a
soa logia progrediu geralmente envolvida em solicitações imediatas ou I diretas das condições de
existência social presentes. (...).
Esse é o contexto mais geral das transformações dos papéis d sociólogo e das possibilidades de
utilização prática do pensamento científico nas ciências sociais. Nesse movimento, dá-se a gênese i
técnico. A ciência guarda sempre a sua conotação de técnica de autoconsciência da realidade social.
O caráter "instrumental" do conhecimento sociológico é algo de que a sociedade não quer nem pode
prescindir. E essa necessidade surge tanto no plano mais amplo, de permuta e correspondência entre
as condições de existência social com a estrutura do pensamento científico, como no plano
particular da utilização prática, imediata, institucionalizada do conhecimento científico. Neste caso,
estamos em face do técnico. É ele que trabalhará diretamente na formulação de programas
governamentais e privados, bem como na execução e controle da sua execução. A relação entre o
sujeito e o objeto, no processo do conhecimento sociológico, é um fenômeno que está na base dessa
questão. Em última instância, o que ocorre é que há vários modos de integração entre o sujeito e o
objeto.
Devido à complexidade e diferenciação interna crescentes dos sistemas socioeconômicos
latino-americanos, e em decorrência das exigências cada vez mais numerosos das massas que
irrompem continuamente nos centros urbanos e industriais em transformação acelerada; e, ainda,
devido às mudanças sociais aceleradas que estão ocorrendo em certas zonas agrícolas e mineiras,
multiplicam-se os "problemas sociais", com os quais se defrontam empresários e assalariados,
administradores e políticos, cientistas sociais e educadores. A necessidade de elaborar planos
setoriais, regionais e também nacionais, bem como a emergência e multiplicação de tensões e
problemas sociais, no âmbito das relações entre grupos e classes, levaram as autoridades, os grupos
empresariais, os sindicatos etc. a estimular a formação de técnicos em assuntos sociais. A
transformação do sociólogo em técnico ocorre nesse contexto. Pouco a pouco, a sociologia
desenvolve a sua conotação de técnica de resolução de tensões ou canalização destas em direções
não "destrutivas".
(...) A experiência dos grandes países industrializados colocou em evidência a importância
crescente do papel que as ciências sociais têm na resolução destes problemas, bem como no
conhecimento do processo de desenvolvimento econômico e social. Já se demonstrou que não há
inversões de capital que possam ser produtivas, a longo prazo, sem investimentos humanos
paralelos, se possível anteriores. Como em outras esferas, o fator humano continua a ser o fator
decisivo do desenvolvimento dos países da América Latina. Uma das tarefas prioritárias nesta parte
do mundo, pois, é constituir rapidamente um contingente de especialistas em ciências sociais,
qualificados e aptos para realizar pesquisas científicas, que são as únicas que podem fundamentar a
ação sobre o conhecimento. Nesse texto estão reunidos os elementos fundamentais das reflexões
que estamos desenvolvendo neste ensaio. Nele destacam-se temas tais como os seguintes: a
vinculação íntima entre o pensamento cientifico e as condições de existência social, principalmente
quando estas aparecem e se impõem como "problema"; a sociologia como uma técnica de
autoconsciência científica da realidade social: a metamorfose do sociólogo em técnico. (I, 1971, 23-
24)
Institucionaliza-se a atividade de técnico, em âmbito continental. As tarefas do
desenvolvimento econômico e as suas implicações sociais, mobilizaram economistas e sociólogos.
Aqui de novo ressurge a preocupação com a objetividade neutra do trabalho científico. É j dado
como pressuposto que, "no plano puramente técnico", a atividade científica do economista e do
sociólogo é neutra. Estamos no plano da sociologia da "inteligentsia", de Karl Mannheim.
Esse mesmo processo está em curso nas diferentes nações latino-americanas. No Brasil, ele está
em franco progresso. A própria regulamentação da profissão de sociólogo, em fase de debate, prevê
a definição das atividades técnicas do sociólogo. Com o progresso da racionalização, espraiando-se
pelo sistema social como um todo, em todas as suas esferas, a ciência se torna essencial nas
organizações e nas ações sociais. Substituem-se os padrões legados pela tradição por aqueles
elaborados por intermédio do método científico. Os atos humanos traduzem-se em variáveis.
É óbvio que essas transformações envolvem problemas sérios no campo do conhecimento
científico. À medida que o sociólogo se modifica num técnico, o seu instrumental de investigação e
reflexão tende a refinar-se. É aí que reaparece de uma maneira clara e impositiva a necessidade de
organizar a atividade intelectual com base na manipulação de variáveis. As exigências práticas
impõem que a pesquisa se realize em período de tempo predeterminado, atenda a recursos
financeiros e humanos prefixados e alcance conclusões precisas e sumárias. Muitas vezes essas
conclusões devem ser susceptíveis de com paração com resultados obtidos em estudos paralelos,
realizados ao I mesmo tempo em outras comunidades ou nações. Tudo isso envolve a eleição de
varáveis quantificáveis, como focos de observação e interpretação. (I. 1971,24-25)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SUNKEL, Osvaldo - O marco histórico do processo de desenvolvimento - subdesenvolvimento.


Tradução de Regina Maia. Rio. Foram Editora, 1971
TRADUÇÃO DE: Anna Maria de Castro Maura Ribeiro Sardinha
REVISÃO TÉCNICA DE: Anna Maria de Castro

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