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Inspirei-me em Paulo Fre ire para es -

crever este livro. Paulo Freire nos


fala, em sua Pedagogia da autonomia, da
"boniteza de ser gent ", da boniteza
de s r professor: "ensinar- -aprender
não podem dar- se fora da procura,
fora da boniteza e da alegria". Paulo
Freire chama a atenção para a essen-
cialidade do componente estético da
formação do educador. Coloquei um
título que fala de sonho e de sentido,
BONITEZA DE UM SONHO
que querem dizer a mesma coisa. Ensinar-e-aprender com sentido ·
"Sentido" quer dizer " caminho não -
percorrido, mas que se deseja per-
correr", portanto, significa projeto,
j Moacir .G adotti
sonho, utopia . Aprender e ensinar
78856 1 9 1000 6
com sentido é aprender e ensinar com
um sonho na mente.

Moacir Gadotti

l ~ dilor · a c Li V I'éll'ia

Ed,L l 11 s t i Lut o
P<Ju l o Fr·c ir·c
Série Educação Cidadã 2

BONITEZA DE UM SONHO
Ensinar-e-aprender com sentido

Moacir Gadotti
Presidente do Conselho Deliberativo do
Instituto Paulo Freire
Professor titular da
Universidade de São Paulo

São Paulo, 2008

Ed,L
Editora e Livraria
Instituto
Paulo Freire
INSTITUTO PAULO FREIRE
Moacir Gadotti Presidente do Conselho Deliberativo
Alexandre Munck Diretor Administrativo-financeiro
Ângela Antunes Diretora Pedagógica
Paulo Roberto Padilha Diretor de Desenvolvimento
Institucional
Salete Valesan Camba Diretora de Relações Institucionais
Francisca Pini Coordenadora de Educação Cidadã
janaina Abreu Coordenadora Editorial
Lina Rosa Preparadora de textos
Kollontai Diniz Capa, projeto gráfico,
diagramação e arte-final
Northgraph Impressão

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Gadotti, Moacir
Boniteza de um Sonho: Ensinar-e-aprender com sentido / Moacir
Gadotti. - São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire,
2008. - (Educação Cidadã ; 2)
Bibliografia. Agradeço aos companheiros
ISBN 978-85-61910-00-6 Paulo Roberto Padilha e Ângela Antunes
1. Educação 2. Educação - Finalidades e objetivos 3. Educadores pelas preciosas sugestões que me ofereceram
-Formação 4. Pedagogia 5. Prática de ensino 6. Professores-
Formação I. Título. 11. Série. na revisão do original deste livro.
08-07582 CDD-370.71
Índice para catálogo sistemático:
1. Educadores: Formação: Educação 370.71
2. Professores: Formação: Educação 370.71
Copyright 2008 © Editora e Livraria Instituto Paulo Freire
Editora e Livraria Instituto Paulo Freire
Rua Cerro Corá, 550 I Lj. 011 05061-100 I São Paulo I SP I Brasil
T: 11 3021-1168
editora@paulofreire.org
livraria@paulofreire.org
www ~aulofreire.org
Sumário

PREFÁCIO
A BELEZA EXISTE EM TODO LUGAR - ÂNGELA ANTUNES ............ 09

1. POR QUE SER PROFESSOR? ...................................................................................... 17


2. CRISE DE IDENTIDADE, CRISE DE SENTIDO ............................................. 29

3. FORMAÇÃO CONTINUADA DO PROFESSOR .............................................. 41


4. SER PROFESSOR NA SOCIEDADE APRENDENTE ................................... 49
5. APRENDER COM EMOÇÃO, ENSINAR COM ALEGRIA ....................... 59

6. EDUCAR PARA UMA VIDA SUSTENTÁVEL ................................................ 73


7. EDUCAR PARA UM OUTRO MUNDO POSSÍVEL ..................................... 89

8. SER PROFESSOR, SER EDUCADOR .................................................................. 101

CONCLUSÃO
UMA PROFISSÃO INSUBSTITUÍVEL .................................................................. 113

BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................... 117


Prefácio
A beleza existe em todo lugar
Ângela Antunes
Diretora Pedagógica do
Instituto Paulo Freire

Caro leitor e cara leitora,

Com entusiamo, convido-o(a) a ler este livro.


Ele fala de boniteza, de sonho, de educar com
sentido. A escrita, coerente com o conteúdo de
que trata, é uma belezura: leve, objetiva, crítica
e esperançosa. O livro provoca a alma, a morada
do sentido. E, nós, leitores, educadores, vamos
mergulha~do na substância do texto, dialogando
com ele, instigados a compreender o crucial: qual
é o sentido do nosso trabalho como educadores?
Qual a boniteza de ser professor? Em que consiste
ensinar-e-aprender com sentido? Como realizar
essa tarefa nos tempos atuais? O livro nos sensibi-
liza, ·~r.que reflete sobre o fundamental no ato de
edu~~_:, assim, ele, in~cialmente pequeno, re~e~a
grantf'êza pelas reflexoes profundas e essenciais
que nos.:traz.
Pa~icularmente, ao ser convidada por Moacir
Gadotti para prefaciar o Boniteza de um sonhf!:
ensinar-e-aprender com sentido, senti uma felicidade o sentido de ser professor quando ele compete com
especial. Uma das razões é porque seria uma opor- tantas fontes de informação? Quando os meios de
tunidade de escrever sobre algo em que acredito: comunicação de massa não só não valorizam o
ser professor é mesmo uma boniteza! Uma outra trabalho do educador como deturpam a educação
tem a ver com o autor, que foi (e continua sendo!) das crianças, adolescentes e jovens, direcionando-
professor durante 45 anos, e, recentemente, apo- os ao consumismo e ao individualismo?
sentou-se, fazendo de sua profissão uma boniteza, Muitos de nossos alunos estão sem rumo,
ensinando-e-aprendendo com sentido ao longo sem projeto de vida, sem capacidade de sonhar,sem
desses anos. Fui aluna dele e posso testemunhar esperança de que novas realidades possam ser
isso não apenas com o meu depoimento, mas com construídas. Em que outro contexto, senão neste,
o de muitos e muitos de seus alunos que nunca faz-se, mais do que nunca, necessário o educa-
deixaram de manifestar a gratidão e o reconheci- dor? E para fazer o quê? Contribuir para construir
mento pela competência, amorosidade e compro- o sentido de muitas vidas. Tarefa difícil. Tarefa
misso do autor-educador. O autor é, sem dúvida, imprescindível.
um exemplo ímpar da boniteza de ser professor. Se há a desvalorização, as dificuldades, há
Uma outra razão ainda é porque a boniteza e o en- também a revolução silenciosa que somos capa-
sinar-e-aprender com sentido são princípios que zes de promover na consciência e nas atitudes
defendo. Por isso, pela satisfação da leitura que daqueles que educamos. A despeito da desvalo-
este texto me provocou, pelo conteúdo tratado e rização social que esta profissão vem sofrendo e
pelo autor, escrevo com especial prazer. de todas as dificuldades, a nós, educadores, não
Qual o sentido de ser professor nos dias de cabe a desistência ou a indiferença. Elas só nos le-
hoje? Qual o sentido de ser professor quando as varão, cada vez mais, para mais longe de nossos
condições de trabalho se revelam tão precárias? sonhos e daquilo que nos constitui educadores.
Quando a escola, em muitos lugares, passa a ser Daí que o autor enfatiza que "ser professor hoje é
espaço de destruição entre grupos de alunos? viver intensamente o seu tempo com consciência
Quando entram na escola a pobreza, a violência, e sensibilidade. Não se pode imaginar um futuro
o individualismo, a fome, o desemprego, o consu- para a humanidade sem educadores (... ) porque
mismo, a intolerância, a ausência de projeto? Qual constroem sentido para a vida das pessoas e para
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Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

a humanidade e buscam, juntos, um mundo mais ... apenas exalam o perfume que roubam de ti",
justo, mais produtivo e mais saudável para todos. não desistem de buscar caminhos para extrair o
Por isso eles são impres_cindíveis". potencial de vida em cada classe, em cada grupo
Paulo Freire sustentava que a história é "tem- de alunos. Ele educa. Tira, de dentro, aquilo que
po de possibilidade", de "possibilidade coletiva". temos de bom, partejando vida como quem sabe
Isso significa que cabe a cada um de nós, mas cabe que ela "anda nua e pode ser vestida de desejos"
a todos nós também. Nesta luta, há uma dimensão (Mario Quintana) e onde há desejo, há terreno fér-
individual: como posso, na minha trajetória pes- til para a transformação, para projetos de vida.
soal e profissional, estar em permanente busca de Li, certo dia, que, numa cidadezinha do Pla-
"ser mais"? e uma dimensão coletiva: quais são nalto Norte catarinense, a busca por alguns tro-
os espaços de luta por uma educação de qualida- cados estava levando crianças a faltarem às aulas
de e pela valorização do educador? Paulo Freire para caçar borboletas. Sempre que chega o ve-
afirmava também que "não era esperançoso por rão, meninos correm em bando até a mata com
teimosia, mas por imperativo histórico e existen- um objetivo único: capturar a borboleta azul,
cial". As páginas que se seguem neste livro são um mais rara, que vale mais no mercado. "A gente
convite à esperança, ao resgate do sentido do fa- faz para ajudar em casa", confirmava Henrique,
zer educacional. um menino de nove anos, morador de um dos
Moacir Gadotti, referenciado na página 160 bairros mais pobres da cidade. A notícia enfati-
de Pedagogia da autonomia, 1 a edição, de 1997, fala zava, ainda, que Henrique, Carlos, Fábio, eram
que "ensinar e aprender não podem dar-se fora da algumas das dezenas de crianças que deixavam
procura, fora da boniteza e da alegria". O verda- de freqüentar aulas para conseguir dinheiro com
deiro educador não adormece a alma, não se en- a captura das borboletas.
trega à indiferença, não se encosta no "muro das A boniteza de ser professor é que, depen-
lamentações" à espera da aposentadoria, desgos- dendo da educação que realizamos, podemos
toso de tantas insatisfações.· Neste livro, Moacir contribuir para transformar o mundo "malvado"
Gadotti fala desses educadores, dos verdadeiros, e "feio", num mundo mais justo, solidário e sus-
daqueles que não perdem a capacidade de sonhar tentável, em que, por exemplo, borboletas azuis
e como-as rosas, que segundo o poeta, "não falam; deixem de ser raras porque homens e mulheres,
Boniteza de um sonho
Moacir Gadotti

perdem a capacidade de fazer nascer em seu co-


quando crianças como Henrique, Carlos e Fábio,
ração dias singulares de esperança em um outro
tendo seus direitos garantidos, puderam freqüen-
tar as salas de aula, onde aprenderam a contem- mundo possível.
Se você, leitor ou leitora, chegou ao final des-
plar a paisagem da sua cidade coberta de peda-
ta apresentação, reforço, então, o convite para o
cinhos cintilantes se movendo de um lado para o
diálogo que se abre nas páginas seguintes.
outro e, junto com a professora, entenderam· que
eles, tanto quanto as belas borboletas azuis, com- Boa Leitura!
partilham a mesma morada e, nela, possuem o
inalienável direito do bem-viver.
Então, caro leitor e cara leitora, por que ler
este livro? O que você encontrará aqui? Muitas ra-
zões que explicam a belezura ou a boniteza de ser
professor. Quem é professor terá nas páginas que
se seguem uma oportunidade de refletir sobre o
seu "estar sendo professor" e sentir a felicidade e
o fortalecimento do sentido daquilo que realiza-
mos. O cotidiano do nosso trabalho muitas vezes
é extenuante e vai enfraquecendo nossas forças.
Uma das formas de reagir ao vazio que, de vez
em quando, visita-nos é buscar entender o que
fazemos. Uma maneira de tentar entender é ler'
refletir sobre a prática, compartilhar. Aqui você
encontrará uma boa oportunidade de reflexão.
Este livro trata do ensinar-e-aprender com
sentido, do papel do professor na escola formal,
na escola regular, mas também é dirigido a todas
as pessoas que educam; e, ao educar, semeiam
auroras, mesmo sem saber se germinarão, e não
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1. Por que ser professor?

beleza existe em todo lugar. Depende do

A nosso olhar, da nossa sensibilidade; de-


pende da nossa consciência, do nosso tra-
balho e do nosso cuidado. A beleza existe porque
o ser humano é capaz de sonhar.
Inspirei-me no educador Paulo Freire (1921-
1997) para escrever este livro. Paulo Freire nos
fala em Pedagogia da autonomia, seu último livro,
da "boniteza de ser gente"\ da boniteza de ser
professor: "ensinar e aprender não podem dar-se
fora da procura, fora da boniteza e da alegria" 2 •
Paulo Freire chama a atenção para a essencialida-
de do componente estético da formação do edu-
cador. Por isso, coloquei um título que fala de so-
nho e de sentido. "Sentido" quer dizer "caminho
não percorrido" mas que se deseja percorrer, por-
tanto, significa projeto, sonho, utopia. Aprender e
ensinar com sentido é aprender e ensinar com um

1. Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 67.
2. Idem, ibidem, p. 160.

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Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

sonho na mente; e a pedagogia deve servir de guia Lembrando os dez anos da morte de Paulo
para realizar esse sonho. Freire, neste pequeno livro, quero retomar o que
Paulo Freire, em 1980, logo após voltar de 16 ele disse e entender o seu significado no contexto
anos de exílio, r:eunhi-se com um grande número de hoje. Paulo Freire nos falava da "boniteza" do
de professores, em Belo Horizonte, Minas Gerais. sonho de ser professor de tantos jovens desse pla-
Falou-lhes de esperança, de "sonho possível", te- neta. Se o sonho puder ser sonhado por muitos 5
mendo por aqueles e aquelas que "pararem com a deixará de ser um sonho e se tornará realidade.
sua capacidade de sonhar, de inventar a sua cora- A realidade, contudo, é muitas vezes bem di-
gem de denunciar e de anunciar", aqueles e aque- ferente do sonho. Muitos de meus alunos e alunas,
las que, "em lugar de visitar de vez em quando seja na Pedagogia ou na Licenciatura, não pensam
o amanhã, o futuro, pelo profundo engajamento em se dedicar às salas de aula. Muitos revelam
com o hoje, com o aqui e com o agora, que em lu- desinteresse em seguir a carreira do magistério,
gar desta viagem constante ao amanhã, se atre- mesmo estando num curso de formação de pro-
lem a um passado de exploração e de rotina" 3 • fessores. Pesam muito nessa decisão as condições
Em 1997, 17 anos depois, em Pedagogia da concretas do exercício da profissão. Preparam-se
autonomia, lançado três semanas antes de fale- para um ofício, e vão exercer outro.
cer, Paulo Freire se mantinha fiel à mesma linha No Brasil, o professor é desvalorizado. Há um
de pensamento, reafirmando o sonho e a utopia ditado popular conhecido: "Quem sabe faz, quem
diante da "malvadez neoliberal", diante do "cinis- não sabe ensina". É sinistro. Essa destruição da
mo de sua ideologia fatalista e a sua recusa infle- imagem do professor custará muito caro, dizia já
xível ao sonho e à utopia" 4 • Denúncia de um lado,
anúncio de outro: a sua "pedagogia da autonomia" 5. E somos muitos professores no mundo: 50 milhões. Somos or-
ganizados e alguma coisa podemos fazer para mudar a orde_m
frente à pedagogia neoliberal. das coisas. Segundo a Unesco (In jacques Delors (org.), Educaçao:
um tesouro a descobrir - Relatório para a Unesco da Comissão
Internacional sobre Educação para o Século XXI. São Paulo:
3. Paulo Freire, in Carlos R. Brandão (org.), O educador: vida e morte Cortez Editora, 1998, p. 156),"a profissão de professor é uma das
-escritos sobre uma espécie em perigo. São Paulo: Brasiliense, 1982, mais fortemente organizadas do mundo e as organizações de
p. 101. professores podem desempenhar - e desempenham - um papel
muito influente em vários domínios. A maior parte dos cerca de
4. Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática 50 miihões de professores que há no mundo estão sindicalizados
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 15. ou julgam-se representados por sindicatos".
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Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

em 1989, o jornalista Leonardo Trevisan6 : "Todos todos os horrores da Guerra7 - "crianças envene-
dizem que gostam muito dos professores, mas não nadas por médicos diplomados; recém-nascidos
chegam a incomodar-se muito com o fato de que mortos por enfermeiras treinadas; mulheres e be-
há tempos eles recebem um salário de fome. O sa- bês fuzilados e queimados por graduados de colé-
lário é a parte mais visível de uma condição - da gios e universidades" - ele pede aos professores
qual decorre um papel social que se descaracte- que "ajudem seus alunos a tornarem-se huma-
rizou por completo ... Só quem não quer ver não nos", simplesmente humanos. E termina: "ler, es-
percebe o sentimento de cansaço, de esgotamento crever e aritmética só são importantes para fazer
de expectativas de quem encarava com dignidade nossas crianças mais humanas."
o seu desempenho profissional." Talvez esteja aí a chave para entender a crise
A situação vem se arrastando há anos. Em 45 que vivemos: perdemos o sentido do que fazemos,
anos de magistério, não tenho visto grandes me- lutamos por salário e melhores condições de tra-
lhorias. Ao contrário, ouço muitas promessas. As balho sem esclarecer à sociedade sobre a finalida-
melhorias existem aqui e acolá, mas são pontuais de de nossa profissão, sem justificar porque esta-
e localizadas - servem apenas de exemplo - são mos lutando.
conjunturais e não estruturais, são provisórias, O que me leva agora a escrever esse livro é
passageiras e não permanentes. Correspondem a justamente esse imperativo histórico e existencial
uma política de governo e não a uma política pú- que me obriga a colocar a questão do sentido do
blica de Estado. que estou fazendo. Qual é o papel do educador, da
Por isso, continuo me questionando: "Por que escola, da educação? O que um professor pode fa-
sou professor?". Uma pergunta que ouço com fre- zer, o que ele deve fazer, o que é possível fazer?
qüência também entre meus pares. Em inúmeras conferências que tenho feito
A resposta talvez possa ser encontrada numa a professores, professoras, por este país e fora
mensagem deixada por um prisioneiro de campo dele, além de constatar um grande mal-estar en-
de concentração nazista na qual, depois de viver tre os docentes, misturado a decepção, irritação,

7. Essa mensagem está, na íntegra, na abertura de um pequeno e


denso livro do educador e economista Ladislau Dowbor, Tecnologias
6. Leonardo Trevisan, in O Estado de S. Paulo, 1 o de julho de 1989, p. 2. do conhecimento: os desafios da educação. Petrópolis: Vozes, 2001.
20 21
Moacir Gadotti
Boniteza de um sonho

impaciência, ceticismo, perplexidade, paradoxal-


mente, existe ainda muita esperança. A esperança Se, de um lado, a transformação nas condições
ainda alimenta essa profissão. Há uma ânsia por objetivas das nossas escolas não depende apenas
entender melhor porque está tão difícil educar da nossa atuação como profissionais da educa-
hoje, fazer aprender, ensinar, ânsia para saber ção, de outro lado, creio que sem uma mudança
o que fazer quando todas as receitas governa- na própria concepção deste ofício, essa transfor-
mentais já não conseguem responder. A maioria mação não ocorrerá tão cedo. Enquanto não ~Ot_:S­
dessas professoras - as mulheres são quase tota- truirmos um novo sentido para a nossa proftssao,
lidade - com a diminuição drástica dos salários, sentido esse que está ligado à própria função da
com a desvalorização da profissão e a progressiva escola na sociedade aprendente, esse vazio, essa
deterioração das escolas- muitas delas têm hoje perplexidade, essa crise, deverão con~inu_ar.,
cara de presídio - procuram cada vez mais cursos Em sua essência, ser professor hoJe nao e nem
e conferências, para obter uma resposta que não mais difícil nem mais fácil do que era há algumas
encontraram nem na sua formação inicial e nem décadas atrás. É diferente. Diante da velocidade
na sua prática atual. com que a informação se desloca, envelhece e
Entretanto, poucas são as vezes em que essas morre, diante de um mundo em constante mu-
professoras encontram respostas nesses cursos. dança, o papel do professor vem mudando, senão
Quase sempre, ou encontram receitas tecnocráti- na essencial tarefa de educar, pelo menos na ta-
cas que causam ainda maior frustração, ou encon- refa de ensinar, de conduzir a aprendizagem e na
tram profissionais da "pedagogia da ajuda", que sua própria formação que se tornou permanente-
, .
mente necessana.
encantam com suas belas e sedutoras palavras,
fazem rir enormes platéias numa catarse coletiva. As novas tecnologias criaram novos espaços
do conhecimento. Agora, além da escola, também
E voltam vazias como entraram depois de assisti-
a empresa, o espaço domiciliar e o espaço social
rem ao show desses falsos pregadores da palavra.
tornaram-se educativos. Cada dia mais pessoas es-
Voltam com a mesma pergunta: "O que estou fa-
tudam em casa, pois podem, de lá, acessar o cibe-
zendo aqui?" - "Por que não procuro outro traba-
respaço da formação e da aprendizagem a distância,
lho?"- "Para que sofrer tanto?"- "Por que, para
que ser professor?". buscar "fora" - a informação disponível nas re-
des de computadores interligados - serviços que
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23
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

respondem às suas demandas de conhecimento. teóricas; saber organizar o seu próprio trabalho;
Por outro lado, a sociedade civil (ONGs, associa- ter disciplina para o trabalho; ser independente e
ções, sindicatos, igrejas etc.) está se fortalecendo, autônomo; saber articular o conhecimento com a
não apenas como espaço de trabalho, mas tam- prática; ser aprendiz autônomo e a distância.
bém como espaço de difusão e de reconstrução de Nesse contexto, o professor é muito mais um
conhecimentos. mediador do conhecimento, diante do aluno que
Na formação continuada, necessita-se de maior é o sujeito da sua própria formação. Não confun-
integração entre os espaços sociais (domiciliar, es- dir "mediador" com "facilitado r". As máquinas, os
colar, empresarial...), visando a preparar o aluno meios, os computadores, são facilitadores. O pro-
para viver melhor na sociedade do conhecimento. fessor é um dirigente. Mais do que um facilitador
Como previa Herbert Marshall McLuhan (1911- é um problematizador; sua função é político-pe-
1980), na década de 608 , o planeta tornou-se nossa dagógica. O aluno precisa construir e reconstruir
sala de aula e nosso endereço. O ciberespaço rom- conhecimento a partir do que faz. Para isso, o pro-
peu com a idéia de tempo próprio para aprendiza- fessor também precisa ser curioso, buscar senti-
gem. O espaço da aprendizagem é aqui, em qual- do para o que faz e apontar novos sentidos para
quer lugar; o tempo de aprender é hoje e sempre. o quefazer dos seus alunos. Ele deixará de ser um
Hoje vale tudo para aprender. Isso vai além da "lecionador" 9 para ser um organizador do conhe-
"reciclagem" e da atualização de conhecimentos e cimento e da aprendizagem.
muito mais além da "assimilação" de conhecimen- Em resumo, poderíamos dizer que o profes-
tos. A sociedade do conhecimento é uma socieda- sor se tornou um aprendiz permanente, um cons-
de de múltiplas oportunidades de aprendizagem. trutor de sentidos, um cooperador, e, sobretudo,
As conseqüências para a escola, para o professor e um organizador da aprendizagem. Se falamos do
para a educação em geral são enormes: ensinar professor de adultos e do professor de cursos a
a pensar; saber comunicar-se; saber pesquisar; distância, esses papéis são ainda mais relevan-
ter raciocínio lógico; fazer sínteses e elaborações tes. De _nada adiantará ensinar, se os alunos não

8. Herbert M. McLuhan, Os meios de comunicação como extensões do 9. Ladislau Dowbor, A reprodução social: propostas para uma gestão des-
homem. São Paulo, Cultrix, 1974. centralizada. Petrópolis, Vozes, 1998.
Boniteza de um sonho
Moacir Gadotti

conseguirem organizar o seu trabalho, serem su- - O que é ser professor hoje?
jeitos ativos da aprendizagem, autodisciplinados, -Ser professor hoje é viver intensamente o
motivados. seu tempo com consciência e sensibilidade. Não se
"Ser professor", não será "um ofício em risco pode imaginar um futuro para a humanidade sem
de extinção", pergunta-se Luiza Cortesão 10 • Sim, educadores. Os educadores, numa visão emanci-
um certo professor está em risco de extinção. O padora, não só transformam a informação em co-
funcionário da eficácia e da competitividade pode nhecimento e em consciência crítica, mas também
existir, mas terá se demitido da sua função de formam pessoas. Diante dos falsos pregadores da
professor. Diz ela que há hoje uma evidente con- palavra, dos marqueteiros, eles são os verdadei-
tradição entre o professor em branco e preto, o ros "amantes da sabedoria", os filósofos de que
professor "monocultural", bem formado, seguro, nos falava Sócrates. Eles fazem fluir o saber, não o
claro, paciente, trabalhador e distribuidor de sa- dado, a informação, o puro conhecimento, porque
beres, eficiente, exigente e o professor "intermul- constroem sentido para a vida das pessoas e para
ticultural" que não é um "daltônico cultural", que a humanidade e buscam, juntos, um mundo mais
se dá conta da heterogeneidade, capaz de inves- justo, mais produtivo e mais saudável para todos.
tigar, de ser flexível e de recriar conteúdos e mé- Por isso, eles são imprescindíveis.
todos, capaz de identificar e analisar problemas
de aprendizagem e de elaborar respostas às dife-
rentes situações educativas. Um não se pergunta
por que ser professor. Simplesmente cumpre or-
dens, currículos, programas, pedagogias. Outro
questiona-se sobre seu papel. Um está centrado
nos conteúdos curriculares e outro no sentido do
seu ofício. Sim, um certo professor está em risco
de extinção. E isso é muito bom.

10. Luiza Cortesão, Ser professor: um ofício em risco de extinção. São


Paulo: Cortez Editora/Instituto Paulo Freire, 2002.

26 27
2. Crise de identidade,
crise de sentido

- O ofício de professor está, realmente, em


risco de extinção?
- Um velho professor está realmente desa-
parecendo e espero que nesse velho professor es-
teja nascendo um novo professor. Não é a profis-
são que está morrendo. É uma profissão que está
renascendo. O professor não está morrendo, sua
função não está desaparecendo, mas ela está se
transformando profundamente, adquirindo uma
nova identidade. E isso não é nada novo, pois cada
geração de professores constitui sua própria iden-
tidade docente no contexto em que vive. Hoje, o
contexto é o próprio mundo globalizado. O pro-
fessor precisa hoje adequar sua função, ensinar,
educar no mundo globalizado 1, até para transfor-
mar profundamente o modelo de globalização do-
minante, essencialmente perverso e excludente.
Cícero traduziu paidéia (formação integral

1. Ver Ângela Antunes, A leitura do mundo no contexto da planetaríza-


ção: por uma pedagof}ía da sustentabílidade. São Paulo: FE-USP, 2002
(Tese de doutorado).
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

do homem) como humanitas (formação da/ para da profissão docente, principalmente da forma-
a humanidade). Não há civilização sem profes- ção continuada desse profissional.
sores. Não haverá uma nova civilização sem uma Antes de mais nada, para entender a crise de
nova formação dos professores. Não há nação sem identidade dessa _profissão é preciso colocar em
professores. evidência as suas características atuais. Estamos
Escolher a profissão de professor não é es- diante de uma profissão massificada, o que realça
colher um ofício qualquer. Na maioria das vezes seu grande alcance e sua importância estratégica.
essa escolha se dá por intuição. Muitas professo- Como o conhecimento da humanidade duplica em
ras, quando perguntadas por que escolheram essa curto espaço de tempo, esse conhecimento, tam-
profissão respondem: "porque gosto de criança". bém obsolesce rapidamente, torna-se extrema-
É uma resposta correta e significativa, mas não é mente mutável. Por isso, hoje não tem mais senti-
levada em conta no processo de formação da edu- do a existência de um profissional que se limita a
cadora. Essa motivação e pouco trabalhada. Em reproduzir o conhecimento e a cultura que outros
geral, a sua formação limita-se a aspectos técni- desenvolveram. O professor hoje precisa ser capaz
co-pedagógicos e não ético-políticos, que seriam de criar conhecimento.
mais afinados com os motivos da sua escolha. Além Estamos também diante de uma profissão "ge-
disso, o aspecto profissional tem sido descuidado nérica" (política). Não é um ofício específico, pois
por causa da confusão que é ainda freqüentemen- o professor precisa lutar contra a exclusão social,
te feita entre o papel de mãe e de professora, so- ser animador de grupos, organizar o trabalho e a
bretudo na educação infantiF. aprendizagem dele e dos alunos; sua profissão tem
A docência, como aprendizagem da relação, está relação com as estruturas sociais, com a comuni-
ligada a um profissional especial, um profissional dade etc. Enfim, ele é um profissional que precisa
do sentido, numa era em que aprender é conviver ter autonomia e exercer muita liderança. Por ou-
com a incerteza. Daí a necessidade de se refletir hoje tro lado, existem características comuns a qual-
sobre o novo papel do professor, as novas exigências quer docente independentemente da matéria que
leciona, o que torna essa profissão muito homo-
2. Ver Paulo Freire, Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar.
gênea, _não importando o grau de ensino no qual
São Paulo: Olho dÁgua, 1993. esteja trabalhando. A competência genérica desta
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Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

profissão está, sobretudo, em seu saber político- inserido-se cada vez mais na vida social, política e
pedagógico. econômica das sociedades mais avançadas. A par-
Por isso, é preciso ter cuidado especial quan- ticipação da mulher na sociedade é indicador de
do se fala em "especialista" na educação. É claro ayanço social e de desenvolvimento humano.
que existem saberes e competências específicas, Finalmente, não há como negar: somos pro-
mas separá-las, burocraticamente, é um equívoco fissionais de baixa renda. Perdemos com isso. Mas,
que tem custado caro aos sistemas educacionais, pensando numa "civilização do oprimido", como
tornando-os inflexíveis, apesar das declarações costuma nos dizer o professor José Eustáquio
em contrário. Como diz Mário Osório Marques 3 , Romão, esse profissional pode ter, por essa carac-
a especificidade da formação do pedagogo "exige terística, um potencial revolucionário que outras
que não se confunda ela com a formação de um profissões não têm, já que é uma profissão volta-
especialista a mais, como se a questão fosse sim- da para a emancipação das pessoas. A mudança
plesmente a da divisão do trabalho e não, muito vem "dos debaixo", como sustentava Florestan
mais, a da articulação da ação comunicativa/ cole- Fernandes. Os "debaixo", só têm a ganhar com a
tiva. Mas, por outra paidéia não se requer um ge- transformação. Por isso, têm uma grande capaci-
neralista ou super pedagogo a ser colocado num dade para gestar a transformação.
pedestal de autoridade, ou em posição de mando, Uma pesquisa de Eurize Caldas Pessanha4
nem mesmo na situação de simples assessoria téc- mostra que a professora primária era uma cate-
nica. Não se trata de alguém detentor de um saber goria profissional "filiada" às "camadas médias"
hierárquico". da população. Ela foi um "nicho ideal para as mu-
Uma terceira característica marcante dessa lheres dos estratos mais altos das camadas médias
profissão, como já afirmamos, é que ela é cons- urbanas por ser uma profissão situada do lado do
tituída predominantemente de mulheres. Uma trabalho não-manual na divisão social do traba-
grande força numa época em que a mulher está lho. No entanto, atualmente esses estratos pare-
exercendo um papel cada vez mais protagonista, cem ter outras aspirações, e são os estratos mais

3. Mário Osório Marques, A formação do profissional da educação. Ijuí: 4. Eurize Caldas Pessanha, Ascensão e queda do professor. São Paulo:
Editora Unijuí, 1992, p. 113. Cortez Editora, 1994.
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Moacir Gadotti
Boniteza de um sonho

baixos que desejam ter professores primários na


instituições educacionais passem uma sensação
família", diz a professora Marli André, na apre-
de desorientação que faz parte da confusão que
sentação do livro de Eurize Caldas Pessanha. Para envolve o futuro da escola e do grupo profissio-
a pesquisadora Eurize Caldas PessanhaS, "o traba- nal".· Onde há desorientação há falta de sentido.
lho de professor, na forma em que se apresenta As respostas à crise são sempre na direção da mu-
hoje, é um trabalho não-manual, assalariado, num dança, ou melhor, da formação para a mudança,
setor não-produtivo, embora socialmente útil, mesmo não sendo um discurso novo 7 •
da atividade humana. Sendo necessário também Há consenso quando se afirma que nossa pro-
lembrar o fato de ser assalariado, funcionário do fissão deve abandonar a concepção predominante
Estado ou de um serviço que, embora mantido no século 19, de mera transmissão do saber escolar. O
por empresas privadas, é considerado um servi- professor não pode ser um mero executor do cur-
ço 'público"'. É esse serviço público que coloca o rículo oficial e a educação já não é mais restrita à
professor em pé de igualdade, esteja ele no ensino escola, pois está em toda a comunidade. A profes-
superior ou no fundamental, no setor público ou sora e o professor precisam assumir uma postura
no setor privado.
mais relacional, dialógica, cultural, contextual e co-
Parece que todos hoje estão de acordo quan- munitária. Durante muito tempo, a formação do
do se trata da necessidade de mudança. A maio- professor era baseada em "conteúdos objetivos".
ria afirma que a profissão docente deve mudar Hoje, o domínio dos conteúdos de um saber espe-
- sobretudo em função da complexidade da nova cífico (científico e pedagógico) é considerado tão
sociedade - mas não se diz como, nem porque e importante quanto as atitudes (conteúdos atitudi-
para onde devemos mudar. Como diz Francisco nais ou procedimentais).
Imbernón 6 , "não é de admirar que nos últimos A educação do futuro deverá se aproximar
tempos não apenas o professor, mas também as mais dos "aspectos éticos, coletivos, comuni-
cativos, comportamentais, emocionais... todos
eles necessários para se alcançar uma educação
5. Idem, p. 28.
6. Francisco Imbernón, Formação docente e profissional: formar-se 6.
para a mudança e a incerteza. São Paulo: Cortez Editora, 2000, p.
109. O autor é professor da Universidade de Barcelona. 7. Ver o livro do grande discípulo de ]ohn Dewey, William Heard -
Kilpatrick (1876-1965) Educação para uma civilização em mudança.
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35
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

democrática dos futuros cidadãos" 8 • Isso implica seus pares, pelo exercício da liderança profissio-
novos saberes 9 , entre eles, saber planejar, saber or- nal e pela atuação comunitária, do que na sua ca-
ganizar o currículo, saber pesquisar, estabelecer pacidade de "passar conteúdos".
estratégias para formar grupos, para resolver pro- E uma nova cultura profissional implica uma
blemas, relacionar-se com a comunidade, exercer redefinição dos sistemas de ensino e das institui-
atividades socioantropológicas etc. ções escolares. Mas essa redefinição não virá de
Como a mudança nas pessoas é muito lenta, cima, do próprio sistema. Ele é, por essência, con-
o novo profissional que recebeu uma formação servador. A mudança do sistema deve partir do
"atrasada", centrada no saber escolar, é tentado professor e de uma nova concepção do seu papel.
a desistir. Antes, a transmissão do conhecimento Daí a importância estratégica de discutir hoje essa
era facilmente medida. Agora, como o professor nova concepção, esse novo papel do professor e a
não foi preparado para trabalhar com, conteúdos redefinição da profissão docente.
atitudinais, ele desiste. Nesse sentido, no contexto atual, podemos
Essas mudanças essenciais para a formação identificar e confrontar duas concepções opos-
inicial e continuada da( o) professora(r) supõem tas da profissão docente: a concepção neoliberal e a
uma nova cultura profissional. O maior desafio concepção emancipadora. A primeira, amplamente
desta profissão está na mudança de mentalidade dominante hoje, concebe o professor como um
que precisa ocorrer tanto no profissional da edu- profissional lecionador, avaliado individualmen-
cação quanto na sociedade e, principalmente, nos te e isolado na profissão (visão individualista); a
sistemas de ensino. A noção de qualidade precisa segunda considera o docente como um profissio-
mudar profundamente: a competência profissional nal do sentido, um organizador da aprendizagem,
deve ser medida muito mais pela capacidade do uma liderança, um sujeito político (visão social).
docente estabelecer relações com seus alunos e Por que falamos de uma concepção "emanci-
padora"?
8. Francisco Imbernón, Formação docente e profissional: formar-se para
a mudança e a incerteza. São Paulo, Cortez Editora, 2000, p. 11. Porque o papel da educação, na concepção
9. Ver os seguintes livros: de Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: que defendemos, é emancipar as pessoas, ou,
saberes necessários à prática educativa; de Jacques Delors, org. como diz Francisco Imbernón, "o objetivo da edu-
Educação, um tesouro a descobrir e de Edgar Morin, Sete saberes ne-
cessários à educação do futuro. cação é ajudar a tornar as pessoas mais livres,
Boniteza de um sonho
Moacir Gadotti

menos dependentes do poder econômico, político despertado controvérsias, mas não a sua pessoa.
e social. A profissão de ensinar tem essa obrigação Muitas dessas mensagens dizem textualmente:
intrínseca" 10 • "minha vida não seria a mesma se eu não tives-
Numa concepção emancipadora da educação, se lido a obra de Paulo Freire. O que ele escreveu
a profissão docente tem um componente ético ficará no meu coração e na minha mente". Essa
essencial. Sua especificidade está no compromisso relação entre o cognitivo e o afetivo é muito for-
ético com a emancipação das pessoas. Não é uma te na práxis de Paulo Freire e também naqueles
profissão meramente técnica. A competência do que foram influenciados por ele. Essa relação era
professor não se mede pela sua capacidade de en- muito forte também na sua obra. Ele não envol-
sinar- muito menos "lecionar"- mas pelas possi- via as pessoas emocionalmente só através de suas
bilidades que constrói para que as pessoas possam tão encantadoras falas, màs também por meio de
aprender, conviver e viverem melhor. seus escritos.
Para mim, Paulo Freire foi o protótipo desse As mensagens recebidas logo depois de sua
professor emancipador. Basta dar uma olhada nas morte revelavam o impacto teórico e afetivo sobre
mensagens recebidas no Instituto Paulo Freire, a vida de tantos seres humanos de todas as par-
em São Paulo, logo depois de sua morte, dia 2 de tes do mundo. Essas manifestações terminavam
maio de 1997, assim como matérias publicadas em sempre com o desejo de unir-se a outras pessoas
jornais e revistas, enfatizando esta característica e instituições para dar continuidade ao seu legado,
e a importância do educador não só para o Brasil, ao seu compromisso, não o compromisso com os
mas para o mundo. Nessas mensagens fala-se de oprimidos deste ou daquele lugar, mas com os
esperança, de projeto comum, de mundo melhor, oprimidos de todo o mundo.
de emoção, de solidariedade. É apaixonante reler
essas mensagens e artigos. Ser educador é des-
pertar isso nas pessoas. Paulo Freire conseguiu
tocar a alma das pessoas. Suas idéias poderão ter

10. Francisco Imbernón, Formação docente e profissional: formar-se para


a mudança e a incerteza. São Paulo: Cortez Editora, 2000, p. 27.

38 39
3. Formação continuada
do professor

formação do profissional da educação está

A diretamente relacionada com o enfoque, a


perspectiva, a concepção que se tem da
sua formação e de suas funções atuais. Acredito
que a formação continuada do professor deve ser
concebida como reflexão, pesquisa, ação, desco-
berta, organização, fundamentação, revisão e
construção teórica e não como mera aprendiza-
gem de novas técnicas, atualização em novas re-
ceitas pedagógicas ou aprendizagem das últimas
inóvações tecnológicas.
A nova formação permanente, segundo essa
concepção, inicia-se pela reflexão crítica sobre a prá-
tica. Examinar as teorias implícitas, estilos cogni-
tivos, preconceitos (hierarquia, sexismo, machis-
mo, individualismo, intolerância, exclusão etc.).
Como diz Paulo Freire "na formação permanente
dos professores, o momento fundamental é o da
reflexão crítica sobre a prática" 1 • E essa reflexão

1. Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 43.

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Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

crítica não se limita ao seu cotidiano na sala de a cooperação. Como diz Francisco Imbernon5 "a
aula pois, como diz Francisco Imbernón, a sua re- colaboração, mais que uma estratégia de gestão,
flexão "atravessa as pàredes da instituição para é uma filosofia de trabalho". Os sistemas de ensi-
analisar todo tipo de interesses subjacentes à edu- no investem na formação individualista e compe-
cação, à realidade social, com o objetivo concreto titiva do professor, quando o mais importante é
de obter a emancipação das pessoas" 2 • · a formação para um projeto comum de trabalho,
Nesse sentido, deve-se realçar a importân- a formação política do professor. Mais do que uma
cia da troca de experiências entre pares, através de formação técnica, a função do professor necessita
relatos de experiências, oficinas, grupos de tra- de uma formação política para exercer com com-
balho: "Quando os professores aprendem juntos, petência a sua profissão.
cada um pode aprender com á outro .. Isso os leva Em síntese, a nova formação do professor deve
a compartilhar evidências, informação e a buscar estar centrada na escola sem ser unicamente esco-
soluções. A partir daqui os problemas importan- lar, sobre as práticas escolares dos professores,
tes das escolas começam a ser enfrentados com a desenvolver na prática um paradigma colaborativo
colaboração entre todos" 3 • e cooperativo entre os profissionais da educação.
Na formação continuada do professor, outro A nova formação do professor deve basear-se no
eixo importante é o da discussão do projeto políti- diálogo e visar à redefinição de suas funções e pa-
co-pedagógico da escola\ a elaboração de projetos péis, à redefinição do sistema de ensino e à cons-
comuns de trabalho de cada área de interesse do trução continuada do projeto político-pedagógico
professor, frente a desafios, problemas e neces- da escola e do próprio professor.
sidades de sua prática. É preciso formar-se para Muito sofrimento da professora, do professor,
poderia ser evitado se sua formação inicial e con-
2. Francisco Imbernón, Formação docente e profissional: formar-se para tinuada fosse outra, se aprendesse menos técnicas
a mudança e a incerteza. São Paulo: Cortez Editora, 2000, p. 40. e mais atitudes, hábitos, valores. Antes de se per-
3. Idem, p. 78. guntar o que deve saber para ensinar, a professora
4. Ver Paulo Roberto Padilha, Plam:jamento dialógico: como construir
o projeto político-pedagógico da escola. São Paulo: Cortez Editora/ deve se perguntar por que ensinar e como deve ser
Instituto Paulo Freire, 2001 e Ângela Antunes, Aceita um conse-
lho? Como organizar o colegiado escolar. São Paulo: Cortez Editora/
Instituto Paulo Freire, 2002. 5. Op. cit., p 81.

42 43
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

para ensinar. Muito desconforto e insegurança po-


deriam ser evitados se o professor, a professora, Cidadã, iniciado por Paulo Freire, logo depois de
aprendessem a organizar melhor seu trabalho e haver deixado a Secretaria Municipal de Educação
os de seus alunos e alunas, se aprendessem a sis- de São Paulo, em 1991, não pode ser "implantado"
tematizar e avaliar mais dialogicamente, se tives- sob pena de fracassar 6 • Todo professor é e deve
sem aprendido a aprender de forma cooperativa: ser, necessariamente, um mau "implantador" de
o individualismo da profissão mata de ansiedade idéias dos outros. E é ótimo que assim seja, porque
e angústia, leva ao sofrimento e até ao martírio do ele deve ser autônomo, ele precisa assumir, cons-
professor compromissado e à desistência daquele truir e conquistar sua autonomia profissional. O
que perdeu a esperança. que a assessoria externa pode fazer é propor uma
Para evitar o martírio e a desistência, os siste- colaboração na identificação das necessidades e
mas escolares e as escolas necessitam de uma aju- construir, com a escola, as respostas a essas neces-
da externa, de uma assessoria pedagógica. Não para sidades. Para isso, precisamos dispor de estraté-
fazer o trabalho que cabe às instituições. Minha gias. Envolver a comunidade interna e externa da
experiência mostrou-me que a assessoria deve escola é essencial para qualquer inovação.
apenas ajudar a escola a inovar. Não devemos "im- O agente protagonista é o profissional da
plantar" inovações de fora, por melhores e mais escola e não o assessor. O assessor, como guia e
bem intencionados que sejam os "amigos da es- mediador entre iguais, amigo crítico, "deveria
cola". A escola é que deve ser protagonista e não intervir a partir das demandas dos professores
os assessores. Toda inovação que vem de fora está ou das instituições educacionais com objetivo de
fadada ao fracasso. Os numerosos exemplos de auxiliar no processo de resolver os problemas ou
"implantação" de inovações feitas pelos sistemas situações problemáticas profissionais que lhes são
de ensino, mera determinação exterior, artificial próprios" 7 • Por isso, "a comunicação, o conheci-
e separada dos contextos pessoais e institucionais mento da prática, a capacidade de negociação, o
em que trabalham os profissionais da educação
nas escolas. 6. Para mais informações sobre os projetos do Instituto Paulo Freire,
acesse o site www.paulofreire.org.
A experiência do Instituto Paulo Freire nos
7. Francisco Imbernón, Formação docente e profissiónal: formar-se para
mostrou, por exemplo, que o seu Projeto da Escola a mudança e a incerteza. São Paulo: Cortez Editora, 2000, p. 88.
44 AC
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

conhecimento de técnicas de diagnóstico, de aná- o que cada professor, cada professora, cada escola
lise de necessidades, o favorecimento da tomada está fazendo, por exemplo, através de um site da
de decisões e o conhecimento da informação, são secretaria de educação ou da própria escola.
temas-chave na assessoria" 8 • A professora e professor podem ter um papel
Pela legislação brasileira, hoje a formação mais decisivo na construção de um novo paradig-
continuada do professor em serviço é um direi- ma civilizatório se entenderem de outra forma seu
to. Contudo, para que esse direito seja exercido na papel na sociedade do conhecimento e educarem
prática, de fato, creio que são necessárias algumas para a humanidade. Eles e elas podem ter um po-
pré-condições ou exigências mínimas; entre elas: der como nunca tiveram na sociedade. E como o
1"- direito a pelo menos 4 horas semanais de poder nunca é doado, mas é conquistado, as enti-
estudo com os colegas, não só com especialistas de dades de professores têm uma enorme responsabi-
fora, para refletirem sobre a sua própria prática, lidade nesse processo de nova formação inicial e
dividirem dúvidas e resultados obtidos; continuada dos profissionais da educação.
2"- possibilidade de freqüentar cursos seqüen- o mundo hoje é favorável às mudanças so-
ciais aprofundados em estudos regulares, sobre- nhadas por educadores como Antonio Gramsci
tudo sobre o ensino das disciplinas ou campos do (1891-1937), que entendia o educador como um
conhecimento de cada professor; intelectual organizador da cultura; como Paulo
3"- acesso à bibliografia atualizada; Freire, que defendia o diálogo crítico como es-
4"- possibilidade de sistematizar sua experi- sência da educação; e como Florestan Fernandes
ência e escrever sobre ela; (1920-1995), que sustentava que a emancipação
5"- possibilidade de participar e expor sua ex- só poderia vir a partir da organização "dos debai-
periência em congressos educacionais; xo". A nova pedagogia para a educação da humani-
6" - possibilidade de publicar a experiência dade não é apenas uma pedagogia da resistência,
sistematizada; mas, sobretudo, uma pedagogia da esperança e
7"- não só sistematizar e publicar suas refle- da possibilidade.
xões, mas também colocar em rede essas reflexões,

8. Idem, p. 94.

46 47
4. Ser professor na
sociedade aprendente

m 2001, fiz, uma enquete com meus alunos

E da Licenciatura da Faculdade de Educação


da USP perguntando quais seriam os sabe-
res necessários à profissão docente hoje. Eis o que
eles me responderam. Para ser professor é neces-
sário: "ter uma concepção de educação; ter uma
formação política, ética, isto é, ter compromisso;
respeitar as diferenças; ter uma formação conti-
nuada; ser tolerante diante de atitudes, posturas
e conhecimentos diferentes; preparar-se para o
erro e a incerteza; ter autonomia didático-peda-
gógica; ter domínio do saber específico que lecio-
na; ser reflexivo e crítico; saber relacionar-se com
os alunos; ter uma formação geral, polivalente' e
transversal". Enfim, fazer da profissão um projeto
de vida.
Recentemente tem-se realçado o caráter "re-
flexivo" da função docente como algo muito novo.
Todavia, não existe nenhuma teoria da educação
que não defenda expressamente a necessidade da
reflexão na prática do professor. Por isso, falar
.110
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

de "professor reflexivo"\ pode ser considerado do "enfoque por competências", que lembra um
como redundância. Para o educador não basta ser pouco o debate corrente na década de 1980 entre
reflexivo. É preciso que ele dê sentido à reflexão. "competência técnica" e "compromisso político".
A reflexão é meio, é instrumento para a melhoria Como em toda moda, em toda ideologia há
do que é específico de sua profissão que é cons- um fundamento. Por isso, é preciso buscar, nes-
truir sentido, impregnar de sentido cada ato da se "senso comum", o "bom senso", como queria
vida cotidiana, como a própria palavra latina "in- Gramsci. É preciso reconhecer que o contexto atu-
signare" (marcar com um sinal). al coloca novos desafios para a escola, para o en-
A reflexão deve, portanto, ser crítica. O pro- sino, o professor, o aluno etc. 3 • O professor precisa
fessor não pode ser reduzido a isto ou àquilo. Seu saber organizar seu trabalho, orientar o aluno a
saber profissional, de experiência feito, de refle- organizar o seu, saber trabalhar em equipe, parti-
xão, de pesquisa, de intervenção, deve ser visto cipar da gestão da escola, envolver os pais, utilizar
numa certa totalidade e não reduzido a compe- novas tecnologias, ser ético, continuar sua forma-
tências técnico-profissionais. Educar é também ção ... Mas, esses saberes não foram, desde sempre,
arte, ciência, práxis. Realçar o caráter reflexivo os saberes necessários à prática educativa?
do quefazer educativo do professor pode ser rele- Paulo Freire preferia falar de "saberes" e não
vante, na medida em que se contrapõe à corrente de competências, uma palavra associada à tradi-
do pensamento pedagógico pragmatista e instru- ção utilitarista, tecnocrática, ao mundo da em-
mental, mas pode ser limitativo, se esse caráter presa, à economia, à competitividade (ao mundo
não for compreendido numa certa totalidade de do trabalho neoliberal), à eficiência, à racionali-
saberes necessários à prática educativa. zação, à avaliação ... Por isso, ele fala de "saberes
Hoje fala-se também muito de competências necessários à prática educativa" em seu Pedagogia
profissionais do professor e pouco dos saberes. da autonomia4 •
Virou moda falar de "novas competências" 2 ou
1. Donald Schon, Educando o profissional reflexivo. Porto Alegre:
ArtMed, 1998. ·
3. Moacir Gadotti, Perspectivas atuais da educação. Porto Alegre:
2. Philippe Perrenoud, Construir as competências desde a escola. Porto Armed, 2000.
Alegre: Artmed, 2002. Tradução do francês Construire des compé- 4. Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
tences des l'école. Paris: ESF, 1997. educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
50
Sf
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

As profissões que dependem inteiramente da professor se perceba e se assuma, porque profes-


tecnologia (o torneiro mecânico, por exemplo) sor, como pesquisador" 7 •
estão vendo suas "competências e habilidades" Alguns confundem competência com habili-
transformarem-se rapidamente. O professor, para dade, entretanto competência não é habilidade: o
o exercício das suas funções não depende exclusi- professor pode ser competente, ter conhecimen-
vamente da tecnologia. Nem tudo muda para ele tos profundos de uma determinada disciplina e
mudando a tecnologia que utilizar. No novo con- não ter habilidades práticas para o ensino, não
texto de impregnação da informação, ele precisa saber ensinar. A educação não é só ciência, mas é
continuar sua formação ao longo de toda a vida e também arte. O ato de educar é complexo. O êxito
"saber ser, saber aprender, saber conviver, saber do ensino não depende tanto do conhecimento do
fazer", como diz a Unesco 5 • Mas precisa continuar, professor, mas da sua capacidade de criar espaços
como sempre, "saber porque" está ensinando e o de aprendizagem, vale dizer, "fazer aprender" e
que está ensinando, precisa "saber pensar" 6 , ne- de seu projeto de vida de continuar aprendendo.
cessita associar ensino, pesquisa e envolvimento Nesse contexto, devemos destacar as "com-
comunitário. Pesquisar faz parte da própria "na- petências de vida" ou os "saberes de experiência
tureza da prática docente", como diz Paulo Freire: feitos", como costumava dizer Paulo Freire. Há
"Fala-se hoje, com insistência", diz ele, "no pro- competências de vida que não se enquadram nas
fessor pesquisador. No meu entender o que há de competências dos campos profissionais específi-
pesquisador no professor não é uma qualidade ou cos. A questão das competências está ligada ao
uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à tema como aprendemos. Aprendemos atuando,
de ensinar. Faz parte da natureza da prática do- empreendendo, agindo. A ação gera saber, ha-
cente a indagação, a busca, a pesquisa. O de que bilidade, conhecimento. Agindo, por exemplo,
se precisa é que, em sua formação permanente, o aprendemos técnicas e métodos sobre "como
fazer". E, muitas vezes, por não termos sido for-
mados para reconhecer essas competências, não
5. Jacques Delors (org.), Educação: um tesouro a descobrir- Relatório
para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o
Século XXI. São Paulo: Cortez Editora, 1998.
7. Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
6. Pedro Demo, Saber pensar. São Paulo: Cortez Editora/Instituto educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 32.
Paulo Freire, 2000.
53
Boniteza de um sonho
Moacir Gadotti

sabemos ensinar como fazemos, como chegamos A sociedade · contemporânea está marcada
a ter êxito no que fazemos. pela questão do conhecimento. E não é por acaso.
Paulo Freire foi um mestre do respeito des- O conhecimento tornou-se peça chave para en-
se saber, dessas competências de vida. Para ele, tender a própria evolução das estruturas sociais,
aprender é conhecer melhor o que já se sabe para políticas e econômicas atuais. Fala-se muito hoje
poder ter acesso a novos conhecimentos. Essa é em sociedade do conhecimento, às vezes, com im-
não apenas uma técnica pedagógica, mas um ato propriedade. Mais do que a era do conhecimento,
pedagógico e uma concepção de vida que parte do devemos dizer que vivemos a era da informação,
acolhimento, com respeito, de um ser que conhe- pois percebemos com mais facilidade a dissemi-
ce e quer aprender mais. nação da informação e de dados, muito mais do
Há um movimento, sobretudo na Europa, para que de conhecimentos. O acesso ao conhecimento
reconhecer (certificar) as competências das pes- é ainda muito precário, sobretudo em sociedades
soas (sobretudo adultas) que não passaram pela com grande atraso educacional.
certificação da escola. Qual o sentido do reconhe- Como ser professor na sociedade aprendente?
cimento das competências de vida das pessoas? Hoje as teorias do conhecimento na educa-
Creio que essa certificação só faz sentido se não ção estão centradas na aprendizagem, no ato de
for burocrática, isto é, se valorizar a capacidade aprender, de conhecer.
de aprender das pessoas. Reconhecer uma compe- O que é conhecer?
tência ou habilidade estimula e motiva as pessoas Conhecer é construir categorias de pensa-
a continuar aprendendo, a "pensar a sua prática mento, é "ler o mundo e transformá-lo", dizia
para transformá-la", como queria Paulo Freire. Paulo Freire. Não é possível construir categorias
O surgimento desse debate em torno da certi- de pensamento como se elas existissem a priori,
ficação de todas as competências das pessoas não independentemente do sujeito que conhece. Ao
deve ser invalidado pela possibilidade de controle conhecer, o sujeito do conhecimento reconstrói o
social que traz em si mesmo. Este debate também que conhece.
traz algo positivo, na medida em que encarna o Como conhecer?
surgimento de uma nova sociedade, de uma socie- Só é possível conhecer quando se deseja,
dade essencialmente aprendente. quando · se quer, quando nos envolvemos
55
54
Moacir Gadottí
Boniteza de um sonho

profundamente com o que aprendemos. No. apren-


encantar pela beleza e não como técnica de ma-
dizado, gostar é mais importante do que criar
nipulação. Daí a necessidade da motivação, do
hábitos de estudo, por exemplo. Hoje, se dá mais
encantamento. Motivação que deve vir de dentro
importância às metodologias da aprendizagem, às
do próprio aluno e não da propaganda. É preciso
linguagens e às línguas estrangeiras, do que aos
mostrar que "aprender é gostoso, mas exige es-
conteúdos. A transversalidade e a transdisciplina-
forço", como dizia Paulo Freire no primeiro docu-
ridade do conhecimento é mais valorizada do que
mento que encaminhou aos professores quando
os conteúdos longitudinais do currículo clássico.
assumiu a Secretaria de Educação do Município
Frente à disseminação e à generalização do
de São Paulo.
conhecimento, é necessário que a escola e o pro-
Certamente, para se ter êxito nessa sociedade
fessor, a professora, façam uma seleção crítica da
aprendente, o professor, a professora precisam ter
informação, pois há muito lixo e propaganda en-
clareza sobre o que é conhecer, como se conhece,
ganosa sendo veiculados. Não faltam, também na
o que conhecer, por que conhecer, mas um dos se-
era da informação, encantadores da palavra para
gredos do chamado "bom professor" é trabalhar
tirar algum proveito, seja econômico, seja religio-
com prazer, gostando do que se faz. A gente faz
so, seja ideológico.
sempre bem o que gosta de fazer. Só é bem sucedi-
Conhecer é importante porque a educação .
do aquele ou aquela que faz o que gosta.
se funda no conhecimento e este na atividade
humana. Para inovar é preciso conhecer. A ati-
vidade humana é intencional, não está separada
de um projeto. Conhecer não é só adaptar-se ao
mundo. É condição de sobrevivência do ser hu-
mano e da espécie.
Antes de conhecer, o sujeito se interessa
. ,, , e, '' esperançoso .,, , repetia
por... , e, '' cunoso . Paulo
Freire. Daí a importância do trabalho de "se-
dução" (Nietzsche) do professor, da professora,
frente ao aluno, à aluna. Seduzir no sentido de
56
5. Aprender com emoção,
ensinar com alegria

A
~duca.são é necessária para a sobrevi-
vência do ser humano. Para que ele não
precise inventar tudo de novo, neces-
sita a ro riar-se cultur , do que a humani-
dade já produziu. u é também aproximar
o ser humano do que a humanidade produziu.
Se isso era importante no passado, hoje é ain-
da mais decisivo numa sociedade baseada no
conhecimento.
O professor precisa saber, contudo, que é
difícil para o aluno perceber a relação entre o que
ele está aprendendo e o legado da humanidade.
~que nãQ__ ~~eber ~~~ª_ç_ão não
verá sentido naquilo que está aprendendo e
não aprenderá, resistirá à aprendizage!!l, será
i~nte__-ªp que o professor estiver ep.sjn.anqp.
r .... -------· - - -· --. - ------- ---------- ----

~
,- Ele só aprende quando quer aprender e só quer
aprender quando vê na aprendizagem algum
L_
_ entido. O aluno não deixa de aprender porque
é "burrinho". Ao contrário, às vezes, a maior
prova· de inteligência encontra-se na sua recusa
59
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

em aprender. Aprender vem de "ad" (junto de Aprender por aprender é estupidez" 1 •


alguém ou algo) e "praehendere" (tentar prender, Todo ser vivo ap!'~D-c:ie._p_ª_!!J.teraç.[q __ç9ITLQ_~e.:!J
agarrar, pegar). Aprendemos porque somos seres contexto: aprendizagem é r_e..lª_çª~~Ç>:t:J.1() cqnte..x:tP.~
inacabados: as tartarugas nascem "sabendo" o Quem dá significado ao que aprendemos é o
que precisam. Nascem na praia sem a presença contexto. Por isso, para o educador ensinar com
da mãe. Mesmo assim, "sabem" que devem ir logo qualidade, ele precisa dominar, além do texto, o
para o mar, caso contrário, podem acabar na boca com-texto, além de um conteúdo, o significado do
de algum predador. conteúdo que é dado pelo contexto social, político,
Os seres humanos, contudo, nascem frágeis, econômico, histórico... do que ensina. Nesse
se abandonados, mesmo com alguns meses de sentido, todo educador é também um historiador._
vida, morreriam, se os pais não os alimentam. Nós, educadores, precisamos ter clareza do
Nós, seres humanos, não só somos seres ina- que é aprender, do que é "aprender a aprender",
cabados e incompletos como temos consciên- para entendermos melhor o ato de ensinar. Não
cia disso. Por isso, precisamos aprender "com". basta saber como se constrói o conhecimento. Nós
Aprendemos "com", porque precisamos do outro, precisamos dominar outros saberes da nossa difícil
fazemo-nos na relação com o outro, mediados tarefa de ensinar. Precisamos saber o que é ensinar,
pelo mundo, pela realidade em que vivemos. o que é aprender e, sobretudo, como aprender.
O que acontece conosco é que se o que O que é aprender?
aprendemos não tem sentido, se não atender Aprender não é acumular conhecimentos.
alguma necessidade, não "apreendemos". O que Aprendemos história não para acumular
aprendemos tem de "significar". Alguma coisa conhecimentos, datas, informações, mas para
ou pessoa é significativa quando deixa de ser saber como os seres humanos fizeram a história
indiferente. Esquecemos o que aprendemos para fazermos história. O importante é aprender a
sem sentido, o que não pode ser usado. Guardar pensar (a realidade, não pensamentos), aprender
coisa inútil é burrice. "O corpo aprende para a aprender.
viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O
que se aprende são ferramentas, possibilidades
1. Rubem Alves, "Sobre moluscos e homens", in Folha de S.Paulo, 17
de poder. O corpo não aprende por aprender. de fevereiro de 2002, p. 3.
tíO
Boniteza de um sonho
Moacir Gadotti

É o sujeito que aprende através da sua expe- única preocupação da escola. Tudo se resume
riência. Não é um coletivo que aprende. Mas é no na "aula". Precisamos parar para pensar a es-
coletivo que se aprende. Eu dialogo com a realidade, cola, pensar no que estamos fazendo. O profes-
com autores, com meus pares, com a diferença. sor Pedro Demo acha inacreditável que a escola
Meu texto, este texto que estou escrevendo agora, prossiga meramente· "dando aulas", em vez
por exemplo, é resultado de um diálogo: diálogo de estar cuidando da "aprendizagem de todos
com o contexto, com os educadores, presentes em os estudantes" 4 •
diversas palestras, com os autores que li etc. Um concurso para professores traça o perfil do
Aprende-se o que é significativo para o projeto candidato. Elabora questões. Define bibliografia.
de vida da pessoa. Aprende-se quando se tem Define o processo de seleção: dá pesos diferentes
um projeto de vida. Aprendemos a vida toda. (juízo de valor) às partes da prova escrita, faz ou
Não há tempo próprio para aprender. E mais: é não entrevistas, considera ou não o "tempo de
preciso tempo para aprender e para sedimentar serviço", a experiência, a prática, considera ou
informações. Não dá para injetar dados e não os títulos ... Um concurso para professores
informações na cabeça de ninguém. Exige-se define "o professor" que quer. Somos escolhidos.
também disciplina e dedicação. Como diz Paulo E nós, professores, escolhemos também? Que
Freire: "Quem ensina aprende ao ensinar e quem sentido tem nos submetermos ao processo de
aprende ensina ao aprender." 2 seleção? Queremos ser aprovados para quê? Há
Só aprendemos quando colocamos emoção um projeto que nos move? Ou nos submetemos
no que aprendemos. Por isso, é necessário passivamente ao "perfil" exigido pelo concurso?
ensinar com alegria3 • Nassas escolas continuam Por que não definimos as características a
preocupadas em ensinar e não param para serem valorizadas no processo de seleção? Por
pensar o que é ensinar, como se aprende, porque que não definimos o processo de seleção? Com
se aprende. "Dar aulas" tem-se constituído na quem trabalharemos? Com quem construiremos
um projeto de vida, de escola, de educação, de

2. Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 25. 4. Pedro· Demo, Conhecer & aprender - sabedoria dos limites e desafios.
Porto Alegre: Artmed, 2001.
3. Georges Snyders, A alegria na escola. São Paulo: Manole, 1986.
63
62
Boniteza de um sonho
Moacir Gadotti

O aluno quer saber, mas não quer aprender,


sociedade? O que nossos alunos e alunas esperam não quer aprender o que lhe é ensinado e nem
de nós? Precisamos passar no "concurso do como lhe é ensinado. E o conflito, o desinteresse, a
sentido" que tem o nosso fazer pedagógico. indisciplina,aviolêncianasescolasestãocrescendo.
Precisamos usar estrategicamente os concursos A escola ensina num paradigma e o aluno aprende
públicos parà professor para viabilizar um projeto num outro. O que fazer diante do paradoxo: o aluno
de vida, um sonho. quer saber, mas não quer aprender?
Emprego. O sistema trata o professor apenas A escola precisa estar atenta às mudanças
como uma "vaga"? O sistema, ao abrir um concurso, profundas que o contexto midiático contem-
está chamando para um emprego. E nós, estamos porâneo está provocando na cabeça de crianças e
nos candidatando a uma vaga, ou a um projeto de jovens. Em média, no mundo, uma criança passa
vida a ser realizado, a um sonho? 4 horas diárias em frente à televisão. No Brasil,
E, finalmente, conseguimos um "emprego". são 8 horas. Em média, no mundo, a criança
E agora? É cada vez mais difícil manter-se no passa 8 horas diárias na escola. No Brasil, são 4
"emprego", na profissão, principalmente pelo horas. E mais: os professores passam mais tempo
desrespeito, pela indisciplina, pelo desinteresse e com as crianças do que os pais. Passamos muito
pela violência que contaminam muitas de nossas tempo na escola, passamos muito tempo diante
escolas. Há muitos professores e professoras que da televisão.
se sentem infelizes na escola e principalmente A criança passa muito tempo sentada diante
na sala de aula. Falta interesse, falta disciplina, da televisão porque sente prazer em ficar lá. O
faltam objetivos claros, enfim, falta sentido para o que o professor fala não exerce o mesmo fascínio
que ensinam. O aluno também não vê sentido no da TV. "Cada vez mais as crianças chegam à escola
que está aprendendo na escola. E vem a pergunta transportando consigo a imagem de um mundo
desalentadora: "Para que estou estudando isso, - real ou fictício - que ultrapassa em muito os
.c
protessora. ?" ; " Para que es t u d ar.?" .
limites da família e da comunidade de vizinhos. As
Em muitas de minhas palestras, uma per- mensagens mais variadas- lúdicas, informativas,
gunta, dita de diversas maneiras, me chega à publicitárias - transmitidas pelos meios de
mesa: "O que devo fazer?"; "O que o senhor faria comunicação social entram em concorrência ou
no meu lugar?".
65
Moacir Gadotti
Boniteza de um sonho

em cóntradição com o que as crianças aprendem devem orientar toda a vida" 5 • Essas considerações
na escola. Estas mensagens televisivas surgem são do Relatório para a Unesco da Comissão
sempre organizadas em rápidas seqüências o Internacional sobre Educação para o Século 21 e
que, em numerosas regiões do mundo, têm uma me parecem muito apropriadas para explicar as
influência negativa sobre a capacidade de manter dificuldades enfrentadas hoje pelos professores.
a atenção, por parte dos alunos e, portanto, sobre São pistas para enfrentar a questão: "O que devo
as relações na aula. fazer?" "O que o senhor faria no meu lugar?". Mas,
Passando os alunos menos tempo na escola é claro, elas não dão conta de toda a complexa
do que diante da televisão, a seus olhos é grande questão do "saber ensinar".
o contraste entre a gratificação instantânea Diante das dificuldades da prática docente,
oferecida pelos meios de comunicação - · que do desencanto dos nossos alunos, muitos e
não lhes exige nenhum esforço - e o que lhes· é muitas professoras são vítimas da "síndrome
exigido para alcançarem sucesso na escola. Tendo da desistência" 6 • Ela é expressa n~~
assim perdido, em grande parte, a preeminência
emocional prov~_~a~_~p~_l_o a_~rl'!e:nto ~él9~~-~~~~íld~
que tinham na educação, professores e escola de trabalhos e pela de§P~E~gp~!iz_(!ç_ª_Q_Qr<~yo~?~a
encontram-se confrontados com novas tarefas: J;e1a sua baixa-- valorização social e reduzida
fazer da escola um lugar mais atraente para realização pessoal.
os alunos e fornecer-lhes as chaves de uma São essas dificuldades que nos levam à
compreensão verdadeira da sociedade da pergunta de sempre: por que ser professor hoje?
informação.
O professor deve estabelecer uma nova relação 5. Jacques Delors {org.), Educação: um tesouro a descobrir- ~elatório
com quem está aprendendo, passar do papel para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educaçao para o
Século XXI. São Paulo: Cortez Editora, 1998, p.154-155.3. Georges
de 'solista' ao de 'acompanhante', tornando-se Snyders, A alegria na escola. São Paulo: Manole, 1986.
não mais alguém que transmite conhecimentos, 6. Ver pesquisa sobre saúde dos trabalhadores em ed~cação da
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educaçao (CNTE),
mas aquele que ajuda seus alunos a encontrar, Educação: carinho e trabalho - Bumout, a síndrome da desistência do
organizar e gerir o saber, guiando, mas não educador, que pode levar à falência da educação. Brasília, CNTE, 1999.
Essa pesquisa foi o mais amplo levantamento já realizado ares-
modelando os espíritos, e demonstrando grande peito da educação em todo o mundo. Durante dois anos foram en-
firmeza quanto aos valores fundamentais que trevistados 52 mil professores e funcionários de escola em 1.440
unidades das redes públicas estaduais, nos 27 estados do Brasil.
66
67
Moacir Gadotti
Boniteza de um sonho

em cóntradição com o que as crianças aprendem devem orientar toda a vida" 5 • Essas considerações
na escola. Estas mensagens televisivas surgem são do Relatório para a Unesco da Comissão
sempre organizadas em rápidas seqüências o Internacional sobre Educação para o Século 21 e
que, em numerosas regiões do mundo, têm uma me parecem muito apropriadas para explicar as
influência negativa sobre a capacidade de manter dificuldades enfrentadas hoje pelos professores.
a atenção, por parte dos alunos e, portanto, sobre São pistas para enfrentar a questão: "O que devo
as relações na aula. fazer?" "O que o senhor faria no meu lugar?". Mas,
Passando os alunos menos tempo na escola é claro, elas não dão conta de toda a complexa
do que diante da televisão, a seus olhos é grande questão do "saber ensinar".
o contraste entre a gratificação instantânea Diante das dificuldades da prática docente,
oferecida pelos meios de comunicação - · que do desencanto dos nossos alunos, muitos e
não lhes exige nenhum esforço - e o que lhes é· muitas professoras são vítimas da "síndrome
exigido para alcançarem sucesso na escola. Tendo
assim perdido, em grande parte, a preeminência
que tinham na educação, professores e escola
da desistência" 6 • Ela é expr~ssa na exaustão
emocional provocada p~}.<?_~_l}IT!entodG\9~~-~!~~ad~ ----------
~trabalhos e p-~lã~~P~E~9Pé!Hzé:!ç-ª-º_prQYO~~qa
encontram-se confrontados com novas tarefas: pela sua baixa valorização social e reduzida
fazer da escola um lugar mais atraente para realização pessoal.
os alunos e fornecer-lhes as chaves de uma São essas dificuldades que nos levam à
compreensão verdadeira da sociedade da pergunta de sempre: por que ser professor hoje?
informação.
O professor deve estabelecer uma nova relação 5. Jacques Delors (org.), Educação: um tesouro a descobrir- ~elatório
com quem está aprendendo, passar do papel para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educaçao para o
Século XXI. São Paulo: Cortez Editora, 1998, p.154-155.3. Georges
de 'solista' ao de 'acompanhante', tornando-se Snyders, A alegria na escola. São Paulo: Manole, 1986.
não mais alguém que transmite conhecimentos, 6. Ver pesquisa sobre saúde dos trabalhadores em ed~cação da
. Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educaçao (CNTE),
mas aquele que ajuda seus alunos a encontrar, Educação: carinho e trabalho - Burnout, a síndrome da desistência do
organizar e gerir o saber, guiando, mas não educador, que pode levar à falência da educação. Brasília, CNTE, 1999.
Essa pesquisa foi· o mais amplo levantamento já realizado a res-
modelando os espíritos, e demonstrando grande peito da educação em todo o mundo. Durante dois anos foram en-
firmeza quanto aos valores fundamentais que trevistados 52 mil professores e funcionários de escola em 1.440
unidades das redes públicas estaduais, nos 27 estados do Brasil.
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Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

Qual é o sentido de ser professor hoje? Para coordenador. Não se confunde com "gerente" de
que estou ensinando? Como deve ser o novo uma empresa.
professor? O novo profissional da educação precisa
Eis, em resumo, as respostas que tenho perguntar-se: por que aprender, para quê, contra
dado com mais freqüência em minhas falas, o quê, contra quem. O processo de aprendizagem
considerando o contexto da globalização e da não é neutro. O importante é aprender a pensar,
"nova globalização" 7 emergente, que venho a pensar a realidade e não pensar pensamentos já
chamando de "planetarização" 8 e a sociedade pensados. Mas a função do educador não acaba aí:
da informação que prefiro chamar de sociedade é preciso pronunciar-se sobre essa realidade que
aprendente. deve ser não apenas pensada, mas transformada.
1. O novo professor é um profissional do Muitas vezes não vemos sentido no que
sentido. Diante dos novos espaços de formação estamos ensinando. E nossos alunos também
(diversas mídias, ONGs, Internet, espaços públicos não vêem sentido no que estão aprendendo.
e privados, associações, empresas, sindicatos, Numa época de incertezas, de perplexidades,
partidos, parlamento ... ), o novo professor integra de transição, esse profissional deve construir
esses espaços e deixa de ser lecionador para ser sentido com seus alunos. O processo ensino/
um "gestor" 9 do conhecimento social (popular); aprendizagem deve ter sentido para o projeto
o profissional que seleciona a informação e de vida de ambos para que seja um processo
dá/ constrói sentido para o conhecimento; um verdadeiramente educativo. O grande mal-estar
mediador do conhecimento. "Gestor" aqui de muitos de nossos professores e de nossas
significa construtor, organizador, mediador, escolas está no "viver sem sentido" do que estão
fazendo. O ato educativo está essencialmente
7. Milton Santos, Por uma outra globalização: do pensamento único à ligado ao viver com sentido, à impregnação de
consciência universal. São Paulo: Record, 2000. .
sentido para nossas vidas.
8. Ver Ângela Antunes, Leitura do m~!ldo no ~ontexto da planetariza-
ção: por uma pedagogia da sustentabtlzdade. Sao Paulo, Faculdade de 2. O novo professor é um profissional que
Educação da Universidade de São Paul_?, 2002 (Tes: ~e d<:utorado) aprende em rede (ciberespaço da formação), sem
e Moacir Gadotti, Pedagogia da Terra. Sao Paulo: Pe1ropohs, 2001.
9. Ladislau Dowbor, A reprodução social: propostas para uma gestão hierarquias, cooperativamente (saber organizar o
transformadora. Petr6polis: Vozes, 1998. seu próprio trabalho). É um aprendiz permanente,
!V!VCl\...H UClUVLL1
Boniteza de um sonho

um organizador do trabalho do aluno; consciente, romper o divórcio entre a vida escolar e o prazer.
mas também sensível. Ele desperta o desejo de Para ensinar são necessárias principalmente
aprender para que o aluno seja autônomo e se duas coisas:
torne sujeito da sua própria formação. a) gostar de aprender, ter prazer em ensinar,
Por isso, o novo professor precisa desenvol- como um jardineiro que cuida com emoção
ver habilidades de colaboração (trabalho em gru- do seu jardim, de sua roça;
po, interdisciplinaridade), de comunicação (saber b) amar o aprendente (criança, adolescente,
falar, seduzir, escrever bem, ler muito), de pesqui- adulto, idoso). Só aprendemos quando aquilo
sa (explorar novas hipóteses, duvidar, criticar) e que aprendemos é "significativo" (Piaget)
de pensamento (saber tomar decisões). para nós e nos envolvemos profundamente
O enfoque da formação do novo professor deve no que aprendemos.
ser na autonomia e na participação, nas formas O que aprendemos deve fazer parte do nosso
colaborativas de aprendizagem. Diz Paulo Freire: projeto de vida. É preciso gostar de ser professor
"O bom professor é o que consegue, enquanto (auto-estima) para ensinar.
fala, trazer o aluno até a intimidade do movimento 4. A ética é parte integrante da competência do
de seu pensamento. Sua aula é assim um desafio professor, do saber ser professor. Isso significa que
e não uma 'cantiga de ninar'. Seus alunos cansam, um professor que não tem um sonho, uma utopia,
não dormem. Cansam porque acompanham as idas não é comprometido ... não é competente, não é
e vindas de seu pensamento, surpreendem suas ético. Não se pode educar sem um sonho. Ensinar
pausas, suas dúvidas, suas incertezas" 10 • por ensinar, mecanizar, desumanizar o processo
3. Ensinar é mobilizar o desejo de aprender. educativo é não ser ético. Aprende-se ao longo
Mais importante do que saber é nunca perder a ca- de toda a vida, desde que tenhamos um projeto
pacidade de aprender. "Saber é saborear", diz Ru- de vida. Ética do "cuidado" 12 , da "amorosidade",
bem Alves 11 • O novo profissional da educação deve como reiterava Paulo Freire.

10. Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 96.
11. Rubem Alves, Conversas com quem gosta de ensinar. São Paulo: 12. Leonardo Boff, Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela Terra.
Cortez Editora, 1981. Petrópolis: Vozes, 1999.

70 71
Moacir Gadotti

A razão competente deve ser uma razão 6. Educar para uma vida
"molhada de emoção" (Freire). O papel das
emoções no processo de aprendizagem é decisivo: sustentável
razão e emoção não são instâncias separadas no
ser que aprende (Wallon). A emoção é parte do ato
de conhecer.
Em alemão educar significa cuidar, acolher.
rês décadas de debates sobre "nosso futuro
Uma sociedade alucinada e ruidosa como a nossa
não pode educar porque não pode cuidar, não pode
acolher. Nela não há mais tempo para o "modo de
ser cuidado", para o encontro, mas apenas para
T .
comum" deixaram algumas pegadas ecoló-
gicas, tanto no campo da economia, quanto
no campo da ética, da política e da educação, que
o "modo de ser trabalho" ou exploração, nas podem nos indicar um caminho diante dos desa-
expressões utilizadas por Leonardo Boffl 3 • fios do século 21. A sustentabüidade tornou-se um
5. O novo professor é também um profissional tema gerador preponderante neste início de mi-
do encantamento. Num mundo de desencanto e lênio para pensar não só o planeta mas também a
de agressividade crescentes, o novo professor educação; um tema portador de um projeto social
tem um papel biófilo. É um promotor da vida, do global e capaz de reeducar nosso olhar e todos os
bem viver, educa para a paz e a sustentabilidade. nossos sentidos, capaz de reacender a esperança
Não podemos abrir mão de uma antiga lição: num futuro possível, com dignidade, para todos.
a educação é ao mesmo tempo ciência e arte. A O cenário não é otimista: podemos destruir
arte é a "técnica da emoção'; (Vygotski). O novo toda a vida no planeta neste milênio que se inicia.
profissional da educação é também um profissional Uma ação conjunta global é necessária, um movi-
que domina a arte de reencantar, de despertar nas mento como grande obra civilizatória de todos é
pessoas a capacidade de engajar-se e mudar. indispensável para realizarmos essa outra globa-
lização1, essa planetarização, fundamentada em
outros princípios éticos que não os baseados na
1. Milton Santos, Por uma outra globalização: do pensamento único à
13. Idem, ibidem
consciência universal, São Paulo: Record, 2000.
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

exploração econômica, na dominação política e 2" - Educar os sentimentos. O ser humano é o


na exclusão social. O modo pelo qual vamos pro- único ser vivente que se pergunta sobre o sentido
duzir nossa existência neste pequeno planeta, de- de sua vida. Educar para sentir e ter sentido, para
cidirá sobre a sua vida ou a sua morte, e a de todos cuidar e cuidar-se, para viver com sentido cada
os seus filhos e filhas. instante da nossa vida. Somos humanos porque
Precisamos de uma Pedagogia da Terra, uma sentimos e não apenas porque pensamos. Somos
pedagogia apropriada para esse momento de re- parte de um todo em construção e reconstrução.
construção paradigmática, apropriada à cultura 3"- Ensinar a identidade terrena como condi-
da sustentabilidade e da paz. Ela vem se consti- ção humana essencial. Nosso destino comum no
tuindo gradativamente, beneficiando-se de mui- planeta, compartilhar com todos, sua vida no pla-
tas reflexões que ocorreram nas últimas décadas, neta. Nossa identidade é ao mesmo tempo indivi-
principalmente no interior do movimento ecoló- dual e cósmica. Educar para conquistar um víncu-
gico. Ela se fundamenta num paradigma filosófi- lo amoroso com a Terra, não para explorá-la, mas
co2 emergente na educação que propõe um con- para amá-la.
junto de saberes/valores interdependentes. Entre 4" -Formar para a consciência planetária.
eles podemos destacar: Compreender que somos interdependentes. A
r- Educar para pensar globalmente. Na era da Terra é uma só nação e nós, os terráqueos, os seus
informação, diante da velocidade com que o co- cidadãos. Não precisaríamos de passaportes. Em
nhecimento é produzido e envelhece, não adianta nenhum lugar na Terra deveríamos nos consi-
acumular informações. É preciso saber pensar. E derar estrangeiros. Separar primeiro de terceiro
pensar a realidade. Não pensar pensamentos já mundo, significa dividir o mundo para governá-lo
pensados. Daí a necessidade de recolocarmos o a partir dos mais poderosos; essa é a divisão glo-
tema do conhecimento, do saber aprender, do sa- balista entre globalizadores e globalizados, o con-
ber conhecer, das metodologias, da organização trário do processo de planetarização.
do trabalho na escola. 5"- Formar para a compreensão. Formar para
2. Entre os principais representantes desse paradigma podemos ci- a ética do gênero humano, não para a ética ins-
tar: Paulo Freire, Leonardo Boff, Sebastião Salgado, Boaventura de trumental e utilitária do mercado. Educar para
Sousa Santos, Milton Santos, Aziz Ab'Sáber, Thomas Berry, Fritjop
Capra, Edgar Morin. comunicar-se. Não comunicar para explorar, para
74 75
Moacir Gadotti

tirar proveito do outro, mas para compreendê-lo com a paz interior e não pelo silêncio imposto.
melhor. A Pedagogia da Terra que defendemos, É claro, tudo isso supõe justiça e justiça supõe
funda-se nesse novo paradigma ético e numa nova que todas e todos tenham acesso à qualidade de
inteligência do mundo. Inteligente não é aquele vida. Seria cínico falar de redução de demandas
que sabe resolver problemas (inteligência instru- de consumo, atacar o consumismo, falar de con-
mental), mas aquele que tem um projeto de vida sumismo aos que ainda não tiveram acesso ao
solidário. Por que é bela a diversidade, porque consumo básico. Não existe paz sem justiça.
é enriquecedora na possibilidade de criação de Diante do possível extermínio do planeta,
novas realidades e mais plenas. A solidariedade, surgem alternativas numa cultura da paz e uma
como valor e como necessidade humana, embele- cultura da sustentabilidade. Sustentabilidade não
za, humaniza e promove a vida. tem a ver apenas com a biologia, a economia e a
6° - Educar para a simplicidade, para a sustenta- ecologia. Sustentabilidade tem a ver com a rela-
bilidade voluntária e para a quietude. Nossas vidas ção que mantemos conosco mesmos, com os ou-
precisam ser guiadas por novos valores: simplici- tros e com a natureza. A pedagogia deveria come-
dade, austeridade, quietude, paz, saber escutar, çar por ensinar sobretudo a ler o mundo, como
saber viver juntos, compartir, descobrir e fazer nos diz Paulo Freire, o mundo que é o próprio
juntos. Precisamos escolher entre um mundo universo, por que é ele nosso primeiro educador.
mais responsável frente à cultura dominante que Essa primeira educação é uma educação emocio-
é uma cultura de guerra, do ruído, de competitivi- nal que nos coloca diante do mistério do universo,
dade sem solidariedade, e passar de uma respon- na intimidade com ele, produzindo a emoção de
sabilidade diluída a uma ação concreta, pratican- nos sentirmos parte desse sagrado ser vivo e em
do a sustentabilidade na vida diária, na família, no evolução permanente.
trabalho, na escola, na rua. A simplicidade não se Não entendemos o universo como partes ou
confunde com a simploriedade e a quietude não entidades separadas, mas como um todo sagra-
se confunde com a cultura do silêncio. A simpli- do, misterioso, que nos desafia a cada momento
cidade tem que ser voluntária como a mudança de nossas vidas, em evolução, em expansão, em
de nossos hábitos de consumo, reduzindo nossas interação. Razão, emoção e intuição são partes
demandas. A quietude é uma virtude, conquistada desse processo, onde o próprio observador está
•nva\..H vauvu.1
tsomteza cte um sonho

implicado. O Paradigma-Terra é um paradigma ci- Freire. Como me escreveu um dos seus diretores,
vilizatório. E como a cultura da sustentabilidade Paulo Roberto Padilha, "a boniteza de ser profes-
oferece uma nova percepção da Terra, conside- sor está no fato de ser uma atividade desafiado-
rando-a como uma única comunidade de huma- ra, cheia de cores, tempos e espaços diferentes. A
nos, ela se torna básica para uma cultura de paz. vida do professor poderia ser dinâmica e bela se
O universo não está lá fora. Está dentro de pudéssemos enchê-la de jardins, de sons, de ima-
nós. Está muito próximo de nós. Um pequeno jar- gens, de sentimentos ... se pudéssemos resgatar a
dim, uma horta, um pedaço de terra, é um micro- beleza que temos em nós, seres humano.s. Resgatar
cosmo de todo o mundo natural. Nele encontra- na sala de aula e na escola, a nossa humanidade".
mos formas de vida, recursos de vida, processos Concordo plenamente com ele.
de vida. A partir dele podemos reconceitualizar Em dezembro de 2002, as Nações Unidas
nosso currículo escolar. Ao construí-lo e ao culti- promulgaram a Década das Nações Unidas da
vá-lo podemos aprender muitas coisas. As crian- Educação para o Desenvolvimento Sustentável
ças o encaram como fonte de tantos mistérios! Ele (2005-2014)3 com o objetivo de integrar princí-
nos ensina os valores da emocionalidade com a pios, valores e práticas de desenvolvimento sus-
Terra: a vida, a morte, a sobrevivência, os valores tentável em todos os aspectos da educação e do
da paciência, da perseverança, da criatividade, da ensino. Esse esforço educacional deve encorajar
adaptação, da transformação, da renovação. os governos a reexaminar a política educacional,
Todas as nossas escolas podem transformar- no sentido de reorientar a educação desde o jar-
se em jardins e professores-alunos, educadores- dim da infância até a universidade, para que es-
educandos, em jardineiros. O jardim nos ensina teja claramente enfocado na aquisição de conhe-
ideais democráticos: conexão, escolha, responsa- cimentos, competênciàs, perspectivas e valores
bilidade, decisão, iniciativa, igualdade, biodiversi- relacionados com a sustentabilidade.
dade, cores, classes, etnicidade e gênero. . O conceito de sustentahilidade é vasto e pode
Paulo Freire insistia na necessidade de reafir- ser desdobrado em dois níveis complementares,
mar a estética como dimensão fundamental da ta-
refa de educar. O Instituto Paulo Freire vem dando 3. Unesco; Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento
continuidade e reinventando esse sonho de Paulo Sustentável (2005-2014). Brasília: Unesco, 2005.

78 79
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

o primeiro relativo à natureza e o segundo relato comportamento das pessoas; nós necessitamos de
à sociedade: iniciativas políticas para uma mudança maior que
1 sustentabilidade ecológica, ambiental e demo-
Q - é, necessariamente cultural e social.
gráfica que se refere à base física do processo de O sistema formal de educação, em geral, é
desenvolvimento e com a capacidade da nature- baseado em princípios predatórios, em uma ra-
za suportar a ação humana, com vistas à suare- cionalidade instrumental, reproduzindo valores
produção e aos limites das taxas de crescimento insustentáveis. Para introduzir uma cultura da sus-
populacional; tentabilidade nos sistemas educacionais nós precisa-
2Q - sustentabilidade cultural, social e políti- mos reeducar o sistema. Ele faz parte do proble-
ca que se refere à manutenção da diversidade e ma, não é somente parte da solução.
das identidades, diretamente relacionada com Estou convencido de que a sustentabilidade
a qualidade de vida das pessoas, da justiça dis- é um conceito poderoso, uma oportunidade para
tributiva e ao processo de construção da cidada- que a educação renove seus velhos sistemas, fun-
nia e da participação das pessoas no processo de dados em princípios e valores competitivos, e in-
desenvolvimento. troduza uma cultura da sustentabilidade e da paz
A educação para o desenvolvimento sustentável, nas comunidades.escolares, a fim serem mais coo-
apesar de sua ambigüidade, é uma visão pos~tiva perativas e menos competitivas.
do futuro da humanidade, um consenso apoiado Os termos "sustentável" e "desenvolvimento"
por uma grande maioria. Com o aquecimento g~o­ continuam vagos e controvertidos. Há uma ten-
bal, a Década das Nações Unidas tornou-se ain- dência de aplicação do conceito de sustentabili-
da mais atual, e pode contribuir para à compre- dade a tudo o que é considerado bom, como um
ensão das grandes crises atuais (água, alimento, conceito guarda-chuva. O mercado considera "de-
energia etc.). Ela implica na mudança do sistema senvolvimento sustentável" como sinônimo de
·educacional, implica o respeito à vida, o cuida- "responsabilidade social". Por isso, precisamos
do diário com o planeta e o cuidado com toda a qualificar cada um deles.
comunidade da vida. Isso significa, compartilhar Creio que devemos dar a esses dois conceitos
valores fundamentais, princípios éticos e conhe- um novo significado. De fato, "sustentável" é um
cimentos. Contudo, não é suficiente mudar o termo que, associado ao desenvolvimento, sofreu
on
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

um grande desgaste. Enquanto para alguns é ape- conforme o contexto e os autores que os defen-
nas um rótulo, para outros ele tornou-se a pró- dem. O grande número de definições desses con-
pria expressão de um absurdo lógico: desenvol- ceitos não impede que os consideremos essenciais
vimento e sustentabilidade seriam logicamente para as nossas vidas. Damos-lhe o conteúdo práti-
incompatíveis. co que nossos princípios e valores sociais e políti-
Para nós, "sustentável" é mais do que um cos lhes conferem.
qualificativo do desenvolvimento econômico. Ele Um bom exemplo de superação prática dessa
vai além da preservação dos recursos naturais e dicotomia está na economia popular. Ela incorpo-
da viabilidade de um desenvolvimento sem agres- rou, desde os seus primórdios, o tema da ecologia
são ao meio ambiente. Ele implica num equilíbrio e do desenvolvimento sustentável. Essa incorpo-
do ser humano consigo mesmo e com o planeta, e, ração representa uma possibilidade de ampliação
mais ainda, com o próprio universo. A sustentabili- do âmbito dos empreendimentos de socioecono-
dade que defendemos refere-se ao próprio sentido mia solidária, assim como ocorreu com a incorpo-
do que somos, de onde viemos e para onde vamos, ração do enfoque de gênero, o enfoque dos direi-
como seres humanos. tos humanos e da defesa do controle social local.
A polissemia desses conceitos tomou e ainda Sustentabilidade e solidariedade são temas emer-
está tomándo muito tempo de discussão. Por isso, gentes e convergentes.
a expressão "desenvolvimento sustentável" con- Educar para o desenvolvimento sustentável me
tinua um conceito em disputa. Se conceitualmente parece um conceito limitado e limitador da edu-
pode-se discutir os termos da Década das Nações cação. Não tem a abrangência necessária para se
Unidas, na prática, todos sabemos facilmente o constituir uma concepção organizadora da educa-
que é e o que não é sustentável. Insustentável é a ção. Ao contrário, o conceito de sustentabilidade
fome, a miséria, a violência, a guerra, o analfabe- é paradigmático e central na visão de um outro
tismo etc. O critério de superação dessa questão mundo possível. O conceito de educação para o
é a prática. Afinal, muitos outros conceitos são desenvolvimento sustentável não tem potencial
ambíguos, como são os conceitos de cultura, de para transcender a noção ambígua e vaga de de-
democracia, de cidadania, autonomia, justiça, etc. senvolvimento. Só uma visão crítica da educação
Muitos conceitos possuem significados diferentes para o desenvolvimento sustentável poderá nos
82 83
Moacir Gadotti
Boniteza de um sonho

fazer avançar. Sem dúvida, devemos continuar e dos animais, seu habitat, como reduzir, reusar e
caminhando também com esse novo conceito, reciclar os materiais utilizados, como manter os
tão contraditório, como tantos outros, mas sem ecossistemas ligados às florestas e águas. Num
ignorar suas limitações. É o que nos permitirá nível mais avançado precisamos discutir a biodi-
transcendê-lo. versidade, a conservação ambiental, as alternati-
- O que a educação pode fazer para tornar a vas energéticas e o aquecimento global. Em nível
vida mais sustentável no planeta? universitário devemos não só difundir informações
- Precisamos reorientar os programas edu- ambientais, mas produzir novos conhecimentos e
cacionais existentes no sentido de promover o fazer pesquisas voltadas para a busca de um novo
conhecimento, as competências e habilidades, paradigma de desenvolvimento.
princípios, valores e atitudes relacionadas com a Mais do que educar para o desenvolvimento
sustentabilidade. Uma estratégia concreta para sustentável devemos educar para a sustentabili-
iniciar esse debate dentro de nossas escolas é fa- dade ou, simplesmente, educar para uma vida sus-
zer uma eco-auditoria para descobrir em pormenor tentável. Chamamos de vida sustentável o estilo de
onde estamos sendo realmente insustentáveis. É vida que harmoniza a ecologia humana e a am-
muito simples: basta mapear tudo o que fazemos e biental mediante tecnologias apropriadas, eco-
contrapor o que fazemos ao princípio da sustenta- nomias de cooperação e o empenho individual. É
bilidade. Na prática não é tão difícil de identificar um estilo de vida intencional que se caracteriza
onde estamos e onde não estamos integrando no pela responsabilidade pessoal, serviço aos demais
nosso currículo, em sentido amplo, os conceitos e uma vida espiritual com sentido. Um estilo de
do desenvolvimento sustentável, tanto na histó- vida sustentável relaciona-se com a ética na ges-
ria, quanto nas ciências sociais quanto nas ciên- tão do meio ambiente e na economia, buscando
cias humanas e no cotidiano das nossas escolas. satisfazer· as necessidades de hoje em equilíbrio
Para cada nível de ensino devemos adotar com as necessidades das futuras gerações.
estratégias diferentes: no ensino primário, por Enquanto o desenvolvimento sustentável
exemplo, nossas crianças precisam vivenciar (as refere-se principalmente ao modo como a socie-
vivências impregnam mais do que o discurso) e dade produz e reproduz a existência humana, o
precisam conhecer as necessidades das plantas modo de vida sustentável refere-se sobretudo à
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

opção de vida dos sujeitos. Então, não se pode vol- puro instinto. Sentimos prazer ao nos alimentar
tar a atenção apenas para educar para o desenvol- e podemos fazer escolhas. Transformamos o ato
vimento, mas para a vida dos indivíduos. Mudar de comer num ato muito significativo. Não é uma
o desenvolvimento implica em mudar as pessoas mera satisfação de uma necessidade instintiva.
que podem mudar o desenvolvimento. Uma coisa Comer é também um ato cultural. As sociedades o
está diretamente dependendo da outra. transformaram num ato social. Há uma variedade
No final de novembro de 2007, foi realiza- enorme de alimentos e há alimentos suficientes
da, em Ahmedabad, na índia, a IV Conferência para todos os habitantes da Terra. Falta é distri-
Internacional sobre Educação Ambiental. Ela cele- buí-los eqüitativamente.
brou o encontro difícil entre educação ambiental A melhor escolha da comida é aquela produ-
e educação para o desenvolvimento sustentável. A zida localmente e a pior é a que vem empacota-
Declaração de Ahmedabad reflete essa necessidade da, de longe, e que produz muito mais lixo (pro-
de educar para uma vida sustentável. Os debates dutos industrializados) e mais custos sociais e
foram dominados pela presença do um pensa- ambientais. Trata-se de saber, de conhecer, como
mento central da obra de Gandhi: "minha vida é os produtos que consumimos foram produzidos.
minha mensagem". Sem dúvida, precisamos dar Conhecer todo o sistema de produção alimentar.
exemplo, precisamos ser a mudança que prega- Dia 17 de novembro de 2007, o IPCC (sigla
mos. A Declaração de Ahmedabad deixa isso cla- em inglês do Painel Intergovernamental sobre
ro: "o nosso exemplo é muito importante. Pelas Mudanças Climáticas das Nações Unidas) lançou
nossas ações, acrescentamos substancia e vigor à o seu quarto relatório, uma síntese destinada a
busca por uma vida sustentável". líderes políticos, para que tomem as medidas ne-
E como o estilo de vida foi um tema domi- cessárias para enfrentar o aquecimento global.
nante em Ahmedabad, o consumo sustentável teve, Esse documento reafirma o que já havia susten-
nessa Conferência, muita relevância. Não dá para tado nos relatórios anteriores de que a Revolução
falar em educação para a sustentabilidade sem Industrial, iniciada em meados do século 18, é um
falar de educação para o consumo sustentável. fator determinante para o aumento da concen-
Precisamos comer para sobreviver, mas, diferen- tração. de CO 2 na atmosfera que provoca o efeito
temente dos animais, não nos alimentamos por estufa e a elevação da temperatura do planeta.
86 87
Moacir Gadotti

Essa tendência deverá continuar por vários sécu- 7. Educar para um outro
los, mesmo que a humanidade controle a emissão
de CO 2 e se estabilize a concentração de gases de mundo possível
efeito estufa. O IPCC afirma, textualmente, que
"o aumento do nível do mar e o aquecimento são
inevitáveis".
Considerando que vamos ter que conviver,

A
inevitavelmente, com o aquecimento global, mas s várias edições do Fórum Social Mundial
que precisamos diminuir seus efeitos danosos; (FSM), que se iniciou em Porto Alegre
considerando que o nosso estilo de vida e, particu- (Brasil), em janeiro de 2001, transforma-
larmente, a nossa alimentação, têm considerável r~m-se em momentos de reencantamento pela

impacto no aquecimento global; considerando vida, pela luta, pela resistência, por "outro mun-
que a educação para a sustentabilidade e, particu- do é possível". Quando alguém olha para qual-
larmente, a educação para o consumo sustentável quer um . dos seus auditórios, sempre lotados,
é parte fundamental dessa educação, e pode ter se emociona e se pergunta: "o que está nascen-
um impacto positivo na diminuição da emissão de do ~e novo neste espaço"? A certeza é que algo
CO 2 ; como educador, proponho que reunamos e esta acontecendo, embora não esteja tão visível.
engajemos o maior número de escolas e estudan- As respostas não são muitas. Há mais perguntas
tes na mudança de estilo de vida, para construir do qu~ resposta~. Mas, há a sensação de que algo
hábitos de uma vida sustentável, particularmen- maravilhoso esta acontecendo. Há a crença de que
te por meio de uma alimentação ecologicamente "outro mundo é possível".
sustentável. Ainda não utilizamos o potencial or- É isso que une a tanta gente que deseja trans-
ganizativo e transformador das escolas. Mais de formar suas vidas para viver numa sociedade mais
um bilhão de crianças e jovens estudam hoje no feliz, mais produtiva, mais justa, mais bonita, mais
mundo e uma mudança no seu estilo de vida faria sustentável. Todos acreditam nessa possibilidade.
uma grande diferença. Não têm a cabeça feita. Não têm muitas certezas
'
mas acreditam no "mundo como possibilidade"
como dizia Paulo Freire. '
Boniteza de um sonho

Apergunta que podemos nos colocar, nós, mundo é possível e necessário. Necessário não
professores, o que temos a ver com isso, como po- no sentido de uma predeterminação fatalista,
demos contribuir para ver nascer este outro mun- mas como uma necessidade urgente e profun-
do possível. da, cuja realização, ou não, decide tanta coisas
A crença move o mundo. O FSM 1 é um es- no futuro " 2 •
paço aberto, autogestionado, auto-organizado. o FSM, com sua forma de funcionamen-
Por isso, muitos são os caminhos apontados. No to autogestionado é um exemplo desse outro
Fórum todos eles são respeitados. Existe uma mundo possível, de como deve ser uma socie-
abertura para o outro como jamais vi em tantos dade onde todos caibam, onde ninguém é ex-
e numerosos encontros dos quais já participei. cluído. Por que o velho mundo é um mundo de
Mais uma manifestação desta força transforma- exclusão. Queremos deixar para trás o mundo
dera invisível que faz do FSM o acontecimento da prepotência, da arrogância dos que tudo sa-
paradigmático mais significativo deste início de bem e, por isso, tudo querem ensinar. O outro
milênio. Os movimentos sociais e populares, as mundo possível é um mundo de aprendizagem
organizações não governamentais e outras ins- em rede. O nosso mundo possível é um mundo
tituições que abraçaram a causa da construção onde todos podem perguntar, o mundo da_ "pe-
de um outro mundo possível, estão dando uma dagogia da pergunta", como sustentava Freire3 •
grande lição que precisamos aprender juntos. É perguntando que o construiremos.
O FSM é uma experiência extraordinária A grande novidade do FSM é que ele desban-
para qualquer um que dele participa. Uma expe- cou a descrença, o fatalismo neoliberal e o pen-
riência nova e renovada a cada novo encontro. samento único. O pior não é o mundo que está
Em cada um deles pode-se perceber que um ou- aí. O pior é pensar que só esse mundo é possível.
tro mundo está sendo construído desde já. Ele já O pior é esse mundo transformando em feti-
está presente na nossa procura, em cada um de che: o discurso único fatalista que tudo domina.
nós, em cada momento que vivemos desses en-
contros impregnantes de esperança. "Um outro 2. István Mészáros, A educação para além do capital. São Paulo:
Boitempo, 2003, p. 50.
1. Boaventura de Souza Santos, Fórum Social Mundial: manual de uso.
3. Paulo "Freire e Antonio Faundez, Por uma pedagogia da pergunta.
São Paulo: Cortez Editora, 2005. São Paulo: Paz e Terra, 1985.
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91
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

Atração fatal pela mercadoria, imutabilidade, diversidade humana abre-se a possibilidade da


atração fatal pelos objetos. A fetichização ins- diversidade de mundos possíveis. A um pensamento
taurou um mundo de insensibilidade e de natu- único não podemos opor outro pensamento úni-
ralização de tudo. Só uma nova conscientização co. Educar para outro mundo possível é educar
contra a fetichização poderá desbloquear esse para outros mundos possíveis 4 •
travamento da humanidade. Daí a importân- Antes de responder à pergunta deste capítulo
cia do FSM como processo pedagógico. O FSM -"o que é educar para um outro mundo possível?"
é também um movimento de reeducação pla- - gostaria que de propor a reflexão em torno de
netária. Se um outro mundo é possível, uma outras quatro perguntas que precedem a pergunta
"outra educação é necessária", como sustenta sobre o papel da educação na transformação.
o Fórum Mundial de Educação (FME). 1" - Por que devemos mudar o mundo?
Acredito que a mercantilização da educação Porque estamos insatisfeitos com o mundo
(a educação como mercadoria, como negócio) é atual. Insatisfeitos porque é um mundo injusto. Os
um dos desafios humanos mais decisivos da his- movimentos sociais, as organizações não-gover-
tória atual. Só a educação poderá construir outra namentais e outras instituições e organizações,
lógica, através da formação da consciência crítica, unidos pela "Carta de Princípios" do FSM, defen-
da educação cidadã contra a educação consumis- dem a luta contra o neoliberalismo e propõem
ta, da luta incessante entre alienação e desaliena- uma outra globalização. A globalização neolibe-
ção, entre conscientização e domesticação. Mas ral é um modo injusto de produzir e reproduzir
não basta afirmar que outro mundo é possível. É a nossa existência e põe em risco a existência do
preciso mostrar como. próprio planeta. Ela produz guerras, terrorismo,
E quando falamos da necessidade de "um ou- fome, a miséria de muitos e o bem-estar de pou-
tro mundo possível" não nos referimos apenas cos. Apesar da sua enorme diversidade, os par-
a um "único" mundo possível. A diversidade é a ticipantes do FSM têm uma causa em comum: a
característica fundamental da humanidade. Por construção de uma outra globalização (alterglo-
isso não pode haver um único modo de produzir e balização), de outros mundos possíveis.
de reproduzir nossa existência no planeta. O que
4. Moacir Gadotti, Educar para um outro mundo possível. São Paulo:
há de comum é a diversidade humana. Diante da Publisher Brasil, 2007.
Boniteza de um sonho

2" -A quem interessa mudar o mundo? eqüidade de gênero e etnia. Mas estamos longe
Certamente, quem está se beneficiando deste de concretizá-lo em nossa vida cotidiana, mesmo
mundo não vai se interessar em mudá-lo. A mu- porque uma mudança profunda na vida social está
dança virá daqueles que sofrem, dos injustiçados associada a uma mudança profunda na vida eco-
e excluídos e daqueles que com eles se comprome- nômica. Grandes interesses econômicos deverão
tem e lutam. Não só dos pobres e oprimidos, mas ser contrariados.
de todos e de todas que se comprometem com a 4"- Como construir esse outro mundo possível?
mudança. Mudarão o mundo aqueles e aquelas que Como não se trata de um paraíso a ser con-
sabem que não basta estar consciente da necessi- quistado, o outro mundo possível já está s~ndo
dade da mudança. É preciso estar organizado em construído. Não é uma utopia longínqua. E um
comunidades, identidades e grupos e convencer "inédito viável", como dizia Paulo Freire. Não é
muita gente, inclusive aqueles que são coniventes um dado, nem um produto. É um processo. Mesmo
com o mundo de hoje. Então, devemos ir além de porque esse outro mundo possível é feito de rela-
onde estamos. A tarefa dos movimentos que dese- ções - de novas relações - e não de objetos. E não
jam mudar o mundo é ter clareza do que mudar, se pense em tomar primeiro o poder para depois
convencer a maioria pela força dos argumentos e reconstruí-lo. Isso já não deu certo5 •
pela pressão social. Os poderosos não irão mudar - O que é educar para. um outro mundo
o mundo. Só os que não possuem poder podem re- possível?
inventá-lo. São as pessoas comuns, nós, as multi- - Antes de mais nada, educar para outros
dões, que podemos mudar o mundo. mundos possíveis é visibilizar o que foi escondido
3" - O que é esse outro mundo possível? para oprimir, é dar voz aos que não são escutados.
As coisas começam a se complicar. Precisamos A luta feminista, o movimento ecológico, o movi-
de respostas, mesmo que provisórias. Movimentos mento zapatista, o movimento dos sem terra e ou-
sociais ligados às causas ambientais, de direitos tros, tornaram visível o que estava invisibilizado
humanos, raciais, étnicas, de gênero, entre ou- por séculos de opressão. Por isso, podemos dizer
tros, estão nos indicando o caminho: um mun- que são movimentos de educação para um outro
do não apenas produtivo, mas ambientalmente s. john 1-iolloway, Mudar o mundo sem tomar o poder: o significado da
saudável, social e economicamente justo, com revolução hoje. São Paulo: Viramundo, 2003.

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Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

mundo possível. Paulo Freire, entre outros, foi um público e a dimensão humanista da educação.
exemplo de educador de outros mundos possíveis, Opondo-se a esse paradigma, a educação para
colocando no palco da história o oprimido, visibi- outros mundos possíveis respeita e valoriza a di-
lizando o oprimido e sua relação com o opressor. versidade, convive com a diferença, promovendo
Educar para outros mundos possíveis é edu- a intertransculturalidade. O núcleo central da
car para conscientizar, para desalienar, para desfe- concepção neoliberal da educação é a negação do
tichizar. O fetichismo da ideologia neoliberal é o sonho e da utopia. Por isso, uma educação para
fetiche da lógica burguesa e capitalista que con- outros mundos possíveis é, sobretudo, a educação
segu~ solidificar-se a ponto de fazer crer que o para o sonho, uma educação para a esperança.
mundo é naturalmente imutável. O fetichismo A mercantilização da educação é um dos de-
transforma as relações humanas em fenômenos safios mais decisivos da história atual, porque
estáticos, como se fossem impossíveis de serem ela sobrevaloriza o econômico em detrimento do
modificadas. Fetichizados, somos incapazes de humano. Só uma educação emancipadora poderá
agir porque o fetiche rompe com a capacidade de inverter essa lógica, através da formação para a
fazer. Fetichizados, apenas repetimos o já feito, o consciência crítica e para a desalienação. Educar
já dito, o que já existe. para outros mundos possíveis é educar para a qua-
Educar para outros mundos possíveis é edu- lidade humana para "além do capital", como nos
car para a emergência do que ainda não é, o ain- disse István Mészáros na abertura da quarta edi-
da-não, a utopia. Assim fazendo, estamos assu- ção do FME, em Porto Alegre, em janeiro de 2005.
mindo a história como possibilidade e não como A globalização capitalista roubou das pessoas
fatalidade. Por isso, educar para outros mundos o tempo para o bem viver e o espaço da vida in-
possíveis é também educar para a ruptura, para a terior, roubou a capacidade de produzir digna-
rebeldia, para a recusa, para dizer "não", para gri- mente as nossas vidas. Cada vez mais gente é re-
tar, para sonhar com outros mundos possíveis. duzida a máquinas de produção e de reprodução
Denunciando e anunciando. do capital.
O neoliberalismo concebe a educação como Educar para outros mundos possíveis é fazer
uma mercadoria, reduzindo nossas identidades da educação, tanto formal, quanto não-formal,
às de meros consumidores, desprezando o espaço um espaço de formação crítica e não apenas de
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

formação de mão-de-obra para o mercado; é in- uma comunidade una e diversa.


ventar novos espaços de formação alternativos ao Educar para outros mundos possíveis exige
sistema formal de educação e negar a sua forma dos educadores um compromisso pela desmercanti-
hierarquizada numa estrutura de mando e su- lização da educação e uma postura ecopedagógica de
bordinação; é educar para articular as diferentes escuta do universo, do qual todos e todas fazemos
rebeldias que negam hoje as relações sociais capi- parte. Os educadores não devem dirigir-se apenas
talistas; é educar para mudar radicalmente nossa a alunos ou a educandos, mas aos habitantes do
maneira de produzir e de reproduzir nossa exis- planeta, considerando-os a todos e a todas como
tência no planeta, portanto, é uma educação para cidadãos da mesma Mátria.
a sustentabilidade. A terra é nosso primeiro grande educador.
Não se pode mudar o mundo sem mudar as Educar para outros mundos possíveis é também
pessoas: mudar o mundo e mudar as pessoas são educar para encontrar nosso lugar na história,
processos interligados. Mudar o mundo depende no universo. É educar para a paz, para os direitos
de todos nós: é preciso que cada um tome consci- humanos, para a justiça social e para a diversida-
ência e se organize. Educar para outros mundos de cultural, contra o sexismo e o racismo. É educar
possíveis é educar para superar a lógica desuma- para erradicar a fome e a miséria. É educar para a
nizadora do capital que tem no individualismo e consciência planetária. É educar para que cada um
no lucro seus fundamentos, é educar para trans- de nós encontre o seu lugar no mundo, educar
formar radicalmente o modelo econômico e po- para pertencer a uma comunidade humana pla-
lítico atual. netária, para sentir profundamente o universo.
Não fomos educados para ter uma consciência É educar para a planetarização não para o glo-
planetária e sim a consciência do estado-nação. Os balismo. Vivemos num planeta e não num globo.
sistemas nacionais de educação nasceram como O globo refere-se a sua superfície, a suas divisões
parte da constituição do estado-nação. A escola geográficas, a seus paralelos e meridianos. O glo-
atual é resultado do pensamento da modernida- bo refere-se a aspectos cartoriais, enquanto o pla-
de, modelada pelos estados-nação. Ela não aten- neta, ao contrário dessa visão linear, refere-se a
de nem as exigências da globalização e nem do seu uma tot_alidade em movimento. A terra é um su-
oposto, isto é, a planetarização como paradigma de perorganismo vivo e em evolução. Nosso destino,
98 99
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

enquanto seres humanos, está ligado ao desti- 8. Ser professor, ser


no desse ser chamado terra. Educar para outros
mundos possíveis é educar para ter uma relação educador
sustentável com todos os seres da terra, sejam
eles humanos ou não.
É educar para viver no cosmos- educação pla-
netária, cósmica e cosmológica - ampliando nos-
sa compreensão da terra e do universo. É educar -"Educadores, onde estarão?", pergunta
para ter uma perspectiva cósmica. Só assim podere- Rubem Alves.
mos entender mais amplamente os problemas da - E ele mesmo responde: "Em que covas terão
desertificação, do desflorestamento, do aqueci- se escondido? Professores, há aos milhares, mas
mento da Terra, da água, do lixo e dos problemas professor é prQfissão, não é algo que se define por
que atingem humanos e não-humanos. dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é
Os paradigmas clássicos, arrogantemente an- profissão, é vocação. E toda vocação nasce de um
tropocêntricos e industrialistas, não têm sufi- grande amor, de uma grande esperança" 1 • E con-
ciente abrangência para explicar essa realidade tinua: "Com o advento da indústria como poderia
cósmica. Por não ter essa visão holística, não con- o artesão sobreviver? Foi transformado em ope-
seguiram dar nenhuma resposta para tirar o pla- rário de segunda classe, até morrer de desgosto e
n.eta da rota do extermínio e do rumo da cruel di- saudade. O mesmo com os tropeiros, que depen-
ferença entre ricos e pobres. Os paradigmas clás- diam das trilhas estreitas e das solidões, que mor-
sicos estão levando o planeta ao esgotamento de reram quando o asfalto e o automóvel chegaram.
seus recursos naturais. A crise atual é uma crise Destino igualmente triste teve o boticário, sem re-
de paradigmas civilizatórios. Educar para outros cursos para sobreviver num mundo de remédios
mundos possíveis supõe um novo paradigma, um prontos. Foi devorado no banquete antropofágico
paradigma holístico. das multinacionais" 2 •
1. Rubem Alves, in Carlos R. Brandão (org.), O educador: vida e morte
-escritos sobre uma espécie em perigo. São Paulo: Brasiliense, 1982,
p.l6.
2. Idem, ibidem.

11"11"1
Boniteza de um sonho

Rubem Alves é um emérito escritor, psicana- porque o ritmo do mundo do educador não segue
lista, educador respeitado, mas é, sobretudo, um o ritmo do mundo das instituições. Não é de se es-
semeador de sonhos e de idéias que dão a pensar. tranhar que jean-Jacques Rousseau (1712-1778),
Foi assim que introduziu uma intrigante distinção tenha se tornado obsoleto. Porque a educação que
entre ser professor e ser educador: "Com o adven- ele contempla ocorre colada ao imprevisível de
to do utilitarismo a pessoa passou a ser definida uma experiência de vida ainda não gerenciada" 3 •
pela sua produção; a identidade é engolida pela E conclui mais a frente: "Talvez um professor seja
função. E isto se tornou tão arraigado que, quan- um funcionário das instituições ... O educador, ao
do alguém nos pergunta o que somos, respon- contrário é um fundador de mundos, mediador
demos inevitavelmente dizendo o que fazemos. de esperanças, pastor de projetos. Não sei como
Com essa revolução instaurou-se a possibilidade preparar o educador. Tal vez isto não seja nem ne-
de se gerenciar e administrar a personalidade, cessário nem possível... É necessário acordá-lo. E
pois que aquilo que se faz e se produz, a função, aí aprenderemos que educadores não se extingui-
é passível de medição, controle, racionalização. A ram como tropeiros e caixeiros " 4 •
pessoa praticamente desaparece, reduzindo-se a As reações às provocações de Rubem Alves
um ponto imaginário em que várias funções são não se fizeram esperar. Suas teses geravam uma
amarradas. É isto que eu quero dizer ao afirmar saudável polêmica. O professor Jefferson Ildefonso
que o nicho ecológico mudou. O educador, pelo da Silva sustenta que existe um "falso dilema" en-
menos o ideal que minha imaginação constrói, tre educador ~professor. Esse dilema "se dilui e
habita um mundo em que a interioridade faz uma perde sua relevância ao se encarar a formação do
diferença, em que as pessoas se definem por suas educador para além do âmbito pedagógico ou .in-
visões, paixões, esperanças e horizontes utópi- dividualista, para situá-lo na perspectiva de uma
cos. O professor ao contrário, é funcionário de um proposta e teoria pedagógica que incorpore o ca-
mundo dominado pelo Estado e pelas empresas. É ráter político da prática pedagógica e sua depen-
uma entidade gerenciada, administrada segundo dência da práxis social global, onde se dá a luta
a sua excelência funcional, excelência esta que é
sempre julgada a partir dos interesses do sistema. 3. Idem, pp. 18-19.
Freqüentemente o educador é mau funcionário, 4. Idem, p. 28.
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Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

hegemônica das classes" 5 • Todo professor é, por Vasconcellos insiste na questão do sentido da
função, educador. Para ele o educador é um inte- função docente. Ele sustenta que os educadores
lectual dirigente, orgânico. Numa sociedade divi- não estão sabendo articular o "novo sentido" da
dida, ele não é neutro. Numa perspectiva eman- sua profissão, sobretudo em função de seu desgas-
cipadora, o educador é um intelectual orgânico te profissional. Ele sustenta que o que vai dar sen-
das classes populares, a favor dos interesses das tido à sua profissão é justamente "a esperança de
pessoas que necessitam de educação. poder construir uma realidade diferente e de que
Com ele, também concorda meu ex-aluno e a escola pode contribuir para a concretização des-
amigo, a quem ensinei e, sobretudo, com quem ta sociedade mais humana. O mesmo movimento
muito aprendi e continuo aprendendo, o profes- que recupera o sentido do trabalho do professor é
sor Celso dos Santos Vasconcellos, para o qual se- o que dá sentido ao estudo para o aluno. Estamos
ria um contra-senso pensar que a classe dominan- no mesmo barco; daí a importância de ver no aluno
te se disponha a oferecer um ensino popular de -e na comunidade- um aliado (e não um inimigo,
qualidade que desvende as relações de dominação como tem acontecido amiúde)" 7 • Vasconcellos in-
existentes na sociedade: "A escola para o povo só siste na necessidade do professor "ganhar" o alu-
tem sentido numa nova forma de organizar a so- no para a "indispensável mudança que deve ocor-
ciedade. Não é possível fazer uma escola para to- rer: não se trata mais de estudar simplesmente
dos dentro de uma sociedade para alguns! Ou seja, para poder garantir o seu lugarzinho no bonde da
a democratização da escola precisa ser acompa- história; trata-se, isto sim, de estudar a fim de ga-
nhada de um novo projeto social" 6 • Formar para e nhar competência e ajudar a mudar o rumo deste
pela cidadania não pode limitar-se a uma forma- bonde, ou seja, ajudar a construir uma sociedade
ção genérica para uma sociedade que não existe. onde haja lugar para todos!" 8 e cita, a seguir, um
Uma educação cidadã precisa ser uma educação de artigo da Folha de S.Paulo, segundo o qual "o Brasil
classe. logo terá dois tipos de pessoas: os que não comem,
5. Jefferson Ildefonso da Silva, Formação do educador e educação políti- porque não têm o que comer e os que não dor-
ca. São Paulo: Cortez Editora/ Autores Associados, 1991, p. 13. mem, de medo dos que não comem".
6. Celso dos Santos Vasconcellos, Para onde vai o professor? Resgate do
professor como sujeito de transformação. São Paulo: Editora Libertad, 7. Idem, p. 52.
1995, p. 49. 8. Idem, ibidem.

104
Boniteza de um sonho

Diante desse quadro, o professor competen- projeto, o trabalho intelectual e educacional tem
te, profissionalmente, o professor "que sabe", não de ser fundado no futuro. É dessa forma que os
pode ficar indiferente. Porque ser comprometido, professores podem tornar-se intelectuais: olhan-
engajar-se, ser ético, faz parte da sua competência do o futuro" 9 •
como professor. Como profissional do sentido, sua Pensar a educação do futuro e o futuro da
profissão está ligada ao amor e à esperança. Ela humanidade, é pensar holisticamente, pensar a
não se extinguirá enquanto houver espaço para a totalidade. E educar holisticamente é estimular o
construção da humanidade. desenvolvimento integral do ser humano em sua
A esperança, para o professor, a professora, totalidade pessoal - intelectual, emocional, física
não é algo vazio, de quem "espera" acontecer. Ao - relacionada com a totalidade do mundo da vida
contrário, a esperança para o professor encontra - os outros seres vivos, a comunidade, a socieda-
sentido na sua própria profissão, a de transformar de - e a totalidade cósmica: a Terra, o universo.
pessoas, a de construir pessoas, e alimentar, por Educar holisticamente é entender o ser humano
sua vez, a esperança delas para que consigam, por como um ser que transcende, que ultrapassa to-
sua vez, construir uma realidade diferente, "mais dos os limites, "até o último horizonte", como diz
humana, menos feia, menos malvada", como cos- Leonardo Boffl 0 •
tumava dizer Paulo Freire. Uma educação sem es- o professor precisa indagar-se constantemen-
perança não é educação. te sobre o sentido do que está fazendo. Se isso é
A educação, nesse sentido, confunde-se com fundamental para todo ser humano, como ser que
o processo de humanização. Respondendo à ques- busca sentido o tempo todo, para toda e qualquer
tão "como o professor pode tornar-se um inte- profissão, para o professor é também um dever
lectual na sociedade contemporânea", o geógrafo profissional. Faz parte de seus saberes profissio-
brasileiro Milton Santos, falecido no ano de 2001,- nais continuar indagando, junto com seus colegas
respondeu: "Quando consideramos a história pos-
sível e não apenas a história existente, passamos a 9. Milton Santos, "O professor como intelectual n~ socieda?e, ~on­
acreditar que outro mundo é viável. E não há inte- temporânea", in Anais do IX ENDIPE- Encontro Naczonal de Dzdatzca e
Prática de Ensino, vol. III. São Paulo: 1999, p. 14.
lectual que trabalhe sem idéia de futuro. Para ser 10. Leonardo Boff, Tempo de transcendência: o ser humano como um pro-
digno do homem, qual seja, do homem visto como jeto infinito. São Paulo: Sextante, 2000.

106 107
Moacir Gadotti Boniteza de um sonho

e alunos, sobre o sentido do que estão fazendo na diz ele, ensinar vem do latim insignare, que signifi-
escola. Ele está sempre em processo de construção ca "marcar com um sinal", atuar na construção do
de sentido. Como diz Celso Vasconcellosn, "o sen- significado do que fazemos. Tudo o que fazemos
tido não está pronto em algum lugar esperando precisamos fazer com sentido, tudo o que estuda-
ser descoberto. O sentido não advém de uma es- mos tem que ter sentido.
fera transcendente, nem da imanência do objeto Os dois maiores educadores do século passa-
ou ainda de um simples jogo lógico-formal. É uma do,John Dewey (1859-1952), e Paulo Freire (1921-
construção do sujeito! Daí falarmos em produção. 1997), cada um a seu modo, procuraram responder
Quem vai produzir é o sujeito, só que não de for- a essa questão e centraram suas análises na rela-
ma isolada, mas num contexto histórico e coletivo ção entre "educação e vida", reagindo às pedago-
(... ).Ser professor, na acepção mais genuína, é ser gias tecnicistas do seu tempo - tanto de esquerda
capaz. de fazer o outro aprender, desenvolver-se quanto de direita - que só se preocupavam com
criticamente. Como a aprendizagem é um proces- métodos e técnicas. "Gostaria de ser lembrando
so ativo, não vai se dar, portanto, se não houver como alguém que amou a vida", disse Paulo Freire
articulação da proposta de trabalho com a exis- duas semanas antes de falecer. A educação só tem
tência do aluno; mas também do professor, pois sentido como vida. Ela é vida. A escola perdeu seu
se não estiver acreditando, se não estiver vendo sentido de humanização quando ela virou merca-
sentido naquilo, como poderá provocar no aluno doria, quando deixar de ser o lugar onde a gente
o desejo de conhecer?" aprende a ser gente, para tornar-se o lugar onde
Celso Vasconcellos insiste, em seu livro que o as crianças e os jovens vão para aprender a com-
papel do professor é "educar através do ensino" 12 • petir no mercado.
Ele pode apenas ensinar tabuada, mas só educa A educação, para ser transformadora, eman-
através do ensino quando construir o sentido da cipadora, precisa estar centrada na vida, ao con-
tabuada junto com seu aprendiz, por que, como trário da educação neoliberal que está centrada
na competividade sem solidariedade. Para ser
emanei padora a educação precisa considerar as
11. Celso Vasconcellos, Para onde vai o professor? Resgate do professor
como sujeito de transformação. São Paulo: Libertad, 2001, pp. 51-52. pessoas, suas culturas, respeitar o modo de vida
12. Idem, p. 55. das pessoas, sua identidade. O ser humano é
"11'\0
Boniteza de um sonho

pedagogia do diálogo, das trocas, do encontro, das


"incompleto e inacabado" como diz Paulo Freire 13
em formação permanente. ' redes solidárias. "Companheiro" vem do latim e
significa "aquele que partilha o pão". Trata-se
Por isso, hoje, o professor precisa mostrar que
portanto de uma postura radical ao mesmo tempo
o neoliberalismo, com sua política de mercantiliza-
~ão da educação, tornou a sua profissão descartável.
crítica e solidária.
Às vezes somos apenas críticos e perdemos
E preciso mostrar também que uma educação de
o afeto dos outros por falta de companheiris-
qualidade para todos é inviável e contrária ao pro-
mo. Não haverá superação das condições atuais
jeto político neoliberal capitalista. É preciso fazer
do magistério sem um profundo sentimento de
a análise crítica, social, econômica. Mas tudo isso
companheirismo. Lutando sozinhos chegaremos
não basta. É preciso que a rigorosa análise da situ-
apenas à frustração, ao desânimo, à lamúria. Daí
ação não fique nela, mas aponte caminhos e nos
o sentido profundamente ético dessa profissão.
indique como caminhar. Caso contrário, as análi-
ses sociológicas e políticas, por mais rigorosas e No fundo, para enfrentar a barbárie neoliberal
corretas que sejam, ajudam apenas para manter o na educação vale ainda a tese de Marx de que "o
imobilismo e a falta de perspectivas para o educa- próprio educador deve ser educado", educado
dor. Há que superar tanto o imobilismo quanto a para a construção histórica de um sentido novo
prática do imediatismo tarefeiro e descomprome- de seu papel.
tido com um projeto amplo de sociedade.
O poder do professor está tanto na sua capa-
cidade de refletir criticamente sobre a realidade
para transformá-la quanto na possibilidade de
formar um grupo de companheiros e companhei-
ras para lutar por uma causa comum. Paulo Freire
insistia que a escola transformadora era a "escola
de companheirismo", por isso sua pedagogia é uma

13. Paulo Freire, Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra


1979, p. 27. '
111
110
Conclusão
Uma profissão insubstituível

screvi esse pequeno livro inspirado na

E Pedagogia da autonomia de Paulo Freire,


onde ele trabalhou principalmente a ética
e a estética do ser professor: o que ele deve sa-
ber para ser professor, como ele deve ser para ser
professor.
Paulo Freire sonhava com uma sociedade, um
mundo, onde coubessem todos. A educação pode
dar um passo na direção deste outro mundo possí-
vel se ensinar as pessoas com um novo paradigma
do conhecimento, com uma visão do mundo onde
todas as formas de conhecimento tenham lugar, se
dotar os seres humanos de generosidade epistemo-
lógica, um pluralismo de idéias e concepção que se
constitui na grande riqueza de saberes e conheci-
mento da humanidade.
Creio que existe, ainda na comunidade huma-
na, uma imensa reserva de altruísmo e de solida-
riedade, um dique que o educador precisa conhe-
cer e potencializar para romper as barreiras do
represamento. Educar é empoderar. Não é tanto
11 ~
Boniteza de um sonho

ensinar quanto reencantar. Ou melhor, ensinar, ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao so-
nesse contexto, é reencantar, despertar a capaci- nho e à utopia" 2 •
dade de sonhar, despertar a crença de que é pos- Sair do plano ideal para a prática, não é aban-
sível mudar o mundo. Essa profissão, por isso, é donar o sonho para agir, mas agir em função dele,
insubstituível. Não podemos imaginar um futuro agir em função de um projeto de vida e de esco-
sem ela. Não podemos imaginar um futuro sem la, de cidade, de mundo possível, de planeta ... um
professores. Nisso acredito nas palavras de Rubem projeto de esperança.
Alves: "Ensinar é um exercício de imortalidade.
De alguma forma continuamos a viver naqueles
cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela ma-
gia da nossà palavra. O professor, assim não morre
. . "1
Jamais ....
A esta altura muitos leitores e leitoras estarão
se perguntando se eu não estaria idealizando a fi-
gura do professor, ignorando totalmente a estru-
tura caótica imposta às redes e sistemas de ensino
pelo estado capitalista que acaba culpabilizando o
próprio professor pelos fracassos da escola.
É verdade, o cenário não é otimista. Eu não
poderia, de forma alguma, ignorá-lo. Ao contrá-
rio, precisamos reacender o sonho de ser profes-
sor com sentido, justamente para combater esse
estado de coisas. Precisamos reafirmar o sonho
justamente, como nos diz Paulo Freire, para fazer
frente "à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua

2. Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


1. Rubem Alves, em carta enviada a alguns amigos, no final de 2001. educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 15

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