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MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência. Editora Era, México, 10ª edição.

1990 [1973]

Introdução
A introdução do ensaio com as compreensões marxianas sobre o comércio
exterior (que estende as contradições a uma esfera superior) e a maximização das
taxas de lucros pelo aumento da exploração do trabalho (e não da sua
produtividade) já anunciam os pontos de partida da teoria a ser formulada.
O estágio de desenvolvimento da economia latino-americana, assim como as
particularidades geradas com o avanço deste processo, na segunda metade do
século XX, geram incapacidades conceituais para a devida análise do fenômeno
sócio-econômico da região. Para lidar com tal situação, muitos teóricos marxistas
adotam um ecletismo e uma flexibilidade conceitual e metodológica que acumula
muitas contradições.
Marini propõe um alinhamento ao rigor teórico e metodológico materialista
histórico-dialético. “Em outros termos, é o conhecimento da forma particular que
acabou por adotar o capitalismo dependente latinoamericano o que ilumina o estudo
de sua gestação e permite conhecer analiticamente as tendências que
desembocaram nesse resultado” (p. 2-3). O desenvolvimento insuficiente das forças
produtivas exige, ao invés de um ecletismo contraditório, que seja feita
constantemente uma ponderação analítica onde as categorias marxistas, ao serem
instrumento de análise da materialidade, não mistifiquem os fenômenos a que se
apliquem.

1. A integração ao mercado mundial


A América Latina se integra ao mercado mundial pela colonização européia,
no século XVI. Fornecendo gêneros exóticos e metais preciosos, permite a
aceleração do desenvolvimento capitalista primitivo pelo aumento do fluxo de
mercadorias e a expansão dos meios de pagamento, dando meios ao capital
comercial e bancário do Norte e propiciando a criação da grande indústria.
Com a culminação dos processos de independência política das colônias,
concomitante com a revolução industrial no Reino Unido, as relações
metrópole-satélites avançam qualitativamente do esquema de fluxo de mercadorias
para o de capitais, mantendo as tendências de ganhos desiguais.
É neste momento que se organiza definitivamente a estrutura econômica
mundial, com a Divisão Internacional do Trabalho, passando de relações coloniais
para relações de dependência, ou seja,
uma relação de subordinação entre nações formalmente
independentes, em cujo marco as relações de produção das nações
subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a
reprodução ampliada da dependência (p. 4).
Sendo base para a organização política, econômica e social, a reprodução
das relações capitalistas nada cria além de mais subdesenvolvimento. Entretanto, as
bases (coloniais) não são puramente continuadas na transição à dependência, e é
preciso ressaltar este elemento, não extensivamente abordado por Frank (1966).
O sistema colonial, em especial a América Latina, desempenha um papel
fundamental para formação da economia capitalista mundial e da grande indústria.
Como já dito, o fornecimento de metais preciosos, em especial o ouro brasileiro
quando do auge manufatureiro inglês (séc XVIII), mas também a disponibilização de
produtos agropecuários em quantidades suficiente para abastecer os mercados em
ascensão no nascente operariado europeu e, principalmente, o fornecimento de
matérias primas industriais. É neste último ponto que se reproduzirá a DIT e, mais
importante, onde se manifesta a contradição fundamental do sistema internacional,
onde a América Latina cumpre não só um papel de fornecer bens para o
crescimento quantitativo das economias metropolitanas mas o desenvolvimento
qualitativo das forças produtivas, que se deslocam para uma acumulação
(mais-valia) que, lá, depende do aumento da capacidade produtiva do trabalho
(relativa) e, aqui, para a crescente exploração da mão de obra do trabalhador
(absoluta) (p. 5).

2. O segredo da troca desigual


Marini prossegue por adentrar as categorias marxistas mais fundamentais na
elucidação do estágio e da organização das forças produtivas na América Latina.
Sem promover uma ruptura entre as economias centrais e periféricas, busca a
intermediação entre estas, lendo o capitalismo como um sistema mundial.
A inserção da América Latina na economia capitalista responde às
exigências da passagem para a produção de mais-valia relativa nos
países industriais. Esta é entendida como uma forma de exploração
do trabalho assalariado que, fundamentalmente com base na
transformação das condições técnicas de produção, resulta da
desvalorização real da força de trabalho (p. 6, grifos meus).
Se a América Latina cumpre a necessidade de desenvolvimento das forças
produtivas em torno da mais-valia relativa, torna-se fundamental a definição mais
precisa desta, que é comum e equivocadamente atrelada como sinônimo ao
conceito de produtividade.
O aumento da produtividade, buscado pelo capitalista individual, não altera a
quantidade de valor produzida, apenas reduz o valor individual da mercadoria, já que
o valor total produzido por cada trabalhador se mantém e se divide em mais
mercadorias, o que permite (pela manutenção do preço) numa mais-valia
extraordinária, superior à de seus competidores. Nem mesmo a disseminação da
inovação tecnológica para todo o setor altera o valor social produzido, apenas
aumentará a massa de bens produzidos e dividirá este mesmo valor em mais
unidades, reduzindo seu valor individual proporcionalmente. Não altera, portanto, a
taxa de mais-valia.
Isto pois,
a determinação da taxa de mais-valia não passa pela
produtividade do trabalho em si, mas pelo grau de exploração da
força de trabalho, ou seja, a relação entre o tempo de trabalho
excedente (em que o operário produz mais-valia) e o tempo de
trabalho necessário (em que o operário reproduz o valor de sua força
de trabalho, isto é, o equivalente ao seu salário) (p. 6, grifo meu).
Dessa forma, para que a desvalorização da mão de obra (mais-valia relativa)
possa se dar de forma ordenada, é necessário que haja uma desvalorização
concomitante dos bens-salário (necessários à reprodução da força de trabalho),
geralmente atrelada ao aumento da produtividade do trabalho.
É nesta necessidade estrutural que a América Latina se insere, mostrando
que sem a incorporação e subjugação dessa região aos interesses metropolitanos,
seria inviável as transformações produtivas que se davam na Europa no século XIX.
O efeito dessa oferta [alimentos latino-americanos] (ampliado pela
depressão de preços dos produtos primários no mercado mundial,
tema a que voltaremos adiante) será o de reduzir o valor real da
força de trabalho nos países industriais, permitindo assim que o
incremento da produtividade se traduza ali em taxas de mais-valia
cada vez mais elevadas (p. 7).
A incorporação definitiva da América Latina nas cadeias globais do capital
tanto evidencia contradições universais quanto traz à tona contradições particulares.
A tendência ao favorecimento da mais-valia relativa, proporciona um aumento da
composição-valor do capital, isto é, um incremento do capital constante [meios de
produção, matéria prima, insumos] frente ao capital variável [mão de obra]. Assim
sendo, uma vez que a taxa de lucro é fixada sobre o capital total investido [e este
está favorecendo o capital constante], um crescimento da taxa de mais-valia implica,
por sua vez, numa queda da taxa de lucro.
Uma das soluções para esta contradição da acumulação, pode-se
incrementar a mais-valia ou induzir uma baixa no valor do capital constante. É neste
segundo ponto que a América Latina mais uma vez se insere como um elemento de
atenuação das contradições inerentes do capitalismo. A região passa a fornecer
uma massa cada vez maior e mais barata de matérias primas industriais.
Assim, caímos em outra das contradições, a depreciação dos termos de troca.
Enquanto os produtos fornecidos pela periferia, ao aumentarem seu volume, têm
seu valor acentuadamente reduzido, os bens industriais se mantêm estáveis ou
sofrem lentas quedas. As distintas taxas de produtividade, muito maiores nas
economias industriais, já descartam esta como uma explicação plausível.
Para explicar a expansão e viabilidade da inserção latino-americana no
comércio global, deve-se evitar explicações simplistas, sejam as que jogam na
“oferta e procura”, sejam as que jogam na “coerção militar e política”. É preciso
ater-se que a origem desta relação está na própria economia capitalista internacional
e, portanto, “reivindicar relações comerciais equitativas entre as nações, quando se
trata de suprimir as relações econômicas internacionais que se baseiam no valor de
troca” (p. 9).
De fato, à medida que o mercado mundial alcança formas mais
desenvolvidas, o uso da violência política e militar para explorar
as nações débeis se torna supérfluo, e a exploração
internacional pode descansar progressivamente na reprodução
de relações econômicas que perpetuam e amplificam o atraso e
a debilidade dessas nações. Verifica-se aqui o mesmo fenômeno
que se observa no interior das economias industriais: o uso da força
para submeter a massa trabalhadora ao império do capital diminui à
medida que começam a jogar mecanismos econômicos que
consagram essa subordinação (p. 9).
Embora a expansão do mercado mundial e o desenvolvimento das relações
mercantis abram as possibilidades para uma melhor e mais igualitária aplicação da
lei do valor, o capital, em sua contradição e irracionalidade, burla todas essas
possibilidades. “Teoricamente, o intercâmbio de mercadorias expressa a troca de
equivalentes, cujo valor se determina pela quantidade de trabalho socialmente
necessário que as mercadorias incorporam” (p. 9). Entretanto, tão logo as relações
são observadas além de sua aparência, vemos que na forma de fixação de preços
de mercado e os preços de produção das mercadorias se opera uma transferência
de valor.
Essa transferência se apresenta tanto dentro de uma mesma esfera de
produção (pela aplicação das leis de troca) quanto entre esferas diferentes (pela
transgressão dessas leis), analisados no mercado internacional. No primeiro caso,
vemos repetir o fenômeno do lucro extraordinário obtido por uma produtividade
maior que os concorrentes quando uma nação específica obtém preços menores de
produção que as demais, mas com uma distinção que as relações capitalistas
apresentam níveis diferentes de desenvolvimento no mundo - assim, esse fenômeno
se apresenta sobretudo entre as nações industriais. Nas trocas entre nações que
trocam distintas classes de mercadorias, destarte há uma distorção importante: o
fato de que algumas possuem monopólio da produção de bens, possibilitando a
manipulação dos preços acima de seu valor, configurando uma troca desigual.
Além disso, as nações desfavorecidas, que cedem parte do valor que produzem por
essa relação desigual, vão buscar melhores preços nas nações com maior
produtividade, configurando uma transferência dupla de valor.
Da mesma forma que o capitalista opera a tendência de queda de lucro pelo
incremento do valor total produzido, o capital das nações desfavorecidas no
comércio internacional utiliza ou do prolongamento da jornada de trabalho ou do
aumento da intensidade para aumentar a massa de valor produzida. É esta, enfim, a
explicação para o incremento contínuo de matéria prima e bens primários
produzidos na periferia conforme o preço de mercado se aproxima cada vez mais do
valor real da produção. O que observamos é uma tendência de superexploração
do trabalho para compensar a queda da taxa de lucro para o capitalista
alocado na nação dependente, acarretada por distorções do mercado
internacional, que opera uma apropriação estrutural de mais-valia, da periferia
ao centro.
Importante desvio que esta conclusão nos dá é que o mercado internacional é
apenas um instrumento onde se realiza a transferência de riqueza internacional,
mas que é gerida no nível da produção interna - na superexploração do trabalho.
3. A superexploração do trabalho
Vemos que uma estrutura de apropriação em nível internacional é
historicamente imposta à América Latina, naturalizada nas relações de mercado
modernas e aperfeiçoadas pelos mecanismos contemporâneos, tornando a região
“incapaz de impedi-la no nível das relações de mercado” (p. 11) e impondo, na
mesma medida, o aumento da mais-valia para a sua compensação.
Este aumento se dá de três formas: o aumento da intensidade do trabalho; a
prolongação da jornada de trabalho (aumentar o tempo de trabalho excedente); e
reduzir o consumo do operário mais além do seu limite normal (aumentar o trabalho
excedente pela redução do trabalho necessário para a reposição de sua força de
trabalho).
Além disso, importa assinalar que, nos três mecanismos
considerados, a característica essencial está dada pelo fato de que
são negadas ao trabalhador as condições necessárias para
repor o desgaste de sua força de trabalho: nos dois primeiros
casos, porque lhe é obrigado um dispêndio de força de trabalho
superior ao que deveria proporcionar normalmente, provocando
assim seu esgotamento prematuro; no último, porque lhe é retirada
inclusive a possibilidade de consumo do estritamente indispensável
para conservar sua força de trabalho em estado normal (p. 13, grifo
meu).
É necessário ressaltar que estes procedimentos ocorrem assim que promove
a inserção no mercado mundial, mesmo que não se deem em relação capitalistas
plenas - isto pois, os sistemas desiguais de produção presentes no mundo
interagem entre si e é o próprio sistema central capitalista e o domínio da produção
de valores de troca que fomenta (através do comércio mundial e sua troca desigual)
o “afã por lucro” (p. 12) que incrementa exponencialmente a extração do trabalho
excedente por meios mais cruéis possíveis, como escravidão, vassalagem, etc.
Dessa forma, na América Latina, marcada pelo baixo desenvolvimento das
forças produtivas e pela atividade extrativa e pela agricultura, o modo de produção
se funda exclusivamente na maior exploração do trabalhador, permitindo um
incremento da riqueza produzida sem um capital adicional, uma vez que a natureza
não necessita de maiores investimentos para produzir mais, mas mais trabalho. O
resultado é a queda da composição-valor do capital e, junto da intensificação da
exploração do trabalho, alta nas taxas de mais-valia e de lucro, a partir da
remuneração do trabalho abaixo de seu valor, ou seja, da superexploração do
trabalho.
É, portanto, nas regiões econômicas inseridas no comércio global que vemos
o aparecimento do trabalho assalariado. Isto pois, embora haja um entendimento
intuitivo de que as formas menos desenvolvidas de produção, como escravidão ou
servidão, atendam aos objetivos de maior exploração, elas apresentam um entrave
intransponível ao capital, já que “a produção capitalista supõe a apropriação direta
da força de trabalho, e não apenas dos produtos do trabalho” (p. 13). A escravidão
permite sim um acúmulo de riqueza inimaginável, entretanto, uma vez que o
escravizado já recebe o mínimo humanamente possível, o “salário” (valor de
subsistência) mínimo se apresenta como uma constante que depende da quantidade
de mão de obra utilizada e, devido a inelasticidade de oferta de mão de obra que
apresenta a partir do século XIX torna evidente o impedimento de infinita supressão
da remuneração do trabalhador escravizado.
A superioridade do capitalismo sobre as demais formas de produção
mercantil, e sua diferença básica em relação a elas, reside em que
aquilo que se transforma em mercadoria não é o trabalhador —
ou seja, o tempo total de existência do trabalhador, com todos
os momentos mortos que este implica desde o ponto de vista da
produção — mas sua força de trabalho, isto é, o tempo de sua
existência que pode ser utilizada para a produção, deixando
para o mesmo trabalhador o cuidado de responsabilizar-se pelo
tempo não produtivo, desde o ponto de vista capitalista. É esta a
razão pela qual, ao se subordinar uma economia escravista ao
mercado capitalista mundial, o aprofundamento da exploração do
escravo é acentuado, já que interessa portanto a seu proprietário
reduzir os tempos mortos para a produção e fazer coincidir o tempo
produtivo com o tempo de existência do trabalhador (p. 14, grifo
meu).
A supressão da reposição de mão de obra escravizada que se deu na metade
do século XIX cria, portanto condições econômicas, políticas e sociais que levam a
reconversão das bases produtivas, com a importação de mão de obra assalariada
europeia e diversas medidas em favor dos grandes proprietários de terras, como a
Lei de Terras e os sistemas de semi-vassalagem por instrumentos de mercado,
como dívidas e monopólios. A complexidade do capital e dos capitais permite que
mesmo que o trabalho em si não tenha sido ainda absorvido pelo capital
(assalariado), outras relações, como as com o capital usurário (como nos barracões
do campo), que permitem uma apropriação pelo capitalista do trabalho excedente ou
mesmo de parte do salário.
O sistema misto de servidão e de trabalho assalariado que se
estabelece no Brasil, ao se desenvolver a economia de exportação
para o mercado mundial, é uma das vias pelas quais a América
Latina chega ao capitalismo (p. 15).
Para compreender efetivamente o capitalismo dependente, é necessário
seguir um caminho dialético que é o mesmo de sua formação histórica, assim,
partimos “da circulação à produção, da vinculação ao mercado mundial ao impacto
que isso acarreta sobre a organização interna do trabalho, para voltar então a
recolocar o problema da circulação” (p. 15-16).
já que só o capital implica as condições de produção do capital, já
que só ele satisfaz essas condições e busca realizá-las, sua
tendência geral é a de formar por todos os lugares as bases da
circulação, os centros produtores desta, e assimilá-las, isto é,
convertê-las em centros de produção virtual ou efetivamente capital
criadores de capital (MARX apud p. 16)
Entretanto, essa formação não é - e não pode ser, mesmo - igual à do capital
industrial e gera formas específicas de circulação, que não neguem a relação sob a
qual está subjugada, isto é, a dependência. Aprofundar no estudo das formas de
circulação permite uma elucidação da reprodução deste sistema, tanto em sua forma
específica dependente quanto na totalidade da economia capitalista mundial.

4. O ciclo do capital na economia dependente

5. O processo de industrialização

6. O novo anel da espiral

7. Post-scriptum

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