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Universidade de Évora

Escola de Saúde e Desenvolvimento Humano


Mestrado em Psicomotricidade

“O menino que brinca às escondidas”


Reflexão sobre uma intervenção em Psicomotricidade

Seminários Clínicos
Professora Dr. Gabriela Almeida

Diana Mendes Ferreira - M48200


O artigo analisado descreve um estudo de caso, de uma criança de 5 anos de idade, o Daniel,
que foi encaminhado para as consultas de psicomotricidade pela educadora, por demonstrar
dificuldades na comunicação, linguagem e desenvolvimento psicomotor.

Na anamnese é referido pela mãe, que era um bebé complicado no que concerne a alimentação e
o sono, teve dificuldades na integração ao infantário, permanecendo em casa com a mãe até aos
4 anos. O Daniel apresenta um comportamento desafiante e opositor, incapacidade de tolerar a
frustração (birras frequentes e recusa em falar, exceto com a mãe), marcada ansiedade de
separação, dificuldades na adaptação e interação em situações sociais, particularmente com
adultos. A mãe apresenta um quadro depressivo e super-protetor, por outro o lado o pai
demonstra distancia e pouco investimento.

Para realizarmos a avaliação psicomotora devemos ter em conta três dimensões: motora e
práxica; preceptivo-cognitiva e psicoafectiva-social, tendo o seu foco nas competências neuro-
motoras, sensoriomotoras, na representação do corpo, na organização espácio-temporal, levando
em consideração as características psicoafectivas do sujeito, através da atitude da relação e da
expressão daquilo que é vivenciado no plano corporal, emocional e relacional (Fonseca, 2010;
Piteri, 2004). Relembrando a influência da corrente psicodinâmica (Martins, 2001), uma vez
que, nesta abordagem o mediador é o corpo psíquico articulado com o corpo somático (Liotard,
2000). Ou seja, o psicomotricista interessa-se pela avaliação do estado de maturação das
habilidades psicomotoras, da integração das diversas funções sensoriais e motoras, e da
expressão motora. A abordagem psicodinâmica da avaliação psicomotora pelo psicomotricista,
ligada à compreensão da organização cerebral em curso, permite compreender a (possível)
origem e a natureza das dificuldades observadas/avaliadas (Vaivre-Douret, 2006).

Uma proposta de avaliação para este caso seria, iniciar com uma entrevista às figuras parentais,
de forma a compreender as principais preocupações e observar a interação entre os pais e a
criança, seguida de uma anamnese para recolher todos os dados adicionais necessários,
posteriormente fazer uso de uma grelha de observação para preencher com os dados da
avaliação psicomotora informal recorrendo a uma descrição qualitativa da observação das
competências psicomotoras e do jogo, na criança. Na avaliação psicomotora a observação é um
ponto importante, uma vez que esta se centra numa interação e reciprocidade entre o observador
e o observando (a criança) (Fonseca, 2007). A observação psicomotora procura definir a
personalidade psicomotora da criança, relacionando o produto motor observado com os aspetos
objetivos e subjetivos inerentes (Costa 2008), pretendendo verificar: (1)a adaptação da criança
às situações, (2)se o nível de execução apresenta dificuldades, (3)se a velocidade de execução
altera a adaptação emotiva posta em jogo, (4)se a fadiga altera a execução, (5)o ajustamento às
situações propostas (e.g. ritmo, memorização), (6)se a inibição impede o desenrolar da ação,
(7)se há alteração profunda da atividade espontânea, (8)se existe hesitação na lateralização e (9)
se existem estereotipias e tiques, entre outros. Com base nestes dados é possível traçar um perfil
de dificuldades, reorganizar e adaptar a intervenção psicomotora à criança (Fonseca, 1995).

Uma vez que o Daniel se recusa a colaborar na avaliação formal, podem ser utilizadas
avaliações complementares, de forma a esclarecer questões psicoafetivas e sociais, que podem
ser compreendidas através de questionários aos pais e professores, tais como o Questionário de
Capacidades e Dificuldades (SDQ-Por) (Fleitlich, B., Loureiro, M., Fonseca, A., & Gaspar, M.
F. 2005), ou através do Behaviour Assessment Scale for Children, Reynolds e Kamphaus,
BASC (1992). Após a avaliação, os técnicos envolvidos no processo de avaliação da criança
reúnem-se para analisar os resultados e elaborarem o relatório. A entrega do relatório, a
discussão do diagnóstico, a explicação das provas realizadas e dos resultados, bem como as
estratégias e recursos que serão fundamentais para dar resposta às necessidades da criança, é
feita numa reunião agendada com os pais. Neste caso os pais do Daniel, beneficiariam se eles
próprios fossem acompanhados em consultas de terapia familiar ou psicologia, devido à
condição depressiva e super-protetora demonstrada pela mãe. Em relação ao espaço da
avaliação, esta decorre no gabinete da técnica responsável pela mesma, estando os pais
presentes na maioria dos casos, para proporcionar uma maior segurança à criança. No entanto,
existem casos em que os pais referem que a criança colabora menos ou se sente mais agitada
com a sua presença, sendo assim benéfico que a criança seja avaliada sozinha.

Relativamente à avaliação psicométrica, esta permite traçar o perfil de desenvolvimento da


criança, com base no seu desempenho, na realização de um conjunto de tarefas, tendo por
referência os valores médios das crianças da sua faixa etária (Pinto, 2009). Neste caso, à
medida que a criança fosse desenvolvendo relação com o terapeuta, poderiam ser aplicadas
baterias como Bateria Psicomotora de Vítor da Fonseca – BPM (2010), a Bateria D’Évaluations
des Fonctions Neuro-Psychomotrices de L’enfant (NP-MOT) (Vaivre-Douret, 2006) ou devido
à sua praticidade e simples aplicabilidade, a Movement Assessment Battery for Children –
Second Edition (MABC-2) (Henderson, Sugden & Barnett, 2007) que avalia a competência
motora global, através de três domínios: (1) destreza manual, (2) atirar e agarrar e (3) equilíbrio.

Contudo para o psicomotricista a avaliação puramente psicométrica é uma visão redutora da


criança (Albaret, 2009; Fonseca, 2006; Pitteri, 2004 e Saint-Cast, 2004), submissa a um
enquadramento numérico, num espetro de valores normativos. Por esta razão, considera-se que
a avaliação psicomotora deve conter duas componentes: uma componente subjetiva, que tem
como foco principal o comportamento revelado pela criança durante o período de avaliação, e
revelador da sua vida interna, mas também uma objetiva e que permita ao técnico compreender
em que estádio de desenvolvimento se encontra a criança (Albaret, 2009; Fonseca, 2007; Pitteri,
2004; Saint-Cast, 2004). A riqueza de informação recolhida através do comportamento da
criança durante a avaliação, no âmbito da qualidade e velocidade de desempenho, permite ao
avaliador a contextualização das respostas da criança (Vaivre-Douret, 2006). Por outro lado, e
com base em testes validados (Morais, Santos e Lebre, 2016), além dos resultados numéricos
existe, um registo descritivo da qualidade de desempenho da criança durante a prova (Albaret,
2009; Saint-Cas, 2004), revelando assim uma preocupação com a criança na sua globalidade e
não apenas com enfoque numa dificuldade específica (Pitteri, 2004; Saint-Cas, 2004). A
definição dos perfis psicomotores validados atuará como guia orientador para a intervenção,
contribuindo para uma justa implementação dos planos educativos e terapêuticos (Fonseca,
2010; Vraivre- Douret, 2006). A avaliação psicomotora rompe com as normas clássicas das
avaliações neurológicas e psicológicas tradicionais, uma vez que decorre da interação ativa
conjunta e intencional entre o observador e o observado, sendo este considerado como um ser
único, global, capaz de modificabilidade e adaptabilidade (Fonseca 2007). Assim, o grande
contributo da avaliação psicomotora no conhecimento global da criança, não passa por conhecer
apenas o produto motor final, mas sim a “qualidade dos processos psíquicos que estão na
origem da sua integração, programação, elaboração e regulação” (Fonseca, 2007, p.6). A
criação de perfis psicomotores é útil para o psicomotricista na medida em que possibilita a
identificação e enquadramento da criança, face a um quadro clínico e semiológico, que melhor
responde às suas características permitindo uma melhor despistagem de diagnósticos
diferenciais e comorbilidades; e transmite informação pertinente para a definição do momento
atual de desenvolvimento da criança com referência a critério e à norma (Albaret, 2009; Pitteri,
2004).

Referências
Albaret, J. (2009). Place de l´examen psychomoteur dans l ´évaluation neuropsychologique de
l’enfant. Evolutions Psychomotrices – Dossier Evaluation, 21 (83), 32-40

Costa, J. (2008). Um olhar para a criança: psicomotricidade relacional. Lisboa: Trilhos Editora.

Fleitlich, B., Loureiro, M., Fonseca, A., & Gaspar, M. F. (2005). Questionário de Capacidades e
de Dificuldades (SDQ-Por) [Strengths and DifficultiesQuestionnaire—Portuguese version].
https://portefolio-mpap.webnode.pt/escala-sdq/

Fonseca, V. (2007). Manual de Observação Psicomotora: significação psiconeurológica dos


fatores psicomotores (3ª Ed.). Lisboa: Âncora Editora.

Fonseca, V. (2006). Terapia psicomotora: estudo de casos (5ª Ed.). Lisboa: Âncora Editora.

Fonseca, V. (1995). Manual de Observação psicomotora: Significação psiconeurológica dos


fatores psicomotores. Porto Alegre: Artes Médicas.

Fonseca, V. (2008) Dificuldades de aprendizagem: abordagem neuropsicológica e


psicopedagógica ao insucesso escolar. Lisboa: Âncora Editora

Henderson, S., Sugden, D., & Barnett, A. (2007). Movement Assessment Battery for Children -
2. London: Pearson.

Liotard, D. (2000). Réflexions actuelles sur la spécificité du soin psychomoteur. In C. Potel


(Ed.), Psychomotricité: Entre Théorie et Pratique (1st ed.). In Press Éditions.

Martins, R. (2001). Questões sobre a Identidade da Psicomotricidade: as práticas entre o


instrumental e o relacional. In V. Fonseca & R. Martins (Eds.). Progressos em Psicomotricidade
(pp. 29-40). Lisboa: Edições FMH.

Pinto, M. (2009). Vigilância do Desenvolvimento Psicomotor e Sinais de Alerta. Revista


Portuguesa de Clínica Geral. Dossier Neurodesenvolvimento Infantil.25(6), Pp.677-687

Pitteri, F. (2004). O exame Psicomotor. A psicomotricidade, 3, 47-52.

Vaivre-Douret, L. (2006). NP-MOT – Batterie d´evaluations des Fonctions Neuro-


Psychomotrices d´enfant, 4ans à 8 ans 6 mois – Manuel. Paris: ECPA – Les Editions du Centre
de Psychologie Appliquée

Saint-Cast, A. (2004). Modalidades de avaliação do perfil psicomotor da criança. A


Psicomotricidade, 4: 7-21

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