d e R e c e p ç ã o / R e l a ç ã o TTee a t r a l
C lóvis Massa
A
pesar do considerável avanço efetuado nos poderia propiciar à prática com a instauração de
últimos tempos pelos estudos teatrais, as novos paradigmas cênicos, como a teoria da re-
perspectivas nos escritos sobre recepção cepção de Hans-Robert Jauss pretendeu que,
permanecem mais defendidas do que de- com o tempo, a história da literatura interferis-
senvolvidas. Após a reviravolta epistemo- se na experiência estética do leitor.
lógica que reverteu a perspectiva tradicional, em Como havia ocorrido com a historiogra-
torno da produção, certos ajustes conceituais se fia literária uma década antes, ainda nos anos
faziam necessários. Ao menos no campo teatral, oitenta os estudos teatrais passaram a enfocar os
recepção e concretização, enquanto termos em- processos de recepção. Não demorou muito
pregados pelas teorias da recepção mostraram- para a semiótica eleger o texto espetacular como
se inapropriados para os princípios de origem seu principal objeto de estudo, em detrimento
aos quais se vinculavam. O vocábulo recepção, da ultrapassada visão de espetáculo, que nunca
fortemente marcado pela teoria da informação, dera conta da atividade do público. Posterior-
parecia contradizer a atividade produtiva do es- mente, a noção abstrata e teórica de um espec-
pectador, a concepção de que, em seu processo tador idealmente pensado foi substituída por
de apreensão, ele não apenas “recebe”, mas é co- um espectador de carne e osso.
responsável pelos sentidos da obra. Concretiza- Em busca de uma teoria específica da re-
ção, por sua vez, deixou simplesmente de cepção teatral, outra mudança de rumo se tor-
corresponder ao processo de interpretação do nou urgente: ainda distante das investigações
leitor, e precisou ser diferenciada da concretiza- empíricas sobre espectadores vislumbrarem con-
ção cênica, realizada pelos produtores do espe- clusões relevantes, as particularidades da arte
táculo. Em busca de legitimação, as teorias de teatral exigiram novo objeto de análise, desta vez
recepção teatral esforçaram-se em explicar seu concebido a partir da estética da produção e da
viés de oposição às práticas vigentes, porém recepção. Em decorrência disso, passou a deli-
nunca corrigiram essa inadequação. Nem se afir- mitar-se pela relação entre ator e espectador,
maram como instância pragmática, com a fina- uma das várias relações teatrais compreendidas
lidade de interagir diretamente na atividade re- dentro do processo produtivo-receptivo. Num
ceptiva, através do impacto que a reflexão momento em que “quase tudo está para ser
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feito”, como diz De Marinis (2005, p. 123), que rências ou esquema mental que um indivíduo
efeito ainda se faz sentir nessa reviravolta prag- emprega em seu processo de leitura, para inves-
mático-conceitual nos estudos sobre recepção? tigar seus efeitos sobre o público. Em relação à
Nas últimas décadas, a idéia de público acepção de Ingarden – a teoria de Wolfgang Iser
enquanto entidade sociológica abstrata e ho- determinou maior liberdade à atividade de pre-
mogênea cedeu lugar à noção antropológica de enchimento de lacunas no processo de comu-
espectador. Entretanto, os lineamentos desta nicação próprio à literatura, visto que a concep-
nova teatrologia devem pressupor a experiência ção do teórico polonês considerava haver uma
estética não apenas como ‘trabalho do espec- maneira correta de apreender os sentidos
tador’, mas considerá-la em seu caráter coletivo subjacentes da obra, concepção revista pela teo-
e plural. ria do efeito de Iser.
Sem querer simplificar a questão, cons- Ainda que a hermenêutica literária tenha
tata-se a constante redefinição conceitual acer- aberto caminho para a compreensão do caráter
ca do campo epistemológico, para melhor ade- de co-criação do espectador, a noção abstrata e
quação aos propósitos pragmáticos. Na falta de teórica do horizonte de expectativas requereu
um corpus conceitual ao mesmo tempo abran- maior definição pelos estudos teatrais. Pelo viés
gente e específico que atenda plenamente aos da estética de produção e da recepção teatral,
estudos de recepção, conceitos como concre- Patrice Pavis vinculou o circuito de concretiza-
tização e experiência estética adquirem novos ção à dinâmica cultural em que o trabalho do
sentidos conforme a tônica da abordagem. espectador se realiza, ou seja, ao seu contexto
Teatralidade, acontecimento e convívio são social. Para tanto, propôs a idéia de metatexto,
apropriados com a finalidade de solucionar essa ou seja, o conjunto de textos conhecidos pelo
carência. Para o esclarecimento desse ponto de espectador ou pelo encenador e utilizados por
vista, cabe distinguir os estudos de recepção em ambos para a leitura do texto. Para ele, a con-
dois tipos: um diretamente vinculado à estética frontação entre o metatexto (ou discurso) do
da recepção, com a intenção de examinar a diretor e o metatexto do espectador – nem sem-
acolhida de certas obras por um grupo num de- pre coincidentes – forma a concretização da en-
terminado período; outro, mais desenvolvido cenação. Por meio do desvio entre texto e cena
pela semiótica teatral, destinado a investigar (leitura do contexto social de ontem e leitura
os processos mentais, intelectuais e emotivos do contexto de hoje), a encenação dispõe o
do espectador. texto em busca de enunciadores cênicos que,
No primeiro deles, a teoria da concre- reunidos pela encenação, produzem um texto
tização teve forte influência. A fim de abando- espetacular global, dentro do qual o texto dra-
nar o caráter imanente do sentido da obra, a mático adquire sentido particular: “Mais do que
Estética da Recepção resgatou o conceito de um texto (cênico) junto ao texto dramático, o
concretização de Roman Ingarden (reinterpre- metatexto é o que organiza, desde o interior, a
tado pelo estruturalismo da Escola de Praga, es- concretização cênica, o que não está junto ao
pecialmente por Mukarovsky). A retomada da texto dramático, mas, de alguma forma, em seu
concretização punha fim à intratextualidade, ao interior, como resultante do circuito entre sig-
substituir a imutabilidade do texto pela histori- nificante, contexto social e significado do texto”
cidade. Enquanto atividade de preenchimento (Pavis, 1998, p. 100).
de lacunas ou vazios de um texto por parte do Ao colocar o texto em situação de enun-
leitor, o conceito de concretização possibilitou ciação num outro contexto social, a concretiza-
aos teóricos da Escola de Constança compreen- ção assimilou o intercâmbio entre texto dramá-
der uma obra a partir de sua interação com o tico e contexto social para justificar infinitas
horizonte de expectativas – o sistema de refe- leituras ao espectador, como se estivesse numa
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galeria de espelhos cujo guardião teria perdido tral deve ser “entendida como o conjunto de
a chave de saída ao sair, num movimento jamais tudo aquilo (atitudes, capacidades, conheci-
interrompido de re-significação. Sua aproxima- mentos, motivações) que coloca o espectador
ção da relação teatral fundamenta-se em torno em condições de compreender (no sentido mais
de círculos concêntricos, níveis que procuram amplo do termo) uma representação teatral”
cercá-la mais de perto: recepção, leitura, herme- (De Marinis, 1997, p. 79).
nêutica e, enfim, perspectiva. Neste último ní- Para se aproximar do espectador real, a
vel, traz como proposição de análise o modo semiótica cognitiva da relação teatral preconi-
como a obra se apresenta ao espectador, com zada por De Marinis considera os níveis pelos
uma multiplicidade de pontos de vista e de ins- quais o espectador passa durante – e após – a
tâncias contraditórias. Pavis chega a considerar representação teatral como subprocessos que
a encenação como uma leitura em público, já compõem o ato receptivo no teatro. No nível
que o texto dramático não tem um leitor indi- da percepção, talvez o mais específico dos tra-
vidual, e sim uma leitura possível e coletiva, pro- balhos do espectador e ainda à mercê de ser mais
posta pela encenação. bem compreendido, ocorrem as operações de
Estudos posteriores de Patrice Pavis se- focalização da atenção do espectador, em que se
guem o mesmo enfoque produtivo-receptivo e manifestam as faculdades sensoriais do sujeito
se mostram com mais possibilidade de aplica- receptor. Com enfoque semelhante ao estudo
ção em estudos empíricos, como é o caso da de André Helbo sobre percepção (Helbo, 1985,
apreensão vetorial como meio metodológico, p. 44), uma de suas hipóteses lida com a ma-
mnemotécnico e dramatúrgico do pesquisador neira como ocorre o trabalho de focalização,
estabelecer ramais de signos na análise de espe- desfocalização e refocalização do espectador,
táculo. Outros trabalhos relevantes, como os de “através de uma hierarquização mais ou menos
Anne Ubersfeld e Marco De Marinis, também explícita de textos parciais que o compõem (tex-
procuraram o restabelecimento da dialética to verbal, gestual, cenografia, música etc.).”
entre produção e recepção e chegam mesmo (De Marinis, 2005, p. 97) Além da percepção,
a prescindir da primazia do texto dramático. pouco se sabe sobre os outros níveis da ativida-
Esse recorte do circuito de concretização ilustra de receptiva: interpretação, reações cognitivas e
como, partindo de um conceito desenvolvido emotivas, avaliação, memorização e evocação.
a partir do Círculo de Praga, os estudos tea- O modelo de percepção proposto por
trais precisam constantemente atender a essa Marco De Marinis parte da teoria do especta-
reformulação. Neste caso, por meio do desdo- dor-implícito para entender como um espetá-
bramento do conceito de concretização, para culo deixa margens de indeterminação que são
respeitar a particularidade da concretização cê- articuladas pelo ponto de vista do espectador.
nica realizada pela encenação, papel em que o Para examinar as operações que o espectador
espectador está ausente, ao menos num primei- realiza no teatro, a partir de uma base coerente
ro momento. de dados, suas noções necessitariam se integrar
O segundo tipo de pesquisa sobre recep- a uma teoria dos modelos de espectadores, ain-
ção teatral, a que investiga os processos men- da por se realizar. Curiosamente, a psicologia
tais, intelectuais e emotivos do espectador, pro- cognitiva a que recorre enfatiza o papel indivi-
cura analisar as operações do espectador a partir dual do espectador e parece contradizer os pa-
de uma base coerente de dados experimentais. râmetros defendidos por ele mesmo a respeito
Contudo, apesar da ênfase dos estudos na ativi- da relação teatral.
dade do espectador, a carência metodológica das Os estudos baseados na Fenomenologia
investigações é verificada, segundo De Marinis, da Experiência Estética desde o seu início bus-
pela incompreensão de que a competência tea- caram oferecer um conjunto de estratégias para
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RESUMO: Por meio de breve recorte histórico-conceitual das teorias de recepção, o artigo reflete
sobre a constante necessidade de redefinição sofrida pelos estudos de recepção, e sobre como a
reviravolta epistemológica ainda exige a ampliação de seus conceitos, a fim de suprir a carência
metodológica em investigações empíricas que abordam a relação teatral.
PALAVRAS-CHAVE: Teatro, estudos teatrais, teorias da recepção, recepção teatral, relação teatral.
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