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Os gregos não inventaram a filosofia

1. Renato Noguera

2 de julho de 2016

Sem dúvida, as investigações do nosso grupo de pesquisa têm motivado muitas objeções. Os
estudos que realizamos sobre filosofia africana não são inéditos; mas o aumento da circulação de
material acadêmico no Brasil que problematiza o nascimento da filosofia na Grécia, trazendo à luz
fontes africanas mais antigas que as ocidentais, tem sido motivo de críticas variadas. Objeções que
alegam: “filosofia” é um termo grego; outras insistem que só na Grécia Antiga o pensamento
ganhou tom laico. Ou ainda, perguntam por que deveríamos “impor” o registro filosófico a outras
formas de pensamento de povos da antiguidade fora do mundo helênico. Em resumo, tais questões
têm sido acompanhadas de argumentos diversos que dizem algo como: a filosofia nasceu na Grécia,
desenvolveu-se dentro da ambiência territorial europeia como uma aventura ocidental do
pensamento humano. Não cabe destrinchar cada uma das objeções, tampouco teríamos condições de
apresentar o vasto elenco de tréplicas em favor da produção filosófica africana desde George James
com Legado roubado, passando por Cheikh Diop, Theóphile Obenga, Molefi Asante, até A filosofia
antes dos gregos, de José Nunes Carreira. Todos os autores advogam uma hipótese comum: a
filosofia não nasceu grega. A abordagem que defendemos denuncia uma grave confusão. A questão
não é onde nasceu a filosofia. Com base em fontes históricas diversas, os textos egípcios são
documentos africanos mais antigos do que os escritos gregos, que são referências da cultura
ocidental. Alguns expoentes da egiptologia, seja Jean-François Champollion (1790-1832), Cheikh
Anta Diop (1923-1986), Theóphile Obenga (1936-) ou Jan Assmann (1938-) concordam que os
textos egípcios são mais antigos do que os gregos. A polêmica está no caráter filosófico dos escritos
egípcios. Nós estamos de acordo com Diop e Obenga – o material egípcio é filosófico.
A filosofia de Ptahhotep
Em A filosofia antes dos gregos, Carreira menciona o Egito como uma região rica em produção
filosófica. Ptahhotep foi alto funcionário do Faraó Isesi da 5ª Dinastia do Reino Antigo e sua função
era chamada de rekhet, traduzida por Obenga como “filosofia”. Identificamos nos ensinamentos de
Ptahhotep recomendações para o debate, sugerindo uma conduta adequada numa contenda.
Ptahhotep diz que em relação ao contendor podem existir três tipos de pessoas. 1ª) As que têm uma
balança mais precisa, “superiores”; 2ª) As que têm balança tão precisa quanto a nossa, “iguais”; 3ª)
As que têm balança menos precisa, “inferiores”. O filósofo não menciona diretamente a deusa
Maat; mas ela aparece de modo indireto à medida que a balança é um dos seus principais símbolos.
“Maat” circunscreve várias ideias: “harmonia”, “verdade”, “ordem”. A sua balança é o instrumento
que mede a palavra. O que está em jogo na contenda é o uso adequado da balança para mensurar a
verdade. Por isso, a arte da rekhet é inconclusa; sempre podemos encontrar um contendor com
balança mais precisa. Os limites da rekhet “não podem ser alcançados, e a destreza de nenhum
artista é perfeita”. (Veja o texto  “Ensinamentos de Ptahhotep”, publicado no livro Escrito para a
eternidade: a literatura no Egito faraônico, de Emanuel Araujo. Brasília/São Paulo, 2000.) Nossa
defesa está a favor da atitude filosófica de não recusar uma tese sem o seu devido exame; por isso, a
recomendação de ler Ptahhotep.
A certidão de nascimento da filosofia
Propor uma agenda de leitura dos textos africanos antigos não sinaliza um interesse em substituir a
Grécia pelo Egito, fazendo da cultura africana o paradigma civilizatório na antiguidade. Pelo
contrário, o esforço por definir um “marco zero” para a filosofia vale-se de uma interpretação entre
outras – o que não pode ser um tabu dogmático. A título de analogia, o filósofo inglês Michael
Hardt interpela a filosofia de Hegel por meio de Nietzsche, e nos diz que “a dialética é um falso
problema”(Em Gilles Deleuze: um aprendizado filosófico, na tradução de Sueli Cavendish. São
Paulo, 1996). Algumas abordagens filosóficas usam o modelo dialético como indispensável para a
filosofia da história, enquanto outras a recusam plenamente. Do mesmo modo, defendemos que o
nascimento da filosofia é um falso problema. Não se trata de afirmar que a filosofia nasceu no Egito
e substituir Tales de Mileto ou Platão por Ptahhotep. Não pedimos a retirada da “certidão grega da
filosofia” dos manuais, mas sim que ela não venha sozinha, sem o registro de que existem posições
a favor do nascimento africano. Os manuais de filosofia precisam incluir versões diversas sobre
suas origens, reconhecendo a legitimidade de todas, assim como não ignoramos perspectivas
diferentes em várias questões filosóficas. É perigoso e reducionista para uma boa formação
filosófica limitar toda a filosofia a poucas tradições. Com efeito, o problema não seria estritamente
teórico, mas político (e obviamente filosófico). O projeto de dominação do Ocidente tem um
aspecto epistemológico que pretende calar qualquer filosofia que tenha sotaques diferentes. Afinal,
a filosofia foi “eleita” como suprassumo da cultura ocidental.
Renato Noguera é doutor em Filosofia pela UFRJ, professor da UFRJ e coordenador do grupo de
pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções.

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