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Vida de meditante: superando os obstáculos

Qua, 31 de Dezembro de 2008 00:00 Lama Padma Samten   

O caminho do bodisatva

Ensinamento concedido em setembro de 2000 no CEBB Caminho do Meio

Neste texto, utilizando a estrutura dos oito passos do Nobre Caminho do Buda, abordarei
obstáculos que surgem aos praticantes de meditação. Não só os que se manifestam durante a
prática formal sentada, mas também os que surgem na vida cotidiana. Assim temos a agitação
durante a prática formal, a grande diferença que parece existir entre os estados meditativos e
as condições mentais necessárias à vida no mundo, e, também, uma aparente inadaptação dos
meditantes a enfrentar um mundo externo competitivo e hostil. Inicialmente examinarei a
questão da estabilidade da mente durante a prática formal, sem o que a meditação não é
possível.

A questão da estabilidade da mente

Quando nós examinamos o ensinamento do Buda, percebemos que ele fala sobre paz,
paciência, serenidade, a kshanti paramita. Quando examinamos a estrutura do pensamento do
Buda, percebemos que esse passo diz respeito a liberar o praticante do domínio da cobra e do
galo. A cobra é a raiva, a aversão, o ódio, o medo, e o galo é a intranqüilidade, a agitação, a
atividade incessante, a aflição. Estes são os dois elementos que perturbam a serenidade do
praticante. Se estes elementos simbolizados pela cobra e pelo galo estiverem presentes,
inevitavelmente a paz estará perdida e a prática de meditação formal será inócua.

Quando perdemos a serenidade isso não se mostra apenas no cotidiano. Mesmo que sentemos
para praticar meditação nossa mente vai girar. Experimentaremos aflição ainda que sentados
na postura formal e em silêncio. Sem a serenidade, imagens surgem em nossa mente, temos
impulsos de ação, surgem muitos diferentes pensamentos e prioridades.
Surgindo estas prioridades, o praticante pode cogitar que lhe falta algum ensinamento especial
para que seja capaz de “controlar” sua mente. Com essa expectativa o praticante pode até
desanimar, imaginar que sua prática, sem falar na vida cotidiana, estão perdidas e que nunca
vencerá esse obstáculo. Há praticantes que sustentam seu esforço por longos anos, sem
progresso visível, obstaculizados que estão por fatores sutis.

Outros praticantes podem substituir a agitação e a raiva pela sonolência e indolência. Em lugar
da agitação, surge outro estado que também é simbolizado pela ação do galo, mas que nesse
caso conecta-se com a qualidade da obtusidade mental. Dominados pela raiva, pela agitação,
ou ainda pela depressão, os praticantes podem desenvolver esperança numa direção errada —
podem realmente imaginar que falta alguma técnica específica em sua meditação. Podem vir a
ansiar por alguma habilidade especial que aparentemente ainda não esteja presente e que seja
capaz de dissipar estes obstáculos durante a própria prática formal.

Serenidade e meditação

É necessário desenvolver uma perspectiva abrangente dos ensinamentos. Quando Buda dá


instruções sobre meditação formal, em geral estes ensinamentos correspondem à sexta etapa
do nobre caminho óctuplo. Esta etapa é precedida pelos ensinamentos que dizem respeito à
prática da serenidade e da paciência, que por si só são parte das instruções do Buda com
relação a forma de viver e praticar durante a própria vida cotidiana, a quinta etapa. Se não
houver uma compreensão adequada deste item de serenidade e paciência, será muito difícil
progredir na meditação formal sentada. Portanto, segundo o ensinamento do Buda, fica claro
que esta etapa, a que nos capacita a vencer a agitação da mente durante a meditação é, na
verdade, uma atitude básica. É para ser praticada na própria vida cotidiana, antes mesmo de
sentar na nobre postura silenciosa de sete pontos ensinada pelo Buda. Em verdade é um pré-
requisito para ela.

Quando o Buda fala sobre esta etapa da paciência e da serenidade no “Sutra do Diamante”, ele
enfoca o assunto não no sentido de como a paciência é gerada, mas no reconhecimento de que
nossa condição básica é de paciência e serenidade. Ou seja a serenidade e a paciência são vistas
como atributos naturais da mente e não algo construído por hábito, através de um
treinamento, por exemplo.
Esta condição básica é perdida pela ação dos dois animais, a cobra e o galo, que, por sua vez,
são potencializados por um terceiro animal, o javali. Este simboliza nossas fixações, nosso auto-
interesse.

Portanto, quando procuramos a serenidade devemos pensar em como remover estas fixações,
este é o ponto importante. A mente oscilando durante a prática é um obstáculo básico que está
ligado a ação do javali e, por conseqüência, dos outros dois animais. Ele se mostra como nossas
fixações, e dessa forma surge dentro de nossa meditação como flutuação da mente, das
energias e emoções na forma do galo e da cobra.

Operando segundo fixações, o javali se estrutura na forma de guardiões de nossas atividades


cotidianas. Devido a estas fixações surgem ganhos e perdas potenciais. Então criamos em nossa
própria mente como que servos, guardas, assessores: partes nossas que colocamos a vigiar
todas estas atividades e fixações que temos. Nossa mente permanece operando sob condições
específicas e fornecendo impulsos de ação, acionando campainhas de alarme quando certos
eventos ou desequilíbrios ocorrem. Quando eventos ameaçadores são localizados, é como se já
existisse uma autorização prévia para esses assessores invadirem nosso silêncio e nos
fornecerem relatórios constantes.

Quando temos a mente agitada em meio a meditação, podemos observar que nenhum dos
conteúdos da agitação mental é realmente supérfluo sob o ponto de vista dos valores o
objetivos de nossa vida cotidiana. Eles dizem respeito a atividades nossas, áreas que visitamos
regularmente, seja através de pensamentos, emoções ou identidades que surgem em meio a
condições. Por isto é essencial purificarmos nossas motivações usuais da vida, reintroduzindo o
sentido profundo da moralidade.

O primeiro passo do nobre caminho

O primeiro passo do nobre caminho é realmente básico, nenhum praticante que deseje sucesso
pode passar por cima disso. Ele diz respeito a motivação correta frente à vida e ao caminho
espiritual, ou seja, o correto propósito. Ele pode ser melhor entendido através da explicação de
Sua Santidade o Dalai Lama sobre a motivação básica dos seres sencientes em geral, que é a
liberação do sofrimento e a experiência de felicidade. Sua Santidade explica de uma maneira
muito simples e poderosa: “se você obtém felicidade na dependência de fatores instáveis,
impermanentes, se busca sua liberação do sofrimento através de fatores flutuantes, a agitação
certamente nunca cessará.” Com refúgios frágeis, teremos que nos manter incessantemente
em movimento, como um equilibrista que não pode parar um minuto de mover-se
compensando os desequilíbrios.

O verdadeiro refúgio não é algo que surge externamente, separado de nossa natureza última.
Também o correto propósito não é um movimento que surja como uma recomendação ou
ordem de algum “ser superior”. A princípio pode nos parecer que surgirá alguém que fornecerá
um código a que teremos que nos adequar, mas uma das peculiaridades do pensamento
budista é exatamente a reintrodução da moral e da ética como uma forma de liberdade nossa,
não por uma adaptação a uma ordem externa. Em nossa cultura tradicional sentimos
freqüentemente a ética e a moral como se fossem imposições externas sobre nós, e muitas
vezes surge um desconforto nesse processo. Portanto devemos observar esse aspecto precioso
do Darma, o fato de que realmente não impõe uma moral ou ética externas.

A moral e a ética ressurgem devido ao nosso objetivo fundamental que é a liberdade e o


afastamento do sofrimento. Se desejamos esse resultado, temos um referencial segundo o qual
podemos raciocinar. A conclusão desse raciocínio nos indica a necessidade de repousarmos sob
fontes seguras de refúgio. Essas fontes seguras de refúgio, no caso do budismo, se traduzem
como a natureza da liberdade, a natureza da criatividade e a natureza da compaixão. São como
que três dimensões que representam a natureza última da mente, a natureza final não-
construída, além de espaço-tempo, nome e forma, vida e morte. Essas três palavras parecem
ter um sentido convencional, mas isso é um problema da nossa linguagem. Os meditantes, na
medida que aprofundam sua compreensão, reconhecem o aspecto ilimitado presente nessas
três palavras, e percebem sua unidade inerente.

Dessa forma, se nos fixamos em fatores transitórios, inevitavelmente vamos oscilar em meio a
condições flutuantes. Por outro lado, se através de um propósito claro de suas mentes,
repousarmos sob aquilo que não se move, sob a natureza última, então repousaremos sob a
liberdade correspondente. E com isso atingiremos a realização do primeiro passo do nobre
caminho.

Evitando as ações não-virtuosas


Atingindo essa realização, os três outros seguirão de forma natural. Em corpo, fala e mente não
cometeremos ações de matar, ou ações de roubar, ou conduta sexual que venha a trazer
sofrimento a nós e outros seres, tampouco mentiremos, ou agrediremos verbalmente, ou
promoveremos discórdia, ou ainda falaremos inutilmente. Tampouco daremos ensinamentos
heréticos, ou nos vincularemos a um processo de carência, ou desenvolveremos aversão, raiva,
ódio e medo. Assim contamos dez “ações não-virtuosas” que os praticantes evitam. Eles as
evitam de forma natural, espontânea, ancorados pelo correto propósito desenvolvido no
primeiro dos oito passos do nobre caminho. Esta é uma prática sem esforço, estes três passos
adicionais surgem como controle de qualidade de nossa motivação, ou seja, do nosso correto
propósito.

Observando isso percebemos o efeito poderoso desses quatro primeiros passos. Eles são os
responsáveis pela estabilidade que venha a surgir em nossa mente durante a prática formal. Se
temos um reto propósito, naturalmente evitaremos as dez não-virtudes, e praticaremos as dez
virtudes correspondentes, e rapidamente apresentaremos um comportamento sereno tanto na
vida cotidiana quanto ao sentar para a prática formal. E não há nisso nenhum tipo de repressão
ou imposição.

Apesar disso, quando os praticantes percebem isto, vêem que mesmo que o objetivo inicial seja
perseguido, ou seja, que busquem efetivamente o correto propósito e que evitem as dez ações
não-virtuosas, ainda assim, inexplicavelmente, surgem eventualmente os impulsos dessas
ações, em corpo, fala e mente. A mente, mesmo que entenda quão impróprio seria agir dessa
ou daquela maneira, ainda segue manifestando impulsos indesejáveis, e a sua prática de
meditação é invadida pela agitação. Dessa forma são necessários ensinamentos adicionais.

Estes ensinamentos correspondem a uma transição importantíssima. Até esse momento, ao


evitar as dez ações não-virtuosas e praticar as dez ações virtuosas, e ao manifestar o corrreto
propósito, estes ensinamentos, porém, ainda dizem respeito a um certo auto-interesse. Ainda
há alguém que ouve o ensinamento com um desejo pessoal de liberação do sofrimento. Mesmo
que exista grande mérito, curiosamente, o ser que segue esse ensinamento é de fato um javali,
tem ainda a motivação limitada. Este ser pode estar sentado com as pernas cruzadas como um
Buda, mas é necessário que a motivação de auto-interesse seja transcendida.

A quinta etapa
Pela compaixão dos Budas e Bodisatvas, surge, então, o ensinamento correspondente à quinta
etapa do nobre caminho do Buda, cuja descrição é o cerne deste texto. No zen isto é
simbolizado pela afirmação de mestre Dogen "quando sentamos em meditação, praticamos
inseparáveis de todos os seres". Isso soa como um koan: os seres parecem separados,
enquanto estamos sentados na sala de meditação eles estão fazendo várias coisas por todos os
lados, então o que significa essa inseparatividade? Como solucionar isto?

Os grandes mestres também afirmam que se nossa prática de meditação é uma forma de
lucidez diferente da lucidez do período que a precede e do período que a sucede, isto é um
problema... A prática não pode ser dividida em três períodos de tempo. Devemos entender que
antes, durante e depois da prática de meditação nossa mente é inseparável da mente de todos
os seres. Enfim, não há diferença entre os estados de meditação formal e os estados mentais de
lucidez da vida cotidiana.

Erroneamente muitos praticantes apenas mantém a aparência externa da prática no período


que a sucede. Levantam e caminham em silêncio com o olho parado sem piscar, com uma cara
“de praticante”. E assim fica óbvio que durante a prática de meditação eles também não
estiveram em contato com todos os seres. Quando levantam e caminham, a prática parece
resumir-se na experiência de não-contato com os seres. Esta seria a prática de um javali
específico, mas não a verdadeira prática de meditação.

O quinto passo no nobre caminho é o antídoto efetivo para os dois problemas citados no
princípio: dificuldades econômicas, a inadaptação que muitos praticantes sentem com relação à
vida cotidiana e a conseqüente agitação durante a meditação.

Essa experiência também é simbolizada pela expressão “abandonar corpo e mente”. Com isso
queremos dizer que abandonamos todo o auto-interesse. Esta é a grande morte, a morte do
javali, o renascimento da liberdade. Ainda assim essas expressões seguem como desafios, como
koans. No quinto passo no nobre caminho podemos tentar penetrar nessa prática.

Considero algo extremamente revelador podermos nos associar energeticamente com os


outros seres, ter uma experiência de brilho, não apenas motivados por um auto-interesse, mas
motivados por uma ação mental que é mais ampla e inclui a compreensão da situação dos
outros no próprio contexto em que se encontram. Talvez a palavra “compreensão” não seja
muito exata. Se existe alguém que compreende algo, ainda existe um objeto da mente. Me
refiro de fato à circunstância na qual a pessoa faz sua mente operar sob as condições a que
outro ser está submetido. A pessoa desenvolve um fluxo mental e energético, e
consequentemente um fluxo de emoções, na inseparatividade com o outro.

Compaixão

Isto pode parecer muito complicado, mas esta capacidade todos temos. Um exemplo é o que
acontece quando vamos ao cinema. Ainda que os personagens sejam fictícios, muitas vezes
operamos nossa mente sob as condições que esses personagens aparentemente operam. Assim
nossa mente produz emoções e pensamentos ligados a circunstâncias que não são nossas, mas
de entidades virtuais que povoam a tela do cinema. Quando observamos de forma mais
profunda, vemos que a nossa natureza, a natureza luminosa, criativa, de energia, é exatamente
a que produz a aparência da realidade e inclusive a identidade que vive sob essa realidade
aparente. Isso ao mesmo tempo que demonstra a energia de nossa mente, espelha também
sua liberdade de sua manifestação. Quando essa energia e essa liberdade de manifestação se
colocam sob as condições de um outro ser, a compaixão pode de fato surgir.

A compaixão se traduz como o interesse do praticante em que o outro ser se liberte das
circunstâncias aflitivas sob as quais está operando. De uma forma mais completa, essa
dimensão da compaixão deveria incluir ainda a experiência clara de que o sofrimento que o
outro manifesta é completamente desnecessário, que surge por causas, e que essas causas
podem ser removidas.

Como o sofrimento surge por causas, a remoção dessas causas é essencialmente voltar a
reconhecer a natureza ilimitada como a identidade básica de todos os seres. Devemos observar
ainda que este reconhecimento, esta forma de descrever a compaixão, pode ser
intencionalmente praticada. Podemos fazer isso tanto na vida cotidiana quanto na prática
formal.

Suponhamos que nossa atividade é a de um médico ou advogado. Quando recebemos um


cliente podemos desenvolver essa compreensão profunda da dificuldade que o outro está
vivendo, e a compreensão profunda de que ela não é necessária. E assim pode ser que em
nossa mente brote um interesse genuíno, um impulso de ação para remover a dificuldade que
o outro está vivendo. Por outro lado pode ocorrer que nossa ação seja motivada por um auto-
interesse, podemos estar agindo por orgulho, por inveja, por desejo e apego, ou dominados por
uma espécie de cansaço ou preguiça, ou dominados por uma sensação de aflição ou carência,
ou ainda por raiva, aversão, medo. Um praticante consegue distinguir perfeitamente se está
atuando a partir destas seis emoções perturbadoras, ou se está atuando efetivamente para
benefício de outro ser, além da motivação de auto-interesse.

Um bom praticante nessa etapa reconhece perfeitamente a transição de uma operação mental
em direção a outra mais abrangente e livre. Sendo um praticante de muita qualidade, ele vai
reconhecer também tanto a fixação em si mesmo como a própria compaixão, ambas como
ações livres da própria mente original. Assim ele também transcenderá a noção de culpa, ou de
falha.

Amor

Após a compaixão temos a segunda das dez etapas do quinto passo. Essa qualidade é traduzida
como "amor". Sem reconhecer a liberdade natural da nossa mente com respeito à nossa
própria identidade, podemos eventualmente olhar para um outro ser a partir do auto-interesse,
e dessa forma brotam as seis emoções perturbadoras. Destas surgem os impulsos de atração,
aversão ou indiferença. Mas podemos de fato olhar os outros seres e, em lugar de observá-los
como objetos de ganho ou perda, ameaça ou proteção, podemos reconhecer suas qualidades
inerentes, suas qualidades latentes ainda não manifestas. Podemos focar suas qualidades
naturais que podem levá-los à felicidade e à liberdade, que podem se manifestar como suas
próprias habilidades de trazer benefício a outros seres. Quando há este reconhecimento das
qualidades no outro, e temos o impulso de trabalhar para que estas qualidades aflorem, a este
impulso chamamos “amor”.

Alegria, equanimidade, seis paramitas e vacuidade

Havendo amor e compaixão, nós naturalmente manifestamos a terceira qualidade do quinto


passo, que é alegria. Essa não é uma alegria comum, é uma alegria que se manifesta como uma
energia interna incessantemente fluindo na inseparatividade com os outros seres, na
dependência das qualidades de compaixão e amor.
Havendo a qualidade dessa energia incessante, surge a quarta qualidade do quinto passo, que é
equanimidade. Quando ela surge, isso é sinônimo de estabilidade, é o fim da crise existencial. E
a pessoa nesse momento sabe como manifestar sua energia vital da melhor forma durante sua
vida. A pessoa que pratica essas quatro qualidades já apresenta uma serenidade natural que lhe
permite a prática da sexta etapa do nobre caminho, ou seja, a meditação formal.

As seis qualidades seguintes são os seis paramitas. Sendo o primeiro generosidade, o segundo
moralidade, o terceiro paciência propriamente dita, o quarto energia constante, o quinto
concentração, e o sexto sabedoria. Essas seis qualidades são transcendentes, ou seja, são
qualidades que, à semelhança das quatro anteriores, se manifestam pela capacidade natural da
nossa mente em operar sob as condições a que outros seres estão submetidos, ou seja, a
capacidade natural da mente de não estar presa a identidades.

Essa qualidade da mente de não estar presa a identidades, de se manifestar livremente no


espaço e no tempo, além de nome e forma, espelha a natureza básica da vacuidade e
luminosidade. Assim, a compaixão é a própria prática da liberdade original, a prática da mente
naturalmente liberta, nesse caso manifestando-se através do interesse pelos outros seres.
Assim compreendemos como a compaixão é completamente inseparável da vacuidade. Não
houvesse a vacuidade, nossa natureza estaria presa a nossa identidade e a estados mentais
particulares. A liberdade original natural sendo a própria expressão da vacuidade é o que
permite a manifestação da compaixão. A mobilidade natural da mente espelha essa liberdade
original, e assim as dez qualidades do quinto passo são possíveis. Se as dez qualidades do
quinto passo são praticadas, cumprimos o pré-requisito natural para a prática da concentração
da mente. Tendo abandonado corpo e mente, estamos sentados junto com todos os seres. E
não há diferença entre antes, durante e depois da meditação formal.

A questão material da vida do praticante

Surgem dificuldades para os praticantes quando eles aumentam a intensidade da prática.


Pensam que vão morrer de fome ou terminar na miséria e privação extrema... Aparentemente
há uma competição entre a vida espiritual e a vida no mundo, um conflito básico entre a
dedicação espiritual e o processo convencional da própria vida. Através de hábitos arraigados
pensamos que a vida espiritual deva ser completamente diferente do processo de relação com
os outros seres e do próprio processo econômico. Este tipo de ansiedade pode trazer
dificuldades tanto para indivíduos como para os grupos. Para analisar este aspecto, começarei
lembrando a forma como o próprio Buda vivia. Às vezes sou convidado por empresários para
algum encontro. Geralmente começo falando da forma de vida do Buda e digo: observem o
budismo, está ativo há vinte e seis séculos, nenhuma empresa jamais durou tanto tempo...
Sustentando o Budismo não há bancos, empresas, nenhum tipo de organização piramidal, mas
ainda assim este movimento se mantém puro, fiel e útil geração após geração. Por que?

Isso ocorre devido à pureza de seus ensinamentos e a sua unidade de propósitos. Existem
outras tradições em que os professores espirituais são apoiados pela instituição, recebem até
mesmo aposentadoria, como em qualquer outra profissão. No budismo não é assim, pelo
contrário, em geral os professores é que ajudam as instituições a se estabelecerem e se
sustentarem. Como isso é possível?

Quando o Buda atingiu a iluminação, demorou muito para voltar a visitar seus pais. Seu pai
enviou muitos emissários para visitá-lo, com o propósito de lhe convidarem para uma visita.
Após muitas tentativas, Buda concordou em retornar. O palácio foi avisado e prepararam uma
grande festa para o príncipe, mas ele chegou a pé, enrolado num manto. "Meu filho, como você
chega aqui assim nesse estado?", diz o rei.

Pela manhã seguinte Buda vai mendigar sua comida na cidade. “Você é um príncipe, filho do
rei! Como pode sair assim para mendigar na cidade?” Desesperou-se seu pai - uma grande
desgraça na família. Mas Buda respondeu: “Se eu não mendigar, a sanga desaparecerá”. Esse é
um ponto muito importante que devemos realmente entender. A mendicância do Buda
curiosamente não é um processo no qual ele esteja pedindo alguma coisa. Quando o Buda
mendiga ele está na verdade é oferecendo uma espécie de benefício para as pessoas. Uma das
regras desse processo, por exemplo, é de que os mendicantes nunca devem fazer distinção
entre os ricos e os pobres. Aliás considera-se quando os pobres efetivamente manifestam
generosidade, seu mérito é mesmo maior do que quando pessoas de recursos doam a comida.

Quando o Buda chega na frente de alguém oferecendo a tigela, a própria presença do Buda
inspira o coração do outro através de sua dignidade. É como se voltássemos ao momento em
que o próprio Buda fez seus votos de bodisatva para Buda Dipankara. Ele oferece aos seres a
mesma oportunidade que Buda Dipankara lhe ofereceu. Após a generosidade ao Buda
Dipankara, durante incontáveis vidas, com a mesma experiência no coração, ele produziu
benefícios incessantes aos seres até atingir a iluminação completa e final na forma de Buda
Sakiamuni.

Quando Buda oferece a tigela, sua mera presença retira as pessoas dos reinos de sofrimento
em que estão imersas. As pessoas imersas no reino dos demônios famintos, por exemplo, são
imediatamente deslocadas para um reino superior ou para a liberação. No momento em que o
Buda surge, os corações dos demônios famintos se abrem, e eles se tornam generosos. Sendo
generosos não permanecem naquele reino específico, um universo virtual de seres carentes.
No momento em que alegra pelo benefício que traz ao outro, o ser "carente" descobre-se capaz
da generosidade, sai das fixações que o prendem naquele mundo. Saem diretamente da roda
da vida para um estado de terra pura, isso acontece em um instante mágico e transformador.

Quando vemos os mestres que sucederam o Buda, vemos que geração após geração os mestres
seguiram este conselho. Ainda hoje encontramos tradições que mantém os preceitos de
mendicância e praticam da mesma forma. Mas mesmo naqueles que não mendigam
diretamente, vamos encontrar a mesma postura. Os praticantes simplesmente focam
incessantemente como trazer benefícios aos outros. A essência do processo de sustentação da
sanga está apenas neste processo extraordinário de trazer benefícios aos outros.

Ainda assim pode ocorrer que durante o caminho espiritual obstáculos nos levem numa direção
oposta. A fixação no processo da meditação, uma fixação que se traduz pela insensibilidade aos
outros seres, cria a impossibilidade de inserção positiva ou compassiva no mundo, visto como
perturbador e sem sentido.

Quando os praticantes sentam para praticar meditação encontram os dois tipos de problemas
que estou abordando. Podem gerar agitação mental, de forma que nenhum benefício é
possível, e essa agitação está ligada especificamente a uma falha com relação aos quatro
primeiros passos do nobre caminho. Essa pessoa, como já examinei, motivada por elementos
da roda da vida e dominada pelos três animais, gera carma e não gera méritos. Ele ainda
acredita que sua felicidade pode ser obtida de fontes externas, e no fim permanece como um
equilibrista das muitas fontes de satisfação, não que finalmente não as usufrui, mas terá raivas
periódicas, uma ansiedade permanente, buscando se manter numa direção aparentemente
favorável. A solução, como examinei, é retomar o correto propósito e naturalmente baseado
nisso evitar as dez não-virtudes, cumprindo os quatro primeiros passos do Nobre Caminho de
Oito Passos do Buda Sakiamuni.
O quinto passo é a moralidade baseada em uma fé natural. Quando a pessoa se move para
benefício dos outros seres, ela tranqüiliza sua mente e isto potencializa as qualidades que
levam à meditação, que é o sexto passo.

Suponhamos que quando a pessoa começa a meditar, pelo mérito gerado através de práticas
em vidas anteriores, ela realmente consiga se concentrar. Se não foi por estes méritos, seu
progresso pode ter vindo de um duríssimo treinamento nessa vida e, assim, focando suas
próprias intranqüilidades através dos meses e anos e desenvolvido a prática de bondade, tenha
ficado progressivamente mais silenciosa e mais estável.

A dificuldade neste ponto é o materialismo espiritual. A pessoa praticando em silêncio, isolada,


pode gerar uma outra classe de auto-interesse, um auto-interesse sutil, também ligada à roda
da vida, uma fixação em estados mentais particulares de felicidade interna. Dizemos que isto é
uma ligação à Roda da Vida através do reino dos deuses.

Existem muitas diferentes condições de meditação onde a pessoa desenvolve uma estabilidade
que se manifesta como uma insensibilidade ao que acontece ao redor. A pessoa ao olhar para
dentro de si mesma sente que consegue efetivamente alcançar o que os mestres descrevem,
porém de fato a pessoa se torna mais insensível, menos conectada, menos apta para trazer
benefício aos outros.

Por outro lado, quando os bodisatvas praticam, eles praticam — como o Buda praticava —
inseparáveis de todos os seres. Eles não sentam sozinhos, mas reconhecem suas próprias
dificuldades juntamente com as dificuldades de todos os seres. Reconhecem que muito poucos
meditam. Reconhecem que a maioria das pessoas procura a saída onde ela não pode ser
encontrada. Eles sentam e sua forma de prática pode efetivamente trazer benefício para os
outros. Com essa motivação eles percebem que se eles não praticassem, não desenvolveriam
habilidades para ajudar — portanto eles sentam com essa motivação e sua meditação é uma
manifestação de generosidade. Da mesma forma, se entram em retiro, entram em retiro para
produzir beneficio para os seres. Não é um “adeus mundo cruel”, não é um impulso de
isolamento, a ida para o retiro representa o reconhecimento de que a prática direta da
sabedoria mais sutil produz genuínos benefícios aos outros seres.
É imprescindível que o caminho do meditante tenha esta característica, que seja efetivamente
o caminho do bodisatva, o Caminho do Meio. Isto realmente significa a própria inseparatividade
de todas as coisas e seres, e um interesse efetivo de trazer benefícios a todos.

É nesse sentido que Sua Santidade o Dalai Lama reconecta nossa prática diária e nossa vida
cotidiana, com o caminho espiritual. Ele diz “todos os seres desejam a felicidade e buscam
afastar-se do sofrimento”. Assim nossa missão é essencialmente ajudar os seres nesse sentido.
Esta é a motivação de um bodisatva, sua energia não está presa à sua própria identidade.

Os animais são considerados inferiores aos humanos, mas muitas vezes carregam comida na
boca para alimentar outros animais. É uma atividade extremamente sofisticada, é a mente
ultrapassando o próprio auto-interesse e trabalhando para levar benefício para os outros.
Mesmo um pequeno pássaro tem uma sabedoria tão surpreendente. Ele poderia simplesmente
comer, mas cuidadosamente pega o alimento com o bico para atender pequeninos seres irados
que estão esperando famintos no ninho. Ou outro caso surpreendente que vi é o de uma porca
amamentando filhotes de tigre...

É um processo surpreendente utilizado para aumentar a sobrevivência de filhotes de tigres em


cativeiro. As mães tigresas são ansiosas no cativeiro e têm dificuldade de amamentar seus
filhotes. Isso me parece uma enorme generosidade, compaixão no sentido verdadeiro. Os seres
humanos também agem assim, com relação aos filhos e a outros seres.

Esquecidos da compaixão temos nossos próprios afazeres urgentes e prioridades inadiáveis.


Assim o tempo passa. Quando os ciclos da vida se completam, tudo desaba, tudo perde o
sentido e o que fica de bom tem um único sabor: a generosidade, o amor e a compaixão que
praticamos para com os outros seres. Aquilo que fizemos auto-centradamente acaba
realmente. O que fizemos carinhosamente, mesmo que, no plano material pareça não mais
existir, curiosamente porque fizemos para um outro, segue presente em uma dimensão de
satisfação sutil. É uma satisfação que não morre, é uma satisfação transcendente. Essa palavra
“transcendência” é muito correta. Essas ações ultrapassaram nossa identidade, nossa energia
realmente não está presa em nós mesmos, é naturalmente transcendente. Não há esforço
nisso.

Dito de forma mais futebolística, se eu torcer pelo time de “eu sozinho”, minha chance é
mínima. Que chance temos ao "torcer" por nós mesmos? Imagine que coloquemos nossa
estabilidade em nossas vitórias pessoais: nossa chance é mínima. Mas por outro lado, nossa
natureza não está presa a nossos auto-interesses. Nossa natureza é naturalmente ampla.

Esse é o fato: quando manifestamos essa natureza ampla, estamos fazendo exatamente o que o
Buda fez durante as quatro décadas finais de sua vida. Ele apenas se dedicou incessantemente
a produzir benefícios para os seres. À medida que isso ocorria, o Buda nunca precisou ter um
palácio, nem uma simples cozinha ele tinha. Ele nunca precisou de proteção militar. Ele apenas
organizou a vida da sanga de forma muito simples, e os seres ao redor ficavam felizes em poder
ajudar. Assim vimos os vários reis protegendo o Buda, oferecendo instalações, prédios,
palácios, jardins, onde o Buda deu seus ensinamentos.

Por outro lado, curiosamente, durante seu desenvolvimento posterior, aparentemente o


budismo se solidificou. Manifestou-se através de muitos prédios, mosteiros imensos.
Especialmente o Mosteiro de Nalanda, na Índia, onde por algum tempo chegou a haver 10.000
pessoas mantendo o Darma vivo através de práticas e estudos. Porém, exatamente porque se
estruturou dessa maneira, ele pode ser atacado e foi extinto na Índia. É paradoxal. A estrutura
produz vulnerabilidade.

Quando algo se estrutura assim, se torna sólido e está sujeito ao desgaste e a ataques. Com dor
no coração contemplamos o relato dos últimos momentos da grande e sagrada Universidade de
Nalanda na Índia, atacada militarmente que foi. Mais de uma vez ela foi destruída, mas
ressurgia de alguma outra forma, até que finalmente desapareceu.

A Stupa de Bodhigaya é outro exemplo, na impossibilidade de ser destruída pelos atacantes, foi
coberta de lixo. Como havia um prédio, esse prédio poderia ser atacado, profanado, é o Darma
expresso no espaço e tempo. Ainda assim, a compreensão mais profunda, aquilo que realmente
traz benefício, o Darma genuíno, este nunca morreu. Este é o verdadeiro ponto de solidez do
budismo, instalado na fortaleza do coração.

O Darma no Tibete é outro exemplo. Observando os acontecimentos vemos que o vento da


impermanência soprou forte, e o que aconteceu? As sementes emplumadas voaram. Se elas
têm qualidades, florescem. O terreno fértil é onde há dor, confusão, matéria podre. Da própria
dor surge a sustentação da árvore da cura. É um processo extraordinário onde confusão,
destruição e renascimento se misturam, não conseguimos distinguir o que é bom ou mal. A
impermanência destrói, porque destrói propaga as sementes do Darma sagrado. De fato vemos
que as boas sementes vingaram, mas aquelas que não tinham capacidade não vingaram.

Enfim, se examinamos os praticantes que sentam buscando meramente estabilidade, vamos


perceber que esses praticantes geram uma insensibilidade com relação aos outros seres. É uma
simples fixação em estados mentais externos. Na exata medida dos poucos méritos que eles
proporcionam para os outros, eles recebem seu retorno, e devido a isto eles imaginam que o
mundo não é generoso, que não reconhece os grandes praticantes que eles imaginam ser. Não
entendem porque algumas manifestações do Darma prosperam e outras não. Se nós copiarmos
a forma do Buda, vamos adiante. Essa é uma receita comprovada há vinte e seis séculos.

Sua Santidade o Dalai Lama tem uma qualidade extraordinária, porque ele traduz essa receita
do Buda de acordo com as capacidades das pessoas, o que aliás era o que o próprio Buda fazia.
Então vamos perceber pessoas que têm capacidade de ajudar os outros oferecendo coisas
impermanentes, mas que os outros sentem como necessárias. Um amigo, por exemplo, pode
ajudar inclusive oferecendo algo que talvez não seja muito apropriado. No entanto, a outra
pessoa imagina que aquilo é bom e aceita, dessa forma surge mérito. Os pais, por outro lado, já
olham de uma forma mais ampla, eles buscam produzir benefícios mais permanentes, mais
verdadeiros.

Freqüentemente, são os próprios pais e mães que ensinam a língua para uma pessoa. Ela vai
usar aquele idioma até o fim de seus dias, e vai aprender uma série de atitudes que vão ser
úteis durante toda sua vida. Porém, muitas vezes eles não conseguem produzir grandes
transições na vida dos filhos. Então há outros seres que dispõem de poder, capacidade, que
convidam as pessoas e proporcionam processos de forma que ela salte patamares. Enfim
encontramos seres que ajudam de uma forma ainda mais poderosa, os professores espirituais.
Eles oferecem ensinamentos que não se dissolvem nem mesmo no processo da morte. Eles
criam benefícios que se eternalizam e permanecem verdadeiros mesmo para outras vidas.
Quando olhamos essas diversas formas de benefícios, percebemos que nossa própria atividade
de beneficiar os outros seres deve estar incluída em alguma dessas formas mais ou menos
amplas.

Por outro lado, sempre que trazemos benefícios de alguma maneira, o universo retribui.
Imagine você na calçada esmolando com uma latinha. Hoje em dia talvez o processo seja mais
direto “me dá um real” é o que ouvimos..., mas imagine algum tempo no passado. Nós com
este rosto que temos, não iríamos ficar nem meio dia parados ali. Logo vai passar alguém e ver
que estamos no lugar errado. Chega alguém e, se começamos a falar, essa pessoa já diz “que tal
você dar umas aulas para aquelas crianças ali?” Talvez você acabe tendo que contar sua vida, e
vai ser desmascarado. Por outro lado se você vê uma pessoa do seu lado que está na mesma
situação, você logo terá o impulso de socorrê-la, você certamente não conseguirá ficar parado
frente ao sofrimento verdadeiro do outro. É por isso que você nunca vai para a calçada.

Não temos este carma de ficar como pobres coitados incapazes de se conectar com os outros
seres. Na medida que não temos esse carma, isso não vai acontecer conosco. Como temos a
capacidade de nos interessar pelos outros, nossa vida segue. Por outro lado um meditante
equivocado pode imaginar que o melhor benefício é ficar parado e insensível ao mundo ao
redor. Ele pensa que tudo está perdido, que tudo que ele tem para fazer é adotar essa posição
e esquecer os seres. Qualquer pessoa que surge na frente, qualquer coisa do mundo, parece
uma perturbação.

Sua experiência interna é que quando está parado e consegue manter o isolamento, sente-se
bem, quando ele se conecta com os outros, tudo anda mal. Assim ele pensa que sua prática é o
isolamento. Por outro lado se compreendemos o caminho do bodisatva, reconhecemos que
tudo que fazemos, seja prática espiritual, conversar, interagir, tudo isso, são formas de trazer
beneficio. Nesse caso se surgem dificuldades, as falhas de motivação são a origem.

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