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O SABER E O FAZER

M USEU DO F OLCLORE
NO
C oleção C adernos de F olclore

22o Volume

São José dos Campos


2012
Coleção Cadernos de Folclore

Realização Edição de textos


Prefeitura Municipal de São José dos Campos Avelino Israel
Fundação Cultural Cassiano Ricardo
Diretoria de Patrimônio Histórico Revisão de textos
Teruka Minamissawa
Idealização
CECP - Centro de Estudos da Cultura Popular Fotografias
Angela Savastano Maria Siqueira Santos
Fábio Martins Bueno
Gestão do projeto Acervo Museu do Folclore
Francine Maia
Design gráfico
Colaboração Magno Studio
Maria da Fátima Ramia Manfredini
Tratamento de imagens e editoração
Pesquisas e textos Rafael Souza
Fábio Martins Bueno Gabriel Sá

Impressão
JAC Gráfica e Editora Ltda.

Ficha Catalográfica
Elaborada por Cíntia Cássia Soares – CRB 8R/ 8848

B942s
Bueno, Fábio Martins.
O saber e o fazer no Museu do Folclore / Fábio Martins Bueno -- São José dos
Campos / SP: CECP/FCCR/Prefeitura Municipal de São José dos Campos, 2012.

p. 108: il.; 21x24cm. (Cadernos de Folclore ; v.22)

1. Cultura Popular / Folclore – São José dos Campos – SP 2. Arte


Popular / Artistas Populares – São José dos Campos 3. Programa
Museu Vivo – Museu do Folclore/Centro de Estudos da Cultura
Popular e Fundação Cultural Cassiano Ricardo I. Título.
CDD: 390
CDU: 398

Todos os direitos reservados Fundação Cultural Cassiano Ricardo


Avenida Olivo Gomes, 100, Santana - CEP 12211-115
São José dos Campos - SP - Brasil
Telefone: (12) 3924-7318 (Museu do Folclore)
www.fccr.org.br – sec.museufolclore@fccr.org.br
Sumário

Agradecimentos iniciais 7 Cap. 11 - Artesanato em Taboa


O Valor da Cultura Popular 9 Luis Pereira dos Santos 57
Sonhos que se tornaram realidade 10
Cap. 12 - Figuras de Barro
Programa Museu Vivo 11
Luiz Paulo Ragazini 61
Apresentação 13
Cap. 13 - Paçoca e Doces de Amendoim
Cap. 1 - Picote Antonio Franscisco Pereira 65
Maria Alzira da Rosa 17 Cap. 14 - Folia de Reis
Cap. 2 - Presépio Jesus Pereira de Lima 69
Joaquim Alves de Lima 21 Cap. 15 - Moçambique
Cap. 3 - Brinquedos de Madeira Benedito Rodrigues dos Santos 75
Renato Vieira 25 Cap. 16 - Folia de Reis
Cap. 4 - Charrete Sebastião Marcolino 81
Argemiro Barbosa Nicoletti 29 Cap. 17 - Figuras de Barro
Cap. 5 - Bolinho da Roça Maria Benedita dos Santos 85
Maria José Oliveira 33 Cap. 18 - Jongo
Cap. 6 - Figuras de Barro Laudeni de Souza 91
Maria Benedita Vieira 37 Cap. 19 - Barcos e Canoas
Cap. 7 - Pastel de Milho Carlos Lourenço 97
Amélia Oliveira da Silva 41
Considerações Finais 101
Cap. 8 - Artesanato em Taboa
Referências Bibliográficas 102
José Marques Moreira 45
Perfil do Pesquisador 103
Cap. 9 - Viola Caipira FCCR 104
José Soares da Silva 49 CECP 105
Agradecimentos 106
Cap. 10 - Viola Caipira
Relação das Edições Anteriores 106
Olavo José de Almeida e
Daniel José de Almeida 53

o
A gradecimentos iniciais

Às pessoas que
buscam as expressões
poéticas de suas vidas.

A
os ‘fazedores’ que me recebe- pelo empenho em contatar os ‘fazedores’;
ram para uma prosa, um diálogo, Mariana Castro Teixeira, pela pesquisa das
uma entrevista, uma escuta. Aos fotografias do acervo do Museu do Folclore;
conselhos de Angela Savastano e seu em- Andrelina Paiva de Souza Tomaz, pelas in-
penho na leitura dos textos e participação formações sobre o Museu Vivo e partici-
em algumas entrevistas, bem como por pação nas reuniões; Bruno Francisco Diniz
sua postura profissional de agregar pes- Marinho, pelo diálogo e forças empenha-
soas e potencializá-las. À Francine Maia dos do novo projeto com os ‘fazedores’; à
pelo constante diálogo na estruturação do Joseana Aparecida de Souza, garantindo
projeto. Ao jornalista Avelino Israel pelas o funcionamento da estrutura financeira;
sugestões na redação do texto. À Maria William Roberto Garcia, por ajudar no
Siqueira Santos pelo auxílio na transcri- contato com seu tio Vadér; ao Guilherme
ção das entrevistas e leitura crítica dos tex- Augusto Pereira e à Manoela Horácio da
tos. À Flavia Diamante pela participação Silva Mourão, pelo atendimento no museu.
na entrevista com o piraquara Vadér. Ao Todos contribuíram direta e indiretamente
Washington Freitas pelo empréstimo dos para o acontecimento: a produção do livro
equipamentos de iluminação. Agradeço ‘O saber e o fazer no Museu do Folclore’.
também aos funcionários do Museu do
Folclore: Janice Ribeiro de Aboim Chaves, Fábio Martins Bueno
O valor da cultura popular

A
decisão de publicar de forma A propósito, o incentivo à produção
inédita, pela Coleção Cadernos de obras literárias sempre foi uma tôni-
de Folclore, um livro que aborda ca da FCCR, que tem em eventos, como
o Museu Vivo, um dos mais importantes Festival da Mantiqueira – Diálogos com
programas desenvolvidos pelo Museu do a Literatura e Semana Cassiano Ricardo,
Folclore da Fundação Cultural Cassiano as melhores oportunidades de divulgação
Ricardo (FCCR), sob coordenação do dos autores joseenses. Além de outras ini-
Centro de Estudos da Cultura Popular ciativas como projetos literários aprovados
(CECP), é de extrema importância para o pela LIF e concurso de redação realizado
registro e a valorização da cultura popular anualmente.
local e regional. Poder realizar este projeto, mais uma
Em 14 anos de existência, o progra- vez, em parceria com o CECP, não é só
ma já beneficiou mais de 150 ‘fazedores’ da gratificante para a FCCR, mas, acima de
nossa cultura popular, contribuindo para tudo, é ter consciência de que em São José
que as diferentes manifestações tivessem dos Campos se faz uma cultura voltada
mais visibilidade e que a população pudes- para todos, da erudita à popular, sem qual-
se tomar conhecimento da sabedoria dessas quer discriminação. Temos certeza de que
pessoas. A edição deste livro, não só reforça este livro é uma justa homenagem aos ‘fa-
estes dois principais objetivos, como tam- zedores’ que sempre nos cativaram com sua
bém certifica o sucesso da iniciativa. simplicidade e sabedoria.
Este 22º volume da Coleção Cadernos
de Folclore representa, ainda, um momen- Fundação Cultural Cassiano Ricardo
to de reflexão sobre o próprio programa Diretor Presidente – Exercício 2009 – 2012
no contexto das atividades do Museu do
Folclore. Ao expor, em um livro, o perfil
de 19 ‘fazedores’, contando um pouco da
vida e da cultura popular de cada um, fica
a certeza de que vale a pena continuar in-
vestindo na estrutura e divulgação de tão
valioso programa.
S onhos que se tornaram realidade

A
conteceu, um sonho se tornou do Centro de Estudos da Cultura Popular
realidade! Assim, Hélio Augusto (CECP), que deu continuidade ao que vi-
de Souza, então prefeito de nossa nha sendo realizado pela extinta Comissão
cidade nos idos de 1985, tornou possível de Folclore, sempre com a preocupação de
a criação da Fundação Cultural Cassiano formar, informar e registrar as manifes-
Ricardo. Com estudo aprimorado, foi rea- tações populares da comunidade. Com o
lizado com a comunidade joseense um es- CECP continuamos conhecendo a riqueza
tatuto envolvendo os mais diversos setores popular que possuímos.
da cultura do município, o que resultou na Hoje estamos envolvidos em cursos pe-
formação de várias comissões. dagógicos, de pós-graduação, criamos uma
Nesta época tiveram início os trabalhos biblioteca especializada em cultura popular
da Comissão Municipal de Folclore, com (Biblioteca Maria Amália Corrêa Giffoni),
o objetivo de formar, informar e registrar um museu da cultura popular (Museu do
as mais diversas manifestações da cultura Folclore) e também o Programa Museu
popular existentes e tão presentes em cada Vivo, que nos deixa sentir o dia a dia, a vi-
ser. Com estudo e documentação feitos pela vência rica dos fatos que tornam o ser hu-
comissão, pode-se avaliar a importância de mano mais completo.
cada gesto, do pensar, do agir e do sentir na Carrego comigo, até hoje, a felici-
nossa personalidade. dade de ter participado, desde o início,
Com o tempo a realidade mudou e a da Comissão Municipal de Folclore e da
Fundação Cultural Cassiano Ricardo ga- formação do CECP. Hoje sou mais feliz,
nhou um novo estatuto e uma nova dimen- mais realizada. Obrigada Hélio Augusto
são de programação. Chegava ao fim as de Souza! Obrigada Fundação Cultural
comissões e o trabalho voluntário de seus Cassiano Ricardo!
integrantes. Mas a Comissão de Folclore
não se deu por vencida e o sonho conti- Maria Helena Weiss
nuou, se transformando numa nova reali- Folclorista, participou da extinta
dade. Afinal, um trabalho de muitos anos Comissão Municipal de Folclore da
não podia se perder. Fundação Cultural Cassiano Ricardo e da
Novos estudos e novos trabalhos ti- criação do Centro de Estudos da Cultura
veram início, possibilitando a formação Popular (CECP).
P rograma M useu V ivo
A fala e o fazer do próprio dono do saber

E
m 1986, quando foi criada a Museu do Folclore. Instalado e inaugurado
Fundação Cultural de São José dos em 1999, já com as portas abertas, aconte-
Campos, agora chamada Fundação ceu uma rica relação entre os visitantes e o
Cultural Cassiano Ricardo, um grupo espaço onde está localizado e instalado o
de pessoas foi convidado para partici- museu.
par da Comissão Municipal de Folclore, A primeira exposição de longa dura-
uma das seis comissões que fariam parte ção dialogou com o público sobre os ciclos
do Conselho Deliberativo da instituição. da vida; a segunda sobre os traços culturais
Foi missão desta Comissão Municipal de da nossa região e a terceira sobre patrimô-
Folclore propor ações que definissem uma nio imaterial. Em todas percebemos que
política cultural na área do folclore, para esse diálogo seria muito mais rico se fosse
São José dos Campos. Na verdade, ser um possível usar não só os objetos e artefatos
banco de ideias, sugeridas e propostas para expostos, mas a fala e o fazer do próprio
serem executadas pela Fundação Cultural. dono do saber. Nasceu o Programa Museu
Essas ideias eram defendidas pelos coorde- Vivo... “lugar de encontro de gerações,
nadores de cada comissão, entre seus pares trocas de memórias, identidades, cultu-
no Conselho Deliberativo. Defendida a ras, etnias, gêneros, grupos sociais, enfim,
proposta, julgada e aprovada, era executada lugar de reconhecer o outro, lugar de en-
pela Fundação Cultural. cantamento, de poesia e de conhecimen-
A proposta da Comissão Municipal de to” (Gabriela Aidar). Então, o Programa
Folclore era ser agente de mudança social, Museu Vivo foi idealizado e criado para
por meio de ações de formação, informação que esse diálogo acontecesse... “lugar onde
e divulgação do folclore da região. Para isso identidades culturais podem ser identifi-
foram propostos cursos de folclore para in- cadas e reconhecidas, onde a produção de
formar e preparar pesquisadores nesta área, diferentes se evidencie sem que o outro seja
detectar, documentar e registrar as princi- o diferente” (Gabriela Aidar).
pais manifestações de cultura popular em
São José; e definir um espaço onde pode-
riam ser aglutinadas essas documentações
e objetos recolhidos em campo. Surgiu o
Mudança social

Havia a constatação que em São José dos mudanças sociais mais abrangentes.”
Campos, pelo seu crescimento acelerado O Programa Museu Vivo tem esta
motivado por diversas razões, seus habi- proposta, esta finalidade. Acontece aos do-
tantes desconheciam o potencial da sua mingos, das 14 às 17 horas no Parque da
cultura, os traços culturais que os identifi- Cidade, em torno do Museu do Folclore,
cavam como filhos desta região, mostrando reunindo diferentes ‘fazedores’ de São José
até certo preconceito sobre sua própria cul- dos Campos.
tura. Trabalhar o sentimento de pertenci-
mento e a consciência de ser dono de uma Angela Savastano
herança, de um bem cultural que o dis- Presidente do Centro de Estudos da
tingue e o faz rico pela diferença, seria o Cultura Popular - CECP
primeiro passo para ajudar esse homem a
crescer como cidadão, como pessoa, como
ser humano e fortalecê-lo para partici-
par de conscientes decisões de mudanças.
Incluí-lo nesse processo, para que ele faça
parte dessa mudança social.
As mudanças sociais só acontecem, de
fato, com a participação das pessoas que
necessitam, desejam, podem e devem par-
ticipar diretamente do processo. Não raras
vezes o homem vivencia uma situação de
exclusão simplesmente pelo desconheci-
mento de seu papel na sociedade, do des-
conhecimento da sua capacidade de parti-
cipação usando seu saber. O indivíduo fica
excluído. Nas palavras de Gabriela Aidar, “a
exclusão social pode ser entendida também
como uma cidadania incompleta.” E ainda,
“o museu pode contribuir para regeneração
social em nível local ou ser catalisador de
A presentação

E
ste livro é a expressão do empenho nários prévios. Em média, cada entrevista
de várias pessoas, há aqui a mão de durou 120 minutos, registrados em áudio
muitas delas. De forma geral, po- e imagem. Utilizamos nas entrevistas uma
demos falar em dois grupos: seus produto- câmera de vídeo ou um gravador de áudio
res e os 19 entrevistados. O empenho dos acompanhado de uma máquina fotográfi-
‘fazedores’ entrevistados está impresso nos ca. Ambos os dispositivos de captação de
textos que seguem, obviamente adequados, imagem produziram as fotografias digitais
editados para caberem dentro do projeto que foram utilizadas no texto. Ao iniciar-
editorial que nós, produtores, elaboramos. mos a conversa tínhamos em mente res-
O projeto editorial apresentado pela ponder, com as entrevistas e imagens, três
equipe multidisciplinar do CECP (Centro simples e ao mesmo tempo complexas per-
de Estudos da Cultura Popular) almejava guntas: (1) quem é o ‘fazedor’?; (2) qual é
produzir o Caderno de Folclore de nº 22, o seu saber?; (3) como seu ‘saber-fazer’ se
onde seriam registrados os conhecimentos integra, associa a algum outro momento de
dos ‘fazedores’ do programa Museu Vivo. sua realidade vivida? Felizmente estas per-
‘Fazedores’ é a palavra adotada pelo Museu guntas não foram feitas de maneira direta
do Folclore para se referir aos participantes aos entrevistados. É provável que na for-
do Museu Vivo. Uma palavra apropriada ma em que estão acima apresentadas não
porque, na prática, vem suprir os proble- funcionariam, cortariam o fluxo associativo
mas de nomearmos o conjunto dos parti- das narrativas. Por esse motivo, o diálogo
cipantes do museu como artistas popula- livre com os entrevistados se apresentou
res. É certo que são problemas necessários, como melhor opção.
pois exercitam a reflexão sobre quem são os Essas três perguntas se tornaram tam-
populares, quem são os artistas na atualida- bém princípios de organização do trabalho
de. Todavia, a palavra ‘fazedor’ é uma boa no momento de editar e transcrever os re-
alternativa, pois contempla tanto o artista latos. Tomamos como sentido adotado na
como o artesão, pescador, marceneiro etc. transcrição manter a correspondência com
Cada texto foi produzido a partir de a dinâmica da oralidade. Inicialmente con-
um único encontro com cada entrevistado, sideramos usar todos os recursos possíveis
realizado geralmente em suas residências e para manter as expressões orais dos entre-
por meio de um diálogo livre, sem questio- vistados, entretanto, a opção adotada foi a
de manter a dinâmica da fala, mas com al-
gumas adaptações e supressões de palavras.
Ao ler o texto, o leitor perceberá que
a memória foi exercitada pelos fazedores.
Avós, tios, pais, irmãos e primos são cita-
dos no momento de situar a vivência que
deu acesso ao ‘saber-fazer’. Situações que
reforçam a percepção de que é na vivência
com o outro que se dá, na ‘cultura popular’,
a aprendizagem dos saberes. O texto tam-
bém é um momento de aprendizagem para
os pesquisadores e fomentadores de cultu-
ra. É um convite para repensar as dinami-
cidades das culturas, assim como o próprio
conceito de cultura.
Atualmente, tomando como referência
a Carta do Folclore Brasileiro de 1995, os
conceitos de folclore e de cultura popular
são compreendidos como equivalentes.
Mas, o que se entende por cultura popu-
lar? Houve e ainda há entre estudiosos das
Ciências Humanas uma concepção pola-
rizada de cultura popular e cultura erudi-
ta (também chamada de cultura de elite).
Isso, porém, não é evidente na prática, pois
‘popular’ nunca é somente popular e ‘eru-
dito’ nunca é somente erudito. O trabalho
do historiador italiano Carlo Ginzburg no
livro O queijo e os vermes (1987) influen-
ciou muitos pesquisadores interessados na
História Cultural a ponderarem sobre esse
assunto. Em sua pesquisa, o historiador
italiano apresenta Menocchio, um moleiro
que viveu em um vilarejo da Itália no século
XVI. Menocchio sabia ler, uma habilidade
pouco difundida entre as pessoas daquele
contexto histórico. Esse saber possibilitou
que ele interpretasse tanto as escrituras sa-
gradas cristãs quanto textos laicos de ma-
neira autônoma, fundindo em sua leitura
a sabedoria popular e a cultura erudita,
adquirida e exercitava no hábito da leitu-
ra. Frente a esses resultados, o historiador
destacou a ideia de circularidade da cultu-
ra: por vezes a cultura popular e a cultura
erudita influenciam-se reciprocamente.
Lendo o texto da antropóloga Cáscia
Frade, “Evolução do conceito de folclore
e cultura popular”, publicado nos Anais
do 10º Congresso Brasileiro de Folclore
(2004), é possível inferir que a definição do
conceito se modificou inúmeras vezes ao
longo dos quase dois séculos de pesquisas
sobre o tema. Historiadores, sociólogos,
folcloristas e antropólogos se esforçaram
ao longo dos anos para atualizar os limites
do conceito em suas pesquisas num mundo
cada vez mais globalizado e repleto de fu-
sões culturais.
Todavia, se nos voltarmos para o con-
texto do Vale do Paraíba, e mais especifi-
camente para o da cidade de São José dos
Campos, como poderíamos definir cultura
popular? Seria possível chegarmos a uma
definição de cultura popular tradicional
em oposição a de cultura popular de massa
observando o meio urbano industrializa- ra as culturas tradicionais?
do e os diversos meios e dispositivos de Portanto, pensar em cultura popular
comunicação que a todo o momento in- nesse regime de circulação de signos é um
corporam e massificam as diversas mani- desafio, mas também um convite para per-
festações locais. ceber como essas manifestações individuais
Tal oposição não seria suficiente para e coletivas, que proporcionam identidades
interpretar os jogos de linguagem que in- às comunidades da região, se reelaboram
cessantemente ocorrem na interação entre para continuar funcionando como símbo-
as manifestações classificadas como popu- los, carregadas de sentimentos e valores.
lares tradicionais ou populares de massa. Nesse sentido, os textos que seguem são
O acontecimento do jongo hoje na cidade, também possibilidades de leituras dessas
por exemplo, é uma conclusão dos esforços reelaborações, um primeiro momento em
da comunidade liderada por Laudeni, pelas direção a uma reflexão mais abrangente.
instituições de fomento à cultura (que tra-
zem, entre outros recursos, o discurso eru- Fábio Martins Bueno
dito). Juntos, eles produzem folders, mate- Historiador
rial de divulgação de massa sobre o jongo.
Nada comparado à capacidade máxima das
indústrias de folders, a tiragem é pequena
e a distribuição é realizada pelos próprios
jongueiros. No entanto, o objetivo geral é
divulgar, apresentar, lançar a possibilidade
do jongo para outras comunidades, para
além daquelas tradicionalmente ligadas a
ele. Essa estratégia de promoção e divul-
gação, que é muito bem-vinda, funciona,
assim como outras mídias eletrônicas tais
como sites, canais em redes sociais etc.
Desse modo, observando por esse exemplo,
fica a pergunta: até que ponto as culturas
populares tradicionais não incorporam ele-
mentos da cultura popular de massa? E até
que ponto a cultura de massa não incorpo-
C apítulo 1

Maria Alzira da Rosa

Dona
Alzira
P icote

O momento de picotar o papel

l h a , d o b r a , r e c o r ta ,
olha novamente, dobra, recorta. Maria Alzira

O da Rosa, a dona Alzira, 60 anos, mergulha com destreza em seu fa-


zer artístico. “Quando estou fazendo, não penso em nada, me esvazio.”
Mediante o vai e vem da tesoura, sem desenho, entre tantas bifurcações
inscritas nas ranhuras do papel, das suas mãos surgem pássaros, cálices,
ramos e corações. Ela não sabe explicar de onde provêem os motivos que picota no papel,
mas sabe falar do tempo de quando eles chegam à sua consciência, um espaço aberto em
seu cotidiano. “No dia em que estou com a cabeça meio quente, eu pego para fazer”, diz
com cativante gargalhada.
Na sala de sua casa, dona Alzira exibe com orgulho o certificado emoldurado na pa-
rede, exatamente cinco anos depois de sua emissão pela Comissão Paulista de Folclore.
Conta que antes do reconhecimento do seu trabalho pelo Museu do Folclore, poucas
pessoas davam valor ao seu trabalho. “Algumas pessoas para quem eu dava os picotes de
presente enrolavam e colocavam no bolso.”
Quando chegou ao Vale do Paraíba, em meados de
1977, dona Alzira veio acompanhada de seu marido,
Lupércio Francisco da Rosa. Por indicação da tia, que co-
nhecia a região, ficaram na cidade de Santa Isabel, a 60
quilômetros da cidade de São Paulo.
Lá trabalhou cinco anos em uma tecelagem, como aju-
dante de produção, enquanto o marido trabalhava como
montador de móveis. Tiveram a primeira filha, guarda-
ram economias, e venderam a casa de Santa Isabel para
comprar terreno na cidade de São José dos Campos, no
Bairrinho, região leste da cidade, onde nasceram seus ou-

18
tros dois filhos. O tempo passou, os filhos cresceram e o primeiro marido morreu. Hoje,
dona Alzira vive junto com seu segundo marido, João Batista Silva dos Santos, alagoano
que há 16 anos mora na cidade.
São Paulo, uma terra de muitas terras. A trajetória de dona Alzira revela um pouco da
trajetória de seu artesanato. Sua mãe fazia picotes quando ainda moravam em São José da
Boa Vista, norte do Estado do Paraná. De lá veio o picote, que morreu e renasceu na fa-
mília de dona Alzira. “A minha mãe
fazia, mas eu nunca me interessei. Eu
achava que estava estragando o papel.
Aí um dia o médico dela falou assim:
‘sua mãe está lúcida desse jeito, por-
que ela faz este tipo de trabalho’. Mas
isso nem me passou pela cabeça fazer.
Aí, passado um tempo, minha mãe
enfartou, mas eu não aprendi nada.
Se hoje eu faço, é de cabeça.”
O trabalho mostrado na ilustra-
ção foi produzido em papel alumí-
nio reciclado de papel de embrulho.
Dentro do círculo oval apoiado na base
de um cálice, se espalham ramos e aves
entre o signo do coração. Dona Alzira
confessa que, geralmente, não con-
versa enquanto picota. “Faço quando
estou mais na tensão do trabalho, no
esquecimento.” Mas abriu uma exce-
ção e falou sobre o cálice que surgia no
papel. “Se uma pessoa não quiser ficar
com este cálice, pode dividir e ficar um
em cada lado, cortando no meio. Eu
tenho fé que muita coisa que a gen-
te faz não é pra gente... então ela vem
com calma (a figura no papel), esse é

19
um trabalho que eu gosto. Se a paisagem é graúda, mesmo assim, você tem que prosseguir”.
Além dos picotes, dona Alzira também produz dobraduras, uma sucessão de dobras
que, quando abertas, se multiplicam, de oito passam para dezesseis corações que olhados
em conjunto apresentam uma única imagem. Para esse trabalho ela geralmente pede ajuda
a parentes ou amigos, para que coloquem na escrita alguns dos versos que guarda na me-
mória. Esses bilhetes são depois colocados por detrás dos corações.
Alguns dos versos: “Aberta a primeira dobra, abrirá a mais de dentro, mais tarde sa-
berei quais são seus pensamentos”; “Eis aqui meu coração repartido em oito pedaços da
saudade que sinto de ti; veja a vida que passo”; “De longe te digo adeus, de perto pego na
tua mão, veja como te estimo, te amo no coração”; “Quem me dera escrever teu nome na
pedra de meu anel, apenas estou escrevendo em um pedaço de papel.”
O trabalho de dona Alzira está disponível para observação no Museu do Folclore de
São José dos Campos. Lá o visitante pode contemplar a profundidade da sua obra, uma
das expressões de sua forma de ver o mundo. Com simplicidade, ela harmoniza em seu tra-
balho figuras que despertam qualidades emocionais, muitas delas ligadas à união entre as
pessoas, sentimentos que podem ser traduzidos no casamento, na amizade ou na saudade.

20
C apítulo 2

Joaquim
Alves de Lima
P resépio

A devoção ao ciclo natalino


epois de ouvirem o rei, partiram; e eis que a estrela que viram no

D Oriente os precedia, até que, chegando, parou sobre onde estava o menino. E
vendo eles a estrela, alegraram-se com grande e intenso júbilo. Entrando na
casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, o adoraram; e,
abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra.” (Bíblia Sagrada.
Matheus 2: 9-11).
Esta é uma história que vira cenário na arte de Joaquim Alves de Lima, morador da
rua Tupinambá, no bairro de Santana, zona norte de São José dos Campos. Joaquim é um
montador de presépios. Ele tem um lugar de destaque no ciclo natalino da paróquia do
seu bairro e também no Museu Vivo. Na figuração dos presépios que constrói com suas
engenharias, o tradicional e o religioso se misturam com elementos da paisagem urbana.
A gruta aonde os Reis Magos chegaram para homenagear o Messias recém-nascido fica
ao lado de estradas que levam às cidades, vilarejos rurais, cidadezinhas do interior. Remonta
à Idade Média a montagem dos presépios ou das lapinhas. No texto do folclorista Câmara
Cascudo, é possível ler que nas lapinhas são recitados os autos pastoris, autos populares que
fazem parte do ritual de devoção.
Na região do Vale do Paraíba, montar presépios é uma manifestação estudada pelo folclo-
re. Pode-se encontrá-la em residências ou mesmo em centros comerciais. Todo ano no Museu
do Folclore, por meio do programa Museu Vivo, alguns fazedores de longa data montam seus
presépios. A cada ano é convidada uma pessoa diferente. Seu Joaquim já foi uma delas.
Montar o presépio é um ato complexo. Envolve relações variadas, misturadas entre a
relação do montador do presépio com sua comunidade e com sua fé. A respeito da devoção
dos visitantes, Joaquim narra muitas histórias.
“Tem gente que leva o pó de arroz, o pó de serra, diz que é para a sorte. Outros levam
os próprios bichinhos que é para dar sorte. Cada um tem o seu modo de ver e expressar sua

22
fé. Há situações diferentes, outros
fazem oração em silêncio. Teve uma
vez que veio uma senhora aqui e co-
meçou a se banhar na água. Outros
pegam a serragem que é pintada,
pegam e levam, dizem que dá sorte
também.”
Diante da diversidade de
formas de expressar a fé junto ao
presépio, Joaquim constrói seus
preceitos para interpretar o fenô-
meno. “O pessoal que vem aqui
é aquela fé de devoção. Cada um
tem seu ato de pensar e viver sua
fé. Porque a gente monta para fa-
zer o prazer, o desejo deles, de es-
tar vendo e querer ver, então cada
um tem sua maneira de ver e ex-
pressar, então tem aqueles que têm
aquelas devoções.”
Amigos, comunidade do
bairro, da igreja, companheiros
de trabalho e parentes, são várias
as comunidades que visitam os
presépios que Joaquim monta há
24 anos. Entre eles está a Folia
de Reis de Santana. “Este ano
(2012) foi o primeiro ano, porque
nunca coincidia período. Este ano foi que eles conseguiram conciliar o período comigo.
Visitaram e cantaram, estavam completos.” Joaquim é devoto de um ciclo que começa no
final de novembro e termina no início de março.
“Às vezes eu atraso um pouquinho, devido à minha ocupação, esse ano que passou (2011)
comecei a fazer, e ele ficou pronto no dia 11 de dezembro. Às vezes eu fico 24 horas no pre-

23
sépio, porque se eu ficar no meu tempo normal, eu não consigo. Nem me lembro de comer,
quero ver o trabalho terminado. É uma inspiração que chega e você não tem fome, quer pegar
e acabar. No asilo a mesma coisa, quando eu pego para fazer eu vou numa inspiração.”
“Antigamente eu fazia o projeto de um ano para o outro. Então eu tô aqui inspirado
com ele, pronto, ali mesmo eu já projetava o próximo. Hoje que eu estou com alta produ-
ção, em serviço, já não consigo assim fazer um projeto. Mas tem coisas que vou incorpo-
rando, como, por exemplo, este boneco que vou ligar um motor nele. As coisas que vou
encontrando durante o ano vão entrando no trabalho do presépio.”
Joaquim nasceu em Andrelândia, sul do Estado de Minas Gerais, a 400 quilômetros
de São José dos Campos, no dia 15 de dezembro de 1958. Trabalhou no ano de 1982 na
manutenção da rede elétrica e de telefonia da Rede Ferroviária Central do Brasil. De lá
veio para São José com a intenção de fazer a vida, “trazendo na manga muita inspiração.”
Aqui trabalhou no comércio e em indústria injetora, aposentou-se e atualmente trabalha
cuidando de idosos no asilo São Vicente de Paula e em casas particulares.

24
C apítulo 3

Renato
Vieira

25
B rinquedos de madeira

A filosofia de vida de um artista popular

a l i , r a l i , pa z , amor, prosperidade
e estudo.” Se com o dado pode um jo-

R
gador desafiar o outro, seu Renato desafia as pessoas que passam em frente
a sua casa com triângulos, retângulos e outras formas geométricas. Ao ca-
minhar pela manhã na praça do Jardim Satélite, pode-se vê-lo trabalhando
na manutenção externa da casa, juntando as folhas que caíram durante a
madrugada. Pintado no muro de sua casa está o jogo matemático, as fórmulas de cálculos e
os desenhos geométricos. Junto a eles os preceitos de vida, as proporções sagradas.
Renato, 91 anos, chegou a São José dos Campos no início da década de 1980 vindo de
Itajubá (MG), onde trabalhava como projetista delineador na fábrica de armas do Ministério
da Guerra. Aprovado em concurso, passou a trabalhar no então Centro Técnico Aeroespacial
(CTA), hoje Departamento de Ciência e Tecnologia Espacial (DCTA), onde se aposentou aos
70 anos de idade, a contragosto, porque a legislação trabalhista não permitia que ele continuasse
trabalhando. Ainda assim, ficou mais dois meses “só para acertar as coisas.” A partir de então,
passou a trabalhar em sua casa, onde intensificou a produção de brinquedos de madeira. Uma das
comunidades para quem apresenta seu trabalho é o Museu Vivo.
“Lá (no Museu do Folclore) eu fui levar os brinquedos e as crianças saíram correndo
brincando, um com o outro. A dona Angela (Savastano) pediu para eu fazer a montagem
dos brinquedos e mostrar tudo para eles, então os que iam ficando prontos eles iam pegan-
do e saíam correndo pra brincar.”
A estação de trem, a vila, o armário e a cama das bonecas, o mecanismo que movi-
menta as asas da borboleta, os porta-retratos com contornos de animais, o suporte da bo-
bina de sacos plásticos na cozinha, os aviões de madeira pendurados ao longo do beiral do
telhado, o carretel de pipa. As criações em madeira de seu Renato são diversas, certamente
a lista está incompleta, e é provável que não sejam suficientes duas tardes inteiras para
conhecer todas. De forma geral, há invenções para adultos, jovens e crianças.

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Os brinquedos são as invenções para as crianças, mas brincar pode ser atividade de
adulto e idoso. Seu Renato conta quando conheceu um grupo de senhoras artesãs onde
algumas nunca tinham recebido uma boneca.
“Lá na Casa de Oração Amor e Luz (COAL) tem uma porção de mulheres que fa-
zem artesanato. O conjunto que estava fazendo isso lá nunca tinha recebido uma boneca.
Então a gente pegava um nome que eles davam. Para mim caiu a tal da Maria da Paz.
Então, eu comprei uma boneca para dar para ela. Eu não a conhecia, fui conhecer no dia
que eu levei. Quando cheguei lá, eu conheci também uma mulher com 99 anos que nunca
tinha recebido uma boneca, ela também ganhou uma boneca. Eu achei 99 anos muita
coisa, aí falaram: tem uma de 100, mas não veio.”
A madeira que utiliza tem origem diversa. “No CTA eu era amigo de um camarada,
então, naquelas taboazinhas que iam ser jogadas fora, eu fazia o desenho do banquinho.
Daí, o senhor que trabalhava lá cortava para mim. Eu trazia para casa e montava, meu ser-
viço era montar para dar para os outros. Aí, quando saí de lá, a coisa modificou, eu pegava
material que ficava por aí, na rua, e comprava também. Transformava tudo em brinquedo.”
Renato Vieira nasceu em Itajubá no dia 19 de novembro de 1921, aprendeu carpintaria
e marcenaria com o pai, Manuel Vieira Pinto. “Mesmo quando eu estava com meu pai eu
fiz muito carrinho com quatro rodas, volante. Eu fiz um que na frente dele era como se fosse
um automóvel. Tinha freio. Quando morria gente, o cemitério era alto, eu subia lá nesse
lugar. Quando o pessoal descia, eu ia junto
freando, sabe, descendo com eles até che-
gar em casa. Fiz tanto carrinho lá, e a gente
descia pela calçada, e aquilo fazia um ba-
rulhão. Lá um dia eles se queixaram, acho
que na Prefeitura, o certo é que eles foram
lá e levaram os carrinhos todos. Aí, depois,
aparecia um, mas era de vez em quando,
já não era aquela chuva de carrinhos. Esse
tempo era antes dos 20 anos.”
Com o pai trabalhou até os 20 anos,
depois passou a trabalhar na fábrica de ar-
mas da cidade. Lá desenvolveu um disposi-
tivo para medir pressão, velocidade e preci-

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são dos projéteis, máquina que lhe rendeu prestígio dentro e fora do Brasil.
Desde os 16 anos seu Renato é espírita. Conta que inicialmente teve alguma difi-
culdade quando começou a estudar o espiritismo, algumas pessoas diziam que ele iria
morrer ou ficar louco. Hoje, seu Renato frequenta alguns centros espíritas em São José
dos Campos. Neles, participa ativamente e, além do trabalho com os brinquedos e outros
projetos comunitários, aplica passes energéticos de cura em pessoas que precisam.
Seu Renato é viúvo de Maria José da Costa Vieira, companheira com quem teve sete fi-
lhos. Hoje, três deles, Ricardo, Ruth e Rúbia moram com ele na zona sul da cidade. Segundo
Ricardo, sempre que seu pai sai para a rua leva folhinhas de tabuada e balas para presentear
e desafiar as crianças que por ali passam.
No muro, o gosto pela linguagem numérica se faz presente pelo destaque dado ao
teorema de Pitágoras, explicitado através de dois triângulos. Ao lado direito dos números
pitagóricos, vertem os versos do número irracional: “π = Que o cabo e ponta terrestre que
previ desde que nasci 3,1415935535... ”
No outro lado do muro, seus preceitos organizados: 1 – Servir e Amar, 2 – Perdoar
e resignar, 3 – Humildade, 4 – Simplicidade, 5 – Fraternidade, 6 – Reforma íntima, 7 –
Mocidade que tanto Jesus ama, abandonais o vício dando o testemunho de viver e vencer,
8 – Energia, força, dedicação e trabalho.
Na imagem da estrela-guia, o “mensageiro do progresso” dá sentido a seus preceitos, a
filosofia de vida de um artista popular de uma cidade tecnológica.

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C apítulo 4

Argemiro Barbosa Nicoletti

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C harrete

A lida com animais: as memórias e a narração


Não sei como vim no mundo
Não sei como fui batizado
Tenho o chão por minha cama
Tenho o céu por meu telhado
Eu não tenho rumo certo
Na fazenda ou no matão
Eu pra lá que fui convidado
Para montar num burro bravo preto
por nome de silverado

rgemiro narra em versos um pouco de seu cotidiano na lida com

A animais. Trabalhou ao longo da sua vida com carro de boi, carroça, charrete
e como boiadeiro, levando e trazendo boiadas. Com o carro de boi começou
a trabalhar ainda criança, ajudando o pai como candeeiro à frente do carro,
abrindo caminho. Nasceu em 18 de setembro de 1937 num sítio localizado
no bairro do Buquirinha 2, extremo norte de São José dos Campos.
“Em 1942 uma geada muito forte matou tudo que
foi plantação do meu pai, ali ele ficou desgostoso e com-
prou um sítio pros lados da cidade, eu tinha uns cinco
anos quando ele mudou para cá. Eu fui criado aqui, mas
tudo que é serviço de roça foi aqui mesmo que aprendi.
Aqui mesmo, porque meu pai não gostava de trabalhar
de empregado. Ele comprou uma carroça e trabalhou um
ano, não gostou e daí comprou um carro de boi, onde foi
que aprendi.”
Argemiro Barbosa Nicoletti aprendeu com seu pai,
Joaquim Barbosa de Lima, a ser carreiro. Ainda jovem
adquiriu o seu próprio carro de boi, passando a carregar

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lenha para a cidade. Mais tarde comprou uma carroça e um cavalo, trabalhando também na
parte da tarde e eventualmente à noite como carroceiro.
“Quando eu estava com catorze anos eu comprei uma carroça com cavalo. Até o meio-dia
eu vendia lenha na cidade com o carro de boi, depois eu trabalhava com a carroça até a noite,
e quando tinha serviço de lida com boi, fazia os três serviços.” Da lida com o boi de ontem ao
narrador de hoje, a experiência de vida de seu Argemiro lhe rendeu um acervo de histórias.
“Para lidar com boi eu ia para tudo que era canto, para longe e para perto, fechava
boiada pra corte e transportava pra longe. Eu ia muito aqui para os lados de Caraguá
(Caraguatatuba – Litoral Norte/SP), ali na descida da serra, pro lado direito, pro sertão. A
gente chamava de Sertão do Cedro. Eu ia muito lá buscar boiada. Lá era só boiada criada
no mato, só bicho brabo, bicho perigoso. Nós pegamos uma boiada um dia lá, 223 garro-
tes. Ficamos dois dias no mato para juntar a boiada, interemos 223 bois, depois toquemo
os bois para trazer aqui, saímos do bairro do Cedro eram quatro horas da tarde, chegamos
a Paraibuna eram umas 10 horas, 11 horas da noite por aí. Lá tinha um bar aberto e tinha
que passar ali, então o responsável pelo gado mandou ir na frente para pedir para o homem
fechar o bar para passar, por causa da claridade o gado não passa. Ele sacaneou, deixou
para puxar a porta de aço na cara do gado, o gado estourou para trás e se eu tivesse atrás eu
tinha morrido, porque eu estava num cavalo muito ruim demais, cavalo de carroça. Esse
camarada que estava junto comigo estava num cavalo que atendia pelo nome de Garoto,
um cavalo muito bom, ele andou uma
distância de uns três quilômetros dando
bordoada na cabeça de gado para voltar
e eu atrás imitando berrante com a boca,
não tinha berrante, comecei a imitar
com a boca, até que uma hora lá um boi-
zão de olhos vermelhos, chifrudo, olhou
para trás e seguiu o berrante.”
Seu Argemiro conheceu o trabalho
do Museu Vivo em 2002, quando estava
trabalhando com charrete na Vila Ema,
região central da cidade, atendendo as
escolas em dias festivos. No Museu Vivo
ele levou crianças, jovens e adultos para

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passear de charrete pelo Parque da Cidade, explicando seu funcionamento e contando suas
histórias.
Hoje, aposentado, seu Argemiro mostra sua charrete guardada na garagem de sua
casa. “É essa daqui, uma charrete grande que cabe até três pessoas, conforme o tamanho
da pessoa cabe até quatro. Os arreios estão pendurados aqui, arreio de charrete, arreio de
cavalo, e este aqui é arreio de cela, que eu ando a cavalo.”
Os filhos de seu Argemiro herdaram do pai o gosto pela lida com animais. “Eu tenho
dois filhos que trabalham com selaria e com sola. Um deles trabalha com couro cru, faz
tudo que é coisa com couro cru, menos laço. Laço ele não gosta de fazer porque é muito
trabalhoso, mas o resto ele faz tudo. Faz chicote, trança, arreio, cabeçada de cavalo, ferra-
gem, faz qualquer coisa. Eles aprenderam por conta deles, com sola eu trabalhei também,
mas é serviço grosseiro, serviço fino não fazia. Eles ficaram melhores do que eu nisso.”
Seu Argemiro aprecia a música caipira. Atualmente, quando vai ao Museu Vivo,
senta-se ao lado dos violeiros para cantar as modas de que tanto gosta. Além disso, é um
exímio narrador, sai de tempos longínquos, de veredas que hoje são avenidas, para contar
suas memórias e causos que ouviu durante os anos na lida com animais.

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C apítulo 5

Maria José Oliveira

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B olinho da roça

A receita que substituía o pão

n ta a s m ã o s c o m ó l e o , pega um pouco da massa e amassa, dando a

U forma de bolinhas. Abre a bolinha e, com a ajuda de uma faca, abre um filete.
Enrola entre os dedos, formando uma argola, leva à fritura. Polvilho, farinha
de milho, ovos, óleo e sal. São esses os ingredientes do bolinho da roça.
Maria José Oliveira conta que aprendeu a fazê-lo em Brasópolis,
Minas Gerais. “Minha mãe ia pra roça trabalhar e eu ficava como a irmã mais velha. Eu
ficava, as outras já não estavam em casa, e como eu estava sendo a mais velha, eu ali ficava
cuidando dos irmãos. Ela falava: você cuida das crianças! Aí, quando chegava na hora do
lanche, ali para duas horas, não tinha nada para dar de café para as crianças, eu falei assim:
vou tentar fazer! Aí, como eu vi minha mãe fazer, aí eu fui fazendo. Peguei o polvilho e fiz
como ela punha a tampa lá, preparei, tirei as crianças de perto para não ficar perto do fogo
e aí fui indo, fui indo e aprendi.”
Enquanto o óleo esquenta na panela da fritura, na tigela vão duas porções de polvilho
para uma porção de farinha de milho, ovos, água e sal. Mistura até dar o ponto. Dona Maria
José adverte que o óleo deve estar morno, nem muito quente e nem muito frio, caso contrá-
rio há o risco do bolinho estourar enquanto frita. Ela aprendeu olhando, vivendo a ocasião
ao lado dos irmãos, vendo a mãe preparando o alimento com o polvilho e com a farinha de
milho. Nasceu da necessidade de substituir o pão, que não era disponível todos os dias.
“Na roça é difícil um pão de manhã, na cidade a gente tem, mas na roça não. Aí a gente
fazia o bolinho de polvilho de manhã para tomar com café, porque ele é muito gostoso, ali
no lanche da tarde, e também quando chegava uma visita.”
O bairro onde ficava o sítio da família chamava-se Teodoro, localizado na Serra da
Mantiqueira, a 18 quilômetros da área central da cidade de Brasópolis, próximo a Piranguinho
(a cidade dos pés de moleque). Lá moravam em um sítio com os pais, irmãos, tios e avós,
num total de quatro famílias. Filha de Vicente Furtado e Maria Amélia, Maria José é a ter-

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ceira de um total de quinze filhos.
Conta que na comunidade viviam do
que “tiravam da terra.” Com exceção do sal,
quase todos os ingredientes eram produzidos
e comercializados pelos agricultores do bair-
ro: açúcar mascavo, mandioca, milho, feijão,
além das criações de porco, galinha e vaca.
Dona Maria José diz que sente saudades des-
sa época quando faz o bolinho da roça:
“Tenho muita saudade, minha mãe fa-
zia ainda o cafezinho com garapa, que aqui
fala caldo de cana. A gente ia lá no engenho,
moía a cana, trazia, punha na chaleira, ela ia
fervendo e a gente ia tirando aquela espuma,
até acabar toda aquela espuma. Aí punha o
café no coador de pano, passava aquela ga-
rapa quente por cima e fazia um cafezinho.
Chegava o domingo a minha mãe fazia um
almoço gostoso, com o céu azul, era muito
bom. A vida na roça é gostosa, mas é muito
cansativa.”
Ela chegou a São José dos Campos em
1967, acompanhando a emigração da famí-
lia. Casou e teve uma filha, Miriam, psicope-
dagoga, que conheceu o trabalho do Museu
Vivo e notou que sua mãe sabia fazer arte-
sanato semelhante aos expostos no Museu
do Folclore, pois, além de saber fazer pratos
tradicionais da cultura caipira, Maria José
também sabe fazer figuras em barro.
Ela conta que começou fazê-las quando
era criança e ainda brincava na roça. “Eu mo-
rava na roça e a gente, na roça, não tem brin-

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quedo. Naquela época, há 64 anos, não tinha brinquedo, mas a gente inventava. Aí um dia eu
estava no quintal de casa, assim, peguei um ovo de galinha, olhei: ah, se eu puxar uma orelhi-
nha, aqui dá outra, aqui dá um rabinho, dá um porquinho. Como onde a gente morava tinha
muita argila, aqui chama argila, mas lá a gente chamava de tabatinga, porque é branquinha, um
barro branco. Aí eu fui lá, peguei e fiz o primeiro porquinho, já fui fazendo os animais porque
em casa tinha muito animal. Olhava: ah, vou fazer uma vaca, pegava, fazia a vaca, cavalinho,
porquinho, galinha, galo, e assim fui fazendo. Aí, depois, quando eu vim para cá, eu tinha mi-
nha fazendinha, tinha tudo, chiqueirinho de porco, ainda passava água, era a coisa mais linda.”
“Eu larguei de brincar quando eu estava com quinze anos, eu estava de paquera com
um rapaz. Aí, lá na roça a gente fala proutra banda, língua de roça, lá proutra banda, lá pro
outro lado. Aí eu tava lá proutra banda lavando roupa, enquanto a roupa ia esquentando
no sol, porque lá em Minas a gente faz isso, aí eu tava brincando, conversando com meus
bichinhos, mudando eles de lugar, pondo pastinho, chiqueirinho, eu olhei, uma sombra
perto de mim. Quando eu olho para cima, era o rapaz. Nunca mais brinquei, e não casei
com o filho da mãe.”

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C apítulo 6

Maria Benedita Vieira

Mudinha
37
F iguras de barro

Ela esculpe, aperta, apalpa e amassa

e com um olhar atento às crianças, Maria Benedita Vieira,

C
om as mãos
a Mudinha, 73 anos, esculpe, aperta, apalpa e amassa a argila. Do barro
saem figuras de um universo rural e religioso: onças, pavões, galinhas, patos
e figuras do presépio. Estes bichos da roça e da floresta que ela faz na argila
chamam a atenção das crianças que passam pelo Museu do Folclore durante
o Museu Vivo. Pais e filhos passam e voltam para encontrar uma pessoa de expressões singu-
lares, pois ela não fala, mas usa suas mãos e seus expressivos olhares para se comunicar. Por
vezes convidou com os olhos as crianças que por ali passavam, como se as chamasse a dar um
passo a mais, a encostar-se à mesa e tocar as figuras.

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Um pouco da história de Maria Benedita com as figuras em barro já foi registrada no
vídeo documentário ‘Chuva de Anjos’ (disponível na exposição permanente do Museu do
Folclore). Nele, ao lado de sua mãe, Maria Vieira, a Mudinha apresenta o processo artesa-
nal de produção das figuras, um processo criativo, ligado a um modo de vida rural onde as
figuras são tanto brinquedos de crianças quanto personagens de presépios. Ainda no vídeo,
sua mãe conta que em cada lugar que Mudinha ia aprendia um pouco mais. Ao acompa-
nhar seu irmão ao cinema, aprendeu a fazer índios, ao frequentar os circos que chegavam
à cidade, aprendeu a fazer o camelo, o macaco, o urso e o elefante.
Com o falecimento da mãe, Mudinha passou a viver junto da família de seu irmão
e, posteriormente, com a família da irmã Ana Francisca Vieira, que é quem conta: “Ela
faz tricô, crochê, borda e cozinha. Ela consegue a argila com o pessoal do Museu Vivo,
usa arame fino, tinta para pintar, usa taquara e os pincéis. Vende para os museus e para o
Revelando (São Paulo). Na véspera do ciclo natalino faz um pouco mais, há pessoas que
fazem encomendas. Mas ela ficou quatro anos sem fazer as figuras depois da morte da
mãe. Só depois que ela veio morar na minha casa que começou a fazer de novo.”
“A Elaine, lá do outro museu (prossegue Ana Francisca), veio me fazer uma visita,
aí eu contei que a mãe tinha falecido e que ela (a Mudinha) ficou quatro anos morando

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na casa do meu irmão. Quando ela veio morar na minha casa, a Elaine falou que ia levar
ela pra passear lá no Revelando (São Paulo) e ela foi. Ela viu todas aquelas pessoas que
eram amigas da minha mãe e resolveu começar a fazer de novo. Então minha filha tinha
comprado um pouco de argila e tinha levado numa sacola para mostrar uns trabalhos (de
argila) na escola, para os alunos conhecerem o que era e como a gente fazia; e sobrou um
pouquinho, aí minha filha levou lá pra ela e ela começou a fazer.”
O passeio pelo Revelando e a participação no Museu Vivo possibilitou à Maria
Benedita encontrar outros figureiros, muitos deles expondo suas figuras. A partir deste
período o contato com os outros figureiros aumentou, assim como sua atividade com as
figuras, que havia diminuído desde a morte da sua mãe. Hoje ela participa do projeto
Santo de Casa – Tecnologias Populares, que promove o trabalho dos figureiros na cidade
por meio do Ponto de Difusão Figureiros de São José.

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C apítulo 7

Amélia Oliveira da Silva

Dona
Amélia
41
P astel de milho

As memórias do prato na família


compartilhadas na cozinha


dentro de uma vasilha. Depois que ela

E
s c a l d a a fa r i n h a d e m i l h o
estiver escaldada, a gente tem que sovar até que ela dê a liga. O polvilho
a gente escalda com gordura fervendo, para ele dissolver. Depois a gente
incorpora ele nessa massa para poder ter jogo de abrir. Para cada quilo de
farinha de milho, você usa duas colheres de polvilho azedo.”
Na casa de dona Amélia a cozinha é um espaço especial. Além de ser o espaço para
a arte da culinária, é também por onde a intimidade familiar é compartilhada, por onde
ocorrem e ocorreram muitas das relações entre as gerações. Sua filha, Dulcinéia, além de
compartilhar a receita sem qualquer reserva, relata a importância que o prato manteve na
economia da família quando eles viviam em Itajubá, Minas Gerais.
“Nós fomos criados com esse
pastel da minha mãe, mesmo quan-
do meu pai estava vivo, a gente ven-
dia na feira, lá na porta de casa. Todo
domingo a gente vendia. A gente
colocava numa mesa, porque a feira
era na rua da minha casa. Aí, mi-
nha mãe ia fritando e passando para
gente vender. Também por dois anos
eu vendi na escola, eu ia lá, minhas
irmãs estavam estudando, ficava do
lado de fora porque não podia en-
trar. Já tinha um bar que vendia as
coisas lá, senão eles pegavam as coi-
sas da gente. Aí eu avisava: olha já
estou aqui fora! Aí, elas pegavam e

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avisavam as amigas que estavam todas lá, e ficava eu e o Zezinho, passava pastel e pegava
dinheiro. Nós também tivemos dois bares, um era dentro da praça de esporte e o outro era
fora. Nessa época, meus dois irmãos mais velhos é que tomavam conta. A gente vendia
muito por lá.”
Amélia Oliveira da Silva, 92 anos, chegou a São José dos Campos na década de 1980,
acompanhando os seus filhos. Seu marido morreu aos 54 anos, quando ainda moravam em
Itajubá. Cedo ela teve de assumir as funções dele na família de cinco filhos, três mulheres e
dois homens. Por isso, a renda familiar foi muitas vezes complementada com a venda dos
pastéis. A receita e a prática de preparar o prato vieram da experiência de trabalho ao lado da
avó, quando ainda era criança e a acompanhava pela cidade.
Na cozinha, fazendo o pastel de milho com duas de suas filhas, Dulcinéia e Luiza,
dona Amélia compartilha segredos. Conta que seu sonho quando jovem era ter se dedica-
do à música, era fã de Vicente Celestino, cantor tenor que fez muito sucesso nas décadas
de 20, 30 e 40. Com críticas, ela lamenta os costumes antigos que seu pai mantinha acerca
da formação das filhas.
“Minha vó morreu com 64 anos. Ela fazia de tudo pra mim. Ela queria que eu fosse
uma menina estudada. Quando eu tinha 9 anos eu queria aprender música. Eu queria
tocar violino. Fui pedir para meu pai, aquele pai antigo. O pai era alfaiate, mas ele podia

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dar o violino pra mim. Minha vó, coitada, ela que ficava me incentivando: ‘fala pra seu pai
dar o violino pra você que aí a gente arruma pra pagar pra você aprender’. Meu pai (mui-
to antigo) ficou tão bravo: ‘O quê? Eu crio minhas filhas pra tomar conta de casa, fazer
comida, criar filho’. Nossa, aquilo foi um choque para mim. Eu gostava de cantar, onde a
gente morava, o dia que eu começava a cantar a turma tudo saía. Mas ele era bravo e meus
irmãos também. Naquele tempo era muito severo o modo de criação. Eu fiquei com aquele
negócio de querer ser cantora. Eu gostava de cantar Vicente Celestino.”
Dona Amélia começou a participar do Museu Vivo em 2003. Participou intensamen-
te ao lado de sua filha Dulcinéia. Ambas têm vivo na memória o dia em que várias escolas
da cidade de São José dos Campos foram participar do Museu Vivo. “As escolas foram
todinhas para lá, nós fizemos as receitas e foram aquelas crianças todas. Elas falando, a
gente dava risada.”
Dona Amélia acrescenta: “Eles queriam saber de que jeito eu fazia, por que fazia.
‘Quanto tempo que a senhora faz?’ Eu tinha que dar a explicação, porque criança fica na-
quela atividade. Aí eu tinha que explicar e começava a rir porque achava engraçado o jeito
deles. E foi mais de três anos que fui. Eu gostava muito de ir, as meninas muito legais, elas
não sabiam o que faziam comigo, foi muito bom.”

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C apítulo 8

José Marques Moreira

45
A rtesanato em T aboa

Eu olhava ele fazendo e ia fazendo também


com meu pai lá na roça. Eu quero explicar para vocês, ele, por

E
u aprendi
exemplo, ninguém ensinou para ele, ele aprendeu sozinho a fazer isso. Ele
fazia sozinho, não só a taboa como também trabalhava com o bambu. Fazia
peneira, balaio, cesto, fazia tudo. Os pais dele não sabiam fazer nada. A
gente achava engraçado, cadeira, por exemplo, assim, pra você ver, naquele
tempo a dificuldade de ferramenta, não tinha ferramenta. Ia no mato e cortava aquelas varas
roliças, cortava no facão e depois fazia os encaixes. Eu era moleque, tinha 12 anos. À noite,
por exemplo, ele ficava perto do fogão de lenha fazendo este trabalho. Trabalhava o dia intei-
ro na lavoura, parava cedo, 4h30, 5h da tarde; chegava em casa, tomava banho, aquela coisa e
tal, jantava e ia mexer com as coisas. Eu fi-
cava do lado dele, eu só não aprendi a parte
de bambu, não entrou na minha cabeça. O
que entrou mais foi a parte de taboa.”
José Marques Moreira, 74 anos,
aprendeu a trabalhar com a taboa ajudan-
do seu pai na roça. Ele é um exemplo de
como o saber-fazer na cultura popular se
dá muitas vezes por meio da convivência
com o outro.
“Meu pai fazia balaio, cesto, vazia pe-
neira de trabalhar com arroz com casca.
Fazia tudo, forro de casa, por exemplo.
Naquele tempo só fazia forro de casa com
taboa. A turma chamava ele para traba-
lhar direto, caia matando em cima dele

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para comprar cadeira, naquele tempo não tinha valor de nada, vendia barato. A turma
passava e encomendava: faz quatro cadeiras para gente, por exemplo. Ele ia lá no mato e
cortava os paus e fazia. Eu ia acompanhando ele, como eu era o filho único, eu era o único
que ajudava ele. Ele não ensinava nada, eu olhava ele fazendo e ia fazendo também.”
José Marques nasceu em São José dos Campos no bairro Bengalar, extremo oeste da
cidade, local onde viveu até os 24 anos, em meados de 1960. “Lá faziam plantio de feijão,
arroz, milho, plantavam também mandioca, criavam porco. Eu trabalhava com meu pai,
desde criança pegava no cabo da enxada. Quando eu fiquei, assim, com 14 anos, aí o patrão
que arrendava o sítio para meu pai, ele tirou a gente para ajudar a tirar leite e essas coisas.
Foi onde a gente completou 24 anos e foi obrigado a vir embora para a cidade. Deixei
meus pais lá, fazer o quê, não tinha outro meio pra gente poder continuar. Meu pai tinha
parceria com o patrão, fazia três partes, por exemplo, colhia três sacos de feijão, tirava um
para o dono da terra e dois ficava com ele pra ele vender. Com milho e com o arroz era a
mesma coisa.”
José Marques saiu do campo e foi morar próximo à região central da cidade, primei-
ramente na casa de uma tia. Depois de um ano se casou e adquiriu uma casa no Jardim
Telespark, onde morou por muito tempo, até que mudou para o bairro vizinho, Altos de
Santana, zona norte da cidade. Trabalhou em várias fábricas, Bendix, Alpargatas e na GM,
atuando inicialmente na área de usinagem e depois na área de montagem de motor, onde se
aposentou.
José Marques passou a participar do Museu Vivo a partir do Revelando São Paulo de
2001, em São José dos Campos.
“A dona Angela (Savastano), a Flávia (Diamante), e as outras moças, elas que me procuram.
Na verdade, eu nem sabia o que era o Revelando São Paulo, elas vieram atrás de mim, em 2001,
agora fez 11 anos do Revelando São Paulo. Aqui, o primeiro ano foi em 2001, eu nem sabia o
que era. Participei muitas vezes do Museu Vivo. Primeiro foi no Revelando, depois convidaram a
gente para fazer o Museu ao Vivo. Eu fui muitas vezes para lá. A gente fazia as coisas lá. A gente

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levava a peça para fazer lá. Hoje eu não vou mais por causa da minha saúde, e também os meus
filhos vêm todo domingo aqui em casa, eles são apegados na gente.”
O processo de produção com a taboa obedece aos ciclos lunares. É durante a lua em
quarto minguante que se corta a taboa. “Tem a lua certa para cortar, só na minguante. Na
lua errada enche de bicho, por incrível que pareça, ela enche de bicho, caruncha, fura tudo
e vira pó. Já na minguante o caruncho não consegue furar. O que o bicho ataca mesmo é a
lua nova. É onde a gente não pode cortar, se cortar na nova, perde todo o trabalho.”
Durante o Revelando São Paulo, seu José Marques conta que já encontrou pessoas que
não acreditavam na influência da lua sobre a planta: “No Revelando São Paulo, por exemplo,
quando a gente fala para essas turmas mais novas, eles ficam rindo da gente, porque isso é uma
coisa que não está escrito, não tem nada para eles acreditá. Para gente que foi criado no meio
do mato, a gente sabe disso. A gente fala isso para as pessoas mais novas, elas não acreditam
nisso daí. Com a madeira também, não é só taboa, tem mais coisas aí. A taboa se você corta
hoje, você deixa o pé dela lá, quando for outro dia ela já cresceu uns cinco centímetros, por ser
na água. Eu agora não vou mais, mas já cortei muita taboa.”
Mesmo com substituição da taboa por produtos industrializados, tais como plástico e
fibras sintéticas, ainda hoje existem muitas pessoas que procuram seu José Marques para
comprar as esteiras e cadeiras reclináveis que produz.
“As primeiras peças que comecei a fazer, a turma começou a cair matando em cima
da gente. Fazia esteira, a turma caia matando: Ah!, faz dois para mim, faz cinco. Depois
comecei a fazer a cadeira também, a gente que inventou. É uma coisa que é difícil de fa-
zer, ninguém quer fazer isso, não é que a
turma não sabe, a turma tem preguiça de
fazer, é muito trabalhoso. Tudo que eu
faço, o pessoal vem pegar aqui, eu não
tenho lugar para vender. Eu não venço
fazer e atender aos pedidos.”

o
48
C apítulo 9

José Soares da Silva

Zéda
Viola

49
V iola caipira

Um compositor às margens do rio Paraíba do Sul

Z
é da viola é um importante violeiro da cidade de São José dos Campos.
Participa do Museu Vivo acompanhado de seus alunos, ex-alunos e ami-
gos, violeiros experientes e recém-iniciados na arte de cantar e tocar viola.
Desde que se aposentou como pedreiro, há 23 anos, dá aulas de viola em
vários bairros da cidade pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo (FCCR):
Santana, Vila Tesouro, Eugênio de Melo, Dom Pedro, Novo Horizonte. Além disso, parti-
cipa da Folia de Reis e da dança de São Gonçalo.
José Soares da Silva, apelidado Zé da Viola, nasceu em 11 de dezembro de 1938 no
bairro Vila dos Pinheiros, região oeste da cidade. Saiu do bairro com a família quando
estava com 14 anos, morou em outras regiões da cidade e, atualmente, mora em uma casa
às margens do rio Paraíba, na Vila Esmeralda, região norte. Em sua fala, a vida na Vila dos
Pinheiros é uma memória atualizada com detalhes.
“Meu pai era piraquara, morava no sítio e vendia peixe na feira, e eu, com minha mãe,
que tocava a lavourinha, plantava cana, feijão, milho. Com 8 anos eu já tinha uma enxadi-
nha. Lá era um sítio, tinha cafezal, plantação, só que não tinha ponte, era uma balsa que
passava. Eles traziam tudo no lombo de
burro e no carro de boi, naquele tempo
não tinha caminhão. Só aqueles ricaços
que tinham aqueles fordinhos. Era tudo
levado naqueles balaios no lombo do
burro, no cangaio. O mercadão não ti-
nha banca, ponhava tudo no chão para
vender. Eu era pequeno, mas lembro de
quando vinha com meu pai. O que tinha
mais lá era pescador e o pessoal que tra-

50
balhava com carro-de-boi na fazenda do Lívio (Olivo) Gomes, que era dono da Tecelagem
(Parahyba). Ele tinha duas fazendas lá, a maioria trabalhava para ele, tudo carreiro, pu-
xavam mercadoria com o carro-de-boi. Trazia lenha, pedra, trazia tudo na beira do (rio)
Paraíba. O barcão não tinha motor, a turma trazia no varjão, arroz trazia para beneficiar.
Pro cê vê, os barqueiros subiam no braço.”
Zé da Viola se surpreende com as transformações que ocorreram ao atualizar na fala o
tempo da lida no campo. “Hoje em dia tem tudo na mão. Eu tenho saudade, a gente não tinha
dinheiro, mas tinha muita fartura: banana, mamão, abacate, ninguém vendia, tudo mundo
tinha.” Este tempo já foi retratado em várias de suas composições. Ao lado de Deowal Santos
compôs e gravou num disco compacto ‘Comida gostosa, a toada Boiada’, em 1986:

Uê, uê, ê boi!


Uê, uê, ê boiada!
A passo lento vou tocando pela estrada
A passo lento vou tocando pela estrada
Levo comigo meu cachorro ensinado
Minha roupa de poeira avermelhada
Meu cinturão de bata goterado
E o berrante vem berrando na toada

No pagode Recordação, também composição


da dupla, gravada no mesmo ano, a referência a uma paixão do tempo da infância:

Há muito tempo passado eu nunca me esqueço, não


O tempo da minha infância não sai da recordação
Conheci uma cabocla, uma rosa em botão
E no decorrer dos anos conquistei seu coração

Na música caipira de Zé da Viola o gosto pelo tempo passado na roça é manifestado


nos vários temas que as letras abordam: a paixão antiga, o modo de vida rural, a companhia
da viola. Todavia, a saudade avança, sai do terreno da poesia musicada para a prosa. No
quintal de sua casa, Zé da Viola relata com tristeza o fato de não pescar mais como seu pai,
Antônio Soares da Silva, um piraquara, pescador típico do rio Paraíba.

51
“Faz uns vinte anos que eu não pesco aqui. Depois que o médico falou que tava tudo polu-
ído, ninguém pescou mais. Acho que faz mais, quase trinta anos que a gente não come peixe do
Paraíba. A gente compra esses que vem do Mato Grosso ou vai no pesqueiro, mas no Paraíba
ainda tem peixe. Tem turma que pesca, mas eu tenho medo. O que acabou com o Paraíba foi
esse negócio de tirar areia. Derrubava mata da beira do Paraíba, meu pai falava: Esse negócio
mais tarde vai fazer falta aí. Na época de novembro e dezembro, época de piracema, fervia de
canoinha pescando. Agora hoje em dia você não vê mais nada. É triste, você subia por essa
beira, era só mato desses dois lados. Tinha goiaba, maracujá, tinha muita fruta.”
Ele começou a tocar quando ainda vivia na roça, ouvindo no rádio os programas
de música sertaneja e tentando reproduzir o que ouvia na viola e no violão. O rádio era
ligado a partir do momento em que chegava da lida na roça, próximo às 5h da tarde. As
duplas que mais chamavam a atenção do garoto José Soares eram Vieira e Vieirinha, Jacó
e Jacozinho e Tonico e Tinoco.
“Quando comecei a tocar viola eu tinha oito anos, só que lá na roça eu fazia as notas,
mas não sabia os nomes das notas. Lá a gente aprendia na raça. Meu pai tocava muito pou-
quinho. Ele não gostava que pegasse na viola, então, quando ele saia, eu ficava com minha
mãe e ia reinar com a viola dele. Depois tinha uma turma da cidade que ia lá, porque ele
tinha um celeiro muito bom, ponhava balde de milho, amarrava para os peixes comer, e,
domingo, a turma ia lá. Daí um dia ele falou para o senhor: esse cara aqui, ele quer apren-
der tocar viola de qualquer jeito, eu vou comprar uma viola para ele. Quando foi outro dia,
o cara levou uma violinha, daí, quando ele voltou, eu tava tocando a viola, ele perguntou:
‘quem que ensinou você?’ Eu falei: eu só tô reinando. Depois eu ensinei meu irmão a tocar
violão, aí a gente fez uma dupla. Eu tinha 14 e meu irmão 12, a gente cantava, a turma
pedia e buscava a gente pra cantar. Foi indo e tô até hoje reinando com a viola.”
“Tinha um senhor que tinha uma vitrolinha daquelas de dar corda, então, a gente ia
na casa dele. A gente ia escutando, escutando, aí chegava em casa, via se conseguia, algu-
mas conseguia, outras não, mas depois a gente pegava de novo, e assim fui aprendendo. Aí
depois de muito tempo meu pai comprou um rádio, daí melhorou, daí tinha aqueles pro-
gramas sertanejos, eu lembro do programa do Nhô Zé, há muitos anos, lá de São Paulo.”

o
52
C apítulo 10

Olavo José de Almeida e


Daniel José de Almeida

Danilo
Daniel &

53
V iola caipira

A gente não sabia tocar, batia no violão e cantava

O
l av o j o s é d e a l m e i d a ,
65 anos, é o Danilo. Junto com seu irmão,
Daniel José de Almeida, 59 anos, formam a dupla Danilo e Daniel. Tocam
e cantam no Museu Vivo na companhia do Zezinho, violão e voz. Além
deles, outros amigos e parentes participam da cantoria. A maioria participa
também das rodas de viola que ocorrem nos ranchos durante os finais de
semana. “Tem uma sobrinha que mora perto da represa do Jaguari, sempre quando a gente
vai para lá aos domingos, junta todo mundo, você precisa ver o tanto de gente. E eu falei para
ele: o culpado disso foi nós dois”, lembra Olavo.
Os dois irmãos chegaram a São José dos Campos em 1978, vindos do norte do Paraná,
da cidade de Apucarana, local onde começaram a cantar e tocar. “A gente começou a can-
tar quando morava no Paraná, a gente morava no sítio e quando trabalhava na roça a gente
gostava de carpir cantando. Daí, na volta, a gente se reunia e fazia uma cantoria. Tinha um
violão, mas a gente não sabia tocar, batia no violão e cantava. A gente sempre ouvia aquele
programa do Edgar de Souza, a gente não perdia”, conta Olavo.
A conversa prossegue com Olavo. “A gente chegava da roça à tardinha, a primei-
ra coisa que a gente fazia era ligar o rádio. Lá não tinha televisão, era só rádio, a gen-
te ouvia muito Tonico e Tinoco,
Zico e Zeca, Jacó e Jacozinho, essa
turma mais antiga. Até que hoje a
música que a gente mais canta é do
Tonico e Tinoco, Zico e Zeca, Jacó
e Jacozinho, foi essa a turma que a
gente mais pegou.”
Daniel explica que “para ser a
primeira voz e a segunda voz a gente

54
aprendeu ouvindo no rádio, a gente pegava e ia tentando fazer igual. Nessa época usava
muito o rádio, fazia um sucesso, você passava na frente de uma casa, o radinho estava liga-
do tocando, passava numa outra casa, a mesma coisa. Aquela música do Tonico e Tinoco
mesmo, Mamãe Mamãe. Nossa! Aquela música a turma inteira ouvia. Outra música que
também fez sucesso foi aquela Rainha do Paraná.”
O rádio teve um papel importante na formação musical da dupla. O radialista citado por
Olavo, Edgar de Souza, fez sucesso nas emissoras de rádio Piratininga e Nacional, em São Paulo,
durante as décadas de 60, 70 e 80, com programas voltados para música caipira. Retransmitidos
para várias regiões do país, os programas de rádio popularizaram muitas duplas caipiras e inspi-
raram muitos jovens violeiros.
Em Apucarana moravam os pais e seus seis filhos, cinco homens e uma mulher.
Chegaram à cidade em 1962, vindos de Macaúbas, região central do Estado da Bahia,
em busca de trabalho. O pai era carpinteiro e trabalhava na lavoura com os filhos mais
velhos como parceiros. Do montante total da colheita de café, 40% eram da família, 60%
do dono da terra.
“Nós saímos de Macaúbas na segunda-feira e chegamos ao Paraná na sexta-feira, via-
jando dia e noite. Foi em 1962, eu tinha 15 anos na época e ele (Daniel) tinha nove anos.
Nós fomos bem na época do frio. Chegamos no mês de julho, só tinha geada que ficava
tudo branco. Chegamos em Apucarana, moramos lá 16 anos, no sítio. Tem dois irmãos
que moram lá ainda”, conta Olavo.
A viagem para Macaúbas foi refeita recentemente, mas partindo de São José dos
Campos. Foi uma viagem importante, pois há anos eles não visitavam a cidade. Foram com
seus instrumentos, caixas de som e microfones porque havia uma novidade: a região da ci-
dade em que morava sua família
acabava de receber energia elé-
trica. Chegaram no mês de ju-
nho, durante os festejos de São
João, tradicional festa da cidade.
“Nós saímos de São José,
passamos pelo sul de Minas e
Paraíso, Pouso Alegre, pega a
Fernão Dias e vai indo. Lá bem
mais antigamente não tinha

55
energia no sítio. Aí ligaram falando que ia chegar energia. Aí falei para o pessoal, quando
chegar energia nós vamos vim aqui trazer o som para cantar pra vocês aqui, aí nós marque-
mos e fomos com dois carros, chegamos lá com som, microfone e tudo, nós vamos fazer um
showzinho aqui”, conclui.
Os versos abaixo fazem parte de uma música que não foi escrita, mas está na orali-
dade, na memória dos irmãos Olavo e Daniel. Eles narram a impressão que tiveram ao
retornar àquela cidade:

Cidade Maravilhosa, a capital de São João


O povo baiano muito alegre já tem essa tradição
Todo o tempo de fogueira muitos fogos e rojão

Daniel chegou primeiro a São José dos Campos, em busca de trabalho. Começou a
trabalhar como cobrador de ônibus na antiga Viação São Bento. Passados alguns meses,
Olavo também veio para São José e trabalhou por oito anos na mesma empresa e na mes-
ma função do irmão. De lá foi para a Phillips, onde trabalhou por dez anos e se aposen-
tou. Daniel ainda trabalhou até 1985 como motorista, em transportadoras e construtoras.
Depois disso passou a trabalhar na GM até se aposentar. Trabalhadores com experiência
no campo e na cidade que cultivaram ao longo dos anos a relação com a música caipira.

56
C apítulo 11

Luis Pereira
dos Santos

57
A rtesanato em taboa

A retomada de um conhecimento familiar


m a m ã o n ã o é i g u a l à o u t r a , você está fazendo um trabalho manu-

U al, a mão é uma benção de Deus. O que dá para transmitir para as pessoas
é isso! Eu sou muito grato às pessoas por terem ajudado a resgatar isso
de mim, ser o fazedor que eu não era, eu não sabia que eu era um faze-
dor! Precisou acontecer algumas coisas em minha vida para eu chegar nesse
ponto de saber que é isso mesmo o que eu faço!”
Luis Pereira dos Santos, 48 anos, é um artesão que, ao se apossar do saber sobre a ta-
boa, que estava em sua família há gerações, encontrou tanto uma possibilidade profissional
como uma forte ligação afetiva com a história de seu avô e de seu pai, Juvenal Pereira dos
Santos. O trabalho com a taboa em sua história de vida ocorreu por necessidade. Após
atuar em várias indústrias da cidade, ele ficou desempregado e, por influência do pai, ex-
perimentou o trabalho com a taboa.
“Aqui em São José meu pai começou a fazer para
uma pessoa, que disse assim: ‘o senhor não quer fa-
zer pra mim, eu sei que o senhor já fez uma peça!’
Meu pai trabalhava na prefeitura, no horto florestal
e respondeu: ‘traz aqui que eu faço, mas eu vou fazer
aqui em casa, não vou fazer em outro lugar não!’ Aí
trazia aqui e eu via meu pai fazer. Ele chegava, senta-
va no banquinho dele e, com o chapelão de palha na
cabeça, fazia. Eu falava: ‘ô pai, mais que dificuldade,
difícil esse negócio, hein?’ Ele dizia: ‘olha, é difícil,
mas se eu fosse você, mesmo trabalhando, eu faria as
peças também, porque um dia você vai precisar!’ Aí
eu falei: ‘olha pai, eu acho que não vou precisar disso

58
não!’ Eu trabalhava na indústria, mas acabou que o peixe morre pela boca, né? Então, eu
não tive outra saída. Eu me vi obrigado a fazer isso, só que daí chega a pessoa que fala
para você: ‘nossa que bonito, faz um para mim também!’ Aí é o que você vê, a pessoa, do
nada, vem e pede: ‘eu quero aquela peça que eu vi naquele tempo atrás’. Isso não tem pre-
ço, não tem preço a pessoa falar que gosta do que você fez na mão. Isso é demais, demais
mesmo, você poder fazer uma peça e vender essa peça que você fez desde o começo, tudo,
da matéria-prima que você vai lá na nascente dela, onde ela nasceu, cortar e fazer, é muito
bom isso!”
Luis valoriza a autenticidade de seu trabalho. Ouvindo o seu depoimento, percebe-se
que o tempo de sua história e das peças que produz se misturam.
“Quando uma pessoa chega para mim e diz: ‘bonito!’ É um motivo de criar mais uma
peça, é motivo de querer fazer mais bonito. Ou se não: ‘imperfeito!’ O que as pessoas podem
achar que é imperfeito, pra mim é perfeito. Por quê? Porque fui eu que fiz! (risos). Cada
pessoa tem sua história, talvez eu consiga contar um pouco da minha história com meu
trabalho, é muito difícil hoje você conseguir traduzir isso no trabalho. Eu espero estar con-
seguindo traduzir isso para meu filho.”
Luis Pereira nasceu em São Sebastião da Amoreira, mas viveu a maior parte da vida
em Londrina, ambas cidades do norte do Estado do Paraná. Mas a história da taboa em
sua família remonta à história da família Santos, de seu avô, Manuel dos Santos, que usa-

59
va a taboa para diversos fins,
como forro de casas, esteiras,
cadeiras, mesas.
“A parte da taboa, isso aí
era o dia a dia deles, como um
utensílio doméstico. Então
meu avô trabalhava totalmen-
te com a taboa, meu pai veio a
fazer quando era criança, para
poder ajudar, mas era meio
contra a vontade. Meu avô que
começou no interior de Minas Gerais, o pessoal procurava ele para fazer.”
Em São José dos Campos seu pai retomou o artesanato com a taboa e passou a manter
contado com seu José Marques, outro fazedor do Museu do Folclore. Depois de algum
tempo expondo com seu pai na Feira da José Longo, Luis conheceu o trabalho do Museu
do Folclore.
“Meu pai estava aqui fazendo peça para o seu José Marques e daí passou por aqui
a Cacilda (na ocasião, funcionária do Museu do Folclore) e convidou meu pai para par-
ticipar do Museu Vivo. Só que meu pai não quis, porque ele disse que já tinha seu José
Marques. E também ele era tímido, não tinha o ímpeto para ficar com um monte de gente
falando. Precisou ele ficar doente para eu poder procurar, daí que eu fui atrás! Eu falei: o
que eu sei da taboa é por influência do meu pai e do meu avô.”
Em sua oficina Luis frequentemente conta com a ajuda dos seus sobrinhos Érik e
Guilherme, aprendizes na oficina. Luis vende ali mesmo suas peças. Muitas pessoas que
vêem seu trabalho exposto no Museu Vivo ou no Revelando São Paulo procuram-no de-
pois para fazer negócio.

60
C apítulo 12

Luiz Paulo
Ragazini

61
F iguras de barro

A interpretação dos símbolos,


as memórias e o processo criativo


que diz que quando a gente passa a acei-

T
e m u m p r o v é r b i o b u d i s ta
tar nossas limitações, aí que nós passamos a ser felizes. Quando você acei-
ta sua limitação nada mais é de sacrifício.”
Luiz Paulo Ragazini ou Luiz Paulo figureiro, 49 anos, é um artesão que
integra o grupo de fazedores do Museu do Folclore. Religioso, membro da
Irmandade do Santíssimo, e muito interessado em história da arte. Ele narra com entusias-
mo tanto as simbologias bíblicas como os provérbios budistas.
“O advento do Natal são quatro domingos antes do dia de Natal. Antes do nascimen-
to do dia 25, então é a vela verde, a vela roxa ou vermelha, a vela rosa e a vela branca. A vela
verde representa a cura e a cor da promessa de Isaias, porque 300 anos antes do nascimento
de Jesus o profeta Isaias disse que o verbo se encarnaria no seio de uma virgem e estaria no
meio dos homens, que é o Emanuel, Deus Conosco, então, é a espera. Depois tem a vela
roxa ou vermelha, que é a vela da penitência. Ela lembra João Batista, que é a da promes-
sa. Então João Batista, antes da vinda de Jesus, ele
profetizava: ‘arrependei-vos que a salvação será che-
gada!’ Então, a turma tinha aquela leitura que tinha
que se arrepender porque o mundo iria acabar, mas
ele queria dizer que ia chegar um novo tempo. Tem
a vela rosa que é a cor da pureza, lembra da Maria,
então, quer dizer o sim. A vela branca representa
que ele já está no meio de nós, então, quer dizer com
a vela branca que Jesus já está no meio dos homens.
Você vê que é uma contagem regressiva, então, o
quarto domingo, o terceiro domingo, o segundo e

62
o primeiro. Depois é a vela dourada que é opcional, tem gente que coloca, mas tem gente
que não coloca, quer dizer: é o dia do nascimento, é a celebração da luz, da vida do Cristo!”
O tempo de produção de sua arte se concentra na época do ciclo natalino. Nesse período,
Luiz produz presépios, chuvas de anjos, imagens sacras e folclóricas.
“É assim, eu tenho que ser provocado, é aquela coisa, se eu falar pra você: eu vou fazer!
Aí eu tenho que fazer mesmo. Mas tem dia que não sai nada, quando o barro começa a se-
car muito na mão, começa a quebrar, você faz os detalhes e não dá certo, então, pode parar
porque aquele dia não vai ser legal. Na verdade, não tem dia certo, tem dia que a gente está
inspirado! Às vezes, a noite é quem me inspira, e dá na cabeça fazer alguma coisa. Eu nunca
gostei de fazer aquela produção em série. Cada presépio é único, se pegar os presépios um
dia para reunir, vai ver que um é diferente do outro, cada um tem uma mensagem. No Natal
eu queria que alguém entrasse na minha cabeça, a minha cabeça fica tão colorida, porque o
presépio já está na minha cabeça, desenhado!”
Seus avós vieram da Itália para o Vale do Paraíba durante o ciclo de imigrações euro-
peias e trabalharam em fazendas de café na região. Luiz nasceu em São José dos Campos, no
Jardim Augusta, no mesmo local onde vive com uma parte de sua família até hoje. No local,
agora urbanizado, ao lado da rodovia Presidente Dutra e do Centervale Shopping, seu pai
criava cavalos e trabalhava como ferreiro. Luiz começou a montar presépios quando ainda
era criança, comprando as figuras e os animais com as economias que o pai lhe dava.
“Eu era criança e sempre gostei de presépio, é muito mágico isso. O Natal para mim é
muito mágico, o que tem de mais próximo da magia é o amor, é este sentimento. E quando
a gente faz tudo com amor, com paixão é mágico! Por isso eu falo: magia existe! Mas eu
sempre fiz isso, aí eu caí doente,
e a gente sempre acostumado a
trabalhar feito um pé de boi, por
isso até hoje eu não paro.”
“Mas deixa eu explicar des-
de o começo, eu era criança e
sempre gostei de fazer presépio,
aí meu pai sempre dava um tro-
cadinho Eu, ao invés de ir com-
prar doce, comprar essas coisas,
ia comprar bichinho de barro,

63
bichinho de presépio, porque eu gostava de colocar os bichinhos no presépio. Aí um dia
eu peguei e disse: eu vou tentar fazer. Aí eu comecei a tentar e saiu de primeira, saiu muito
legal as galinhas, os patos, saiu tudo bacana! Até falei: nossa mãe, eu não sabia que sabia
fazer! Aí o pessoal dava risada do meu presépio, diziam: ‘Paulo, o que é isso? Presépio ou
granja?’ Tinha galinha, pato, um monte de bicho! A turma gozava da minha cara, eu tinha
uns 10 anos! Nisso eu comecei e nunca deixei de fazer.”
Até os seus problemas de saúde surgirem, Luiz Paulo não fazia figuras para vender.
Mas, assim que se viu obrigado a ficar mais tempo em casa, devido a sua condição de
saúde, procurou os organizadores da feira de artesanato da José Longo, região central da
cidade. Lá foi indicado a procurar o trabalho realizado com os fazedores do Museu do
Folclore, o Museu Vivo.
“Eu levei os trabalhos para a dona Angela, levei uma chuva de galinha d’angola e
uma Nossa Senhora do Amparo, que é o menino Jesus sentadinho em uma pilastra. Aí
conversamos e ela começou a me colocar no Museu Vivo aos domingos, comecei a fazer
lá. Isso faz uns oito anos mais ou menos, passou o tempo tão rápido. Foi dessa parte que
eu comecei a fazer, aí você vai fazendo, fazendo, é um trabalho que não tem técnica, você
vai aprimorando, porque todo o trabalho tem uma técnica de ser feito, mas a gente não, a
gente vai aprimorando, então vai surgindo, de repente você vê que não perde a rusticidade,
é arte popular nossa.”
Luiz Paulo atualmente também participa, junto com outros figureiros de São José dos
Campos, do projeto Santo de Casa – Tecnologias Populares.

64
C apítulo 13

Antonio Francisco Pereira

Chicão

65
P açoca e doces de amendoim

O pilão e o galeio na
produção da paçoca tradicional


amendoim, o pé-de-moleque moído, o pé-de-moleque com amendoim

O inteiro e a paçoca, que são três tipos: a paçoca doce, a de carne seca e
a de torresmo.” São estes os produtos que Antônio Francisco Pereira, o
Chicão, 72 anos, e sua esposa Jaira Maria Pereira, 61 anos, apresentam no
Museu Vivo. Além de participar do programa integrando a parte da culi-
nária, Chicão vende seus produtos aos sábados na Praça Afonso Pena, centro da cidade,
e também próximo ao Fórum, sempre na primeira
quinzena de cada mês.
Ele aprendeu a fazer com seus pais, quando
vivia em Natércia, sul do Estado de Minas Gerais.
Lá trabalhou desde criança ajudando os pais na
Fazenda João Goulart. Entre as atividades do dia
a dia estava o trabalho com o pilão.
“Antigamente tinha o pilão para fazer a paço-
ca, socar arroz para comer, fazer a canjica, quebrar
milho para tratar de galinha, fazer fubá para porco
e para nós mesmos comer. São coisas antigas, hoje
já vem tudo fácil (risos).”
Seu pai, Benedito Francisco Pereira, morou 32
anos nesta fazenda em Minas. Chicão, por sua vez,
viveu ali até os 16 anos, quando junto dos irmãos
migrou para o Paraná, para a cidade de Ibaiti. Não
se acertando com os irmãos, passou a viver em ou-
tra fazenda. Depois de trabalhar em várias delas,

66
conheceu Jaira, com quem se casou, ela aos 14 e ele aos 22 anos. Em 1973 chegaram a São
José dos Campos, após quatro meses em Jandira, região metropolitana de São Paulo. Na
cidade, trabalhou como pedreiro em várias empresas, e, posteriormente, trabalhou dentro
de frigorífico, onde se aposentou. Há nove anos trabalha com os produtos do amendoim.
Foi em São José que o casal teve quatro filhos, três mulheres e um homem. Atualmente,
todos eles, bem como as noras, genros e netos, ajudam o casal na produção quando a de-
manda aumenta.
“Este ano nós fizemos a festa junina da Johnson (indústria de São José dos Campos),
nós trabalhamos três dias lá. Teve um ano que eu fiz e foi vendido 400 kg de paçoca, tudo
no pilão. Teve dia que a gente perturbava os vizinhos aqui. (risos) O fogão de lenha e eu
com a mulher e minhas filhas e filho, todos eles ajudam a gente, tem essas panelas aqui, a
gente enchia de leite e pau na máquina (risos).”
Chicão tem um riso espontâneo que surge nas situações mais diversas. Ao contar
sobre seus procedimentos de trabalho, parou para fazer piada e rir do interesse dos filhos
na paçoca.
“O segredo da paçoca está aqui, se ele não souber torrar o amendoim já era! Então,
o segredo está nisso aí, o cara tem que saber trabalhar, tem que destacar o serviço dele.
Fazer um serviço com maior qualidade é importante. Muito bom, mas os caras levam
tudo assim, a torto e direito, não tem um objetivo certo para fazer aquele tipo de coisa. Eu

67
gostaria que a pessoa fizesse um produto beleza, como a gente faz para não deixar acabar.
Porque o dia em que eu for embora, tudo isso daqui, meu filho... é capaz de jogarem o pilão
antes do caixão sair (risos).”
Questionado sobre o sucesso dos seus produtos pela cidade, Chicão comenta: “Pelo
jeito de fazer, a higiene, a qualidade, olha, vou dizer para você, tudo que depender de co-
mida, o cara tem que saber fazer, o objetivo da comida é o jeito de fazer, tranquilo, aquilo
ali cativa as pessoas. Se faz uma paçoca bem feita, o caboclo gosta, faz um arroz bem fei-
tinho, o caboclo gosta.”

68
C apítulo 14

Jesus Pereira
de Lima

69
F olia de R eis

O fazedor dos versos da


Folia de Reis do Sertão da Onça


com um tio do meu avô em 1920, na Lagoa Airoca.

A
folia começou
Lá eles cantaram mais de 50 anos! Aí juntou com o pai da minha mãe,
que era tocador de viola, cantaram por todo aquele sertão tudo. Eu já
participava todo ano da Bocaina de Bananal, mas em outra bandeira. Aí
meu tio mandou um cara me buscar porque sabia que eu cantava reis e
tocava viola. Ele chegou e disse: Jesus, seu tio mandou vim chamar você, que sabe cantar
reis, porque eu não tenho um cantador de reis.”
Jesus Pereira de Lima, 56 anos, é mestre da Folia de Reis do Sertão da Onça de São
José do Barreiro, interior de São Paulo. Além de passar cerca de 15 dias, todo o mês de
dezembro, fazendo a folia naquela região, há muitos anos ele participa do ciclo natali-
no do Museu do Folclore na programação do Museu Vivo. Junto com outras folias, a
Folia do Sertão da Onça presta homenagem ao presépio montado no Parque da Cidade.
Parentes de Jesus também participam da folia que tem mestre, contramestre, palhaço e al-
feres da bandeira, bem como músicos
que tocam cavaquinho, violão, caixa e
pandeiro.
Atualmente, Jesus Pereira mora
no bairro do Putim, zona sul de São
José dos Campos. Além de ser deten-
tor da memória oral do grupo, em sua
casa ele também guarda a documen-
tação que conta a história da bandeira
da folia. Jesus recebeu a bandeira no
dia 25 de dezembro de 1984 do tio

70
Geraldo Camargo. Por meio da Ata de Posse e Compromisso da Bandeira de Santo Reis,
Jesus exibe uma lista com os foliões que passaram pela bandeira. Mais de 150 pessoas em
39 composições já a receberam ao longo dos seus 92 anos. Ela é reconhecida como a ban-
deira de folia de reis mais antiga do Estado de São Paulo.
Jesus Pereira conhece muito bem a genealogia de sua família, que remonta muitas
gerações, a maioria originária da Trilha do Ouro e do Estado de Minas Gerais. Na Trilha
do Ouro, Jesus Pereira nasceu, na divisa de São José do Barreiro com Angra dos Reis,
na fazenda Central do Brasil, “onde passava o ouro que ia embarcar em Parati.” Lá vivia
da agricultura ao lado dos pais e dos onze irmãos. Seu pai, Geraldo Henrique de Lima,
morreu quando ele tinha sete anos de idade. Com 16 anos Jesus saiu da região e foi morar
em São Sebastião. Lá trabalhou em vários empregos até ingressar na Petrobrás, onde tra-
balhou por 16 anos. Casou-se duas vezes e teve três filhos. Posteriormente, foi morar em
Bananal onde conheceu e casou-se com Adriana, atual esposa, com quem tem dois filhos.

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“Então saía do Sertão de São Sebastião e ia para aquele Sertão da Onça cantar reis. E
se eu falar para você que minha folia é a que bate mais o reco lá na serra, você vai achar que
é brincadeira. Minha folia nunca tirou menos de 12 bois em 43 anos de folia!”
Jesus é conhecido entre os foliões pela facilidade com que compõe versos durante a
folia. “Um primo me falou: ‘eu sou bom na viola, mas você é bom no verso!’ Porque eu ia
cantando assim, não era porque eu era bom não, é porque o verso vinha naquela hora. Ele
vinha na hora e entrava na minha cabeça. Um dia estava cantando na Bocaina de Cunha,
se eu falar para você, a gente estava cantando e tinha um cantador de reis lá e ele chorou
quando eu cantei um verso assim: ‘Maria foi anunciada pelo anjo Gabriel, mandada do pai
eterno para ser mãe do rei do céu’. O homem chorou porque eu cantei um verso bonito!
Quando foi em 2000, veio um verso assim: ‘Há 2000 anos esse fato aconteceu numa cida-
de em Belém, um anúncio percorreu na gruta de Belém, o menino Jesus nasceu’. Depois
eu estava cantando para despedir de um folião de reis que estava com 84 anos, ele era con-
tramestre de uns caras que cantou reis também, aí eu cantei para ele assim: ‘Aqui está toda
a bandeira, visitou toda a família, quem sentir saudade dela vai na festa no seu dia, porque

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nós anda pro mundo a fora, nossa opinião é essa, nós visita nosso povo e visita nossa festa’”.
“O Herodes era mal, mas ele participou da cantoria de reis, ele participou da visita
do menino. Porque o Herodes, quando o menino nasceu, queria matar porque não podia
ter um rei na frente dele, porque ele era o rei, como é que iria nascer outro rei? Quando
falaram que nasceu o rei do mundo, ele falou: ‘Mando matar ao redor da Galileia e mando
fechar a Judeia, matar todo mundo de dois anos para baixo’”.
“Então, quando eu fui cantar o presépio, eu cantava o nascimento, cantava assim:
‘Os três reis estavam dormindo quando veio uma voz pelo sul, os anjos vieram avisar que
nasceu o rei do mundo. Os três reis do Oriente partiram para Belém, para visitar o me-
nino Deus que nasceu para nosso bem’. Aí, quando eu cantava o menino Deus, entrava o
Herodes: ‘O Herodes, quando soube que o menino Jesus era nascido, sempre ele esperava
da sua coroa perdido, de dois anos para baixo mataram todo inocente. Herodes ficou pen-
sando que matou o onipotente, mas os três reis como eram santos, do caminho estavam
ciente, foram direto em Belém, onde estavam o onipotente. Os três reis quando chegaram,
logo abriram seu tesouro, ajoelhados ofereceram incenso, mirra e ouro, aí o menino abriu
os braços e recebeu a adoração, os três pastores do deserto foram para linha do chão’”.
Jesus Pereira demonstra que sua habilidade para composição imediata de versos ocor-
re também quando está cantando o calango: “O calango, se você pegar ‘a linha do a’ você
diz: eu vou cantá agora na ‘linha do a’! Morena não penteia o cabelo, não precisa embelezá,
se a pintura é do diabo, boniteza é Deus quem dá, se ocê cantá, imagina eu pra você, eu
canto sem imaginá, trago moda na cabeça que nem letra no jorná, se em pé eu dou rastei-
ro, deitado sem piorá, eu trago moda na cabeça sem você imaginá! Aí cê vai cantando ‘na
linha do a’, cê vai embora só naquela linha até a sanfona parar.”

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“Aí, quando você vai cantar na ‘linha do traidor’, você diz: ‘Eu vou cantar na ‘linha do
traidô!’ ‘Eu pensei que não tinha miséria de cantadô, dentro de casa eu trazia meu canário
dobradô, eu tava na beira do cais quando a barca passô, meu amor tá na janela, Camões
já me chamô, deu um vento na roseira, me cobriu todo de flô. E diga a ela que eu estou
preso no jardim de flô. Fala pra ela que eu estou preso, quando me soltar eu vô’. Aí se está
dentro da ‘linha do traidor’”.
Jesus explica que o calango não é sagrado como a folia de reis. É uma espécie de de-
safio que ocorre nas festas. “Se você está na ‘linha do traidor’ e pular para ‘linha do a’, você
perdeu. O cara já perdeu, porque ele pulou a linha, já não é mais aquela linha. Lá em São
José do Barreiro tem essa tradição. Se você pular para a ‘linha do a’, você perdeu a linha.
Tem a ‘linha do dão’, ‘a linha do a’, ‘a linha do b’, ‘do c’, vai tudo, cê vai cantando.”

74
C apítulo 15

Benedito Rodrigues dos Santos

Roxinho
75
moçambique

As memórias da aprendizagem:
encantamento, entrosamento e devoção


u c o m a n d o o g r u p o , mas o grupo tem muitas partes, tem a parte que

E eu sou responsável, que é pelo grupo completo, mas tem o puxador de déscia
(de música) e de bastão. Tem umas par de repartição, sabe?”
Benedito Rodrigues dos Santos, o Roxinho, 75 anos, é mestre de
moçambique. Explica que é ele quem orienta e corrige os dançarinos na
coreografia, organiza a hora de começar e de parar, assim como escolhe aqueles que irão
dançar. O apelido de Roxinho, com exceção da sua casa onde os parentes lhe chamam de
vô Dito, é a forma mais popular de chamá-lo.
“Em 1960 eu morava na roça, no Rochedo. Lá meu apelido era Nenê. Depois vim para
cá, o nosso chefe da Tecelagem que arrumou serviço para mim. Então falou pro pessoal que
trabalhava com ele: vai vim um servente para trabalhar com a gente, é o servente que arrumei
lá, ele está acabando de fazer a ficha. E tinha um lá que colocava apelido em todo mundo,
o João Toco, era o apelido dele, da turma do Chico Ferreira. Ele colocava apelido em todo
mundo. E eu lá do Rochedo da roça, é em São José mesmo,
lá é uma barroca, umas rochas de pedra. Então, eu caipirão
lá, nunca tinha trabalhado fora em lugar nenhum, tinha
uns 20 anos. Aí ele perguntou: ‘Mas esse servente vem da
onde?’ ‘Do Rochedo’. ‘Qual é o apelido que eu posso pôr
nele?’ Eu nem tinha chegado, eles já colocaram o apelido
em mim.”
Seu Roxinho trabalhou muitos anos na Tecelagem
Parahyba e aposentou-se como pedreiro. Antes de ingres-
sar na profissão, trabalhava no Rochedo, zona rural de São
José dos Campos, ajudando a família no trabalho da roça.

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“O começo da situação, da convivência da gente, eram cinco irmãos. Nossa vida lá, a
gente vivia de roçado de pasto, capina, limpar café. A gente falava limpar café, é capinar o
mato no meio do café, a gente falava assim, mas no modo certo não era limpar o café, era
capinar, tirar o mato do pé de café. E vivia assim, plantava arroz, feijão, lavoura de café,
lavoura de milho, roçado de pasto para os fazendeiros, então, o meu pai vivia disso daí.
Fazia de tudo! O meu pai é daqui mesmo e minha mãe era mineira. A gente se formou
nessa labuta. Depois morreu a mãe, aí ficou como aqueles aviões que ficam sem um motor.
Eu tinha uns 14 anos.”
O moçambique começou na vida do seu Roxinho quando ele saiu do bairro do Ro-
chedo. “Lá no Rochedo não existia moçambique, era mais aquelas danças de cateretê,
forró, essa era a diversão nossa lá. Depois, quando eu vim até o Buquirinha, então, eu com
meus amigos ali, um dia eu cheguei e fomos lá com o Zé Florindo, e lá tinha um grupo
de moçambique que eu achava muito bonito, e lá o pessoal quebrava o pau, prai, prai, prai.
Nessas alturas eu tinha uns 18 ou 19 anos, solteiro, eu vi e achei muito bonito, mas não
entrei. Depois eu vim aqui para o Bairrinho, onde ela foi criada, no Urbanova. Ali tinha
um grupo de moçambique quente mesmo,
na época eu ficava bobo de ver. Tinha um
homem lá, compadre Miguel Santos, o des-
gramado pegava assim, virava um salto mor-
tal. Puxa vida, eu ficava bobo, mais ligeiro
feito um caramba, rapaz. Eu falava: mas que
desgramado de homem ligeiro. Daí a turma
via que eu estava lá, eu achava muito bonito
mesmo, eu ficava ali olhando, e o pai dela
era um dos mestres moçambiqueiros, daí eu
ficava olhando, e achava muito bonito, foi
indo, foi indo, pouco a pouco, foram dan-
çando, e daqui a pouco foi onde eu falei que
queria aprender aquilo lá.
Eu sei que devagarzinho eu comecei a
entrosar no meio e comecei a ficar meio prá-
tico daquilo ali. Daí voltei para o Alto da
Ponte, tem esse grupo do seu Armindo, aí eu

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tive conversando com eles aqui, uma rapaziada muito boa. Eu fui e eles falaram: ‘Vem aqui
que você aprende a dançar’. Meio se perdendo no meio da turma, se enrolando no meio
da turma, a turma ensinando para mim, só que eu lembro muito bem que a rapaziada do
seu Armindo, na hora de uma passagem, o de lá passa para cá e o de cá passa para lá, e eu
nessa hora, rapaz, me enrolava todo, até que o caboclo chegava e empurrava eu, uma em-
purradinha pra aqui e outra pra cá. Depois o caboclo falava, negócio é o seguinte: quando
eu passar no seu lugar, você passa no meu. Daqui a pouco eu já estava muito bom.”
Após se encantar com o moçambique do Bairrinho, seu Roxinho se enturmou com o
pessoal do mestre Armindo, do bairro Alto da Ponte, grupo que mantinha estreita relação
com o grupo do Bairrinho, atual Urbanova. Sua esposa, Maria Aparecida Silva Santos,
conta um pouco sobre a sua vida no Bairrinho. Seu pai era piraquara, atuava como pesca-
dor no rio Paraíba, pagando, inclusive, imposto para a Marinha.
“Nós somos 10 criados tudo com o dinheiro de pesca, tudo de peixe. Nesse Paraíba
tinha demais de peixe. Serafim Pereira era meu pai, ele contou que era do moçambique
desde os 12 anos. Eu cresci vendo, a gente segurava a bandeira, a gente saia para dançar
pra fora, no Meia Lua em Jacareí, na Aparecida. Durante a Festa de São Benedito a gente
pousava lá, ficava três dias na Aparecida.”

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Roxinho e dona Maria Aparecida se conheceram no Bairrinho por meio do irmão
dela e do moçambique. Ela era a rainha do grupo e seu pai era um dos mestres. Seu
Roxinho explica as atribuições da rainha e de outros elementos da dança:
“Então a rainha fica segurando a bandeira e nós atrás dela, uma é de São Benedito e a
outra é de Nossa Senhora do Rosário. Uma é a bandeira de fita vermelha, que é a de São
Benedito, e a outra, a de Nossa Senhora do Rosário, é toda azul claro, o pano da bandeira e
as fitas. Então é aquilo lá: roupa branca, fita azul claro, o boné branco. Ali tem o mestre ge-
ral que sou eu, tem o puxador de déscia, cantoria e bastão. Na parte da música tem os cai-
xeiros, que é a parte dos instrumentos, que faz parte do som, tem as caixas e o acordeom.”
Embora não seja o mestre responsável pela cantoria, seu Roxinho canta alguns trechos
das canções:
“E com Deus, Virgem Maria, São Benedito, com Nossa Senhora, eis seja nossa guia.
A outra parte fala: ‘Eh, senhor, e vamo amarrá guaiá, oi vamo amarrá guaiá, ai vamo
amarrá guaiá, meus irmãos, Nosso Senhor, vamo amarrá guaiá!’ Quando vai despedir para
ir embora, então ele fala diferente: ‘ói manda tirá guaiá, ói manda tirá guaiá, ói vamo tirá
guaiá, meus irmãos, ói vamo tirá guaiá’. Amarrar o guaiá é para começar e tirar guaiá é para
ir embora. Por aí vai, tem vários tipos de déscia que a gente, de acordo com o instrumen-

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to, vai recordando. Mas eu não sou mestre de cantoria, o mestre tem as manhas, só que a
gente, conforme a dança, o instrumento, a gente vai relembrando.”
O moçambique ocorre durante os festejos do Divino, Nossa Senhora do Rosário ou São
Benedito. Nessas ocasiões pode ser dançado como cumprimento de promessas. Observando-
se o rito e a narração de seu Roxinho, percebe-se que a sinergia que se manifesta no movi-
mento dos bastões é uma forma de acesso a um tempo sagrado. Seu Roxinho, ao falar do bai-
lado, usa de várias onomatopeias, constantemente os estalos dos bastões ganham expressão
em sua fala. Todavia, na festa que ocorre anualmente no Bairrinho, a devoção e a promessa
se manifestam também nos organizadores da festa e no público em geral.
Além da apresentação no Bairrinho, o grupo de Roxinho, ao lado de outros grupos
de moçambique da região, se apresentavam na Festa de São Benedito, festejo que ocorria
anualmente na Igreja de São Benedito, ao lado da Praça Afonso Pena, centro da cidade de
São José dos Campos. O festejo, até quando era organizado pelas irmandades responsá-
veis, estava no roteiro das ações do programa do Museu Vivo.

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C apítulo 16

Sebastião
Marcolino

81
F olia de R eis

A dedicação às bandeiras da
Folia de Reis Estrela-Guia de São José


bandeira, o seguinte: a gente ganha muita fita. O povo faz promessa

A e põe muita fita. Então a gente sai com a bandeira com pouca fita e ela acaba
carregando tanto que acaba a gente precisando tirar a fita, compreende, tanto
que o povo põe como promessa. Eles fazem promessa quando a gente repete
a visita, eles sabem que a gente vai voltar e fazem a promessa, tira a fita e mede
no corpo, tem um problema na saúde, eles fazem promessa e vai grampeando fita. Tem família
que escreve o nome da família inteirinha na fita!”
Sebastião Marcolino, 79 anos, é embaixador da Folia de Reis Estrela-Guia de São José
dos Campos. Ele apresenta com entusiasmo as duas bandeiras que guarda em sua casa,
ambas da mesma folia, mas utilizadas em ocasiões distintas. Na menor delas, feita para
levar no carro quando o grupo sai de
uma região para outra, há uma pintura
do encontro dos três Reis Magos com
o menino Jesus nos braços de Maria, ao
lado dela está José. Na maior, utilizada
durante os festejos, estão pintados os
três Reis Magos montados em camelos,
seguindo a estrela-guia, atravessando o
deserto.
Há 65 anos Sebastião faz a folia de
reis. Começou quando vivia em Minas
Gerais, em Conceição do Rio Verde,
acompanhando seu pai, José Marcolino.
“Eu ajudava meu pai desde a idade

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de oito anos, ele era embaixador. Aí depois, quando estava com 14 anos, ele ficou doente,
eu fiquei triste, pensei, vai acabar a folia de reis. Aí ele falou assim: ‘você tem condição
de tocar a folia de reis, você já sabe cantar, conhece as letras, você pode sair com a folia,
aí meu grupo não pára’. Eu disse: ‘Se é que eu vou sair, eu vou sair só com moleque, só
com moleque de 15 anos para baixo’. Aí ele falou: ‘mas tem um velho lá que eu quero que
acompanhe você, não deixa o velho para traz não!’ Aí saímos, 15 moleques e esse velho,
mas foi tão bacana, os fazendeiros que não recebiam folia passaram a receber. Todo mundo
queria receber. A gente não era da cidade, era da roça, a gente montava no burro; e ficou
tão bacana que todo mundo da cidade queria receber a gente. Essa folia de reis de 15 anos
marcou! Daí não parei mais!”
Além da folia de reis, Sebastião conta que já integrou grupos de congada e folia do
divino na cidade, mas que, infelizmente, a quantidade de participantes foi diminuindo a
ponto de não ter um número mínimo. Embora a quantidade de participantes, principal-
mente para a congada, seja um problema, Sebastião traz atualmente três dos seus 12 filhos
e quatro dos seus netos para a folia, que todo ano visita os presépios do Museu do Folclore,
das igrejas e residências de cerca de 15 bairros da cidade.
“No Museu do Folclore a gente apresenta em dezembro e janeiro, quando monta o pre-
sépio e quando desmonta. A gente vai lá, mas o que a gente mais faz é nas casas, saí cantando
nas casas. Aí dá uma base de 300 casas por ano. Às vezes tá encerrando a noite, o povo tá

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tudo querendo, mas a gente vai embora porque tem que ir a outro bairro, porque a cidade é
muito grande, e se a gente ficar invernando nos bairros, a gente fica três ou quatro dias num
lugar só. E a gente não quer isso, já tem os bairros agendados para gente ir. Nós cantamos 15
dias, um dia em cada bairro. Tem dia que a gente faz dois ou três bairros, já estão agendadas
as casas, a gente vai até as 10 horas da noite, tem dia que vai até às 11 horas.”
Sebastião conta que durante muito tempo só sua folia de reis cantava pela cidade.
Mas, com o passar do tempo, foram surgindo outras, muitas delas nascidas do seu grupo.
“Eu fui dividindo, mandando gente, tinha 40 pessoas, é muito grande, muito ruim
cantar com muita gente, na hora do almoço é difícil arrumar para todo mundo. Então eu
fui dividindo, a pessoa que estava mais sabida eu dizia: ‘vai para lá, arruma uma para você,
dá para você cantar de frente, você leva um grupinho para você’. É difícil sair, eu escalar
quatro, cinco pessoas para sair de mim, eles ficaram revoltados comigo, tem folião que é
revoltado comigo até hoje.”
Em 1950, Sebastião Marcolino chegou, junto com sua falecida esposa, Maria Rita
Marcolino, em São José dos Campos. Após um ano trabalhando como empregado em
uma oficina, pediu as contas e montou sua própria oficina de marcenaria. Como marce-
neiro aposentou, deixando a cargo de seu filho a oficina que funciona plenamente até hoje.
Atualmente Sebastião Marcolino é também conselheiro na organização religiosa ca-
tólica Federação Mariana. Lá, além de atuar como conselheiro, há 15 anos trabalha como
voluntário, realizando trabalhos de marcenaria. No Museu do Folclore ele participa du-
rante o ciclo natalino da programação do Museu Vivo, auxilia na organização das folias
que prestam homenagem ao presépio.

84
C apítulo 17

Maria Benedita dos Santos

Dona
Lili

85
F iguras de barro

Eu sou muito rica, porque


rica não é dinheiro, rica é amor


i n h a av ó fa z i a p o t e , moringa, aqueles cuscuzeiros de fazer doce. Tudo

M para uso dela. Então, eu cheguei pra ela e disse: ‘Vó, eu quero fazer uma
galinha!’ Ela disse: ‘uma galinha não, como é que chega?’ Eu disse: ‘a bença!’
Porque eu cheguei e já falei direto: ‘Eu quero fazer uma galinha!’ Tinha que
pedir a bença primeiro. Aí ela pegou e falou: ‘Então faz uma bolinha, agora
faz um bolinho de festa, faz um rabinho’”.
Maria Benedita dos Santos, a dona Lili, atualiza das suas memórias o início da arte de
modelar figuras em barro. O episódio ocorreu quando morava com a família numa fazen-
da no bairro do Barreiro, em Caçapava. Ela tinha seis anos e vivia muito próxima da avó
Porcina de Andrade, de quem possui um retrato antigo.
“Eu aprendi com minha avó, primeiro, a fazer a galinha. Vinha aquela criançada e a gente
se juntava, porque eles também não tinham brinquedos. A gente ia ao ribeirão pegar o barro,
pegava um saco de estopa, arrancava uma bolota de barro e trazia do ribeirão. A figura eu
aprendi com minha avó, mi-
nha mãe não gostava de pôr
a mão no barro. Quem fazia
era minha avó, meus irmãos,
minhas irmãs. Essa avó foi
muito importante para mim.”
Dona Lili viveu du-
rante muito tempo entre
as cidades de Taubaté e
Caçapava. Chegou a São
José dos Campos já casada

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com José Benedito Santos e trazendo os filhos
para morar na fazenda Capão Grosso, hoje bair-
ro Santa Inês. “Quando foi em 1950 que eu ca-
sei, eu vim ali no Santa Inês, ali era um sertão.”
Dona Lili conta que a vida no Santa Inês tinha as
dificuldades da vida no campo. Contudo, foi nes-
te mesmo período que voltou a fazer as figuras,
ensinando seus filhos a fazerem seus brinquedos,
como sua avó havia feito.
Como aponta o figureiro Luiz Paulo, há uma
marca muito particular nas figuras que dona Lili
produz. Seus filhos deram continuidade a este sa-
ber-fazer: assimilaram, transformaram e transfor-
mam as formas que vivenciaram com a mãe. Na
prateleira de sua pequena e aconchegante sala de
trabalho há algumas figuras em tamanho grande,
outras em proporções diferentes, mas que seguem
um mesmo traço de rusticidade das suas figuras.
São de autoria do seu filho Benê, que também faz
brinquedos de madeira, arte que aprendeu com o
avô e com o pai.
É uma arte em família. Enquanto conver-
sávamos, sua filha Fátima modelava ao lado. Do
barro que ela abraçava com suas mãos surgia Reis
Magos com cajados, galinhas e também uma enig-
mática figura feminina vestida de branco. Ambos
os filhos ensinam a arte de fazer figuras em escolas
e no ponto de cultura Povo de Monteiro Lobato.
Benê também trabalha no grupo de pesquisa e
performance folclórica Piraquara.
Dona Lili é ainda narradora de causos e his-
tórias. Atualmente seus filhos trabalham na pro-
dução de seu livro biográfico, onde estarão mui-
tas de suas histórias. Em sua casa ela já recebeu
muitos pesquisadores, documentaristas, escrito-

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res e jornalistas. Muitas de suas figuras têm nomes e histórias próprias, foram publicadas
em textos de diferentes gêneros e ainda participaram de animação e vídeo documentário.
Fátima guarda com cuidado os recortes de jornais, revistas e páginas impressas da internet.
Uma das lendas contadas por dona Lili e publicada pela escritora Sônia Gabriel é a
lenda de Nhá Pureza e de seu filho Zé Claudino. Nesse causo, todos os dias a mãe arru-
mava o farnel para o filho ir trabalhar. Em sua comida, ela nunca deixava de colocar um
dente de alho com casca. O filho, por sua vez, andava preocupado com sua mãe, que estava
com idade avançada e ficava boa parte do tempo sozinha, em casa. Despedindo-se dela,
Zé Claudino montou em seu cavalo rumo à lida. No caminho, cruzando os campos, se
deparou com um embrulho no chão. Ao se aproximar, percebeu que se mexia, que era uma

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criança! Ele acolheu a criança nos braços, subiu no cavalo e passou a imaginar o que faria
com ela: levaria para a mãe que, carente de companhia, aceitaria a criança.
Ao longo do caminho, o cavalo passou a se comportar de forma estranha, relinchava a
esmo como se estivesse com medo. De repente, surgiu uma voz das profundezas do sertão:
“Por que você ainda não entrou no corpo dele?” A criança respondeu: “Porque ele comeu
alho com casca!” Atônito, o rapaz jogou aquele ser para o alto que, ao subir, desapareceu.
Aos galopes, ele chegou à casa de sua mãe. Pálido e muito nervoso, contou a ela o que
havia ocorrido. Ela, acolhendo-o nos braços, disse: “É por isso que coloco alho com casca
na sua comida todos os dias!”
Entre os jornais que guarda, dona Lili tem um recorte de um artigo noticiando a
criação do Museu do Folclore em 1997. Participando como fazedora do museu ela visitou
várias escolas e participou diversas vezes do Museu Vivo aos domingos. “A gente ficava
lá o dia inteiro, conversava, ensinava, aprendia. Aqui nesse Vale do Paraíba eu já ensinei
mais de cinco mil crianças.” Atualmente dona Lili participa também do projeto Santo de
Casa – Tecnologias Populares.
Dona Lili sente falta da música e da poesia nas atuais escolas. Em sua memória, guar-
da bons momentos de quando era estudante, muitos deles ativados pelas poesias e canções
que declamou e cantou.
“Nesse lugar, que era perto da escola, a gente cantava. A professora falava assim:
‘Agora vamos plantar a plantinha’. O menino cavucava a terra e a gente ia plantar o pé
de manga. Ela falava assim também: ‘Então vamos cantar o Hino Nacional e o Hino da
Árvore!’ Aí todo mundo cantava, porque a árvore merece elogio e carinho. A gente pegava
e cantava: ‘Cavemos a terra e plantemos nossa árvore. Que amiga bondosa ela aqui não
será? Um dia voltamos e pedimos-lhe abrigo, flores ou fruto ou sombra ela dará. A terra
que é boa, nos firma a raiz, o sol de dezembro me dê seu calor’”.
“Para você ver, eu passei agora por lá, com 94 anos, eu não achei fruta, tinha só uma
jabuticabeira lá, com umas frutinhas. Mas o pé de manga também já tinha dado manga,

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não tinha flor, mas foi onde que eu tomei um copo d’água na sombra da árvore que eu
ajudei a plantar. Eu plantei com 11 anos e agora eu voltei lá com meus filhos, eles também
chegaram na sombra da árvore para tomar um copo d’água. Eu nasci de uma pessoa muito
simples, também, mas toda a vida eu adorei muito a leitura e a natureza. Nossa, a nature-
za! Até nesse lugar onde eu nasci, quando a gente vinha descendo o morro lá, eu parei no
lugar da escola, da minha escola, e lá eu fique tão triste porque lembrei tudo que já passei
naquela escola, aqueles colegas tão legais, aquela professora tão boa.”
Dona Lili tem uma forte relação com o catolicismo popular e com a natureza. Por
vezes os pássaros que vivem nas árvores de seu quintal entram em sua casa. Ela atribui um
sentido mágico e místico à visita deles.
As palavras, as figuras, a devoção são expressões da sua arte de viver, uma obra de arte
em constante produção. “Graça a Deus eu sou muito rica, porque rica não é dinheiro, rica
é amor. Mas é bom ter dinheiro também, um pouquinho sempre é bom. Mas, nossa, eu
vivi tanta coisa, eu queria ver se eu explodia, mas acho que não dá tempo, porque tem coisa
demais, nem falando bastante dá para terminar.”

90
C apítulo 18

Laudeni
de Souza

91
jongo

O ponto e os tambores


T
oda vez q ue um jongueiro chega e quer cantar um ponto ele grita:
‘Machado!’ Aí para tudo e a pessoa canta. O jongo, antigamente, os escravos
usavam para se comunicar, mas também para o lazer deles. Com os pontos
eles se comunicavam, falavam sobre coisas do dia a dia, da pretensão deles,
de uma fuga, que algum escravo tinha apanhado. Muitas vezes o sinhozinho estava ali perto.
Eles falavam na língua deles, o sinhozinho não sabia o que eles estavam falando, ou se não,
quando eles estavam fazendo roda de jongo, cantavam só o que entendiam. Às vezes, quando
o sinhozinho estava ali perto, aquela pessoa que não tinha nada a ver, que eles não gostavam,
vinha para tomar conta deles. Uma pessoa que não entendia do serviço, não entendia de nada,
aí eles cantavam para o outro: Com tanto pau no mato, embaúba é coroné! Por quê? Embaúba
é uma madeira que tem no mato, mas que não serve para nada, não serve para fazer moirão,
não serve para botar fogo, só serve para dar formiga. Então, o que eles queriam dizer que com
tanto pau no mato Embaúba é coroné? Que com tanta gente boa para estar ali, mandando ne-
les, mandando fazer as coisas, vai mandar uma pessoa que não tem nada a ver? Que não tinha
aquele relacionamento?”
Quem assim explica é Laudeni de
Souza, líder do Grupo de jongo Mistura
da Raça. O grupo nasceu em São José
dos Campos em 2002, num tempo em
que o jongo na cidade estava somente na
memória das antigas gerações. Laudeni
cresceu vivendo o jongo em Barra do
Piraí, Vale do Paraíba Fluminense.
Cantava o jongo com seu pai, mestre
Dovalino de Souza, da Comunidade

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Jongueira Os filhos de Angola. Em 1997 mudou-se para São José para trabalhar como
empilhadeirista em uma transportadora. Dois anos depois, após o falecimento de seu pai e
o encerramento do contrato de trabalho, voltou para Barra do Piraí. Nesses dois anos que
esteve na cidade conheceu o trabalho do Museu do Folclore, por meio de uma apresenta-
ção agenciada pela Casa de Cultura Chico Triste, nas dependências do Arquivo Público
Municipal, área contígua ao Museu do Folclore.
“Nós fizemos um jongo onde é o arquivo, a noite inteira. Fizemos fogueira, ali era
aberto, saia lá do outro lado. Apareceu gente pra caramba! Muita gente apareceu para
assistir, o pessoal de São José que só havia ouvido falar de jongo. Porque o jongo aqui em
São José só o pessoal mais antigo que frequentava as festas de São Benedito chegaram a
ver, as outras pessoas não tinham essa vivência.”
Ao voltar para São José trabalhou em mais um contrato como empilhadeirista da
General Motors. Encerrado o contrato, em 2004, passou a procurar emprego. Foi quando
ingressou em uma vaga no Museu do Folclore, onde trabalhou por oito anos na manuten-
ção predial da instituição.
“Nessa vinda minha aqui para cá, que voltei de novo com minha família, eu sentia
muita vontade de dançar um jongo. O pessoal (de Barra do Piraí) ligava para mim: ‘vai ter
um jongo aqui’. A gente queria ir, mas não tinha dinheiro para ir. Na época eu não tinha
carro. Aí eu pegava e ia no Dia das Mães, Natal. Dia das Mães dava para brincar um pou-
quinho, mas Natal tinha muita coisa acontecendo. Aí eu peguei e pensei: puxa, porque eu
não monto um grupo de jongo aqui em São José. Aí comecei.”
Formado o grupo, com muitos de seus parentes, inclusive sua esposa Márcia, que
também canta, passaram a se apresentar no Museu Vivo. Também no período em que

93
Laudeni trabalhou no museu, frequentemente era solicitado a conversar com os visitantes
que buscavam informações sobre o jongo.
“Machado” ou “cachoeira”. Estas expressões marcam a ruptura do ponto. Para os que
cantam os versos do jongo é falando uma destas palavras que se pede a vez para cantar.
Pode-se cantar os versos conhecidos, muito presentes na memória do grupo, ou as deman-
das, que são os versos improvisados.
“Tem muitos versos, a gente vai lembrando, mas muitas vezes também a gente está na
roda de jongo e, dependendo da situação, você faz um ponto de jongo. Depende da situ-
ação. Sai uma ideia na hora e você faz um ponto de jongo. É uma versatilidade, tem que
criar, improvisar, porque no jongo também tem demanda. Uma pessoa canta um ponto de
jongo para você, aí, de repente, você não tem nenhum daquele que você está acostumado
a cantar, nenhum que dá pra dar resposta pro cara. Aí cê tem que criar um! O cara te joga
o jongo em cima, aí cê tem que criar um ponto de jongo para poder sair. Muitas vezes
é aquele negócio: tem vários jongueiros cantando e outro grita machado. Aí, enquanto
um canta dois ou três pontos de jongo, cê já cria outro, aí cê já manda naquele momento.
Muitas vezes até costumo brincar com a turma, jogo uns pontos para cima da turma. E a
turma só me dá a resposta só no próximo jongo.”

94
Improvisados ou não, assim que os cantores terminam os versos do ponto os tam-
bores retomam as frases rítmicas e todos cantam em coro e dançam. Sobre os tambores,
Laudeni explica que o caxambu é o tambor grande, com o diâmetro maior do que o can-
dogueiro. Caxambu também pode ser utilizado para se referir à dança e à batida típica dos
tambores do Vale Fluminense. “O pessoal fala vamos dançar um caxambu.”
Laudeni conta a história do jongo que ouvia de seu pai e do tio Juca, mestre do
Caxambu Tio Juca, também de Barra do Piraí. Deles ouviu sobre a produção dos tambores
em tempos antigos.
“Quando começou o jongo, na época da escravidão, o caxambu era feito de madeira, do
oco da madeira. Catava a madeira de uma árvore já cansada, cortava ela, furava o oco, encou-
rava e fazia o tambor. Pegava uma maior e fazia um tambor grande, chamado caxambu, e a
menor fazia o tambor menor, que é chamado de candongueiro. Porque o jongo é composto de
dois tambores: candongueiro e caxambu. E veio mudando, com o tempo o pessoal começou a
fazer com barrica de cachaça, tonel de cachaça. Pegava o de 30 litros, fazia o candongueiro, e
o maior, de 50 litros, fazia o tambor grande. Mas quando a gente vai fazer uma apresentação,
aquilo depende de estar aquecendo, depende de ter fogueira, se não tem fogueira, você tem
que arrumar um jeito de esquentar, porque precisa esticar o tambor. Aí, como hoje é difícil esse
negócio de fazer fogo, a gente, a maioria
dos grupos, usa a tumbadora, que tem
o mesmo som e é só apertar a tarracha,
mas não é o que era.”
No jongo os pontos podem mu-
dar e as batidas continuarem as mes-
mas. Segundo Laudeni, às vezes as
batidas mudam de uma comunidade
para a outra. “Muitas vezes a batida
continua a mesma, candongueiro tem
uma batida reta, vai direto. O tambor
ele faz umas viradas. O que está com
o tambor faz umas viradas dependen-
do do que está sendo cantado. Ele
dá umas modificadas ali, no tambor
grande faz as viradas, repica. Muda

95
quando tem várias comunidades participando, por exemplo, o pessoal de Miracema, eles
têm outro ritmo. O pessoal de Guará bate outro ritmo. O caxambu, que é essa batida nossa
aqui, é mais do Estado do Rio.”
Em 2005 o jongo foi tombado como Patrimônio Histórico no Brasil pelo Iphan –
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O instituto colocou no seu ca-
lendário a data de encontro de jongueiros da região e, atualmente, apoia a realização do
encontro fornecendo transporte e alimentação para os participantes. Laudeni trabalhou
na organização dos encontros que ocorreram nas cidades de Piquete, Guaratinguetá, São
José dos Campos e Campinas. Além disso, toda terça participa do Ponto de Cultura OCA
na Vila Tatetuba, zona leste da cidade. Também de dois em dois meses participa com seu
grupo do Pontão de jongo em Niterói.

96
C apítulo 19

Carlos Lourenço

Vadér

97
B arcos e C anoas

O descompasso entre o rio Paraíba


e os saberes da cultura piraquara

A“
p r e n d i a fa z e rbarco com meu padrasto, meu segundo padrasto, José
Cândido, ele fazia barco. Com 14 anos eu já fazia barco até pra gente que
pescava pros lado de Paraibuna.” Carlos Lourenço, o Vadér, já participou
como fazedor do Museu Vivo por várias vezes. Lá, cortando, encaixando
e entalhando as peças, ele apresentou o processo de produção da canoa
e do barco. Na foto da bancada, com um lápis na mão, ele risca a madeira a partir das
proporções que guarda na memória. O trabalho do barqueiro piraquara Vadér dialoga
diretamente com a exposição permanente do Museu do Folclore, onde podemos ver os
elementos materiais que simbolizam a cultura piraquara: os covos, a rede, o samburá, a
tarrafa e os instrumentos usados para a confecção das redes.
Quem atravessa de barco depois das represas
do Alto Paraíba e desce rio abaixo encontrará, na
Vargem Grande, bairro da zona norte de São José
dos Campos, o terreno onde mora Vadér e sua famí-
lia. Atrás de uma série de árvores e arbustos, sobre
o barranco, está sua casa, onde vive com a esposa,
Emília, e com o neto Clério. Ao lado da casa, um
terreiro com vários pássaros soltos comendo a ração
que diariamente lhes serve pelo gosto de vê-los co-
mendo. Do outro lado moram as famílias de três dos
seus quatro filhos, Eliana, Adilson e Nilson.
“O meu padrasto me criou, eu saí da casa dele
casado. Faz 54 anos que moro aqui. Eu comecei a
pescar com 10 anos e com 11 anos comecei a levar

98
peixe no mercado. Com 11 anos eu levava um varalzinho de peixe, depois colocaram ba-
lança, aí tinha que levar o peixe no cesto. Eu não sabia pesar, pedia para os outros pesar
para mim. Eu colocava na balança e perguntava: oh, quanto é que está dando aqui? Tinha
bastante pescador ali do meu lado, eles diziam: deu tanto.”
Seu Vadér é um piraquara que atualmente não pesca em função dos poucos peixes
que vivem no rio Paraíba. Há oito anos não sai mais para pescar, prefere deixar para seus
filhos a atividade.
“Eu pesquei até 70, aí, peixe poluído. Em 65 começou a poluir o Paraíba, às vezes ia
caçar um peixe, o peixe tinha gosto ruim. Aí, em 69, no fim de 69, Nossa Senhora, mas
estava poluído o peixe pra caramba! Tinha uma senhora que vendia cuscuz, vendia na
quermesse, e ela comprava, acostumada a comprar peixe meu, então ela tratava comigo:
‘Sábado você traz pra mim bagre, traz bagrão grande’. Até eu pescava de anzol. Quando
pegava bagre grande, guardava no viveiro pra levar pra ela. Aí começou a poluir o peixe, a
poluir o peixe. E eu desde molequinho vendendo peixe, aí a freguesia conhecia quase tudo.
A gente chegava, falavam: ‘Oh rapaz, o peixe que comprei de você, puxa vida, onde cê pe-
gou aquele peixe?’ Eu dizia: ‘ué, eu peguei no Paraíba mesmo! Nossa vida, nem o cachorro
que eu tenho em casa comeu o peixe! O óleo que a mulher fritou o peixe teve que jogar
fora, não serviu mais para nada, nós vamos querer o dinheiro de volta!’ E assim eu pegava
peixe de novo, e eles reclamavam de novo.”
Em 1970, não conseguindo mais pescar, Vadér passou a trabalhar na Tecelagem
Parahyba. Depois de 10 anos trabalhando nas máquinas que produziam os cobertores, vol-
tou para a pescaria, estimulado pelos irmãos que já haviam voltado. O rio havia melhorado.

99
“É, eu saí da tecelagem e voltei a pescar. O peixe dava perfeitinho. Com três anos não
tinha mais peixe poluído. Hoje ainda tem peixe poluído, o pessoal pega o que fica lá dentro
da valeta perto do Urbanova, Vidoca. Dizem que o peixe que pegam lá na boca da valeta
tem um malcheiro.”
Seu saber sobre o rio lhe fornece uma ampla percepção acerca do objeto de sua caça, o
peixe. “Saguiru, curimbatá, lambari, cascudo, rabo vermelho, que tem uma porção de nome,
o chavé, o parmado, o robalo, bocudo, boca grande, dentuço, tem um punhado de nome
para um só, e dourado, o piabanha, a piaba, piapara, timboré, bagre e o mandizinho cho-
rão. Antigamente a gente pegava tanto mandizinho chorão que a gente pegava para pescar,
pegava quantidade. Saia, assim, duas horas, a gente pegava sessenta, oitenta. Picava em pe-
dacinhos e pescava. Hoje, pode pescar o ano inteiro que não caça um mandizinho chorão.”
Vadér aponta que a retificação do rio, a ausência de matas ciliares, a extinção das
cheias sazonais, a poluição e o aprofundamento de seu leito devido à ação da extração de
areia exauriram o ambiente propício para os peixes.
“Antigamente o Paraíba era cheio. Depois que veio a represa e os portos de areia, aca-
baram com o Paraíba. Tirar areia afundou o Paraíba. Antigamente era um metro e meio de
barranco. Difícil encontrar um barranco com dois metros. A água enchia um metro e meio,
já saia para o varjão. Hoje a água pode encher uns cinco metros que não sai. O Paraíba ficou
que nem um valetão, a água vai embora. Paraíba tinha um metro, dois metros de profundi-
dade. Hoje tem lugar que tem 28 metros de profundidade porque tiraram a areia.”
Na biblioteca do Museu do Folclore há produções bibliográficas e videográficas que
documentam outros pescadores. São importantes pesquisas que ajudam a entender a di-
nâmica da cultura piraquara. Ao ouvir o de-
poimento do senhor Vadér registrado num
desses materiais, o livro ‘Nas margens do
Paraíba’, podemos dizer que, se o ambiente
não determina, certamente limita as opções
disponíveis para o pescador. Há um claro des-
compasso entre o ambiente atual do rio e os
saberes da cultura piraquara.

o
100
C onsiderações F inais

M
uitos aspectos podem ser des- Sebastião Marcolino da folia de reis que,
tacados dos textos que apre- para conseguir cumprir as 300 casas que
sentaram até aqui esta parcela visita todos os anos, utiliza um automóvel
dos fazedores do Museu do Folclore. Se o que recebe uma bandeira específica, distin-
leitor conseguiu tal feito mediante sua lei- ta da utilizada nos festejos. Enfim, todos
tura é sinal que um dos principais objetivos os fazedores, em maior ou menor grau,
dos textos foi alcançado: sugerir indícios agenciam transformações. Porém, algumas
para reflexões, questionamentos e pesqui- vezes elas não são suficientes. O senhor
sas mais específicas. Contudo, antes de Vadér, barqueiro, é um exemplo. Piraquara
tais aprofundamentos é possível destacar desde os 11 anos de idade, ele se adequava
alguns aspectos ligados à memória e às in- inventando e renovando seus instrumentos
corporações e adaptações que os fazedores frente aos ciclos do rio. Hoje seu desafio é
agenciaram no saber-fazer. maior que seu poder individual, pois é pre-
A cultura é dinâmica e os fazedores são ciso restabelecer o ambiente propício do
expressões disso. Na entrevista, as adapta- rio para as diversas espécies de peixe.
ções e incorporações de elementos novos Em relação à memória, nas entrevistas
ficaram evidentes com alguns deles. Dona ela foi atualizada em diferentes momentos
Alzira, por exemplo, a primeira entrevis- e voltada para diferentes temas. Em uma
tada, nos mostra sua arte do picote feita a síntese provisória, podemos falar da memó-
partir do alumínio da lata do achocolata- ria da convivência no museu, da memória
do. Já seu Joaquim traz um trem, bonecos das primeiras vivências com o saber-fazer,
que as crianças lhe dão e vários outros ele- da memória atual utilizada para interpretar
mentos de consumo de massa aos sagrados a prática e, ainda, da memória voltada à in-
presépios que monta. Já o senhor Renato terpretação do espaço no tempo presente,
Vieira, fazedor de brinquedos de madeira, seja o meio urbano, o meio rural ou o am-
utiliza o muro de sua casa, espaço de gra- biente do rio. O Museu Vivo abriu e abre
fiteiros e pichadores, para apresentar sua oportunidade de atualizar essas memórias,
filosofia de vida e a linguagem matemáti- individuais e coletivas, tão diversas quanto
ca com que produz suas invenções e brin- os fazeres. Comunidades afetivas se forta-
quedos. Também podemos citar o senhor leceram e se fortalecem durante a vivência

101
do fazer nas tardes de domingo, momento os indícios e os discursos que permitem
de interação de fazedor com fazedor e, ain- compreender as ações humanas em uma
da, dele com os funcionários do museu e perspectiva de longa duração, o que somos
com o público. respondidos através de símbolos construí-
Como um todo, o Museu do Folclore dos e transformados ao longo do tempo. A
trabalha com linguagens que há muitas dé- história é a forma que o museu utiliza para
cadas são utilizadas pelas comunidades da dizer, refletir e questionar os sentidos das
região. É um investimento que a sociedade experiências humanas.
faz de si mesma no museu, pois ali estão

R eferências B ibliográficas
BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In:
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. SP:
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LIMA, Dalmir Ribeiro. (Dir.). Na Águas do Paraíba. Documentário, 52 minutos, 2006.

__________ Nas redes de uma saudade. Documentário, 20 minutos, 2008.

RAMOS, Fábio. (Dir.). Piraquaras de Caçapava: três gerações e um rio. Documentário,


20 minutos, 2008.

P erfil do P esquisador

F
ábio Martins Bueno é graduado em História pela
Universidade Estadual de Londrina (UEL). Possui,
pela mesma universidade, os títulos de especialis-
ta em História e Ensino de História e mestre em História
Social, na linha ‘Culturas, Representações e Religiosidades’.
Participa do Grupo de Pesquisa ‘Epistemologias e metodo-
logias da história’, tendo publicado, em livro produzido pelo
grupo, artigo que investiga a relação entre cinema brasileiro
e história. Tem experiência como docente e como escritor de
textos didáticos. Também já trabalhou com a produção de
vídeo e programas de rádio. (fm_bueno@yahoo.com.br) 103
F undação C ultural C assiano R icardo

Uma grande fábrica de ações culturais No entanto, ações culturais não são
realizadas apenas com palco, microfone ou

S
ão centenas de iniciativas culturais pincel. A realidade da política cultural hoje,
que mobilizam artistas e colabora- se baseia em operações, princípios, proce-
dores que, juntos, movimentam o dimentos administrativos e orçamentários.
mecanismo de geração contínua de cultura Assim, após elaborar seu planejamento es-
dentro da moderna economia criativa. tratégico, no qual estabeleceu sua Missão,
Para se fazer uma política cultural Visão, Negócio e Valores, a FCCR vem
consistente, é preciso unir: artista, recur- traçando metas e trabalhando de forma que
sos materiais e ação cultural. Certa deste a sua política cultural tenha continuidade,
princípio, a Fundação Cultural Cassiano levando em conta a economia criativa.
Ricardo (FCCR) pauta suas ações cultu- A Fundação Cultural Cassiano
rais na descentralização, valorização do ar- Ricardo é, hoje, uma fábrica que produz
tista de São José dos Campos, descoberta ações culturais e é a ‘ponte’ dessas ações
de novos talentos e formação de plateias. para a população, com ampla oferta de
Desde sua criação, em 1986, a FCCR bus- programas e projetos. Esta é uma área
ca reconhecer a riqueza dos artistas que onde não existe limites para o ‘fazer’.
atuam nas várias modalidades – teatro,
dança, literatura, artes plásticas, etc.
C entro de E studos da C ultura P opular – CECP

O
Centro de Estudos da Cultura Com aproximadamente 700 mil ha-
Popular é uma organização não bitantes, São José dos Campos destaca-se
governamental, criada em 1998, por ser um pólo industrial, com tecnolo-
por integrantes da extinta Comissão gia de ponta, abrigando importantes cen-
Municipal de Folclore de São José dos tros de pesquisa e universidades. Por conta
Campos. Seu objetivo é criar ferramentas dessa característica, a cidade atrai muito
que possibilitem o fortalecimento da iden- migrantes, que chegam em busca de me-
tidade cultural, valorizando as práticas cul- lhores oportunidades e acabam se incor-
turais populares da região. porando ao leque cultural constituído. A
A Região Metropolitana do Vale do riqueza dessa diversidade contrapõe-se ao
Paraíba e Litoral Norte, localizada na sentimento de exclusão resultante da fal-
Mesorregião do Vale do Paraíba Paulista, ta de sentidos de pertencimento. São essas
cortada e banhada pelas águas da Bacia do referências identitárias que estão no centro
Rio Paraíba do Sul, constitui-se no eixo das ações desenvolvidas pelo CECP.
de ligação das duas principais metrópoles Em parceria com a Fundação Cultural
brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro. São Cassiano Ricardo, o CECP desenvolve
trinta e nove municípios que compõe a suas ações no Museu do Folclore de São
Região Metropolitana, entre eles São José José dos Campos, buscando criar pontes
dos Campos. entre as várias culturas existentes no con-
texto sociocultural valeparaibano.

105
A gradecimentos R elação das edições anteriores

O Museu do Folclore, da Fundação Fundação Cultural Cassiano Ricardo


Cultural Cassiano Ricardo (FCCR), Coleção Cadernos de Folclore
e o Centro de Estudos da Cultura
Popular (CECP), agradecem aos A Coleção Cadernos de Folclore tem o propósito
demais ‘fazedores’ que, ao lon- de informar e divulgar a cultura popular, para me-
go de 14 anos, têm participado do lhor compreensão e valorização do homem na sua
Programa Museu Vivo. Neste perí- realidade social. Reúne importantes contribuições,
odo, mais de uma centena deles já seja na forma de pesquisas científicas ou relatos de
enriqueceram e continuam enrique- experiências, constituindo-se fonte de consulta e es-
cendo, com sua sabedoria, as tardes tímulo à reflexão e à pesquisa, oferecendo subsídios
de domingo do Museu do Folclore. para futuros investigadores do saber popular.

Volumes anteriores:
Azeite de Mamona – Toninho Macedo e
Angela Savastano
1º volume – 1986 – Comissão Municipal de Folclore
Carro de Boi – Zuleika de Paula
2º volume – 1988 – Comissão Municipal de Folclore
Laraoiê, Exu – Hélio Moreira da Silva
o 3º volume – 1988 – Comissão Municipal de Folclore
Fumos e Fumeiros do Brasil – Marcel Jules Thieblot
4º volume – 1989 – Comissão Municipal de Folclore
Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – J. Gerardo M.
Guimarães
5º volume – 1990 – Comissão Municipal de Folclore
Maria Peregrina – Benedito José Batista de Melo
6º volume – 1992 – Comissão Municipal de Folclore
Saci – José Carlos Rossato

106
7º volume – 1994 – Comissão Municipal de 15º volume – 2004 – Centro de Estudos da
Folclore Cultura Popular – CECP
Cobras e Crendices – Maria do Rosário de Santo de Casa Faz Milagre: A Devoção a
Souza Tavares de Lima Santa Perna – Cáscia Frade
8º volume – 1995 – Comissão Municipal de 16º volume – 2006 – Centro de Estudos da
Folclore Cultura Popular – CECP
Chico Triste I – Coletânea de Textos de Educação e Folclore – Histórias Familiares
Francisco Pereira da Silva dando Suporte ao Conteúdo – Leila
9º volume – 1997 – Comissão Municipal de Gasperazzo Ignatius Grassi
Folclore 17º volume – 2006 - Centro de Estudos da
Cultura Popular – CECP
Chico Triste II – Coletânea de Textos de
Francisco Pereira da Silva O Milho e a Mandioca – Nas Cozinhas
10º volume – 1998 – Comissão Municipal de Brasileiras, Segundo contam suas Histórias
Folclore – Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo
18º volume – 2008 – Centro de Estudos da
Ciclo de Natal – Coletânea de Textos de
Cultura Popular – CECP
Maria Graziela B. dos Santos
11º volume – 1999 – Centro de Estudos da O saber, o cantar e o viver do povo – Carlos
Cultura Popular – CECP Rodrigues Brandão
19º volume – 2009 – Centro de Estudos da
Curiosidades Folclóricas sobre o inseto –
Cultura Popular – CECP
Hitoshi Nomura
12º volume – 2001 – Centro de Estudos da Objetos: percursos e escritas culturais –
Cultura Popular – CECP Ricardo Gomes Lima
20º volume – 2010 – Centro de Estudos da
Histórias de Onça – Ruth Guimarães
Cultura Popular – CECP
13º volume – 2002 – Centro de Estudos da
Cultura Popular – CECP Folia de Reis, Sambas do Povo – Alberto T.
Ikeda
De Já Hoje – Darcy Breves de Almeida
21º volume – 2011 – Centro de Estudos da
14º volume – 2003 – Centro de Estudos da
Cultura Popular – CECP
Cultura Popular – CECP
Pedra-de-raio – Uma superstição Universal –
J.Gerardo M. Guimarães

107
Este livro foi composto com a
família tipográfica Adobe Caslon, corpo 11,5 / 15
e impresso em Couché Fosco 150g/m.
Tiragem de 1500 exemplares.
São José dos Campos, dezembro de 2012.
realização

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