Você está na página 1de 112

O saber e o fazer no Museu do Folclore II

Possuía três informações iniciais,


AS CORTINAS ENTÃO SE ABRIRAM
fornecidas pelo professor Rossini: Eugênia
e Mudinha (ceramistas) e Benedito
Corria o ano de 1972. Então residente em
(jongueiro), todos residentes no Jardim
São José dos Campos, pude frequentar o
Paulista. Em inúmeras peregrinações pelos
curso nomeado “Folclore Brasileiro”,
bairros, enfrentando olhares desconfiados
oferecido pelo Museu de Artes e Tradições
(qual a razão dessa carioca querer saber
Populares, sediado Sem São Paulo e
dessas coisas?) e muitas frustrações. Já
presidido por Rossini Tavares de Lima. Para
desanimando, alcancei por fim, o fio da
a confecção da monografia de conclusão dos
meada, na venda do Nico Miranda, em
estudos e interessada em melhor conhecer a
Santana. Nico era um violeiro e sua casa de
cidade que me acolheu, decidi realizar uma
negócios, situada nos limites urbanos do
pesquisa sobre tradições vigentes nesse
bairro, nos finais de semana reunia gente
O SABER E O FAZER município. A questão mais significativa foi a
do campo e da cidade para conversas,

M USEU DO F OLCLORE II
NO
realização aferição da veracidade de um dogma, que
causos, cantoria, roda de viola. Uma festa.
ainda hoje costuma permear pensamentos e
As cortinas então se abriram, consegui
discussões sobre o conhecimento popular,
concluir meu trabalho.
qual seja, o saber tradicional é fruto do
subdesenvolvimento, sendo portanto seu
Passados todos esses anos percebo que
mais letal inimigo as conquistas científicas e
minha tarefa hoje não seria árdua e minha
o consequente progresso.
indagação original encontraria resposta
inteligente e criativa no Museu Vivo de
Para minha tarefa, São José foi campo ideal,
São José dos Campos. As variadas formas
com seu perfil de cidade com altíssimo índice
artísticas que expõe, valoriza e promove
de industrialização, tecnologia de ponta em
estão a nos revelar que a cultura popular
pesquisas espaciais, unidade da aeronáutica,
possui intensa dinâmica, que incorpora os
etc, que, por sua vez, contavam com técnicos
diferentes momentos históricos,
de diversas nacionalidades e atraiam
ressignifica os distintos saberes, recria
incontável número de migrantes de várias
novos conhecimentos, conferindo assim
regiões do país. Mas, se o espaço era
contemporaneidade às milenares tradições.
sociologicamente propício a busca do objetivo
Cáscia Frade proposto, para uma migrante, a identificação
Professora Adjunta da Universidade dos agentes ou portadores, foi tarefa árdua.
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
O SABER E O FAZER
M USEU DO F OLCLORE II
NO
O SABER E O FAZER
M USEU DO F OLCLORE II
NO

C oleção C adernos de Folclore

23o Volume
2013

São José dos Campos


Coleção Cadernos de Folclore
Realização Pesquisas e textos
Prefeitura Municipal de São José dos Campos Fábio Martins Bueno e Maria Siqueira Santos
Fundação Cultural Cassiano Ricardo
Fotografias
Diretoria de Patrimônio Cultural Francisco José Lacaz Ruiz (Chico Abelha)
Museu do Folclore de São José dos Campos Arquivo Museu do Folclore de São José dos Campos
Idealização Design gráfico
Centro de Estudos da Cultura Popular Magno Studio
Angela Savastano
Tratamento de imagens e editoração
Gestão do Projeto Gabriel Sá
Francine Maia
Colaboração
Edição de textos Maria da Fátima Ramia Manfredini - UNIVAP
Avelino Israel e Angela Savastano
Impressão
Revisão de textos JAC Gráfica e Editora Ltda – São José dos Campos – SP
Vera Maria Costa

Entrevistas
Fábio Martins Bueno

Ficha catalográfica elaborada por Cíntia Cássia Soares - CRB 8R/8848

B942s
Bueno, Fábio Martins; Santos, Maria Siqueira
O saber e o fazer no Museu do Folclore II / Fábio Martins Bueno e Maria Siqueira Santos. --
São José dos Campos / SP: CECP/FCCR/Prefeitura Municipal de São José dos Campos, 2014.
p.108; 21cm x 24cm; (Cadernos de Folclore; v.23)
1. Cultura Popular / Folclore – São José dos Campos – SP 2. Arte Popular / Artistas Populares
– São José dos Campos 3. Programa Museu Vivo – Museu do Folclore/Centro de Estudos da
Cultura Popular e Fundação Cultural Cassiano Ricardo I. Santos, Maria Siqueira. II. Título.
CDD: 390
CDU: 398

Copyright @ Fábio Martins Bueno e Maria Siqueira Santos – 2013


Todos os direitos reservados
Fundação Cultural Cassiano Ricardo
Avenida Olivo Gomes, 100 – Santana – 12211-115
São José dos Campos – SP – Brasil
www.fccr.org.br
Sumário

Abertura 6
Ampliar o relacionamento institucional 7
Apresentação 8

Cap. 1 - Pedro Adão Paulino 11


Cap. 2 - Vitor Ribeiro e
Luiza Maria Ribeiro 19
Cap. 3 - Júlio César Ribeiro 25
Cap. 4 - Miguel Fernandes de Faria 31
Cap. 5 - Saturnino de Barros Silva 37
Cap. 6 - Agenor Lessa 45
Cap. 7 - Sofia de Faria Ramos 53
Cap. 8 - José Augusto Ramos 59
Cap. 9 - Margarida Liesack Baptistini 67
Cap. 10 - Fátima Regina Capinam 75
Cap. 11 - Cândida Morais Bernardes 83
Cap. 12 - Irma Valiante 93

Referências Bibliográficas 101


Perfis dos Pesquisadores 102
Perfil do fotógrafo 103
Fundação Cultural Cassiano Ricardo (FCCR) 104
Centro de Estudos da Cultura Popular (CECP) 105
Agradecimentos 106
Relação das Edições Anteriores 106

o
É
com grande satisfação que a Fundação
Cultural Cassiano Ricardo, em parce-
ria com o Centro de Estudos da Cultura
Popular, comemora os 15 anos de existência do
Projeto Museu Vivo, apresentando à comunida-
de mais uma publicação da Coleção Cadernos de
Folclore: O Saber e o Fazer no Museu do Folclore II.
Para a Fundação Cultural Cassiano Ricardo,
a importância da Coleção está exatamente em ex-
pressar os pilares de uma política mais avançada e
arrojada de patrimônio cultural: o direito à cidada-
nia, ao pertencimento e à transformação da realida-
de na qual se vive.
Caminhando rumo à nova política pública de
cultura que está sendo implantada em São José dos
Campos, os relatos e experiências dos mestres e fa-
zedores aqui reunidos demonstram a importância
do diálogo entre a administração e a população, ex-
pandindo os horizontes rumo ao fomento e à difu-
são cultural em nossa cidade.
Reconhecer os trabalhos desses mestres para a
cultura do município torna São José dos Campos
mais humana.
Esperamos, portanto, que esta nova edição se
constitua em mais uma ferramenta cultural à dispo-
sição de todos para que sejam agentes transforma-
dores da nossa realidade.

Alcemir Palma
Presidente da Fundação Cultural Cassiano
Ricardo
A mpliar o relacionamento institucional

F
oram convidados. Primeiro, a exibir muito grande à comunidade joseense e da
em público, no Parque da Cidade, região. São mais de 50 mil pessoas (entre
o seu fazer, o seu saber. Mais tarde, crianças, jovens e adultos) recebidas anual-
um novo convite, agora para contar como mente nas instalações do Museu do Folclore
esse conhecimento entrou em sua vida. e participantes das atividades realizadas.
Um por um foi revelando uma história, um Por isso, estar na presidência de uma
dom, uma tradição. Do mesmo jeitinho que entidade com 15 anos de história e que
adentram o mundo dos sonhos os trazen- surgiu da vontade de um grupo de pessoas
do à realidade, vencem os limites do tempo, que também sonhavam em transformar a
atualizando o que há muito está presente. sociedade, ou contribuir para tal, por meio
O Centro de Estudos da Cultura da cultura popular, é muito importante.
Popular (CECP) convida-me a, volunta- Mais do que nunca, o CECP quer
riamente, dedicar-me a colaborar com suas ampliar o seu relacionamento institucional
pesquisas de resgate de um conhecimento com outras entidades da cidade a fim de
da e sobre a sociedade, principalmente, do que novas parcerias possam ser efetivadas,
Vale do Paraíba. assim como já acontece com a Fundação
Antes, já aceitei outros convites, Cultural Cassiano Ricardo (FCCR) e
como os que a mim o fizeram o Conselho a Prefeitura Municipal de São José dos
Municipal dos Direitos da Criança e do Campos, seus atuais e principais parceiros.
Adolescente (CMDCA) e o Conselho E, mais ainda, o CECP convida você a
Municipal de Turismo (COMTUR), en- conhecer um pouco mais sobre os saberes e
volvendo-me em tão significativas e enri- os fazeres da gente que vive nas ruas, praças
quecedoras vivências. e campos abençoados de São José. Sempre
A presidência do CECP abre, nes- vale aceitar o convite que o Caderno de
se momento de minha vida profissional, a Folclore lhe faz ao completar 23 anos de
oportunidade de encarar, mais uma vez, um muito desvelar para revelar.
desafio. Apesar de uma associação social sem
fins lucrativos, com atuação bastante espe- Vera Maria Costa
cífica na área da cultura popular, o CECP Presidente do Centro de Estudos da Cultura
oferece uma contribuição cultural e social Popular – CECP
A presentação

O
Museu do Folclore de São José
dos Campos, sob gestão do
Centro de Estudos da Cultura
Popular (CECP), realiza o projeto Museu
Vivo. Tal projeto se configura como parte
das ações educativas do Museu do Folclore
e tem o intuito de salvaguardar bens cultu-
rais de natureza imaterial de São José dos
Campos e região.
Ao longo desses anos o Museu Vivo
é realizado nas tardes de domingo. Suas
atividades têm início no mês de fevereiro
e vão até dezembro, com exceção do mês
de agosto, quando o Museu tem programa-
ção especial em função das comemorações
do Dia Nacional do Folclore. Também se
inclui na programação do Museu Vivo os
festejos do Ciclo Natalino.
Cerca de 140 ‘fazedores’ já participa-
ram do projeto: arte/artesanato, música e
culinária são os três tipos gerais que orga-
nizam a programação. Com esses três ti-
pos de fazeres o projeto Museu Vivo tem a
intenção de recriar o ambiente onde essas
práticas ocorrem espontaneamente: na ofi-
cina, no caso do ‘fazedor’ de brinquedos ou
do artesão de taboa; na cozinha, onde as
cozinheiras fazem o doce ou do bolinho da
roça; na roda de viola, onde os músicos e
ouvintes partilham do mesmo espaço.
Além dos núcleos familiares e grupos
sociais trazidos pelos próprios ‘fazedo-
res’ ao Museu, o fato da instituição estar
inserida numa área de acesso e uso de vá-
rias comunidades da cidade, o Parque da
Cidade Roberto Burle Marx, proporciona
um público variado às suas ações. Muitas
pessoas que passam suas tardes de domin-
go no parque visitam as dependências do
Museu e interagem com os ‘fazedores’.
Entre tais visitantes não tardam a surgir
comentários como “meus pais sabiam fa-
zer isso!”, ou perguntas como “onde foi que
você aprendeu a fazer esse doce?”. Cria-se
um espaço para a transmissão de saberes e
fazeres populares, as diferentes gerações se
encontram e convivem, surgem narrativas
acerca do que já foi vivido, memórias com-
partilhadas, aprendizados.
No 23o volume da Coleção Cadernos
de Folclore, segundo da série O saber e fazer
no Museu do Folclore, foram entrevistados
12 fazedores que participaram do Museu
Vivo. Através deles adentramos um pouco
no universo da música caipira, dos causos,
da Folia de Reis, culinária, técnicas da
roça e do artesanato. Ao longo do segun-
do semestre de 2013, 12 desses ‘fazedo-
res’, detentores de sabedorias populares,
gentilmente nos receberam para uma en-
trevista, um bate papo em torno de seus
fazeres e de como eles se inserem em suas
histórias pessoais.
A partir dessa pesquisa de campo fo-
ram elaborados os 12 textos que compõem
este livro. O objetivo comum deles é pro-
mover os ‘fazedores’ através da divulgação
de seus fazeres em seus grupos sociais e co-
munidades, em museus, escolas públicas e
privadas, universidades, encontros e pales-
tras cujo tema seja cultura popular, folclore.
Junto com o Museu Vivo, este livro integra
parte importante da ação de salvaguarda
empenhada pelo Museu do Folclore.

Fábio Martins Bueno e Maria Siqueira


Santos
Historiadores
C ap ítu lo 1

Pedro
Adão Paulino
Você sabe o significado do palhaço na Folia
de Reis?

edro A d ã o P a u l i n o , nascido na região de Caxambu, Minas Gerais,

P
é um dos palhaços da Folia de Reis da Irmandade de Santos Reis, em São
José dos Campos. Em entrevista realizada em sua casa, explicou o signifi-
cado do palhaço (o marungo) na Folia:
“Você sabe o significado do palhaço na Folia de Reis? Vou te contar.
Quando José e Maria estavam fugindo de Herodes, para ele não alcançar, então, surgiu
essa ideia em três rapazes: vestir aquela roupa toda fantasiada e começar a pular, fazendo
graça, ali na frente de Herodes. Como ele nunca tinha visto aquilo ali, ficava entretido e
nisso José e Maria esticavam.”
Esse conhecimento, assim como tantos outros, vem da sua vivência ao lado do palhaço
Francisco, da Folia do mestre Sabará. Pedro era jovem quando começou a participar desse
grupo. O mestre, vendo que ele acompanhava com entusiasmo e interesse a trajetória da
Folia de casa em casa, de fazenda a fazenda, deixou-o vestir a fantasia. Porém, conta Pedro,
desde que conhecesse algumas regras básicas.
“O mestre Sabará disse: a regra é assim, tem que saber chegar nas casas, cumprimen-
tar com educação, brincar com as crianças. Se ver que a criança tem medo, afasta, tira a
máscara, porque senão a criança pode passar mal. Com respeito, dança para a turma, pega
a esmola do presépio, acompanha a gente [...].”
Além de representar o despiste de
Herodes e a defesa do menino Jesus, o pa-
lhaço nas Folias de Reis tem outras tantas
ações. Uma delas é a de promover as brin-
cadeiras com os foliões e os donos da casa
que recebem a Folia. Assim, Pedro é quem
desafia as pessoas num jogo de perguntas
e respostas a respeito das histórias bíblicas
relacionadas ao nascimento de Jesus. Para
nos mostrar um exemplo do jogo, diz:
“Se alguém perguntar para o palhaço,
ô marungo, de onde você está vindo? Eu
estou vindo de Belém, indo para Jerusalém.
Vou encontrar o menino Deus que nasceu
para o nosso bem.” Se o palhaço que está
com a bandeira não souber responder à
pergunta feita, o folião questionador pode-
rá tomá-la, explicou Pedro.
Na performance que realiza, a dança
que mais chama atenção é ‘cortar a jaca’:
os palhaços colocam seus cajados no chão
e dançam sobre eles, fazendo uma série
de movimentos rápidos e ritmados. Além
disso, é o palhaço também quem recolhe a
oferta, faz o agradecimento e a despedida
da Folia. Ele costuma ser bastante notado
pelas crianças que, apesar de ficarem assus-
tadas com sua máscara e suas vestimentas,
correm atrás dele e o provocam para que
ele faça mais brincadeiras.
Há ainda outros costumes relacionados
ao palhaço na Folia de Reis. Existem, por
exemplo, regras que alguns foliões classifi-

14
15
cam como “aquilo que diziam os antigos.”
Muitos deles as levam com fé. Uma vez ves-
tido de palhaço, o folião deve sair como tal
durante os próximos sete anos. Outra regra
diz que não se deve vestir a roupa de pa-
lhaço longe da bandeira, pois o palhaço é o
seu guardião. Dizem que se alguém assim o
fizer verá assombrações, ‘coisas’.
Pedro é notável entre os foliões pela
fantasia que ele compõe, misturando ma-
teriais que compra no comércio local: “Eu
chego, olho e compro. Uma farda como
esta daqui a gente faz com gosto. Olha...
aqui a gente gasta uma base de 400 a 500
contos, mas faz isso com maior alegria.”
Quem costura para Pedro é Maria José,
costureira que mora em frente a sua casa,
no Conjunto Habitacional D. Pedro I,
zona sul da cidade.

16
Em sua casa, ele mostrou suas fanta-
sias, que chamou de ‘fardas’. Aos poucos,
as ‘fardas’ foram sendo retiradas do guar-
da-roupa e tomando toda a cama. Pedro
propôs vesti-las para que fosse fotografado.
Lantejoulas de variados tamanhos e cores,
festão e enfeites de Natal, pano de chita,
fitas de cetim, correntes douradas e outros
adereços são costurados e sobrepostos uns
aos outros. Na fantasia do ano passado ele
conta que usou uma série de caveiras pen-
duradas no cone que cortou e fez como
chapéu. Questionado sobre o motivo de
colocar as caveiras, disse que era de sua
autoria e, após algum silêncio, completou:
“Eu gosto de enfeitar, no meu carro tam-
bém tem.”

17
Depois que se mudou para São José dos Campos, Pedro permaneceu um período dis-
tante das Folias de Reis. Ele conta que voltou a participar dessa tradição popular há alguns
anos, depois que reencontrou na paróquia da igreja do Perpétuo Socorro uma conterrânea
sua, Luiza Maria Ribeiro. Luiza, junto com seu marido Vitor Ribeiro, é quem organiza as
atividades anuais da Folia de Reis Irmandade de Santos Reis.

18
C ap ítu lo 2

Vitor
Luiza
&
Vitor Ribeiro e Luiza Maria Ribeiro

19
Nós somos uma família

Folia de R e i s é a celebração da história narrada na Bíblia, no 2o capítulo

A de Mateus, sobre a visita dos Reis Magos ao menino Jesus, alguns dias após o
seu nascimento. Esta história conta que Melquior, Gaspar e Baltasar, os três
reis do Oriente, seguiram uma estrela até Belém, na Judeia, e que essa estrela
lhes indicava o local onde se encontrava o rei dos judeus.
A tradição da Folia de Reis, segundo registros históricos, é do século 11. Consta que naquela
época foi realizado um ritual semelhante durante a missa em uma comunidade no interior da
França. Entretanto, afirma-se também que este festejo teve influência de uma tradição germâni-
ca, uma ritualização do solstício de inverno, que acontece por volta do dia 6 de janeiro na Europa.

20
No século 16, a Folia foi trazida ao Luiza Maria Ribeiro são os responsáveis
Brasil pelos colonizadores portugueses. por ela. Eles contam que desde a infância
Segundo alguns autores, ela foi usada para já participavam dessa tradição popular.
facilitar a catequização dos indígenas, pois O pai de Luiza, Sr. Pedro Linda
a dança e a música eram bastante aprecia- Vicente, era folião e tocador de cavaqui-
das por eles. Porém, a miscigenação cultural nho. Vitor tem um irmão que é palhaço,
brasileira promoveu o aparecimento de ele- Zonel; Luiza é irmã do mestre Joaquim
mentos próprios nas Folias de cada região Vicente; Júlio, filho de Luiza e Vitor, é
do país (1). Atualmente, há grupos de Folia mestre e primo do sanfoneiro. São paren-
de Reis em diversas cidades, incluindo São tes e amigos que formam a Irmandade, são
José dos Campos. famílias extensas que há tempos mantêm o
A Irmandade de Santos Reis é um rito de Santos Reis.
destes grupos. Contando com aproximada- “A Irmandade é uma união muito gran-
mente 25 pessoas, há cerca de cinco anos a de do grupo, que é o pai, o filho, sobrinho, os
Irmandade vem ritualizando os Santos Reis tios, os irmãos, primos. Aí a gente resolveu
com sua própria bandeira. Vitor Ribeiro e pôr o nome de Irmandade de Santos Reis,
porque somos uma família. Nós temos muita
união, graças a Deus. E essa tradição já vem
de nossos pais. O meu pai era folião, cantava
Folia de Reis, cantava Divino, cantava terço
de São Gonçalo. A gente era pequena e ia
com ele.” (Luiza)
Vindos de Conceição do Rio Verde,
no sul de Minas Gerais, o casal se mudou
para São José dos Campos na década de
1980. Ingressaram, então, na Folia de Reis
Estrela Guia, organizada por Sebastião
Marcolino (Cadernos de Folclore, nº
22); depois, passaram a participar da
Folia com seu Ditinho, no Bairro Rio
Comprido, Jacareí. Só depois da morte de

1 Frei Chico em Dicionário da Religiosidade Popular: Cultura e Religião no Brasil. (verbete Folia de Reis).

21
seu Ditinho que eles iniciaram a Bandeira de Jesus e a viagem dos Reis Magos desde
da Irmandade. o dia 25 de dezembro até 6 de janeiro, que é
Luiza chama a atenção para o poder o Dia de Reis. Porém, é costume encerrar o
milagroso dos Santos Reis. Ela relata casos ciclo com a festa de Reis num sábado, para
de pessoas que foram abençoadas pela Folia: que as pessoas possam participar. Assim, se o
“O João irmão dele, por exemplo, fi- dia 6 de janeiro não cair no sábado, as apre-
cou com câncer no ano passado. Fez qui- sentações continuam até o sábado seguinte,
mioterapia, fez cirurgia... O João ficou quando é realizada a festa. A festa é realizada
ruinzinho mesmo. Foi câncer de estô- com parte do dinheiro e doações adquiridas
mago, da barriga. Mas já foi confirmado durante as cantorias. O restante do dinheiro
esse ano que ele está curado. Ele estava é dividido: uma parte é revertida como cesta
magrinho, mas já engordou quatro quilos. básica para a população e a outra é doada às
Ele está bem, graças a Deus. Ele fez pro- igrejas por onde eles se apresentam. Quando
messa. Quer dizer, primeiro nós fizemos é necessário, um tanto da arrecadação é utili-
a promessa no ano passado, compramos zado para a confecção do uniforme da Folia.
uma fita vermelha bem larga, escrevemos “A festa a gente faz lá no (Parque) Novo
o nome dele, levamos na igreja, o padre Horizonte, no salão de festa de um amigo
benzeu, e hoje essa fita está lá na bandeira nosso. A gente faz uma comidaiada para o
dele, lá em Conceição. Ele tem uma ban- povo comer. A nossa festa tem de tudo, é a
deira do Divino Espírito Santo, que ele tradição nossa de Minas, entendeu? É bas-
fez para agradecer a cura. Porque ele sa- tante carne para comer, pernil assado, frango
rou, graças a Deus.” (Luiza) [...]. E dos mantimentos que a gente com-
Houve também o caso de uma se- pra, a gente tira um pouco para fazer a festa
nhora que fez um pedido de cura durante e o resto faz tudo cestas básicas.” (Luiza)
uma apresentação da Irmandade. No ano Para a Irmandade de Santos Reis can-
seguinte, ao encontrar a Folia novamente, tar na casa de alguém, basta que essa pes-
agradecia a Deus e aos foliões pelas bênçãos soa convide o grupo. Luiza explica que a
recebidas ao longo do ano. Muitas dessas pessoa pode ficar segurando a bandeira du-
pessoas costumam oferecer almoços e doa- rante a cantoria, mas, se ela não quiser a
ções à Folia como agradecimento às bênçãos própria bandeireira irá fazer isso enquanto
recebidas pelos Santos Reis. o grupo canta.
Vitor conta que a Folia sai pelas casas “A Folia representa o nascimento do
e igrejas apresentando o rito do nascimento menino Jesus, é uma tradição de fé. [...] É

22
23
um santo que fala do nascimento de Jesus. Então a pessoa chama: “Vamos lá na minha casa”.
Porque muitas vezes as pessoas não sabem, têm medo às vezes. Mas os mais antigos que sabem,
que entendem, eles levam a bandeira para dentro da casa deles, nos quartos, choram, não quer
que vá embora. Daí eles dão dinheiro, muitas vezes eles já dão o dinheiro lá para a Bandeira. Aí
os palhaços que têm que ver: eles vão ajoelhados, chegam perto da bandeira, ficam procurando
o dinheiro até achar. Daí eles fazem um sinal para o mestre vim pegar a oferta.” (Luiza)
Entre os dias 25 de dezembro e 6 de janeiro, a Folia sai para sua jornada. “Começa depois
do trabalho, das duas horas em diante e volta meia noite ou uma hora da madrugada, todos os
dias. Mas não cansa porque é uma tradição da gente [...](Vitor).” São percorridos cerca de 10
bairros distribuídos entre as cidades de Jacareí, São José dos Campos e Aparecida. Além disso,
o grupo participa de programas de rádio tanto em Aparecida como em São José dos Campos.
A jornada, que antes as famílias de Vitor e Luiza faziam em Conceição do Rio Verde,
percorrendo as casas espalhadas pelas fazendas, agora é feita em São José dos Campos. No
lugar de pastos e pequenas estradas de terra, agora há ruas, avenidas e rodovias.

24
C ap í tu lo 3

Júlio
César Ribeiro

25
É um dom de Santos Reis

úlio C é s a r R i b e i r o , 29 anos, é um dos mestres de Folia de Reis da

J Irmandade de Santos Reis. Sua mãe, Luiza, atribui a uma graça de Santos
Reis o fato de ele cantar como seu avô, Pedro Linda Vicente. Ainda mui-
to novo, com aproximadamente 13 anos de idade, Júlio foi coroado mestre
de Folia de Reis. O episódio aconteceu na Folia realizada no Jardim das
Indústrias, em São José dos Campos. Na ocasião, o Sr. Sebastião Cota, um folião antigo, pe-
diu a palavra e, para espanto dos presentes, anunciou que, naquele momento, o garoto – que já
havia sido marungo, tipe, contra-tipe e tala – estava sendo consagrado mestre de Folia de Reis.

26
Questionado sobre o que é ser mestre, Júlio não encontrou palavras, fez silêncio e,
depois de pensar por uns instantes, disse:
“[...] é um dom de Santo Reis mesmo, porque se disser que ser mestre é aprender a
tocar e cantar os versos, não é só isso [...].”
O mestre de Folia de Reis é aquele que ‘trovoa’ os versos durante o ritual, ou seja, que
tem a função de enredar a cantoria. Uma vez que na Folia de Reis a história do nascimento
de Jesus é narrada por meio de versos cantados, a figura de mestre ocupa lugar central nes-
se folguedo popular. Porém, Júlio afirma que, sozinho, o mestre não consegue exercer sua
função, é preciso que esteja acompanhado do contra mestre, das duplas de tipe, contra-tipe
e tala. São essas vozes que fazem o coro característico das Folias de Reis.
“A tala é aquela voz mais aguda que toda Folia de Reis faz. O tipe é mais baixo, o
contra-tipe é mais alto um pouquinho e a tala é a mais aguda, que acoberta os dois. No
caso, para ficar bonito, tem que acasalar as vozes.”
Júlio explica que há momentos diferenciados na cantoria de Folia de Reis. Depois da
saída da bandeira da casa do folião, no dia 25 de dezembro, o grupo segue apresentando

27
a Folia nas cidades, passando por casas e
igrejas. Geralmente, a ‘trovoação’ segue ri-
tualmente as seguintes partes: Saudação,
Benção de Santos Reis e da Bandeira,
Pedido de Oferta e Despedida. Há tam-
bém o conjunto de versos denominado
Presépio: são 25 versos cantados quando há
o presépio na casa visitada; e também na
chegada da bandeira, no dia 6 de janeiro.
Eis alguns dos versos do presépio:

“Oi o clarão e uma estrela


Atravessou o continente
E apareceu num sonho
Pro Santo Reis do Oriente
E apareceu num sonho
Pro Santo Reis do Oriente
Ai pastorinhas do deserto
Vamos nós saudar Maria
Ela enche o céu de glória
Coro
Nossas almas de alegria
Ela enche o céu de glória
Nossas almas de alegria
Ai os três reis do Oriente
Prepararam seus presentes
Pra encontrar Jesus nascido.
Deixaram o Oriente.
Pra encontrar Jesus nascido.
Deixaram o Oriente.
[Coro]
[...].”

28
29
A memória de Júlio é ancestral, muitos dos versos que canta vêm sendo cantados há
muitas décadas na sua família e na região de origem de seus pais. É de lá que sai todo ano
seu tio Jaci Vicente, irmão da sua mãe, para também ‘trovoar’ os versos na Folia. Jaci é uma
de suas referências na arte dos versos. É por meio da convivência com ele que Júlio acessa
muitos dos versos que seu avô cantava.
Além das cantorias com o tio, as iniciativas dos seus pais foram fundamentais para a
sua formação. A cidade de Conceição do Rio Verde foi o primeiro espaço onde Júlio, na
época com cerca de oito anos, acompanhava seu pai por entre pastos e casas de fazendas:
“[...] Eu ia bem pequeno. Era daqueles que ficava o pai cantando e eu segurando na
perna dele. Lembro de andar no escuro. Tinha um lugar que ele deixava a gente dormindo,
era um conhecido dele, era uma casa onde eles deixavam as crianças dormindo, porque lá
em Minas eles cantavam a noite inteira [...].”
Júlio ressalta que está em constante aprendizagem, que há muito que conhecer de
Folia de Reis. Com entusiasmo afirma que levará a tradição herdada adiante, iniciando
outras pessoas na devoção a Santos Reis, assim como fizeram seus pais.

30
C ap í tu lo 4

Miguel
Fernandes de Faria

31
Cantar para quem gosta de ouvir

a cozinha da ca s a

N d e s e u s pa i s , na época
localizada na zona rural
de Natividade da Serra,
o menino Miguel senta-
va com seus vários irmãos e primos para
ouvir as histórias narradas por seu pai. Da
cozinha para o quarto, Miguel corria para
pegar o cavaquinho e voltava para ensaiar
alguns ponteados com a família, a maio-
ria deles tocados a partir do que ouvia no
rádio.
“A casa era enorme. Na época do frio
meu pai fazia tipo uma fogueira no meio
da cozinha, no chão. Pegava a lenha e fazia
aquela fogueira, colocava banco como esse
que estamos sentados aqui e ali ele ficava
contando histórias. O meu pai gostava de
contar história, passava a noite contando
história, um pouco verdade, um pouco
mentira. E eu pegava no cavaquinho,
aquele que era de cravelha de madeira, que
a pessoa pegava e apertava para a corda não
voltar.”
Muito do que Miguel Fernandes de
Faria toca na viola ele aprendeu sozinho.

32
Ele se lembra que as primeiras músicas que tocou no cavaquinho foram ‘Chico Mineiro’ e
‘Couro de Boi’, músicas que decorou depois de ouvir uma ou duas vezes no rádio.
“[...] A gente pegava música mais dessas duplas sertanejas do rádio, naquele tempo
você ouvia a música e gostava. Por exemplo, ‘Saudade da Minha Terra’ eu lembro até agora.
Eu tinha ido pescar, eu tinha um radinho muito velho. E daí tocou essa música, ‘Saudade
da minha terra’. Nossa, eu babei! Pensei: ‘mais que música linda, rapaz’. Também eu ouvi
ali e já cheguei em casa cantando boa parte dela. [...]”
No rádio portátil, Miguel ouvia as músicas que depois eram cantadas durante o
trabalho na roça. Miguel, acompanhado de seu irmão, Noel Fernandes, costumava subir
o morro cantando. Ele conta também que outro momento importante em sua formação
musical foi a Folia de Reis.
“Depois eu aprendi a cantar Folia de Reis, cantava de contramestre. Depois que
você começa a cantar, tem que cantar durante sete anos. Aí, depois que você canta por
sete anos, se quiser, pode parar. Eu cantava de contramestre, o cunhado do meu irmão
cantava de mestre, meu irmão cantava de tipe e meu outro irmão, de contralto. Era mestre,
contramestre, tipe e contralto.”

33
A musicalidade em Miguel é acompanhada pela contação de histórias. Daquele
ambiente familiar da infância permanecem em sua memória, vivos como as canções que
cita, os ‘causos’ que seu pai contava. Ele traz consigo as histórias transmitidas na vivência da
cozinha e hoje atualizadas com seus netos. Em outros momentos, porém, eles embalaram
o sono de seus filhos.
“Eu ouvia do meu pai essas histórias... histórias que eu contava para as minhas meninas, essas
que moram lá no Rio. Às vezes eu ficava deitado aqui na rede, daí elas pediam: ‘pai, conta uma
história.’ Daí eu começava a contar história e as duas dormiam. Eu ia contando a história e elas
iam se hipnotizando; e daqui a pouco elas dormiam.”
São histórias que embalavam sonos e adentravam o mundo dos sonhos. Ao ouvi-las,
o abrir e fechar da trama nos carrega para viagens em que existem seres mitológicos como
o Rei das Aves, o Rei das Caças e o Rei dos Peixes, em que ocorrem viagens heróicas ao
inferno, em que são feitas apostas decisivas
sobre a vida dos personagens.
Essa sabedoria caminha lado a lado
com a música caipira. É comum ver no
relato dos autores das letras, a informação
de que a história ali narrada é de fato
um ‘causo acontecido’, testemunhado
pessoalmente ou então ouvido da boca de
seu pai, que ouviu de seu avô... e assim por
diante. A narrativa da história é geralmente
acompanhada pela viola, instrumento de
origem árabe trazido para o Brasil pelos
portugueses.
No Brasil, a viola se popularizou
rapidamente e ganhou características
próprias, especialmente devido à
sensibilidade musical das três grandes
matrizes culturais que aqui se encontraram:
indígena, portuguesa e africana. O
instrumento passou a ser usado em diversas
ocasiões: na catequização dos indígenas,

34
35
em festas religiosas, durante as viagens de
tropeiros e bandeirantes, na congada ou
em rodas de samba e entre trabalhadores
rurais das diversas regiões do país. Eis
que nesse contexto surgem as modas de
viola, que são os diversos ritmos tocados
pelos violeiros: cateretê, cururu, rancheira,
moda-de-viola...
Sobre a diferença entre modas e moda-
de-viola, Miguel explica:
“A moda-de-viola mesmo é aquela em
que a viola canta com a gente. Você ponteia
ela aqui, ela fala junto com você. Agora tem a
moda de viola que é um cateretê, um cururu,
uma guarânia, uma toada, uma canção
rancheira. Daí a viola faz a introdução e o
violão a base.”
Miguel já se apresentou no Museu
do Folclore em diversos momentos.
Atualmente faz parte do Trio da Roça,
composto por Miguel na viola, Carlinhos
no violão e João no vocal. Além do museu,
o trio toca na zona rural de Natividade
da Serra, local onde, segundo Miguel, as
pessoas param para ouvir as músicas, pois
“a melhor coisa é você cantar para aqueles
que gostam de ouvir.”

o
36
C ap ítu lo 5

Saturnino
de Barros Silva
37
A curiosidade é a mãe da sabedoria

om seus pés,

C
Saturnino
amassa a terra misturando
a água para fazer o barro.
Essa mistura forma uma
liga suficiente para assen-
tar os tijolos do fogão de tacho ou fogão
de chão.
O fogão de chão é uma adaptação
portuguesa do forno de pedras feito pelos
indígenas, antes do desembargue lusitano
nesta terra. Os nativos ensinaram aos por-
tugueses a organizar as pedras no chão, de
forma a utilizar o calor do fogo para di-
versos fins. Os portugueses adicionaram à
feitura do fogão de chão o barro amassa-
do, fixando o fogão em um determinado
cômodo da casa, geralmente na cozinha.
Porém, devido à simplicidade de sua fabri-
cação, o fogão de chão pode ser feito, sem
muita dificuldade, em qualquer lugar (1).

1 Cláudia Lima em Tachos e Panelas: historiografia


da alimentação brasileira, p.61.

38
Saturnino de Barros Silva nasceu em Sapucaí Mirim, município de Minas Gerais, lo-
calizado na divisa com São Paulo, na Serra da Mantiqueira. Lugar repleto de montanhas e
vales, cachoeiras e árvores, onde ficava a propriedade rural de seu João Pedro e dona Dita,
atualmente repartida entre os herdeiros. Saturnino, um dos filhos do casal, foi quem nos
levou para mostrar a feitura do fogão de chão e contar um pouco sobre sua história e a de
sua família naquela terra.
O fogão de chão era uma das habilidades de seu pai, homem criativo e curioso que
sabia construir casas, trabalhar com a madeira, lavrar a terra e cuidar dos animais. Desde
criança ele viu João Pedrinho (como seu pai era conhecido) fazer esse fogão. Muito utiliza-
do no cotidiano da casa, nele era feito o sabão, onde se torrava o café, cozinhava os doces,
a pamonha, se fervia ou tingia roupas. Em dia de festas, o fogão era utilizado também para
fazer vaca atolada.

39
Saturnino apresentou-nos seu irmão mais novo, Mateus, que hoje mora na sede, a casa
onde viviam seus pais e onde cresceram os irmãos. A casa hoje funciona como albergue, o
Albergue do Mateus, anteriormente chamada de Pousada da Dona Dita. O local é, desde a
época de sua falecida mãe, ponto de parada de romeiros que, vindos de Bragança Paulista, Serra
Negra, Limeira, Extrema e Estiva, seguem para a cidade de Aparecida para agradecer ou pedir
benções a Nossa Senhora.
“Meu pai acostumou receber esses romeiros que vão para Aparecida a pé. E aqui
acabou sendo um ponto de parada dos romeiros. Minha mãe tinha amizade com muita
gente de Bragança, Serra Negra. O pessoal vinha, passava e já conhecia ela. Quando a
gente morava ali na casa de cima, já passava romeiro. E meu pai chamava: ‘o moço, vamos
chegar, descansar um pouco, vem tomar café com a gente’. Eles vinham, conversavam. Daí
eles acostumaram e pediram se não tinha jeito de arrumar um lugar para dormir. E meu
pai ofereceu a casa. Já chegou a dormir 60 pessoas dentro dessa casa.”

40
De Sapucaí Mirim os romeiros an-
dam cerca de 400 metros em direção a São
José dos Campos, onde pegam um atalho
que passa perto da Pedra do Pião, na Serra
da Mantiqueira. Esse atalho cruza com a
SP-50 em dado momento e sai em Santo
Antônio do Pinhal. Aí há uma bifurcação
no caminho, onde os romeiros podem se-
guir pela estrada nova, a que é utilizada
atualmente pelos veículos, ou pegar a estra-
da velha. Por fim, eles chegam à via Dutra
e terminam o percurso nessa estrada.
A prática da romaria cristã teve início
no período medieval, quando os peregri-
nos que pretendiam alimentar sua devoção
espiritual e pedir ou agradecer as benções
para os santos, viajavam até Roma (por
isso o nome ‘romeiro’). De lá para cá, o
significado da palavra ganhou novos usos
e passou a designar qualquer outro tipo de
peregrinação cristã. Aparecida é uma cida-
de paulista localizada no Vale do Paraíba,
que concentra um grande número de ro-
meiros, especialmente nos meses que an-
tecedem a data de 12 de outubro, dia de
Nossa Senhora da Conceição Aparecida
(2), padroeira da cidade e do país.

2 Frei Chico em Dicionário da Religiosidade Popular:


cultura e religião no Brasil. (verbete romaria).

41
Saturnino fez cadernos para registrar o
local de onde provinham os romeiros e a pro-
fissão de cada um. Ainda tem guardados vá-
rios desses cadernos. Dessas anotações, ele ve-
rificou que os romeiros da cidade de Limeira,
que passam por ali, são os que vêm de mais
longe. Há uma reciprocidade entre os grupos,
percebeu Saturnino. Em determinado ano,
os romeiros de Limeira passam mais cedo e,
ao partir, deixam a estrutura do acampamen-
to montada para o grupo de Bragança. No
ano seguinte eles invertem, os de Bragança
é que deixam a comida preparada para os de
Limeira. Outro comentário interessante de
Saturnino é que, muitas vezes, “acontece de
um romeiro voltar para o Albergue apenas
para passeio, de carro, com a família.”
Dona Dita era uma pessoa muito de-
vota, diz Saturnino. Ela costumava pintar
as bandeiras das festas católicas populares.
Fazia bandeira do Divino Espírito Santo,
de Folia de Reis, de Dança de São Gonçalo.
“Aqui em casa, uma vez, ela chegou a fa-
zer a Festa de São Gonçalo, mas tradicional
mesmo era a Festa Junina. E todo ano a gente
ainda faz a festa, é tradicional, sabe. Depois que
minha mãe e meu pai morreram, nós resolve-
mos fazer um rodízio. Um ano é feita aqui, no
outro ano na casa da Lázara (irmã), outro ano
lá em cima. E vamos rodando. Nessa festinha
a gente reúne a família, o pessoal do bairro,
conhecidos. A gente faz caldinho, paçoca, pi-
poca, quentão, vinho quente. Tudo à vontade.”

42
43
Saturnino, como seu pai, tem aquela iniciativa criativa, é uma espécie de inventor popu-
lar que descobre soluções para as circunstâncias que a vida lhe traz.
“Porque a curiosidade é a mãe da sabedoria. Eu sempre fui curioso. A família nossa.
Meu pai às vezes estava mexendo com o facão lá, cortando uma madeira, uma coisa ou
outra. A minha mãe perguntava para ele o que ele estava fazendo e ele só ria, sabe. Daqui
a pouco, passava um tempo, aparecia o que ele estava fazendo. E ele também fazia questão
que a gente ficasse lá com ele para ver o ponto do melado, mexendo o açúcar.”
No Museu do Folclore Saturnino participou do Museu Vivo realizando com sua fa-
mília a pamonhada. Para a feitura dela eles fizeram um ralador de milho além do fogo de
chão. Atualmente o ralador de milho está exposto na Sala Panelas do Vale, espaço exposi-
tivo do Museu do Folclore voltado aos saberes da culinária.

44
C apítu lo 6

Agenor Lessa
45
Então nós começamos a cantar no cinema

L e s s a e s u a fa m í l i a cultivam o gosto pela música caipira.

A
genor
Com sua esposa Nilza, sua filha Fernanda e seu cunhado Mauro, costuma
se apresentar no espaço Zé Mira e no Museu do Folclore, em São José dos
Campos.
Hoje com 72 anos, Agenor nasceu em Caçapava, mas logo foi morar em Eugênio de
Melo com os pais, que eram meeiros de café. Desde cedo mostrou interesse pela música,
pois conta que já aos doze anos teve condições de se apresentar com o parceiro Augusto
em um evento promovido pelo grupo escolar. Na ocasião, a música tocada e cantada por
eles foi ‘Tristeza do Jeca’, de Angelino de Oliveira.

46
A música caipira era muito apreciada por Agenor, que ouvia no rádio e nos discos que
chegavam até ele os grandes sucessos de Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Pedro
Bento e Zé da Estrada e outros tantos cantores caipiras que se apresentavam nas rádios e
gravavam discos durante a década de 1950. Nesse período, o rádio era o principal meio de
comunicação no Brasil. Em volta dos mais de 1,5 milhão de aparelhos de rádio distribuí-
dos no país, as famílias se reuniam todos os dias para conferir os mais variados programas.
Rádio novelas, noticiários, jogos de futebol, programas de humor... Na casa de Agenor a
preferência eram os programas de música caipira.
Das apresentações na escola, Agenor e Augusto, também conhecidos como Romano
e Saulim, passaram a tocar no cinema itinerante que passava por Eugênio de Melo todo
sábado. Naquela época, além de exibir filmes, o cinema promovia apresentações musicais,
ocupando um lugar importante na vida social da comunidade.
“Então nós começamos a cantar no cinema. Os filmes começavam a passar entre sete e
meia, oito horas, pois enquanto não enchia o cinema não liberava para passar os filmes. Aí,
nesse intervalo, a gente fazia o programa do cinema, a gente cantava a parte musical.” Além
do cinema, os circos que chegavam a Eugênio de Melo também foram palco da dupla.

47
“Eugênio de Melo era um lugar que
aparecia muito circo. Hoje não se fala em
circo mais. Naquele tempo, os circos que
hoje não existem mais, passavam por lá.
Irmãs Galvão, Irmãs Castro, Zé Carreiro
e Carreirinho, todo mundo passava por lá.
Então eles vinham no circo, marcavam o
show deles para tal dia. Mas e os outros 30
dias? Então a gente aparecia no circo fazen-
do nosso show. Nesses 30 dias quem fazia
o serviço de alto-falante do circo, cantando
e anunciando o grande show era nós. Nós
também colocávamos os panfletos na rua.”
Além das apresentações no cinema e
no circo, a dupla cantava nas emissoras de
rádio da região. Conforme foram ficando
conhecidos, passaram a se apresentar em
Taubaté, Cruzeiro, Piquete. Eram apre-
sentações feitas nos auditórios das rádios,
como a Rádio Cacique, de Taubaté e a
Rádio Piratininga, de São Paulo.
Aos 18 anos Agenor teve de servir o
exército. Nesse momento se mudou para a
casa de seu irmão, que morava no centro de
São José dos Campos. Foi quando conhe-
ceu Nilza, sua esposa.
A casa onde morava José Lessa, o ir-
mão, ficava distante apenas alguns quartei-
rões da casa da família de Nilza, próximo
à Estrada de Ferro Central do Brasil, que
cortava a região norte de São José. Agenor
descia então na estação e caminhava até a
casa de seu irmão. No percurso que fazia

48
passava em frente à casa da família de Nilza, onde seu irmão, o jovem Mauro, tocava violão
e cantava as músicas caipiras que ouvia no rádio.
Um dia, Agenor resolveu parar para ouvir e também cantar com Mauro. Foi quando
encontrou o olhar de Nilza, que costumava acompanhar as cantorias do irmão. Depois de
conquistar o coração da moça, Agenor conseguiu a confiança do sogro e teve permissão
para namorar.
“E assim foi”, diz Nilza. “Casamos e tivemos quatro filhos, sete netos...”. Fernanda,
uma das filhas, mantém a tradição musical da família. Além de tocar com um grupo re-
ligioso, se apresenta com os pais no espaço cultural Zé Mira e no Museu do Folclore. “E
tudo aconteceu através da viola” – afirma Nilza. Depois de quase 50 anos de casamento,
a família se mantém unida em torno da música caipira. Durante a entrevista, Agenor,
Mauro, Nilza e Cida, sua irmã, cantaram a toada ‘O milagre das Rosas’.
Essa canção narra um episódio na história da rainha Isabel, de Portugal, canonizada
no século 17. A ‘rainha santa’, como diz a letra da música, costumava recolher o ouro e a
prata do rei (D. Dinis) e levar para as pessoas pobres do reino. Ao ser descoberta pelo rei
durante uma de suas ações, a rainha declarou que levava rosas para enfeitar sua mesa de
jantar. Ao pedir para ela provar, a rainha abriu seu avental e o rei pode então ver ‘lindas ro-
sas perfumadas’. Essa lenda é muito antiga na tradição portuguesa. Apesar de seu registro
mais longínquo datar do século 16, afirma-se que ela já era oralmente transmitida séculos
antes. No contexto da música caipira, aqui no Brasil, a toada foi gravada por Nenete e
Dorinho e também por Tibagi, Niltinho e Valdeci.

49
‘E foi num deste momento que o rei apareceu
E no meio da pobreza a rainha surpreendeu.
O que faz aqui senhora sem consentimento meu?
O que traz nesse avental que ao me ver logo escondeu?
Respondeu a rainha santa: no jardim eu fui buscar
Um ramalhete de flores pra nossa mesa enfeitar.
Ia indo pro castelo e parei para descansar.
Mas o rei não acreditando, pediu pra ela mostrar.
O avental então se abriu e o rei estremeceu
Pois o milagre divino nessa hora aconteceu.
Em lugar de ouro e prata, castigando o rei ateu,
Lindas rosas perfumadas no avental apareceu. [...]’

Agenor ressalta o valor que a música caipira dá


às histórias de vida. A exemplo disto, ele fez uma
canção que homenageia o tempo em que viveu na
roça:
“Essa música foi inspirada na minha infância,
é ao mesmo tempo simples e feliz: lembrança das
brincadeiras, das pescas, da escola onde tive o pri-
vilégio de estudar e da querida professorinha que
tanto me ajudou... Das coisas belas que só a roça
tem, desde o belo pôr do sol ao canto dos pássaros.

50
Meu Rincão
Comprei passagem, estou de saída pra
terra querida que me viu nascer.
Rever meus pais, parentes e amigos, já
faz muitos anos, não consigo ver.
Ver a escolinha onde estudava e a profes-
sorinha que me ensinou a ler.
Ver as maravilhas, os campos e as matas,
os rios, cascatas e pescar de anzol.
Ouvir na palhada o inhambu piando, o
gavião voando, fazendo caracol.
O sol avermelhado clareando o terreiro, o
galo cantando em cima do paiol.
A coisa mais linda quando chega o verão,
as flores do Ipê cobrindo o chão.
A lua cor de prata clareando as matas ao
romper do dia esconde no espigão.
Aqui é tão lindo e abençoado, meu berço
adorado deste meu rincão.

51
Mesmo tocando e cantando músicas caipiras em rádios e circos, Agenor Lessa sempre
manteve outras atividades de trabalho. Depois que saiu da roça, em Eugênio de Melo,
Agenor trabalhou em diversos locais. Entre os anos de 1962 e 1970 trabalhou na em-
presa ferroviária Central do Brasil, em Itaquaquecetuba, fazendo a manutenção da linha.
Voltando para São José dos Campos, trabalhou por quatro anos na Cerâmica Weiss. Em
1974 passou num concurso realizado pela Unesp, campus de São José. Começou traba-
lhando na biblioteca da unidade, onde ficou por alguns anos, depois foi transferido para o
laboratório de Patologia Física, onde se aposentou. Narrando sua trajetória de vida, ele diz
se sentir satisfeito, tendo cumprido tudo aquilo que almejou:
“Eu não preciso de mais nada deste mundo. Não se pode dizer: ‘O Agenor, ficou fal-
tando alguma coisa na vida dele pra completar’. Eu completei minha vida em tudo, tudo
o que precisei para mim até esse momento eu realizei. Vou dizer pra você, o dia que Deus
tiver que me levar deste mundo, pra aqui eu não devo nada. Isso é muito bom, é uma coisa
muito bacana”.

52
C ap ítu lo 7

Sofia de Faria
Ramos

53
Aprendi muita coisa com minha mãe

Ingredientes: 1 litro de leite e 1 quilo de açúcar;


Modo de fazer: colocar e o leite e o açúcar dentro de uma panela, levar ao fogo e deixar fer-
ver, sempre mexendo para que o leite não transborde e/ou não grude no fundo. Quando começar
aparecer o fundo da panela desligar o fogo e bater bem o doce até esbranquiçar. Colocar em uma
assadeira e quando estiver morno cortar em quadradinhos.


eu

O
doce de lei te
aprendi com minha mãe,
minhas avós, lá todo mun-
do fazia.”
Sofia de Faria Ramos
nasceu em Candelária, comunidade rural
que já pertenceu a São Bento de Sapucaí
(SP) e depois se tornou distrito de
Brazópolis (MG), passando a se chamar
Luminosa.
Aos cinco anos, Sofia foi com os pais e
irmãos morar em Campos do Jordão, onde
viveram por cerca de sete anos, até que o
pai decidisse voltar para Luminosa. Dois
anos depois, porém, o irmão mais velho de
Sofia mudou-se para São José dos Campos.
O pai logo gostou da ideia, vendeu a terra
em Minas e comprou uma casa no bairro
Jardim Paulista. Foi nesse momento que
Sofia começou a fazer doces.

54
“Depois que a gente veio para São José não tinha mais sábado e domingo, no sentido
de que a gente não tinha mais tempo, tinha que fazer as coisas para comer... e servir pro
namorado, né!”
Casada há 47 anos com João Ramos, Sofia conta que eles se conheceram no Mercadão
de São José, onde trabalhavam. Ele num armazém de secos e molhados, ela numa banca
de roupa. Como era costume naquela época, João foi pedir a moça em namoro para o pai,
Artur Lourenço. Ele conta que o sogro era um homem bravo, falou que deixava a filha
namorar somente se o casamento fosse marcado para dali seis meses.
“Era daquele pessoal antigo de Minas, disse: ‘vai namorar? Eu aceito namorar, mas
tem que marcar o casamento para daqui seis meses’.”
Sofia tinha 19 anos quando se casou, João estava com 24. Durante os meses de namoro, que
Sofia afirma terem sido oito,ela fazia e testava as receitas que aprendera com sua mãe,Maria José.

55
Doce de leite, arroz doce, biscoito de polvilho, cuscuz, broa, doce de abóbora são alguns
dos pratos que sua mãe fazia para alimentar os filhos na roça e que Sofia levou para o
contexto urbano de São José dos Campos. Ela fala com muito orgulho de sua mãe e dos
saberes acerca da vida doméstica que ela detinha. Com luz de querosene, ela bordava e
costurava para a família e amigos, além de cozinhar muito bem.
“A minha mãe cozinhava muito bem. Eu também aprendi a costurar, a bordar com a
minha mãe, aprendi muita coisa com ela. A única coisa que eu não aprendi com a minha
mãe foi bordar na máquina, minha mãe bordava na máquina! Ela fazia até vestido de noi-
va, bordava aqueles vestidos de noiva.”
Mãe de duas filhas e um filho, Sofia afirma que ensinou para as filhas tudo o que
aprendeu com a mãe. Juntas, chegaram a trabalhar com produção de festas. A filha mais
velha começou a fazer bolo para vender e o negócio foi dando certo. Então elas resol-
veram montar um bufê e trabalhar juntas. A filha mais velha fazendo o bolo, a mais
nova fazendo a decoração dos ambientes e ela, Sofia, fazendo os salgadinhos e docinhos.

56
57
Mas depois as filhas tiveram de mudar de
São José e ela não quis continuar o trabalho
sozinha.
O marido de Sofia é natural de São
José dos Campos. Durante seus anos de
vida, João viu a cidade passar por grandes
transformações, especialmente no que diz
respeito ao rio Paraíba do Sul, pois vem de
uma família de piraquaras, pescadores tí-
picos deste rio. Questionado sobre o mo-
tivo que o fez parar de pescar, João afirma
que foi devido à poluição e à chegada das
dragas para retirar terra do rio. Os clientes
não queriam mais comprar os peixes do
Paraíba porque diziam que tinham gosto
de poluição. Atualmente, porém, almeja
voltar a pescar.
Sofia participa do Museu Vivo desde
2002. Ela começou fazendo bolinho de
chuva, mas depois ampliou bastante seu
cardápio. Fez cuscuz, doce de leite, doce de
abóbora, licor de vários tipos, bolachinhas
de Natal, paçoca.

58
C ap ítu lo 8

José
Augusto
Ramos

59
Aí eu tornava a fazer de novo!


eu viajo sem sair de casa. Eu fico riscando as coisas e pen-

T
em dia que
sando o que será que vai sair daqui.”
Desbastando a madeira com seu canivete, José Augusto produz suas ré-
plicas em miniaturas. Reproduz, com notável precisão, mecanismos impor-
tantes dos tratores, caminhões e carros de boi. Com a mesma precisão, trans-
forma pedaços pequenos de madeira em animais do campo, chaveiros em forma de porteiras
de fazendas, réplicas de mesas, armários e jangadas. A maioria dos temas de suas miniaturas
está ligada a algum momento de sua vida. Para estes, José Augusto narra várias histórias.

60
Em meados de 1957, José Augusto trabalhou na construção da Rodovia dos Tamoios,
estrada que liga São José dos Campos a Caraguatatuba, Litoral Norte de São Paulo.
“Tinha trabalhado lá no Alto da Serra, nós cortamos a estrada lá. [...] Trabalhei na
construção da estrada, mas eu era ajudante. Só que quando o trator parava, ele (o moto-
rista do trator) dizia ‘pode pegar’, era de noite, eu cortava a estrada à noite, era noite e dia
cortando a estrada velha.”
Seu pai era carreiro, trabalhou em Paraibuna transportando cargas com o carro-de-
-boi. “O nome do meu pai era José Benedito Ramos. Então ele chegava para almoçar, vi-
nha de Paraibuna porque tinha levado lenha de manhã cedo. Uma hora ou uma e meia da
madrugada ele saia com o carro-de-boi; e tinha estrada ruim pra caramba naquela época.
Chegava a Paraibuna ele ia levar lenha pros padeiros fazer pão, ele deixava num lugar, um
pouquinho num, um pouquinho noutro, e assim ia fazendo...”

61
“Depois pegava farelo para dar pro gado, torta, tudo que era tipo de ração para o gado e
pros porcos para comer lá. Quando ele chegava em casa, que era na beira da estrada, parava
para tomar um café, porque a fazenda que ele ia ainda era pra frente, a do dono dos bois,
no caso. Daí eu ficava olhando aqueles boizinhos, eu era pequeninho, nem usava roupa
nada, andava peladinho, eu ficava no meio da água feito o boi. Depois levantava e pegava
um pedaço de pau e ficava copiando, tinha um canivetinho, nem sei de quem era aquilo, eu
pegava a madeira e tentava fazer o casquinho do boi mas fazia tudo errado... Meu pai via
aquilo e dizia ‘tá tudo torto meu filho tem que endireitar’. Aí eu pegava um pedacinho de
pau e ia tentando fazer, ia tentando fazer, ai fazendo, fazendo, fazendo. Quando chegava
de tarde ele dizia ‘ah, agora já está melhor, mas tem que endireitar mais’... Aí eu tornava a
fazer de novo, começa a fazer outro de novo. Porque naquela época tinha muita madeira.
Aí um dia ele chegou e falou ‘agora está certo’. Aí eu comecei a fazer o boizinho com o
pescocinho voltado para trás , o boi segurando no carro e um monte de coisas.”

62
Com a modernidade, o carro-de-boi foi substituído pelo caminhão no trabalho das
fazendas. E o jovem José Augusto foi trabalhar com seu pai no transporte de cargas. A
miniatura do caminhão em suas mãos conta esta história. Nela é possível ver a reprodu-
ção de vários dos mecanismos do automóvel: o eixo cardã, o feixe de mola, limpa vidro,
tampão, pedal da embreagem, do freio e acelerador, e ainda a alavanca do câmbio onde as
marchas encaixam.
Sobre os caminhões de madeira que fez, José Augusto já esteve em crise com um de-
les. Conta que fez uma réplica grande que era exatamente igual à que seu pai usava para
trabalhar na fazenda Serrote, no município de Santa Branca.
“Eu vim pra cá em 54, em 1950 eu trabalhava lá perto de Santa Branca, era a fazenda
Serrote. [...] A fazenda que a gente morava, que a gente foi criado, foi a fazenda São Pedro,
pra baixo dessa aí. A minha família morava lá, a gente plantava lá. Eu era moço novo. Este
caminhão fazia bardeio de laranja, lá tinha pomar de virar o morro, rapaz! Tudo lá na fa-

63
zenda, a gente também puxava cana para fazer rapadura, talhada, pé de moleque, fazia um
monte de coisa. A gente fazia também lotação para Aparecida. Eu fiz um caminhão desse
aí mas não gostei, larguei mão, ai eu disse ‘ah, não vou fazer mais nada...’, aí eu joguei na
caçamba, mas quando fui lá olhar de novo, não estava mais nada.”
José Augusto diz que se considera atualmente uma pessoa calma, mas conta que por
muitos anos foi uma pessoa brava. Atribui a mudança em sua personalidade à força de
Deus em seu destino.
“Agora frequento a Universal, Deus mudou nossa vida. É por isso que eu digo: eu era
um demônio, nervoso, ruim, que chegava chutando tudo. A gente mudou, Deus mudou a
gente, tem que batizar porque se não a gente não ganha a salvação. Nós evangélicos não
podemos criticar ninguém e desconfiar do outro, porque é de outra religião, tem orar por
todo mundo, enfim, por todos.”

64
Com seus 76 anos, José Augusto já traba-
lhou em vários locais da região. Começou no
então Centro Técnico Aeroespacial (CTA),
hoje Departamento de Ciência e Tecnologia
Aeroespacial (DCTA), depois que saiu
de Santa Branca e veio para São José dos
Campos. Trabalhou também na Cerâmica
Paulo Becker, onde permaneceu 12 anos e
meio. Aposentou-se na Embraer, trabalhan-
do no setor de tenda de ferramentas.
“Na tenda de ferramentas eu trabalhei
um tempão, mais de 17 anos. Aí começa-
ram a querer me colocar como encarregado,
aí eu disse: ‘Eu cuido muito de mim, mas
mandar nos outros, eu não quero!’ Para isto
não, eu era enguiçado pra caramba.”
Atualmente José Augusto se prepara
para voltar a vender na feira de artesanato da
Praça Afonso Pena, região central da cidade.
No Museu do Folclore já participou diver-
sas vezes do Museu Vivo, como ‘fazedor’ de
brinquedos. Todavia, sua experiência com a
cultura popular é mais ampla, pois antes de
se converter à Igreja Universal, há cerca de
20 anos, era mestre de Moçambique, líder
de um grupo no Jardim da Granja.
“Eu comecei dançando lá na fazenda
Serrote. A gente tinha que pisar tudo cer-
tinho com os outros. No Jardim Paulista
nós ensaiava na casa da Dona Eugênia,
apresentava em Monteiro Lobato, São
Francisco Xavier, uma vez a gente foi até
para Poço de Caldas, nós saia mesmo.”

65
Muitas pessoas na cidade de São José dos Campos consideram que José Augusto é
um fazedor de brinquedos. Ele entende de outra forma, mesmo reconhecendo que seu tra-
balho é um convite para uma criança brincar. Pondera que as crianças acabam quebrando
os brinquedos. “Todos elas podem brincar, mas é mais decorativo.” Sua filha, Regina de
Fátima, conta que o neto, Vinícius, de 3 anos, para a sorte do avô, ainda não descobriu as
caixas onde ele guarda as réplicas em madeira.

66
C ap ítu lo 9

Margarida Liesack Baptistini

67
O gosto de ensinar e o gosto de aprender

E
l a d o b r a , c o r ta , d o b r a
novamente e abre o papel. “Depois eu co-
loco na mesa até terminar. Aí eu dobro e coloco no arame, amarro aqui um
pouquinho com linha 10, daí que vou abrir um por um. Depois você passa
o batom.” Assim Margarida narra como se faz o cravo de papel. Sorrindo,
acrescenta: “Até menina de sete anos vem aqui e diz ‘eu quero aprender
também’. Eu digo: ‘venha aqui’! E isso é muito bom!”
Margarida Liesack Baptistini possui vários saberes e gosta de transmiti-los. Ela se en-
tusiasma com o interesse das pessoas em aprender o que sabe ensinar. Ela também gos-
ta de aprender coisas novas, conta que sempre
está matriculada em algum curso. Aposentou-
se como professora primária, tendo trabalhado
por 30 anos no Colégio Olímpio Catão, escola
estadual localizada na região central da cidade.
Além das aulas no colégio, Margarida dava aulas
de culinária para crianças e adultos. Atualmente,
ainda vai às escolas da região a convite de outros
professores para ensinar alguns de seus fazeres.
Em sua casa, há várias caixas de flores de
papel, pastas com anotações diversas na estante
e arranjos de flores pela sala. Seu apartamento
fica na zona central da cidade de São José dos
Campos, em frente à Praça do Sapo, local onde
com frequência recebe as amigas para tecer a
linha do crochê, experimentar receitas novas,
tomar uma xícara de café, colocar a conversa
em dia.

68
As flores de papel de Margarida são
conhecidas pelas pessoas da igreja, do asi-
lo e da creche onde presta serviço volun-
tário; e também no Museu do Folclore.
Com entusiasmo diz que colocou mais de
100 cravos no andor de São Benedito e
que estas flores possuem um sentido sim-
bólico, pois suas cores variam conforme o
santo levado no andor. Para fixar as flores
que faz, utiliza um martelo e um rolo de
arame.
“Eu enfeito o andor do Asilo Santo
Antônio todo ano, mas sempre tenho co-
migo uma ou duas companheiras para aju-
dar. Depois de amanhã vou enfeitar o an-
dor de Nossa Senhora Aparecida. A irmã
me telefonou faz uns cinco dias: ‘Não se es-
queça que eu quero que você enfeite o an-
dor de Nossa Senhora Aparecida’. Então,
todo ano eu vou lá e enfeito.”
Margarida conta sobre sua devoção
aos santos Antônio e Benedito: “Eu sou
devota de São Benedito, mas sou mais de
Santo Antônio. Para Santo Antônio, tudo
que peço, eu alcanço. Mamãe era muito ca-
tólica, era vice-presidente do Asilo Santo
Antônio, depois que ela não pôde mais, eu
passei a trabalhar lá.”
No Museu do Folclore ela ensinou os
participantes do Museu Vivo a fazer as flo-
res: “nós ensinamos a fazer as flores e os
homens, para você ver, aprenderam a fazer
o cravo melhor do que as mulheres.”

69
Além dos cravos, as rosas. Fazer rosas de papel é, há muito tempo, um artesanato que
sabe: “Eu toda a vida fiz, com seis anos eu aprendi a fazer tricô e crochê. Eu faço crochê,
bordo desde pequena.”
A culinária é outro fazer de Margarida. Doces, pães, bolos e salgados são alguns dos
pratos que faz. Durante 20 anos deu aulas de culinária, onde ensinava a fazer bolos artísticos.
“Bolos artísticos..., eu tinha aluno de Jacareí que ia com o bolo enfeitado no ônibus...
Fazia bolo no formato de violão... Dava 10 dias de aula em casa, durante o dia e de noite.
Eu tenho um monte de molde pronto. Eu fiz um bolo para minha prima de Santa Isabel
com cinco andares, eu tinha que subir na mesa para enfeitar o bolo. Quando meu filho
casou, eu fiz todas as flores para enfeitar os bancos da igreja e da capela, fiz de pano de
cetim. E nós fizemos uma festa lá no salão do asilo, eu fiz todos os salgadinhos, eu fiz tudo,
o bolo, balas de coco...”

70
Ela conta que pega as receitas nos programas de culinária da televisão, em revistas e
nas reuniões com as amigas. Reúne tudo em pastas organizadas na estante. “Eu faço um
pão de Cristo! Esse pão, quando eu faço, o prédio fica cheirando. Na travessa eu ponho um
litro de água, quatro colheres de açúcar, quatro colheres de trigo, uma colher de sal. Tampo
com um pano branco, no dia seguinte já encheu a travessa.”
Margarida atualmente distribui o pão para as pessoas do prédio. Antes, porém, ela
dava para as pessoas que guardavam a ‘isca’, como suas amigas Neusa e Jandira. Essa his-
tória da isca vem de uma antiga tradição de mulheres e consiste em seguir algumas regras
na preparação do pão.
Margarida conta também sobre suas habilidades com as ferramentas: “Acho que em
outra vida eu fui carpinteiro. Eu tenho morsa pequena, quando eu compro alguma agulha
muito grande e não gosto, eu serro na morsa.” Margarida também reforma as imagens de

71
santos das amigas. Faz velas que são colocadas no altar da igreja que frequenta, sapatinhos
de lã, pinturas em vidro...
Sobre seu saber acerca de ervas medicinais e simpatias, comenta: “Quando eu morava
na Rua Vilaça, eu fazia simpatia para bronquite. Uma vez por mês, tinha vez que vinham
vinte pessoas de Santa Isabel buscar. Curaram! Três meses...”
Mas ela parou de fazer as simpatias porque dava muito trabalho procurar as plantas
que queria. “No dia que eu falei: ‘não vou fazer mais’, eu tinha erva cidreira na minha
casa, no dia seguinte morreu tudo. Mas curava, viu... Eu aprendi com uma senhora do
Buquirinha que já morreu há muito tempo. Era uma xicarazinha que tinha que tomar uma
vez por mês na (lua) minguante.”
Além das simpatias de cura, Margarida conta sobre as simpatias para trazer dinheiro:
“É no Dia de Reis, 6 de janeiro, já tenho pronto o saquinho aqui. Já faço uma porção na
máquina, tudo saquinho pequeninho. Daí eu pego três pedacinhos de romã, chupo um,
sem pegar nele, dali eu vou por no saquinho. Primeiro um, ‘Baltazar, passa o dinheiro para
cá, Gaspar’... Então eu faço com os três. Depois eu costuro e coloco na bolsa com o dinhei-

72
ro. Esse não falta, o pessoal fala. Eu faço um monte, tem gente que vem lá do Buquirinha
buscar aqui. Não falta dinheiro, parece que o dinheiro da gente rende.”
Margarida nasceu em Santa Isabel. Foi lá que seu pai, Carlos Liesack, encontrou sua
mãe, Maria Isabel, nascida em Igaratá. Eram quatro filhos, um homem e três mulheres. A
família Liesack morou em São Paulo por onze anos antes de se mudar para São José dos
Campos. “Eu vim para cá em 1947, me formei professora em 49.”
“Meu pai era alemão, nasceu em Freiberg, na Alemanha. Ele esteve na Guerra de
1914, veio fugido. Não sabia falar nada, moço ainda. Eu não sei como ele foi parar em
Santa Isabel. Lá ele conheceu minha mãe. Ele trabalhava na usina, acendia as luzes às seis
horas da tarde e depois ia lá de bicicleta desligar. Eram dois quilômetros da cidade. Papai
tomava conta lá. Meu pai também montava rádio em dois dias. Eu tinha um rádio que ele
montou para mim. Ele era engenheiro na Alemanha. Papai trabalhou para a rádio PL1
(serviço de alto-falantes idealizado por Paulo Lebrão e instalado em frente a uma das es-
quinas das ruas XV de Novembro e Sebastião Humel, no centro de São José dos Campos,
no ano de 1937) e também tinha oficina para consertar os rádios.”

73
A devoção de sua mãe, que todos os anos levava os filhos para Aparecida, apresentou
a cidade de São José dos Campos à família. Seu pai não era religioso, mas respeitava a fé
de sua mulher, acompanhando-a, inclusive, nas viagens ao Santuário de Aparecida. Nessas
romarias, eles foram conhecendo cidades do Vale do Paraíba até chegar a São José.
“Eu sei que a gente foi para Aparecida, porque todos os anos a gente ia para Aparecida
de trem. E vinha chegando, chegamos em Taubaté. Para o papai e mamãe escolher que
cidade a gente ia morar. Depois descemos em São José, ele gostou daqui. Comprou uma
casa e nós ficamos por aqui.”

74
C ap ítu lo 10

Fátima
Regina Capinam

75
Uma verdadeira troca de saberes


P
é preciso agulha e linha. Não existe ferra-
a r a fa z e r a r e n d a t u r ca
menta certa para fazer, pois o que a gente usa é um palito, um canudinho...
Eu uso caninhos, cabo de vassoura, cabo de antena. Porque se a gente usa
um objeto um pouquinho mais fino, o desenho já fica outro.”
Fátima Regina Capinam Sanção Fazendeiro nasceu em São Paulo,
capital. Regina, como é tratada pelos amigos, é filha de Rosalina Francisca Capinam
Sanção e Benedito Antônio Sanção, o seu Geraldo. A mãe, cuja família era da Bahia, e o
pai, de Guararema, se conheceram em São Paulo, onde viveram e tiveram seus cinco filhos.
Regina é a filha do meio.

76
77
Há cerca de dois anos ela começou a participar do Museu Vivo ensinando aos inte-
ressados os pontos da renda turca.
Com seu vasto saber artesanal, Regina inovou nas maneiras de fazer o ponto da renda
turca. Usando diferentes fios, tamanhos diversos de agulhas e ferramentas domésticas va-
riadas ela faz cortina de barbante, cachecol de lã e toalha de linha.
Na casa de Regina há pinturas, desenhos e fotografias penduradas na parede, tapetes de
crochê, toalhas de renda, móveis feitos com materiais reaproveitados, ferramentas de traba-
lho, obras cuja autoria é de Regina. Ela conta que, além da renda turca, sabe fazer a renda

78
portuguesa, o hardanger (ponto conhecido como rendendebo no nordeste do Brasil), aplique
e fuxico, costura e faz objetos de madeira, como a mesa-baú que fica na sala e os bastidores
usados para a produção artesanal.
“Esse bastidor retangular fui eu que fiz, porque só existe o redondo. Ele é usado para
deixar o pano esticadinho. E daí eu trabalho com mais tranquilidade o ponto.”
Por conta do trabalho do marido, Ubiratã Neves Fazendeiro, Regina se mudou
para São Francisco Xavier, distrito de São José dos Campos, localizado na Serra da
Mantiqueira, lá permanecendo por um breve período. Nessa época, Regina teve a opor-

79
tunidade de conhecer outras senhoras e
trocar experiências.
“Era uma troca de saberes. Uma fa-
zia crochê e ensinava para quem quisesse.
Aí, aquela, que aprendeu crochê, sabia fa-
zer tricô, e ensinava para as demais. Cada
uma ensinava aquilo que sabia. Era uma
coisa mais ou menos livre. Daí a gente se
reunia para fazer artesanato, para apren-
der e ensinar e tomava um cafezinho, e
conversavam.”
Regina também acredita que ensinar
artesanato é importante para manter vivos
conhecimentos familiares costumeiramen-
te transmitidos de geração em geração, mas

80
que, por algum motivo, não se perpetuou
na geração contemporânea.
“Eu queria que esse trabalho não mor-
resse. Tem muita gente que fala assim:
‘minha avó tem uma toalha dessa, minha
avó fazia isto e eu me arrependo de não
ter aprendido’. Então, eu gostaria de poder
ensinar muitas pessoas para resgatar esse
conhecimento.”
Regina chegou a São José dos Campos
com seu marido, no ano de 1985. Eles se
conheceram em São Paulo na militância
política, se apaixonaram e, depois de seis
meses de namoro, casaram-se. Eles fica-
ram um ano em São Paulo até que a tia de

81
Ubiratã, que vivia em São José dos Campos, ficou viúva. O casal então se mudou para a
cidade para fazer companhia e cuidar da tia, que era uma pessoa muito importante na vida
de Ubiratã. Em São José, Regina e Ubiratã tiveram dois filhos, Tiacuã, que atualmente
mora em São Paulo, e Aruã, que estuda em Florianópolis.

82
C ap ítu lo 11

Cândida
Morais Bernardes

83
O trabalho tem um valor especial

O f u x ico m i n ei ro

O consiste na feitura de
bolsas e colchas a partir
de pequenos pedaços de
tecidos, costurados uns
aos outros. Os pedaços são cortados por
Cândida usando um molde em formato
hexagonal.
Ela explica que foi em São José dos
Campos que soube que o que ela faz é o
‘fuxico mineiro’. A questão é que o fuxico
que ela faz é diferente do fuxico que usual-
mente se faz no Estado de São Paulo.
“Aqui em São José que eu fiquei sa-
bendo que este daqui é o fuxico mineiro,
porque é o paulista que faz aquele franzido.
[...] Quando eu trouxe ninguém conhe-
cia porque aqui a pessoa conhece o fuxico
franzido, redondinho. Este é o fuxico que
a gente corta os quadradinhos, aí tem o
molde... A gente vai fazendo um por um
com o molde, esse aqui é o que minha mãe
usava, é de papelão. Aí a gente coloca o pa-
pelão em cima, vai dobrando, depois costu-
ra tudo aqui, aí depois vai emendando um
por um... Depois a gente vai montando, a

84
gente pode fazer individual que é uma bolsa, e pode fazer ele todo fechadinho como um
tapete, e pode ainda fazer ele emendar aberto para fazer uma colcha.”
A nomeação que imprime a diferença entre o jeito mineiro e o paulista ocorre tam-
bém com o crochê. No jeito mineiro, a linha fica enrolada no dedo indicador e a agulha
pega a linha por cima. No jeito paulista, a linha não é enrolada no dedo e os dedos seguram
a agulha como se ela fosse uma caneta. Cândida conta que certa vez foi identificada em um
grupo como mineira ao usar sua técnica de crochê.
A fim de mostrar um trabalho de fuxico finalizado, Cândida apresentou uma colcha
em especial, a mais antiga que guarda em sua casa. Nela os hexágonos significam mais do
que forma, cor, textura...; funcionam como indícios materiais que atualizam as memórias
de Cândida acerca de sua família. A partir do detalhe azul dessa colcha, por exemplo,
Cândida conta:

85
“Quando minha mãe fez era um vestido de festa. Quando era época de Semana Santa,
todo dia a gente tinha que ir para a igreja e tudo, então minha mãe sempre fazia uma roupa
nova para a gente ir para a semana santa, para a festa e para a missa. E aquele tecido era
de um deles.”
A colcha também tem valor especial para ela, pois há ali o trabalho das mãos da sua
mãe e irmãs:
“Minha mãe é que começou a fazer, lá em Minas. Ela começou a fazer e não sei por-
que ela parou, aí minhas irmãs fizeram um pouquinho, Catarina e Josefina, depois eu que
terminei... Esses retalhos aqui, a maioria, são roupas que a minha mãe fazia para a gente.
Minha mãe costurava para fora e fazia roupa para a gente. Eu lembro que este xadrezinho
era uma blusa minha... Essa era uma saia, eu devia ter uns 14 anos ou 15 anos, meu pai
não deixava a gente usar calça comprida porque ele dizia que era coisa de homem. Era

86
só vestido, saia... [...] A gente antigamen-
te não tinha muita loja de roupa pronta.
Então, minha mãe costurava, aprendeu por
ela mesma, sozinha, colocava um vestido
em cima do outro e fazia.”
Cândida Morais Bernardes nasceu
em Carmo da Mata, Sul de Minas Gerais.
Mudou para a cidade de São José dos
Campos na década de 1960, quando era
uma adolescente. Assim como ela, a maior
parte de seus nove irmãos e irmãs emigrou
da pequena cidade mineira:

87
“Meu irmão, quando chegou a épo-
ca de servir, foi para Volta Redonda, no
Rio. Ele seguiu carreira militar, casou, aí
levou minha irmã mais velha, Elvira, pra
lá. Ela ficou lá, casou com um militar da
aeronáutica que veio transferido para São
José. Eles casaram aqui e ficaram moran-
do aqui mesmo. Aí minha irmã, Catarina,
veio passear e arrumou serviço na Johnson
e ficou. E assim, ela foi trazendo um por
um...”
Em São José, Cândida trabalhou
em várias indústrias. Na última delas, a
Tecelagem Parahyba, conheceu seu ma-
rido, Rodolfo Bernardes. Casaram-se e
hoje moram na zona sul da cidade. Em
sua casa, há animais e plantas cultivadas
em vasos. Rodolfo é dedicado aos cachor-
ros e Cândida, às plantas. Ela menciona
que gosta muito da natureza, mas que por
vezes briga com as plantas quando elas
não desenvolvem da forma que espera.
Ao mostrar suas plantas, menciona que,
em Carmo da Mata, cultivava junto com
a família uma horta com vários tipos de
hortaliças.
Cândida não tem reservas em di-
zer que sonha em voltar para Carmo da
Mata. Sempre que pode viaja cerca de 480
quilômetros até a cidade onde ainda vive
um de seus irmãos. Questionada sobre do
que exatamente do que sente saudade, ela
respondeu:

88
89
“A cidade, as pessoas, minhas amigas de antigamente. Se eu pudesse voltar, eu voltava.
Eu gosto muito da natureza. Eu gostaria mesmo de viver na casa onde eu morava. Quando
meu pai faleceu, nós vendemos a casa, o senhor que comprou está lá até hoje. Só que no
quintal nosso tinha um pomar, a gente criava porco, criava galinha, pato, tinha cachorro,
gato, criava pombo, e tinha ainda as hortaliças que meu pai plantava, aqueles canteiros
enormes: alface, tomate, repolho, chuchu, beterraba, cenoura, couve. A gente regava, tinha
aquela..., eu não sei, aqui eu nunca vi em casa nenhuma, era um tanque d’água que a gente
pegava o regador enchia de água e regava as plantas todo o dia de tarde. Aquele barulho
da água caindo na folha do alface é inacreditável, é um som que não tem igual, não existe...
Então tudo isso eu sinto saudade, é muito bom, o som da chuva caindo nas plantas.”
Em São José, Cândida costuma passear no Parque da Cidade, caminhar pelos bos-
ques e ir até o lago ver os peixes, tartarugas e pássaros. Foi num desses seus passeios que
conheceu o Museu do Folclore. Conta que tudo começou quando viu uma conhecida sua
fazendo fuxico durante as atividades do Museu Vivo.

90
“Aí eu conversei com ela e disse: ‘eu faço um fuxico diferente’. Aí ela levou para o
pessoal do museu ver. Aí na outra semana, no domingo, eu já fui lá e mostrei para elas, elas
anotaram meus dados e logo depois eu comecei a participar.”
Embora Cândida tenha participado do Museu Vivo apresentando o ‘fuxico minei-
ro’, seu saber-fazer é mais amplo. Ao lado de sua mãe, Maria das Dores de Oliveira, ela
aprendeu a fazer outros itens necessários ao dia-a-dia de uma família. Cita como exemplo
o sabão de cinza, feito a partir do cozimento e fervura da gordura animal.
Em Carmo da Mata este sabão também era utilizado para lavar os cabelos. Cândida
conta que ele deixava os cabelos mais belos do que deixam hoje os xampus industrializa-
dos. Na parte do saberes da cozinha, cita a broa de fubá de milho. Conta que quando volta
de Minas, além dos queijos, roscas, doces e outros produtos típicos, traz também o fubá
certo para fazer a tal broa. Reclama que em São José não encontra o fubá certo, o que dá a
consistência certa na massa: “É um fubá amarelo que vende em saquinho mesmo, ele tem
a textura de uma maisena, eu sei que com outros fubás não dá liga.”

91
Cândida hoje está aposentada. No seu cotidiano, além de cuidar da casa e da família,
frequenta a Casa do Idoso, onde participa de várias oficinas de artesanato:
“Lá a gente aprende bastante coisas. Eu fui para lá para fazer hidroginástica por re-
comendação médica, aí passei a conhecer os artesanatos e me interessei em fazer... Fiz
mosaico, artesanato com tachinhas, com feltro. Fizemos este daqui também: traçado de
fitas, você pode fazer nesse tecido ou no toalha de banho, de rosto. Dá um outro valor para
os objetos.”
Cândida é uma das pessoas que fizeram parte do fluxo migratório mineiro que ocor-
reu nas décadas de 1960 e 1970 em direção ao Vale do Paraíba, em especial à cidade de
São José dos Campos. Com eles vieram muitos saberes, artes, ritos e técnicas hoje já in-
corporados ao quadro social local.

92
C ap ítu lo 12

Irma
Valiante

93
Os segredos da cozinha caipira

Maria Cheminand

I
rma
Valiante aprendeu a fa-
zer doces com sua mãe,
Irma Almada Cheminand,
na época em que ela mora-
va em Bananal, município paulista do Vale
do Paraíba, que faz fronteira com o Estado
do Rio de Janeiro. Ela conta que sua mãe
possuía muitos saberes culinários advindos
do cotidiano na roça e que gostava de lhe
ensinar os segredos da cozinha caipira.
“Na fazenda, na zona rural, todo tipo
de produto era aproveitado. Fazia-se mui-
to doce das frutas que eles tinham. Isso eu
aprendi com a minha mãe, sabe. Na época
da goiaba, por exemplo, a gente fazia a goia-
bada para durar o ano inteiro. Guardava em
caixetas, colocava a palha de milho e depois
o papel impermeável. O doce era colocado
no papel impermeável, fechava a caixeta e
guardava para o ano inteiro. Eu tinha uns
14, 15 anos e ajudava a minha mãe a fazer
a goiabada, bananada. Era naquele tacho
enorme de cobre que a gente ficava mexen-
do, no fogão de pedra.”

94
Além da goiabada e da bananada, Irma
aprendeu a fazer doce de laranja da terra,
doce de figo, doce de abóbora, doce de pês-
sego, em calda e cristalizado, e doce de leite.
Atualmente utiliza fogão a gás, mas já cozi-
nhou em fogão de tacho, fogão de lenha e
de carvão. Os ingredientes que ela costuma
usar para a produção dos doces são com-
prados no supermercado ou no Ceagesp
(entreposto público federal para venda de
produtos agrícolas), mas, conta que os doces
feitos com ‘ingredientes caipiras’ são mais
gostosos.

95
“Essa goiaba que a gente compra
aqui, produzida para comércio, não tem o
mesmo sabor daquela goiaba que a gente
chama ‘caipira’, nativa. Um doce em calda
dessa aqui não dá para fazer, porque ela
desmancha toda. A goiaba caipira é dife-
rente, é bem firme, a casquinha é bem fir-
me, você pode pôr para ferver, pôr açúcar.
E dá diferença de sabor.”

96
Irma, por conta da vivência em
Bananal, ressalta a diferença existente
entre as frutas de pomar e as de grandes
plantações. Ela morava em uma cháca-
ra onde havia muitas árvores frutíferas e
uma das tarefas das crianças na prepara-
ção dos doces era buscar as frutas no pé.
Ela gostava muito da tarefa, diz que era
uma delícia. Em seu quintal tinha manga,
jabuticaba, goiaba, pêssego, laranja, di-
versos tipos de banana, milho, abóbora e
também uma horta. A goiaba, a laranja e o
mamão da roça, segundo Irma, dão doces
mais saborosos do que as frutas do merca-
do. Até o fubá caipira, feito no moinho de
pedra é melhor para fazer bolo, angu em
sua opinião.
Ela chegou a São José dos Campos
em 1985 para trabalhar na Delegacia
de Ensino na coordenação do projeto
Unidades Escolares da Ação Comunitária
(UEAC), que estava sendo implantando
nas escolas rurais da região de São José.
Além de São José, ela também atuava em
escolas da região. Ela conta que um dos
aspectos marcantes do projeto é que sua
pedagogia estava voltada para o interesse
da comunidade. Seu foco não estava ape-
nas nos alunos, mas nas famílias também.
No projeto, Irma trabalhou durante 20
anos. Ela explica que os grupos de alunos
eram compostos de pessoas com diferen-
tes faixas etárias.

97
“O trabalho mais importante era com a comunidade. Por exemplo, onde a comu-
nidade tinha muitas senhoras, as professoras trabalhavam mais com costura, bordado.
A gente teve uma escola em Monteiro Lobato que eles começaram a resgatar a cultura
de lá. Eles descobriram e reuniram pessoas que tinham o conhecimento e, por algum
motivo, deixaram de dançar ou de participar de manifestações folclóricas de lá. Catira,
São Gonçalo...”

98
99
Essa experiência a motivou conhecer as manifestações folclóricas da região e trabalhar no
sentido de fortalecê-las. A partir do envolvimento com o tema, veio a conhecer os folcloristas
da cidade e com eles integrar a antiga Comissão de Folclore, grupo vinculado à Fundação
Cultural Cassiano Ricardo (FCCR), voltado às ações de salvaguarda do folclore da região.
Irma também já teve um bufê com um de seus filhos. Ela fazia os doces e salgadinhos
para as festas. Brigadeiro, beijinho, cajuzinho, camafeu, bombom eram as receitas mais
pedidas. Atualmente aceita encomendas de clientes antigos que já são seus amigos. Além
deles, sempre faz os doces para os encontros com sua família e com as amigas.

100
R eferências B ibliográficas

Araújo, Alceu Maynard. Folclore Nacional: ritos, sabenças, linguagem, artes e técnicas.
Vol. III. São Paulo: Melhoramentos, 1964.

Canclini, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
Trad. Ana Regina Lessa, Heloísa Pezza Cintrão e Gênese Andrade. Edusp: São Paulo,
2001.

Cascudo, Luis da Câmara. História da alimentação no Brasil. Vol. II. Belo Horizonte: Ita-
tiaia; São Paulo: Edusp, 1983.

Lima, Cláudia. Tachos e Panelas: historiografia da alimentação brasileira, 2 ed. Recife:


Edição da autora, 1999.

Ribeiro, José Hamilton. Música caipira: as 270 maiores modas de todos os tempos. São
Paulo: Globo, 2006.

Van der Poel, Francisco (Frei Chico). Dicionário da Religiosidade Popular: cultura e reli-
gião no Brasil. Curitiba: Nossa Cultura, 2013.

101
P erfis dos P esquisadores

F
ábio Martins Bueno trabalha como
professor de história e pesquisador na
área de patrimônio cultural. Tem ex-
periência como escritor de textos acadêmicos
e didáticos. É autor do 22º volume da Coleção
Cadernos de Folclore, O saber e o fazer no Museu
do Folclore, publicado em 2012 pela Fundação
Cultural Cassiano Ricardo – FCCR e Centro de
Estudos da Cultura Popular – CECP. É gradu-
ado em História pela Universidade Estadual de
Londrina (UEL). Possui, pela mesma universi-
dade, os títulos de especialista em História Social
e mestre em História Social, na linha ‘Culturas,
Representações e Religiosidades’.
(fm_bueno@yahoo.com.br).

M
aria Siqueira Santos tem expe-
riência como redatora e editora de
textos acadêmicos e didáticos. Foi
professora de História na rede pública de ensi-
no e orientadora online no programa Redefor/
Unicamp. Também já trabalhou como professora
de inglês e com produção de programa de rádio.
É graduada em Psicologia pela Universidade
Estadual Paulista (Unesp) e em História pela
Universidade Estadual de Londrina (UEL),
onde também concluiu mestrado nesta área.
(mariasiquantos@gmail.com).

102
P erfil do fotógrafo

F
Francisco José Lacaz Ruiz (Chico
Abelha) é pesquisador e fotógrafo autodi-
data. Por 30 anos viveu na zona rural de São
José dos Campos, onde vivenciou, registrou e divul-
gou (em rádios comunitárias) os saberes e fazeres
do homem do campo. Realiza e divulga (pelas re-
des sociais) produções audiovisuais independentes
de diversas manifestações folclóricas da região. Nos
anos de 2011, 2012 e 2013 identificou e registrou
(em vídeo, foto e texto) informações sobre diferen-
tes manifestações da cultura popular local para o
Projeto Piraquara, da Fundação Cultural Cassiano
Ricardo – FCCR. Realiza atualmente a identifica-
ção de novos ‘fazedores’ para o Projeto Museu Vivo
do Museu do Folclore, da FCCR.
(chico.abelha@hotmail.com).

103
F undação C ultural C assiano R icardo

A
Fundação Cultural Cassiano nios preservados por lei, dentre os quais
Ricardo (FCCR) de São José há, igrejas, prédios, cinema, residências,
dos Campos foi criada pela Lei complexo industrial, estações ferroviárias,
Municipal 3050/85, tornando-se respon- praça e até árvores.
sável pela implantação das diretrizes de Além do constante esforço na pre-
políticas públicas de cultura no municí- servação, a Fundação Cultural Cassiano
pio, garantindo a experimentação, fruição Ricardo também proporciona oportunida-
e acesso da população aos vários segmen- des de aquisição de novos conhecimentos
tos das artes, às manifestações da cultura e novas vivências, de experimentação e de
popular e à preservação dos patrimônios contato com os mais diversos tipos de lin-
materiais e imateriais. guagens, técnicas e ideias para possibilitar
Ter um museu dedicado ao folclore, a difusão cultural e a formação de público.
entre as instituições mantidas pela FCCR, São oficinas, espetáculos, exposições,
é de extrema importância para valorizar a festivais, e outros tipos de eventos e ativi-
cultura popular e divulgar toda essa rique- dades, realizadas em dez casas de cultura,
za de tradições, seus saberes e fazeres, seja três teatros, dois auditórios, três bibliotecas
através do artesanato, da culinária ou das e também em parques, praças e escolas.
manifestações artísticas, como as congadas, Todas essas ações resultam em uma
as folias de reis, o Moçambique e o jongo. ampla política cultural para o município,
A preservação patrimonial é um dos sempre pautada pela participação da comu-
objetivos da Fundação que mantém um nidade e planejamento, norteando ações de
setor para cuidar desses bens culturais. longo prazo cujo objetivo é contribuir para o
São José dos Campos tem 36 patrimô- desenvolvimento de São José dos Campos.
C entro de E studos da C ultura P opular – CECP

O
Centro de Estudos da Cultura Com aproximadamente 700 mil ha-
Popular é uma organização não bitantes, São José dos Campos destaca-se
governamental, criada em 1998, por ser um pólo industrial, com tecnolo-
por integrantes da extinta Comissão gia de ponta, abrigando importantes cen-
Municipal de Folclore da Fundação tros de pesquisa e universidades. Por conta
Cultural Cassiano Ricardo. Seu objetivo dessa característica, a cidade atrai muito
é criar ferramentas que possibilitem o for- migrantes, que chegam em busca de me-
talecimento da identidade cultural, valo- lhores oportunidades e acabam se incor-
rizando as práticas culturais populares da porando ao leque cultural constituído. A
região. riqueza dessa diversidade contrapõe-se ao
A Região Metropolitana do Vale do sentimento de exclusão resultante da fal-
Paraíba e Litoral Norte, localizada na ta de sentidos de pertencimento. São essas
Mesorregião do Vale do Paraíba Paulista, referências identitárias que estão no centro
cortada e banhada pelas águas da Bacia do das ações desenvolvidas pelo CECP.
Rio Paraíba do Sul, constitui-se no eixo Em parceria com a Fundação Cultural
de ligação das duas principais metrópoles Cassiano Ricardo, o CECP, desenvolve
brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro. São suas ações no Museu do Folclore de São
trinta e nove municípios que compõe a José dos Campos, buscando criar pontes
Região Metropolitana, entre eles São José entre as várias culturas existentes no con-
dos Campos. texto sociocultural valeparaibano.

105
A gradecimentos R elação das edições anteriores

O Museu do Folclore, da Fundação Fundação Cultural Cassiano Ricardo


Cultural Cassiano Ricardo (FCCR), Coleção Cadernos de Folclore
e o Centro de Estudos da Cultura
A Coleção Cadernos de Folclore tem o propósito
Popular (CECP), agradecem aos
de informar e divulgar a cultura popular, para me-
demais ‘fazedores’ que, ao longo de
lhor compreensão e valorização do homem na sua
15 anos, têm participado do Projeto
realidade social. Reúne importantes contribuições,
Museu Vivo. Neste período, mais de
seja na forma de pesquisas científicas ou relatos de
uma centena deles já enriqueceram
experiências, constituindo-se fonte de consulta e es-
e continuam enriquecendo, com sua
tímulo à reflexão e à pesquisa, oferecendo subsídios
sabedoria, as tardes de domingo do
para futuros investigadores do saber popular.
Museu do Folclore.
Volumes anteriores:
Azeite de Mamona – Toninho Macedo e Angela
Savastano
1º volume – 1986 – Comissão Municipal de Folclore
Carro de Boi – Zuleika de Paula
2º volume – 1988 – Comissão Municipal de Folclore
Laraoiê, Exu – Hélio Moreira da Silva

o 3º volume – 1988 – Comissão Municipal de Folclore


Fumos e Fumeiros do Brasil – Marcel Jules Thieblot
4º volume – 1989 – Comissão Municipal de Folclore
Jogos, Brinquedos e Brincadeiras – J. Gerardo M.
Guimarães
5º volume – 1990 – Comissão Municipal de Folclore
Maria Peregrina – Benedito José Batista de Melo
6º volume – 1992 – Comissão Municipal de Folclore
Saci – José Carlos Rossato
7º volume – 1994 – Comissão Municipal de Folclore

106
Cobras e Crendices – Maria do Rosário de Santo de Casa Faz Milagre: A Devoção a
Souza Tavares de Lima Santa Perna – Cáscia Frade
8º volume – 1995 – Comissão Municipal de 16º volume – 2006 – Centro de Estudos da
Folclore Cultura Popular – CECP
Chico Triste I – Coletânea de Textos de Educação e Folclore – Histórias Familiares
Francisco Pereira da Silva dando Suporte ao Conteúdo – Leila
9º volume – 1997 – Comissão Municipal de Gasperazzo Ignatius Grassi
Folclore 17º volume – 2006 - Centro de Estudos da
Cultura Popular – CECP
Chico Triste II – Coletânea de Textos de
Francisco Pereira da Silva O Milho e a Mandioca – Nas Cozinhas
10º volume – 1998 – Comissão Municipal de Brasileiras, Segundo contam suas Histórias
Folclore – Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo
18º volume – 2008 – Centro de Estudos da
Ciclo de Natal – Coletânea de Textos de
Cultura Popular – CECP
Maria Graziela B. dos Santos
11º volume – 1999 – Centro de Estudos da O saber, o cantar e o viver do povo – Carlos
Cultura Popular – CECP Rodrigues Brandão
19º volume – 2009 – Centro de Estudos da
Curiosidades Folclóricas sobre o inseto –
Cultura Popular – CECP
Hitoshi Nomura
12º volume – 2001 – Centro de Estudos da Objetos: percursos e escritas culturais –
Cultura Popular – CECP Ricardo Gomes Lima
20º volume – 2010 – Centro de Estudos da
Histórias de Onça – Ruth Guimarães
Cultura Popular – CECP
13º volume – 2002 – Centro de Estudos da
Cultura Popular – CECP Folia de Reis, Sambas do Povo – Alberto T.
Ikeda
De Já Hoje – Darcy Breves de Almeida
21º volume – 2011 – Centro de Estudos da
14º volume – 2003 – Centro de Estudos da
Cultura Popular – CECP
Cultura Popular – CECP
O Saber e o Fazer no Museu do Folclore –
Pedra-de-raio – Uma superstição Universal –
Fábio Martins Bueno
J.Gerardo M. Guimarães
22º volume – 2012 – Centro de Estudos da
15º volume – 2004 – Centro de Estudos da
Cultura Popular – CECP
Cultura Popular – CECP

107
Este livro foi composto com a
família tipográfica Adobe Caslon, corpo 11,5 / 15
e impresso em Couché Fosco 150g/m.
Tiragem de 1500 exemplares.
São José dos Campos, dezembro de 2013.
O saber e o fazer no Museu do Folclore II
Possuía três informações iniciais,
AS CORTINAS ENTÃO SE ABRIRAM
fornecidas pelo professor Rossini: Eugênia
e Mudinha (ceramistas) e Benedito
Corria o ano de 1972. Então residente em
(jongueiro), todos residentes no Jardim
São José dos Campos, pude frequentar o
Paulista. Em inúmeras peregrinações pelos
curso nomeado “Folclore Brasileiro”,
bairros, enfrentando olhares desconfiados
oferecido pelo Museu de Artes e Tradições
(qual a razão dessa carioca querer saber
Populares, sediado Sem São Paulo e
dessas coisas?) e muitas frustrações. Já
presidido por Rossini Tavares de Lima. Para
desanimando, alcancei por fim, o fio da
a confecção da monografia de conclusão dos
meada, na venda do Nico Miranda, em
estudos e interessada em melhor conhecer a
Santana. Nico era um violeiro e sua casa de
cidade que me acolheu, decidi realizar uma
negócios, situada nos limites urbanos do
pesquisa sobre tradições vigentes nesse
bairro, nos finais de semana reunia gente
O SABER E O FAZER município. A questão mais significativa foi a
do campo e da cidade para conversas,

M USEU DO F OLCLORE II
NO
realização aferição da veracidade de um dogma, que
causos, cantoria, roda de viola. Uma festa.
ainda hoje costuma permear pensamentos e
As cortinas então se abriram, consegui
discussões sobre o conhecimento popular,
concluir meu trabalho.
qual seja, o saber tradicional é fruto do
subdesenvolvimento, sendo portanto seu
Passados todos esses anos percebo que
mais letal inimigo as conquistas científicas e
minha tarefa hoje não seria árdua e minha
o consequente progresso.
indagação original encontraria resposta
inteligente e criativa no Museu Vivo de
Para minha tarefa, São José foi campo ideal,
São José dos Campos. As variadas formas
com seu perfil de cidade com altíssimo índice
artísticas que expõe, valoriza e promove
de industrialização, tecnologia de ponta em
estão a nos revelar que a cultura popular
pesquisas espaciais, unidade da aeronáutica,
possui intensa dinâmica, que incorpora os
etc, que, por sua vez, contavam com técnicos
diferentes momentos históricos,
de diversas nacionalidades e atraiam
ressignifica os distintos saberes, recria
incontável número de migrantes de várias
novos conhecimentos, conferindo assim
regiões do país. Mas, se o espaço era
contemporaneidade às milenares tradições.
sociologicamente propício a busca do objetivo
Cáscia Frade proposto, para uma migrante, a identificação
Professora Adjunta da Universidade dos agentes ou portadores, foi tarefa árdua.
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Você também pode gostar