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RISCOS E RABISCOS – O DESENHO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

RISCOS E RABISCOS – O DESENHO NA


EDUCAÇÃO INFANTIL
Risks & scratches - drawing in early childhood education

HANAUER, F.

Recebimento: 04/10/2013 - Aceite: 06/12/2013

RESUMO: Este estudo direciona o olhar ao desenho como a primeira forma de


expressão gráfica infantil, que se constitui uma linguagem universal, presente
em todas as culturas desde os tempos antigos. Os traços deixados nas mais
variadas superfícies são marcas impulsionadas pelo prazer, onde a criança
registra seus pensamentos e sentimentos. A produção criadora, o desenho
como arte, envolve o pensamento, a criatividade, a imaginação e os sonhos.
Através do desenho, a criança representa objetos significativos, sejam eles
reais ou imaginados, processando experiências vividas e pensadas. O desenho
infantil passa por etapas, acompanhando o desenvolvimento da criança, assim,
a evolução gráfica relaciona-se à maturação da percepção motora e cerebral,
além de envolver mecanismos biológicos e sensoriais.
Palavras-chave: Desenho infantil. Linguagem. Produção criadora. Desen-
volvimento.

ABSTRACT: This study directs our gaze towards the drawing, which is a
universal language present in all cultures since ancient times, as the first form
of the graphic expression of the child. The traces left on various surfaces are
marks driven by pleasure, where children record their thoughts and feelings.
The creative production, drawing as art, involves thinking, creativity, imagi-
nation and dreams. Through drawing children represent significant objects,
real or imaginary, processing experiences and thoughts. Childlike drawing
goes through stages as the child develops. The graphic evolution is related
to the maturation of motor and brain perception besides involving biological
and sensory mechanisms.
Keywords: Children’s drawing. Language. Creative production. Development.

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Fernanda Hanauer

O homem sempre desenhou. Sempre


deixou registros gráficos, índices de sua
existência, comunicados íntimos destina-
Considerações iniciais dos à posteridade. O desenho, linguagem
tão antiga e tão permanente, sempre esteve
O mundo infantil é marcado essencial- presente, desde que o homem inventou o
mente pela magia, magia que remete ao dese- homem. Atravessou as fronteiras espa-
nhar, caracterizada como uma prática natural ciais e temporais, e, por ser tão simples,
e indispensável à vida, presente em todas as teimosamente acompanha nossa aventura
culturas desde os tempos remotos. Por isso, na Terra (DERDYK, 1990, p. 10).
busca-se investigar o desenho na Educação
Infantil, destacando-o como uma linguagem Dessa forma, pode-se pensar o desenho
gráfica importante no desenvolvimento da como linguagem universal, que possui con-
criança, bem como um meio de representação venções pertencentes à sociedade e à cultura
expressiva, criadora e imaginária. e perpetua diferentes gerações, cada qual com
Salienta-se que as manifestações artísticas suas singularidades, dotada de historicidade.
por meio do desenho, iniciadas nos primeiros Junqueira Filho (2005) afirma que o dese-
anos de vida, fazem parte de um processo nho é uma linguagem com estrutura e regras
de representação, onde a criança comunica próprias de funcionamento, que dá signifi-
e expressa seus pensamentos e sentimentos cado a toda e qualquer realização humana
do mundo que a rodeia. O desenho também onde o desenho enquadra-se num sistema de
envolve aspectos cognitivos e emotivos, na representação, como uma produção de senti-
medida em que os traços dão forma ao pensa- do. Desenhando, a criança imprime registros,
mento que leva ao conhecimento e evoluem portanto, expressa e comunica.
conforme a criança se desenvolve. A criança aprende ainda sobre sua pró-
Direciona-se este estudo a três eixos te- pria humanidade, na medida em que, ao
máticos. No primeiro aborda-se a linguagem desenhar, a criança está realizando – rea-
do desenho como importante registro gráfico, firmando e atualizando – algo ancestral de
forma de comunicação e expressão. Em se- sua humanidade: a capacidade e a neces-
guida, retrata-se o desenho como produção sidade dos seres humanos de se deixarem
criadora, onde a criança manifesta sua arte em marcas. Foram os seres humanos que
de forma natural, espontânea, imaginativa e inventaram o desenho e, ao fazê-lo, pude-
simbólica. Por fim, apresenta-se a evolução ram dizer algo de si por meio de imagens,
do desenho no desenvolvimento infantil, que puderam se ver representados grafica-
ocorre por meio da integração dos sentidos, mente em aspectos de sua humanidade;
do corpo, da mente e da expressão motora. deixaram-se em marcas que contribuíram
para a produção de sua humanidade, de
sua história; que contribuíram para a
A linguagem do desenho demarcação, comunicação e significação
de sua passagem pela vida, pelo planeta
Terra, pelo mundo (JUNQUEIRA FILHO,
O desenho, como linguagem, é uma for-
2005, p. 54).
ma de comunicação construída ao longo dos
anos. O homem primitivo deixou sua marca Os traços deixados nas mais variadas
nas cavernas, representou imagens, criou superfícies são registros, e como tais, ex-
símbolos e registrou a sua história. É fato que pressam sentimentos e pensamentos. Para

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Moreira (1984) o desenho da criança é a de “idade de ouro”, em que o desenho da


primeira forma de expressão gráfica, inicia- criança pequena é impulsionado pelo prazer.
da antes mesmo de ela dominar a leitura e a Os primeiros desenhos são feitos pelo
escrita, e para ela é uma linguagem, como o prazer de riscar para produzir algo no pa-
gesto e a fala. pel. Pode-se confirmar tal ideia através do
O desenho, também, pode ser conside- seguinte trecho:
rado um signo, que deixa pistas através da A criança rabisca pelo prazer de rabiscar,
linguagem gráfica. O signo é representado de gesticular, de se aprimorar. O grafismo
por meio do traço e da forma. “O signo grá- que daí surge é essencialmente motor,
fico é resultante de uma ação carregada de orgânico, biológico, rítmico. Quando o
uma intencionalidade, ainda não totalmente lápis escorrega pelo papel, as linhas sur-
expressa. O olho, expectador dessa conversa gem. Quando a mão para, as linhas não
entre a mão, o gesto e o instrumento, percebe acontecem. Aparecem, desaparecem. A
formas” (DERDYK, 1990, p. 101). permanência da linha no papel se investe
de magia e esta estimula sensorialmen-
De acordo com as ideias apontadas no
te a vontade de prolongar este prazer
Referencial Curricular Nacional para a Edu-
­(DERDYK, 2004, p.56).
cação Infantil (BRASIL, 1998), o desenho,
como forma de linguagem, indica signos Assim como Derdyk (2004), que afirma
históricos e sociais, que possibilita ao homem que a criança desenha para se divertir, Mo-
significar o seu mundo. reira (1984) aponta que ela desenha para
Sendo assim, destaca-se a Educação In- brincar. Pode-se, assim, assegurar que o
fantil, primeira etapa da Educação Básica, desenho seja um veículo de expressão, tanto
como um espaço para o viver da infância, do brincar quanto da diversão, afinal, ambos
promotora da apropriação das diferentes lin- complementam-se. Outrossim, dificilmente
guagens e manifestações expressivas, dentre vê-se uma criança ficar triste ao estar de-
estas, o desenho, riscos e rabiscos dotados de senhando, pois o desenho representa uma
significações. Ao desenhar, a criança brinca dimensão humana que alimenta sonhos,
e verbaliza seus pensamentos e sentimentos, estimula pensamentos e encanta.
deixando marcas no papel. Aos poucos ela O desenho, como linguagem, também se
percebe o lápis em sua mão como um objeto constitui um instrumento do conhecimento e
mágico e atua sobre o espaço do papel, impri- leva a criança a percorrer novos caminhos e
mindo traços. Quando pega pela primeira vez apropriar-se do mundo. A criança que dese-
esse objeto mágico, a criança o experimenta nha estabelece relações do seu mundo interior
como um brinquedo. com o exterior, adquirindo e reformulando
Na primeira etapa escolar, toda criança conceitos, aprimorando suas capacidades,
desenha e deixa marcas por prazer. Sempre envolvendo-se afetivamente e operando men-
encontra um jeito e um local para registrar. O talmente. Assim, ela externaliza sentimentos
chão, a parede e os móveis são, muitas vezes, e expressa pensamentos.
destinos escolhidos pela criança pequena. Read (2001) afirma que o desenho é um
Pedrinhas ou pauzinhos na areia do parque modo de expressão da criança e pode ser
também são utilizados para firmar traços. De considerado um processo mental. É, além
acordo com Derdyk (2004) o desenho expres- disso, através do desenho que a criança ima-
sa a vivência e torna-se uma brincadeira que gina e inventa, despertando a curiosidade e
gera prazer. Greig (2004) nomeia esta etapa o conhecimento.

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O desenho pode ser classificado como constitui conhecimento, envolve o pensamen-


um fenômeno cultural, fonte de linguagem, to, o sentimento e a formação intelectual. Por
pois está presente em todos os povos, desde isso, o desenho direciona-se à arte.
o início da civilização, constituindo uma re- Pode-se definir o desenho como um pro-
presentação da vida. A prática do desenho é cesso pelo qual uma superfície é marcada,
parte da vida e a criança que desenha vivencia aplicando-se sobre ela a pressão de um ob-
descobertas, extrapola ideias e pensamentos, jeto – lápis, caneta, giz – que se transforma
é feliz. numa imagem formada por traços. O mundo
dos traços e das cores marca presença junto
à infância, com encantamento, motivando
Produção criadora o desejo da descoberta, pois é carregado de
significados, refletindo o retrato da criança.
O desenho acompanha o homem desde os
O desenho infantil estabelece uma relação
tempos antigos (FARIA, 2009), sendo que no
entre a criança e sua expressividade, que
período Pré-Histórico, é retratado pelas pin-
possui seu próprio estilo de representação
turas nas cavernas; na antiguidade, o desenho
gráfica, bem como sua própria maneira de
ganha status sagrado, utilizado na decoração
expressão. Pode-se perceber esta opinião na
de tumbas e templos, principalmente no Egi-
escrita de Ferraz e Fusari (1993, p. 55):
to; os Mesopotâmicos, por sua vez, utilizaram
o desenho para criar, mesmo que de forma A criança se exprime naturalmente, tanto
primitiva, representações da terra e de rotas, do ponto de vista verbal, como plástico
sendo que a cartografia ganhou força com a ou corporal, e sempre motivada pelo
expansão do Império Romano. A invenção desejo da descoberta e por suas fanta-
do papel, pelos chineses, há mais de três mil sias. Ao acompanhar o desenvolvimento
anos, marcou um acontecimento importante expressivo da criança percebe-se que ele
para todas as formas de desenho, pois até resulta das elaborações das sensações,
então eram usados diferentes materiais para sentimentos e percepções vivenciadas in-
as representações, como barro, argila, couro, tensamente. Por isso, quando ela desenha,
pinta, dança e canta, o faz com vivacidade
tecidos, folhas, pedras, etc.
e muita emoção.
Passado algum tempo o desenho prestou-
se a uma exploração psicanalítica, com Para a criança, a produção gráfica é um
acompanhamento do terapeuta através de dos meios mais significativos de comunica-
procedimento interpretativo. O ato de de- ção. De acordo com Read (2001), o desenho
senhar, como afirma Greig (2004), estava é uma atividade espontânea, é expressão e
ligado ao processo de cura – “terapia pela comunicação. O que não é dito verbalmente
expressão”. Aos poucos abrangeu, também, o aparece nas situações concretas indicadas
campo educativo, onde se ressalta o trabalho nos traços.
de Freinet (apud Greig, 2004) que criou o Sendo assim, o desenho infantil retrata a
método natural – a livre expressão, abrindo expressão natural e espontânea da criança.
um vasto caminho para a expressão plástica. Para Montessori (apud READ, 2001, p. 128)
Linguagem da arte, o desenho pode ser existem três condições para que uma criança
considerado uma produção criadora, que se expresse pelo desenho “[...] um olhar que
envolve uma gama de sentimentos e pensa- veja, uma mão que obedeça e uma alma que
mentos, reunindo elementos da experiência sinta”. A partir disso, afirma-se que o dese-
para formar novos saberes. Assim, a arte nho é produzido através do sentir, do pensar

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e do agir – o olho segue a mão, que, por sua e da combinação de elementos da realidade.
vez, retrata o que o coração sente. Nesse sentido, desenhar é representar grafi-
O ato de criar envolve o pensamento e camente algo real ou abstrato, onde permeia
a criatividade, intensificando a inteligência o imaginário:
artística. Através da ação criadora, a criança A criança em atividade fabuladora ou
busca o saber, pois desenhar é embarcar expressiva participa ativamente do pro-
numa fantástica aventura para conhecer a si cesso de criação. Durante a construção
própria, ao outro e ao mundo que as rodeia. ela se coloca uma sucessão de imagens,
Para Lowenfeld (1977), a arte do desenho signos, fantasias [...] importantes para
possui papel fundamental na vida da criança, o conhecimento da produção da criança
visando formar um novo significado para e evidenciam o desenvolvimento e ex-
tudo que ela vê, sente e observa, pois cons- pressão de seu eu e de seu mundo. Para a
titui um complexo em que a criança reúne criança, essa linguagem ou comunicação
diversos elementos de sua experiência para que ela exercita com parceiros visíveis ou
formar um novo e significativo todo. invisíveis, reais ou fantasiosos, acontece
O desenho comunica e atribui sentido às junto com o seu desenvolvimento afeti-
sensações, sentimentos, pensamentos e rea- vo, perceptivo e intelectual e resulta do
lidade, por meio de linhas, formas, traçados exercício de conhecimento da realidade
e cores. Retrata a realidade e o imaginário, (FERRAZ; FUSARI, 1993, p.56).
onde a criança expressa os seus sentimentos
Com caráter livre e espontâneo, o desenho
e sua compreensão de mundo. Cada traço diz,
permite que a criança, desde a mais tenra ida-
muitas vezes, mais do que palavras.
de, conquiste sua relação com o mundo real e
Quando a criança desenha, ela representa imaginário, criando e recriando significações.
situações e personagens do mundo adulto, Para Derdyk (2004) o desenho constitui-se
manifestando-se simbolicamente. No dese- uma atividade do imaginário e, por ser uma
nho é possível perceber indicativos gráficos linguagem expressiva, a criança passa por um
do mundo real que é construído e apropriado processo vivencial e existencial, expressando
pela observação e imitação do cotidiano e, suas alegrias, medos, emoções e frustrações.
também, do imaginário, construído a partir
O fazer artístico da criança por meio do
da absorção da realidade.
desenho sofre influência da cultura através
Sendo assim, o desenho pode representar de imagens em livros, revistas, propagandas,
situações e realidades diversas para tudo o televisão e, também, por trabalhos de outras
que é visto, lembrado, imaginado ou, ainda, crianças e adultos. Conforme o Referencial
surgir de um movimento livre da mão sobre Curricular Nacional para a Educação Infantil
a superfície. (BRASIL, 1998), os trabalhos de arte das
A criança, através da capacidade simbóli- crianças revelam o local e a época histórica
ca, potencializa sua capacidade de criar. A sua em que vivem, suas oportunidades de apren-
imaginação desenha objetos significativos, dizagem, suas ideias e sentimentos.
sejam eles reais ou frutos da sua fantasia, O estilo dos desenhos infantis mostra
e expressa as emoções e sentimentos que a originalidade, mesmo com características
criança presencia. globais e universais presentes em várias
Ferraz e Fusari (1993) entendem que a culturas. Este estilo vai avançando confor-
atividade imaginária é uma atividade cria- me a criança cresce, com a maturidade dos
dora, resultante das experiências vivenciadas aparelhos perceptivos e motores.

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anos, marcando uma maior simbolização


nos desenhos, onde a criança projeta suas
A evolução do desenho no
produções com maior consciência, esboçando
desenvolvimento infantil
objetos e seres como são vistos. No entanto,
é o período em que perde o poder inventivo
Existem teorias e diferentes interpreta-
ções a respeito da produção gráfica infantil. e há o desinteresse pelo desenho.
Alguns estudiosos apontam fases para o de- Na concepção de Luquet (1969), as etapas
senvolvimento do desenho infantil, de acordo gráficas são: “Realismo Fortuito”, “Realismo
com uma evolução etária. Entre os mais Falhado”, “Realismo Intelectual” e “Realis-
conhecidos estão Lowenfeld (1977), Luquet mo Visual”.
(1969) e Piaget (apud MOREIRA, 1984). A primeira fase, “Realismo Fortuito”,
Lowenfeld (1977), referindo-se às fases é aquela onde a criança faz traços sem um
do desenvolvimento infantil, classifica-as em objetivo específico e descobre por acaso uma
quatro estágios, são eles: Estágio das Gara- semelhança entre o objeto e o seu desenho,
tujas, Estágio Pré-Esquemático, Estágio Es- dando então um nome para ele. Nesta fase, ao
quemático e Estágio do Realismo. O primeiro se questionar uma criança de dois anos sobre
estágio compreende aproximadamente dos o seu desenho, ela pode dizer que desenhou
dois aos quatro anos de idade, onde a criança uma casa, em seguida passa a ser uma bola,
faz rabiscos ao acaso – as linhas desenhadas ou qualquer outra coisa que lhe ocorrer no
vão sobrepondo-se umas às outras, formando momento. O gesto motor que traça as linhas
camadas de rabiscos. A criança brinca de é caracterizado mais do que o significado do
desenhar e aos poucos vai percebendo o seu elemento gráfico. A partir daí, acontecerão
desenho e evoluindo gradativamente para várias transições até atingir um nível maior
formas mais controladas. As “garatujas”, na representação. Esta ideia é esclarecida
termo empregado pelo autor, referem-se aos nas palavras de Luquet (1969, p. 145): “A
rabiscos produzidos pelas crianças na fase princípio, para a criança, o desenho não é um
inicial de seus grafismos. traçado executado para fazer uma imagem,
O Estágio Pré-Esquemático tem início mas um traçado executado simplesmente para
por volta dos quatro anos e estende-se até fazer linhas”.
os sete anos, aproximadamente. Tem como A segunda fase é o “Realismo Falha-
característica a representação do real, com do”, onde a criança descobre a identidade
formas e figuras mais ordenadas, mas ainda da forma, o objeto passa a ser reproduzido
com variações nos tamanhos. Os desenhos e a criança vai modificando seu desenho,
também são constituídos por poucos traços, tornando-o mais parecido com o real. No
bem resumidos. entanto, as dificuldades gráfico-motoras e
No Estágio Esquemático (dos sete aos as dificuldades psíquicas são fatores que in-
nove anos) a criança desenvolve o conceito terferem no desenho, evidenciando imagens
da forma e os desenhos, agora descritivos desproporcionais.
e com detalhes reais, simbolizam o que Em seguida, aparece a fase do “Realismo
pertence ao seu mundo. Essa fase também Intelectual”, que se caracteriza pelo fato do
é conhecida como simbólica por representar desenho conter elementos semelhantes ao
traços com símbolos. objeto. A criança desenha não o que vê, mas
Por último, o autor aponta o Estágio do o que sabe dele, num conjunto coerente da
Realismo, que acontece dos nove aos doze figura. Para representar partes ocultas do de-

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senho, surgem as transparências e, nas figuras mão, começa a guiá-la e o faz de conta está
humanas, surgem pessoas de perfil, havendo presente.
uma coordenação entre a forma, o espaço e a Com a interação do meio, a criança perce-
cor que estrutura o desenho. be que pode fazer novos movimentos, o que
Por último, no “Realismo Visual” a crian- propiciará um controle maior sobre a mão.
ça representa apenas os elementos visíveis do Então, passarão a surgir movimentos espirais
objeto e critica os seus desenhos. Aparecem e círculos fechados, evidenciando a descober-
claramente as influências sociais, históricas ta da forma. Estas garatujas, na sequencia,
e culturais, bem como elementos do seu começam a ganhar nomes e detalhes e os
cotidiano. Há detalhes que particularizam as desenhos aproximam-se das formas reais.
figuras e a cor empregada tem papel realista Por último, a etapa “regra” caracteriza
e decorativo. a criança a partir dos seis anos e represen-
A ação de desenhar é uma das condutas ta relações sociais assumidas no meio em
da função simbólica descrita por Piaget (apud compromisso com o real, onde os desenhos
MOREIRA, 1984) ao lado do jogo, da imita- perdem o caráter mágico-mutante do sim-
ção, da imagem mental e da evocação verbal. bolismo e assumem regras e convenções
A autora compara as etapas do desenho com definidas, ganhando maior estruturação e
as etapas apontadas por Piaget – o exercício, expressividade. Nesta fase, as representações
o símbolo e a regra em “A formação do Sím- gráficas são fiéis ao aspecto observável dos
bolo na criança”. objetos representados, que são mais lógicos
Dessa forma, a primeira etapa – “do exer- do que visuais e há interesse pelos detalhes
cício” – compreende a fase do nascimento até decorativos.
o aparecimento da linguagem oral, ou seja, Pode-se perceber que a evolução do de-
constitui-se no período pré-verbal, onde a senho ultrapassa patamares ao mesmo tempo
criança apreende o meio que a cerca através em que a criança se desenvolve. Este avanço
dos sentidos e da ação sobre o objeto; os mo- gráfico está estreitamente ligado à maturação
vimentos são desordenados e incontrolados. da percepção motora e, também, a maturação
A criança, ao pegar pela primeira vez o cerebral, em que a criança modifica a percep-
lápis, experimenta-o como um brinquedo, ção do mundo ao seu redor com as imagens
exercendo uma ação lúdica. O desenho lhe mentais que constrói.
dá prazer e é o gesto que produz a marca. Ao De um rabisco sem objetivo, com movi-
dar lápis e papel para a criança, ela desco- mentos puramente musculares, ao alcance
brirá que é capaz de deixar naquele pedaço de um desenho estruturado, acompanham-se
de papel uma marca, e se surpreenderá com mudanças significativas no desenvolvimento
o fato de que, ao repetir o movimento, mais da criança, que envolvem mecanismos bioló-
uma marca surgirá. É um jogo de exercício gicos, sensoriais, cerebrais e motores.
que repetirá por muitas e muitas vezes. Sabe-se que o desenvolvimento ocorre em
A segunda etapa – “do simbolismo” – processo gradual. As crianças vão evoluindo
caracteriza a fase a partir do aparecimento e com elas, ao mesmo tempo, os seus dese-
da linguagem até os seis anos, aproximada- nhos. Por isso, o desenho não pode ser com-
mente. A criança interessa-se pelas realidades preendido como simples ato mecânico; cada
simbolizadas, desenha não só o que vê, mas gesto e movimento têm funções simbólicas
o que imagina e o símbolo é sua maneira capazes de contribuir para o desenvolvimento
de representar. O olho, que antes seguia a humano. Com relação a isso ressalta-se:

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A criança, a grande autora dos eventos intelectual, físico e social. No aspecto emo-
mantém uma relação de prazer que im- cional há o retrato dos sentimentos de alegria,
pulsiona e estimula este seu fazer. O corpo tristeza, raiva, segurança... No desenvolvi-
inteiro da criança desenha concentrado na mento intelectual o aprendizado ocorre pela
pontinha do lápis, que lhe abre a possi- ação de desenhar e desperta a criatividade.
bilidade da experiência da conquista das No que se refere ao desenvolvimento físico,
formas. O desenho estabelece um elo de pode-se afirmar que a imagem que a criança
participação entre a criança e o mundo, tem do seu corpo é refletida em seus dese-
evocando e despertando formas, imagens, nhos; as habilidades nos traços demonstram
significados, através de seus recursos ma- coordenação motora e visual. Da mesma for-
teriais (DERDYK, 1990, p. 106). ma, no desenvolvimento social, os desenhos
É através da representação gráfica que a refletem as relações da criança com o meio
criança registra o seu mundo, aquilo que é onde representa situações vividas.
real e seu universo simbólico vivido diaria- Portanto, o desenho infantil tem uma im-
mente. Acredita-se, inclusive, que é por meio portância vital no desenvolvimento global da
do desenho que ela organiza informações, criança, enquanto ser social e historicamente
processando-as em conhecimentos a partir constituído, que usa deste instrumento para
do que é sentido e pensado. expressar sua vida.
Os rabiscos, conforme Derdyk (1990),
não são apenas atividades sensório-motoras.
Considerações finais
Os traços confusos no papel podem conter
evidências do estado de desenvolvimento A partir dos estudos realizados acerca do
da criança, como também estarem ali pelo desenho, reconhece-se a importância dessa
simples prazer da ação. manifestação gráfica, altamente criativa,
A criança rabisca e rabisca, e num piscar que faz parte do universo infantil. O ato de
de olhos descobre uma “gente”, uma semente. desenhar é visto como a atividade artística
Qualquer forma redonda, quadrada, vazia, preferida pelas crianças, cuja produção é rica
retangular, pequena, comprida, agrupada, em detalhes que expressam e comunicam.
qualquer configuração preenche um horizon- O desenho é uma linguagem gráfica em
te de significados (DERDYK, 1990, p. 100). que a criança deixa registrada a sua história,
Os primeiros desenhos parecem surgir onde cada traço, risco e rabisco revelam um
de forma espontânea e evoluem junto ao pouquinho da sua identidade, do sentir e do
processo de desenvolvimento da criança. Os pensar desse ser pequeno, mas histórico.
rabiscos iniciais apontam para a extensão do Como é carregado de significados, o desenho
gesto que deixa marcas, mas nem sempre registra as alegrias, medos, sonhos e leva o
possuem a intenção de transmitir alguma adulto a conhecer um pouquinho da criança,
mensagem. Ocorre, então, o aprimoramento de como ela pensa e de como age no e sob o
das capacidades sensoriais e motoras e o meio que a rodeia.
prazer de registrar. Com o tempo essas mar- Ao desenhar, a criança desenvolve seus
cas passam a ter uma intenção e a criança processos criativos, ampliando suas potencia-
comunica-se por meio delas. lidades de expressão. Ao mesmo tempo em
Dessa forma, observa-se que a produção que o desenvolvimento gráfico infantil é inato
artística da criança concebe elementos indi- da inteligência humana, também corresponde
cativos de seu desenvolvimento emocional, às condições socioculturais da criança e aos

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estímulos recebidos ao longo de sua vida. socialmente e operando mentalmente, rumo


Para ter uma criança bem desenvolvida é a um desenvolvimento sadio do intelecto e
preciso dar oportunidades para que ela crie e das emoções.
desenvolva seu estilo de representação. A criança da Educação Infantil está no
Além de ser uma forma de expressão, o auge do seu desenvolvimento pelo desenho,
desenho é uma atividade altamente criativa. pois se encontra na idade em que experimenta
Quanto mais estimulada a sua prática, maior pela primeira vez essa atividade mágica, que
é a capacidade de criação, pois só se aprende vai evoluindo com o passar do tempo, con-
a desenhar, desenhando. comitante ao seu desenvolvimento.
O desenho está estreitamente relacionado A prática do desenhar é parte da vida.
com o desenvolvimento global da criança; É uma ação indispensável ao bem estar da
conforme ela vai evoluindo, vai modificando criança. Destaca-se que a infância é a época
a sua maneira de se expressar graficamente. das descobertas e das aventuras, portanto
Desenhando ela estabelece relações do seu cabe a nós educadores oferecermos condições
mundo interior e exterior, adquire e reformula que estimulem o gosto pela arte de registrar o
seus conceitos e aprimora suas capacidades, mundo num pedacinho de papel, permitindo
envolvendo-se afetivamente, convivendo às crianças inventar, criar e sonhar.

AUTOR

Fernanda Hanauer - Professora na rede municipal de Erechim - Pedagoga pela Universidade


Regional do Alto Uruguai e das Missões URI Erechim; Especialista em Educação Interdis-
ciplinar pelo Instituto de Desenvolvimento Educacional do Alto Uruguai – IDEAU - E-mail:
fernandahanauer@gmail.com

REFERÊNCIAS

BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de educação Fundamental. Referencial


curricular nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998.
DERDYK, E. O desenho da figura humana. São Paulo: Scipione, 1990.
______. Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil. 3. ed. São Paulo: Sci-
pione, 2004.
FARIA, C. A História do Desenho. Publicado em 24.02.2009 e acessado em 20/09/2013 . Disponível
em: http://www.infoescola.com/artes/historia-do-desenho/.
FERRAZ, M. H. de T.; FUSARI, M. F. de R. Metodologia do ensino da arte: fundamentos e propo-
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cação infantil. Porto Alegre: Mediação, 2005.

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LOWENFELD, V. A criança e sua arte. São Paulo: Mestre Jou, 1977.


LUQUET, G.H. O desenho infantil. Porto: Livraria Civilização, 1969.
MOREIRA, A. A. A. O espaço do desenho: A educação do educador. São Paulo: Edições Loyola, 1984.
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