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Se confirmado o envolvimento de Bolsonaro no caso de corrupção, o humor do
Congresso pode se virar contra ele

Escândalo na tragédia
Não bastasse a catástrofe sanitária, a CPI da Covid agora tem de investigar a denúncia
de um deputado bolsonarista que acusa o governo de corrupção na compra de vacinas
indianas. Ele diz que avisou Bolsonaro
25.06.21

ANDRÉ SPIGARIOL

Ao subir ao palco da CPI da Covid nesta sexta-feira, 25, o


deputado federal Luis Miranda, do DEM, pode marcar uma
inflexão no rumo das investigações que enredam Jair
Bolsonaro. Para além das já gravíssimas suspeitas que pesam
sobre a compra da vacina Covaxin pelo Ministério da Saúde, se
o parlamentar fornecer mais detalhes sobre as irregularidades
no contrato de 1,6 bilhão de reais assinado com o laboratório
indiano produtor da vacina e, principalmente, reconstituir os
alertas feitos a Jair Bolsonaro, será a primeira vez que o
mandatário do país estará no meio de um caso escabroso de
corrupção – e, o que é pior, operado em meio a uma tragédia
que já ceifou a vida de mais de 500 mil brasileiros.

Como O Antagonista trouxe em primeira mão na quarta-feira,


23, o deputado bolsonarista Miranda diz ter comunicado
pessoalmente ao presidente, em encontros nos dias 29 e 30
de janeiro deste ano, que a negociação estava eivada de
ilicitudes e que, portanto, ele “precisaria agir”. Em entrevista
exclusiva ao repórter Diego Amorim, o deputado disse que
levou o caso para Bolsonaro porque “confiava” nele e entendia
que combater os malfeitos era sua “bandeira”.

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Apesar das advertências, o presidente avalizou a assinatura do
contrato e, em 25 de fevereiro, o documento foi finalmente
assinado com a nebulosa Precisa Medicamentos, contratada
de maneira atípica pelo Ministério da Saúde para o
fornecimento de 20 milhões de doses da vacina Covaxin, do
laboratório indiano Bharat Biotech. Em qualquer governo sério
do mundo, caberia ao presidente da República tomar
providências para ao menos saber se a aquisição dos
imunizantes poderia ser lesiva aos cofres públicos. Ou, se
como advertiu o deputado, havia indícios de práticas pouco
republicanas na negociação. Mas Bolsonaro teria feito ouvidos
moucos para os alertas, que prosseguiram.

Em 20 de março, um sábado, Luis Miranda voltou ao


presidente. Desta vez, munido de documentos destinados a
comprovar o que ele havia dito anteriormente e acompanhado
do irmão, o servidor do Ministério da Saúde, Luis Ricardo
Fernandes Miranda. O encontro ocorreu no Palácio da
Alvorada. Detalhe: o deputado diz que, por ter ligado o alarme
na pasta da Saúde, seu irmão estava sendo perseguido. Para
esclarecer esse e outros episódios que envolveram a compra
das vacinas indianas, os dois prestarão depoimento à CPI
nesta sexta-feira, 25.

®® O
deputado Luis Miranda diz que alertou Bolsonaro ao menos
três vezes sobre irregularidades na compra das vacinas
indianas
Antes de ser recebido pelo presidente no Alvorada, o
deputado, que até esta semana integrava a base mais fiel de
Bolsonaro no Congresso, registrou por escrito qual seria o
tema da conversa, justamente para conferir ao encontro a
relevância necessária. A um assessor presidencial, mandou a
seguinte mensagem: “Avise ao PR (presidente da
República) que está rolando um esquema de corrupção
pesado na aquisição das vacinas dentro do Ministério da
Saúde. Tenho provas e as testemunhas. Sacanagem da p… a
pressão toda sobre o presidente e esses ‘FDPs’ roubando”. Em
resposta, o assessor do Planalto enviou a imagem de uma
bandeira do Brasil. Uma hora depois, Luis Miranda
reforçou: “Não esquece de avisar o presidente. Depois, não
quero ninguém dizendo que eu implodi a República. Já tem PF
e o c. no caso. Ele precisa saber e se antecipar”.
O Planalto, mais uma vez, não se moveu e o presidente
entabulou uma promessa. Afirmou a Miranda, nas palavras do
deputado, que “ele comunicaria a Polícia Federal
imediatamente”. Mas não há nenhum registro na PF de
investigação ou inquérito aberto sobre a compra da vacina
indiana Covaxin. Ou seja, o presidente, novamente, preferiu
lavar as mãos – o que, na letra fria da lei, pode significar um
grande problema para ele, já que deixar de agir mediante
indícios de crime contra a administração pública configura
crime.

Os sinais da leniência do governo com a corrupção se


tornaram evidentes desde quando, em meados de 2019, ainda
no primeiro ano de governo, Bolsonaro começou a rasgar a

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carta branca dada ao ex-juiz Sergio Moro, então ministro da
Justiça, designou um procurador-geral da República fora da
lista da lista tríplice para atuar de acordo com seus interesses
à frente do Ministério Público Federal, aliou-se a figuras
controversas do Judiciário nacional e não só interveio como
aparelhou a PF para proteger a primeira-família, em especial
seu filho 01, Flavio Bolsonaro, apanhado em um esquema de
rachid na na Assembleia do Rio. Por tudo isso, nada do que
vem à tona agora chega a surpreender. O que muda,
sobretudo do ponto de vista político, é o possível
envolvimento pessoal do presidente da República com um
caso claro e manifesto de corrupção.

Na terça-feira, 22, Miranda disse em conversa no gabinete do


relator da CPI, Renan Calheiros, na presença do senador
Marcos Rogério, integrante da tropa de choque do governo,
que teria condições, pelo que sabe e testemunhou,
de “derrubar a República”. “Não tem acordo. A verdade é a
minha missão”, reiterou dois dias depois nas redes sociais. Se
confirmados os relatos de seu aliado, o presidente da
República pode ter prevaricado – de acordo com o Código
Penal, prevaricação é o ato de “retardar ou deixar de praticar,
indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição
expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento
pessoal”.

Mateus
Bonomi/Agif/Folhapress

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Ricardo Barros apresentou a emenda que abriu caminho para
o negócio
A julgar pelos movimentos que fez ao longo da semana, o
deputado parece disposto a contar tudo o que sabe. A
interlocutores, Miranda revelou ter novas informações que
seriam explosivas. Uma delas envolve a Madison Biotech,
sediada em Cingapura e criada em fevereiro de 2020, no
mesmo endereço de outras 600 empresas. Suspeita-se que
seja uma empresa de fachada. A offshore seria utilizada pela
Precisa Medicamentos para receber um adiantamento de uma
bolada milionária do contrato com a Covaxin. Em 19 de
março, a Madison emitiu uma nota fiscal para o Ministério da
Saúde no valor de 45 milhões de dólares, que deveriam ser
pagos de forma antecipada, por um lote de 3 milhões de
vacinas. A cobrança não estava nem sequer prevista no
contrato firmado pelo governo com a Precisa. O pagamento só
não foi feito porque a burocracia da pasta estranhou e impôs
obstáculos ao pagamento.
A empresa, com capital social de mil dólares de Cingapura e
cujas ações pertencem à Biovet, uma firma indiana
responsável por produzir vacinas para gado, ainda emitiu uma
segunda fatura para pagamento antecipado no mesmo dia.
Foi esse documento que o irmão de Luis Miranda, funcionário
da Saúde, se recusou a assinar para autorizar a ordem de
pagamento – por isso, segundo o parlamentar, ele foi
perseguido internamente. O acordo com a Precisa excluía a
possibilidade de pagamento antecipado e previa a entrega do
primeiro lote com 4 milhões de vacinas no prazo de 20 dias

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após a assinatura. O papelório já está em poder da CPI. “Esse
documento sem dúvida seria uma prova fundamental, porque
o contrato com a Precisa prevê pagamento após a entrega e aí
se cria uma pressa para pagamento antecipado, totalmente
fora do contrato. É uma coisa gravíssima”, afirmou o senador
Alessandro Vieira, integrante da comissão.

O conjunto de esforços do governo para viabilizar a operação


sugere que a trama, como sublinhou Vieira, é revestida de
imensa gravidade. Quando foi alertado no fim de janeiro pela
primeira vez por Miranda, por exemplo, Bolsonaro já havia
feito dois movimentos estratégicos em favor da compra das
vacinas da Covaxin: em 6 de janeiro, o presidente editou uma
medida provisória que inviabilizou naquele momento a
compra da vacina da Pfizer, contrariando uma orientação da
própria Casa Civil. Dois dias depois, ele enviou uma carta ao
primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, dizendo que a
Covaxin estaria preferencialmente entre as vacinas escolhidas
pelo governo brasileiro para a imunizar a população. Quatro
dias depois das denúncias de Miranda ao presidente, o
deputado Ricardo Barros, ex-ministro da Saúde de Michel
Temer líder do governo Bolsonaro na Câmara, apresentou
uma emenda para flexibilizar a medida provisória sobre a
compra de vacinas, facilitando as negociações para aquisição
da Covaxin. A emenda seria aprovada em 5 de março pelo
Congresso.

Nesse meio tempo, não só o contrato seria assinado, como


passariam a ocorrer pressões de toda sorte, incluindo trocas
de e-mails e telegramas enviados pelo embaixador do Brasil
em Nova Déli ao Itamaraty, para que a aquisição fosse
efetivada, já contando com o futuro aval da Anvisa para a
importação das vacinas – a autorização viria em 6 de junho.
Luis Ricardo, o irmão do deputado, disse que as cobranças
eram atípicas: “Acontecia muita reunião, muita ligação,
inclusive na sexta-feira à noite e final de semana para

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perguntar: ‘E aí, a empresa mandou documentação?’, ‘Como é
que tá?’, ‘Cobra a empresa’”. Ele também afirmou que era
pressionado constantemente pelo coronel Alex Lial,
coordenador da área e homem de confiança do então ministro
Eduardo Pazuello.

Eduardo Matysiak/Futura
Press/Folhapress
Reação
de Onyx Lorenzoni deu a medida do desespero do governo
A Precisa, juntamente com outras empresas do grupo, é
conhecida por contratos estranhos na área de saúde. No curso
de um inquérito civil, o Ministério Público Federal identificou

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indícios de crime em um negócio fechado pelo grupo com o
Ministério da Saúde na época em que Ricardo Barros, o atual
líder do governo Bolsonaro na Câmara, era ministro. Entre as
irregularidades sob investigação, estão cláusulas benevolentes
e quebra contratual, com desrespeito aos prazos acertados.
Ricardo Barros é um dos alvos da apuração. A firma também é
investigada por vender testes de Covid a preços supostamente
superfaturados para o governo do Distrito Federal. A aquisição
da Covaxin também já havia virado objeto de investigação
antes mesmo dos relatos do deputado bolsonarista. Entre os
motivos da apuração, está o valor negociado com o ministério:
15 dólares, ou 80,7 reais, por dose. Para efeito de comparação,
a dose da vacina da Pfizer custou aos cofres públicos 56,3
reais.
Além dos fios desencapados do contrato e de a Covaxin ter
sido negociada em tempo recorde, chama a atenção a
maneira como a compra foi feita – a vacina indiana foi a
terceira a ser contratada pelo governo federal, logo depois da
fórmula da AstraZeneca e da Coronavac. Nas outras
aquisições, o Ministério da Saúde fechou diretamente com os
fabricantes.

A Precisa Medicamentos entrou oficialmente no negócio da


vacina no começo de janeiro, com a assinatura de um acordo
com a fornecedora Bharat Biotech, para ser a representante
da Covaxin no Brasil. O acerto foi anunciado no dia 12 de
janeiro. No entanto, documentos em poder da CPI revelam
que a empresa já se apresentava como mediadora do negócio
ao menos desde 20 novembro do ano passado, data da
primeira reunião do Ministério da Saúde para tratar do
assunto.

Desde 2014, a empresa, que tem capital social de 12,9 milhões


de reais declarado à Receita, é comandada por Francisco
Maximiano. Ele a controla por meio de outra firma com

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histórico de falcatruas junto ao governo, a Global Gestão em
Saúde. Foi justamente a Global que arrastou o líder do
governo na Câmara e autor da emenda que abriu caminho
para a compra das vacinas da Covaxin para o banco dos réus
em uma ação por improbidade administrativa ajuizada pelo
MP. A empresa foi contratada pelo Ministério da Saúde para
fornecer medicamentos de alto custo para o SUS ao preço de
20 milhões de reais. O governo pagou o valor contratado, mas
não recebeu os remédios.

Kevin David/A7
Press/Folhapress
O
Ministério Público viu indícios de crime na negociação da
Covaxin, ao custo de 80,7 reais por dose
Maximiano não é o único personagem enrolado em confusões
pretéritas. O próprio deputado Luis Miranda, que agora

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ameaça implodir o governo, já foi acusado de aplicar golpes no
Brasil e nos Estados Unidos, onde vivia antes de ser eleito em
2018 na onda do bolsonarismo e do discurso de renovação da
política. Miranda vendia cursos nas redes sociais em que
ensinava a “ganhar dinheiro fácil”. O parlamentar era, até
recentemente, recebido com tapete vermelho nos principais
gabinetes do governo e passeava de moto com o presidente,
além de frequentar o Palácio da Alvorada. Miranda diz que,
depois de ter levado a Bolsonaro as evidências de
irregularidades na aquisição das vacinas, o tratamento
mudou. Até promessas de repasses de recursos para projetos
apadrinhados por ele deixaram de ser cumpridas.
As reações do governo ao longo da semana evidenciam que a
cúpula do poder em Brasília está atordoada com o que o
deputado disse e ainda poderá dizer. Primeiro, Bolsonaro
resolveu se livrar do queimado ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles, que pediu demissão exatamente no mesmo dia
em que o deputado expôs publicamente a trama. Na
sequência, coube ao ministro da Secretaria-Geral da
Presidência da República, Onyx Lorenzoni, em tom
intimidatório, dizer que os documentos apresentados pelo
deputado e seu irmão eram falsos e informar que Bolsonaro,
agora sim, pediria à Polícia Federal e à Procuradoria-Geral da
República, para investigar a dupla por “denunciação
caluniosa”. “O governo Bolsonaro vai continuar, sim, sem
corrupção”, disse o ministro.

Em seu acesso de fúria, Lorenzoni deixou escapar a palavra


mágica que preocupa o governo e, sobretudo, o presidente:
corrupção. Bolsonaro está em pânico porque sabe que o
escândalo da Covaxin e suas possíveis digitais em um caso de
roubo e desvio de dinheiro público podem mudar o humor do
Congresso Nacional e até embalar um até há pouco
improvável processo de impeachment. As próximas semanas
serão de tensão elevada em Brasília – na CPI da Covid e fora
dela.
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Vacina evitou milhares de mortes, mas eficácia relativa exige providências adicionais dos
governos

O dilema da Coronavac
Procuramos saber qual é o plano das nossas autoridades para evitar que a baixa eficácia da
vacina mais aplicada nos brasileiros até agora gere uma nova onda de contágios. A resposta é
preocupante
25.06.21

DUDA TEIXEIRA

ACoronavac trouxe um ganho inestimável para o combate à


Covid no Brasil. Desenvolvida por aqui pelo Instituto Butantan,
a vacina do laboratório chinês Sinovac foi a primeira a ser
disponibilizada no país, quando outros imunizantes, pela
inércia do governo federal, ainda estavam bem longe do braço
dos brasileiros. As doses evitaram que milhares de idosos e
pessoas com comorbidades fossem internadas e morressem
intubadas nas UTIs dos hospitais.

Com a campanha de imunização em seu quinto mês e novos


estudos científicos sendo divulgados, porém, um dilema se
apresenta às autoridades: a mesma vacina que salvou
milhares de vidas não tem se mostrado capaz de reduzir a
transmissão e parece ser pouco eficiente entre idosos com
mais de 80 anos.

Demonizar a Coronavac ou defendê-la a qualquer custo não


trará nenhum benefício. Mas se torna imperiosa a
necessidade de desenhar políticas sanitárias que levem em
conta a baixa eficácia da vacina. Em vários países do mundo, o

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tema já vem sendo discutido e medidas já foram ou estão
sendo implementadas neste momento – alguns governos que
também adotaram a Coronavac já decidiram aplicar uma
terceira dose, por exemplo, como forma de reforçar a
proteção.

No Brasil, com o debate sobre a pandemia extremamente


politizado, nenhum passo foi dado. Não há sequer estudos
sendo feitos para descobrir qual é a melhor saída para evitar
que as pessoas já vacinadas, ao voltarem à rotina acreditando
estarem plenamente protegidas, acabem novamente expostas
ao vírus. A seguir, listamos algumas informações essenciais
para compreender o dilema.

O caso do Chile

O Chile é um dos países que mais avançaram na vacinação.


Cerca de 63% da população já recebeu ao menos uma dose e
51%, a segunda. De todas as doses aplicadas, 71% foram da
Coronavac. A situação sanitária no país, contudo, é alarmante.
A taxa de novos casos está em 36 por 100 mil habitantes,
similar ao pico da pandemia, no final de março deste ano. Das
16 regiões do território chileno, apenas três estão com uma
ocupação de UTIs menor que 90%.
As primeiras explicações para o problema culpavam o
afrouxamento precoce das medidas de distanciamento social
e a chegada de novas variantes. Mas um terceiro fator
começou a ganhar força nesta semana, depois que o Chile foi
incluído em um grupo de países díspares, ao lado da
Mongólia, das Ilhas Seychelles, do Bahrein e da Turquia. Todos
eles basearam suas campanhas de vacinação em grande parte
nas vacinas chinesas Sinovac e Sinopharm e observaram uma
subida dos casos diários recentemente. Nas Ilhas Seychelles,
mais de 70% da população já tomou uma dose e 60%, duas.

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De abril para maio, porém, o número de novos casos diários
pulou de 50 para 400, para atualmente ficar na faixa de 150.

Uma das hipóteses para explicar esses novos casos é que


essas vacinas, embora sejam eficientes para reduzir o número
de internações e de mortes, não conseguiram reduzir a
transmissão do vírus. Para que isso ocorresse, dizem
especialistas, essas nações precisariam ter pelo menos 75%
das pessoas imunizadas.

Sem impedir que o vírus siga se disseminando na população, o


Chile está acumulando vários outros problemas. “Uma maior
circulação do vírus continua produzindo muitos casos graves e
óbitos, abarcando também pessoas jovens e com
comorbidades”, diz o médico Juan Carlos Said, professor da
Universidade do Chile e diretor da Fundação América
Transparente. “Além disso, como o vírus continua se
multiplicando a uma taxa elevada, a chance de que surja uma
nova variante é maior.”

Flickr/Prefeitura de

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Pelotas
Ponto de vacinação no Brasil: a taxa de transmissão segue
preocupante

O problema brasileiro

O Brasil está bem atrás do Chile em porcentagem da


população vacinada. Cerca de 32% dos brasileiros tomaram a
primeira dose e 11%, a segunda. “É muito provável que, até
atingir 75% de cobertura, o Brasil não consiga uma redução
significativa de contágios, já que as medidas sociais para se
precaver contra a infecção não estão sendo seguidas com
muito rigor”, diz o imunologista Edécio Cunha-Neto, diretor do
Laboratório de Imunologia Clínica e Alergias da USP.
Um ponto que deve ajudar aliviar a situação por aqui é que a
porcentagem da população brasileira que tomou a Coronavac
é de 47%. Levadas em conta as doses que devem chegar ao
longo do ano, a participação da vacina no cômputo geral
deverá ser de apenas 19% — como há outras fórmulas sendo
administradas na população, portanto, o risco de se repetir
aqui o quadro chileno é um pouco menor, o que não elimina o
fato de que, se nada for feito, as pessoas que tomaram a
Coronavac não estarão plenamente protegidas.

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A experiência de Serrana

O Instituto Butantan afirma que, com 75% da população-alvo


imunizada, Serrana, a cidade do interior de São Paulo onde
houve uma campanha massiva de vacinação com a Coronavac
para mapear a eficácia do imunizante, registrou uma queda de
95% nas mortes por Covid, de 86% nas internações e de 80%
nos casos sintomáticos.
Mas o boletim epidemiológico municipal indica que o vírus
continua se alastrando, mesmo com 95% dos moradores
imunizados. O pico de casos novos por mês foi de 706, em
janeiro, antes de a vacinação em massa começar. Em maio, o
total de novos casos confirmados foi de 333, maior do que o
esperado. “Notamos uma pequena mudança no perfil dos
casos. Estamos com uma procura maior de crianças (por
centros de saúde), com um aumento dos casos positivos ”, diz a
secretária de Saúde do município, Leila Aparecida Gusmão.

O total de mortos por Covid chegou a 19 em março, a pior


marca. No mês passado, ocorreram sete óbitos.

A eficácia da Coronavac

Segundo um estudo clínico conduzido pelo Instituto Butantan,


a eficácia da Coronavac é de 50,7% para casos leves, 83% para

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casos moderados e 100% para casos graves. No entanto, um
estudo feito por pesquisadores do grupo Vebra Covid-19 (sigla
para Vaccine Effectiveness in Brazil Against Covid-19), que
inclui cientistas de vários países, mostrou uma eficácia média
de 42% entre pessoas com mais de 70 anos. Dividindo os
voluntários segundo a idade, o quadro fica mais preocupante.
Entre os indivíduos de 75 a 79 anos, a eficácia foi de 49%. Para
aqueles com mais de 80 anos, ficou em apenas 28%.
Flickr
Em idosos com mais de 80 anos, eficácia da Coronavac é de
28%
Em nota enviada a Crusoé, o Butantan contestou os dados do

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estudo. “Cabe esclarecer que foram usados dados secundários
e de qualidade duvidosa, além de baixo número amostral,
sobre o percentual de casos positivos de infecção pelo
coronavírus entre idosos com 80 anos ou mais vacinados com
as duas doses”, diz o texto. O trabalho feito pelo Vebra Covid-
19, porém, foi o maior já feito com pessoas com mais de 70
anos, ao incluir 15,9 mil voluntários desse grupo etário. É uma
amostra considerável. No estudo clínico feito pelo próprio
Butantan, apenas 1.260 pessoas com mais de 60 anos foram
avaliadas.

O mecanismo de ação

Em laboratório, amostras de sangue de pessoas vacinadas


com duas doses de Coronavac indicam que a vacina não foi
suficiente para fazer o organismo reagir à cepa P1, de Manaus.
Isso ocorre porque o mecanismo de ação do imunizante não
passa pela produção de anticorpos neutralizantes, mas
envolve outros sistemas, que ainda não são bem conhecidos.
“As dúvidas sobre qual é o mecanismo também surgem
quando se estudam outras vacinas que usam vírus inativados,
como a da pólio e da hepatite A. Mesmo assim, essas vacinas
provocam uma resposta satisfatória do organismo” , diz Daniel
Bargieri, professor e pesquisador do Instituto de Ciências
Biomédicas da USP e coordenador do Núcleo de Pesquisas em
Vacinas.
É possível que o mecanismo de ação da Coronavac tenha
relação com a dificuldade em conter o alastramento da
pandemia no Chile e em outros países. Vacinas que usam RNA
mensageiro, como as da Pfizer e da Moderna, estimulam o
organismo a produzir um anticorpo específico contra a
proteína Spike, usada pelo coronavírus para entrar nas células.

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Nas pessoas imunizadas com Coronavac ou com a vacina da
Sinopharm, o processo é mais longo e complexo.

A terceira dose

O Instituto Butantan sustenta que nada indica, por ora, a


necessidade de uma terceira dose de Coronavac. Contudo, em
outros países que apostaram nas vacinas chinesas, com vírus
inativado, algumas medidas já foram ou estão em vias de ser
adotadas para reforçar a eficácia da vacina. Nos Emirados
Árabes Unidos e no Bahrein, a terceira dose já é uma
realidade. Na Turquia, a dose de reforço deve começar a ser
aplicada na população geral em julho. O presidente Recep
Erdogan, de 67 anos, já ganhou a sua. No Chile, é possível que
a a aplicação da terceira dose comece em setembro.
No início de junho, o diretor da Sinovac, Ying Weidong,
afirmou que uma terceira dose da vacina poderia multiplicar
por dez a resposta de anticorpos no período de uma semana,
ou por 20 em duas semanas. O resultado precisaria ser
comprovado com mais pesquisas. “Não seria algo
surpreendente. Vacinas que usam vírus inativados geralmente
são dadas várias vezes. Na da pólio, por exemplo, são
necessárias três doses, e ainda são dadas mais duas doses de
reforço”, diz Bargieri, da USP.

Reprodução

®® O
presidente turco Recep Erdogan: terceira dose garantida

A combinação de vacinas

Administrar outra vacina em quem já tomou duas doses de


Coronavac também é uma hipótese plausível, embora ainda
não existam estudos apontando quais imunizantes poderiam
ser combinados com a fórmula chinesa. Para o médico
infectologista Julio Croda, que integra o grupo Vebra Covid-19,
uma combinação de vacinas pode ser vantajosa. “Estudos já
mostraram que vacinas diferentes estimulam mecanismos
distintos, garantindo maior proteção”, diz Croda.
Pesquisas combinando vacinas têm sido feitas na Espanha e
no Reino Unido. Como começaram a surgir casos de trombose
com a AstraZeneca, alguns países europeus começaram a
aplicar a vacina da Pfizer ou da Moderna em pessoas que
tinham tomado a primeira da AstraZeneca.

“Combinar vacinas não é uma ideia nova, pois essa técnica já


foi utilizada com outras doenças, como o ebola”, diz Alberto
Borobia, diretor da unidade de pesquisas clínicas do Hospital
Universitário La Paz, em Madri, que realizou o primeiro estudo
combinando as vacinas. Todos os voluntários que receberam
as duas doses, de AstraZeneca e Pfizer, exibiram anticorpos
neutralizantes duas semanas depois. Eles também tiveram um
aumento de quatro vezes na resposta de defesa celular.

Caberá a cada país decidir se é o caso de combinar vacinas,


realizando ou não estudos prévios para medir os riscos
envolvidos. “Essa é uma decisão de política sanitária. Países
europeus fizeram a mistura de vacinas e não notaram
problemas relevantes”, diz Antonio Carcas, professor de

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farmacologia da Universidade Autônoma de Madri, que
também participou do estudo espanhol. “Mas acredito que o
melhor para o Brasil seria fazer um estudo semelhante ao
nosso, para avaliar a resposta imunológica e a segurança da
combinação. Isso ajuda na tomada de decisões ”, diz.

A solução

Recentemente, circularam rumores de que o ministro da


Saúde, Marcelo Queiroga, estaria preocupado com a baixa
eficácia da Coronavac em idosos e pensava em encerrar os
contratos de compra da vacina. Nesta semana, Queiroga
negou a informação. “Não há nenhum tipo de mudança de
estratégia do Ministério da Saúde em relação a esse
imunizante”, disse. “Essa vacina tem sido útil. Essa é a posição
oficial do Ministério da Saúde até que exista algum dado
científico que faça com que tenhamos uma posição diversa ”,
disse ele.
Nos próximos meses, o debate sobre a Coronavac deve
ganhar corpo. Entre a população, jovens e adultos que ainda
não foram vacinados devem se proteger assim que essa
possibilidade for oferecida. Todas as vacinas disponíveis no
Brasil já se provaram capazes de reduzir o risco de internação
e de morte. Mas não basta. Se há meios de reforçar a proteção
em faixas da população atendidas com uma vacina que tem
sido útil para evitar o pior, mas não freia o contágio, é
essencial que essa discussão seja feita de forma séria — e
baseadas em estudos que, até o momento, não estão sendo
feitos. As autoridades precisam se convencer, urgentemente,
de que é preciso avaliar a questão a partir de dados científicos,
sem viés político, de modo a ajustar a política sanitária, para o
bem de todos.

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A Times Square já revive o alvoroço de tempos normais

O dia depois do fim


Nova York mostra para o mundo que um plano competente de vacinação é o melhor
atalho para o retorno à vida normal
25.06.21

RODRIGO RANGEL, DE NOVA YORK

Osorriso estampado no rosto dos integrantes do quinteto de


jazz que anima o fim de tarde em uma calçada próxima ao
Empire State Building é o retrato perfeito de que há vida pós-
pandemia – algo que, infelizmente, ainda é uma realidade um
tanto distante no Brasil. Depois das cenas apocalípticas do ano
passado, com tendas de hospitais de campanha montadas no
meio do Central Park e congeladores gigantes à espera de
corpos em uma morgue improvisada na orla, com a Estátua da
Liberdade ao fundo, Nova York volta a respirar ensinando ao
mundo que vacinar, e vacinar com planejamento e
competência, é o atalho mais curto para a volta à
normalidade.

Dos 8,3 milhões de habitantes das cinco regiões da cidade,


praticamente a metade já está completamente imunizada. Em
Manhattan, sete em cada dez pessoas tomaram ao menos
uma dose das vacinas disponíveis, as da Pfizer, da Moderna e
da Janssen. Por toda Nova York é possível encontrar postos de
vacinação funcionando. Para localizá-los, basta uma rápida
pesquisa na tela do celular e logo aparece o mapa apontando
o mais próximo. Em alguns, não é necessário nem agendar.
Basta chegar e a agulhada vem em questão de minutos. No
metrô, nos ônibus e em placas luminosas nas ruas,

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campanhas publicitárias insistem em convencer os ainda
reticentes de que é preciso se imunizar.

No início deste mês, a cidade que foi o epicentro da pandemia


nos Estados Unidos, com mais de 33 mil mortos pela Covid-19,
conseguiu pela primeira vez, desde março de 2020, passar 24
horas sem um único óbito decorrente da doença. O número
de casos confirmados caiu 95% em relação ao período mais
crítico. Desde maio máscaras já não eram necessárias em
lugares abertos para quem estivesse vacinado, mas na
semana passada o governador Andrew Cuomo anunciou a
suspensão de outras medidas restritivas. Restaurantes, lojas e
outros estabelecimentos comerciais não precisam mais limitar
o ingresso de público ou observar o distanciamento físico
entre os clientes. Máscaras só são exigidas agora em creches,
unidades de saúde e no transporte público.
Crusoé
A Terry Waldo’s Gotham City Band toca jazz na calçada: dose
extra de satisfação

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“A vida segue em frente. Aprendemos muito ao longo do
último ano, conquistamos muito ao longo do último ano. O
nosso desafio tem de ser reimaginar Nova York e dizer que
vamos fazer uma Nova York que seja melhor do que nunca.
Temos de capitalizar este momento, aproveitar este momento
de transformação”, comemorou o democrata Cuomo ao
anunciar a novidade. Fogos de artifício estouraram em vários
pontos da cidade para festejar o fim de quase todas as
restrições.
Ainda há marcas da tragédia. Hotéis se readaptando à rotina,
pontos comerciais abandonados no meio da crise e outros,
recém-reabertos, tentando retomar a atividade – alguns, em
áreas menos nobres, com produtos absurdamente
empoeirados postos à mostra – remetem à ideia de uma
megalópole que sobreviveu a uma catástrofe, como nos
filmes. Mas meses depois de rodarem o mundo imagens
deprimentes da Times Square deserta e de lojas icônicas da
Quinta Avenida de portas cerradas, a economia da cidade se
refaz. Há muitos sinais a confirmar o boom de crescimento
esperado para depois da pandemia. Placas em vitrines com
ofertas de emprego podem ser vistas em várias partes. Há
obras e operários da construção civil trabalhando por todo
canto, bem mais do que o normal, como se a cidade estivesse
correndo para recuperar o tempo perdido.

A Broadway ainda se prepara para reabrir seus teatros. Mas o


mundo do showbizz já começa a faturar novamente. No
domingo, 20, a tradicional arena do Madison Square Garden
reabriu com lotação máxima. Vinte mil pessoas vacinadas
estavam na plateia para ver a banda de rock Foo Fighters. Sem
máscaras e sem distanciamento. Outros espetáculos para
grandes públicos estão marcados para os próximos meses.

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Crusoé
Famílias curtem o dia na Little Island, a nova atração da
cidade: aglomeração com segurança
As condições de acesso à vacina, inclusive para estrangeiros,
revelam um mundo bem distante da realidade do Brasil, que
teve a oportunidade de garantir milhões de doses ainda no
ano passado e esnobou, oficialmente, as ofertas. Em um dos
centros de imunização mais procurados da cidade, no
segundo andar de uma antiga loja da liga nacional de futebol
americano, bem no miolo da Times Square, é possível escolher
a vacina e sair imunizado em menos de quarenta minutos, a
depender do dia e do horário. Na fila, há nova-iorquinos
retardatários e visitantes de várias nacionalidades.
Crusoé conversou, dias atrás, com uma família do Rio de
Janeiro que fez uma viagem-relâmpago de quatro dias a Nova
York para ser vacinada. Do aeroporto, pai, mãe e filho
seguiram direto para o posto de vacinação. Os três optaram
pela fórmula da Janssen, de dose única – nos Estados Unidos,
a segunda dose da Pfizer é aplicada em 21 dias e a da
Moderna, em 28 dias. No interior do centro de vacinação, em
um cartaz gigante afixado na parede, americanos e
estrangeiros de várias partes do mundo agradecem, em
mensagens escritas com pincéis coloridos, a oportunidade de
receber a vacina. No canto inferior, um brasileiro protestou
em letras garrafais: “Bolsonaro genocida”. Bem ao lado, um
colombiano inconformado seguiu na mesma toada. “Ivan

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Duque também”, escreveu, referindo-se ao presidente do país,
igualmente criticado pela atenção dispensada ao combate à
pandemia.

Nos Estados Unidos, até quando há problemas o país esbanja


método e organização. No início do mês, justamente no centro
de vacinação da Times Square, por cinco dias foram aplicadas
doses da Pfizer impróprias para uso. As 899 pessoas que
receberam essas vacinas foram alertadas logo depois, por e-
mail, de que precisavam repetir o processo. Oficialmente, a
explicação era a de que os frascos haviam sido armazenados
no freezer por mais tempo que o necessário. Se, por um lado,
a mensagem admitia uma falha grave, por outro era uma
demonstração eloquente de como o processo vem sendo
levado a sério no país – e de como têm funcionado os
controles oficiais destinados a corrigir erros.
Crusoé
O protesto contra Bolsonaro no posto de vacinação
“Como não podemos garantir a efetividade da dose que você

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recebeu, recomendamos que ela seja repetida para assegurar
a proteção. A dose administrada de maneira inadequada não
será considerada para a série completa da vacina. A dose a ser
repetida pode ser aplicada imediatamente (sem período de
espera) no braço oposto”, dizia o e-mail, antes de pedir
desculpas pela falha e por eventuais preocupações dela
decorrentes. As autoridades sanitárias garantiam, a quem
perguntasse, que a repetição da dose não oferecia riscos à
saúde. A equipe que trabalhava no posto foi demitida em
razão da falha.
Mais de 178,3 milhões de pessoas – precisamente 53,7% da
população – já foram vacinadas nos Estados Unidos com ao
menos uma dose. Nova York é a maior vitrine da imunização
no país e tem servido para puxar as demais regiões para o
retorno à vida normal. O exemplo da cidade não poderia ser
melhor. De compras no mercado a um simples café na
esquina, situações comuns do cotidiano que haviam
desaparecido da rotina das pessoas no ano passado voltaram
a ser vividas com doses extras de satisfação. A retomada da
normalidade dá força, mais do que nunca, à máxima de que é
preciso valorizar até os hábitos mais comezinhos do dia a dia.
Os museus, como o Metropolitan, estão cheios. Nos espaços
públicos de lazer, do Central Park à novíssima Little Island, a
“ilha” construída no lugar de um velho píer à margem do rio
Hudson, a imagem de famílias inteiras aglomeradas podendo
aproveitar novamente um dia de sol é a prova de que, sim,
com vacina, a vida pode continuar após o longo e tenebroso
inverno da pandemia.

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O plenário da Câmara vazio: mudança na regra favorece quem tem votos garantidos

O distritão dos coronéis


Por que partidos e políticos que dominam currais eleitorais estão interessados em mudar
as regras das eleições de 2022
25.06.21

ANDRÉ SPIGARIOL

Uma comissão especial da Câmara dos Deputados deve definir


nos próximos dias o texto final da reforma política que pode
promover a mais profunda mudança no sistema eleitoral
brasileiro desde a redemocratização. Uma alteração, em
particular, tem merecido a atenção dos deputados. É o projeto
que resgata a proposta do chamado distritão para a eleição de
deputados federais e estaduais. A ideia é substituir o atual
sistema proporcional, em que as cadeiras no Poder Legislativo
são distribuídas de acordo com o número de votos obtidos
por partidos políticos, por um sistema majoritário, em que os
candidatos com o maior número de votos são eleitos,
independentemente das siglas a que pertencem, como já
ocorre nas eleições para o Senado.

A mudança favorece os oligarcas da política, celebridades e


líderes religiosos, cujos nomes são mais facilmente
reconhecidos pelos eleitores – obviamente, deputados do
Republicanos, partido ligado à Igreja Universal, estão entre os
entusiastas do projeto. O distritão, na verdade, é uma maneira
nada sutil de garantir a reeleição dos atuais deputados,
especialmente dos chefes partidários. “O distritão ajudaria as
pessoas que já estão na política a se perpetuar no poder,
reduzindo a renovação”, diz a cientista política Mariana Lopes,

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que preside o movimento de renovação Acredito.

Dirigentes de partidos nanicos também se animam porque o


distritão faria sobrar dinheiro em seus caixas. Explica-se: no
modelo atual, as siglas precisam apresentar um número alto
de candidatos para conseguir votos suficientes para a eleição
de seus filiados, distribuindo o dinheiro do fundo eleitoral
para muitos candidatos. Com a mudança, elas poderiam
concentrar seus esforços apenas nos candidatos “bons de
voto”.

Adriano
Machado/Crusoé
Lira:
tendência é que seja aprovado um modelo misto
Além da ampliação do poder dos coronéis, os aspectos
financeiros da proposta também fazem crescer o olho de
legendas do Centrão em prol da mudança – e, por isso, o

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presidente da Câmara, Arthur Lira, resolveu encampá-la num
primeiro momento. Líderes do bloco fisiológico acreditam que,
com o apoio do governo, devem conseguir os votos para
aprovar o novo modelo no plenário da Câmara. O sistema
poderia valer já para 2022, a depender da velocidade com que
a proposta será examinada pelo Senado. O prazo final é
outubro, um ano antes da eleição. Para tentar vencer as
resistências dos maiores partidos, a relatora da proposta, a
deputada Renata Abreu, presidente do Podemos, tem
defendido um modelo misto, em que metade das vagas de
cada estado na Câmara seriam definidas pelo distritão e a
outra metade pelo atual modelo proporcional. A expectativa é
que um consenso possa ser formado na próxima semana.
Atualmente, a Câmara tem três frentes distintas e simultâneas
de trabalho que discutem uma reforma política-eleitoral no
país. Mudanças específicas são debatidas desde 1996, quando
uma primeira comissão especial foi instalada na Câmara para
modificar as regras eleitoras. Mas, desde então, nunca se
discutiu um conjunto tão grande de alterações de uma só vez
como agora. O risco, como sempre, é o de favorecer os atuais
caciques políticos. Ou, para variar, beneficiar a impunidade.
Na quinta-feira, 24, sem alarde, a Câmara aprovou um golpe
na Lei da Ficha Limpa. O projeto permite que gestores que
cometeram atos de improbidade e tenham sido
punidos “apenas” com multa sejam eleitos. O projeto ainda
precisa da aprovação do Senado para entrar em vigor. Quando
o plano é legislar em causa própria, o Congresso funciona às
mil maravilhas.

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"O que vemos é um procedimento ilegal. E com o conhecimento do presidente, o que
torna o episódio mais grave"

Caso de impeachment
O senador Tasso Jereissati diz que o escândalo da compra das vacinas indianas eleva o
patamar da crise e pode empurrar Jair Bolsonaro para fora do Palácio do Planalto
25.06.21

SÉRGIO PARDELLAS

Para o senador cearense Tasso Jereissati, do PSDB, a crise que


engolfa Jair Bolsonaro mudou de patamar. Pulou de grave
para gravíssima e pode alterar o animus no meio político e na
sociedade a respeito do impeachment. Na avaliação do
integrante da CPI, a revelação de que o presidente foi alertado
sobre irregularidades na compra da Covaxin antes mesmo de
o contrato de 1,6 bilhão de reais ser assinado pelo Ministério
da Saúde com o laboratório indiano produtor da vacina tem
poder para derrubar o derradeiro pilar de sustentação do
governo – a tese de que Bolsonaro jamais esteve envolvido em
corrupção.

“A última defesa do presidente diante da sociedade era a


questão da corrupção. A casa desmorona. O clima na
sociedade vai mudar inteiramente”, afirma o tucano, que até
então acreditava não haver condições políticas para o
impedimento de Bolsonaro. Se os indícios “que já são
fortes” se confirmarem, a saída, entende o parlamentar, é “o
vice-presidente (Hamilton Mourão) assumir”.

Nesta entrevista a Crusoé, o senador, de 72 anos, fala ainda da


possibilidade de Bolsonaro recorrer à força para não deixar o
poder e das articulações em busca de um candidato da

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chamada terceira via para disputar a Presidência em 2022.
Apontado como uma das opções no PSDB, ele diz que é
preciso haver, nos partidos que tentam costurar uma
candidatura alternativa, a consciência de que o momento do
país exige unidade para enfrentar a polarização. “Se nós
decepcionarmos por falta de desprendimento, por projetos
exclusivos e não tivermos capacidade de fazer a convergência,
nem que seja de transição de quatro anos para depois ficar
mais claro, essa geração de políticos toda, e eu me incluo nela,
merece sair do jogo.”

Como o sr. avalia o caso da compra das vacinas indianas pelo


governo, em que há suspeita de corrupção e a confirmação de
que o presidente foi alertado?
A situação que já estava muito grave passou para gravíssima.
Se fosse apenas uma negligência ou pensamento diferente, no
caso da imunidade de rebanho, entre outros, já seria muito
grave pelas consequências que geraram, como a morte de
mais de 500 mil pessoas no país. Se essas condições todas
ficarem provadas e chegarmos à conclusão que houve
interesse escuso por trás da compra das vacinas indianas, e os
indícios já são fortes, pode chegar a um desfecho traumático.

Pessoalmente, o presidente se complica?


Claro. Porque a gente sabe hoje por informações, documentos
e vídeos que o presidente tinha alguma interferência nos erros
e omissões durante a condução da pandemia. Agora, o que
vemos com certeza é um procedimento ilegal. E com o
conhecimento do presidente, o que torna o episódio mais
grave ainda. Todo governante costuma dizer “eu não sabia”,
“aconteceu à minha revelia”, mas esse caso andou com tanta
rapidez que a desconfiança de corrupção chegou direto à
pessoa do presidente da República. Sem dúvida, se isso tudo
ficar comprovado, é o caso de medidas extremas.

impeachment do presidente?®®
“Medida extrema” seria a abertura de um processo de

Se ficar provado, pode chegar a isso.

Há ambiente político para o impedimento de Bolsonaro?


Eu sempre disse em conversas com outros políticos e mesmo
em entrevistas que eu não achava que haveria condições para
o impeachment agora. Mas a última defesa do presidente
diante da sociedade era a questão da corrupção. Dizia: “Ah, foi
feito isso, foi feito aquilo, mas não tem corrupção ”. Essa era a
alegação. Até mesmo na CPI, quando a gente chega a
determinadas conclusões, seus defensores vão lá e dizem:
“Mas não rouba”. Esse fato novo derruba o último pilar. A casa
desmorona. O clima na sociedade vai mudar inteiramente. Até
a questão moral dos defensores do presidente vai ficar
enormemente enfraquecida.
Pedro
Ladeira/Folhapress

“Esse
fato novo derruba o último pilar. A casa desmorona”

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A tese de “deixar o presidente sangrar” até o fim do governo
para chegar cambaleante nas eleições ainda é defendida por
setores da oposição, inclusive pelo PT. Ela perde força agora?
Não vejo isso como uma questão eleitoral. É uma questão
fundamental para o país. Para o futuro próximo e de longo
prazo. Estamos falando de mortes, 500 mil mortes. Existe um
sentimento anticorrupção tão grande na sociedade, devido à
longa tradição de corrupção de governos anteriores, que essa
questão passou a ser muito forte na população. A decepção
desses segmentos, até entre os que votaram em Bolsonaro, e
não estou falando dos fanáticos, vai ser tão grande que esse
pilar desaba e não há como levantá-lo novamente. Vai ser uma
decepção com o candidato em quem esse eleitor acreditou.
Se o governo se inviabilizar, a solução é com o vice Hamilton
Mourão?
Até hoje no meio político, e falo da Câmara, Senado,
governadores, partidos políticos, ninguém havia levado a sério
a possibilidade do impeachment. Nunca se discutiu isso a
sério porque Bolsonaro ainda é sustentado na opinião pública,
em parte por esse discurso de que ele não rouba.
Aparentemente é sustentado pelas Forças Armadas, e ele faz
questão de exibir esse apoio, falando em “meu Exército”, e nas
polícias militares, um setor da sociedade onde ele tem mais
penetração, e por ter uma militância própria violenta. Essas
condições não levariam a um ambiente positivo para o
impeachment. Agora, do ponto de vista da opinião pública,
tem essa questão moral. O que se imaginava até então era
que ele é desajeitado, grosseiro, mas não cometia malfeitos.
Com isso mudando, temos outro cenário. E a solução, nesse
caso, tem que ser pela Constituição. Não há outra. A saída, se
os indícios se confirmarem, é o vice-presidente assumir.

Se o governo sobreviver até 2022, o que deve ser feito para


quebrar a polarização e para que não se repita o que ocorreu
em 2018?

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Vai depender de nós, políticos que temos alguma liderança
nos nossos partidos. Tem que haver um pouco de
desprendimento e de consciência da gravidade do país.
Mesmo com um lampejo de crescimento no país, o longo
prazo não é bom. Temos 14 milhões de desempregados e um
déficit fiscal altíssimo. Isso sem falar na questão da pandemia.
Se nós decepcionarmos por falta de desprendimento, por
projetos exclusivos e não tivermos capacidade de fazer a
convergência, nem que seja de transição de quatro anos para
depois ficar mais claro, essa geração de políticos toda, e eu me
incluo nela, merece sair do jogo. Não estaríamos à altura para
enfrentar esse desafio.

Pedro
Ladeira/Folhapress
“Acho
que o Doria vai ter que cair nessa realidade. A realidade não é
aquela que a gente quer”
O sr. tem defendido que o PSDB não precisa necessariamente
encabeçar a chapa de uma candidatura da terceira via. Mas o

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partido tem um candidato que, aparentemente, não abre mão
de concorrer ao Planalto, que é o governador João Doria.
Como resolver essa questão?
Eu, por exemplo, que sou um dos nomes citados para
concorrer à Presidência, tenho conversado com Eduardo Leite
e o Arthur Virgílio, que também são pré-candidatos. E nós
acertamos que, se notarmos que existe uma disposição mais
ampla de convergência ao redor de um nome que consiga
agregar mais do que nós, tranquilamente, sem nenhum ruído,
vamos com empolgação para essa alternativa. Acho que o
Doria vai ter que cair nessa realidade. A realidade não é
aquela que a gente quer. A realidade é a que está
acontecendo. Não vai ser essa obstinação dele que vai levar ao
ponto de não perceber isso.
O sr. vai disputar as prévias do PSDB?
Estamos avaliando ainda. Nesse contexto, estou tentando
fazer papel de aglutinação. Tenho conversado com outros
partidos, com outros presidenciáveis. Não vejo objeção ao
andamento dessas conversas. Se meu nome unir, eu vou. Se
não, me junto a outro nome.

O sr. acha que um nome da terceira via deve ser apresentado


quando? Ou até quando?
Não tenho a mesma ansiedade que muitas pessoas têm, e a
imprensa tem um pouco também. O fato é que nós não temos
um nome ainda. Mas podemos costurar nos próximos seis
meses. Tem muita água para rolar. Por exemplo, o que
discutimos anteriormente sobre a compra das vacinas
indianas é uma novidade muito forte e que muda o quadro.
Então, vamos ver o que ainda pode acontecer. De toda forma,
penso que iniciarmos o ano que vem com um nome colocado
é importante.

Pedro
Ladeira/Folhapress

®®

“Se nós
não tivermos capacidade de fazer a convergência, essa
geração de políticos toda, e eu me incluo nela, merece sair do
jogo”
O sr. já presenciou um cenário político tão delicado como esse
no Brasil?
Não. Nada nem parecido. Aliás, nunca esperei que um homem
com a mentalidade e o primarismo do Bolsonaro chegaria à
Presidência da República. E com essas atitudes. O que ele faz,
o que diz, como ele age, como se relaciona com amigos,
adversários políticos, imprensa, é tudo com muita brutalidade.
Posso dizer que é o pior presidente da história do Brasil. O
governo não é orgânico. São ilhas ao redor de um chefão do
qual todos têm medo, e que não tem um projeto de país, mas
um projeto de poder. Para piorar, temos um ambiente de
ódio, muito por causa das redes sociais. Não se discute nada
profundamente. Nem sobre economia, sobre educação e
outros temas importantes. Chegamos ao ponto de debater o
que é e o que não é ciência. E tudo sem argumento e com
muito ódio. Perdi amigos de longa data depois que passei a
criticar mais fortemente o governo. Esse clima, eu nunca vi. E é
desse clima que devemos sair.

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Bolsonaro está emitindo todos os sinais de que pode resistir
se tiver que deixar o poder. Acredita que os militares dariam
guarida a essa aventura?
Concordo com você. A grande dúvida é como se comportarão
as Forças Armadas. Estamos nesse caminho e acho que
podemos ter mesmo problemas enormes pela frente. Só
entendo que ele não vai ser bem-sucedido. Em 1964, havia o
apoio da grande imprensa, dos americanos, da Igreja, de parte
da sociedade e o Congresso era, em boa parte, composto por
udenistas que tinham histórico de golpismo. Agora, a grande
diferença é que Bolsonaro não tem apoio da imprensa, não vai
ter apoio político e ficará isolado do resto do mundo. Ele não
tem a conjunção das forças a favor. E tenho dúvidas se
metade das Forças Armadas vai pactuar com isso. Isso pode
até acontecer, mas será temporário. Não deve durar muito.
DIOGOMAINARDINA ILHA DO
DESESPERO
Aposta em Eduardo Leite

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25.06.21

Aterceira via aposta em Eduardo Leite. Sim, eu sei que, além


da terceira via, há também uma quarta via, uma quinta via e
uma sexta via — e nenhuma delas pensa em apoiar o
governador do Rio Grande do Sul. Quando digo que a terceira
via aposta em Eduardo Leite, estou me referindo apenas
àquela ala que vai de Luciano Huck a Luciano Huck.

Conta a favor do tucano o fato de ser novo, mas devidamente


tarimbado, depois de dois anos e meio no governo estadual.
Ele procurou enfrentar a epidemia como se deve, tirando as
pessoas das ruas, e resistiu à ira dos comerciantes aloprados.
Em 2018, conseguiu atrair o eleitorado bolsonarista, embora
jamais tenha declarado voto em Jair Bolsonaro. Segundo seus
simpatizantes, só faltam duas coisas para ele: um partido e
dez por cento nas pesquisas.
Seu partido tem dono. João Doria prefere mutilar o PSDB a
entregá-lo para seus rivais. Eduardo Leite vai acabar se
acomodando em outro lugar, menos contaminado. Quanto às
pesquisas, ele só vai chegar aos dez pontos quando receber o
apoio do resto da turma: Sergio Moro, Luiz Henrique
Mandetta, João Amoêdo e, claro, Luciano Huck, que promete
animar o auditório eleitoral. Antes disso, ele vai continuar
patinando com menos de dois por cento, para o desalento dos
torcedores da terceira via.

Outro estorvo que pode barrar sua candidatura é a realidade.


Na quarta-feira, O Antagonista detonou o caso cabeludo da
Covaxin. Nosso Diego Amorim fez uma entrevista exclusiva
com o deputado federal Luis Miranda, que revelou ter alertado
Jair Bolsonaro — pessoalmente e por meio de mensagens —
sobre a ladroeira envolvendo a vacina indiana. O episódio está
sendo escarafunchado pela imprensa e pela CPI da Covid, e

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deve crescer ainda mais a partir desta sexta-feira, com os
depoimentos do próprio Luis Miranda e, sobretudo, de seu
irmão, que testemunhou as obscenidades dos militares
bolsonaristas no Ministério da Saúde.

Ninguém sabe onde isso vai parar. O que se sabe é que a


chance de Jair Bolsonaro ser atropelado, antes de 2022,
aumentou um bocado. Se isso ocorrer, a terceira via vai
mudar. Ela vai se tornar a primeira via. E todas as apostas
terão de ser refeitas.
MARIOSABINO
Festa de 60 anos
25.06.21

Divirto-me com a ideia de convidar todos os meus desafetos


— ou inimigos mesmo, em alguns casos — para uma grande
festa em comemoração aos meus 60 anos em 2022 (grande
festa que não ocorrerá). Ela certamente ficaria lotada, se
houvesse quem concordasse em ir a uma festa de quem não
gosta ou até odeia.

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Esforcei-me bastante para conquistar alguns desses desafetos;
em relação a outros, não foi preciso muito esforço. Existem
antipatias naturais que se impõem a quaisquer coincidências
de gosto ou ideias. Quanto às simpatias que se esvanecem,
constato a verdade do lugar-comum: os piores desafetos são
os ex-amigos. Ex-amigo é que costuma ser para sempre.
Felizmente, como não sou homem de muitos amigos, tenho
poucos ex-amigos. Na condição de ex-amigo, contudo,
contrario o clichê e sou efêmero. Eles simplesmente deixam
de existir para mim. Para ser sincero, é assim em relação a
todos os meus antípodas. Talvez por desvio psicológico (longe
de mim achar que tenho superioridade moral), não nutro
rancores eternos — o que não significa que sairia abraçando
por aí quem me odeia. Enemies, enemies, will never be
friends, como canta a Charlotte Gainsbourg. É pela ausência
de rancores eternos que posso me divertir com a ideia de
convidar todos os meus desafetos para uma grande festa de
60 anos.

Na minha lista de convidados, embatuquei com um nome:


Raduan Nassar. Eu adoro o Raduan. Nutro por ele uma
admiração imensa. Com apenas dois livros, Lavoura
Arcaica e Um Copo de Cólera, ele chegou àquele lugar de
nome pavoroso: a glória literária. Como classificar o Raduan?
Ele nunca foi exatamente amigo de conversar com frequência,
trocar mensagens ou sair para jantar fora, mas fomos
intensamente amigos nas poucas vezes em que nos vimos.
Desde o primeiro encontro, foi reencontro, pelo menos para
mim.

O Raduan é escritor relutante. Gosta — ou gostava — de ser


fazendeiro, trabalhar na terra. Minha mãe era amiga de uma
irmã dele, mas só vim a conhecê-lo quando eu já era jornalista.

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Ele foi o meu primeiro entrevistado. Eu tinha 22 anos, havia
começado a trabalhar na Folha, como responsável pela seção
de resenhas de livros, e o Raduan, escritor que falava pouco
com a imprensa, concordou em dar uma entrevista ao jornal.
Fui entrevistá-lo juntamente com outro jornalista, chamado
Augusto Massi, hoje professor de Letras na USP.

Ele morava sozinho numa casa no Pacaembu, aqui em São


Paulo, e eu percebi que a conversa seria boa quando o Raduan
colocou uma garrafa de uísque — J&B — sobre a mesa. Ele
desmistificou completamente a literatura, ao afirmar que um
escritor era como um macaco que encaixava varas para pegar
uma fruta que estava fora do seu alcance. Já estávamos no
quarto ou quinto copo (também de cólera e outros
sentimentos), quando declarei eloquentemente que precisava
ir ao banheiro. “Eu te mostro onde é o lavabo”, disse o Raduan.
Na frente do lavabo, havia um pequeno tapete de lã branca,
com uma lhama ao centro. Comecei a rir. “ Do que você está
rindo?”, perguntou. “Dessa lhama que é a cara da minha
sogra.” Ele, que obviamente nunca tinha visto a minha sogra,
olhou mais de perto a lhama desenhada no tapete e foi
peremptório: “Tem razão, é a cara dela”. Desabamos de rir,
literalmente. O meu companheiro jornalista teve algum
trabalho para nos tirar do chão, pregados que estávamos a ele
pela gravidade etílica. Cheguei carregado em casa, achando
que tinha escolhido a profissão certa.

Quando me casei com a filha da sogra que parecia uma lhama,


o Raduan nos presenteou com uma panelinha de cobre — que
não levei comigo ao me divorciar. Não me lembro qual era o
teor do cartão, igualmente perdido. Tenho o estranho hábito
de deixar para trás coisas que interessam e manter as que não
interessam.

Fiz uma segunda entrevista com o Raduan quando estava

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na Veja. Dessa vez, ele disse que bom mesmo era dormir.
Entrevista publicada, o diretor da revista na época, Mario
Sergio Conti (está na minha lista da festa dos 60 anos), quis
conhecê-lo. Fomos almoçar no Fasano, que ainda não era no
hotel porque hotel não havia. O Raduan no Fasano era uma
cena bastante improvável. A improbabilidade foi explicitada
quando o maître comunicou que o carro dele (velho, barato e
vermelho, não necessariamente nessa ordem) havia sido
lavado por cortesia. O subtexto é que a lata-velha estava suja
demais para ficar estacionado na frente do restaurante, ao
lado dos carrões reluzentes da clientela rica.

A última vez em que vi o Raduan foi às vésperas de lançar o


meu primeiro romance, lá se vão quase 18 anos. Eu pedi a ele
que o lesse antes de passar à editora e desse a sua opinião. O
Raduan me chamou para conversar e disse que eu era um
ótimo narrador e que havia gostado muito do livro. Ele me deu
uma dica para deixar um trecho mais ambíguo, dizendo que
bons escritores deveriam deixar os leitores dubitativos em
relação ao que se narrava. Saí feliz e com a lição aprendida.

Nunca brigamos, mas, ao elaborar mentalmente a lista para a


grande festa que não ocorrerá, pensei que talvez eu tenha me
tornado um desafeto dele. Será? O Raduan admira Lula,
demonstrou publicamente o seu apoio ao petista, de quem
acho até que virou amigo, e acredita que a Lava Jato é um
braço do mal. Estamos, portanto, de lados opostos, com o
agravante de eu ser sócio-fundador de O Antagonista e
desta Crusoé. O que aconteceria se eu ligasse para o Raduan?
Ele me atenderia? Se me atendesse, me chamaria de “fascista”
com aquela respiração ofegante que fica quando está com
raiva? Não sei. Só sei que, se pudesse, eu comemoraria os
meus 60 anos ao lado dele, não como desafeto, mas como
amigo. E nos embriagaríamos de uísque, e desabaríamos de
rir em frente ao lavabo, por causa da lhama que se parece

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com a minha sogra, com Lula, com Bolsonaro, com Moro, com
todo mundo que não estivesse naquele momento no chão.
CARLOS FERNANDODOS SANTOS LIMA
Ou o Brasil mata a corrupção, ou a
corrupção mata o Brasil
25.06.21

“Eu acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção
no governo. Eu sei que isso não é virtude, é obrigação”,
afirmou Jair Bolsonaro, em outubro de 2020, confessando-se
orgulhoso assassino da investigação iniciada em 2014, mas

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também se assoberbando de que em seu governo não havia
corrupção. Se a primeira afirmação é parcialmente verdade,
pois o presidente foi mais um da turba de políticos e seus
representantes na imprensa que promoveu o linchamento
público do combate à corrupção, a segunda é completamente
mentirosa.

Vejam o último escândalo! O que você pensaria de um


governo que compra um bem por um preço final muito
superior, mas muito, ao valor inicialmente anunciado pelo
vendedor? Com minha experiência de quase 30 anos
investigando e processando corruptos, posso afirmar que,
isoladamente, já se trata de um sério indício de corrupção. E
isso aconteceu agora no “ autoproclamado” incorruptível
governo Bolsonaro.

Vamos aos fatos, depois de desdenhar dezenas de contatos da


farmacêutica Pfizer durante o ano de 2020 para a aquisição de
milhões de doses de vacina, o governo, por ordem pessoal de
Bolsonaro, mesmo após ter sido o presidente alertado pelo
irmão do deputado federal Luis Miranda — servidor do
Ministério da Saúde — e pelo próprio parlamentar de que
havia “um esquema de corrupção pesado na aquisição das
vacinas (Covaxin) dentro do Ministério da Saúde”, fechou
contrato de 1,6 bilhão de reais para aquisição desse
imunizante, produzido pela empresa indiana Bharat Biotech,
por 15 dólares a dose, apesar de documentos do próprio
governo indicarem que o preço estimado seria de apenas 1,34
dólar a dose.

Dessa maneira, a Covaxin se tornou a mais cara vacina


adquirida pelo atual governo. E essa compra se deu mesmo
com sérias dúvidas de confiabilidade da fabricante, a Bharat
Biotech, pois em março deste ano a Anvisa chegou a indeferir
a Certificação de Boas Práticas de Fabricação de
Medicamentos desse laboratório. Vejam que a vacina da

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Pfizer, tecnologicamente mais avançada, foi adquirida por 10
dólares a dose, o mesmo valor pago pela dose da vacina da
Janssen, braço farmacêutico da gigante Johnson & Johnson,
que ainda tinha a vantagem de imunizar em dose única.

Mas ainda há outros indícios sérios de corrupção, pois a


Covaxin foi a única das vacinas compradas através de
intermediário, a Precisa Medicamentos, em um rápido
entendimento com o governo, enquanto todas as demais
tiveram que enfrentar difíceis negociações diretas com os
fabricantes. É como se o governo desdenhasse comprar um
veículo Mercedes zero quilômetro direto do fabricante para
adquirir um veículo genérico chinês de uma revendedora
desconhecida pelo dobro do preço. Alguma coisa errada
existe; se não for corrupção, será ao menos improbidade
administrativa. Aliás, começa a ficar claro o motivo pelo qual
bolsonaristas e lulistas votaram para destruir parte da Lei de
Improbidade Administrativa que punia essas “ estranhas”
transações.

É preciso investigar tudo isso a fundo, tanto na esfera cível


quanto na criminal, especialmente a conduta do então
ministro da Saúde Eduardo Pazuello, mas também do próprio
presidente Jair Bolsonaro, sabedor de indícios de corrupção,
mas ainda assim envolvido diretamente na negociação e
decisão de compra da Covaxin. Além disso, há outros
conhecidos articuladores dessa transação de que devem ser
profundamente investigados, como o deputado federal
Ricardo Barros, ex-ministro da Saúde de Lula e atual líder do
governo na Câmara dos Deputados, defensor dentro do
governo da compra das vacinas Sputnik V e Covaxin e que em
fevereiro deste ano ameaçou “enquadrar” a Anvisa por
entender que esse órgão estava dificultando a aprovação de
vacinas que não tivessem a fase 3 de testes realizada também

®®
no Brasil – o que, aliás, é o caso da Covaxin.

O escândalo da Covaxin não é o primeiro, nem mesmo o


único, do atual governo. Antes de tudo, mesmo não fazendo
parte formal do governo, o fato de seus filhos estarem
envolvidos em investigações de crime de peculato pela
apropriação de parte dos vencimentos de servidores de seus
gabinetes – o escândalo da rachadinha – já indicava no
começo deste governo que a honestidade não era exatamente
um valor familiar.

Entretanto, a operação deflagrada pela Polícia Federal em


relação à liberação indevida de madeira apreendida, cujo
principal suspeito é o próprio ex-ministro do Meio Ambiente
Ricardo Salles, revelou que a corrupção não é só aquela
tradicionalmente ligada ao Centrão, grupo de parlamentares
que se vende para o governo de plantão, mas estava na
antessala do presidente, pois Ricardo Salles era ministro da
confiança pessoal de Jair Bolsonaro.

Fica claro que a arrogância de Bolsonaro ao dizer que em seu


governo não havia corrupção era apenas mais uma daquelas
mentiras que os políticos contam. Mais ou menos como a
gaiatice de Lula ao se chamar de alma mais honesta do Brasil.
Dois mentirosos que se merecem. A questão realmente
importante a se observar agora é como será investigado esse
escândalo, já que as instituições responsáveis por procurar
provas e esquadrinhar condutas, a Procuradoria-Geral da
República e a Polícia Federal, estão aparelhadas ou sob
intervenção direta do próprio presidente.

Não creio, assim, que Augusto Aras tenha independência,


conhecimento técnico ou sequer vontade de investigar o
presidente da República, seus ex-ministros ou parlamentares

®®
sobre esses ou quaisquer outros fatos suspeitos. Gostaria de
ver, por exemplo, se a subprocuradora Lindôra Araújo terá a
mesma gana investigativa que teve contra os governadores e
prefeitos adversários de Bolsonaro. Não acredito nisso, pois,
“de onde menos se espera, é que não saí nada mesmo ”.

Da mesma forma, não creio que seja possível contar muito


com a Polícia Federal, ainda um bastião de resistência
institucional, pois, apesar da denúncia do ex-ministro da
Justiça Sergio Moro sobre o desejo de Jair Bolsonaro de
controlá-la – inquérito parado, como sempre, no STF –, essa
corporação também vem sendo paulatinamente aparelhada.
Nesta semana tivemos mais um fato revelador desse lento
processo de controle, com a perda de posição de chefia do
delegado que conduziu as operações de busca e apreensão na
investigação envolvendo Ricardo Salles no Distrito Federal.
Lembrando que há dois meses o superintendente da PF no
Amazonas também já tinha sido afastado do cargo, após
enviar notícia-crime contra o ministro por ele supostamente
interferir em uma operação policial.

Estamos caminhando, é necessário dizer, para nos


transformarmos num país sem lei; pelo menos não uma lei
que valha para os políticos e seus interesses, essa cleptocracia
hoje representada tanto por Jair Bolsonaro, quanto por Lula,
mas que se fôssemos nominar todos seus representantes
precisaríamos de uma antiga lista telefônica. Alguns deles,
inclusive, estão hoje conduzindo a CPI da Covid, pretendendo
apenas sangrar Jair Bolsonaro até a próxima eleição, mas não
realmente apontar qualquer solução para o problema.

Corrupção mata! Corrupção tira de nossos filhos e netos o


futuro! Não se pode relativizar essa afirmação. A corrupção
que mata está tanto em deixar de construir hospitais para
poder desviar recursos em obras para a Copa do Mundo e

®®
Olimpíadas, quanto em comprar vacinas superfaturadas ou
medicamentos ineficazes. Como disse recentemente o General
Paulo Chagas, o “Centrão, hoje no controle geral da gestão
pública, está a aprovar o salvo conduto para roubar. Parabéns!
Nem no governo de Lula, o Ali Babá, eles foram tão longe! ”. Eu
acrescentaria apenas que a corrupção mais uma vez governa o
país de dentro do Palácio do Planalto.

É preciso construir uma saída para tudo o que está


acontecendo, pois a própria democracia está ameaçada. E a
democracia brasileira está ameaçada não somente pelo
presidente e seus aloprados seguidores, mas também pelo
conformismo maniqueísta que aceita a corrupção do passado
como alternativa ao fascismo do atual governo. É preciso
resgatar as instituições, o respeito à República, que significa
simplesmente o dinheiro de nosso suor transformado em
impostos pagos, e o estado democrático de direito, que não se
confunde jamais com a impunidade de poderosos. Não há
outra forma!

®®
ALEXANDRESOARES SILVA
Em defesa da tolice
25.06.21

Durante tempo demais na história da humanidade nos


esforçamos para preservar tudo de sábio que era dito,
construindo bibliotecas inteiras de sabedoria, e deixamos cair
no esquecimento tudo que era tolo. O resultado disso é que
toda tolice dita agora parece que nunca foi dita antes – é
original, com o brilho e atração de um pensamento original, e

®®
os argumentos que derrubavam essa tolice foram esquecidos
também, e têm que ser reinventados do nada.

Só a nossa época foi sábia o suficiente para construir uma


enorme biblioteca de preservação da tolice – uma gigantesca
Biblioteca de Alexandria da Imbecilidade. Passear por ela é a
primeira coisa que fazemos ao acordar. É o que fazemos
também na hora do almoço, e nos intervalos de trabalho, e
quando devíamos estar trabalhando, e logo antes de ir dormir.
Passamos o dia inteiro passeando entre as estantes desse
edifício que imagino imenso e de mármore, com estátuas
assombrosas e inspiradoras dos maiores tolos do mundo; e lá
ficamos folheando os volumes ao acaso, lendo trechos em voz
alta, mostrando aos amigos, sublinhando, copiando trechos
em pergaminhos, mandando esses pergaminhos para
parentes distantes através de pombos- correio, etc.

O que os sábios da antiguidade teriam achado dessa nossa


biblioteca da tolice, que frequentamos e ampliamos todos os
dias? Aristóteles, Platão, Sócrates, ou até mesmo as pessoas
que eram feitas de trouxas por Sócrates, defendendo com
veemência nos diálogos com ele ideias evidentemente tolas,
mas inteligentíssimas se comparadas com as do brasileiro
médio – o que diriam eles se pudessem passear por essa
biblioteca?

Imagino que eles, um pouco como nós às vezes, ficariam


estupefatos, enojados, desgostosos, se perguntando por que
tantos escribas se deram ao trabalho de registrar para sempre
semelhantes tolices. Mas imagino também que passadas
algumas semanas os discípulos de Sócrates, digamos,
estranhariam o seu sumiço, e não o encontrariam em parte
nenhuma – até alguém lhes dizer que tem visto Sócrates
entrando furtivamente, todos os dias, por uma porta lateral da
Biblioteca da Tolice.

®®
DISCÍPULO: Ah, eis que o encontro! Por que passais, ó
Sócrates, dias inteiros lendo tolices, quando todos os que o
admiram sentem fome e sede da sua sabedoria?

SÓCRATES: Para aprender, ó Antístenes; pois Fernando


Haddad, Jones Manoel e Manuela Dávila são fontes
inesgotáveis de instrução.

DISCÍPULO: Que dizeis, Sócrates? Terá a loucura corrompido o


vosso cérebro?

SÓCRATES: De forma alguma, Antístenes! E isso é facilmente


verificável. Pois, diga-me: o médico que deseja ampliar seus
conhecimentos das doenças do fígado, deve ele procurar um
homem saudável desse órgão, e que jamais se queixou dele?
Ou deve, pelo contrário, procurar um doente do fígado,
amarelo, fraco, dado a crises de vômito e má digestão?
DISCÍPULO: Deve procurar um doente.

SÓCRATES: Muito bem. E o homem desejoso de estudar a


variedade dos animais, ao estudar a formação óssea das
codornas, por exemplo, deve colecionar centenas de
esqueletos saudáveis de codorna, em tudo iguais uns aos
outros, ou, pelo contrário, deve cuidar de colecionar todas as
variações anormais dos ossos de codorna, apresentando todo
tipo de deformação?

DISCÍPULO: Os deformados, Sócrates.

SÓCRATES: Da mesma maneira, desejoso de procurar a


sabedoria, deve o homem prudente cultivar apenas a
conversação dos sábios, ou deve, pelo contrário, frequentar…

DISCÍPULO: Os tolos. Tá, Sócrates. Entendi.

®®
SÓCRATES: Não, mas ele deve frequentar –
DÍSCIPULO: Ele deve frequentar os tolos, Sócrates. Eu já tinha
entendido lá atrás.

Não consigo deixar de imaginar os sábios da antiguidade


visitando essa biblioteca todos os dias, e se regalando com as
obras completas dos grandes tolos da história.

EPICURO: De que ri, Pitágoras?

PITÁGORAS: Uma trivialidade – quase me envergonho de dizê-


lo. A temível pitonisa da Mooca, Rosana Hermann, está
contando uma história fascinante sobre uma atriz chamada
Susana Vieira. Aparentemente, estando esta atriz na casa de
alguém chamado “Boni”…

PLATÃO (interrompendo): Que achais desta análise política do


poderoso arconte Túlio Gadêlha: “17 anos sem o líder do
trabalhismo. Brizola ensinou que radical mesmo é a miséria, a
fome, a pobreza.”

TALES DE MILETO: Terrificante aforismo!

DEMÓSTENES: Estudantes de retórica, atenção: percebam


como cada palavra de Túlio Gadêlha habilmente enfraquece o
efeito da palavra anterior.

ZENÃO DE ELEIA: Faz-nos pensar.

EMPÉDOCLES: Desculpem interromper, mas ouçam esta


análise da obra do filósofo hebreu Noam Chomsky, feita por
Felipe Neto (certamente um dos famosos Sete Sábios do Largo
da Batata): “Chomsky DESTROÇOU o crush que eu tinha no
Obama. O neliberalismo é um câncer no mundo…”
Etc, etc, etc.

®®
Exatamente como nós, os sábios da antiguidade não sairiam
dessa biblioteca nunca mais. E por que sairiam, também, se
nela podem ter acesso às obras- primas da Era de Ouro da
Tolice?
Rolos em comum
25.06.21

Odono da Precisa Medicamentos, a empresa que vendeu a


vacina indiana Covaxin para o Ministério da Saúde, é um velho
conhecido do submundo de Brasília. Durante os governos do
PT, Francisco Maximiano, ou simplesmente Max, tinha livre
acesso a gente poderosa do partido. Foi graças a essa
proximidade, e também à sua aptidão para garantir parceiras
rentáveis no setor público, que ele conseguiu fechar negócios
milionários e suspeitos com fundos de pensão estatais, como
o Postalis, dos funcionários Correios. Não deixa de ser irônico
que personagens de esquemas da era petista estejam
ressurgindo nos escândalos do governo de Jair Bolsonaro.

Adriano
Machado/Crusoé

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O
dono da Precisa, que fechou contrato bilionário com o
Ministério da Saúde, era ligado a petistas
Reserva de luxo
25.06.21

Predileta dos Bolsonaro para assumir a Procuradoria-Geral da


República caso a indicação de André Mendonça para o STF
suba no telhado e Augusto Aras seja escolhido para substituí-
lo, Lindôra Araújo tem dito a colegas que não tem o menor
interesse no posto. Quem a conhece, porém, sabe que ela
jamais recusaria o chamado. A subprocuradora, braço-direito
de Aras e encarregada de tocar os casos criminais da PGR, é
muito benquista na família presidencial, especialmente por
Flávio Bolsonaro.

Gil Ferreira/Agência

®®

CNJ
Lindôra é o plano B do Planalto para a PGR, mas diz que não
gosta da ideia
Geladeira eterna
25.06.21

Odelegado Maurício Valeixo, pivô da saída de Sergio Moro do


governo, está até hoje à espera de uma função na Polícia
Federal. Desde que deixou o comando da corporação, pouco
antes da demissão do ex-juiz, Valeixo voltou para Curitiba.
Havia a promessa de que ele ganharia o posto de adido
policial em uma embaixada, de preferência a de Portugal. Mas
o processo de transferência entrou na gaveta do
esquecimento do governo e até hoje não andou. A situação do
delegado é idêntica à de outros investigadores da Lava Jato.
Todos os cabeças da operação estão, atualmente, longe de
postos relevantes dentro da PF.

Pedro
Ladeira/Folhapress

®®

Valeixo: escanteado e esquecido


Barca pronta
25.06.21

Em privado, chefões do Centrão já admitem a possibilidade de


abandonar em breve o barco do governo. A leitura reinante é
a de que o capital político de Jair Bolsonaro está se
deteriorando rapidamente e que, para garantir a própria
sobrevivência, o melhor caminho será o da porta de saída. Um
dos que esperam o momento ideal para o desembarque –
embora ainda esteja se lambuzando com verbas e cargos – é o
notório Valdemar da Costa Neto.

José Cruz/Agência

®®

Brasil
Valdemar: antes do desembarque, ele aproveita o quanto
pode
O ‘corretor’ Salles
25.06.21

As recentes transações imobiliárias de Ricardo Salles estão


sendo averiguadas em detalhes na investigação sobre o agora
ex-ministro do Meio Ambiente. Como Crusoé revelou em
junho, depois de faturar 1 milhão de reais com a compra e a
venda de um apartamento em São Paulo em apenas seis
meses, Salles comprou uma casa em um bairro nobre. A
escritura que registrou a transação traz um detalhe curioso: o
ex-ministro de Jair Bolsonaro ganhou um “desconto” de 600
mil reais em relação ao valor de avaliação do imóvel. Salles
pagou 3,15 milhões de reais pela casa, de 330 metros. A maior
parte, 2,5 milhões, foi quitada com recursos próprios. O
restante ele financiou no Banco do Brasil. Neste momento, a
propriedade está passando por uma ampla reforma. Vizinhos
já foram informados de que, em breve, Salles deverá envolvê-
la em nova transação.

Gilberto
®®
Soares/MMA

Salles
comprou a casa por valor bem abaixo da avaliação de
mercado

®®
Dobradinha Rio-SP
25.06.21

Caciques do PSD e do PSB articulam uma dobradinha dupla


nas eleições para governador nos dois estados mais ricos do
país. Em São Paulo, o partido comandado por Gilberto Kassab
almeja reeditar a chapa vitoriosa de 2014, com o ex-
governador Geraldo Alckmin, que deve trocar o PSDB pelo PSD
em breve, e Márcio França, do PSB, como vice. No Rio de
Janeiro, as posições devem se inverter. O PSB tende a lançar o
deputado Marcelo Freixo, recém-filiado à legenda, e Felipe
Santa Cruz, presidente nacional da OAB, como vice pelo PSD. A
parceria entre as duas siglas deve ser reproduzida em outros
estados.

André
Bueno//CMSP

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Kassab: aposta em palanques fortes


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RUYGOIABA
Moça, sei que já não é pura
25.06.21

Os discos que ouvimos na infância formam caráter. Como sou


velho e anterior ao Balão Mágico e à Xuxa, meus greatest
hits — ouvidos numa vitrolinha Philips com opções para 33, 45
e 78 rotações, que hoje deve ser vendida como vintage —
eram coisas como A Bandinha da Turma da Mônica e a trilha
sonora da versão nacional de Vila Sésamo. No caso do
primeiro, confesso que me identifiquei por um breve período
com a música do Cascão (“se a água é fria eu tenho medo, se a
água é quente eu nem quero saber”), até minha mãe acabar
com essa palhaçada de entrar no chuveiro sem me molhar.
E Vila Sésamo é útil até hoje: recorro à música do abecedário,
composta por Marcos Valle, toda vez que preciso conferir se o
P vem mesmo depois do M na ordem alfabética.

Mas o disquinho que mais me marcou foi um que adaptava


fábulas de La Fontaine — décadas antes de eu aprender
alguma coisa de francês e conseguir ler os versos originais, em
alexandrinos rimados, do grande escritor do século XVII. A
minha favorita, de longe, era O Velho, o Menino e o Burro.
Estão o velho e o menino puxando um burrico, que planejam
vender na feira, e um passante comenta que é ridículo os dois
andarem a pé quando poderiam ir montados e descansados.
Os dois sobem no burrico e logo alguém se compadece do
bicho. O menino então desce, fica a pé, o velho continua
montado: aparece outro dizendo oh, que absurdo, o velho
todo pimpão e o menino se esfalfando. Trocam de
posição: “Olha só que garoto folgado, confortável no burro
enquanto o velho se cansa!”. Por fim, decidem os dois carregar

®®
o animal nas costas, e a opinião pública não perdoa: “Olha lá
os dois burros carregando um terceiro nas costas!” .

Na verdade, o original do La Fontaine (Le Meunier, son Fils et


L’Âne) começa com a dupla carregando o asno, o que para
mim dilui um pouco o efeito dramático da moral da história.
Seja como for, lembro dessa fábula sempre — e me lembrei
de novo nesta semana, quando aquele tsunami de
comentários cretinos que se convencionou chamar de “opinião
pública” dedicou sua atenção às novas latas de Leite Moça,
lançadas para comemorar o centenário do produto no Brasil.

Se vocês não souberam da história, explico: a Nestlé trocou a


tradicionalíssima moça das latas de leite condensado por
ilustrações de “mulheres reais”, que utilizam o Leite Moça no
seu dia a dia etc. Rendeu pelo menos uma boa piada —
alguém no Twitter escreveu que as latas ficaram parecidas
com os maços de cigarro, que mostram as consequências do
uso do produto —, mas, fora isso, é difícil imaginar algo que
seja menos relevante para a vida das pessoas. Certo?

Errado: nas redes, nada é tão irrelevante que não possa ser
objeto de polêmica. Direitistas, por exemplo, ficaram
irritadinhos com a campanha “lacradora” da Nestlé (só faltou
Jair Bolsonaro se manifestar dizendo que não vai passar mais
isso daí no pão, talquei?). Mas veio da esquerda a melhor peça
de humor involuntário: o site do PT publicou um artigo
dizendo, a sério, que a mudança do rótulo do Leite Moça
evidenciava uma “visão utilitarista da pauta feminista”,
promovia a “invisibilidade da mulher do campo” e escondia
a “lógica nefasta do marketing de alimentos ultraprocessados” .
Não consigo imaginar nada MENOS parecido com uma
camponesa brasileira, ou uma sem-terra filiada ao MST, do
que a moça do Leite Moça, mesmo na versão modernizada do
desenho mais recente. Talvez tenha faltado à Nestlé ser mais

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inclusiva e colocar uma imagem do Lula entre as “ mulheres
reais” homenageadas: como sabemos, ninguém pode ser mais
mulher trans negre não-binárie e do campo que o chefão
petista.

Wando, esse grande pensador brasileiro, diria que a moça do


Leite Moça já não é pura: é pura semiótica, e a moçada anda
atribuindo a ela os significados mais delirantes (o que nem
sempre tem a ver com o alto consumo de leite condensado
por parte dos usuários da erva venenosa). O melhor que a
Nestlé — ou qualquer um de nós — faz nesse caso é mesmo
dar de ombros para a tal opinião pública: do contrário, como
na fábula, vamos todos acabar carregando o burro nas costas.
Lembrem-se sempre das sábias palavras de Carla Perez, a
pessoa que melhor resumiu o ensinamento da história de La
Fontaine (cito ipsis litteris): “Se nem Jesus Cristo agradou todo
mundo, não é eu que vai agradar”.
***

A GOIABICE DA SEMANA

O jornal mineiro O Tempo informa que Aécio Neves, que


governou um dos maiores estados do Brasil e recebeu 51
milhões de votos numa eleição presidencial, apresentou na
Câmara um projeto para que a cidade de Lagoa Dourada seja
consagrada como a capital nacional do rocambole. E vocês, em
vez de aplaudir o extraordinário senso de prioridade do
tucano, ainda vêm me dizer que no Brasil não há estadistas. É
muito complexo de vira-lata, francamente. (Fique à vontade
para inserir aqui seu trocadilho com “Aécio” e “enrolado”.)

Pedro
Ladeira/Folhapress

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Aécio
pensando em quem é mais enrolado —ele ou o rocambole de
Lagoa Dourada

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