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A Arte, como sabemos, é uma das formas de expressão da realidade feitas pelo ser humano

para mediar sobre ela. No interior dessa esfera, temos algumas características muito importantes a
serem ressaltadas como essenciais, pois sem elas, a atividade estética pode se tornar descolada do
mundo real, e não é essa sua essência. Com isso, quero dizer que dela se espere certa fidelidade ao
que é objetivo na vida, porque sem isso se torna apenas um produto de pura subjetividade e sem
compromisso com o que é concreto. Desse modo, a Estética, como uma forma de captar e
reproduzir a vida (tendo seu surgimento nela mesma) de maneira elevada, conta com algumas
especificidades que a transforma numa das objetivações complexas do homem. E uma delas, é a
arte de narrar. Como foi dito, a Arte surge da vida (e para ela retorna), como uma forma de
enriquecê-la, pois é entendido que no dia a dia surgem necessidades, as quais nem sempre são
respondidas de imediato, seja pela falta de experiência com devido acontecimento, ou por
acidentalidades recorrentes do cotidiano, sendo necessário uma abstração de nível superior à do
imediato, e é aí que o “narrar” entra em ação. Pressupõe-se que a narração seja contar a vida assim
como ela é, uma unidade em contradição de experiências objetivas, sensíveis e momentâneas. Então
o ato de narrar, significa assumir o compromisso de constatar e trazer de forma artística tudo o que
a compõe, com todos os detalhes possíveis, com um olhar crítico e sóbrio. E se esse conceito
significa trazer aos ouvintes uma visão crítica sobre as experiências mundanas, logo, um bom
narrador é aquele que conhece a vida do modo que a própria acontece, no imediato, vivendo,
participando e tomando posição diante de todas as suas ocorrências, sejam elas boas ou ruins. Ao
passo que uma história é narrada, cria-se um vínculo entre o leitor e o que é objetivado na obra,
pois, como já foi citado anteriormente, a Arte é uma das formas de se responder aos problemas
gerados na vida. E se na vida de quem lê há os mesmos problemas, conclui-se que o que é narrado
se estende para além da obra, permeando a vida das pessoas como possíveis respostas às situações
diversas.

Além do princípio fundamental do “narrar”, há o “cotidiano”. Esse é um ponto crucial para


analisarmos não só a Arte, mas também a Ciência, e sobretudo a vida. A partir dele, temos o
nascimento dos reflexos artístico e científico, pois esses emergem do cotidiano como uma
necessidade histórica e social, com o intuito de suprir as indigências geradas no dia a dia. Cada um
dos espelhamentos possui características próprias de funcionamento, mas ao mesmo tempo que suas
funcionalidades se dão de diferentes maneiras, tratam da mesma realidade, selecionando e
reconfigurando dados objetivos colhidos do mundo real. Nele predomina o comportamento
imediato, e o que o homem encontrou ao longo da história para lidar com os problemas da vida em
sua imediaticidade, é o trabalho. Essa é a categoria fundamental de todas as objetivações humanas,
uma forma de alterar e dominar a realidade que o cerca, na prática, mas com uma di6ferença
importante das objetivações animais, é um ato teleológico. Ao colocar finalidades em suas ações, os
seres humanos planejam antes de agir, com base em causas subjetivamente pré-estabelecidas.
Portanto, pode-se dizer que no trabalho, o que mais interfere é a subjetividade, e isso também
implica em outro fato, os produtos que são concebidos a partir dele, são objetivações de uma
natureza mais instável, diferentemente das objetivações mais complexas mencionadas. Na Ciência,
por exemplo, o cientista não precisa atender as demandas imediatas, por mais que suas teorias e
ações tratem delas, seu trabalho está voltado para uma observação mais calma e detalhada da
realidade objetiva, nesse caso a subjetividade está sujeita à objetividade, e o produto de seu trabalho
aparece sempre mediado. Então, na vida cotidiana, o que prevalece são reações imediatas,
subordinando as atividades artísticas e científicas ao seu favor, no entanto, essas aparecem com uma
certa opacidade, pois suas mediações não interessam à práxis diária, apenas suas utilizações práticas
como meio de facilitar a vida diante de suas exigências também práticas.

O comportamento do cotidiano ocorre por reações-espontâneas-materialistas, pois como


nele o que determina é o imediato, as decisões tomadas pelos seres que o habitam são direcionadas
à objetividade. Portanto, ao tentar tomar as rédeas da realidade que o cerca, faz-se necessário
observar o que as coisas são (em si mesmas), existindo independente da consciência, e o seu devir.
Mas para a teoria, esse “materialismo espontâneo” não é tão relevante, o que o confina a existir
simultaneamente com crenças e convicções, devido a sua certa translucidez em relação aos
processos envolvidos nos fenômenos percebidos. Em tempos antigos (o da magia, em específico),
quando não era sabido da diferenciação entre idealismo e materialismo, os produtos da consciência
tinham um papel determinante no comportamento dos humanos, como os sonhos. Como o ser
humano ainda não conseguia diferenciar o que era realidade da ideia, as conexões entre o que
aparentava do fenômeno e a sua possível explicação, eram feitas com associações mágicas. Mas a
partir dos gregos, principalmente com o avanço da ciência moderna e seu constante exame sobre o
sistema de produção, a objetividade entrou em destaque, o que possibilitou a apreensão puramente
materialista da realidade. Os elementos idealistas surgem como uma opção de resposta imediata aos
problemas imediatos, porque quando não há conhecimento aprofundado sobre a realidade objetiva
que se enfrenta, desconhecendo o que há por trás de um acontecimento, a analogia é a primeira rota
para sua solução, fazendo comparações aparentes. Entretanto, o pensamento análogo não se esgota
aí, pois, de acordo com Goethe, tal forma de se espelhar a realidade, além de estimulante e
satisfatório, quando utilizada com equilíbrio, sem fazer dela a verdade, mas também ao ponto de
não a ignorar, a dialética da identidade e diferença da própria realidade é captada, na qual as coisas
são e não são ao mesmo tempo. Ainda em consonância com Goethe, essa característica de “ser e
não ser” das coisas contribui para a Arte, o que a torna própria da realidade (analogia), pois o
materialismo dialético considera suas categorias como originárias de uma realidade que existe por si
só.
A linguagem tem um papel de suma importância na esfera pragmática, na medida que o
homem precisa mediar em sua prática diária, esse meio de comunicação emerge como uma forma
de facilitar a interação com as coisas. É notável que sua compreensão se torna mais complexa
conjuntamente ao estágio de desenvolvimento da sociedade que a utiliza, pois a história da
linguagem é um processo de distanciamento da realidade imediata para o domínio dos seres sobre
seu entorno. O significado das palavras é flexível e suscetível a mudança, porque está sujeito às
dinâmicas sociais, e ao processo de aproximação com a Verdade. Então, com isso, eleva-se uma
necessidade de conhecer a dialética entre fenômeno e sua essência, separando o que há de aparente
e transitório do que é determinante e duradouro nesses símbolos. Entretanto, por mais que com o
avanço no conhecimento humano sobre o mundo, haja uma alteração nos símbolos da língua, não
implica que esses não possam ser inflexíveis ao mesmo tempo no cotidiano. Ora, devido a
influência da subjetividade nas atitudes práticas – e nessa subjetividade está contida uma
conservação de hábitos e costumes – as palavras assumem certa rigidez, o que pode atrapalhar para
o desenvolvimento da humanidade. Mas isso é um efeito normal e inevitável, porque a teoria está
em função da prática nesse âmbito. Além disso, nota-se uma dificuldade de conceber o mundo,
tanto interno quanto externo, com a linguagem imediata, em detrimento de uma imprecisão de
significantes e significados. Logo, Ciência e Arte caminham juntas para superar, e ao mesmo tempo
utilizar ao seu favor, a intransigência e a volatilidade da linguagem cotidiana, enquanto a primeira
precisa de uma certa transitoriedade em sua linguagem para ir além dos enganos do cotidiano, a
outra necessita dar forma específica para trazer respostas aos problemas que aparecem como
inflexíveis.

De acordo com Lukács apud Patriota, o Ser é constituído por “faculdades anímicas” que
interagem entre si, sendo todas elas, utilizadas no momento em que o mesmo se objetiva por meio
de suas ações. Essa ideia se contrapõe a sua percepção de juventude, caracterizada pela
fragmentação e isolamento das “disposições subjetivas”, fruto de premissas kantianas, e de toda a
lógica capitalista, que se manifesta numa divisão social do trabalho. Aqui, mais uma vez é marcada
uma das principais fundamentações do materialismo-histórico dialético, que além da realidade
objetiva ser uma unidade dialética em constante contradição, a realidade subjetiva também se faz da
mesma maneira. Deve-se ter em mente que ao observar o ente e suas ações, essa interação constante
entre tais faculdades não ocorre sempre de maneira harmoniosa, podendo se tornar um contato
conflituoso. Então, partindo desses pressupostos, entende-se que a atividade científica pode ser
influenciada pela fantasia, tornando-se um ato de criação, pois ao tentar se aproximar do objeto
estudado por meio da pesquisa e abstração, criando conceitos, teorias etc., esses mesmos produtos
podem deixar de ter contato com o mundo real, convertendo-se em fantasias, só que quando tais
elementos fantásticos são utilizados com moderação, há efetividade. Mas o que se percebe
atualmente, é que no cotidiano essa relação aparece quebrada, o que, apoiado em Marx ano, é fruto
das relações sociais capitalista de produção, pois nela, o trabalho é fracionado em partes e
especializado apenas em uma delas, e devido à essa situação, o homem estranha a si mesmo e à sua
atividade produtiva, por não perceber a conexão rica por trás de todo o seu ato. Isso acaba por gerar
outros problemas, como: dificuldade de desenvolver sua personalidade em sua totalidade, não
reconhecer a si próprio suas produções e como alguém que produz seu devir. Em contrapartida, essa
separação ocorre apenas no imediato, no próprio agir prático. Visto que é próprio do cotidiano
capitalista essa vivência estranhada, para Lukács ano, é um problema de efeitos atrofiantes para o
desenvolvimento do Ser e sociedade. Com isso fará sua crítica frente a filosofia burguesa,
principalmente a vertente que o filósofo intitulou de “anti-capitalismo romântico”, devido à
omissão, por parte dessa, ao estudo da esfera imediata, pois caso o fizessem, teriam de propor uma
superação ao sistema de produção operante, o que também implicaria numa autocrítica, devido às
suas teorias e práticas.

A respeito dessa tendência que romantiza os progressos da sociedade, que desconsidera as


contradições existentes nesse processo, Lukács julgará a forma com que Heidegger tratou o
cotidiano em sua filosofia, principalmente em Ser e tempo. Nessa obra, fica clara a visão negativa
em suas falas quando se refere à essa esfera como o lugar da decadência humana, onde as
objetivações dos entes são “quedas” do Ser. Embargado pelos efeitos decorrentes do capitalismo,
ele reduzirá a causa dos incômodos sociais à uma condição de existência humana, evitando assim,
uma análise a partir de uma conjuntura histórica, ignorando a concretude por trás desse sofrimento.
A objetividade se ausenta em sua descrição por retirar a verdadeira essência do imediato, sendo ele
a causa e o fim de todas as atitudes humanas (como a ciência), acaba por se desconectar do
conhecimento, perdendo sua relação com as causas e os fins das atividades pertencentes ao homem.
Dada essa deformação acerca do dia-a-dia, Lukács apud tentará reconstruir essa separação entre as
esferas com o conceito do “homem inteiro”, o qual diz que o ser é o mesmo independente do grau
de suas objetivações, sejam elas no plano prático ou nas formas mais complexas. Desse modo, ele
tratará das “zonas de transição” do cotidiano, pois esse não se dá em uma uniformidade, possuindo
diferentes panoramas e “zonas intermediárias” para as zonas mais altas (estética e científica), sendo
elas influenciadas por determinações históricas e a subjetividade dos indivíduos. Como exemplo,
cita o trabalho em tempos antigos, quando não era realizado de forma estranhada assim como nos
dias atuais, e impulsionado por forças artesanais, não se via em estado de alteridade com as
atividades artísticas e teóricas, mas em aproximação. O esporte e o jogo (quando sistematizados),
ou a própria “sabedoria popular”, são atividades interpostas que se apresentam de uma maneira
muito próxima à do trabalho, na medida em que possuem saberes práticos, passados de geração em
geração, com respostas imediatas aos problemas surgidos na própria imediaticidade, caracterizando
o comportamento peculiar dessa esfera, do atrelamento instantâneo entre teoria e prática.

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