CALVINO, Ítalo. O Cavaleiro Inexistente. 1. ed. Companhia das Letras, 2005.
CREDENCIAL DO AUTOR
Ítalo Calvino nasceu em Santiago de Las Vegas, Cuba, em 1923. Seus
pais eram cientistas italianos e estavam em Cuba apenas de passagem. Dois anos depois, a família retorna a San Remo, na Itália, onde o futuro escritor vive até os 25 anos. “Sou a ovelha negra, o único literato da família”, afirmava. Foi militante ativo do Partido Comunista Italiano até 1956, tornou-se membro da resistência ao fascismo durante a guerra, o que fez com que sua vida literária estivesse sempre intensamente entrelaçada ao engajamento político. Paralelamente, em 1947, formou-se em Letras na Universidade de Turim, com tese sobre a obra completa do escritor Joseph Conrad. No mesmo ano publica seu primeiro romance: Il sentiero dei nidi di ragno (O caminho dos ninhos da aranha). Entre suas leituras prediletas, Calvino destaca um livro de infância, Pinocchio, de Carlo Collodi, que considera “modelo de narração”. Só a partir dos anos 1950 Calvino começaria a escrever as obras que o tornaram famoso internacionalmente. Seus primeiros grandes sucessos são O Visconde Partido ao Meio (1952), O Barão nas Árvores (1957 – quando se desliga do Partido Comunista) e O Cavaleiro Inexistente (1959). Entre 1959 e 1965 Calvino dirige, juntamente com Elio Vittorini, a revista Il Menabò, cuja proposta era participar do debate cultural dos anos 60, analisando a relação entre literatura, indústria e sociedade. Desse período, destacam-se obras como As cosmicômicas (1965), conjunto de doze contos em que teorias científicas e cosmológicas compõem o quadro de aventuras protagonizadas pela personagem de nome impronunciável Qfwfq. A mesma personagem reaparece em outro volume de contos publicado em 1967, Ti con zero. Calvino publicou outras obras antes de falecer em 1985, consagrado como um dos mais importantes escritores italianos do século 20. RESUMO DA OBRA
O livro narra em 12 capítulos a história de Agilulfo Emo Bertrandino dos
Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez, paladino do exército de Carlos Magno, rei da França. Mas na verdade Agilulfo não existe. Ele é uma voz metálica que emerge do fundo de uma armadura branca e limpa. Metódico, rígido e perfeccionista, Agilulfo possui uma conduta severa. Cuida dos assuntos burocráticos pelos quais ninguém se interessa porque ali, o que todos procuram é a glória que só pode conquistada nas batalhas. É essa postura que o torna tão antipático perante os outros cavaleiros que preferem evitá-lo. Com exceção da guerreira Bradamante, perdidamente apaixonada por aquele que julga ser o único homem capaz de saciar seus fogosos desejos. Impiedosa e decidida, Bradamante coleciona amores, mas não se entrega a nenhum, uma vez que acredita ser Agilulfo o homem ideal. No segundo capítulo, conhecemos Rambaldo aspirante a cavaleiro. Seu objetivo é vingar a morte do pai, e ao entrar para o exército de Carlos Magno apaixona-se pela inatingível Bradamante. Na vida militar, elege como modelo Agilulfo, por quem nutre grande admiração, apesar de tratar-se de um rival. Gurdulu é apresentado no terceiro capítulo. Fiel escudeiro do cavaleiro inexistente, ele é o oposto de Agilulfo: é desengonçado, engraçado, sujo, falante (de besteiras e coisas sem sentido) e se confunde em tudo o que faz. Gurdulu existe mas não tem consciência de sua própria existência. O que o move é o “instinto”. Já Agilulfo não existe e se move apenas por sua força de vontade e, claro, pela lógica. No quarto capítulo conhecemos a irmã Teodora. Confinada em um convento, sua tarefa é contar a história do cavaleiro inexistente. É ela que narra toda a história e que revela uma identidade inesperada ao final da trama. Rambaldo conhece Torrismundo no sexto capítulo. Torrismundo não conhece bem a sua origem, não sabe quem é o seu pai. Sabe apenas que ele é um dos cavaleiros da Ordem Sagrada do Santo Graal, ordem pela qual nutre grande admiração. Em sua busca pelo seu pai, acaba percebendo que os cavaleiros do Santo Graal não são o modelo de santidade que tanto almejava. Torrismundo chega até à protagonizar um incesto com aquela que pensa ser sua mãe, a infeliz Sofrônia. A donzela, cuja virgindade é defendida com unhas e dentes por Agilulfo, passa por inúmeros “maus bocados” até revelar a sua verdadeira identidade. Entre guerras, fugas, naufrágios, provas de virgindade, noites de amor e acampamentos, Calvino cria situações em que questiona, com sua habitual ironia, instituições como o Exército, a Igreja e o poder instituído, a exemplo da figura encarnada pelo imperador Carlos Magno, bonachão e esquecido do porquê havia começado a guerra.
CONCLUSÃO DA RESENHISTA
Como toda fábula, O Cavaleiro Inexistente não deixa de transmitir
sabedoria de caráter moral ao seu leitor. Nesta obra, Ítalo Calvino torna o universo cavaleiresco motivo de piada e riso. A ironia não é sutil. Os ideais de glórias, títulos e romances que tanto afirmaram o homem como um herói de armadura branca, um paladino temente a Deus e guiado pelo divino (nos romances de cavalaria medievais), são construídos sobre o pilar de um cavaleiro que não existe. Agilulfo representa tudo o que um cavaleiro deveria ser e como modelo, possui todos os valores do mundo cavaleiresco-medieval. Sua armadura impecável, brilhante e sempre polida, nos lembra a sensação de ver alguém usando roupas de grife. A melhor vestimenta, que irá garantir a distinção e o reconhecimento do grupo. Como o outro nos enxerga, assegura a confirmação da imagem que desejamos, porque precisamos ser vistos. O cavaleiro inexistente, por vezes sente uma ponta de inveja das pessoas comuns e do que são capazes de sentir. Mas logo compreende que tudo o que realiza com perfeição é graças a essa ausência de um corpo carnal. Ao enterrar os companheiros, sente-se aliviado. Nada pode atingí-lo. Se sente superior por não ser um “saco de tripas”. Ele não cheira e não fede. Apesar de não existir, consegue conquistar o coração das mulheres. Bradamente é a primeira a se apaixonar por ele. Agilulfo possui todas as qualidades que procura em um homem. Ela, que pode ter qualquer homem que deseja, preferiu amar alguém que não existia. Talvez Calvino faça uma crítica às mulheres que buscam encontrar o homem perfeito. Como se dissesse, “hey o homem perfeito não existe”. A viúva Priscila, também desejou Agilulfo ardentemente. Quando essa lhe fala sobre o amor, rapidamente o cavaleiro começa a discursar sobre o tema apontando provas e dados estatísticos. Não poderia se comportar diferente afinal, é desprovido de sentimentos. Ele se desvia de todas as investidas da viúva ardente, com a sua meticulosidade e seus infindáveis discursos. Mesmo assim, somente com a sua companhia, conseguiu satisfazer a viúva que ficou encantada por ele. Calvino também debocha da guerra. O exército do imperador Carlos Magno, parece um “clubinho”: só ganha título de paladino aqueles que cumprirem devidamente o código de cavalaria. Fato inusitado é que Bradamente, uma mulher, faça parte do clube. Os paladinos sempre foram homens. Nos contos medievais, as mulheres existem para serem salvas. No decorrer do livro, percebemos que tudo que Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez possui é o seu nome. Foram os grandes feitos e as glórias advindas de suas ações (devidamente inscritas no código de cavalaria), que lhe concederam lugar como paladino de Carlos Magno, rei dos francos. Sem esse nome ele não passava de uma casca. Torrismundo é a personagem que coloca as glórias de Agilulfo à prova, e este sai em busca da verdade. Antes que o caso se resolva completamente, o cavaleiro desaparece deixando apenas a armadura branca. Essa passagem nos leva a refletir o que somos sem o nosso nome, sem nossa história. E se um dia acordássemos sem identidade e ninguém lembrasse de nós? O que somos senão a imagem refletida no olhar do outro?