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“IMAGINAR A EVIDÊNCIA”

Álvaro Siza Vieira págs. 17-31, EDIÇÕES 70 LDA. Junho 2019.


(Título original: Immaginare l’évidenza, 1998, Gius, Laterza & Figli S.p.a., Roma-Bari)

A relação entre natureza e construção é decisiva na arquitectura. Esta relação, fonte


permanente de qualquer projecto, representa para mim como que uma obsessão:
sempre foi determinante no curso da história e apesar disso tende hoje a uma extinção
progressiva.

(…)

Perde-se assim a imagem de continuidade da natureza em relação às cidades e este


fenómeno continua a aumentar, nos países em vias de desenvolvimento, de modo
terrível. E todavia, esta alteridade é essencial para a concepção do projecto.

Já nos meus primeiros projectos ao longo da marginal de Leça da Palmeira, esta


preocupação está claramente expressa. Aquela área também se caracteriza, de facto,
pela presença de um limite. Um muro, suporte da zona urbana, delimita a praia, as
rochas e o oceano, com toda aquela força que o Atlântico possui. A natureza ali quase
não era perturbada, graças à existência de uma zona de protecção, por motivos
militares, que impedia a construção em toda aquela área. Por isso, só em alguns
pontos, e por razões indispensáveis, foram construídos edifícios.

O primeiro projecto, o restaurante Boa Nova, foi resultado de um concurso aberto pela
Câmara Municipal de Matosinhos em 1956. Aquele local foi escolhido porque se
caracteriza por um promontório rochoso que se eleva e avança pelo mar dentro. Um
local predestinado que, na memória dos habitantes, está ligado à vida de um poeta
romântico local, António Nobre. Esta extraordinária beleza incutia temor no arquitecto
que na actividade dava os seus primeiros passos, porque, como mostram sobretudo
algumas experiências recentes, muitas vezes construir num local muito belo equivale a
destruí-lo.

A evolução do projecto foi influenciada pela extrema atenção ao equilíbrio existente e


tangível, entre a natureza, uma capela e um pouco mais longe, um farol. Não é por
acaso que o restaurante é baixo: não se podia sobrepor à capela por razões afectivas,
mas também porque o próprio projecto do edifício não o consentia. O objectivo
principal consistia portanto em deixar prevalecer a capela, sem que por isso o
restaurante se tornasse uma construção sem carácter: era necessário conciliar a
autonomia do edifício com o que pré-existia. Numa primeira fase, o projecto
acompanhou o perfil das rochas de forma continuada, agarrando-se a elas como se
fosse uma âncora. Só depois, constatando a excessiva descontinuidade, diria a
imaturidade, do perfil do edifício, se optou por uma cobertura praticamente
horizontal, enquanto que a articulação das cotas das diferentes funções permitia ao
restaurante assentar constantemente em cima dos rochedos. Esta primeira
experiência revelou-se assim um exercício extremamente útil para o aperfeiçoamento
da sensibilidade em afinar a intensidade da expressão, num contexto assim tão rico.
Poucos anos depois, a Câmara decidiu construir uma piscina, algumas centenas de
metros a sul do restaurante, sempre ao longo da costa. Foi escolhido um local onde os
rochedos se fechavam num pequeno lago, e foi encarregado do projecto o engenheiro
Bernardo Ferrão, irmão do Fernando Távora. O qual, tendo compreendido o notável
impacto do projecto na paisagem, decidiu utilizar a colaboração de um arquitecto, e
inesperadamente, propôs à Câmara o meu nome. Inicialmente o engenheiro Ferrão
tinha desenhado uma piscina limitada por quatro muros. Pelo contrário o meu
projecto pretendia optimizar as condições criadas pela natureza, que já ali tinha
iniciado o desenho de uma piscina. Era necessário tirar partido dos mesmos rochedos,
completando a contenção da água somente com as paredes estritamente necessárias.
Nasceu assim, uma ligação muito mais estreita entre aquilo que é natural e aquilo que
é construído. Todavia, graças à experiência anterior, aquilo que foi construído foi
definido de uma maneira mais clara e autónoma.

Uma arquitectura de grandes linhas, de paredes compridas, buscava um encontro com


os rochedos no lugar adequado. O objectivo consistia em delinear, naquela imagem
orgânica, uma geometria: descobrir aquilo que estava disponível e pronto para receber
a geometricidade. Arquitectura é geometrizar.

Ao mesmo tempo era determinante resolver o problema do acesso. Dispunha de


pouca profundidade, pois a estrada era muito próxima da costa. Além disso existia um
muro, de pedra rebocada, com mais de um quilómetro e meio de comprido, que
separava claramente o nível da marginal do da praia. Para além do muro, só um
estreito carreiro dividia a área da estrada da praia: como entrar? A solução consistia
no desenho de percursos em ziguezague, que produzem uma contraditória sensação
de profundidade, decisiva na definição do ingresso no recinto.

Contextualmente, funcionava a variação de luz, obtida com a passagem gradual de


uma zona no exterior para uma de penumbra que, finalmente, conduzia a um último
percurso, já ao ar livre. Aqui os olhos dos banhistas eram protegidos da luz forte
proveniente da praia, graças à presença de muros altos.

Chegava-se, então, a uma pequena ponte e depois à praia, epílogo do percurso que
encontrava, na ideia de profundidade e no controlo de luminosidade, os elementos
essenciais de definição.

Foi precisamente a escassa profundidade da área de intervenção que fez com que as
várias galerias em paralelo dessem uma extensão longitudinal ao projecto, que assim
se tornou o prolongamento ideal do trabalho da Boa Nova, não obstante a distância de
um quilómetro e meio.

Naquele momento começava a tornar-se evidente a necessidade de coordenar as


intervenções na zona, a fim de que esta relação e o carácter do lugar não se
perdessem. Elaborei então um plano já em 1974, que contudo nunca foi levado para
diante.

(…)
Esta primeira e estimulante experiência de trabalho, com a natureza e as pré-
existências, permitiu-me sentir a indivisibilidade entre ambiente e organização do
espaço, não obstante a presença de fortes pressões que, geradas por interesses
económicos, se empenhavam em intervenções desconexas, destruindo a continuidade
do território.

Muito tempo depois fui convidado a construir um outro restaurante, que conclui o
projecto da piscina. Colocado no lado norte, de onde o vento sopra, o restaurante
constituirá a coroação dos rochedos que, naturalmente inclinados a quarenta e cinco
graus, já protegem o litoral.

Estes projectos ao longo da marginal de Leça da Palmeira não são, como já expliquei,
consequência de encomendas directas, antes dependendo da consciência da
imprescindibilidade da colaboração e da interdisciplinaridade.

A Boa Nova é um projecto de uma equipa de cinco arquitectos1, que naquele período
trabalhavam no escritório de Fernando Távora e do associado Francisco Figueiredo.
Uma vez que nem um nem o outro, por razões diversas, podiam participar no
concurso, decidimos, nós colaboradores, tomar a cargo o projecto. Távora tê-lo-ia
sempre assinado, uma vez que nenhum de nós era ainda licenciado. Todavia, antes de
partir para uma viagem com a duração de um ano, graças a uma bolsa de estudo da
Fundação Gulbenkian, Fernando Távora acompanhou-nos numa visita ao local e disse:
“O edifício deve ficar aqui”. Escolheu aquele local dificílimo, mas, realmente,
fantástico: vencemos depois o concurso sobretudo graças àquela colocação, que
nenhum outro tinha proposto. A solução surge hoje como óbvia e inevitável, embora
na realidade, ver primeiro seja intuição difícil, só possível com a ajuda de uma grande
experiência.

1
Alberto Neves, António Meneres, Joaquim Sampaio, Luís Botelho Dias e eu.

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