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EDITORIAL 1 EM ALGUM LUGAR DO PRESENTE: ORMANCE, PERFORMANCE ART OU PRATICA ESPETACULAR? inhando pelas ruas de New York em 1990, parc cheia de espectativas diante do aviso; “The performance stars at spm” - “A performance comega as 20 horas”. Haveria ali alguma apresentagao de venguarda, tipo um evento {estranho que nfo sepoderia chamar nem de danga nem de teatro? Para minha decepeao, logo descobri que setratava Qa simples apresentacao de umn filme. De fato, performance, em inglés, significa uma ago realizada perante uma iatGia, como uma danga, uma pega reatral ou musical, ou simplesmente uma ago realizada. Entio pode-se dizer, por exemplo “The performance was excellent” - “A apresentacio foi excelente”: ou “The engine performs well on cold. weather" -“O motor funciona bem no tempo frio”; em ambos os casos o emo no corresponde a ato “performatico” de vanguarda! (0 termo performance foi usado inicialmente nos Estados Unidos no final dos anos sessenta, referindo-se a agdes em geral, acrescontando-se o termoarte-(performance art)-para referir-se a uma forma espstacilar espeeitiea,reslizada pela vanguarda desde o Futurismo co Dadi", que vtiliza-se de varias midias para romper com abarreirs entre aarte ea vida, bem como entre as artes. Exemplos de performance art seriam os trabalhos de Joseph Beuys, Laurie Anderson, Yves Klein, os cexperimentes com movimento cotidiano na Judson Church, ec. A confusiio comega quando o termo perde aparticula “arte” epassa aser usado nos Estudos da Performance (Performance Studies) de forma bem mais ampla. Entio, quando Rickard Schechner fala de performance, esta se referindo a evenios, cofidianos ou nao, relacionados a arte, aos negécios, & tecnologia ea vida intima cimerpessoal. Outta distingde que nos parece necesséria $ entre PeHformance Art e Performing Arts, A primeira refere-se iquele ‘campo especifico jé apresentado, enquanto a segunda relere-se as artes cénicas em geral. Ou seja, um diploma em Performing Artsinclui teatro, danga ¢ miisica, enquanto que um diploma em Performance Art inclui aarte de vanguarda que explora o limiare 0 rompimento destas formas eénica, Patrice Pavis aumenta a turbider.dessas iguas, utilizando-se da definigao de performance act para apresentar 0 termo performance: ‘performance ou perfomance at, expresso que podera ser traduzida por “eatio de ates visuais, surgin nos anos xessenta,.. A performance associa. sem preconceber iéias, artes vsusi, teatro, danca, misiea, video, poesia e cinema, Eapresentada no emt featros, mas em inuseus ou galerias de art... Enfiize-sea efemeridade ea falta de acabamento da producio, maisdo que obra de arte representadae acabada’ Sem distinguirperformance de performance art, Pavis utiliza-se detum terceire termo para definiro que Schechner trata de performance, ¢ wadur Performance Studies (Estudos da Performance) como Estudos de Prétices Espetacvlares © Cultarais Os rerfirmance studies foram eriados nos anos 70... para enslobar o estudo do conjunto das manifestagies espelagblares on culturais que vao dos rites, das danas foleléricasaosespetculos de teatro, dana, mimic, teatro comporale pritiasrtuafizadss da viddacotidiana, Quase sempre traduzida por prtica espetacular,anocio de performance esta mais ligada@idéiade tealizaruma ago espectacor, so paso quea performance (oueteperfermitica) €eoneebida em funsa0 do que fazer os 7 alo e performance. fos espétactilares ‘orgaaizados’ Esta busca reconciliar eestudar os dois aspectos -o da performance (agio re «speticulo (o que évisivel,remetendoa uma imagem, a um espectador). Este niimero 5 da Revista Repertério Teatro & Danga busca 0 dilogo entte as dist Fazenda, Mostrando o fazer, Explicando © mostrade - muitis vezes sobreposios, como 106 ((nstituto Goethe - Salvador, julho 2000). Tesricos e priticos de diversas linhas de pens ‘uma de nossas performances em meioa desorientacdes (Browning) extra-cotidianas (Bena ritualisticas (Cohen © Martins) ¢ interartsticas (Sehlicher, Rodrigues, Molin). Para sua 5 Olhes (Goebels) Esperando Godot (Teatro de Varal), em ReDoble (Irigo), apresento a (Matos) corpo do artista (Greiner, Farias): fragmentos Sem-Tidos (Fernandes) de corsjosa PalhagosParaSempre. Yiowg (Strack)! 1 Rowles Goldberg, Peformance Ars From Futuriem tothe Present Londee: Thames & Ts, 2001 2 Dieinnarin de Tetr, Sto Pablo: Perspect, 1999, 28, Ibid, 28h, # Anmindo Bidn ¢ Chrisine Greiner, ore. Snocenoloe. Texts Slecionados (Sto Paulo: Annablume, 1998), SPalestra,/ Enionse de Pesformancee Poti dss Américas, Rio de Janeir: UNIRIO, Julbo de 2000 EPERTORIO, TEATRO & DANCA 03. rh PROSCENI DESORIENTACAO ‘Abertura da Mesa Redonda 0 Futuro da Performance, parte do evento Ao: Performance Arf, Instituto Goethe, Salvador, lho 2000 Barbara Browning Barbara Browning ¢drciora doDepartanento de Performance Stoies da Universe de Nova York, onde ensna dese 1995. Antes iso, sso 6 anos como profs do Dep. se inglés & Princeon Universi, Compltou » dovtorato em Liceatara Compara a Yale LUniwensty 4m 1889, «passou i ans 9 Salvador camo holssta ds Fundocio brit, Eason de dos ivros~ Sto: Resitonce i Movion publica em 1995) fafecvous Rtn: MerhaphorsofComagion athe Spread o rican Culnre (gublicadoer 1998) interessante refletir_um pouco sobre a nossa ‘ou abrir essa mesa tentando fazer uma ‘pequena introduso a0 tema “O futuro da performance”, ainda que, na verdade, preferia dar nio uma introducao, nem uma orieataeao, mas sim uma desorientacao & noglo ds performance. pois a desorientacdo da performance ‘me parece 0 fio que vai unir as apresentagdes dos outros participantes da mesa. Por incrivel que possa parecer, 2 paluvra “perlormance” - ou mais precisamente o termo “performance studies” me di mais dificaldade em explicar os meus interesses académicos em inglés do que em portugués. Apesat da popularidade. (uso cortente) crescente da palavra performance nos altimos anos (e tendo voltado fecentemente, com Ciane Femandes, de um éongresso sobre a tema no Rio de Faneiro, annde en ‘uv todas as. variagdes. imaginaveis do termo, inclusive 0 verbo “performatizar”, ¢ 0 substantivo “performatividade”, palavra que eu mesma vou invccardaquis pouco performance, agit, ainds soa estranho E Gexotamente isso que a disciplina (ou, como algumas pessoas dizem, inter-disciplina, ou a pds disciplina) de Performance Studies quet_ fazer: éesfamiliarizar 2 nogio do que constitel uma performance. E clara que se poderia dizer a mesma coisa sobre 0 objetivo da arte perfoomética, on Performance Arte, que acompanha, em termos hhistoricos, 0 desenvolvimento da disciplina académica Mas as preocupagées da teoria da performance © da arte performética (a teoria e a pritica) tém seguido trajetérias diferentes. Hoje vou contar muito brevemente a trajetoria (e6rica dos esttilos académicos de performance no meu pats, os Estados Unidos, ¢ depois considerar as manciras através das quais @ tmabelho de alguns artistas performaticos contemporineos - inclusive os presentes aqui hoje - trata do desenvolvimento, da Gisciplina. O tema dessa mesa € “O-Fumuro da Performance”. Particularmente, no endo uma praticante mas sim uma esiudiosa da performance, sinto uma certa inseguranga em prognosticar 2s tendéncias da vanguarda da performance. Mas acho preocupacao com o futuro, com a vanguarda, em contraposicfo as performances que se pressupdem a- temporais, hisirieas ou, mais precisamente, “tradicionais”. Nesse sentido, vou refletir um pouco sobre as divisbes categéricas da performance que serio claboradas na apresentagio de Fernando Passos sobre o Maracatu. ‘Meu colega Richard Schechner tem sido um dos proponentes dessa disciplina académica nos EUA, ¢ de fato foi ele quem, nos anos 70, mudou o nome do departamento de pés-graduagio de Teatro da New Nork University (NYU) para “Performance Studies”, Atualmente nos EUA sé existem dois departamentos do Performance Studiesa nivel de deutorado-aNYU ¢ a Northwestem, emhora o mimern de pequenos Programas aumente a cada ano, Schechner era - continua a ser - um direter de teatro experimental ‘com interesse no chamado “interculturalismo™ - isto 4,0 uso de ténicas de performance aaio-ocidentais, principalmente aquelas de carter rita, no teatro vanguarda. A colaboraeao dele com 0 antropélogo Victor Tumer proporcionou no $6 uma experi: ‘No teatro, mas tamibem uma metodblogia de pesquise de campo. Tamer impulsionava seus alunos a ver 4 ohservacd0-participante através da. lente | Essi troca de perspectivas for claborad de forma mais comipleta por Schechner em seu livro Between Theatre and Antropology. publicado em 1985. Apesar da produtividade dessa troea intelectual entre as duas disciplinas, o interculturalismo tem comportalo cada vez mais preocupagao politica nos iiltimos anos: quando os pensadores pés-coloniais comegaram a chamar nossa atengio para a complexidade politica da apropriagiiode eulturas nao ocidentais pelos artistase académicosocidentais. Dessa tensio politica surgiv uma nove geracio de estudiasos da performance, uma geragio. que tem como interesse central mao 9 interculturalismo ¢ mas sim opatencial politi¢n da performance de combater umanocio fixa da identidade do ee sejs ese tm euto racial, seal, tien, cu de Cisse ect REPERIORID, TEATRO & DANCA Mt oS Uma dessas teoristas mais influentes foi Judith Butler, autora dos livros Gender Tromble (1990) Bodies That Matter (1993), nos quais ela enfocov a performance do género na vida cotidiana, também tocando nas encruzilhudas de sexo, raga © classe. Enquanto Butler e outros de sua gerago tém ‘examinado certos fenémenos culturais com aspectos ‘eatrais - principalmente 0 drag, ou s¢ja, 0 travestismo - sua anilise da eficicia politica esta entrada em grande parte ndo sem uma nogao da performance teatral, mas também na teoria lingitisticade performatividade A. performatividade, on melhor, a locug: performatica, é umanogao que foi elaborada por J.L. ‘Austin em How To Do Things With Words, um trabalho feito nos anos 60 © que $6 recentemente ganhou uma interpretagao mais politizada. Austin revelou como a linguagem performatiza (1!) isto & como as palavras ndo s6 descrevem a acao, mas também a realizam, “Eu prometo” - “Eu juro” “Eu batizo” - “Eu abengdo” - “Eu maldigo” ... essas sio locugSes que atualmente mudam as cois: Austin especificou que tais locugdes, contexto teatral, ndo teriam o mesmo efeito, ou seja, nao seriam performativas, pois iriam funcionarcomo representagdes de atos linglisticos. Ele distinguiu as locucdes performativas das constatativas - locucdes que descrevem 0 mundo como cle €, sem mudar aquelarealidade. Mas Butler insiste que, come a linguagem, performativa ganha sua fora através das normas sociais, a linguagem constatativa, ao deserever essas normas, mas de fato solidificando-as, pode ter conseqiéncias performativas. Por exemplo, quando nasce um bebé ¢ 0 médico anuncia “E menina!”, essa locucdo constatativa inaugura toda uma série de conseqiiéncias presumidas, da roupa cor-de-rosa A sandalia da Xuxa, até 0 hétero-sexo, o casamento ea reprodugao. Butler argumenta que as contraperjormances, de uma resistencia sitil & codificagao de género até 0 travestismo © a “desviacaio” sexual, chamam nossa atengZo para a performatividade da codificagio de género normativa, e para a performance de varios aspectos da identidade nao sé de sexo, mas de raca, de classe, de nacionalidade, ete. As contra-performances da identidade ou, nas palavras do teorista de performance José Muitoz, as performances da desidentificaco, nao interessams6 40s teoristas. Também constittem uma bos parte da arte performitica recente dos Estados Unidos. Os artistas afroamericanos ¢ latinos, como, porexemplo, os Pomo AfroHomes, Guilhermo Gomez-Pefia. Roberto Sifuentes, Coco Fusco, Nao Bustamante, ¢ Carmelita Tropicana, reproduzem os esterestipos culturais ao mesmo tempo que mostram sua’ teatralidade. Gomez-Peia, por exemplo, tem desenvolvido, na_iltima década, uma serie de performances do “espécime” entnolégico Chicano uma caricatura da latinidade que forca os espectadores a questionarem suas proprias nogdes da identidade latina e das snas préprias identidades. Nesse sentido, Gomez-Peiia oferece uma critica da performance “between theater and anthropology” - entre teatro ¢ antropologia (Schechner), - uma vez REPERTORIO, TEATRO 2 DANCA 06 que esse “between” pressuponha um “outto” étnico, ‘cru”, produtor de formas “foleléricas” prontas para serem apropriadas pelos Euro-Americanos em contextosteatrass. ‘Uma reeonsideragio da encruzilhada do teatro com a antropologia também mudou os estudos etnogrificos das performances _ndo-ocidentais, inclusive 0 meu proprio trabalho com a miisica € a danea da diaspora afticana. A performatividade, 0 poder de fazer as coisas acontecerem, néo é propriedade intelectual sé dos europeus ¢ curo- americanos. De fato, isso talvez seja a tradugio mais certa de axé, o principio Yorubé da eficacia cultural ‘que anima uma grande parte das performances dx digspora, O trabalho de Femando Passos sobre 0 Maracatu procura, de maneira parecida, claborar a teoria da performance inerente as formas culturais muitas vezes vistas pela lente inadequada do folclore. Mas a performatividade elaborada por Austin tem ‘conduzido a outras intervencoes na teoria e na pritica de performance, intervengées ndo baseadas na rage, nem na identidade étnica, mas sim em questoes oniolégicas do presente, edapresenca o que meleva 20 trabalho do Johann Lorbcer ¢ da Ciane Fernandes. A teoriste de performance Peggy Phelan escreve, num artigo importante chamado “A ontologiz da performance”: Aiinica vida da performance é no presente. Ape) formance néo pode ser guardada, gravada, docu- ‘mentada, ou participar de outra forma na circula- ‘¢do das representacdes. Uma vez que faz isxo, se toma ouira coisa diferente da performance... No campo lingiiistico, a locugao performativa com- partilha com a ontologia da performance essa incapacidade de ser reproduzida ourepetida. Essa insist€ncia na presenga espacial © temporal tem graves implicacSes para anog’o do objetode arte Primeiro, desruba o processo da coniodificacao. Mas no nivel metafisico, tem o potencial de interomper no s6 0 cédigo social nommativo, mas a base mesma dasubjetividade doespectador. Ostrabalhos de Still-Life do Johann Lorbeer e tam- bém as investigacies tedricas da Cizne Femandes concementes a base fisico-temporal da performance nos leva a desorientagao diante da performance. Essa desorientagio pode bid —f ‘* tomar uma forma bastante diferente das desorientacoes desi- dentificatorias_prati- cadas por Gomez- Pefia, ou pelas rainhas do maracatu de Fortaleza. Mas sto todas, de alguma maneira, tentativas, atrayés da performan- ce, ndo de representar ‘© mundo como ele é, mas sim de descons- truir nossa idéias sobre a realidade, potencialmente mudando o seu futuro, F c Performan ermnde Pasi, e<-profesior da Escola de Dangada UFBA. ‘profestr ei Flor inlerationa ‘University st crrevende tse de dauterado pars 0 Departament de Performance Stadcs na Neve York Univers Paranao parecer que eu estou pedindo licenga para © muracatu passer; para nfo parecer que cu estou pedinde para omaracatu entrar no seleto rol dos géne- ros eénicos convenientemente abrigados sob a rubri- ca da expressio anglofinica e angloténica "perfor mance art"; para ndio parecer que cu estou pedindo licenga para o maracatu participar deste debate sobre 6 fuiuro da performance art, para ndo parecer que eu estou repetindo, requentando 0 velho trope da subser- viéncia colonizada: para nio parecer que au estou ‘suze Marecatu de Baque Virado - Carnaval de 2001 REPERIORI, Mlaracatu ce AIT! Fernando Passos Comunicacio apresentada na Mesa Redonda O Futuro da Performance, parte do evento Acao: Performance Art, Instituto Goethe, Salvador, julho 2000 enganchado ne cacoete renitentemente interesseiro da humildade cordial simpética dos marginais, ou melhor, dos marginalizados de todos os quilates, ea ‘you querer comegar com uma tentativa de explicagao dos termos do contrato, ‘ou seja, cu vou falar inicialmente dos ‘conceitos que eu voututilizar aqui hoje. A minha expectativa, portanto, 6 de que a minha fala transforme e amplie a percepgio predominante, hegeménica e curocéntrica de que a performance art esti restrita a centos eventos artisticos situedos no cruzamento entre recursos c&nicos super high-techs ¢ uma predis- posigdo pessoal para testemunhos con- fessionais de uma existéncia por vezes minoritaria, mas inserida num contexto pretensiosamente universalista © peri- osamente humanista, Essa expectativa de que o meu blablabla tenha um certo feito transformador, essa esperanga de que minha fala faga (perform) aleuma coisa, esseentendimento de que o meu discurso tenha ‘como resultado uma a¢do € na verdadea questio cen- tral, um verdadeiro mito de origem das discussdes ‘te6ricas sobre performance. ‘Um dos mais concisos e explicatives relatos sobre 6 desenvolvimento dessas discussies tedicas sobre performance esti na introdugio de uma antologia chamada Performativity and Performance, onde: 0s editores Andrew Parker e Eve Kosoisky Sedgwick Avi? TEATRO DANCA 7 co um banho de clareza nesse enrolado novelo de idéias. Aqui yai minha traducio de suas palavras numa versio pouco literal ejocosa. Quando é que dizer alguma coisa vira fazer coisa? E como é que isso acontece? Se estas questies do tiverem nascido com a propria linguagem, elas tiveram inicio hé muito tempo, pelo menos no pensi- mento ocidental. O Genesis biblico, Platio ¢ Arist6teles passaram por Id. Mais recentements, em 1962, estas questies sobre as valéncias e poténcias da palavra foram colocadas explicitamente com a publi- cagao do livro How to Do Things with Works (Como fazer coisas com palavras), do filésofo britinien IT.Austin. Suas idéias tiveram uma ressonancia enorme no esctitos te6ricos das titi mas rés décades, Roloa um verdadeiro camaval de repetigdo desse idedrio, em discusses bastante produtivas, muitas delas com intensbes um tanto quanto eruzadas. Lim dos eruzamentos mais fecun= dos, porém ainda pouco articulado, foi e continua sendo a obliqua intersceco entre performativity (performatividade) e 0 monte de praticas, relagoes e tradigdes teatrais conticcidascomo performance. Essa coletinea editada pela Eve Sedgwick eo ‘Andrew Parker aponia paras indmeras possibili- dades, implicagdes e histérias re-imaginadas que estdo emergindo da conjuncdo entre performance ce performatividade. Continuando com as palavras de Sedgwick e Parker, -.porformatividads & um terme eujae valénci especificamente Austinianas t€m sido renovads nostrabahos de Jacques Derrida c Judith Butler. termo performatividade tem dotado de muito oder aapreciacao dasmaneiras pelas quais ident- dades sito repetidamente construidas através de pro- cess citacionais. Varins Sio as consequéncias dessa observagio de que identidades sio consiruidas. Uma delas 9 alto gran de boa yontadeem admitira presen ea.de uma dimensio performativa ou, se quiser rans formadora, em rituais, ceriménias e outros comporta- mentos roteirizades. Do outro lado desse especiro de msequéncias da idéia de identidade como constr 0, eS a constatagio de que os proprios ensaios feoricos também cumprem uma fungao performativa, Os Theater Studies vem ducsate ag titimas duns digcadas se reconstruindo e se transfermaram em per formance studies ou estudes da. performance, um campo bem mais vasto e abrangente, uma disciplina que ultrapassaa ontologia classica do modelo dacaixa prea, da quarta parede, para abragar uma cnorme gama de performances ou priticas performéticss que vio desde 0 palco tradicional até 0s festivaise folgue dos ditos populares e tudo mais que estiver no meio, tipo cinema, fotografie, televisao,simulagao computa- dorizaca, masica, performance ar, passestaspoliticas, cenidadas com a safe, culindria, moda, rit nisticos ete Foto: Suzana Yarns ‘Acessa aitura eu nem sei se esse meu esforgo into Gutério no sentido de trazer © maracatu pelo menos para lade daperformance artsob a genérica nibrica Naracatu do Baque Sotto - Carnaval de 2001 de performance era realmente necessario, jé que ew tenho ouvido muita gente boa falar que performance & tudé ov quase tudo na vida. Performance seria assim como a politica que, como o poderpara Foucault, esta igar. Se concordarmos que maracatu é tam- bém performance, entdo cu gostaria de comecar a esbogar aqui as caracteristicas de performance art dentro do maracatu, sinalizadas especificamente por umpersonagem do Maracatu Vozes d'dfrica no carna- valde Fortaleza esteano. Ea Michelle, Michelle ¢ um travesti transformista no vertor dos seus vinte e poucos anos que desfila semi-nua na frente da ala dos indios do Maracatu Vozes d'Africa. Logo atris do baliza e do poria- estandarte, a ala dos indios € a primeira, Ela abre, inicia o cortejo dos maracas. S6 para nao atropela 0 contexto hisiérico do desenvolvimento do maracatu ‘em Fortaleza, muitos estudiosos locais (como 0 com- positor, cantor, pesquisador ¢ maracatuzeiro, Calé Alencar) afirmam que.a origem temonta aos ritmos pausados e solenes dos Autos dos Reis do Co1 uma performance que scbreviveu ‘a abolicio da escravatura eque perdurouatéos anos Vinte nasruas € pragas de Fortaleza e especialmente no atrio da Igreja do Rosirio dos Negros. ‘Aorigem mais recente do maracatumodemo, acon- tece em 1936 quando Francisco Ferreira, também conhecido como Boca Rica, trouxe do Recife a idéia c a propria estrutura do maracatu que, na época, de acordo com 0 depoimento/testemunho de Seu Juca, balaeizo do Az de Ouro com mais de 60 anos de expe- rigncia de camaval em Fortaleza, compunha-se ape- nas dos seguintes brincantes. o porta-cstandarte, 0 baliza, os indios, a preta-velha © 0 preto velho, a calunga (uma baneea negra com alvas largas saias longas, turbante e argolas), 0 balaeiro que carrega REPERIORIO, TEATRO & DANICA 08: enorme cesto de frutas na cabeca, e finalmente a Corte Imperial com rei, rainha, principe e princesas. Atas deles sé a bateria com bumbos, triingulos e vozesentoandoa loa do ano. Naquele primeiro ano de 1936, versio de maraca- tudo Boca Rica desfilou durante as festas natalinas em meio a pastoris, reisados e presépios. Ponce de Leon, o Rei Momo de Fortaleza daquele ano, convi- dou Boca Rica para desfilar também na avenida durante 0 carnaval. Do carnaval, 0 maracatu nunca mais saiu, a ndo ser para apresentagdes em formato reduzido em espagos como o saguiio de chegadas do Aeroporto Internacional Pinto Marins, entre os stands comerciais de algum evento no Centro de Convengies de Fortaleza, ou ainda no recém- inaugarado Centro Cultural Drago do Mar. Nos cearenses somos predominantemente cabo- clos, mistura mestica de povos indigenas com o por- tugués. Para o maracatu de Fortaleza ficar parecido com o de Recife, ondea maioria dos brincantes tinha pele bem escura dos negros, Boca Rica optou pelo uso de tisna preta na cara de todo mundocom exceeao dos indios. Outra diferenga que marca 0 carnaval de Fortaleza & que todas 2s personagens femininas, tais como as rainhas, princesas ¢ pretas velhas, eram fei- tas por homens. Naquela época so homem participa- va Entdo, por exemplo, oshomens que desfilavam de rainha se sentiam mais °a vontade para encarnar 0 ‘feminino porque ficavam irreconheciveis coma m cara, o negrume da tisna preta, Estavam assim mais, resguardados em suas vidas fora do personagem. A. homofobia daquela épocando perdoava. Até hoje,em comparagiioa cidades maiores camo Rio ¢ Sio Paulo, a vida gay é mais circunserita, mais restrita, pesada- mente marcada pelo que comumente se descreve como 0 cardter mais tradicional e conservador da sociedade brasileira, no Nordeste do pais. ‘Nas apresentagdes do Yozes d'dfrica que cu vim 2000 em Fortaleza, tanto na Avenida Domingos Olimpio durante o earnaval como na Avenida Beira- Mar durante o periada de férias que antecede as brin- cadeiras momescas, 0 corpo da Michelle se apresen- ‘tou sem tisna preta na cara ou as pesadas roupas de veludo escuro das rainhas. Nas verdade, 0 corpo da Michelle ¢ 0 mais exposto de todos os corpos semi- nus dos brincantes da ala dos indios do Vozes. Diferentemente das cainhas, a performance da Michelle nao & exatamente drag, dragqueen. Afinal de contas, ela se veste e age como mulher o tempo todo. Na vida "real", Michellepassa por mulher legal. Eu conhecia Michelle no fim de janeiro de 2000n0 barracdo ¢ oficina do Yozes. Lé ela mora com mais sett homens, a maioria assumidamente bicha. E uma comunidede verdadeiramente alternativa, uma fami- Jia mais queer do que gay por ultrapassar 0 formato assimilacionista do casal pepai-papai ou mamic- mamie da América do Norte, Com alguns cabegas- chaves responsdveis pela execucio de determinadas tarefas, tedos na verdade fazem um pouco de cada coisa. Desenham ¢ costuram as proprias fantasias €a3 dos amigos, fazem personagens diferentes de acordo com 0 evento ou ocasido, ¢ se ajudam mutuamente a aplicar amaquiagem. ‘Numa das entrevistas que eu gravei com Michelle, cla me disse que fazia shows de travesti numa boate da cidade. Era um artista transformista que dublava jcanas vestide de mulher. De acordo com Michelle, as boates em que ola costumava s apresentar em Fortaleza fecharam todas. Hojeemdia, sua vida girava totalmente em tomo do maracatue do seu nove namorado. Eles formam um casal constru- idamente heterosexual, com a presenga do homem bofe de um lado e da performance art permanente da bicha traveca do outro, A batalha pela sobrevivéncia 4que Michelle enfrenta numa terra sem boates, sem ter seu proprio lugar para morar, nao € muito diferente do esforgo de resisténcia dos atuais Tromembés. Residindo em 20 niicleos de povoamento a 270 kilé- metros ao noroestede Fortaleza, os Tremembés ainda do lutando pela posse de suas terras que até hoje ainds no foram oficialmente demarcadas. So 500 anos de resisténcia pesada ‘a perversa mistura de cinocidio e genocidio, ‘A julgar pelos movimentos que Michelle execute no aifalto da avenida Domingos Olimpio, sua "auten: ticidade” indigena é quase invisivel. Nio tem nada a vver com as qualidades hieraticas de movimento que eu costumo assaciar com representages do esieresti- po indigena: o corpo pesado cedendo & forca gravita- ional, 0 foco interior, numa atitude de compostura individual. Passariam pela minha cabeza as imagens televisivas de um Toré, talvez, o ritual de danga, canto © instrumentos de sopro e percussio que os “Tremembéscelebram durante a colheita docajil, Nao, nada disso. Michelle ocupa uma area relativamente ‘grande em seu desenvolvimento espacial na avenida Airis do porta-estandarte e “a frente da coreografia de ‘gnipo dos indios, Michelle simplesment. sobre uma passarela imagindria cheia de curvas redondas como o seu corpo. No seu caminkar estreito € apertado, ela rebola, movimentando a bunda como se estivesse vestindo uma saia muito justa, reminis- cente das suas noites de gléna como artista transfor- mista. Com uma langa nas maos, ela levanta os bra- ges, mais para mostrar os peitos hormonalmente cons- ‘truidos, abela pintura do corpo e a sumarissimea fanta- sia tipo tapa-sexo, do que propriamente para ameear " selvagemente” a platéia. Nas caleadas, criangas, mulheres grividas, pessoas daterveira idade, todos comentam arespeito do enig- ma do género de Michelle: homem ou mulher? Em unissono, adolescentes abusados gritam, chamando Michelle de gostosa, maravilhosa ¢ tesuda, numa intensio menos de agredir owamedentrar emais para demonstrar scu aplauso pela exuberante sensualidade do transformismo de Michelle, Fico imaginando que asambiguidades sexuais desse grupo de adolescente: ficam também expostas neste animado ¢ 20 mesmo tempo confronto deperformances, cantoras am EEPERIONO. FeaRO & nance EAIRO & DANCA, Foto: Pavers Fea eee Graduacéo em Artes Céniess e da Escola oe Teao do UFSA, PhD (199) -m Artes & Humanidades pela New York University, Petey eet Movement Studies, New York. E autora do livro Pina Baus en ee eer aoe : Pee ree eet cg ius Ex ereio que nossos corpos tém sido compestos isto [de imaginagio] por milhdes de anos; é uma evolugdio muito longa, ¢ nés contemos a imaginagao Sr mosses compos fisicos mas esta imaginagao nao seadade sozina; ve do universo. Kazuo Ohno Se quisermes levar is élkimas conseqiiéncias 2 superacio das nogies tadicionais de arte, temos que proceder a uma desvalorizagao relativa de nogdes Clussificatérias [danga, teatro, misies, Spera. video, pintura, deseno, ete-| cuja importincia histrica ¢ Inegavel mas cuja produtividade alual ¢ ciscutivel. E pleciso consiruir noyies estruturalmente iransversais € transcisciplinares que fornegam um quadro alternative as arrumagées tradicionais ¢ se revelem adaptadas @ diversidade multimoda da criagio atual fomezendo-the hipoteses ¢ dados iiteis de reflexio polemica em vez de as condenar ao estéril prolongamento das discusses cm tomo de ‘lassificagdes caducas Alexandre Melo Nilo estamos mais em umn momeato de busca de singularidade, de unicidade, de distingdo. Ao contririo, 0 objeto artistico & agora um o3jeto plural ulti-direcional, contaminado, ... A liaguagem da era Contemporanca 6 a linguagem do contigio, da com= fusdo. ¢ uma inter-ingua que se referenda sobre a palverizagae do real, absorvendo diversas expressoes {scultarne diferentes eampos do conhecimento. Ligia Canongia 0 FUTURO DA PERFORMANCE: MULTIPLICIDADES SENSIVEIS £ (IN)VISIVEIS Ciane Fernandes ‘Comunicasio apresentada na Mesa Redonda O Futuro da Performance. parte do evento edo: Performance Art, Instituto Goethe, Salvador, julho 2000 ‘As formas diferenciadas ou nio tradicionais de arte, dentre elas a Performance Art, possuem, por nnatureza, caracteristicas e definigdes cada vez mais mutaveis © distingSes cada vez mais ténues. Como delimitar 0 que supostamente ja teria se tornado uma tradiczio, como no caso da Performance, se, de fato, ela constantemente se redefine enquanto forma de ate? A performance, enquanto géneio multimeio & interdisciplinar, vinculando arte, politica, ciéncia, vida cotidiana, pessoal e social, influenciou c se dei- xou influenciat por todasas artes. Assim, nose pod hem sc necessita, distinguir 0 que é¢ 0 que nio é Performance. Questdes mais relevantes do que deli- mitagdes formais merecem atencao naarte contempo- tanea, Dentre clasestio o tempo, a transfarmacao, €0 ‘corpo, tratadas pelo artista performitico. ‘© futuro da performance? Mas performance duragdo, acontecimento no tempo... performance & tempo, ¢-vento: “O tempo Eum pouco como o vento. O vento, a gente nio vé; ve os ramos quc cle sacode, a pocira que cle faz subir. Mas 0 vento mesmo, esse hinguém v6", A performance retrata um de nossos ‘maiores dilemas: sermos eres macrosc6pices, vulne- rriveis ao tempo, envethecendo a cada segundo, mas compostos de particulas clementares imutdveis. Ou soja. enquanto tudo que tem forma, inclusive nossos corpos humanos, envelhecem irreversivelmente, sua constituigao mais intima - os elétrons, protons ¢ neu trons - ndo evolucm, nao sc transformam. E sobre tal paradoxo que o quimico Tlva Prigogine tem criado hipéteses interessantes. Antes de abordar a teoria de Prigogine, porém, circulemos por alguns pré- conceitos. ‘Até Newton ¢ Kant, 0 tempo era absoluto, uma categoria a priori da existéncia, como se um rel6gio ‘universal marcasse um fluxo independente da expe- riéncia de caca observador e anterior aes fatos. Este tempo absoluto pressupunka que mesmo o que niio é visto nem comunicado existe a priori. Einstein rom- peucom esta metafisica, propondo um tempo relative Griado pela matéria, consistindo nos prépzios fatos "ts Johanses Odenth, “The Human Being is Not the Cente of me Universe On te ii Diray of Kazuo Ohno" in alle ntemacional/ Tene uel jue IL, November, 1995: 26,27 “San tormn da Performance’, in Thaterscrif -Extr Dezentbro 199%: 119-121, » Eyenduva Pla, Museu de Are Mederma da Bahia, 99. + Jean Cluede Carmen Care, Delumeau, Eco ¢ Goole, Enireistas Sobre tim dos Tempos Rio de Janeiro: Rocco, 199: 165. REPERTORIO, TEATRO DANCH 10 enquanto mensgens. Assim, cexistir é comunicar-se, relaci- ‘onar-se, oriando 0 tempo ‘Uma prova disso sao as estre- las, jé que a fiz que vemos hoje aconteceu. de fato, hé um milhao de anos no cu. Outros teoricos tim sugerido ainda o tempe enquanio ordem e desordem do sistema. Ou seja, o tempo ndo existe, mas sim a ordem e a desordem. A ten- déneia natural dos sistemas & da ordem para a desordem, 0 que pode ser invertido apenas com 0 investimento/gasto de energia. Temos assim uma crescente ontropia, ea tese & de que o universo caminha para uma morte térmica onde tudosera desordem. Porém, Prigogine prope uma bifurcacdo do tem= po, um ponto de tamanho caos onde a ordem nto somente gere a desordem, mas esta itima passe @ ‘gerar uma nova ordem (nd retorne & antiga ordem, com gasto de energia). Ou seja, a partir deste ponto, sistemas autonomos criariam sua prépria ordem, sem ums imposicao extema Esta tese transgride a nogio de oposicoes Dindrias como ordem- desordem,certo-errado, bom-ruim, abrinéo para uma multiplicidade de opedes, um futuro bem menos centrado no ‘homem, na razio, e em formasa priori de orga- nizar 0 universo ¢ nos- sas percopgbes © rela- ees, Tal tese valoriza a matéria como autono- mamente inteligente, criativa ¢ geradora de novas maneiras de orza- nizar eestruturar a exis- ‘éncia e a relacao entre as diversas formas. Nao se trata apenas de uma tomada de poder pelos ja tradicionalmente excluldos: 0 compo, a mulher, ox animais, a natureza, as sensagoes, ete. Trate-se de ‘uma difusdo radical do poder, que passa a habi- ‘ar corpos, animados ou no, pertencentes a0 mundo da matéria. Tal tese afeta nossa relagio com o mundo material e, inevitavelmente, a produgao e comprecn- sio de objetos de arie © daperformance. “Jean-Claude Carré ii 159, Ssephn ly Gould. bid, 36,37 Foto: Duane Mictals REPERTORIO. TEATRO & DANCA 1 Se somos nds os tinicos seres com “consciéncia”, come ni acreditar que deve- mos, de fato, determinar a ordem das coisas?! Lembremo-nos de nossa historia de frustracdo ego- céntrica, viajando também em questées do espago Apenas no final do século XV descobrimos que a Terra AP vic cstavano centro do mun- do, Apenas em 1921 0 sol ‘ deixou de ser considerado 0 centro do universo. Hoje sabemos da exisiéncia de centenas de milhdes de s6is. “Fm 4,5 bilhdes de anos, 0 Sol terd queimado toda a sua energia ¢ a Terra serd inabitivel. ... Sublinhemos que este seria o fim de nosso mundo, mas 1200 fim do mundo”. Asuprema- cia do género humano baseia-se em definigées de inteligéncia ¢ consciéncia tendenciosamente feitas por nés mesos!!! Ha 1,8 milhdes de anos, porexem- plo, o Coeficiente de encefalizagio dos yolfinhos era maior que 0 dos hominideos. Nossos parimetro: construidos a partir de modelos antropocéntrico: dificultam a compreensio de inteligéncias diferentes danossa, Noentanto, podemes comprovar a habilida~ de desafiadora de muites espécies, sobrevivendo tcimosamente ¢ com sucesso a tantos contratempes © atentados, muitos deles humanos. Nao no mos também dos critérios que definem os maior poder: uma questio de critérios. Se voce valorizaa consciéncia, voeé faz do homem o senhor do mundo. Se voce valoriza a longa duragdo € 0s grandes nimeros, as bactérias nos dominam de modo incontestavel. Entre 0s mamifferos as espécies mais présperas atualmente sio 0s antilopes, 0s, ratos, 08 morcegos”... “evolugio” ies, na irea da biologia, genética e embriologia, ha também uma bifurcego, uma rota diferenciada ¢ imprevista: a volta de um grupo de seres a0 mar (baleias, golfinhos, ete.). A evolucio nio & um processo linear, tendo o ser humano como cume de comploxidade © aprimoramento. De fato, assim como 0 préprio tempo, a cvolugio ovorre de forma talvez espiralada, tridimensional, em ¢ imprevisias ditegdes muitas vezes \eas, por vezes “retrocedendo” (como nocaso da baleia que, no inicio do século XX, nasceu com ‘uma pemal), ov com “saltos” imprevisiveis, criando diversas formas especializadas e extremamente bem adaptadas 20 meio. Esta nogio expde ando-evolucao, ¢ sim o aumento da complexidade ¢ da diversidade criativa no ambito da historia, da biologia e das artes. O pos-modernismo ja propés o fimde uma v: supostamente meis & frente que 2s demais eriagdes culturais Outra sindrome de antropocentrismo ¢ interpretar 0 mundo como uma grande projeg3o humana, os objetes como simbolos de nosso inconsciente. O corpo do performer é mais um entre lantos, simullaneamente recenhecendo ¢ transgredindo nossa submissio ao tempo, nossa Jimitada percepcZo do mundo visivel einvisivel: Sea minha raiva contra o empobrecimento das ideias, 0 narcisismo ¢ © exibicionismo sexual dissimulado da maior parte da danga considerada moralizagao putitana, verdade que eu amoo corpo, seu peso verdadeiro, sua massa € sua ndo-realgada fisicalidade. E minha preocupagao, acima de tudo, revelar as pessoas como se comprometem com varias espécies de atividades - sozinhas, com cada uma ‘one Rainer, in Sally Panes Green fillage 1903. Aran Gane, Per 5s) Omioogia da Pevtrmance Represeatagin sem Predugio” in: Reviea + Jean-Claude Cariéee, opsitp. 16. © Paleta prferida ma New Yetk Univesity, 1998, das outras, com os objetos... ¢ dar peso as caracteristicas do corpo humano em relago & dos objetos, Jonge da super- estilizagio do_ bai- larino. Interagao © cooperagio, de um Jado; substancialidade eiingrcia, do outro’ A performance extapela © humano e as relacdes humanas, avancando para uma re~ dcfinicdo constante de nossa relago com todas as formas de vida. orginica ¢ inorgnica, transformando valores, crencas, percepgies, aute-imagem, relagées sociais € existenciais; imprimindo i umeariter dehonestidade critica a condig30 humana ° na coatemporaneidade performer € 0 agente de interagao ¢ transformacio, no 0 sujeito central da ago. Para o performer. tudo. tem vida, opinido, hist6ria, sabedoria, © intemo € exposto eo extemo é incorporado. Esterilizados materiais clinicos tomnam- se referencias a secregdes humanas (vide Fotos: Odonto-F-Légica). Como os montes de gordura nas esquinas das salas com instalagées ¢ performances de Joseph Beuys, hi uma relacdo quase de simbiose e troca, 0 invés de poder, entre os corpos. A gordura havia salvado sua vida apos um acidente de aviao, regenerando sua pele enquanto encontrava-se entre ndmades, os tartars, da Criméia (regido entre Alemanha ¢ antiga URSS). A partir de entio, expos a gordura como um elemento essencial ¢ (no por coincidéncia, mas por natureza_e definicio) muvel (s6lido ou Tiquido conforme a temperatura) © invisivel. A esfera do dito Sinvisivel” nfo pertence a um “outro mundo”, Muito pelo contrario, retrata a Inaptidio visual de nossos ‘lane Fernandes em Odonto- = Logica riornance eo Conpo Bferexcerte (Rio de Jansto: Roce, 1999): p22. ide Comune © angusgens, 0.24 (1998) 177 préprios sensores, constituidos de ondas vibratorias lentas demais para perceberem ondas mais répidas, miuitas vezes bem diante dos ngssosolhos A propria Peggy Phelan nos indica 0 caminho, ao vincular performance a desaparigao “Na performance, 0 compo é uma metonimia do sujeito, da personagem, da voz. da'presenga’ Mas na plenitude desta sua aparenie_visibilidade ¢ disponibilidade, o performer de facto ‘dosaparces ¢ representa algo outro - danca, movimento, som, personagem, ‘arte’... A performance utiliza o corpo. para enquadrar a auséncia do Ser prometido pelo (¢ através do) corpo”. A performance situa-se no vacuo entre presenga e re- presentagdo, entre particulas clementares immutéveis © macroscopia vulnerivel 20 tempo. relacionando as “coisas” humanas ou ndo, visiveis ou nao - em um tempo que se desfaz fazendo, gerando ¢ transformando consciéncia, meméria ¢ histGria “materializada” em didloge artistico. Depois de declarads a estrutura linguistica do inconsciente (Jacques Lacan), a intuigao e outras Wégicas no parecem mais fo istantes de nossa inteligéncia ¢ re(jacdes: “A. propria ciéneia nos convida a pensar que ha ‘outra coisa’. Mas se abstém de nos dizer 0 que é. Uma outra realidade, um outro nivel de compreensio das coisas. ‘Nao € uma revelagao, ¢ um sentimento de outra (O futuro da performance talvez esteja para além do humano, inclusive (através dele, em formas democraticas de percepedo ¢ relagio no universo fisico-social da matéria (in)visivel, respeitando ¢ honrando todas as formas de saber sensivel, constantemente relembrando e recriando conhecimento de si ¢ do outro, descentralizando a nogio de Eu e tirando da periferia 0 Outro; de fato, desfazendo ¢ nogdo de centro-periferia rumo a percepgdes, trocas ¢ representacdes de/em espacos & fempos miiltiplos, simulténecs e pereciveis. Como foi dito por Laurie Anderson, “ética é a estética do BIBLIOGRAFIA ANDERSON, Laurie. Palestra. New York University, 1993, BANES, Sally. Greenwich Village 1903: Avant-Garde, Perjormance eo Corpo Efervecente. Rio de Tanciro, Rocco, 1999, Cane Fernandes em Odorto -|-Légica ‘CARRIERE, Jean-Claude: DELUMEAU, ean; ECO, Umberto © GOULD, Stephen Jay. 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