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Título original:
LA VOCE DEL VIOLINO
Que o dia não iria ser lá estas coisas o comissário Salvo Montalbano logo
percebeu, assim que abriu as persianas do quarto. Ainda era noite, faltava
pelo menos uma hora para a alvorada, mas a escuridão já se mostrava menos
densa, o suficiente para deixar ver o céu coberto por densas nuvens de água e,
para além da clara faixa da praia, o mar, que parecia um cachorro pequinês.
Desde o dia em que um minúsculo cão daquela raça, todo encrespadinho,
depois de latir cuspindo um furioso escarro, abocanhara-lhe dolorosamente a
batata da perna, Montalbano referia-se desse jeito ao mar, quando agitado por
rajadas curtas e frias que provocavam miríades de pequenas ondas encimadas
por ridículos penachos de espuma. Seu humor ficou pior ainda, visto que
aquilo que devia fazer pela manhã não era nada agradável: comparecer a um
funeral.
Mal viu seu superior baixar as pálpebras, Gallo, que sofria do complexo de
Indianápolis, começou a aumentar a velocidade, a fim de alcançar uma
quilometragem horária à altura da capacidade de direção que acreditava
possuir. E assim foi que, em menos de quinze minutos de viagem, aconteceu
a batida. Com o guinchar da freada. Montalbano abriu os olhos mas não viu
nada, sua cabeça foi violentamente impulsionada para frente antes de
empurrada de volta pelo cinto de segurança. Seguiu-se um devastador
barulho de lataria contra lataria e depois voltou o silêncio, um silêncio de
conto de fadas, com gorjeios de passarinhos e latidos de cachorros.
— Você se machucou? — perguntou o comissário a Gallo, vendo que
este massageava o peito.
— Não. E o senhor?
— Nada. Mas como foi?
— Uma galinha me cortou o caminho.
— Eu nunca vi galinha atravessar quando vem carro. Vamos ver o
prejuízo.
Desceram. Não passava vivalma. As marcas da longa freada estavam
impressas no asfalto: bem no início delas, notava-se um montinho escuro.
Gallo foi olhar de perto e virou-se, triunfante, para o comissário.
— Eu não disse? Uma galinha!
Suicídio, claro estava. O carro contra o qual eles tinham ido bater,
arrebentando-lhe toda a traseira, devia ter sido regularmente estacionado à
margem da pista, mas a pancada o deixara um pouquinho de través. Era um
Renault Twingo verde-garrafa, parado de modo a fechar uma trilha
esburacada que, uns trinta metros adiante, terminava numa casinha de campo
de dois andares, porta e janelas fechadas. Na viatura, o saldo era um farol
arrebentado e o para-lama direito amassado.
— E agora, o que é que a gente faz? — perguntou Gallo, desconsolado.
— Vamos embora. Você acha que o nosso carro funciona?
— Vamos tentar.
De marcha a ré, ferragens gemendo, a viatura libertou-se do
encastramento com o outro automóvel. Ninguém apareceu em alguma das
janelas da casa, nem mesmo desta vez. Deviam estar dormindo um sono de
chumbo, porque seguramente o Twingo pertencia a alguém dali, não havia
outra habitação nos arredores. Enquanto Gallo tentava, com as duas mãos,
desempenar o para-lama que se atritava com o pneu, Montalbano escreveu
num pedacinho de papel o número do telefone do comissariado e meteu-o
embaixo do limpador de para-brisa do Twingo.
O que tem de dar errado, dará. Cerca de meia hora depois da nova partida,
Gallo começou a massagear o peito, fazendo de vez em quando uma cara
retorcida de dor.
— Deixe, eu dirijo — disse o comissário, e Gallo não protestou.
Quando chegaram à altura de Fela, Montalbano, em vez de seguir pela
estrada principal, entrou por um desvio que levava ao centro da cidade. Gallo
não percebeu: mantinha os olhos fechados e a cabeça apoiada no vidro da
janela.
— Onde estamos? — perguntou, abrindo os olhos, ao perceber que o
carro parava.
— Vou te levar ao hospital de Fela. Desça.
— Mas não foi nada, comissário.
— Desça. Quero que eles deem uma olhada em você.
— Então o senhor me deixa aqui e continua. Na volta, me apanha.
— Para de falar besteira. Anda.
Entre auscultações, tríplice medição da pressão, radiografias e coisa e tal,
a olhada que deram em Gallo demorou mais de duas horas. Por fim,
sentenciaram que o agente não tinha quebrado nada, a dor resultava da
pancada de mau jeito contra o volante, e a fraqueza devia ser atribuída à
reação pelo susto que ele tomara.
— E agora, o que é que a gente faz? — voltou a perguntar Gallo, cada
vez mais desconsolado.
— Fazer o quê? Vamos continuar. Mas dirijo eu.
Fazia uns dez minutos que ele estava de volta ao comissariado quando
Catarella lhe transferiu uma ligação do doutor Lattes, chefe de gabinete do
doutor Bonetti-Alderighi.
— Meu caro Montalbano, como vai? Cooomo vai?
— Bem — fez Montalbano, seco.
— Folgo em sabê-lo com boa saúde — disse o chefe de gabinete, que não
desmentia o apelido “Lattes e mieles”[3], a ele impingido por causa de sua
melíflua periculosidade.
— Às suas ordens — incitou-o Montalbano.
— Pois bem. Há menos de quinze minutos, uma mulher telefonou para a
chefatura, solicitando falar pessoalmente com o senhor chefe de polícia.
Insistiu muito. O chefe, porém, estava ocupado, e me encarregou de atender
ao telefonema. A mulher, num verdadeiro ataque histérico, gritava que numa
casa de campo da localidade de Tre Fontane havia sido cometido um crime.
Depois, desligou. O chefe solicita que o senhor vá até lá, verifique o que for
necessário e relate o que observar. A mulher também disse que a casa é
facilmente reconhecível, porque na frente há um Twingo verde-garrafa
estacionado.
— Ah, meu Deus! — fez Montalbano, começando a recitar o segundo ato
do seu papel, visto que dona Clementina Vasile Cozzo tinha feito o dela à
perfeição.
— O que houve? — perguntou o doutor Lattes, curioso.
— Uma coincidência extraordinária! — fez Montalbano, em tom de
grande espanto. — Depois conto ao senhor.
Mal saíram e Montalbano já estava de saco cheio, saco cheio pela farsa que
deveria representar, fingindo espanto à visão do cadáver, saco cheio pelo
tempo que perderia esperando o juiz, o médico-legista e a Perícia, os quais
eram capazes de levar horas para chegarem ao lugar. Então, decidiu acelerar
os trabalhos.
— Me dá o celular — pediu a Galluzzo, sentado à sua frente. Ao volante,
naturalmente, estava Gallo.
Discou o número do juiz Tommaseo.
— Aqui é Montalbano. Senhor juiz, o telefonema anônimo não era trote.
Infelizmente, encontramos na casa de campo um cadáver do sexo feminino.
As reações dos que estavam na viatura foram diferentes. Gallo derrapou,
invadiu a pista oposta, tirou um fino num caminhão carregado de vergalhões,
soltou uns palavrões e voltou ao seu caminho. Galluzzo estremeceu,
arregalou os olhos e virou-se para o banco de trás, de boca aberta, encarando
seu superior. Fazio retesou-se visivelmente e ficou olhando para a frente, sem
expressão.
— Estou indo — disse o juiz Tommaseo. — Diga-me exatamente onde é
a casa.
Cada vez mais de saco cheio, Montalbano passou o celular a Gallo.
— Explique direitinho onde é. Depois avise ao doutor Pasquano e à
Perícia.
Fazio só abriu a boca quando a viatura parou atrás do Twingo verde-
garrafa.
— O senhor botou as luvas?
— Botei — disse Montalbano.
— De qualquer maneira, por segurança, agora que a gente vai entrar
oficialmente, toque em tudo, deixe quantas impressões puder.
— Já pensei nisso — respondeu o comissário.
Do bilhetinho metido sob o limpador de para-brisa restava muito pouco,
depois do temporal da noite anterior. Os números do telefone tinham sido
apagados pela água. Montalbano não o removeu.
Passou-se mais uma hora até que a turma da Perícia parasse de fuxicar e fosse
embora.
— E agora, a gente faz o quê? — informou-se Gallo, que parecia estar
fixado nessa pergunta.
— Feche a porta, e vamos voltar pra Vigàta. Estou morrendo de fome —
disse o comissário.
— Uma senhora muito especial, tão elegante, tão bonita! — disse Claudio
Pizzotta, distinto sessentão que gerenciava o Hotel Jolly de Montelusa. —
Aconteceu alguma coisa?
— Pra falar a verdade, ainda não sabemos. Recebemos de Bolonha um
telefonema do marido, preocupado.
— Pois é. De fato, pelo que sei, a senhora Licalzi saiu do hotel na quarta-
feira à noite, e desde então não a vimos mais.
— E não se preocuparam? Estamos na sexta à noite, acho eu.
— Pois é.
— Ela avisou que não iria voltar?
— Não. Mas veja bem, comissário, essa senhora costuma se hospedar
conosco há pelo menos uns dois anos. Portanto, tivemos tempo suficiente
para conhecer seus ritmos de vida, que não são, como direi, usuais. Dona
Michela é uma mulher que não passa despercebida, compreende? Além disso,
eu sempre tive uma preocupação específica.
— Ah, é? Qual?
— Bom, ela tem muitas joias de grande valor. Colares, pulseiras, brincos,
anéis... Sempre se recusou a guardá-las em nosso cofre, por mais que eu
insistisse, várias vezes. Prefere mantê-las numa espécie de mochila, ela não
usa bolsas comuns. Todas as vezes, me tranquilizou, dizendo que não deixava
as joias no quarto, levava tudo ao sair. Mas, mesmo assim, eu temia algum
furto. Ela sorria, e não havia jeito.
— O senhor mencionou ritmos de vida particulares. Poderia explicar
melhor?
— Claro. Ela gosta de horários inusitados. Frequentemente, volta com o
dia já amanhecendo.
— Sozinha?
— Sempre.
— Bêbada? Meio alta?
— Nunca. Pelo menos, é o que diz o recepcionista noturno.
— Poderia me informar que motivos tem o senhor para falar da senhora
Licalzi com o recepcionista?
Claudio Pizzotta ficou vermelho que nem brasa. Via-se que andara
imaginando molhar o biscoito com dona Michela.
— Comissário, o senhor compreende... Uma mulher tão bonita e
sozinha... É mais do que natural a gente sentir uma certa curiosidade.
— Prossiga. Fale desses tais ritmos.
— Ela dorme direto até mais ou menos meio-dia, não quer ser perturbada
de jeito nenhum. Quando pede pra ser acordada, pede também a primeira
refeição no quarto e começa a dar e receber telefonemas.
— Muitos?
— Bem, eu tenho uma lista de impulsos que não acaba mais.
— Sabe a quem ela telefonava?
— Poderíamos saber. Mas é demorado. No quarto, basta discar zero e
pode-se telefonar até pra Nova Zelândia.
— E quanto às chamadas recebidas?
— Bom, o que o senhor quer que eu diga? A telefonista recebe a chamada
e transfere pro quarto. Temos somente uma possibilidade.
— Ou seja?
— Alguém ligar, quando ela não está no hotel, e deixar recado. Nesse
caso, a telefonista entrega uma papeleta ao recepcionista, e ele deixa essa
papeleta no compartimento das chaves.
— Ela costuma almoçar no hotel?
— Raramente. O senhor compreende: fazendo uma substancial primeira
refeição tão tarde... Mas já aconteceu. E uma vez o maître me falou da atitude
dela à mesa, quando almoça.
— Não entendi bem, queira desculpar.
— O hotel é muito frequentado. Homens de negócios, políticos,
empresários... E todos, bem ou mal, acabam tentando. Olhadinhas, sorrisos,
convites mais ou menos explícitos. O bonito nela, segundo o maître, é que
não faz o gênero santa ofendida, pelo contrário, retribui as olhadas e os
sorrisos... Mas os finalmente, nada. Os homens ficam só na vontade.
— A que horas ela costuma sair à tarde?
— Aí pelas seis. E volta sempre tardíssimo.
— Deve ter um grande círculo de amizades em Montelusa e Vigàta.
— Sem dúvida.
— Já aconteceu que ela ficasse fora por mais de uma noite?
— Não creio. O recepcionista teria contado.
Chegaram Gallo e Galluzzo, abanando o mandado de busca.
— Qual é o quarto da senhora Licalzi?
— O 118.
— Estou com um mandado.
O gerente Pizzotta fez uma cara ofendida.
— Mas comissário! Não era necessária essa formalidade! Bastava pedir, e
eu... Vou acompanhá-los.
— Não, obrigado — fez Montalbano, secamente.
De ofendida, a cara do gerente Pizzotta passou a mortalmente ofendida.
— Vou buscar a chave — fez ele, lacônico.
Voltou dali a pouco com a chave e um maço de papeizinhos, recados de
telefonemas recebidos.
— Tome — disse, entregando, sabe-se lá por quê, a chave a Fazio e os
recados a Gallo. Diante de Montalbano, baixou bruscamente a cabeça, à
alemã, virou-se e afastou-se, tão rígido que parecia um boneco de madeira em
movimento.
Era cedo para retornar à sua casa em Marinella, e então Montalbano decidiu
aparecer no comissariado para ver se havia novidades.
— Ah, dotor! Ah, dotor! — fez Catarella, assim que o viu. — O senhor
está aqui? Ligaram assim umas dez pessoas! Todo mundo atrás do senhor
pessoalmente! Eu não sabia que o senhor vinha, então disse pra telifonar
amanhã de manhã! Fiz certo ou errado, dotor?
— Certo, Catarè, não se preocupe. Você sabe o que queriam?
— Era tudo gente que dizia que era gente que conhecia a senhora
sassinada.
Na mesa do gabinete, Fazio tinha lhe deixado o saco plástico com os
papéis apanhados no quarto 118. Ao lado, os recadinhos telefônicos que o
gerente Pizzotta havia entreguado a Gallo. O comissário sentou-se, tirou do
saco plástico a agenda e deu uma folheada. Michela Licalzi mantinha-a tão
em ordem quanto o seu quarto de hotel: encontros, telefonemas a fazer,
lugares aonde devia ir, tudo anotado com clareza e precisão.
O doutor Pasquano disse, e nisso Montalbano estava de acordo, que a
moça tinha sido morta na noite de quarta para quinta-feira. Portanto, ele foi
logo examinando a página de quarta, o último dia de vida de Michela Licalzi.
Às 16h, telefonar Rotondo, móveis; 16h30, ligar Emanuele; 17h, enc. Todaro,
plantas e jardins; 18h, Anna; 20h, jantar c/ os Vassallo.
Michela também tinha marcado outros compromissos para quinta, sexta e
sábado, ignorando que alguém a impediria de comparecer a eles. Na quinta,
sempre à tarde, deveria encontrar Anna, com a qual iria ver Loconte (entre
parênteses: cortinas), para depois encerrar a noite jantando com um tal de
Maurizio. Na sexta, veria Riguccio eletricista, novamente Anna, e depois
jantaria com os Cangialosi. Na página de sábado havia uma única anotação:
16h30, voo de Punta Ràisi para Bolonha.
A agenda era de formato grande, a parte reservada aos telefones previa
três páginas para cada letra do alfabeto. Mesmo assim, os números transcritos
eram tantos que, em algumas, ela precisou escrever na mesma linha os
telefones de duas pessoas.
Montalbano deixou de lado a agenda e tirou do saco plástico os outros
papéis. Nada de interessante, eram apenas faturas e notas fiscais: cada
despesa feita na construção e na decoração da casa, por menor que fosse,
estava cuidadosamente documentada. Num caderninho quadriculado,
Michela tinha anotado em colunas todos os gastos, parecia pronta para uma
visita da Receita. Havia um talonário de cheques do Banco Popular de
Bolonha do qual só restavam os canhotos. Montalbano achou também um
cartão de embarque Bolonha-Roma-Palermo, de seis dias antes, e uma
passagem Palermo-Roma-Bolonha, marcada para as 16h30 do sábado.
Nem sombra de uma carta pessoal, de um bilhetinho particular. Ele
decidiu continuar o trabalho em casa.
Capítulo V
Em condições normais, Anna Tropeano devia ser uma bela mulher de trinta,
cabelos pretíssimos, pele morena, grandes olhos brilhantes, alta e fornida.
Mas agora apresentava-se de ombros caídos, olhos inchados e vermelhos,
pele sem viço.
— Posso fumar? — perguntou ela, assim que se sentou.
— Claro.
Anna acendeu um cigarro, as mãos tremiam. Tentou um arremedo de
sorriso.
— Eu tinha parado uma semana atrás. Mas, desde ontem à noite, já fumei
no mínimo três maços.
— Eu lhe agradeço por ter vindo espontaneamente. De fato, preciso
perguntar muitas coisas à senhora.
— Estou aqui.
Dentro de si, o comissário puxou um suspiro de alívio. Anna era uma
mulher forte, não haveria choro ou desmaio. O fato é que ele gostou do jeito
daquela mulher assim que ela apareceu à porta.
— Se alguma das minhas perguntas parecer estranha, responda mesmo
assim, por favor.
— Certo.
— Casada?
— Quem?
— A senhora.
— Não, não sou. Nem separada ou divorciada. Nenhum compromisso,
em suma. Moro sozinha.
— Por quê?
Embora Montalbano tivesse avisado, Anna teve um momento de
incerteza em responder a uma pergunta tão pessoal.
— Acho que não tive tempo pra pensar em mim. Comissário, um ano
antes de eu me formar, meu pai morreu, ainda muito moço. Infarto. Um ano
depois da formatura, perdi minha mãe e precisei cuidar da minha irmã mais
nova, Maria, que agora tem vinte e nove anos, está casada e mora em Milão,
e do meu irmão Giuseppe, que tem vinte e sete e trabalha num banco em
Roma. Eu estou com trinta e um. Mas, além disso, acho que não encontrei a
pessoa certa.
Não estava ressentida; pelo contrário, parecia um pouquinho mais calma.
O fato de o comissário não ter entrado logo no assunto lhe deu como que uma
pausa para respirar. Montalbano concluiu que era melhor continuar
navegando ao largo.
— Aqui em Vigàta, a senhora mora na casa dos seus pais?
— Sim, papai tinha comprado o imóvel. E uma espécie de palacetezinho,
bem no começo de Marinella. Ficou grande demais pra mim.
— E aquela casa à direita, logo depois da ponte?
— Essa mesmo.
— Eu passo ali na frente pelo menos duas vezes por dia. Também moro
em Marinella.
Anna Tropeano olhou para ele, um tantinho intrigada. Que tira mais
estranho!
— Trabalha?
— Sim, ensino no Científico de Montelusa.
— Ensina o quê?
— Física.
Montalbano observou-a, cheio de admiração. Na escola, em física,
sempre ficava entre quatro e cinco: se tivesse tido, naquela época, uma
professora assim, talvez agora pudesse igualar-se a Einstein.
— Sabe quem foi que a matou?
Anna Tropeano sobressaltou-se e olhou o comissário com expressão
implorante: estavam indo tão bem, por que botar agora a máscara do tira, que
é pior que um cão de caça?
“O senhor não solta a presa nunca?”, pareceu perguntar.
Montalbano compreendeu o que os olhos da moça queriam saber, sorriu e
abriu os braços num gesto resignado, como se dissesse:
“É o meu trabalho.”
— Não — respondeu Anna Tropeano, firme e decidida.
— Algum suspeito?
— Não.
— A senhora Licalzi costumava voltar pro hotel nas primeiras horas da
manhã. Eu queria perguntar...
— Estava sempre comigo. Na minha casa. Jantávamos juntas quase todas
as noites. Se ela fosse convidada pra outro lugar, depois ia lá pra casa.
— E o que faziam?
— O que fazem duas amigas? Conversávamos, assistíamos à televisão,
ouvíamos música. Ou então não fazíamos nada, era só o prazer de nos
sentirmos em companhia uma da outra.
— Ela tinha amigos homens?
— Sim, alguns. Mas as coisas não eram como podiam parecer. Michela
era muito séria. Ao vê-la tão desembaraçada, tão livre, os homens se
equivocavam. E sempre se desiludiam.
— Havia alguém particularmente insistente?
— Sim.
— Como se chama?
— Não vou dizer. O senhor vai descobrir facilmente.
— Em suma, a senhora Licalzi era superfiel ao marido.
— Eu não disse isso.
— Aonde quer chegar?
— Aquilo que eu acabei de dizer.
— Vocês se conheciam há muito tempo?
— Não.
Montalbano encarou-a, levantou-se e foi até a janela. Anna, quase com
raiva, acendeu o quarto cigarro.
— Não gostei do tom dessa última parte do nosso diálogo — fez o
comissário, de costas.
— Eu também não.
— Paz?
— Paz.
Montalbano voltou-se, sorriu para ela, Anna retribuiu. Mas, dali a um
segundo, levantou um dedo, como uma estudante: queria fazer uma pergunta.
— Se não for segredo, o senhor pode me dizer como é que ela foi
assassinada?
— A televisão não informou?
— Não, nem a Retelibera nem a Televigàta. Comunicaram a descoberta
do corpo e só.
— Eu não deveria contar. Mas vou abrir uma exceção pra senhora. Ela foi
asfixiada.
— Com um travesseiro?
— Não. Com o rosto empurrado de encontro ao colchão.
Anna começou a oscilar, como a copa das árvores quando sopradas pelo
vento. O comissário saiu e, dali a pouco, voltou com uma garrafa d’água e
um copo. Anna bebeu como se tivesse acabado de chegar do deserto.
— Mas o que será que ela foi fazer lá na casa, meu Deus? — disse, quase
para si mesma.
— A senhora já esteve lá?
— Claro. Quase todos os dias, com Michela.
— Ela dormiu lá alguma vez?
— Que eu saiba, não.
— Mas no banheiro tinha um roupão, toalhas, cremes.
— Eu sei. Foi Michela quem levou. Quando ia lá pra ver a obra,
inevitavelmente acabava suja de poeira, cimento. Então, antes de ir embora,
tomava banho.
Montalbano convenceu-se de que chegara o momento de dar um golpe
baixo; mas fez isso de má vontade, não queria magoá-la.
— Ela estava completamente nua.
Anna pareceu atravessada por uma corrente de alta-tensão: arregalou
desmesuradamente os olhos e tentou dizer alguma coisa, mas não conseguiu.
Montalbano encheu novamente o copo.
— Ela foi... foi violentada?
— Não sei. O médico-legista ainda não me telefonou.
— Mas por quê, em vez de ir pro hotel, ela foi àquela maldita casa? —
voltou Anna a perguntar-se.
— A pessoa que a matou levou as roupas, a calcinha, os sapatos.
Anna olhou-o, incrédula, como se o comissário tivesse contado uma
grande mentira.
— E por que motivo?
Em vez de responder, Montalbano continuou.
— Levou também a mochila, com tudo o que havia dentro.
— Isso é mais compreensível. Naquela mochila Michela carregava todas
as joias dela, que eram muitas, e de grande valor. Se quem a sufocou tiver
sido um ladrão flagrado na...
— Um momento. O senhor Vassallo me contou que a mulher dele,
preocupada porque Michela não chegava, telefonou pra senhora.
— É verdade. E eu supunha que ela estava com eles. Quando saiu,
Michela disse que ia passar no hotel pra trocar de roupa.
— A propósito, como estava vestida?
— Toda de jeans, inclusive uma jaqueta. E sapato esporte.
— No hotel ela não apareceu. Alguém ou alguma coisa a levou a mudar
de ideia. Ela tinha celular?
— Tinha, na mochila.
— Então, posso pensar que, enquanto se dirigia ao hotel, alguém ligou
pro celular. E, por causa desse telefonema, ela foi pra casa de campo.
— Talvez tenha sido uma armadilha.
— Da parte de quem? Do ladrão, certamente não. Já ouviu falar de algum
ladrão que convoca o dono da casa que ele está roubando?
— O senhor viu se falta alguma coisa lá?
— O Piaget dela, sem dúvida. Quanto ao resto, não sei. Ignoro o que
havia de valor na casa. Tudo parece em ordem. Desarrumado, só o banheiro.
Anna fez uma cara espantada.
— Desarrumado?
— Sim. O roupão estava jogado no chão. Ela havia acabado de tomar
banho.
— Comissário, o senhor está descrevendo um quadro que não me
convence nem um pouco.
— Como assim?
— Isso de Michela ter ido até a casa pra encontrar um homem, e tão
impaciente por se deitar com ele a ponto de se livrar do roupão às pressas,
jogando-o onde caísse.
— E plausível, não?
— Pra outras mulheres, sim. Pra Michela, não.
— A senhora sabe quem é um tal de Guido, que todas as noites telefonava
de Bolonha pra ela?
Montalbano havia dado um tiro no escuro, mas acertou em cheio. Anna
Tropeano desviou o olhar, embaraçada.
— Há pouco, a senhora me disse que ela era fiel.
— Sim.
— Fiel à sua única infidelidade?
Anna acenou afirmativamente com a cabeça.
— Poderia me dizer o nome dele? Seria um favor, me pouparia tempo.
Porque descobrir, quanto a isso não tenha dúvida, eu descubro do mesmo
jeito. Então?
— Ele se chama Guido Serravalle, é um antiquário. Não sei nem o
telefone nem o endereço.
— Obrigado, isso basta. Por volta do meio-dia, o marido estará aqui.
Gostaria de encontrá-lo?
— Eu?! E por quê? Nem o conheço.
O comissário não precisou perguntar mais: Anna continuou falando por
iniciativa própria.
— Michela se casou com o doutor Licalzi há dois anos e meio. Foi ela
quem quis vir à Sicília na lua de mel. Não foi nessa ocasião que nós nos
conhecemos. Foi depois, quando ela voltou sozinha, com intenção de mandar
construir a casa. Um dia, eu ia de carro pra Montelusa, um Twingo vinha em
sentido contrário, estávamos as duas distraídas, por pouco não batemos de
frente. Descemos, pedimos desculpas recíprocas e acabamos simpatizando
uma com a outra. Todas as outras vezes em que voltou aqui, Michela veio
sempre sozinha.
Anna estava cansada, e Montalbano sentiu pena.
— A senhora me ajudou muitíssimo. Obrigado.
— Posso ir?
— Claro.
E estendeu-lhe a mão. Anna Tropeano segurou-a entre as dela.
O comissário sentiu por dentro como uma onda de calor.
— Obrigada — fez Anna.
— Obrigada por quê?
— Por me ter feito falar de Michela. Eu não tenho ninguém com quem...
Obrigada. Agora me sinto mais serena.
Capítulo VI
Saiu a pé para ir almoçar na trattoria San Calogero, onde sempre havia peixe
fresquíssimo. A certa altura, deteve-se, praguejando. Tinha esquecido que a
trattoria estava há seis dias fechada para reforma da cozinha, voltou, pegou o
carro e dirigiu-se para Marinella. Assim que saiu da ponte, olhou a casa que
agora sabia pertencer a Anna Tropeano. Foi mais forte do que ele: encostou,
freou e desceu.
Era um palacete de dois andares, muito bem conservado, com um
jardinzinho ao redor. Montalbano aproximou-se e apertou o botão do
interfone.
— Quem é?
— O comissário Montalbano. Vou incomodar?
— Não, entre.
O portão se abriu e, ao mesmo tempo, abriu-se a porta da casa. Anna
tinha trocado de roupa e recuperado suas cores.
— Sabe de uma coisa, doutor Montalbano? Eu tinha certeza de que iria
revê-lo hoje.
Capítulo VII
— Estava almoçando?
— Não, estou sem fome. E também, assim, sozinha... Quase todos os dias
Michela vinha comer aqui. Raramente almoçava no hotel.
— Posso lhe fazer um convite?
— Pode, mas entre.
— Quer vir à minha casa? E a dois passos daqui, perto do mar.
— Mas talvez a sua mulher, sem ter sido avisada...
— Eu moro sozinho.
Anna Tropeano não parou para pensar nem um segundo.
— Encontro o senhor no carro.
Viajaram em silêncio: Montalbano, ainda surpreso por ter feito o convite;
Anna, certamente maravilhada consigo mesma por tê-lo aceitado.
O sábado era o dia que Adelina dedicava a uma cuidadosa faxina, e o
comissário, ao ver tudo tão limpo e arrumado, alegrou-se: certa vez, também
num sábado, tinha convidado um casal amigo, mas Adelina faltou naquele
dia. Acabou que a mulher do amigo, para botar a mesa, precisou primeiro
liberá-la de uma montanha de meias imundas e de cuecas para lavar.
Como se já conhecesse a casa, Anna se dirigiu à varanda e sentou-se no
banco, olhando o mar, a poucos passos dali. Montalbano pôs na frente dela a
mesinha dobrável, um cinzeiro e foi até a cozinha. Adelina tinha deixado no
forno uma boa porção de merluza, na geladeira, já estava pronto o molhinho
de anchovas e azeite para temperá-la.
Ele voltou à varanda. Anna estava fumando e, a cada minuto que passava,
parecia ficar mais tranquila.
— Como é bonito aqui!
— Quer um pouquinho de merluza ao forno?
— Comissário, não se ofenda, mas meu estômago está trancado. Façamos
o seguinte: enquanto o senhor come, eu tomo um copo de vinho.
Meia hora depois, o comissário havia devorado a tripla porção de merluza, e
Anna, bebido dois copos de vinho.
— É bom mesmo — elogiou ela, enchendo de novo o copo.
— Quem faz... quem fazia era o meu pai. Quer um café?
— Café eu não rejeito.
O comissário abriu uma embalagem de Yaucono, preparou a cafeteira,
botou-a no fogo e voltou à varanda.
— Tire esta garrafa da minha frente. Senão eu vou beber tudo — pediu
Anna.
Montalbano obedeceu. O café estava pronto, ele serviu. Anna tomou-o
degustando, em pequenos goles.
— É forte e gostoso. Onde o senhor compra?
— Eu não compro. Um amigo me manda de Porto Rico alguns pacotes.
Anna afastou a xícara e acendeu o vigésimo cigarro.
— O que o senhor quer me dizer?
— Temos novidades.
— Quais?
— Maurizio Di Blasi.
— Viu? Eu não lhe disse o nome hoje de manhã por ter certeza e que o
senhor descobriria facilmente, todo mundo ria dele.
— Estava apaixonado?
— Mais do que isso. Para ele, Michela virou uma obsessão. Não sei se lhe
informaram que Maurizio não era um rapaz como os outros. Ficava no limite
entre a normalidade e o distúrbio mental. Houve dois episódios que...
— Me conte.
— Uma vez, Michela e eu fomos a um restaurante. Dali a pouco Maurizio
chegou, falou conosco e se sentou na mesa ao lado. Comeu pouquíssimo, os
olhos grudados em Michela. E de repente começou a babar, eu senti ânsias de
vômito. Ele babou, acredite, um fio de saliva escorrendo pelo canto da boca.
Tivemos que ir embora.
— E o outro episódio?
— Eu tinha ido à casa de campo para ajudar Michela. No fim do dia, ela
foi tomar banho e depois desceu nua para a sala. Fazia muito calor. Ela
gostava de andar pela casa sem nada em cima. Sentou-se numa poltrona e
começamos a conversar. A certa altura, escutei uma espécie de gemido, vindo
de fora. Me virei para olhar. Era Maurizio, com o rosto quase grudado na
vidraça. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ele recuou alguns passos,
dobrado em dois. Então compreendi que ele estava se masturbando.
Anna fez uma pausa, olhou o mar e suspirou.
— Pobre filho — disse, baixinho.
Por um instante, Montalbano se comoveu. O amplo ventre de Vênus. Essa
extraordinária capacidade, toda feminina, de compreender profundamente, de
penetrar nos sentimentos, de conseguir ser ao mesmo tempo mãe e amante,
filha e esposa. Ele pousou a mão sobre a de Anna, que não a retirou.
— Sabia que ele desapareceu?
— Sim, sei. Na mesma noite de Michela. Mas...
— Mas?
— Comissário, posso falar sinceramente?
— E o que foi que nós fizemos até agora? E me faça um favor, mi chame
de Salvo.
— Se o senhor me chamar de Anna.
— Combinado.
— Mas os senhores se enganam, se pensam que Maurizio foi capaz de
assassinar Michela.
— Me dê uma boa razão.
— Não se trata de razão. Veja bem, com a polícia as pessoas não gostam
de falar. Mas, se o senhor mandar fazer uma sondagem, uma pesquisa de
opinião como se costuma chamar, Vigàta inteira irá dizer que não vê em
Maurizio um assassino.
— Anna, tem outra coisa que eu ainda não lhe contei.
Anna fechou os olhos. Havia intuído que aquilo que o comissário estava
para contar era difícil de falar e de ouvir.
— Estou pronta.
— O doutor Pasquano, o médico-legista, chegou a algumas conclusões
que eu passo a lhe informar.
E disse tudo, os olhos fixos no mar, evitando encarar a moça. Não
escondeu os detalhes.
Anna escutou, o rosto entre as mãos, os cotovelos apoiados na mesinha.
Quando o comissário terminou, levantou-se, muito pálida.
— Vou ao banheiro.
— Eu mostro onde é.
— Eu descubro sozinha.
Dali a pouco, Montalbano ouviu-a vomitar. Consultou o relógio: ainda
dispunha de uma hora, antes da chegada de Emanuele Licalzi. E também
aquele doutor conserta-osso de Bolonha podia muitíssimo bem esperar.
Anna voltou com uma expressão decidida e sentou-se de novo ao lado de
Montalbano.
— Salvo, o que esse legista pretende significar ao dizer que ela
consentiu?
— O mesmo que você e eu entendemos, ou seja, que ela estava de acordo.
— Mas, em certos casos, é possível parecer que se está de acordo porque
não há possibilidade de resistir.
— Certo.
— E então eu pergunto a você: o que o assassino fez com Michela não
pode ter acontecido contra a vontade dela?
— Mas existem alguns detalhes que...
— Deixa pra lá. Primeiro, não sabemos nem mesmo se o assassino
abusou de uma mulher viva ou de um cadáver. Além disso, ele teve todo o
tempo que queria pra ajeitar as coisas de um modo que atrapalhasse a polícia.
Haviam passado a tratar-se por você sem perceber.
— Você tem uma hipótese mas não está me dizendo.
— Sem problemas — fez Montalbano. — Neste momento, tudo é contra
Maurizio. A última vez em que ele foi visto aconteceu às nove da noite,
diante do bar Italia. Estava telefonando.
— Pra mim — disse Anna.
O comissário deu literalmente um pulo do banco.
— O que era que ele queria?
— Saber de Michela. Eu disse que nós tínhamos nos separado pouco
depois das sete, ela iria passar no Jolly e depois jantar com os Vassallo.
— E ele?
— Desligou sem sequer se despedir.
— E isso pode ser um ponto em desfavor dele. Certamente, também
telefonou aos Vassallo. Não encontra Michela, mas intui onde pode encontrá-
la e vai até lá.
— Na casa de campo.
— Não. Na casa eles chegaram pouco depois da meia-noite.
Desta vez, foi Anna quem teve um sobressalto.
— Uma testemunha me contou — prosseguiu Montalbano.
— Essa pessoa reconheceu Maurizio?
— Estava escuro. A testemunha viu somente um homem e uma mulher
saltarem do Twingo e se encaminharem para a casa. Bem, uma vez lá dentro,
Maurizio e Michela fazem amor. A certa altura, Maurizio, que vocês todos
descrevem como uma personalidade instável, tem um surto.
— Nunca, mas nunca, Michela...
— Como reagia a sua amiga à perseguição de Maurizio?
— Ficava chateada, e às vezes sentia por ele uma pena profunda, que...
Anna se interrompeu: compreendera aonde Montalbano queria chegar.
Seu rosto perdeu o frescor, rugas lhe apareceram nos cantos da boca.
— Mas tem umas coisas que não combinam — prosseguiu Montalbano,
que sofria ao vê-la sofrer. — Por exemplo: Maurizio teria sido capaz, logo
depois do crime, de imaginar friamente o despistamento, sumindo com as
roupas e a mochila?
— Nem pensar!
— O verdadeiro problema não são os detalhes do assassinato, mas saber
onde esteve e o que fez Michela, desde a hora em que se separou de você até
o momento em que foi vista pela testemunha. Quase cinco horas, não é
pouco. E agora vamos indo, porque o doutor Emanuele Licalzi está
chegando.
Na hora em que iam entrando no carro, Montalbano turvou a água, como
faz a sépia.
— Não estou tão certo assim quanto à unanimidade das respostas à sua
pesquisa de opinião sobre a inocência de Maurizio. Um, pelo menos, teria
sérias dúvidas.
— Quem?
— O pai dele, o engenheiro Di Blasi. Do contrário, ele teria chamado a
polícia pra procurar o filho.
— É natural que ele imagine tudo. Ah, me lembrei de uma coisa. Quando
Maurizio me ligou procurando Michela, eu sugeri que ele ligasse para o
celular. Ele respondeu que havia tentado, mas o aparelho estava fora do ar.
— Ah, dotor, dotor! O dotor Latte com s no fim telefonou três vezes, cada
vez mais emputecido, com o devido respeito. O senhor precisa ligar pra ele
pessoalmente em pessoa agora mermo.
— Alô, doutor Lattes? Aqui é Montalbano.
— Até que enfim! Venha imediatamente a Montelusa, o chefe de polícia
quer falar com o senhor.
E desligou. Devia ser coisa séria, porque o mieles havia desaparecido
inteiramente do lattes.
Estava ligando o carro quando viu chegar a viatura, dirigida por Galluzzo.
— Notícias do doutor Augello?
— Sim. Telefonaram do hospital avisando que ele teve alta. Aí eu fui
buscar e deixei ele em casa.
Às favas com o chefe de polícia e suas urgências. Montalbano passou
primeiro na casa de Mimì.
— Como está você, intrépido defensor do capital?
— Com dor, a cabeça parece que vai estourar.
— É bom, assim você aprende.
Mimì Augello estava sentado numa poltrona, pálido, cabeça enfaixada.
— Uma vez me deram uma traulitada, levei sete pontos e não fiquei
derrubado como você está.
— Sinal de que lhe deram a traulitada por uma causa que você
considerava justa. E assim se sentiu traulitado e gratificado.
— Mimì, você, quando capricha, sabe realmente ser babaca.
— Você também, Salvo. Eu ia te ligar hoje à noite pra dizer que não vou
estar em condições de dirigir amanhã.
— A gente vai ver sua irmã outro dia.
— Não, Salvo, vá assim mesmo. Ela insistiu muito pra te ver.
— Mas você sabe por quê?
— Não faço a menor ideia.
— Bom, vamos fazer o seguinte. Eu vou, mas você, amanhã às nove e
meia, tem que estar em Montelusa, no Jolly. Pegue o doutor Licalzi, que já
chegou, e vá com ele ao necrotério. Combinado?
— Como vai? Como vai, meu prezado? Vejo-o algo abatido. Coragem.
Sursum corda! Assim diziam nos tempos da Ação Católica.
O perigoso mel do doutor Lattes transbordava. Montalbano começou a se
preocupar.
— Vou avisar imediatamente ao chefe.
Lattes sumiu e dali a pouco voltou.
— O chefe está momentaneamente ocupado. Venha, eu o acompanho à
sala de espera. Quer um café, uma bebida?
— Não, obrigado.
O doutor Lattes desapareceu, depois de enviar-lhe à distância um amplo
sorriso paternal. Montalbano teve a certeza de que o chefe de polícia o havia
condenado a uma morte lenta e dolorosa. Garrote, talvez.
Na mesa de centro da saleta esquálida havia um semanário, Famiglia
Cristiana, e um diário, L’Osservatore Romano, sinais evidentes da presença
do doutor Lattes na chefatura. Montalbano passou a mão na revista e
começou a ler um artigo de Susanna Tamaro.
— Comissário! Comissário!
Uma mão lhe sacudia o ombro. Ele abriu os olhos e viu um agente.
— O chefe de polícia está esperando pelo senhor.
Jesus! Tinha adormecido profundamente. Consultou o relógio: eram oito,
aquele corno deixara-o de molho na antessala por duas horas.
— Boa noite, senhor chefe de polícia.
O nobre Luca Bonetti-Alderighi não respondeu, não disse a nem bê,
continuou olhando para a tela de um computador. O comissário contemplou a
inquietante cabeleira do seu superior, abundantíssima e com um volumoso
topete alto, retorcido como certos toletes cagados ao ar livre. Igualzinha,
cuspida e escarrada, à cabeleira daquele louco psiquiatra criminal que
provocara toda aquela carnificina na Bósnia.
— Como se chamava?
Tarde demais, Montalbano deu-se conta de que, ainda caindo de sono,
falara em voz alta.
— Como se chamava quem? — perguntou o chefe de polícia, erguendo
finalmente os olhos e encarando-o.
— Nada, não tem importância — disse Montalbano.
O chefe continuou a fitá-lo com um misto de desprezo e comiseração:
evidentemente, vislumbrava no comissário inequívocos sintomas de
demência senil.
— Falarei com extrema sinceridade, Montalbano. Eu não o tenho em alta
estima.
— Nem eu ao senhor — fez o comissário, curto e grosso.
— Muito bem. Destarte, entre nós a situação é clara. Convoquei-o para
dizer-lhe que o senhor foi afastado do inquérito sobre o assassinato da
senhora Licalzi. Passei esse encargo ao doutor Panzacchi, o titular da Móvel,
a quem, ademais, ele caberia de direito.
Ernesto Panzacchi era um supercupincha de Bonetti-Alderighi, que o
trouxera consigo para Montelusa.
— Posso perguntar por quê, embora eu esteja me lixando totalmente pra
isso?
— O senhor cometeu uma insensatez que pôs em sérias dificuldades o
trabalho do doutor Arquà.
— Ele escreveu isso no relatório?
— Não, no relatório ele não escreveu, pois, generosamente, não queria
prejudicá-lo. Mas depois se arrependeu e me confessou tudo.
— Ah, esses arrependidos! — fez o comissário.
— O senhor tem alguma coisa contra os arrependidos?
— Vamos deixar pra lá.
Montalbano saiu sem sequer se despedir.
— Tomarei providências! — gritou às suas costas o nobre Bonetti-
Alderighi.
— Ah, dotor! Pois não é que o senhor Cacono tilifonou novamente de novo?
Disse assim, que ele se lembrou de uma coisa que talvez é importante. O
número tá escrito aqui neste papelzinho.
Montalbano olhou o quadradinho de papel e começou a sentir o prurido
no corpo inteiro. Catarella tinha escrito os números de tal modo que o três
podia ser um cinco ou um nove, o dois um quatro, o cinco um seis e assim
por diante.
— Catarè, mas qual é o número, afinal?
— Esse aí, dotor. O número de Cacono. O que está escrito está escrito.
Antes de encontrar Gillo Jàcono, Montalbano falou com um bar, com a
família Jacopetti e com o doutor Balzani.
A quarta tentativa ele já fez desanimado.
— Alô? Com quem estou falando? Aqui é o comissário Montalbano.
— Ah, comissário, foi bom o senhor ligar, eu estava de saída.
— Andou me procurando?
— Eu me lembrei de um detalhe, não sei se é útil ou não. O homem que
eu vi descendo do Twingo e se encaminhando para a casa com uma mulher
carregava uma mala.
— Tem certeza?
— Absoluta.
— Uma vinte e quatro horas?
— Não, comissário, era maior. Mas...
— Sim?
— Mas eu tive a impressão de que o homem carregava a mala facilmente,
como se ela não estivesse muito cheia.
— Obrigado, senhor Jàcono. Quando voltar, me procure.
A seguir, Montalbano ligou para a casa dos Vassallo, depois de procurar
o número no catálogo.
— Comissário! Hoje à tarde, como havíamos combinado, eu fui procurá-
lo, mas o senhor não estava. Esperei por algum tempo e depois vim embora.
— Queira me desculpar. Escute, na noite de quarta-feira passada, quando
os senhores aguardavam a senhora Licalzi pro jantar, quem telefonou?
— Bom, um amigo meu de Veneza e também a nossa filha, que mora em
Catânia, mas isso não tem interesse para o senhor. Mas, e era isso que eu
queria lhe contar quando estive aí, Maurizio Di Blasi telefonou duas vezes.
Pouco antes das vinte e uma e pouco depois das vinte e duas. Estava
procurando por Michela.
— O que eu queria lhe dizer, ele já disse — resumiu Franca. — E olha que
tanto eu quanto Aldo falamos o tempo todo de Livia e de você, de como ele
vai morar com os dois, de como vocês querem e vão querer bem a ele. Não
houve jeito. Foi um pensamento que ele teve de repente, à noite, há mais ou
menos um mês. Eu estava dormindo e senti alguém me cutucar um braço. Era
ele. Aí perguntei:
“Está se sentindo mal?”
“Não.”
“Então, o que é que você tem?”
“Estou com medo.”
“Medo de quê?”
“Que Salvo venha e me leve daqui.”
— De vez em quando — prosseguiu Franca —, ele está brincando ou
comendo e esse pensamento volta, e aí ele fica tristonho, ou mesmo rebelde.
Ela continuou a falar, mas Montalbano não a escutava mais. Perdera-se na
recordação de um período de sua infância, quando ele tinha a mesma idade de
François, ou melhor, um ano menos. A avó estava morrendo, a mãe tinha
adoecido gravemente (mas essas coisas ele só entendeu depois) e o pai, para
poder cuidar melhor das duas, levou-o para a casa de uma irmã, Carmela, que
era casada com o proprietário de um bazar bagunçado, um homem brando,
gentil, chamado Pippo Sciortino. Esses tios não tinham filhos. Depois de
algum tempo, o pai foi buscá-lo, de gravata preta e uma larga faixa, também
negra, no braço esquerdo, lembrava-se muito bem. Mas ele tinha se recusado
a ir.
“Não vou com você”, disse ao pai. “Fico com Carmela e Pippo. Agora eu
também sou Sciortino.”
Tinha ainda diante dos olhos o rosto entristecido do pai, as faces
embaraçadas de Pippo e Carmela.
— ... porque criança não é pacote que a gente pode ficar levando pra lá e
pra cá — concluiu Franca.
Na volta, pegou a estrada mais fácil e, por volta das nove da noite, já estava
em Vigàta. Resolveu passar pela casa de Mimì Augello.
— Você parece melhor.
— Hoje à tarde eu consegui dormir. A conversa com Franca foi difícil,
hem? Ela me ligou preocupada.
— É uma mulher muito, muito inteligente.
— Ela queria falar de quê?
— De François. Temos um problema.
— O menino se afeiçoou a eles?
— Como é que você sabe? Sua irmã lhe contou?
— Não, ela não falou nada comigo. Mas nem precisava, é fácil de
perceber. Eu já imaginava que as coisas iam acabar assim.
Montalbano fez uma cara tristonha.
— Entendo que isso lhe doa — disse Mimì —, mas quem garante que não
seja uma sorte?
— Para François?
— Também. Mas principalmente pra você, Salvo. Você não foi feito pra
ser pai, mesmo que de um filho adotivo.
Assim que transpôs a ponte, Montalbano viu as luzes da casa de Anna ainda
acesas. Encostou e desceu.
— Quem é?
— Sou eu, Salvo.
Anna abriu a porta e levou-o à sala de jantar. Estava assistindo a um
filme, mas logo desligou a televisão.
— Quer um uisquinho?
— Quero. Puro.
— Está chateado?
— Um pouco.
— A coisa não é fácil de digerir.
— Pois é, não.
Ele parou um instante, pensando no que Anna acabava de dizer: não é
fácil de digerir. Mas como podia saber sobre François?
— Desculpe, Anna, mas como foi que você soube?
— Deu na televisão, no jornal das oito.
De que ela estava falando, afinal?
— Que televisão?
— A Televigàta. Disseram que o chefe de polícia transferiu o inquérito do
caso Licalzi para o diretor da Móvel.
Montalbano começou a rir.
— Mas pra isso eu não tou ligando! Me referia a outra coisa!
— Então me conte por que está tão abatido.
— Outra hora, desculpe.
— Afinal, você esteve com o marido de Michela?
— Sim, ontem à tarde.
— Ele falou do casamento branco entre os dois?
— Você sabia?
— Sim, ela me contou. Michela gostava muito dele, acredite. Nessas
condições, ter um amante não era exatamente uma traição. O doutor sabia de
tudo.
O telefone tocou em outra sala, Anna foi atender e voltou agitada.
— Era uma amiga minha. Parece que, uma meia hora atrás, o tal diretor
da Móvel foi à casa do engenheiro Di Blasi e levou ele pra chefatura em
Montelusa. O que será que eles querem?
— Simples: saber onde Maurizio foi parar.
— Mas então Maurizio já é considerado suspeito!
— É a coisa mais óbvia, Anna. E o doutor Ernesto Panzacchi, da Móvel,
é um homem absolutamente óbvio. Bom, obrigado pelo uísque e boa noite.
— Que é isso, você já vai?
— Desculpe, estou cansado. Amanhã a gente se vê.
Um denso e pesado mau humor tinha desabado sobre o comissário.
— Estava dormindo, doutor? Aqui é Fazio. Queria lhe informar que fizemos
uma assembleia, hoje à tarde. Escrevemos uma carta de protesto ao chefe de
polícia. Todo mundo assinou, o doutor Augello abriu a lista. Vou ler: “Nós,
abaixo assinados, integrantes do comissariado de Segurança Pública de
Vigàta, lamentamos...”
— Peraí, vocês já remeteram?
— Já, doutor.
— Mas são uns babacas mesmo! Podiam me comunicar, antes de mandar!
— Por quê? Antes ou depois, que importância tem?
— Eu convenceria vocês a não fazer uma besteira dessas.
Realmente furioso, Montalbano desligou.
Demorou para pegar no sono. Mas, depois de dormir por uma hora, acordou
de repente, acendeu a luz e sentou-se na cama. Viera-lhe uma espécie de
relâmpago, que o fez abrir os olhos. Durante a vistoria na casa de campo com
o doutor Licalzi, tinha acontecido alguma coisa, uma palavra, um som,
alguma coisa dissonante. O que era? Montalbano deu uma bronca em si
mesmo: “Mas que porra você tem a ver com isso? Essa investigação não lhe
pertence mais.”
Apagou a luz, voltou a se deitar.
“Assim como François”, acrescentou, com amargura.
Capítulo X
Passada a ponte, seguiu em frente: não queria ouvir novamente de Anna que
ele tinha de interferir. A que título? Eis o cavaleiro sem medo e sem mácula!
Eis Robin Hood, Zorro e o justiceiro noturno, todos numa só pessoa: Salvo
Montalbano!
Perdido o apetite que estava sentindo, o comissário encheu uma tigelinha
com azeitonas verdes e pretas, cortou uma fatia de pão e, enquanto beliscava,
discou o número de Nicolò Zito.
— Nicolò? Montalbano. Sabe dizer se o chefe de polícia convocou uma
coletiva?
— Está marcada para as cinco da tarde de hoje.
— Você vai?
— Claro.
— Então, me faça um favor. Pergunte a Panzacchi com que arma
Maurizio Di Blasi ameaçou os policiais. E, depois que ele responder,
pergunte se pode mostrá-la.
— O que é que tem por trás?
— Te conto na devida hora.
— Salvo, posso dizer uma coisa? Aqui, todos temos certeza de que, se a
investigação continuasse com você, Maurizio Di Blasi ainda estaria vivo.
Agora era Nicolò a se meter, como Mimì.
— Ora, vai cagar!
— Boa ideia, estou precisando, desde ontem não consigo. Olha, a coletiva
vai ser transmitida ao vivo.
Montalbano foi sentar-se na varanda, com o livro de Denevi nas mãos. Mas
não conseguiu ler. Um pensamento martelava-lhe a cabeça, o mesmo que
tinha surgido na noite anterior: o que era mesmo que ele havia visto ou
escutado de estranho, de anômalo, durante a vistoria na casa de campo com o
doutor?
Não importava o que fizesse, ler o livro ou olhar o mar, fumando um cigarro,
volta e meia a pergunta lhe voltava, precisa, insistente: o que era mesmo que
ele tinha visto ou escutado de destoante na casa de campo?
A ideia repentina veio-lhe pouco antes das oito, e ele resolveu executá-la sem
perder um minuto. Entrou no carro e partiu para Montelusa.
— Nicolò está no ar — disse uma secretária —, mas já vai terminar.
Dali a cinco minutos chegou Zito, afobado.
— Fui útil? Você viu a coletiva?
— Vi, Nicolò, e acho que acertamos em cheio.
— Dá pra me dizer por que essa bomba é tão importante assim?
— Você subestima uma bomba?
— Ora, diga logo do que se trata.
— Ainda não posso. Ou melhor, talvez você não demore a entender, mas
isso é com você, e eu não lhe contei nada.
— Prossiga, o que é que você quer que eu faça ou diga no jornal? Veio
aqui pra isso, não? Agora você é o meu diretor oculto.
— Se você fizer, te dou um presente.
Montalbano puxou do bolso uma das fotos de Michela que o doutor
Licalzi tinha lhe entregado e passou-a a Nicolò.
— Você é o único jornalista a saber como era ela. Na chefatura de
Montelusa eles não têm fotos: a carteira de identidade, a de motorista, o
passaporte, se existia, estavam na mochila que o assassino levou. Pode
mostrar aos seus espectadores, se quiser.
Nicolò torceu a boca.
— Então, o favor que você vai me pedir deve ser grande. Manda.
Montalbano levantou-se e foi virar a chave da porta da sala do jornalista.
— Não — fez Nicolò.
— Não o quê?
— Não pra qualquer coisa que você pretenda me pedir. Se trancou a
porta, nessa eu não entro.
— Se você me der uma mãozinha, depois te passo todos os elementos
para desencadear uma confusão a nível nacional.
Zito não respondeu. Estava claramente dividido, um coração de formiga e
outro de leão.
— O que é que eu devo fazer? — perguntou finalmente, a meia voz.
— Dizer que te ligaram duas testemunhas.
— Existem?
— Uma sim, outra não.
— Me conte apenas o que disse essa que existe.
— Só as duas. E pegar ou largar.
— Mas você se dá conta de que, se descobrirem que eu inventei uma
testemunha, podem me cassar o registro?
— Claro. Caso em que está autorizado a dizer que fui eu que te convenci.
Assim me mandam também pra casa, e iremos juntos plantar batatas.
— Vamos fazer o seguinte: primeiro você me fala da testemunha falsa. Se
for factível, aí você fala também da verdadeira.
— Ótimo. Bom. Hoje à tarde, depois da coletiva, ligou pra você um
cidadão que estava caçando pertíssimo do lugar onde acertaram Maurizio Di
Blasi. Ele disse que as coisas não aconteceram como Panzacchi declarou. Em
seguida, desligou, sem deixar nome e sobrenome. Estava claramente
apavorado. Você cita esse episódio só de passagem, afirma nobremente que
não quer dar muito peso a isso, pois se trata de um telefonema anônimo, e sua
deontologia profissional não lhe permite alardear insinuações anônimas.
— Enquanto isso, a coisa em si eu já terei alardeado.
— Desculpe, Nicolò, mas essa não é a técnica habitual de vocês? Jogam a
pedra e escondem a mão.
— Sobre isso, depois te digo uma coisa. Continue, fale da testemunha
verdadeira.
— Chama-se Gillo Jàcono, mas você vai dar só as iniciais, G. J., e pronto.
Esse senhor, na quarta-feira, pouco depois da meia-noite, viu o Twingo
chegando ao local, Michela e um desconhecido desembarcando e se dirigindo
tranquilamente para a casa de campo. O homem carregava uma mala. Eu
disse mala, não maleta. Ora, a pergunta é a seguinte: por que Maurizio Di
Blasi foi violentar a senhora Licalzi levando uma mala? Dentro estavam os
lençóis pra trocar, no caso da cama ficar suja? E mais: o pessoal da Móvel
achou essa mala em algum lugar? Na casa de campo, isto é certo, ela não
estava.
— Acabou?
— Acabei.
Nicolò tinha esfriado, evidentemente não havia relevado o comentário de
Montalbano sobre as práticas jornalísticas.
— Agora, a respeito da minha deontologia profissional. Hoje à tarde,
depois da coletiva, me ligou um caçador pra contar que as coisas não tinham
acontecido do jeito que a polícia descreveu. Mas, como ele não deu o nome,
eu não transmiti essa informação.
— Você tá querendo me sacanear.
— Vou chamar a secretária pra lhe mostrar a gravação do telefonema —
fez o jornalista, levantando-se.
— Desculpe, Nicolò. Não é preciso.
Capítulo XI
O chefe da Perícia tinha sido indubitavelmente sincero, não podia ser um ator
tão formidável, pensou Montalbano, enquanto dirigia de volta a Vigàta. Mas
como se consegue jogar uma bomba segurando-a unicamente com o polegar e
o indicador? A menor coisa que pode acontecer, lançando-a assim, é fazer
explodir os próprios colhões. Arquà deveria ter achado também a marca de
uma boa parte da palma da mão direita. Se só havia as do polegar e do
indicador, onde, e em que momento, os agentes da Móvel tinham feito a
operação de pegar dois dedos de Maurizio, já morto, e pressioná-los sobre a
bomba? Mal formulou essa pergunta, Montalbano passou para a outra pista e
voltou a Montelusa.
Capítulo XII
— O que é que o senhor quer? — interpelou Pasquano, assim que o viu entrar
em sua sala.
— Preciso apelar para a nossa amizade — começou Montalbano.
— Amizade? E por acaso nós somos amigos? Jantamos juntos? Trocamos
confidências?
O doutor Pasquano era assim, e o comissário não se sentiu nem um pouco
abalado por esse jeito de falar. Precisava apenas achar a frase adequada.
— Bom, se não for amizade, é estima.
— Isto, sim — admitiu Pasquano.
Tinha acertado. Agora, o caminho estava aberto.
— Doutor, que outras averiguações o senhor ainda precisa fazer no corpo
de Michela Licalzi? Tem novidades?
— Que novidades? Há muito tempo eu já avisei ao juiz e ao chefe de
polícia que, por mim, o cadáver está liberado pra ser entregue ao marido.
— Ah, é? Porque, veja bem, o próprio marido me disse que recebeu um
telefonema da chefatura informando que a cerimônia fúnebre só pode ser
feita na sexta de manhã.
— Alguma merda lá deles.
— Doutor, me desculpe por abusar da sua paciência. Tudo normal no
corpo de Maurizio Di Blasi?
— Em que sentido?
— Bom, como foi que ele morreu?
— Pergunta mais cretina! Uma rajada de metralhadora, quase cortaram o
rapaz em dois, podiam fazer um busto pra botar num pedestal.
— E o pé direito?
O doutor Pasquano entrefechou os olhos, que já eram pequeninos.
— Por que perguntar justamente sobre o pé direito?
— Porque o esquerdo não me parece interessante.
— Bom. Estava machucado, uma torção ou algo assim, ele não podia
calçar o sapato. Mas isso aconteceu alguns dias antes da morte. E o rosto
também estava inchado por uma pancada.
Montalbano teve um sobressalto.
— Bateram nele?
— Não sei. Ou ele levou uma forte porrada na cara ou tinha caído. Mas
não foram os agentes. Essa contusão também é de alguns dias antes.
— E quando foi que ele torceu o pé?
— Mais ou menos na mesma ocasião.
Montalbano levantou-se e estendeu a mão ao doutor.
— Muito obrigado, eu já vou indo. Só uma última coisa. O senhor foi
avisado logo?
— De quê?
— De que eles tinham atirado em Di Blasi.
O doutor Pasquano apertou tanto os olhinhos que parecia ter adormecido
de repente. Não respondeu logo.
— Essas coisas o senhor sonha de noite? Fala com os espíritos? As almas
lhe contam? Não, eles atiraram no rapaz às seis da manhã. Me pediram pra
chegar às dez. Disseram que antes queriam terminar as buscas na casa.
— Uma última pergunta.
— Com tantas últimas perguntas, o senhor vai me obrigar a fazer serão.
— Depois que lhe entregaram o corpo de Di Blasi, alguém da Móvel lhe
pediu permissão para examinar sozinho o cadáver?
O doutor Pasquano se espantou.
— Não. Pra que eles precisariam fazer isso?
— De onde vocês estão vindo? O que é que tem nesse pequeno cofre? —
perguntou Mimì, que era curioso como um gato.
— E você, o que me conta?
— Lofàro está doente e tirou um mês de licença. Há quinze dias foi
substituído por um tal de Culicchia.
— Conheço bem — fez Giallombardo.
— Que tipo de gente é?
— Desses que não gostam de ficar sentados na frente de uma mesa,
fazendo registros. Daria a alma pra voltar a ser operativo, quer fazer carreira.
— Ele já deu a alma — disse Montalbano.
— Posso saber o que tem aí dentro? — insistiu Mimì, cada vez mais
curioso.
— Confeitos, Mimì. Agora, escutem. A que horas Culicchia larga o
serviço? Deve ser às oito.
— Isto mesmo — confirmou Fazio.
— Quando Culicchia sair da chefatura, você, Fazio, e você,
Giallombardo, convençam ele a entrar no meu carro. Não expliquem nada.
Assim que ele se sentar com vocês, mostrem o cofre. Ele nunca viu isso daí, e
portanto vai perguntar o que significa esse teatro.
— Mas afinal se pode saber o que tem dentro? — perguntou mais uma
vez Mimì Augello, mas ninguém respondeu.
— Por que ele nunca viu?
A pergunta era de Gallo. O comissário olhou-o de banda.
— Será que vocês não raciocinam? Maurizio Di Blasi era um retardado e
uma pessoa de bem, não devia ter amigos que pudessem lhe fornecer armas
que ainda funcionassem. O único lugar onde ele poderia ter encontrado a
bomba manual é a casa de campo da família. Mas era necessária uma prova
de que ele a teria apanhado na casa. Então Panzacchi, que é muito vivo,
ordena ao seu agente que vá a Montelusa e recupere duas bombas e uma
pistola do tempo da guerra. Uma, ele diz que estava na mão de Maurizio. A
outra, junto com a pistola, ele leva consigo, arruma um cofrinho, volta
discretamente à casa de Raffadali e esconde tudo num lugar onde qualquer
pessoa iria logo procurar.
— Então é isso que tem aí dentro! — exclamou Mimì, dando um tapa na
testa.
— Em resumo, aquele corno criou uma situação extremamente plausível.
E, se alguém perguntar por que as outras armas não foram encontradas
durante a primeira busca, ele pode alegar que foi interrompido porque na
mesma hora Maurizio estava sendo descoberto, enquanto se escondia na
gruta.
— Que filho da puta! — indignou-se Fazio. — Não só mata o pobre do
rapaz, porque, embora não tenha dado os tiros, ele é o chefe e portanto, o
responsável, como ainda por cima tenta acabar com um pobre velho, pra se
safar!
— Bem, voltando ao que vocês devem fazer. Cozinhem esse Culicchia
em fogo brando. Digam que o cofrinho foi achado na casa de Raffadali.
Depois mostrem a bomba e a pistola. Em seguida, perguntem, assim como se
fosse só por curiosidade, se todas as armas sequestradas estão arroladas. E,
pra terminar, mandem ele sair do carro, mas fiquem com as armas e o cofre.
— Só isso?
— Só isso, Fazio. A iniciativa seguinte é com ele.
Capítulo XIII
Como seu carro estava com Fazio e Giallombardo, ele chamou Gallo para
saírem na viatura.
— Aonde a gente vai?
— À redação da Retelibera, em Montelusa. E não corra, veja lá, não
vamos repetir a proeza da última quinta-feira.
Gallo fechou a cara.
— Hum. Só porque me aconteceu uma vez, o senhor já entra no carro se
lastimando!
Fizeram o caminho em silêncio.
— É pra esperar? — perguntou Gallo, ao chegarem.
— É. Não vou demorar.
Nicolò Zito recebeu-o em sua sala. Estava nervoso.
— Como foram as coisas com Tommaseo?
— Como é que você queria que fossem? Ele me deu uma solene
espinafração, uma bronca de arrancar o couro. Queria os nomes das
testemunhas.
— E você, o que fez?
— Invoquei a Quinta Emenda.
— Ora, não seja cretino, ela não existe na Itália.
— Sorte nossa! Porque, nos Estados Unidos, quem apelou pra Quinta
Emenda se fodeu do mesmo jeito.
— O que foi que ele fez quando ouviu o nome de Guttadauro? Deve ter
tido alguma reação.
— Ficou enroladíssimo, parecia preocupado. De qualquer maneira, me
deu uma notificação formal. Da próxima vez não tem conversa, ele me bota
na cadeia.
— Era isso que eu queria.
— Que ele me mandasse pra cadeia?
— Não, idiota. Que ele soubesse que o advogado Guttadauro e sua turma
estão metidos nisso.
— O que será que Tommaseo vai fazer, em sua opinião?
— Levar o assunto ao chefe de polícia. Ele deve ter percebido que
também foi apanhado na rede e vai tentar cair fora. Escuta, Nicolò, eu preciso
ver isto aqui.
Nicolò pegou a fita e botou-a no videocassete. Apareceu uma panorâmica
que mostrava alguns homens no campo, os rostos não dava para distinguir.
Duas pessoas de guarda-pó branco carregavam um corpo numa padiola. Por
cima da imagem, na parte inferior, uma legenda inequívoca: MONDAY
14.04.97. Quem operava a câmera deu um zoom, e agora viam-se Panzacchi
e o doutor Pasquano conversando. Não se escutava o som. Os dois trocaram
um aperto de mãos e o doutor saiu de cena. A imagem se alargou de modo a
abranger os seis agentes da Móvel, que rodeavam seu superior. Panzacchi
lhes disse alguma coisa, e todos saíram de cena. Fim do programa.
— Caralho! — disse Zito, a meia voz.
— Me faça uma cópia.
— Aqui não tenho equipamento, tenho que ir pra outra sala.
— Sim, mas cuidado: não deixe ninguém ver.
Montalbano pegou na gaveta de Nicolò uma folha de papel e um
envelope não timbrados e sentou-se à máquina de escrever.
Não assinou nem escreveu o endereço, que sabia pelo catálogo telefônico.
Zito voltou com duas fitas.
— Esta é a original e esta é a cópia. Ficou mais ou menos, você sabe,
fazer cópia da cópia...
— Não estou concorrendo ao festival de Veneza. Me dá um envelope
grande, reforçado.
O comissário guardou consigo a cópia e pôs a carta e a fita original no
envelope. Nem mesmo neste escreveu o endereço.
Gallo, dentro da viatura, lia La Gazzetta dello Sport.
— Sabe onde é a rua Xerri? No número 18 fica o escritório do advogado
Guttadauro. Deixe lá este envelope e volte pra me apanhar.
Já passava das nove quando Fazio e Giallombardo reapareceram no
comissariado.
— Ah, doutor! Foi uma farsa e também uma tragédia! — lamentou-se
Fazio.
— O que foi que ele disse?
— Primeiro falava, e depois não — contou Giallombardo.
— Quando a gente mostrou o cofrinho, ele não entendeu. Dizia: mas o
que é isso, uma brincadeira? É uma brincadeira? Mas quando Giallombardo
informou que aquilo tinha sido achado em Raffadali, ele começou a mudar de
cara, foi ficando cada vez mais branco.
— Aí, quando viu as armas — interveio Giallombardo, que também
queria dizer seu texto —, pirou de vez. Quase teve um troço dentro do carro,
deu até medo na gente.
— Tremia, parecia com febre terçã. Depois deu um pulo, passou por cima
de mim e saiu correndo — disse Fazio.
— Corria que nem uma lebre ferida, uma perna aqui outra lá concluiu
Giallombardo.
— E agora? — perguntou Fazio.
— Demos o tiro, agora vamos esperar o eco. Obrigado por tudo.
— Nosso dever — disse Fazio, seco. E acrescentou: — Onde a gente bota
o cofrinho? No cofrão?
— Sim — respondeu Montalbano.
Na sala de Fazio havia um cofre bastante grande, para guardar não apenas
documentos, mas também drogas e armas sequestradas, antes de serem
levadas para Montelusa.
Tomou uma ducha demoradíssima, vestiu roupa de baixo limpa e ligou para
Livia. O telefone tocou uma eternidade, depois a comunicação se interrompeu
automaticamente. Mas o que estaria fazendo aquela danada? Macerando-se
na dor pelo que estava acontecendo com François? Era muito tarde para
telefonar à amiga dela e pedir notícias. Montalbano sentou-se na varanda e
dali a pouco chegou a uma decisão: se não achasse Livia nas próximas
quarenta e oito horas, mandaria tudo e todos à merda, pegaria um avião para
Gênova e ficaria com ela pelo menos por um dia.
“Me mexo eu, e do meu jeito”, bela frase, bastante ameaçadora. Mas,
concretamente, o que significava? E se o diretor da Móvel ganhasse o apoio
do chefe de polícia e este, por sua vez, conseguisse amansar o juiz
Tommaseo? Ele, Montalbano, estaria fodido e mal pago. Mas seria possível
que em Montelusa todos tivessem ficado desonestos de repente? Uma coisa é
a antipatia que uma pessoa pode provocar, outra é o caráter, a integridade
dessa pessoa.
Chegou a Marinella cheio de dúvidas e de perguntas. Teria agido bem, ao
falar daquele jeito com Panzacchi? O chefe de polícia se convenceria de que
ele não estava sendo levado pela vontade de ir à forra? Discou o número de
Livia. Como das outras vezes, ninguém atendeu. Deitou-se, mas levou umas
duas horas para conseguir fechar os olhos.
Capítulo XIV
Entrou no gabinete tão obviamente nervoso que os seus homens, pelo sim,
pelo não, acharam melhor se manter à distância. “A cama é uma grande
cousa, se não se dorme se repousa”, dizia o provérbio, mas um provérbio
equivocado, porque o comissário, na cama, não apenas havia dormido aos
pedacinhos como também se levantara como se tivesse corrido uma
maratona.
Somente Fazio, que de todos era quem tinha mais liberdade com ele,
arriscou-se a fazer uma pergunta:
— Alguma novidade?
— Só vou saber dizer depois do meio-dia.
Galluzzo apresentou-se.
— Comissário, ontem de noite eu procurei o senhor por terra e mar.
— E no ar, você olhou?
Galluzzo compreendeu que não era o caso de preâmbulos.
— Comissário, depois da transmissão do jornal das oito, ligou um cara.
Disse que na quarta-feira, por volta das oito, oito e quinze, no máximo, a
senhora Licalzi parou no posto de gasolina dele e mandou encher o tanque.
Ele deixou nome e endereço.
— Tudo bem, mais tarde a gente dá um pulinho lá.
Estava tenso, não conseguia nem examinar algum papel, consultava o
relógio a cada segundo. E se, depois do meio-dia, ninguém da chefatura desse
sinal de vida?
Às onze e meia, tocou o telefone.
— Doutor — disse Grasso —, é o jornalista Zito.
— Vou atender.
Na hora, não entendeu o que estava acontecendo.
— Tchan-tchan-tchan-tchan, tchan-tchan-tchan-tchan — fazia Zito.
— Nicolò?
— Fratelli d’Italia, l’Italia s’è desta...
Zito entoava solenemente o hino nacional.
— Ora, Nicolò, eu não tou pra brincadeiras.
— E quem está brincando? Vou ler pra você um comunicado que acabou
de chegar. Ajeite bem o rabo na poltrona. Pra seu conhecimento, ele foi
mandado para nós, para o pessoal da Televigàta e cinco correspondentes de
jornais. Vá ouvindo. “CHEFATURA DE MONTELUSA. POR MOTIVOS
ESTRITAMENTE PESSOAIS, O DOUTOR ERNESTO PANZACCHI
SOLICITOU SER AFASTADO DO CARGO DE DIRETOR DO
GRUPAMENTO MÓVEL E POSTO EM DISPONIBILIDADE. SEU
PEDIDO FOI ACEITO. O DOUTOR ANSELMO IRRERA ASSUMIRÁ
TEMPORARIAMENTE O CARGO DEIXADO VAGO PELO DOUTOR
PANZACCHI. CONSIDERANDO QUE, AO LONGO DAS
INVESTIGAÇÕES SOBRE O CRIME LICALZI, SURGIRAM NOVOS E
INESPERADOS DESDOBRAMENTOS, O DOUTOR SALVO
MONTALBANO, DO COMISSARIADO DE VIGÀTA, DARÁ
PROSSEGUIMENTO AO INQUÉRITO. ASSINADO: BONETTI-
ALDERIGHI, CHEFE DE POLÍCIA DE MONTELUSA.” Ganhamos,
Salvo!
Montalbano agradeceu ao amigo e desligou. Não estava contente: a
tensão tinha desaparecido, claro, a resposta esperada havia chegado, mas ele
sentia uma espécie de mal-estar, um intenso desagrado. Sinceramente,
maldisse Panzacchi, não tanto pelo que este tinha feito, mas por havê-lo
obrigado a agir de um modo que agora lhe pesava.
A porta se escancarou e todos irromperam.
— Doutor! — disse Galluzzo. — O meu cunhado acabou de me ligar da
Televigàta. Chegou um comunicado...
— Já sei, já conheço.
— Então a gente vai comprar uma garrafa de espumante e...
Sob o olhar severo de Montalbano, Giallombardo gelou, e não conseguiu
terminar a frase. Saíram todos lentamente, resmungando baixinho. Que
temperamento esquisito o deste comissário!
Na manhã seguinte, ele já estava pronto para pegar o carro e seguir para o
trabalho quando o telefone tocou. Por um momento, sentiu-se tentado a não
atender: um telefonema para a sua casa, àquela hora, certamente significava
um chamado do comissariado, algum aborrecimento, alguma chateação.
Depois, o indubitável poder que o telefone exerce sobre as pessoas levou
a melhor.
— Salvo?
Ao reconhecer imediatamente a voz de Livia, ele sentiu que suas pernas
viravam ricota.
— Livia! Até que enfim! Onde você está?
— Em Montelusa.
E o que fazia ela em Montelusa? Quando tinha chegado?
— Vou te buscar. Você está na estação?
— Não. Se você me esperar, daqui a meia hora, no máximo, chego a
Marinella.
— Eu espero.
Mas o que era aquilo? Que merda estaria acontecendo? Montalbano ligou
para o comissariado.
— Não telefonem aqui pra casa.
Em meia hora, tomou quatro xícaras de café. Repôs no fogo a cafeteira.
Depois, ouviu o barulho de um automóvel que chegava e parava. Devia ser o
táxi de Livia. Ele abriu a porta. Não era um táxi, mas o carro de Mimì
Augello. Livia desceu, o carro fez uma curva e foi embora.
Montalbano começou a entender.
Desarrumada, despenteada, olheiras, pálpebras inchadas pelo choro. Mas,
sobretudo, como conseguira se tornar tão miudinha e frágil? Um passarinho
depenado. Montalbano sentiu-se invadir pela ternura, pela comoção.
— Vem cá — disse ele. Pegando-a pela mão, conduziu-a para dentro de
casa e sentou-a na sala de jantar. Livia estremeceu.
— Está com frio?
— Estou.
Ele foi ao quarto, pegou um paletó e cobriu com ele os ombros da moça.
— Quer um café?
— Quero.
O café acabava de ficar pronto, ele o serviu fervendo. Livia tomou-o
como se estivesse frio.
Bateu de leve na porta e, enquanto isso, lembrou-se de que sua pistola tinha
ficado no porta-luvas do carro.
— Pode entrar, está aberta.
O antiquário estava reclinado na cama, as mãos atrás da nuca. Havia
tirado somente os sapatos e o paletó, mantendo a gravata sem afrouxar. Ao
ver o comissário, pulou em pé, como aqueles bonecos de mola que saltam
assim que a gente abre a tampa da caixa que os comprime.
— Fique à vontade, fique à vontade — fez Montalbano.
— Ora, por favor! — disse Serravalle, calçando precipitadamente os
sapatos. Vestiu inclusive o paletó. Montalbano sentara-se numa cadeira, o
estojo sobre os joelhos.
— Pronto. A que devo a honra?
O antiquário evitava cuidadosamente olhar para o estojo.
— Daquela vez, por telefone, o senhor disse que se colocava à minha
disposição, se eu viesse a precisar.
— Certamente, e repito — disse Serravalle, sentando-se por sua vez.
— Eu evitaria esse transtorno, mas, já que o senhor veio para o funeral,
quero aproveitar.
— É um prazer. O que eu devo fazer?
— Apenas me ouvir.
— Não entendi bem, queira desculpar.
— Me escutar. Quero lhe contar uma história. Se achar que eu estou
exagerando ou dizendo coisas equivocadas, me interrompa, me corrija.
— Não vejo como eu poderia fazer isso, comissário. Eu não conheço a
história que o senhor vai contar.
— Tem razão. Nesse caso, me diga suas impressões quando eu chegar ao
fim. O protagonista da minha história é um cavalheiro que vive muito bem, é
um homem de bom gosto, proprietário de uma conhecida loja de móveis
antigos, com uma boa clientela. Uma atividade que o nosso herói herdou do
pai.
— Com licença — fez Serravalle —, sua história se passa onde?
— Em Bolonha — disse Montalbano, continuando: — Mais ou menos no
ano passado, esse cavalheiro conhece uma jovem senhora da alta burguesia.
Os dois se tornam amantes. Um relacionamento que não corre perigo: o
marido dela, por razões que seria demorado explicar agora, fecha, como se
costuma dizer, não um olho, mas os dois. Essa senhora quer muito bem ao
marido, mas, sexualmente, é muito apegada ao amante.
O comissário se interrompeu.
— Posso fumar? — perguntou.
— Mas é claro — disse Serravalle, passando-lhe um cinzeiro.
Montalbano puxou o maço do bolso, devagar, tirou três cigarros e
enrolou-os um a um entre o polegar e o indicador, optou por aquele que lhe
pareceu mais macio, voltou a guardar os outros dois no maço e começou a se
apalpar, procurando o isqueiro.
— Infelizmente não posso ajudá-lo, não fumo — fez o antiquário.
O comissário achou finalmente o isqueiro no bolso do paletó, examinou-o
como se nunca o tivesse visto, acendeu o cigarro e repôs o isqueiro no bolso.
Antes de recomeçar a falar, observou Serravalle, com olhar
aparentemente distraído. O antiquário tinha o lábio superior úmido e
começava a transpirar.
— Onde foi mesmo que eu parei?
— Na mulher que era muito apegada ao amante.
— Ah, sim. Infelizmente, o nosso protagonista tem um vício muito feio.
Aposta alto, jogos de azar. Neste último trimestre, foi surpreendido por três
vezes em cassinos clandestinos. Um dia, imagine, leva uma surra e acaba no
hospital. Ele diz que foi vítima de agressão e roubo, mas a polícia supõe,
repito, supõe, que tenha sido uma espécie de aviso por dívidas de jogo não
saldadas. De qualquer modo, para o nosso protagonista, que continua a jogar
e a perder, a situação vai ficando cada vez mais difícil. Ele se lamenta com a
amante, e esta procura ajudá-lo como pode. Ela tem a intenção de mandar
construir uma casinha aqui, porque adora o lugar. E a casa se revela uma feliz
oportunidade: inflando as despesas, a moça poderá arranjar para o amigo uns
cem milhões. Projeta um jardim e, provavelmente, fará uma piscina: novas
fontes de dinheiro por fora. Mas essas somas não passam de uma gota no
deserto, só duzentos ou trezentos milhões. Um dia, essa moça, que pra
facilitar a narrativa chamarei de Michela...
— Um momento — interrompeu Serravalle, com uma risadinha que
pretendia ser sardônica. — E o nome do protagonista?
— Guido, digamos assim — retrucou Montalbano, como se isso não
tivesse a menor importância.
Serravalle fez uma careta. Agora, o suor grudava-lhe a camisa ao peito.
— Não gosta? Também podemos chamá-los de Paolo e Francesca, se
preferir. Até porque a substância não muda.
O comissário esperou que Serravalle dissesse alguma coisa, mas, como o
antiquário não abria a boca, prosseguiu.
— Um dia, Michela encontra em Vigàta um famoso violinista que vive
retirado aqui. Nasce entre os dois uma simpatia, e ela revela ao mestre que
possui um velho violino herdado do bisavô. Michela mostra o instrumento ao
mestre, acho que meio por brincadeira, e este, logo à primeira vista, percebe
estar diante de um objeto de altíssimo valor, musical e pecuniário. Algo que
ultrapassa os dois bilhões. Ao voltar para Bolonha, Michela conta essa
história ao amante. Se as coisas forem como diz o mestre, o violino é
perfeitamente vendável, o marido de Michela só deve tê-lo visto uma ou duas
vezes, ninguém conhece o verdadeiro valor do instrumento. Bastará substituí-
lo, botar no estojo uma porcaria de violino qualquer, e Guido, finalmente,
estará livre de preocupações.
Montalbano parou de falar, tamborilou com os dedos no estojo e suspirou.
— Agora vem a pior parte — disse.
— Bem — fez Serravalle —, o senhor pode terminar de contar em outra
ocasião.
— Eu poderia, mas para isso precisaria fazer o senhor voltar de Bolonha
pra cá, ou então ir eu mesmo pra lá. Muito incômodo. Já que o senhor está
fazendo a cortesia de me ouvir com paciência, embora esteja morrendo de
calor, vou explicar por que considero esta próxima parte como a pior.
— E isso porque o senhor vai ter que falar de um homicídio?
Montalbano olhou o antiquário, de boca aberta.
— Por isso, acha? Não, aos homicídios eu estou habituado. Considero
essa parte como a pior porque devo abandonar os fatos concretos e penetrar
na mente de um homem, naquilo que ele pensa. Para um romancista, o
caminho seria mais fácil, mas eu sou apenas um leitor de livros que considero
bons. Queira me desculpar pela divagação. A esta altura, o nosso protagonista
coleta algumas informações sobre o mestre de que Michela lhe falou. E assim
descobre que se trata não só de um grande intérprete, de nível internacional,
mas também de um conhecedor da história do instrumento que ele toca. Em
suma, a possibilidade de que o mestre esteja certo é de noventa e nove por
cento. Porém, não há dúvida de que o assunto, se for deixado nas mãos de
Michela, vai demorar a se resolver. E não só isso: ela vai querer vender o
instrumento até mesmo com discrição, mas legalmente. Ou seja, daqueles
dois bilhões, tirando despesas várias, percentuais e o nosso Estado, que vai
cair em cima como um ladrão pra receber a sua parte, só vai restar menos de
um milhão. Mas existe um caminho mais curto. O nosso protagonista pensa
nele dia e noite, conversa com um amigo. Este amigo, digamos que se chama
Eolo...
Estava indo bem, a suposição se transformara em certeza. Como se
alvejado por um tiro de grosso calibre, Serravalle dera um pulo da cadeira,
para voltar a cair sentado com todo o peso. Depois afrouxou o nó da gravata.
— Sim, vamos chamá-lo de Eolo. Eolo concorda com o protagonista em
que só existe um caminho: liquidar a moça e pegar o violino, substituindo-o
por um outro de pouco valor. Serravalle convence o amigo a lhe dar uma
mãozinha. A propósito, a amizade entre eles é clandestina, talvez de jogo,
Michela nunca viu a cara de Eolo. No dia marcado, os dois amigos pegam o
último voo de Bolonha que tenha conexão em Roma para Palermo. Eolo
Portinari...
Serravalle estremeceu de leve, como quando se dispara um segundo tiro
sobre um moribundo.
— ... mas que idiota eu sou, botei até um sobrenome! Bem, Eolo Portinari
viaja sem bagagem ou quase, mas Guido tem uma mala grande. No avião, os
dois fingem não se conhecer. Pouco antes de partir de Roma, Guido telefona
pra Michela e diz que está chegando, que precisa dela, pede que ela vá buscá-
lo no aeroporto de Punta Ràisi, talvez dê a entender que está fugindo dos
credores, os quais pretendem matá-lo. Chegados a Palermo, Guido parte pra
Vigàta com Michela, enquanto Eolo aluga um carro e vai também pra Vigàta,
mantendo-se, porém, a uma certa distância. Eu suponho que, durante a
viagem, o protagonista diga à amante que, se não fugisse de Bolonha,
dançaria de vez. E que pensou em se esconder por alguns dias na casinha de
campo de Michela. Quem teria a ideia de ir procurá-lo naquele lugar?
Michela concorda, feliz por ter consigo o amante. Antes de chegar a
Montelusa, ela para num bar, compra dois sanduíches e uma garrafa de água
mineral. Mas tropeça num degrau e cai, ocasião em que Serravalle é visto de
frente pelo dono do bar. Os dois chegam à casa depois da meia-noite.
Michela vai logo tomar um banho e corre para os braços do seu homem. Eles
fazem amor uma vez, e depois Guido pede a Michela pra repetir a dose de um
modo particular. E, no fim dessa segunda relação sexual, empurra a cabeça
dela contra o colchão até sufocá-la. Sabe por que ele pediu pra ter esse tipo de
relação? Certamente, os dois já tinham transado assim antes, mas, naquele
momento, Guido não queria que sua vítima o olhasse de frente, enquanto era
assassinada. Mal acaba de cometer o crime, o protagonista escuta uma
espécie de lamento, um grito abafado, vindo lá de fora. Ele se debruça e,
auxiliado pela luz que se projeta da janela, percebe um voyeur, pelo menos é
o que lhe ocorre, encarapitado numa árvore muito próxima, e que assistiu ao
crime. Nuzinho como está, o protagonista sai correndo, arma-se com alguma
coisa e dá uma pancada no rosto do desconhecido, que mesmo assim
consegue fugir. Não há um minuto a perder. Nosso protagonista se veste, abre
a cristaleira, apanha o violino, guarda-o na mala, tira dessa mesma mala o
violino barato e bota-o no estojo do outro. Daí a poucos minutos, Eolo passa
com o carro e o protagonista embarca. Não importa o que eles fazem depois.
O fato é que, na manhã seguinte, estão em Punta Ràisi e pegam o primeiro
voo pra Roma. Até aqui, tudo correu bem pro nosso homem, que certamente
se mantém informado dos desdobramentos comprando os jornais sicilianos. E
as coisas melhoram ainda mais quando ele fica sabendo que o assassino foi
descoberto e que, antes de ser morto num confronto a tiros, teve tempo para
se dizer culpado. O protagonista compreende que não há mais necessidade de
esperar pra botar o violino à venda, clandestinamente, e encarrega Eolo
Portinari de cuidar do negócio. Mas surge uma complicação: o protagonista
toma conhecimento de que as investigações foram reabertas. Aproveita a
oportunidade da cerimônia fúnebre e se precipita pra Vigàta, a fim de falar
com a amiga de Michela, a única que ele conhece de nome e que tem
condições de lhe dizer como andam as coisas. Depois volta pro hotel. E, a
esta altura, vem um telefonema de Eolo: o violino vale poucas centenas de
milhares de liras. O protagonista compreende que está fodido, matou uma
pessoa inutilmente.
— Então — fez Serravalle, que parecia ter lavado a cara sem se enxugar,
tão ensopado estava de suor —, o seu protagonista foi cair naquela margem
mínima de erro, a de um por cento, atribuída aos cálculos do mestre.
— Pois é, quando uma pessoa não tem sorte no jogo... — foi o
comentário de Montalbano.
— Bebe alguma coisa?
— Não, obrigado.
Serravalle abriu o frigobar, pegou três garrafinhas de uísque, virou-as
num copo, sem gelo, e bebeu tudo em dois tragos.
— É uma história interessante, comissário. O senhor sugeriu que eu
fizesse minhas observações no fim e, se me permite, vou fazê-las.
Começando. O seu protagonista não deve ter sido bobo de viajar de avião
usando o verdadeiro nome, certo?
Montalbano puxou do bolso, o suficiente para que o outro visse, a
pontinha do cartão de embarque.
— Não, comissário, isso daí não serve de nada. Admitindo-se que exista
um cartão de embarque, isso não significa nada, mesmo que tenha o nome do
protagonista. Qualquer um pode usar, eles não pedem a carteira de
identidade. E quanto ao encontro no bar... O senhor diz que aconteceu à
noite, e durante poucos segundos. Seria um reconhecimento inconsistente,
concorda?
— Seu raciocínio faz sentido — disse o comissário.
— Continuando. Proponho uma variante para a sua narrativa. O
protagonista confidencia a descoberta da amante a um cara chamado Eolo
Portinari, um delinquente de quinta categoria. E Portinari, vindo a Vigàta por
iniciativa própria, faz tudo o que o senhor atribui ao seu protagonista.
Portinari alugou o carro mostrando a própria carteira de motorista, Portinari
tentou vender o violino em relação ao qual o mestre se enganou, e foi
Portinari quem violentou a mulher, pra aparentar um crime passional.
— Sem ejacular?
— Claro! Do esperma se chegaria facilmente ao DNA.
Montalbano levantou dois dedos, como se pedisse licença para ir ao
banheiro.
— Eu gostaria de dizer duas coisas sobre suas observações. O senhor tem
toda a razão: demonstrar a culpa do protagonista vai ser demorado e difícil,
mas não impossível. Portanto, de hoje em diante, o protagonista terá dois cães
ferozes em seus calcanhares: os credores e a polícia. A segunda coisa é que o
mestre não se enganou ao avaliar o instrumento. O violino vale realmente
dois bilhões.
— Mas se agora há pouco...
Serravalle compreendeu que estava se traindo e calou-se de repente.
Montalbano continuou, como se não tivesse ouvido.
— Meu protagonista é muito esperto. Imagine que ele continua a ligar
para o hotel, procurando pela moça, mesmo depois de matá-la. Mas ele não
sabe de um detalhe.
— Qual?
— Veja bem, a coisa é tão inacreditável que eu estou quase não contando.
— Faça um esforço.
— Não sei se consigo. Tá bom, só mesmo pra lhe fazer um favor. Tendo
sabido, pela amante, que o mestre se chama Cataldo Barbera, o meu
protagonista recolheu muitas informações sobre ele. Então, o senhor agora
chama o telefonista e pede uma ligação pro mestre, o número está no
catálogo. Fale com ele em meu nome, peça que ele mesmo lhe conte.
Serravalle levantou-se, pegou o fone, disse ao telefonista com quem
desejava falar e ficou esperando, com o aparelho na mão.
— Alô? É o mestre Barbera?
Assim que ouviu a resposta, desligou.
— Prefiro ouvir da sua voz.
— Pois não. Dona Michela leva o mestre à casa de campo, tarde da noite.
Cataldo Barbera, mal vê o violino, quase desmaia. Toca o instrumento e não
tem mais dúvidas: trata-se de um Guarnieri. Ele comenta isso com Michela e
diz que gostaria de submetê-lo ao exame de um perito competente. Ao
mesmo tempo, aconselha a moça a não guardar o violino naquela casinha de
campo, praticamente desabitada. Ela então o deixa com o mestre, que o leva
para casa e, em troca, entrega um violino dele pra Michela botar no estojo. O
mesmo que o meu protagonista, sem saber de nada, se precipita em roubar.
Ah, eu já ia esquecendo: o meu protagonista, depois de matar Michela,
também rouba a bolsa cheia de joias e o Piaget. Como é que se diz mesmo?
Tudo dá caldo. E ele ainda some com as roupas e os sapatos, mas isso é pra
turvar ainda mais a água e tentar evitar o exame de DN A.
Montalbano esperava tudo, menos a reação de Serravalle. De início,
achou que o antiquário, agora de costas e olhando para fora pela janela,
estava chorando. Depois Serravalle se voltou e Montalbano percebeu que, ao
contrário, ele estava era contendo, com dificuldade, um ataque de riso. Mas
bastou que, por um segundo, os olhares dos dois se cruzassem para a risada
explodir em toda a sua violência. Serravalle ria e chorava. A seguir, com
evidente esforço, acalmou-se.
— Talvez seja melhor eu ir com o senhor — disse.
— É o que eu lhe aconselho — fez Montalbano. — O pessoal que
aguarda o senhor em Bolonha tem outras intenções.
— Vou botar alguma coisa numa valise e podemos sair.
Montalbano viu-o inclinar-se para a maleta que estava sobre uma
bancada. Mas alguma coisa na atitude de Serravalle o assustou, e ele pulou
em pé.
— Não! — gritou o comissário. E precipitou-se.
Tarde demais. Guido Serravalle já metera na boca o cano de um revólver
e apertara o gatilho. Contendo a custo a sensação de nojo, o comissário
passou as mãos no rosto, do qual escorria uma matéria viscosa e quente.
Capítulo XVIII
Não foi preciso dizer “todo mundo!”, pois, espontaneamente, todo mundo se
apresentou. E o comissário deu a satisfação que eles mereciam: explicou,
tintim por tintim, desde o nascimento das suspeitas sobre Serravalle até o
trágico desfecho. A observação mais inteligente partiu de Mimì Augello.
— Ainda bem que ele se matou. Seria difícil meter esse homem na cadeia
sem uma prova concreta. Um bom advogado logo conseguiria tirar ele de lá.
— Mas ele se suicidou! — disse Fazio.
— E o que significa isso? — retrucou Mimì. — Aliás, a morte do pobre
Maurizio Di Blasi pode ter sido suicídio também. Quem nos diz que ele não
saiu da gruta, com o sapato na mão, esperando que os agentes atirassem,
como aconteceu, achando que aquilo era uma arma?
— Desculpe, comissário, mas por que ele gritava que queria ser punido?
— perguntou Germanà.
— Porque havia assistido ao crime e não tinha conseguido impedi-lo —
concluiu Montalbano.
Enquanto saíam todos da sala, o comissário lembrou-se de uma coisa que
precisava mandar fazer logo, sob o risco de, no dia seguinte, tê-la esquecido
inteiramente.
— Gallo, venha cá. Vá até a nossa garagem, pegue todos os papéis que
estiverem dentro do Twingo e me traga. Fale com o nosso mecânico e peça
um orçamento para o conserto. Depois, diga que ele pode vender o carro de
segunda mão, se tiver interesse.
Desde o princípio, tudo tinha sido uma troca atrás da outra. Maurizio tomado
por um assassino, o sapato confundido com uma arma, um violino substituído
por outro e este, por um terceiro, Serravalle querendo se fazer passar por
Spina... Depois da ponte, Montalbano parou o carro, mas não desceu. Havia
luz na casa de Anna, ele sentia que ela o esperava. Acendeu um cigarro, mas,
chegado à metade, jogou-o pela janela, ligou o motor e partiu.
Realmente, não era o caso de acrescentar à lista mais uma troca.
[1] “Carapinhada”, refresco de laranja ou limão com bastante gelo moído. (N. da T.)
[2] Alusão a um episódio da luta pela independência e unificação da Itália, no século XIX.
Belfiore, nos arredores de Mântua, é um vale próximo a um lago em cuja margem foram
executados alguns rebeldes. (N. da T.)
[3] Jogo de palavras com lattemiele, literalmente “leitemel”, indivíduo um tanto meloso, a
ponto de parecer falso. (N. da T.)
[4] Famoso e controvertido apresentador de programas e concursos na tevê, ex-diretor
artístico e apresentador do festival de música de San Remo. (N. da T.)
[5] Poeta, romancista, crítico, gramático e dicionarista, durante algum tempo o italiano
Nicolò Tommaseo (1802-1874) exerceu sobre os escritores de sua época uma espécie de
ditadura da linguagem. (N. da T.)
[6] Cerca de R$ 500 mil. (N. da T.)
[7] Folhas e brotos de abobrinha siciliana cozidos “no ponto certo”. (N. da T.)
[8] Arma dei Carabinieri, ou Arma Benemerita, corpo do exército italiano com funções de
polícia militar, judiciária e civil. Esta última atribuição coincide com as de Montalbano e
sua equipe. (N. da T.)
[9] Ou caponata, prato siciliano feito à base de berinjela frita, alcaparra, azeitona e aipo,
com tempero agridoce, e servido frio. (N. da T.)
[10] O cannoli, “canudinho”, consiste num cilindro de massa recheado com uma mistura
de ricota, açúcar, frutas cristalizadas, chocolate, baunilha etc., recheio esse que pode variar,
segundo a região. Taralli é uma espécie de rosca, temperada com sementes de anis, que
pode ou não levar açúcar. O tetù é o taralli colorido. Mostazzoli são docinhos feitos de
farinha misturada com mel ou mosto cozido, chocolate, uvas-passas, figos secos e
amêndoas trituradas. Frutti di martorana: docinhos modelados sob várias formas (legumes,
peixinhos, frutas) e distribuídos no Dia de Finados, tradição que parece ter-se originado
num convento anexo à igreja da Martorana, em Palermo. A cassata siciliana é uma torta
feita com ricota e guarnecida com cubinhos de chocolate e frutas cristalizadas. (N. da T.)
[11] Depois de cozidos em água e sal e cortados em pedacinhos, os polvos são temperados
com caldo de limão, azeite, salsa, alho, sal e pimenta. (N. da T.)
[12] Nome dado na Itália a Larry Semon (1889-1928), comediante americano de cinema
mudo. (N. da T.)
[13] Massa gratinada ao forno, em camadas alternadas com carne moída, berinjela,
mortadela ou salame, ovos cozidos, três tipos de queijo e alguns outros ingredientes. (N. da
T.)