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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Camilleri, Andrea, 1925-


A voz do violino / Andrea Camilleri; tradução de Joana Angélica D’Ávila
Melo — Rio de Janeiro: Record, 2001. — (Coleção Negra)

Tradução de: La voce del violino


ISBN 978-85-01-05616-0

1. Ficção policial. 2. Romance italiano. I. Melo, Joana Angélica D’Ávila. II.


Título. III. Série.

01-0057 CDD: 853


CDU: 850-3

Copyright © 1998 by Sellerio editore via Siracusa 50 Palermo

Título original:
LA VOCE DEL VIOLINO

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que se reserva a propriedade literária desta tradução
Produzido no Brasil
ISBN 978-85-01-05616-0
Capítulo I

Que o dia não iria ser lá estas coisas o comissário Salvo Montalbano logo
percebeu, assim que abriu as persianas do quarto. Ainda era noite, faltava
pelo menos uma hora para a alvorada, mas a escuridão já se mostrava menos
densa, o suficiente para deixar ver o céu coberto por densas nuvens de água e,
para além da clara faixa da praia, o mar, que parecia um cachorro pequinês.
Desde o dia em que um minúsculo cão daquela raça, todo encrespadinho,
depois de latir cuspindo um furioso escarro, abocanhara-lhe dolorosamente a
batata da perna, Montalbano referia-se desse jeito ao mar, quando agitado por
rajadas curtas e frias que provocavam miríades de pequenas ondas encimadas
por ridículos penachos de espuma. Seu humor ficou pior ainda, visto que
aquilo que devia fazer pela manhã não era nada agradável: comparecer a um
funeral.

Na noite anterior, tendo encontrado na geladeira fresquíssimas anchovas


compradas pela empregada Adelina, traçara-as todas em salada, temperadas
com muito suco de limão, azeite de oliva e pimenta-do-reino moída na hora.
Deliciosas, mas um telefonema arruinara tudo.
— Alô, dotor? Dotor, é o senhor mesmo pessoalmente no telefone?
— Eu mesmo pessoalmente, Catarè. Pode falar.
No comissariado, havia escalado Catarella para a mesa telefônica, com
base na equivocada convicção de que, nesse lugar, ele talvez causasse menos
dano que em outro. Depois de alguns solenes esculachos, Montalbano
compreendera que o único jeito de manter com ele um diálogo dentro de
limites suportáveis de delírio era adotar a mesma linguagem.
— Peço perdoança e compriensão, dotor.
Ai. Perdão e compreensão, era o que ele pedia. Montalbano aguçou os
ouvidos: quando o assim chamado italiano de Catarella se impregnava de
pompa e cerimônia, isso significava que o pobrema era sério.
— Pode falar sem hesitança, Catarè.
— Três dias atrás procuraram o senhor pessoalmente em sua pessoa,
dotor, o senhor num estava, mais eu m’esqueci de fazer referência.
— De onde ligaram?
— Da Flórida, doutor.
Montalbano se apavorou, literalmente. Num breve lampejo, viu-se metido
num jogging felpudo, fazendo footing junto com garbosos e atléticos agentes
americanos da antinarcóticos, com ele empenhados numa complexa
investigação sobre o tráfico de drogas.
— Só pra esclarecer, como foi que vocês se falaram?
— E como é que nós devíamos se falar? Em italiano, doutor.
— Eles disseram o que queriam?
— Claro, me disseram tudo tudinho. Disseram assim, que morreu a
mulher do subchefe de polícia Tamburanno.
Montalbano não pôde conter um suspiro de alívio. Não era da Flórida que
haviam telefonado, mas do comissariado de Floridia, perto de Siracusa.
Caterina Tamburrano estava doente há muito tempo, a notícia não era
surpresa.
— Dotor, o senhor ainda está aí pessoalmente?
— Continuo pessoalmente eu, Catarè, não mudei.
— Também disseram que a cerimônia vai ser na quinta de manhã às
nove.
— Quinta? Ou seja, amanhã de manhã?
— Isso, dotor.
Era muito amigo de Michele Tamburrano para não ir ao enterro, até
mesmo para tentar consertar o fato de não se ter manifestado antes, nem
sequer por um telefonema. De Vigàta a Floridia, no mínimo três horas e meia
de automóvel.
— Escuta, Catarè, o meu carro tá na oficina. Preciso de uma viatura de
serviço pra amanhã de manhã, exatamente às cinco, aqui em casa, em
Marinella. Avise ao doutor Augello que eu vou estar ausente, mas volto no
começo da tarde. Entendeu bem?

Saiu do chuveiro com a pele da cor de uma lagosta: para compensar a


sensação de frio experimentada à visão do mar, abusara da água quente.
Começou a fazer a barba e escutou o barulho da viatura chegando. De resto,
quem não escutaria, no raio de uns dez quilômetros? O carro se catapultou,
supersônico, freou com grande barulho, disparando rajadas de cascalho que
ricochetearam em todas as direções, depois houve um desesperado rugido de
motor acelerado, uma dilacerante mudança de marcha, uma agudíssima
cantada de pneus e, por fim, mais uma rajada de cascalho. O chofer havia
manobrado para se colocar na posição de retorno.
Quando chegou lá fora, pronto para a partida, Montalbano deu de cara
com um exultante Gallo, que era o motorista oficial do comissariado.
— Olha só, doutor! Olha as marcas. Que manobra. Fiz o carro dar um
giro completo!
— Parabéns — fez Montalbano, cavernoso.
— Ligo a sirene? — quis saber Gallo, na hora de sair.
— Ligue. No cu — respondeu Montalbano, iracundo. E fechou os olhos,
não estava com vontade de falar.

Mal viu seu superior baixar as pálpebras, Gallo, que sofria do complexo de
Indianápolis, começou a aumentar a velocidade, a fim de alcançar uma
quilometragem horária à altura da capacidade de direção que acreditava
possuir. E assim foi que, em menos de quinze minutos de viagem, aconteceu
a batida. Com o guinchar da freada. Montalbano abriu os olhos mas não viu
nada, sua cabeça foi violentamente impulsionada para frente antes de
empurrada de volta pelo cinto de segurança. Seguiu-se um devastador
barulho de lataria contra lataria e depois voltou o silêncio, um silêncio de
conto de fadas, com gorjeios de passarinhos e latidos de cachorros.
— Você se machucou? — perguntou o comissário a Gallo, vendo que
este massageava o peito.
— Não. E o senhor?
— Nada. Mas como foi?
— Uma galinha me cortou o caminho.
— Eu nunca vi galinha atravessar quando vem carro. Vamos ver o
prejuízo.
Desceram. Não passava vivalma. As marcas da longa freada estavam
impressas no asfalto: bem no início delas, notava-se um montinho escuro.
Gallo foi olhar de perto e virou-se, triunfante, para o comissário.
— Eu não disse? Uma galinha!
Suicídio, claro estava. O carro contra o qual eles tinham ido bater,
arrebentando-lhe toda a traseira, devia ter sido regularmente estacionado à
margem da pista, mas a pancada o deixara um pouquinho de través. Era um
Renault Twingo verde-garrafa, parado de modo a fechar uma trilha
esburacada que, uns trinta metros adiante, terminava numa casinha de campo
de dois andares, porta e janelas fechadas. Na viatura, o saldo era um farol
arrebentado e o para-lama direito amassado.
— E agora, o que é que a gente faz? — perguntou Gallo, desconsolado.
— Vamos embora. Você acha que o nosso carro funciona?
— Vamos tentar.
De marcha a ré, ferragens gemendo, a viatura libertou-se do
encastramento com o outro automóvel. Ninguém apareceu em alguma das
janelas da casa, nem mesmo desta vez. Deviam estar dormindo um sono de
chumbo, porque seguramente o Twingo pertencia a alguém dali, não havia
outra habitação nos arredores. Enquanto Gallo tentava, com as duas mãos,
desempenar o para-lama que se atritava com o pneu, Montalbano escreveu
num pedacinho de papel o número do telefone do comissariado e meteu-o
embaixo do limpador de para-brisa do Twingo.

O que tem de dar errado, dará. Cerca de meia hora depois da nova partida,
Gallo começou a massagear o peito, fazendo de vez em quando uma cara
retorcida de dor.
— Deixe, eu dirijo — disse o comissário, e Gallo não protestou.
Quando chegaram à altura de Fela, Montalbano, em vez de seguir pela
estrada principal, entrou por um desvio que levava ao centro da cidade. Gallo
não percebeu: mantinha os olhos fechados e a cabeça apoiada no vidro da
janela.
— Onde estamos? — perguntou, abrindo os olhos, ao perceber que o
carro parava.
— Vou te levar ao hospital de Fela. Desça.
— Mas não foi nada, comissário.
— Desça. Quero que eles deem uma olhada em você.
— Então o senhor me deixa aqui e continua. Na volta, me apanha.
— Para de falar besteira. Anda.
Entre auscultações, tríplice medição da pressão, radiografias e coisa e tal,
a olhada que deram em Gallo demorou mais de duas horas. Por fim,
sentenciaram que o agente não tinha quebrado nada, a dor resultava da
pancada de mau jeito contra o volante, e a fraqueza devia ser atribuída à
reação pelo susto que ele tomara.
— E agora, o que é que a gente faz? — voltou a perguntar Gallo, cada
vez mais desconsolado.
— Fazer o quê? Vamos continuar. Mas dirijo eu.

Já estivera em Floridia umas duas ou três vezes, lembrava inclusive onde


morava Tamburrano. Por isso, encaminhou-se para a igreja da Madonna delle
Grazie, que era quase grudada à casa do colega. Chegado à praça, viu a igreja
paramentada de luto, gente entrando apressadamente. A função devia ter
começado com atraso, afinal os contratempos não aconteciam só com ele.
— Eu vou à garagem do comissariado, pra mandar ver o carro — disse
Gallo —, e depois passo aqui pra apanhar o senhor.
Montalbano entrou na igreja apinhada, a cerimônia estava bem no início.
Olhou ao redor: não reconheceu ninguém. Tamburrano devia estar na
primeira fila, junto ao caixão, diante do altar-mor. O comissário decidiu ficar
onde se encontrava, ao lado da porta principal: apertaria a mão de
Tamburrano quando o féretro saísse da igreja. Às primeiras palavras do
padre, a certa altura da missa, ele tomou um susto. Escutara direito, disso não
tinha dúvida.
O padre começara a dizer:
— O nosso caríssimo Nicola deixou este vale de lágrimas...
Enchendo-se de coragem, Montalbano cutucou o ombro de uma velhinha.
— Com licença, minha senhora, de quem é este funeral?
— Do pobre contador Pecoraro. Por quê?
— Achei que fosse da senhora Tamburrano.
— Ah. Mas esse foi na igreja de Sant’Anna.
Para chegar a pé à igreja de Sant’Anna, ele levou uns quinze minutos,
quase correndo. Arfante e suado, trombou com o pároco na nave deserta.
— Por favor, o funeral da senhora Tamburrano?
— Acabou quase duas horas atrás — disse o pároco, esquadrinhando-o
severamente.
— Sabe se ela vai ser sepultada aqui? — perguntou Montalbano, evitando
o olhar do reverendo.
— Não! Quando a cerimônia terminou, eles a levaram para Vibo
Valentia. Vai ser enterrada lá, no jazigo da família. O marido, o viúvo,
acompanhou o féretro no carro dele.
E, assim, tudo fora inútil. O comissário havia notado, na praça da
Madonna delle Grazie, um café com mesas ao ar livre. Quando Gallo chegou,
com o carro ajeitado da melhor maneira, já eram quase duas da tarde.
Montalbano contou-lhe o que havia acontecido.
— E agora, o que é que a gente faz? — perguntou Gallo pela terceira vez
naquele dia, perdido num abismo de desconsolo.
— Você come um brioche com granita[1], que eles aqui sabem fazer, e
depois a gente volta. Se o Senhor nos assiste e Nossa Senhora nos
acompanha, ali pelas seis da tarde estaremos em Vigàta.

A oração foi ouvida: rodaram que foi uma beleza.


— O carro ainda está lá — comentou Gallo, quando já se avistava Vigàta.
O Twingo permanecia como havia ficado pela manhã, ligeiramente de
través, no começo da trilha esburacada.
— Já devem ter telefonado para o comissariado — respondeu
Montalbano.
Disse isso mais para se aliviar: a visão do carro e da casa com as janelas
fechadas causara-lhe um certo desconforto.
— Vamos voltar — ordenou a Gallo, de repente.
Gallo fez um alucinado retorno em U, que desencadeou um coro de
buzinas, na altura do Twingo fez outro, mais alucinado ainda, e freou atrás do
carrinho abalroado.
Montalbano desceu correndo. Antes, na ultrapassagem, tinha visto
claramente pelo retrovisor: o papelzinho com o telefone ainda estava preso no
limpador de para-brisa, ninguém o tocara.
— Não gostei — disse o comissário a Gallo, que estava ao seu lado.
Enveredou pela trilha. A casa devia ser de construção recente, a grama diante
da porta de entrada ainda estava queimada pela cal. Havia inclusive telhas
novas, amontoadas a um canto, no espaço fronteiro. O comissário olhou
atentamente as janelas: nenhuma luz se filtrava.
Aproximou-se da porta e tocou a campainha. Esperou um pouquinho,
tocou de novo.
— Você sabe de quem é? — perguntou a Gallo.
— Não sei não, doutor.
O que convinha fazer? A noite vinha caindo, ele sentia um princípio de
cansaço, pesava-lhe nos ombros aquele dia inútil e exaustivo.
— Vamos embora — resolveu. E, numa inútil tentativa de se convencer,
acrescentou: — Eles certamente telefonaram.
Gallo olhou-o com cara de dúvida, mas não abriu a boca.

Sem deixar Gallo sequer entrar no comissariado, Montalbano mandou-o ir


descansar em casa. O seu vice, Mimì Augello, não estava: tinha sido
convocado pelo novo chefe de polícia de Montelusa, Luca Bonetti-Alderighi,
um jovem e enérgico bergamasco que, em um mês, conseguira criar
antipatias mortais para todo lado.
— O chefe se chateou — informou-lhe Fazio, o agente graduado com
quem Montalbano tinha mais afinidade — porque não encontrou o senhor em
Vigàta. Aí o doutor Augello teve que ir.
— Teve? — retrucou o comissário. — O que ele fez foi aproveitar a
oportunidade pra aparecer!
Contou a Fazio o episódio matinal e perguntou-lhe se sabia quem eram os
donos da casinha. Fazio não sabia, mas garantiu ao seu superior que na
manhã seguinte iria se informar na prefeitura.
— Ah, o carro do senhor tá na nossa garagem.
Antes de voltar para casa, o comissário interrogou Catarella.
— Preste atenção, procure lembrar bem. Por acaso alguém ligou por
causa de um carro em que a gente bateu?
Nenhuma chamada.

— Não entendi, explique melhor — disse Livia, com voz alterada, no


telefonema de Boccadasse, Gênova.
— Mas o que é que tem pra entender, Livia? Eu já disse e vou repetir. Os
documentos pra adoção de François ainda não estão prontos, surgiram
dificuldades imprevistas, e eu não tenho mais o respaldo do velho chefe de
polícia, que sempre se dispunha a resolver as coisas. Precisamos ter
paciência.
— Eu não estava falando da adoção — fez Livia, gélida.
— Ah, não? Era de quê, então?
— Do nosso casamento, era disso que eu estava falando. Podemos nos
casar enquanto se resolvem as dificuldades da adoção. As duas coisas não são
interdependentes.
— Claro que não — disse Montalbano, começando a se sentir caçado e
acuado.
— Quero uma resposta clara para a pergunta que lhe faço agora —
prosseguiu Livia, implacável. — Suponha que a adoção seja impossível. Nós
fazemos o quê, segundo você? Casamos do mesmo jeito ou não casamos?
Um trovão fortíssimo e repentino deu a ele a solução.
— O que foi isso? — perguntou Livia.
— Um trovão. Vai cair um temporal trem...
Desligou e tirou o telefone da tomada.

Não conseguiu pegar no sono. Virava-se e revirava-se na cama, embolando-


se no lençol. Lá pelas duas da manhã, compreendeu que era inútil tentar
adormecer. Levantou-se, vestiu-se, pegou uma pochete de couro que, muito
tempo antes, tinha ganho de um arrombador de casas que depois ficou seu
amigo, entrou no carro e saiu. O temporal continuava, agora mais forte, os
relâmpagos iluminavam como se fosse dia. À altura do Twingo, malocou seu
carro embaixo das árvores e desligou os faróis. Pegou no porta-luvas a
pistola, um par de luvas e uma lanterna. Esperou que a chuva amainasse e,
num pulo, atravessou a estrada, subiu a trilha e encostou-se à porta da casa.
Tocou demoradamente a campainha, mas não teve resposta. Calçou as luvas e
tirou da pochete um chaveiro grande, em forma de anel, do qual pendiam uns
dez ferrinhos de formatos variados. Na terceira tentativa, a porta se abriu:
estava fechada só com o trinco, não tinham virado a chave. Entrou, cerrando
a porta atrás de si. No escuro, inclinou-se e tirou os sapatos molhados,
ficando só de meias. Acendeu a lanterna e apontou-a para o piso. Encontrava-
se numa ampla sala de jantar conjugada com sala de estar. Os móveis
cheiravam a verniz, tudo parecia novo, limpo e em ordem. Uma porta se abria
para uma cozinha tão reluzente que parecia saída de um anúncio; outra, para
um banheiro tão imaculado que dava a impressão de que jamais alguém tinha
entrado nele. Subiu devagarinho a escada que levava ao andar de cima. Havia
três portas fechadas. A primeira que ele abriu revelou um quartinho de
hóspedes; a segunda levou-o a um banheiro maior que o do térreo, mas neste
aqui, ao contrário do outro, reinava uma grande desordem. Um roupão
atoalhado, cor-de-rosa, havia sido jogado no chão, como se a pessoa que o
usava se tivesse livrado dele às pressas. A terceira porta era a do quarto de
casal. E certamente da jovem e loura dona da casa era o corpo nu, quase
ajoelhado, com o ventre apoiado à beira da cama, os braços escancarados, o
rosto sepulto no lençol reduzido a frangalhos pelas unhas da mulher, que o
rasgara nos espasmos da morte por sufocamento. Montalbano aproximou-se
do cadáver e, tirando uma das luvas, tocou-o levemente: estava gelado e
rígido. Ela devia ter sido lindíssima. O comissário desceu a escada, calçou os
sapatos, enxugou com o lenço a mancha úmida que estes haviam deixado no
piso, saiu da casa, fechou a porta, atravessou a estrada, entrou no carro e
partiu. Enquanto voltava a Marinella, pensava freneticamente. Como fazer
que o crime fosse descoberto? Claro que ele não podia ir contar ao juiz aquilo
que havia feito. O juiz que substituíra o doutor Lo Bianco, o qual entrara de
licença a fim de aprofundar as intermináveis pesquisas históricas sobre dois
de seus pseudoantepassados, era um veneziano que atendia pelo nome de
Nicolò e pelo sobrenome de Tommaseo, e que, a toda hora, trazia à baila as
suas “inderrogáveis prerrogativas”. Tinha uma carinha de criança
envelhecida, escondida sob uma barba e um bigode de mártir de Belfiore[2].
Enquanto abria a porta de sua casa, Montalbano finalmente atinou com a
solução do problema. E só assim conseguiu dormir bem.
Capítulo II

Chegou ao gabinete às oito e meia, repousado e lampeiro.


— Sabia que o chefe de polícia é um nobre? — foi a primeira coisa que
lhe disse Mimì Augello, ao vê-lo.
— Isso é uma avaliação moral ou um fato heráldico?
— Heráldico.
— Eu já tinha percebido, pelo hífen entre os dois sobrenomes. E você fez
o quê, Mimì? Chamou ele de conde, barão, marquês? Bajulou ele direitinho?
— Ora, Salvo, que ideia fixa!
— Eu?! Fazio me disse que no telefone você se desmilinguiu todo com o
chefe, e depois saiu que nem foguete pra ir se encontrar com ele.
— Escuta, o chefe de polícia me disse textualmente: “Se o comissário
Montalbano não está localizável, venha o senhor, imediatamente.” Eu devia
fazer o quê? Responder que não podia, porque o meu superior ia ficar puto?
— O que era que ele queria?
— Não fui o único. Estava lá metade da província. Ele nos comunicou
que tem intenção de renovar, rejuvenescer tudo. Disse que quem não tiver
condições de acompanhar essa aceleração pode ir pro ferro-velho. Falou
exatamente assim: ferro-velho. Pra todo mundo, ficou evidente que ele estava
pensando em você e em Sandro Turri, de Calascibetta.
— Me explique melhor como foi que vocês adivinharam.
— Porque, quando disse ferro-velho, ele olhou demoradamente pra Turri
e depois pra mim.
— Mas será que não pretendia se referir justamente a você?
— Ora, Salvo, todo mundo sabe que ele não vai com a sua cara.
— E o que desejava o senhor príncipe?
— Dizer que, dentro de alguns dias, vão chegar computadores
moderníssimos, todos os comissariados vão ter. Pediu a cada um de nós o
nome de um agente particularmente versado em informática. E eu dei.
— Ficou maluco? Aqui ninguém entende porra nenhuma dessas coisas.
Que nome você indicou?
— Catarella — fez Mimì Augello, sério, impassível.
Uma ação de sabotador nato. Montalbano levantou-se de um pulo e
correu a abraçar o seu vice.

— Já sei tudo sobre a casinha de campo em que o senhor tá interessado —


disse Fazio, sentando-se na cadeira diante da escrivaninha do comissário. —
Falei com o secretário comunal, que sabe vida, morte e milagres de qualquer
pessoa de Vigàta.
— Diga.
— Bom. O terreno pertencia ao doutor Rosario Licalzi.
— Doutor, como?
— Doutor mesmo, médico. Morreu faz uns quinze anos e deixou para o
filho mais velho, Emanuele, também médico.
— Ele mora em Vigàta?
— Não, senhor. Mora e trabalha em Bolonha. Dois anos atrás, esse
Emanuele Licalzi se casou com uma moça daquelas bandas. Passaram a lua
de mel aqui na Sicília. Ela viu o terreno e na mesma hora encasquetou que
queria mandar construir uma casinha lá. É isso.
— E por onde andam neste momento os Licalzi?
— O marido tá em Bolonha. Ela, até uns três dias atrás, foi vista por aí,
tratando da decoração da casa. Tem um Twingo verde-garrafa.
— Aquele que Gallo amassou.
— Pois é. O secretário contou que todo mundo olha quando ela passa.
Parece que é muito bonita.
— Não entendo por que ainda não telefonou — fez Montalbano, que,
quando caprichava, sabia ser um excelente ator.
— Eu andei pensando — disse Fazio. — O secretário disse que ela é,
como se diz, enturmada, tem muitas amizades.
— Femininas?
— E masculinas — sublinhou Fazio, significativamente. — Pode estar
hospedada com alguma família, quem sabe esses amigos foram buscar ela no
carro deles? Aí, só vai saber do prejuízo quando voltar lá.
— É plausível — concluiu Montalbano, continuando seu teatro.

Assim que Fazio saiu, o comissário telefonou a dona Clementina Vasile


Cozzo.
— Cara senhora, como vai?
— Comissário! Que ótima surpresa! Vou levando, com a graça de Deus.
— Posso aparecer, pra vê-la um pouquinho?
— O senhor é bem-vindo a qualquer hora.
Dona Clementina Vasile Cozzo era uma mulher idosa, paralítica, uma ex-
professora primária beijada pela inteligência e dotada de uma natural e
composta dignidade. O comissário a conhecera durante uma complexa
investigação, três meses antes, e com ela estabelecera um vínculo filial.
Abertamente, Montalbano não o admitia para si mesmo, mas aquela era a
mulher que ele gostaria de escolher como mãe: perdera a sua quando era
muito pequeno, e dela só conservava na memória uma espécie de
luminescência dourada.
“Mamãe era loura?”, perguntara certa vez ao pai, na tentativa de explicar
a si mesmo por que a recordação da mãe consistia apenas numa esfumatura
luminosa.
“Uma espiga de trigo ao sol”, fora a enxuta resposta do pai.
Montalbano havia criado o hábito de procurar dona Clementina pelo
menos uma vez por semana. Falava de algum inquérito pelo qual estivesse
responsável e ela, agradecida pela visita que vinha interromper a monotonia
dos seus dias, convidava-o para a refeição. Pina, a empregada da senhora, era
uma figura mal-humorada e, ainda por cima, não simpatizava com
Montalbano; mas sabia preparar gostosuras de rara e desarmante
simplicidade.
Dona Clementina, vestida com muita elegância, um xalezinho indiano de
seda sobre os ombros, recebeu-o na sala.
— Hoje temos concerto — sussurrou —, mas já está acabando.
Quatro anos antes, dona Clementina soube pela empregada, a qual por sua
vez o ouviu de Jolanda, governanta do mestre Cataldo Barbera, que o ilustre
violinista, morador do apartamento de cima, estava tendo sérios problemas
com os impostos. Então falou do assunto com o filho, que trabalhava na
Intendência de Finanças de Montelusa, e o problema, substancialmente
nascido de um equívoco, foi resolvido. Uns dez dias depois, a governanta
Jolanda lhe trouxe um bilhete: “Gentil Senhora, a fim de retribuir somente em
parte, vou fazer-lhe uma audição exclusiva todas as manhãs de sexta-feira,
das nove e meia às dez e meia. Seu devotadíssimo Cataldo Barbera.”
E assim, todas as manhãs de sexta, dona Clementina se aprontava a fim
de, por sua vez, prestar homenagem ao artista, e ia instalar-se numa espécie
de saleta de onde se escutava melhor o som. E o mestre, às nove e meia em
ponto, no andar de cima, atacava com o violino.
Em Vigàta todo mundo sabia da existência de Cataldo Barbera, mas
pouquíssimos o conheciam pessoalmente. Filho de um ferroviário, o futuro
instrumentista viera à luz em Vigàta, sessenta e cinco anos antes, mas tinha
ido embora do lugar antes de completar dez anos, porque o pai havia sido
transferido para Catânia. Os vigatenses acompanharam sua carreira pelos
jornais: depois de estudar violino, em breve Cataldo Barbera se tornou um
concertista de fama internacional. Inexplicavelmente, porém, no auge da
notoriedade, havia se retirado para Vigàta, onde comprara um apartamento no
qual vivia deliberadamente recluso.
— O que é que ele está tocando? — perguntou Montalbano.
Dona Clementina estendeu-lhe uma folha de papel quadriculado. O
mestre costumava mandar para ela, na véspera do concerto, o programa
escrito a lápis. As peças daquele dia eram a Dança espanhola de Sarasate e o
Scherzo-Tarantella op. 16 de Wieniawski. Quando o concerto chegou ao fim,
dona Clementina voltou a ligar o telefone na tomada, discou um número,
pousou o fone na prateleira e começou a bater palmas. Montalbano a ela se
associou de coração. De música não entendia nada, mas tinha certeza de uma
coisa: Cataldo Barbera era um grande artista.
— Dona Clementina — iniciou o comissário —, esta minha visita é por
interesse. Preciso que a senhora me faça um favor.
Contou tudo o que lhe acontecera no dia anterior, o acidente, a troca de
funerais, a clandestina visita noturna à casinha de campo, a descoberta do
cadáver. Ao fim da narrativa, o comissário hesitou: não sabia como formular
o seu pedido.
Dona Clementina, que de vez em quando se divertira e se emocionara
com o relato, encorajou-o:
— Vá em frente, comissário, não faça cerimônia. O que é que o senhor
quer de mim?
— Queria que a senhora desse um telefonema anônimo — disse
Montalbano, num só fôlego.

Fazia uns dez minutos que ele estava de volta ao comissariado quando
Catarella lhe transferiu uma ligação do doutor Lattes, chefe de gabinete do
doutor Bonetti-Alderighi.
— Meu caro Montalbano, como vai? Cooomo vai?
— Bem — fez Montalbano, seco.
— Folgo em sabê-lo com boa saúde — disse o chefe de gabinete, que não
desmentia o apelido “Lattes e mieles”[3], a ele impingido por causa de sua
melíflua periculosidade.
— Às suas ordens — incitou-o Montalbano.
— Pois bem. Há menos de quinze minutos, uma mulher telefonou para a
chefatura, solicitando falar pessoalmente com o senhor chefe de polícia.
Insistiu muito. O chefe, porém, estava ocupado, e me encarregou de atender
ao telefonema. A mulher, num verdadeiro ataque histérico, gritava que numa
casa de campo da localidade de Tre Fontane havia sido cometido um crime.
Depois, desligou. O chefe solicita que o senhor vá até lá, verifique o que for
necessário e relate o que observar. A mulher também disse que a casa é
facilmente reconhecível, porque na frente há um Twingo verde-garrafa
estacionado.
— Ah, meu Deus! — fez Montalbano, começando a recitar o segundo ato
do seu papel, visto que dona Clementina Vasile Cozzo tinha feito o dela à
perfeição.
— O que houve? — perguntou o doutor Lattes, curioso.
— Uma coincidência extraordinária! — fez Montalbano, em tom de
grande espanto. — Depois conto ao senhor.

— Alô? Aqui é o comissário Montalbano. Estou falando com o juiz


Tommaseo?
— Sim. Bom dia. Pode falar.
— Doutor Tommaseo, o chefe de gabinete do doutor Bonetti-Alderighi
acaba de me informar ter recebido um telefonema anônimo que denunciava
um crime cometido numa casa de campo, no território de Vigàta. Deu-me
ordem de ir verificar. Eu estou indo para lá.
— Não há possibilidade de tratar-se de uma brincadeira de mau gosto?
— Tudo é possível. Eu, no entanto, quis dar conhecimento ao senhor, em
total respeito às suas inderrogáveis prerrogativas.
— Certo — aprovou o juiz Tommaseo.
— Tenho sua autorização para proceder?
— Naturalmente. Se de fato tiver sido cometido um crime, avise-me
imediatamente e aguarde a minha chegada.
Montalbano chamou Fazio, Gallo e Galluzzo e disse-lhes que deviam ir com
ele à localidade de Tre Fontane para ver se havia ocorrido um homicídio.
— É a mesma casinha sobre a qual o senhor me pediu informações? —
perguntou Fazio, embasbacado.
— A mesma onde a gente bateu no Twingo? — reforçou Gallo, olhando
maravilhado o seu superior.
— É — respondeu o comissário aos dois, exibindo uma cara de
humildade.
— Mas que faro o senhor tem! — exclamou Fazio, admirado.

Mal saíram e Montalbano já estava de saco cheio, saco cheio pela farsa que
deveria representar, fingindo espanto à visão do cadáver, saco cheio pelo
tempo que perderia esperando o juiz, o médico-legista e a Perícia, os quais
eram capazes de levar horas para chegarem ao lugar. Então, decidiu acelerar
os trabalhos.
— Me dá o celular — pediu a Galluzzo, sentado à sua frente. Ao volante,
naturalmente, estava Gallo.
Discou o número do juiz Tommaseo.
— Aqui é Montalbano. Senhor juiz, o telefonema anônimo não era trote.
Infelizmente, encontramos na casa de campo um cadáver do sexo feminino.
As reações dos que estavam na viatura foram diferentes. Gallo derrapou,
invadiu a pista oposta, tirou um fino num caminhão carregado de vergalhões,
soltou uns palavrões e voltou ao seu caminho. Galluzzo estremeceu,
arregalou os olhos e virou-se para o banco de trás, de boca aberta, encarando
seu superior. Fazio retesou-se visivelmente e ficou olhando para a frente, sem
expressão.
— Estou indo — disse o juiz Tommaseo. — Diga-me exatamente onde é
a casa.
Cada vez mais de saco cheio, Montalbano passou o celular a Gallo.
— Explique direitinho onde é. Depois avise ao doutor Pasquano e à
Perícia.
Fazio só abriu a boca quando a viatura parou atrás do Twingo verde-
garrafa.
— O senhor botou as luvas?
— Botei — disse Montalbano.
— De qualquer maneira, por segurança, agora que a gente vai entrar
oficialmente, toque em tudo, deixe quantas impressões puder.
— Já pensei nisso — respondeu o comissário.
Do bilhetinho metido sob o limpador de para-brisa restava muito pouco,
depois do temporal da noite anterior. Os números do telefone tinham sido
apagados pela água. Montalbano não o removeu.

— Vocês dois olham aqui embaixo — disse o comissário a Gallo e Galluzzo.


Ele, seguido por Fazio, dirigiu-se ao andar superior. Com a luz elétrica, o
corpo da morta impressionou-o menos do que na noite anterior, quando o
entrevira à exígua luz da lanterna: parecia menos verdadeiro, embora não
fosse de mentira. De um branco lívido, rígido, o cadáver assemelhava-se aos
moldes em gesso das vítimas das erupções de Pompeia. De bruços como
estava, não era possível ver-lhe o rosto, mas a resistência à morte devia ter
sido furiosa: tufos de cabelos louros espalhavam-se sobre o lençol rasgado,
sobre os ombros, e perto da nuca despontavam marcas azuladas de
equimoses. O assassino certamente tinha usado toda a sua força para manter o
rosto da vítima voltado para baixo, até afundá-lo no colchão sem deixar
espaço para um pingo de ar.
Gallo e Galluzzo subiram.
— No térreo parece tudo em ordem — disse Gallo.
Por mais que parecesse um molde em gesso, o que ali estava era uma
jovem assassinada, nua, numa posição que de repente pareceu a Montalbano
insustentavelmente obscena, uma profunda intimidade violada, exposta a oito
olhos de policiais. Quase como se quisesse restituir-lhe um mínimo de
personalidade e de dignidade, o comissário perguntou a Fazio:
— Disseram o nome dela?
— Sim. Se for a senhora Licalzi, chamava-se Michela.
Montalbano foi até o banheiro, apanhou o roupão cor-de-rosa, levou-o
para o quarto e cobriu o cadáver com ele.
Desceu ao térreo. Se não tivesse morrido, Michela Licalzi ainda teria tido
muito trabalho para arrumar a casa.
No salão havia dois tapetes enrolados, apoiados verticalmente num canto,
sofá e poltronas envoltos no plástico da fábrica, uma mesinha de pernas para
o ar, em cima de uma caixa ainda fechada. A única coisa que parecia em
ordem era uma cristaleira, dentro da qual tinham sido dispostos os
costumeiros objetos decorativos: dois leques antigos, algumas estatuetas de
cerâmica, um estojo de violino, fechado, e conchas belíssimas, de coleção.
Os primeiros a chegar foram os rapazes da Perícia. Por obra e graça de
Bonetti-Alderighi, Jacomuzzi, o antigo chefe da equipe, fora substituído pelo
jovem doutor Arquà, transferido de Florença. Exibicionista incurável, mais
que chefe da Perícia, sempre o primeiro a se apresentar a fotógrafos,
cinegrafistas e repórteres, Jacomuzzi ganhou de Montalbano, que não perdia
chance de ridicularizá-lo, o apelido de “Pippo Baudo”[4]. No fundo, no fundo,
o antigo chefe da Perícia não acreditava muito na contribuição da pesquisa
científica para o esclarecimento de um crime; sustentava que, mais cedo ou
mais tarde, a intuição e a razão explicariam tudo, mesmo sem o suporte dos
microscópios e das análises. Puras heresias, na visão de Bonetti-Alderighi,
que rapidamente tinha se livrado dele. Vanni Arquà, um Harold Lloyd
cuspido e escarrado, vivia com os cabelos despenteados, vestia-se como os
distraídos cientistas dos filmes dos anos 30 e cultuava a ciência. Montalbano
não ia muito com a cara dele, e Arquà retribuía com a mesma antipatia
cordial.
A turma da Perícia chegou em grande estilo, com duas viaturas correndo
de sirene ligada, como se estivessem no Texas. Eram oito, todos à paisana, e
a primeira coisa que fizeram foi descarregar dos porta-malas tantas caixas e
equipamentos que pareciam uma equipe de filmagem preparando-se para
gravar uma sequência. Quando Arquà entrou na sala, Montalbano sequer o
cumprimentou: limitou-se a apontar-lhe o andar superior como o local onde
estaria aquilo que o interessava.
Os oito ainda não haviam acabado de subir quando Montalbano escutou a
voz de Arquà.
— Comissário, poderia fazer a gentileza de vir aqui um instantinho?
Montalbano subiu sem pressa. Ao entrar no quarto, sentiu-se trespassado
pelo olhar do chefe da Perícia.
— Quando o senhor o descobriu, o cadáver estava assim?
— Não — disse Montalbano, displicentemente. — Estava nu.
— E onde o senhor pegou este roupão?
— No banheiro.
— Pelo amor de Deus, ponha tudo como estava antes! O senhor alterou a
cena do crime! Isso é gravíssimo!
Sem dizer uma palavra, Montalbano aproximou-se do cadáver, apanhou o
roupão e pendurou-o no braço.
— Vamos liberando o rabo aí, rapaziada!
Quem tinha falado era o fotógrafo da Perícia, uma espécie de paparazzo
torpe, a camisa para fora da calça.
— Fique à vontade, sirva-se — respondeu tranquilamente o comissário.
— Já está na posição.
Fazio, sabedor do perigo que, com frequência, a calma controlada de
Montalbano representava, aproximou-se dele. O comissário fitou Arquà bem
nos olhos:
— Entendeu agora por que eu fiz isso, babaca?
E saiu do quarto. Lavou rapidamente o rosto no banheiro, jogou o roupão
no chão, mais ou menos onde o encontrara, e voltou.
— Vou ser obrigado a relatar isso ao chefe de polícia — disse Arquà,
gélido. A resposta de Montalbano foi uns dez graus ainda mais gélida.
— Vocês devem se entender muito bem.

— Doutor, a gente vai fumar um cigarrinho lá fora, Gallo, Galluzzo e eu.


Estamos incomodando o pessoal da Perícia.
Absorto num pensamento que tinha lhe ocorrido, Montalbano nem
respondeu. Subiu de novo e inspecionou o quartinho de hóspedes e o
banheiro.
No térreo, já havia observado atentamente, sem encontrar aquilo que
procurava. Por escrúpulo, deteve-se um momento no quarto invadido e
remexido pela Perícia, confirmando o que lhe parecia ter constatado antes.
Já do lado de fora da casa, também ele acendeu um cigarro. Fazio
acabava de falar no celular.
— Estava pedindo o telefone e o endereço do marido dela em Bolonha —
explicou.
— Doutor — interveio Galluzzo —, a gente estava aqui comentando uma
coisa estranha...
— No quarto, o guarda-roupa ainda tá embalado. E eu espiei também
embaixo da cama — acrescentou Gallo.
— E eu olhei em todos os outros cômodos. Mas...
Fazio, que ia dizendo a conclusão, parou a um aceno de seu superior.
— ... mas as roupas da moça não estão aí — concluiu Montalbano.
Capítulo III

Chegou a ambulância, e atrás vinha o carro do doutor Pasquano, o médico-


legista.
— Vá ver se a Perícia já acabou, lá no quarto — disse Montalbano a
Galluzzo.
— Obrigado — disse o doutor Pasquano. Seu lema era “ou eu ou eles”,
sendo “eles” a equipe da Perícia. Já não suportava Jacomuzzi e seu bando
desleixado, e muito menos poderia aguentar o doutor Arquà com seus
colaboradores visivelmente eficientes.
— Muito trabalho? — informou-se o comissário.
— Pouca coisa. Cinco cadáveres em uma semana. Há quanto tempo não
se vê isso. Um período de calmaria?
Galluzzo voltou dizendo que a Perícia se encontrava agora no banheiro e
no quartinho de hóspedes, o caminho estava livre.
— Acompanhe o doutor e desça de volta — ordenou Montalbano, desta
vez a Gallo. Pasquano lançou-lhe um olhar de agradecimento: de fato,
preferia trabalhar sozinho.
Depois de uma boa meia hora, apareceu o carro todo amassado do juiz, o
qual só se decidiu a frear depois de bater em uma das duas viaturas da
Perícia.
Nicolò Tommaseo desceu, cara vermelha, pescoço de enforcado
parecendo o de um galináceo.
— Mas que estrada tremenda! Sofri dois acidentes! — gritou aos quatro
ventos.
Todo mundo sabia que ele guiava como um cão drogado.
Montalbano achou um jeito para impedi-lo de, subindo logo, ir encher o
saco do doutor Pasquano.
— Senhor juiz, gostaria de lhe relatar uma história curiosa.
E contou uma parte do que acontecera na véspera, mostrou o efeito da
pancada no Twingo, fê-lo ver o que restava do bilhete metido sob o limpador
de para-brisa, disse-lhe como começara a desconfiar de alguma coisa. O
telefonema anônimo à chefatura de Montelusa deu o toque final, como o
queijo por cima do macarrão.
— Que curiosa coincidência! — fez o juiz Tommaseo, impassível.
Mal viu o corpo nu da vítima, o juiz paralisou-se. Até o comissário se
deteve de repente. O doutor Pasquano conseguira de algum modo girar a
cabeça da mulher, cujo rosto, até então oculto, estava agora visível. Os olhos,
arregalados a um ponto inverossímil, expressavam dor e horror insuportáveis.
Da boca saía um fio de sangue, ela devia ter mordido a língua, nos espasmos
do sufocamento.
O doutor Pasquano adiantou-se à pergunta que odiava ouvir.
— Deve ter morrido na noite de quarta pra quinta-feira. Depois da
autópsia, posso especificar melhor.
— E como foi que a mataram? — quis saber Tommaseo.
— Não está vendo? O assassino empurrou o rosto dela contra o colchão e
segurou firme até que ela morresse.
— Uma pessoa de força excepcional.
— Não necessariamente.
— Sabe se houve relações, antes ou depois?
— Ainda não posso afirmar.
Alguma coisa no tom de voz do juiz levou o comissário a olhar para ele.
Tommaseo estava todo suado.
— Também podem tê-la sodomizado — insistiu o juiz, com os olhos
brilhando.
Foi como um relâmpago. Era evidente que, nesses assuntos, o doutor
Tommaseo deitava e rolava secretamente. Montalbano lembrou-se de ter lido
em algum lugar uma frase de Manzoni sobre o outro — mais célebre —
Nicolò Tommaseo[5]:
“Esse Tommaseo tem um pé na sacristia e outro na esbórnia.”
Devia ser vício de família.
— Eu informo. Bom dia — despediu-se rapidamente o doutor Pasquano,
garantindo-se contra outras perguntas.
— Para mim, é crime de um maníaco que surpreendeu a senhora na hora
em que ela ia para a cama — disse, convicto, o doutor Tommaseo, sem
desgrudar os olhos da morta.
— Veja bem, senhor juiz, não houve arrombamento. É bastante incomum
que uma mulher nua vá abrir a porta da casa a um tarado e o receba em seu
quarto.
— Que raciocínio! Ela pode ter percebido que esse homem era maníaco
somente quando... Entendeu?
— Eu me inclinaria mais para o passional — lançou Montalbano, que
começava a se divertir.
— E por que não? E por que não? — abocanhou Tommaseo, coçando a
barba. — Não esqueçamos que o telefonema anônimo foi de uma mulher. A
esposa traída. A propósito, o senhor sabe como encontrar o marido da vítima?
— Sim. O policial Fazio tem o telefone — respondeu o comissário,
sentindo um aperto no coração. Detestava dar más notícias.
— Mande que ele me passe o número. Eu resolvo — disse o juiz.
Estava em todas, esse Nicolò Tommaseo. Era também um urubu.
— Podemos levar o corpo? — perguntaram os da ambulância, entrando
no quarto.

Passou-se mais uma hora até que a turma da Perícia parasse de fuxicar e fosse
embora.
— E agora, a gente faz o quê? — informou-se Gallo, que parecia estar
fixado nessa pergunta.
— Feche a porta, e vamos voltar pra Vigàta. Estou morrendo de fome —
disse o comissário.

A cozinheira Adelina tinha deixado na geladeira uma verdadeira delícia: salsa


coralina, molho feito com ovas de lagosta e ouriços-do-mar, para temperar
spaghetti. Montalbano botou a água no fogo e, enquanto esperava, ligou para
o seu amigo Nicolò Zito, jornalista da Retelibera, uma das duas televisões
privadas com sede em Montelusa. A outra, a Televigàta, por cujo noticiário
era responsável o cunhado de Galluzzo, tinha tendências filogovernamentais,
qualquer que fosse o governo. De modo que, com o governo daquele
momento, e como a Retelibera se orientava sempre para a esquerda, as duas
emissoras locais se assemelhariam tediosamente, não fosse a inteligência,
lúcida e irônica, do ruivo — de cabelo e de ideias — Nicolò Zito.
— Nicolò? Montalbano. Houve um homicídio, mas...
— ... eu não devo dizer que foi você quem me informou.
— Um telefonema anônimo. Uma voz feminina ligou hoje de manhã pra
chefatura de Montelusa, dizendo que numa casinha de campo na área de Tre
Fontane tinha sido cometido um crime. Era verdade. Uma mulher jovem,
bonita, nua.
— Caralho!
— Chamava-se Michela Licalzi.
— Você tem foto dela?
— Não. O assassino sumiu com a bolsa e as roupas.
— Por quê?
— Não sei.
— Então, como é que vocês sabem que se trata mesmo de Michela
Licalzi? Alguém a identificou?
— Não. Vamos procurar o marido, que mora em Bolonha.
Zito pediu mais alguns detalhes, e ele os forneceu.

A água ferveu, Montalbano jogou a massa. O telefone tocou e ele hesitou um


momento, sem saber se atendia ou não. Temia uma conversa longa, talvez
difícil de interromper, e que ameaçaria o ponto certo de cozimento da massa.
Desperdiçar a salsa coralina com um prato de massa supercozida seria uma
catástrofe. Então, decidiu não atender. E fez mais: a fim de evitar que a
campainha viesse perturbar a serenidade de espírito indispensável para
saborear corretamente o molhinho, desligou o aparelho da tomada.

Uma hora depois, satisfeito e disponível para o assalto do mundo, religou o


telefone, e logo teve de atender.
— Alô.
— Alô, dotor? É o senhor mesmo pessoalmente?
— Pessoalmente, Catarè. O que foi?
— Ligou para o senhor o juiz Tolomeo.
— Tommaseo, Catarè, mas tudo bem. Ele queria o quê?
— Falar pessoalmente com o senhor pessoalmente. Ligou mais ou menos
quatro vezes. Disse assim, que é pro senhor telifonar pra ele de viva voz.
— Pode deixar.
— Ah, dotor, priciso comunicar uma coisa muito importante. Me chamou
da chefatura de Montelusa o comissário dotor que o nome dele é Tontona.
— Tortona.
— Bom, o nome eu não sei. Esse aí. Diz que eu tenho que frequentar um
concurso de formática. O senhor o que acha?
— Fico contente, Catarè. Faça esse curso, assim você se especializa.
Você é o homem certo pra formática.
— Obrigado, dotor.

— Alô, doutor Tommaseo? Montalbano.


— Comissário, andei bastante à sua procura.
— Desculpe, mas eu estava muito ocupado. Lembra-se do inquérito sobre
o corpo achado na água uma semana atrás? Creio ter informado devidamente
ao senhor.
— Descobriu alguma coisa?
— Absolutamente nada.
Montalbano percebeu o silêncio embasbacado do outro: aquele diálogo
não fazia o menor sentido. Como previra, o juiz passou adiante.
— Queria dizer que localizei em Bolonha o viúvo, o doutor Licalzi, e
comuniquei-lhe, com o devido tato, a funesta notícia.
— Como foi que ele reagiu?
— Bom, o que direi? Estranhamente. Sequer perguntou como havia
morrido sua mulher, que na verdade era muito jovem. Deve ser um tipo frio,
quase não se alterou.
O doutor Licalzi havia fodido com o prazer do urubu Tommaseo: era
palpável a decepção do juiz por não ter podido deliciar-se, mesmo que apenas
telefonicamente, com uma bela cena de gritos e lamentos.
— De qualquer maneira, ele disse que não via a menor possibilidade de
ausentar-se hoje do hospital. Tinha operações marcadas, e seu substituto está
doente. Amanhã de manhã, às sete e cinco, tomará o avião para Palermo.
Portanto, presumo que ele estará no seu gabinete por volta do meio-dia. Era
isso que eu desejava informar-lhe.
— Muito obrigado, senhor juiz.

Gallo, enquanto o levava ao trabalho na viatura de serviço, comunicou-lhe


que, por decisão de Fazio, Germanà tinha ido buscar o Twingo danificado,
guardando-o na garagem do comissariado.
— Fizeram muito bem.
A primeira pessoa que entrou na sala dele foi Mimì Augello.
— Não vim falar de trabalho. Depois de amanhã, ou seja, domingo, de
manhã cedo, eu vou visitar a minha irmã. Quer ir também? Assim você vê
François. A gente volta no fim da tarde.
— Espero poder ir.
— Faça uma forcinha. Minha irmã deu a entender que gostaria de falar
com você.
— Sobre François?
— É.
Montalbano preocupou-se: seria um problemão, se a irmã e o cunhado de
Augello lhe comunicassem que não poderiam mais tomar conta do menino.
— Vou fazer o possível, Mimì. Obrigado.

— Alô, comissário Montalbano? Aqui é Clementina Vasile Cozzo.


— Que prazer, senhora.
— Responda sim ou não. Eu me saí bem?
— Muitíssimo bem.
— Continue respondendo sim ou não. O senhor viria jantar comigo hoje,
por volta das nove?
— Vou.

Fazio entrou no gabinete do comissário com um ar triunfante.


— Sabe, doutor? Fiquei me perguntando. Considerando o estado da casa,
que parecia só ocasionalmente habitada, onde dormia a senhora Licalzi,
quando vinha de Bolonha pra Vigàta? Telefonei a um colega da chefatura de
Montelusa, aquele que acompanha o movimento dos hotéis, e tive a resposta.
Dona Michela Licalzi se hospedava sempre no Hotel Jolly de Montelusa.
Preencheu ficha lá uma semana atrás.
Fazio pegara Montalbano de surpresa. O comissário havia pretendido
ligar para o doutor Licalzi, em Bolonha, assim que chegasse ao gabinete, mas
esquecera: a menção de Augello a François o deixara um pouquinho
atrapalhado.
— Vamos lá agora? — perguntou Fazio.
— Espera aí.
Um pensamento totalmente imotivado passou-lhe pela cabeça como um
raio, deixando atrás de si um sutilíssimo cheiro de enxofre, aquele com o qual
o diabo costumava perfumar-se. Ele pediu a Fazio o telefone de Licalzi,
anotou-o num papelzinho que guardou no bolso e a seguir discou-o.
— Alô, Hospital Maggiore? Aqui é o comissário Montalbano, de Vigàta.
Gostaria de falar com o professor Emanuele Licalzi.
— Aguarde na linha, por favor.
Montalbano aguardou, com disciplina e paciência. Quando esta já ia
acabando, a telefonista voltou a dar sinal de vida.
— O professor Licalzi está na sala de cirurgia. O senhor vai precisar
tentar daqui a meia hora.
— Eu ligo do caminho — disse o comissário a Fazio. — Leve o celular,
não esqueça.
A seguir, telefonou ao juiz Tommaseo e comunicou-lhe a descoberta de
Fazio.
— Ah, eu ainda não lhe contei — interrompeu Tommaseo. — Perguntei a
ele o endereço da sua mulher por aqui. Ele disse que não sabia, era sempre
ela quem telefonava.
O comissário pediu ao juiz que lhe preparasse um mandado de busca,
Gallo iria imediatamente pegar o documento.
— Fazio, disseram qual é a especialidade do doutor Licalzi?
— Disseram, doutor. Ele é conserta-osso.

No meio do caminho entre Vigàta e Montelusa, o comissário chamou


novamente o Hospital Maggiore de Bolonha. Depois de uma espera não
muito longa, escutou uma voz firme, mas educada.
— Aqui é Licalzi. Quem fala?
— Desculpe incomodar, professor. Eu sou o comissário Salvo
Montalbano, de Vigàta. Estou cuidando do caso. Antes de tudo, peço-lhe que
aceite meus mais sinceros pêsames.
— Obrigado.
Nem uma sílaba a mais ou a menos. O comissário percebeu que ainda
estava com a palavra.
— Bem, doutor, o senhor disse hoje ao juiz que não sabia o endereço da
sua mulher, quando ela vinha para cá.
— Isto mesmo.
— Não estamos conseguindo descobrir esse endereço.
— Não devem existir muitos hotéis entre Montelusa e Vigàta.
Disposto à colaboração, esse professor Licalzi.
— Desculpe a minha insistência. Os senhores não tinham previsto, em
caso de absoluta necessidade...
— Não creio que pudesse haver uma necessidade dessas. De qualquer
modo, aí em Vigàta mora um parente meu distante, com o qual a pobre
Michela ficava em contato.
— Poderia dizer...
— Ele se chama Aurelio Di Blasi. E agora, queira desculpar, preciso
voltar à sala de cirurgia. Amanhã, por volta do meio-dia, estarei no
comissariado.
— Uma última pergunta. O senhor informou esse seu parente sobre o
acontecido?
— Não. Por quê? Eu deveria informar?
Capítulo IV

— Uma senhora muito especial, tão elegante, tão bonita! — disse Claudio
Pizzotta, distinto sessentão que gerenciava o Hotel Jolly de Montelusa. —
Aconteceu alguma coisa?
— Pra falar a verdade, ainda não sabemos. Recebemos de Bolonha um
telefonema do marido, preocupado.
— Pois é. De fato, pelo que sei, a senhora Licalzi saiu do hotel na quarta-
feira à noite, e desde então não a vimos mais.
— E não se preocuparam? Estamos na sexta à noite, acho eu.
— Pois é.
— Ela avisou que não iria voltar?
— Não. Mas veja bem, comissário, essa senhora costuma se hospedar
conosco há pelo menos uns dois anos. Portanto, tivemos tempo suficiente
para conhecer seus ritmos de vida, que não são, como direi, usuais. Dona
Michela é uma mulher que não passa despercebida, compreende? Além disso,
eu sempre tive uma preocupação específica.
— Ah, é? Qual?
— Bom, ela tem muitas joias de grande valor. Colares, pulseiras, brincos,
anéis... Sempre se recusou a guardá-las em nosso cofre, por mais que eu
insistisse, várias vezes. Prefere mantê-las numa espécie de mochila, ela não
usa bolsas comuns. Todas as vezes, me tranquilizou, dizendo que não deixava
as joias no quarto, levava tudo ao sair. Mas, mesmo assim, eu temia algum
furto. Ela sorria, e não havia jeito.
— O senhor mencionou ritmos de vida particulares. Poderia explicar
melhor?
— Claro. Ela gosta de horários inusitados. Frequentemente, volta com o
dia já amanhecendo.
— Sozinha?
— Sempre.
— Bêbada? Meio alta?
— Nunca. Pelo menos, é o que diz o recepcionista noturno.
— Poderia me informar que motivos tem o senhor para falar da senhora
Licalzi com o recepcionista?
Claudio Pizzotta ficou vermelho que nem brasa. Via-se que andara
imaginando molhar o biscoito com dona Michela.
— Comissário, o senhor compreende... Uma mulher tão bonita e
sozinha... É mais do que natural a gente sentir uma certa curiosidade.
— Prossiga. Fale desses tais ritmos.
— Ela dorme direto até mais ou menos meio-dia, não quer ser perturbada
de jeito nenhum. Quando pede pra ser acordada, pede também a primeira
refeição no quarto e começa a dar e receber telefonemas.
— Muitos?
— Bem, eu tenho uma lista de impulsos que não acaba mais.
— Sabe a quem ela telefonava?
— Poderíamos saber. Mas é demorado. No quarto, basta discar zero e
pode-se telefonar até pra Nova Zelândia.
— E quanto às chamadas recebidas?
— Bom, o que o senhor quer que eu diga? A telefonista recebe a chamada
e transfere pro quarto. Temos somente uma possibilidade.
— Ou seja?
— Alguém ligar, quando ela não está no hotel, e deixar recado. Nesse
caso, a telefonista entrega uma papeleta ao recepcionista, e ele deixa essa
papeleta no compartimento das chaves.
— Ela costuma almoçar no hotel?
— Raramente. O senhor compreende: fazendo uma substancial primeira
refeição tão tarde... Mas já aconteceu. E uma vez o maître me falou da atitude
dela à mesa, quando almoça.
— Não entendi bem, queira desculpar.
— O hotel é muito frequentado. Homens de negócios, políticos,
empresários... E todos, bem ou mal, acabam tentando. Olhadinhas, sorrisos,
convites mais ou menos explícitos. O bonito nela, segundo o maître, é que
não faz o gênero santa ofendida, pelo contrário, retribui as olhadas e os
sorrisos... Mas os finalmente, nada. Os homens ficam só na vontade.
— A que horas ela costuma sair à tarde?
— Aí pelas seis. E volta sempre tardíssimo.
— Deve ter um grande círculo de amizades em Montelusa e Vigàta.
— Sem dúvida.
— Já aconteceu que ela ficasse fora por mais de uma noite?
— Não creio. O recepcionista teria contado.
Chegaram Gallo e Galluzzo, abanando o mandado de busca.
— Qual é o quarto da senhora Licalzi?
— O 118.
— Estou com um mandado.
O gerente Pizzotta fez uma cara ofendida.
— Mas comissário! Não era necessária essa formalidade! Bastava pedir, e
eu... Vou acompanhá-los.
— Não, obrigado — fez Montalbano, secamente.
De ofendida, a cara do gerente Pizzotta passou a mortalmente ofendida.
— Vou buscar a chave — fez ele, lacônico.
Voltou dali a pouco com a chave e um maço de papeizinhos, recados de
telefonemas recebidos.
— Tome — disse, entregando, sabe-se lá por quê, a chave a Fazio e os
recados a Gallo. Diante de Montalbano, baixou bruscamente a cabeça, à
alemã, virou-se e afastou-se, tão rígido que parecia um boneco de madeira em
movimento.

O quarto 118 estava impregnado de um indissipável Chanel nº 5. Na bancada


para bagagens, exibiam-se duas malas e uma sacola assinadas Vuitton.
Montalbano abriu o guarda-roupa: cinco vestidos muito chiques, três pares de
jeans da melhor qualidade; na sapateira, cinco pares de saltos altíssimos,
assinados Magli, e três esportivos, baixinhos. As camisetas, também de
marcas caríssimas, estavam dobradas com extremo cuidado; a roupa íntima,
arrumada por cores na respectiva gaveta, compunha-se apenas de sumárias
tanguinhas.
— Aqui dentro não tem nada — disse Fazio, depois de inspecionar as
duas malas e a sacola.
Gallo e Galluzzo, que haviam revirado a cama e o colchão, balançaram
negativamente a cabeça e começaram a botar tudo no lugar, sugestionados
pela ordem que reinava no aposento.
Sobre a pequena escrivaninha havia correspondência, anotações, uma
agenda e uma pilha de papeizinhos de recados, bem mais alta do que a
entregue a Gallo pelo gerente.
— Estas coisas a gente leva — disse o comissário a Fazio. — Veja
também nas gavetas, apanhe todos os papéis.
Fazio puxou do bolso um saco plástico que sempre levava e começou a
enchê-lo.
Montalbano passou ao banheiro. Tudo tinindo, em perfeita ordem. Na
bancada, batom Idole, base Shiseido, um vidro grande de Chanel nº 5, coisas
assim. Um roupão cor-de-rosa, visivelmente mais macio e mais caro do que o
da casa de campo, estava pendurado corretamente.
O comissário voltou ao quarto e tocou a campainha, para chamar a
encarregada daquele andar. Dali a pouco bateram, e ele mandou entrar. A
porta se abriu e apareceu uma quarentona magricela, a qual, ao ver os quatro
homens, empertigou-se, empalideceu e, num fio de voz, perguntou:
— São da polícia?
Montalbano teve vontade de rir. Quantos séculos de abusos policiais
tinham sido necessários para refinar numa mulher siciliana uma tão
fulminante capacidade de identificar um tira?
— Sim, somos — respondeu, sorrindo.
A camareira enrubesceu e baixou os olhos.
— O senhor me desculpe.
— Conhece a senhora Licalzi?
— Por quê, o que foi que aconteceu?
— De alguns dias pra cá, não deu notícias. Estamos procurando por ela.
— E pra procurar tão levando os papéis dela?
Não era subestimável, essa camareira. Montalbano decidiu conceder-lhe
alguma coisa.
— Estamos com medo de que ela tenha tido algum problema.
— Eu sempre disse pra ela ficar de olho — fez a camareira. — Andava
por aí com meio bilhão[6] na bolsa!
— Ela saía com tanto dinheiro assim? — perguntou Montalbano,
estupefato.
— Eu não estava falando de dinheiro, mas das joias. E com a vida que ela
leva! Volta tarde, acorda tarde...
— Isso nós já sabemos. A senhora a conhece bem?
— Claro. Desde a primeira vez em que veio aqui, com o marido.
— Sabe dizer alguma coisa sobre o caráter dela?
— Olhe, não era nem um pouco chata. Tinha só uma mania: ordem.
Quando a gente arrumava o quarto, ela fiscalizava para tudo ficar no lugar
certo. As camareiras do turno da manhã rezavam pra Nosso Senhor, antes de
começarem a trabalhar no 118.
— Uma última pergunta: as suas colegas do turno da manhã disseram
alguma vez se dona Michela havia recebido algum homem no quarto, à noite?
— Nunca. E pra essas coisas a gente tem faro.

Durante toda a viagem de volta a Vigàta, uma pergunta perseguiu


Montalbano: se a senhora era uma maníaca por ordem, por que o banheiro da
casinha em Tre Fontane estava tão desarrumado, até mesmo com o roupão
cor-de-rosa jogado no chão, de qualquer jeito?

Ao longo do jantar (merluzas fresquíssimas, fervidas com duas folhas de


louro e temperadas na hora com sal, pimenta e azeite de Pantelleria,
acompanhadas de um prato de suave tinnirùme[7] que alegrava o estômago e o
intestino), o comissário contou à senhora Vasile Cozzo os acontecimentos do
dia.
— A mim me parece — fez dona Clementina — que a verdadeira
pergunta é a seguinte: por que o assassino carregou as roupas, a calcinha, os
sapatos e a mochila da pobrezinha?
— Pois é — comentou Montalbano, sem dizer mais nada. Não queria
interromper o funcionamento do cérebro da senhora, a qual, mal abrira a
boca, já chegara direto ao ponto.
— Eu posso falar dessas coisas — prosseguiu ela — por aquilo que vejo
na televisão.
— Não lê romances policiais?
— Raramente. Além do mais, o que significa romance policial? O que
significa essa classificação?
— Bom, existe toda uma literatura que...
— Claro. Mas eu não gosto de etiquetas. Quer que eu lhe conte uma bela
história policial? Pois bem. Depois de muitas aventuras, um certo homem se
torna rei de uma cidade. Aos poucos, porém, seus súditos começam a adoecer
de uma enfermidade desconhecida, uma espécie de peste. Então esse homem
começa a indagar, para descobrir a causa do mal. Indaga daqui, indaga dali,
descobre que a raiz do mal é ele mesmo, e se castiga.
— Édipo — concluiu Montalbano, quase para si mesmo.
— Não é uma bela história policial? Voltemos ao nosso assunto. Por que
um assassino leva as roupas da vítima? A primeira resposta é: para que ela
não seja identificada.
— Não é o nosso caso — disse o comissário.
— Certo. Mas eu acho que, raciocinando desse jeito, estamos seguindo o
caminho no qual o assassino quer nos meter.
— Não entendi.
— Explico melhor. Quem levou todas as coisas dela deseja nos fazer
acreditar que atribui igual importância a cada uma dessas coisas. Obriga-nos
a considerá-las como um todo único. Mas não é bem assim.
— Pois é — fez Montalbano de novo, cada vez mais admirado e cada vez
mais temeroso de cortar, com alguma observação inoportuna, o fio daquele
raciocínio.
— No entanto, a mochila, por si só, vale meio bilhão, com as joias que
tem dentro. Portanto, para um ladrão comum, ter roubado a mochila significa
ter ganho o dia. Certo?
— Certo.
— Mas que interesse tem um ladrão comum em levar as roupas?
Nenhum. Então, se o assassino levou as roupas, a calcinha e os sapatos, isso
nos faz pensar que não se trata de um ladrão comum. Mas, na verdade, é um
ladrão comum, que, fazendo isso, deseja passar por incomum, diferente. Por
quê? Ele pode ter feito isso para embaralhar as cartas: queria roubar a
mochila, que valia aquilo tudo, mas, tendo cometido um homicídio, tentou
mascarar seu verdadeiro objetivo.
— Certo — fez Montalbano, sem ser solicitado.
— Continuando. Talvez esse ladrão tenha levado outras coisas de valor
que nós ignoramos.
— Posso dar um telefonema? — pediu o comissário, assaltado por um
pensamento repentino.
Ligou para o Jolly de Montelusa e pediu para falar com Claudio Pizzotta,
o gerente.
— Ah, comissário, que coisa atroz! Terrível! Acabamos de saber pela
Retelibera que a pobre senhora Licalzi...
Nicolò Zito havia dado a notícia, e Montalbano se esquecera de ouvir de
que jeito o jornalista comentara o caso.
— A Televigàta também deu uma matéria — acrescentou Pizzotta, entre
visivelmente deleitado e fingidamente compungido.
Galluzzo tinha feito seu dever com o cunhado.
— O que é que eu faço, doutor? — perguntou o gerente, aflito.
— Não entendi.
— Com esses repórteres. Estão me assediando. Querem uma entrevista.
Souberam que a pobre senhora estava hospedada conosco...
E por quem poderiam ter sabido, a não ser pelo próprio gerente? O
comissário imaginou Pizzotta ao telefone convocando os jornalistas,
explicando como poderia fazer revelações interessantes sobre a mulher
assassinada, bela, jovem e, sobretudo, encontrada nua...
— Faça a merda que achar melhor. Me diga uma coisa, dona Michela
costumava usar alguma das joias? Tinha relógio?
— Claro que usava joia, embora discretamente. Senão, por que iria trazer
tudo de Bolonha pra Vigàta? Quanto ao relógio, tinha sempre no pulso um
Piaget estupendo, fino como uma folha de papel.
Montalbano agradeceu, desligou e comunicou a dona Clementina o que
tinha acabado de saber. Ela pensou um pouquinho.
— Agora precisamos estabelecer se se trata de um ladrão que se tornou
assassino por necessidade ou de um assassino que quer se fingir de ladrão.
— Assim, por instinto, eu não acredito muito nessa história de ladrão.
— O senhor faz mal em confiar no instinto.
— Mas, dona Clementina, Michela Licalzi estava nua, tinha acabado de
tomar banho. Um ladrão escutaria o barulho e esperaria um pouco pra entrar
na casa.
— E quem lhe diz que o ladrão já não estava na casa quando ela chegou?
Ela entra e o ladrão se esconde. Quando ela vai para o chuveiro, o ladrão acha
que está na hora. Sai do esconderijo, recolhe o que quer recolher, mas é
surpreendido pela dona da casa. Então, ele reage como já sabemos. Talvez
nem tivesse a intenção de matá-la.
— Mas como teria entrado esse ladrão?
— Assim como o senhor entrou, comissário.
Nocauteado, Montalbano não reagiu.
— Passemos às roupas — continuou dona Clementina. — Se foram
levadas por encenação, isso é uma coisa. Mas, se o assassino precisava
realmente fazê-las desaparecer, aí são outros quinhentos. O que será que elas
tinham de tão importante?
— Podiam representar um perigo pra ele, facilitar sua identificação — fez
o comissário.
— Sim, isto mesmo, comissário. Mas, claramente, não constituíam perigo
quando ela as vestiu. Devem ter ficado perigosas depois. E como?
— Podem ter-se manchado — disse Montalbano, em dúvida. — Com o
sangue do assassino, quem sabe? Embora...
— Embora?...
— Embora não houvesse sangue no quarto. Havia um pouquinho no
lençol, saído da boca de dona Michela. Talvez se trate de outras manchas. De
vômito, só pra dar um exemplo.
— Ou de esperma, só para dar outro — fez a senhora Vasile Cozzo,
enrubescendo.

Era cedo para retornar à sua casa em Marinella, e então Montalbano decidiu
aparecer no comissariado para ver se havia novidades.
— Ah, dotor! Ah, dotor! — fez Catarella, assim que o viu. — O senhor
está aqui? Ligaram assim umas dez pessoas! Todo mundo atrás do senhor
pessoalmente! Eu não sabia que o senhor vinha, então disse pra telifonar
amanhã de manhã! Fiz certo ou errado, dotor?
— Certo, Catarè, não se preocupe. Você sabe o que queriam?
— Era tudo gente que dizia que era gente que conhecia a senhora
sassinada.
Na mesa do gabinete, Fazio tinha lhe deixado o saco plástico com os
papéis apanhados no quarto 118. Ao lado, os recadinhos telefônicos que o
gerente Pizzotta havia entreguado a Gallo. O comissário sentou-se, tirou do
saco plástico a agenda e deu uma folheada. Michela Licalzi mantinha-a tão
em ordem quanto o seu quarto de hotel: encontros, telefonemas a fazer,
lugares aonde devia ir, tudo anotado com clareza e precisão.
O doutor Pasquano disse, e nisso Montalbano estava de acordo, que a
moça tinha sido morta na noite de quarta para quinta-feira. Portanto, ele foi
logo examinando a página de quarta, o último dia de vida de Michela Licalzi.
Às 16h, telefonar Rotondo, móveis; 16h30, ligar Emanuele; 17h, enc. Todaro,
plantas e jardins; 18h, Anna; 20h, jantar c/ os Vassallo.
Michela também tinha marcado outros compromissos para quinta, sexta e
sábado, ignorando que alguém a impediria de comparecer a eles. Na quinta,
sempre à tarde, deveria encontrar Anna, com a qual iria ver Loconte (entre
parênteses: cortinas), para depois encerrar a noite jantando com um tal de
Maurizio. Na sexta, veria Riguccio eletricista, novamente Anna, e depois
jantaria com os Cangialosi. Na página de sábado havia uma única anotação:
16h30, voo de Punta Ràisi para Bolonha.
A agenda era de formato grande, a parte reservada aos telefones previa
três páginas para cada letra do alfabeto. Mesmo assim, os números transcritos
eram tantos que, em algumas, ela precisou escrever na mesma linha os
telefones de duas pessoas.
Montalbano deixou de lado a agenda e tirou do saco plástico os outros
papéis. Nada de interessante, eram apenas faturas e notas fiscais: cada
despesa feita na construção e na decoração da casa, por menor que fosse,
estava cuidadosamente documentada. Num caderninho quadriculado,
Michela tinha anotado em colunas todos os gastos, parecia pronta para uma
visita da Receita. Havia um talonário de cheques do Banco Popular de
Bolonha do qual só restavam os canhotos. Montalbano achou também um
cartão de embarque Bolonha-Roma-Palermo, de seis dias antes, e uma
passagem Palermo-Roma-Bolonha, marcada para as 16h30 do sábado.
Nem sombra de uma carta pessoal, de um bilhetinho particular. Ele
decidiu continuar o trabalho em casa.
Capítulo V

Só faltava examinar os papeizinhos de recados telefônicos. O comissário


começou por aqueles que Michela havia juntado na escrivaninha do quarto do
hotel. Eram bem uns quarenta, e Montalbano arrumou-os segundo o nome da
pessoa que tinha telefonado. As pilhas que, no fim, resultaram mais altas que
as outras, eram três. Uma mulher, Anna, telefonava durante o dia e, em geral,
pedia que Michela retornasse a ligação assim que acordasse ou quando
voltasse ao hotel. Um homem, Maurizio, tinha ligado duas ou três vezes na
parte da manhã, mas habitualmente preferia chamar tarde da noite, e sempre
pedia retorno. A terceira pilha de recados também era de um homem, que se
chamava Guido e ligava de Bolonha, igualmente à noite; mas, à diferença de
Maurizio, não pedia que ela telefonasse de volta.
Os recados que o gerente Pizzotta tinha entregado a Gallo eram vinte:
todos os telefonemas recebidos desde a hora em que Michela deixou o hotel,
na tarde de quarta, até o anúncio de sua morte. Na manhã de quarta, porém,
no horário que a senhora Licalzi dedicava ao sono, o mesmo Maurizio havia
chamado às dez e meia, e pouco depois Anna fez o mesmo. Por volta das
nove da noite, sempre de quarta-feira, Michela foi procurada pela senhora
Vassallo, que voltou a ligar uma hora depois. Anna telefonou mais uma vez,
pouco antes da meia-noite.
Às três da manhã de quinta, Guido tinha ligado de Bolonha. Às dez e
meia, Anna (a qual, evidentemente, ignorava que Michela não havia voltado
ao hotel naquela noite); às 11, um certo Loconte confirmou o encontro para a
tarde. Ao meio-dia, sempre de quinta, telefonou o senhor Aurelio Di Blasi,
que insistiu quase de três em três horas, até às sete da noite de sexta. Guido,
de Bolonha, ligou às duas da madrugada de sexta. Os telefonemas de Anna,
desde a manhã de quinta, tornaram-se frenéticos: só se interrompiam na sexta
à noite, cinco minutos antes de a Retelibera transmitir a notícia da descoberta
do cadáver.
Alguma coisa não combinava. Sem conseguir identificar o que era,
Montalbano ficou injuriado. Então levantou-se, saiu à varandinha que dava
diretamente para a praia, tirou os sapatos e caminhou pela areia até chegar à
beira-mar. Arregaçou as calças e começou a andar, com a água banhando-lhe
de vez em quando os pés. Acalentado pelo marulho balouçante, conseguiu
organizar os pensamentos. E, de repente, compreendeu o que o angustiava.
Voltou para casa, pegou a agenda e abriu-a na página da quarta-feira. Michela
havia anotado que deveria ir jantar com os Vassallo às 20 horas. Então, por
que a senhora Vassallo a procurou no hotel às nove e às dez? Michela tinha
faltado ao compromisso? Ou a senhora Vassallo que havia telefonado não
tinha nada a ver com os Vassallo do convite para jantar?
O comissário olhou o relógio: mais de meia-noite. Decidiu que o fato era
importante demais para que ele se preocupasse com as boas maneiras. Dos
três Vassallo que achou no catálogo, chamou o primeiro e acertou.
— Queira desculpar. Aqui é o comissário Montalbano.
— Comissário! Eu sou Ernesto Vassallo. Pretendia procurá-lo amanhã de
manhã. Minha mulher está arrasada, precisei chamar um médico. Alguma
descoberta?
— Nenhuma. Preciso lhe perguntar uma coisa.
— Às ordens, comissário. Pela pobre Michela...
Montalbano cortou-o.
— Li na agenda da senhora Licalzi que, na quarta à noite, ela iria jantar...
Desta vez, foi Ernesto Vassallo quem interrompeu.
— Mas não veio, comissário! Esperamos muito tempo. Nada. Nem um
telefonema, logo ela, que era tão correta! Ficamos preocupados, temendo que
estivesse doente, ligamos duas vezes para o hotel, procuramos também na
casa de Anna Tropeano, que era amiga dela, mas Anna disse que não sabia de
nada, tinha visto Michela por volta das seis, ficaram juntas por uma meia
hora, e depois Michela foi embora, dizendo que ia trocar de roupa no hotel
para vir à nossa casa.
— Bem, eu lhe agradeço muito. Não vá de manhã ao comissariado, eu
tenho vários compromissos. Passe à tarde, quando quiser. Boa noite.
Já que tinha chegado até ali, resolveu ir além. Procurou no catálogo o
nome de Aurelio Di Blasi e discou o número. O primeiro toque sequer havia
terminado e alguém já pegava o fone do outro lado.
— Alô? Alô? É você? É você?
Uma voz de homem de meia-idade, aflita, preocupada.
— Aqui é o comissário Montalbano.
— Ah.
Montalbano percebeu que o homem tinha sentido uma profunda
decepção. De quem esperava um telefonema, com tanta ansiedade?
— Senhor Di Blasi, o senhor certamente soube a respeito da pobre...
— Soube, soube, ouvi na televisão.
À decepção seguira-se um evidente desprazer.
— Pois é, eu queria saber por que o senhor procurou insistentemente a
senhora Licalzi no hotel, do meio-dia de quinta até a noite de sexta.
— E o que há de tão extraordinário nisso? Eu sou parente distante do
marido de Michela. Ela, quando vinha a Vigàta ver a casa, me procurava para
pedir opiniões ou ajuda. Eu sou engenheiro civil. Na quinta, telefonei a fim
de convidá-la para jantar conosco, mas o recepcionista disse que ela não tinha
voltado na noite anterior. O recepcionista me conhece, tem liberdade para
falar. Então, eu comecei a ficar preocupado. Acha isso tão excepcional
assim?
Agora o engenheiro Di Blasi havia se tornado irônico e agressivo. O
comissário teve a impressão de que os nervos daquele homem iam explodir.
— Não — respondeu, e desligou.
Era inútil chamar Anna Tropeano: já sabia o que ela iria contar, porque o
senhor Vassallo já tinha antecipado tudo. Convocaria a Tropeano ao
comissariado. A esta altura, uma coisa era certa: o desaparecimento de
Michela Licalzi havia começado por volta das sete da noite de quarta; e, a
essa hora, ela não seguiu para o hotel, ainda que tivesse manifestado tal
intenção à sua amiga.
Montalbano estava sem sono. Então, levou para a cama um livro, um
romance de Denevi, um escritor argentino do qual gostava muito.

Quando começou a sentir os olhos piscando, fechou o livro e apagou a luz.


Como fazia, com muita frequência, antes de adormecer, pensou em Livia. E,
de repente, viu-se sentado na cama, acordadíssimo. Jesus, Livia! Não falava
com ela desde a noite do temporal, quando fingiu que a ligação tinha caído.
Livia certamente não tinha acreditado, tanto que não telefonou mais.
Precisava consertar isso logo.
— Alô? Mas quem fala? — fez a voz sonolenta de Livia.
— Sou eu, amor, Salvo.
— Me deixe dormir!
Clic. Montalbano ficou um tempinho segurando o fone.
Eram oito e meia da manhã quando ele entrou no comissariado, levando os
papéis de Michela. Desde a hora em que Livia não quis falar, ficara nervoso e
não conseguiu pregar olho. Não precisou convocar Anna Tropeano; Fazio
logo lhe disse que ela o esperava desde as oito.
— Escute, quero saber tudo sobre um engenheiro civil de Vigàta. Chama-
se Aurelio Di Blasi.
— Tudo tudo? — quis saber Fazio.
— Tudo tudo.
— Tudo tudo, pra mim, significa inclusive os boatos, as fofocas.
— Pra mim também significa a mesma coisa.
— E quanto tempo eu tenho?
— Ora, Fazio, virou sindicalista? Duas horas chegam, e de sobra.
Fazio esquadrinhou o superior com uma cara indignada e saiu sem sequer
dizer até logo.

Em condições normais, Anna Tropeano devia ser uma bela mulher de trinta,
cabelos pretíssimos, pele morena, grandes olhos brilhantes, alta e fornida.
Mas agora apresentava-se de ombros caídos, olhos inchados e vermelhos,
pele sem viço.
— Posso fumar? — perguntou ela, assim que se sentou.
— Claro.
Anna acendeu um cigarro, as mãos tremiam. Tentou um arremedo de
sorriso.
— Eu tinha parado uma semana atrás. Mas, desde ontem à noite, já fumei
no mínimo três maços.
— Eu lhe agradeço por ter vindo espontaneamente. De fato, preciso
perguntar muitas coisas à senhora.
— Estou aqui.
Dentro de si, o comissário puxou um suspiro de alívio. Anna era uma
mulher forte, não haveria choro ou desmaio. O fato é que ele gostou do jeito
daquela mulher assim que ela apareceu à porta.
— Se alguma das minhas perguntas parecer estranha, responda mesmo
assim, por favor.
— Certo.
— Casada?
— Quem?
— A senhora.
— Não, não sou. Nem separada ou divorciada. Nenhum compromisso,
em suma. Moro sozinha.
— Por quê?
Embora Montalbano tivesse avisado, Anna teve um momento de
incerteza em responder a uma pergunta tão pessoal.
— Acho que não tive tempo pra pensar em mim. Comissário, um ano
antes de eu me formar, meu pai morreu, ainda muito moço. Infarto. Um ano
depois da formatura, perdi minha mãe e precisei cuidar da minha irmã mais
nova, Maria, que agora tem vinte e nove anos, está casada e mora em Milão,
e do meu irmão Giuseppe, que tem vinte e sete e trabalha num banco em
Roma. Eu estou com trinta e um. Mas, além disso, acho que não encontrei a
pessoa certa.
Não estava ressentida; pelo contrário, parecia um pouquinho mais calma.
O fato de o comissário não ter entrado logo no assunto lhe deu como que uma
pausa para respirar. Montalbano concluiu que era melhor continuar
navegando ao largo.
— Aqui em Vigàta, a senhora mora na casa dos seus pais?
— Sim, papai tinha comprado o imóvel. E uma espécie de palacetezinho,
bem no começo de Marinella. Ficou grande demais pra mim.
— E aquela casa à direita, logo depois da ponte?
— Essa mesmo.
— Eu passo ali na frente pelo menos duas vezes por dia. Também moro
em Marinella.
Anna Tropeano olhou para ele, um tantinho intrigada. Que tira mais
estranho!
— Trabalha?
— Sim, ensino no Científico de Montelusa.
— Ensina o quê?
— Física.
Montalbano observou-a, cheio de admiração. Na escola, em física,
sempre ficava entre quatro e cinco: se tivesse tido, naquela época, uma
professora assim, talvez agora pudesse igualar-se a Einstein.
— Sabe quem foi que a matou?
Anna Tropeano sobressaltou-se e olhou o comissário com expressão
implorante: estavam indo tão bem, por que botar agora a máscara do tira, que
é pior que um cão de caça?
“O senhor não solta a presa nunca?”, pareceu perguntar.
Montalbano compreendeu o que os olhos da moça queriam saber, sorriu e
abriu os braços num gesto resignado, como se dissesse:
“É o meu trabalho.”
— Não — respondeu Anna Tropeano, firme e decidida.
— Algum suspeito?
— Não.
— A senhora Licalzi costumava voltar pro hotel nas primeiras horas da
manhã. Eu queria perguntar...
— Estava sempre comigo. Na minha casa. Jantávamos juntas quase todas
as noites. Se ela fosse convidada pra outro lugar, depois ia lá pra casa.
— E o que faziam?
— O que fazem duas amigas? Conversávamos, assistíamos à televisão,
ouvíamos música. Ou então não fazíamos nada, era só o prazer de nos
sentirmos em companhia uma da outra.
— Ela tinha amigos homens?
— Sim, alguns. Mas as coisas não eram como podiam parecer. Michela
era muito séria. Ao vê-la tão desembaraçada, tão livre, os homens se
equivocavam. E sempre se desiludiam.
— Havia alguém particularmente insistente?
— Sim.
— Como se chama?
— Não vou dizer. O senhor vai descobrir facilmente.
— Em suma, a senhora Licalzi era superfiel ao marido.
— Eu não disse isso.
— Aonde quer chegar?
— Aquilo que eu acabei de dizer.
— Vocês se conheciam há muito tempo?
— Não.
Montalbano encarou-a, levantou-se e foi até a janela. Anna, quase com
raiva, acendeu o quarto cigarro.
— Não gostei do tom dessa última parte do nosso diálogo — fez o
comissário, de costas.
— Eu também não.
— Paz?
— Paz.
Montalbano voltou-se, sorriu para ela, Anna retribuiu. Mas, dali a um
segundo, levantou um dedo, como uma estudante: queria fazer uma pergunta.
— Se não for segredo, o senhor pode me dizer como é que ela foi
assassinada?
— A televisão não informou?
— Não, nem a Retelibera nem a Televigàta. Comunicaram a descoberta
do corpo e só.
— Eu não deveria contar. Mas vou abrir uma exceção pra senhora. Ela foi
asfixiada.
— Com um travesseiro?
— Não. Com o rosto empurrado de encontro ao colchão.
Anna começou a oscilar, como a copa das árvores quando sopradas pelo
vento. O comissário saiu e, dali a pouco, voltou com uma garrafa d’água e
um copo. Anna bebeu como se tivesse acabado de chegar do deserto.
— Mas o que será que ela foi fazer lá na casa, meu Deus? — disse, quase
para si mesma.
— A senhora já esteve lá?
— Claro. Quase todos os dias, com Michela.
— Ela dormiu lá alguma vez?
— Que eu saiba, não.
— Mas no banheiro tinha um roupão, toalhas, cremes.
— Eu sei. Foi Michela quem levou. Quando ia lá pra ver a obra,
inevitavelmente acabava suja de poeira, cimento. Então, antes de ir embora,
tomava banho.
Montalbano convenceu-se de que chegara o momento de dar um golpe
baixo; mas fez isso de má vontade, não queria magoá-la.
— Ela estava completamente nua.
Anna pareceu atravessada por uma corrente de alta-tensão: arregalou
desmesuradamente os olhos e tentou dizer alguma coisa, mas não conseguiu.
Montalbano encheu novamente o copo.
— Ela foi... foi violentada?
— Não sei. O médico-legista ainda não me telefonou.
— Mas por quê, em vez de ir pro hotel, ela foi àquela maldita casa? —
voltou Anna a perguntar-se.
— A pessoa que a matou levou as roupas, a calcinha, os sapatos.
Anna olhou-o, incrédula, como se o comissário tivesse contado uma
grande mentira.
— E por que motivo?
Em vez de responder, Montalbano continuou.
— Levou também a mochila, com tudo o que havia dentro.
— Isso é mais compreensível. Naquela mochila Michela carregava todas
as joias dela, que eram muitas, e de grande valor. Se quem a sufocou tiver
sido um ladrão flagrado na...
— Um momento. O senhor Vassallo me contou que a mulher dele,
preocupada porque Michela não chegava, telefonou pra senhora.
— É verdade. E eu supunha que ela estava com eles. Quando saiu,
Michela disse que ia passar no hotel pra trocar de roupa.
— A propósito, como estava vestida?
— Toda de jeans, inclusive uma jaqueta. E sapato esporte.
— No hotel ela não apareceu. Alguém ou alguma coisa a levou a mudar
de ideia. Ela tinha celular?
— Tinha, na mochila.
— Então, posso pensar que, enquanto se dirigia ao hotel, alguém ligou
pro celular. E, por causa desse telefonema, ela foi pra casa de campo.
— Talvez tenha sido uma armadilha.
— Da parte de quem? Do ladrão, certamente não. Já ouviu falar de algum
ladrão que convoca o dono da casa que ele está roubando?
— O senhor viu se falta alguma coisa lá?
— O Piaget dela, sem dúvida. Quanto ao resto, não sei. Ignoro o que
havia de valor na casa. Tudo parece em ordem. Desarrumado, só o banheiro.
Anna fez uma cara espantada.
— Desarrumado?
— Sim. O roupão estava jogado no chão. Ela havia acabado de tomar
banho.
— Comissário, o senhor está descrevendo um quadro que não me
convence nem um pouco.
— Como assim?
— Isso de Michela ter ido até a casa pra encontrar um homem, e tão
impaciente por se deitar com ele a ponto de se livrar do roupão às pressas,
jogando-o onde caísse.
— E plausível, não?
— Pra outras mulheres, sim. Pra Michela, não.
— A senhora sabe quem é um tal de Guido, que todas as noites telefonava
de Bolonha pra ela?
Montalbano havia dado um tiro no escuro, mas acertou em cheio. Anna
Tropeano desviou o olhar, embaraçada.
— Há pouco, a senhora me disse que ela era fiel.
— Sim.
— Fiel à sua única infidelidade?
Anna acenou afirmativamente com a cabeça.
— Poderia me dizer o nome dele? Seria um favor, me pouparia tempo.
Porque descobrir, quanto a isso não tenha dúvida, eu descubro do mesmo
jeito. Então?
— Ele se chama Guido Serravalle, é um antiquário. Não sei nem o
telefone nem o endereço.
— Obrigado, isso basta. Por volta do meio-dia, o marido estará aqui.
Gostaria de encontrá-lo?
— Eu?! E por quê? Nem o conheço.
O comissário não precisou perguntar mais: Anna continuou falando por
iniciativa própria.
— Michela se casou com o doutor Licalzi há dois anos e meio. Foi ela
quem quis vir à Sicília na lua de mel. Não foi nessa ocasião que nós nos
conhecemos. Foi depois, quando ela voltou sozinha, com intenção de mandar
construir a casa. Um dia, eu ia de carro pra Montelusa, um Twingo vinha em
sentido contrário, estávamos as duas distraídas, por pouco não batemos de
frente. Descemos, pedimos desculpas recíprocas e acabamos simpatizando
uma com a outra. Todas as outras vezes em que voltou aqui, Michela veio
sempre sozinha.
Anna estava cansada, e Montalbano sentiu pena.
— A senhora me ajudou muitíssimo. Obrigado.
— Posso ir?
— Claro.
E estendeu-lhe a mão. Anna Tropeano segurou-a entre as dela.
O comissário sentiu por dentro como uma onda de calor.
— Obrigada — fez Anna.
— Obrigada por quê?
— Por me ter feito falar de Michela. Eu não tenho ninguém com quem...
Obrigada. Agora me sinto mais serena.
Capítulo VI

Anna Tropeano tinha acabado de sair quando a porta do gabinete do


comissário se escancarou, chocando-se contra a parede, e Catarella adentrou
o recinto como um furacão.
— Se entrar assim da próxima vez, leva tiro. E você sabe que eu estou
falando sério — disse Montalbano, calmíssimo.
Mas Catarella estava por demais excitado para se preocupar.
— Dotor, era pra dizer que me chamaram da chefatura de Montelusa.
Lembra que eu falei daquele concurso de formática? Começa segunda de
manhã e eu tenho que me apresentar. Como é que vocês vão ficar sem eu no
telifone?
— Sobreviveremos, Catarè.
— Ah, dotor, dotor! O senhor me disse pra num atrapalhar enquanto o
senhor falava com a moça e eu obedeci! Mas tem um aguaceiro de
telefonema! Tá tudo escrito aqui neste papelzinho.
— Me dá aqui e te manda.
Numa página de caderno arrancada de mau jeito estava escrito:
“Telefonaram Vizzalllo Guito Sera falle Losconte seu amigo Zito Rotonò
Totano Ficuccio Cangialosi novamente de novo Sera falle di bolonia
Cipollina Finissi Cacomo”.
Montalbano começou a se coçar no corpo todo. Devia ser uma misteriosa
forma de alergia, mas, a cada vez que era obrigado a ler alguma coisa escrita
por Catarella, sentia um prurido incontrolável. Com santa paciência, decifrou:
Vassallo, Guido Serravalle (o amante bolonhês de Michela), Loconte (o
que vendia tecidos para cortinas), seu amigo Nicolò Zito, Rotondo (dos
móveis), Todaro (o das plantas e jardins), Riguccio (o eletricista), Cangelosi
(que tinha convidado Michela para jantar) e, de novo, Serravalle, de Bolonha.
Cipollina, Finissi e Cacomo, admitindo-se que se chamassem assim, ele não
sabia de quem se tratava, mas era fácil supor que tivessem telefonado por
serem amigos ou conhecidos da vítima.
— Dá licença? — perguntou Fazio, lá da porta.
— Pode entrar. Trouxe as informações sobre o engenheiro Di Blasi?
— Claro. Senão, eu estaria aqui?
Evidentemente, Fazio esperava um elogio pelo pouco tempo empregado
na coleta de dados.
— Percebeu que você conseguiu em uma hora? — decepcionou-o o
comissário.
Fazio se chateou.
— E esse o agradecimento do senhor?
— Por quê? Você quer agradecimento quando faz apenas o seu dever?
— Comissário, com o devido respeito, me permita. Hoje de manhã, o
senhor está muito antipático.
— A propósito, por que eu ainda não tive a honra e o prazer, digamos
assim, de ver por aqui o doutor Augello?
— Saiu com Germanà e Galluzzo, por causa daquela história da fábrica
de cimento.
— Que história é essa?
— O senhor não sabe? Ontem, trinta e cinco operários da fábrica
receberam comunicado de licença compulsória. Aí, hoje de manhã,
começaram uma confusão, gritaria, pedras, coisas assim. O diretor se
apavorou e ligou pra cá.
— E por que Mimì Augello foi pra lá?
— Mas se o diretor pediu socorro a ele!
— Cristo! Eu já disse e repeti cem vezes. Não quero que ninguém do
comissariado se meta nessas coisas!
— Mas o que era que o pobre do doutor Augello podia fazer?
— Mandava telefonar pra Arma[8], nessas coisas aqueles caras deitam e
rolam! Acabam até arrumando outro emprego pro diretor da fábrica. E quem
fica chupando o dedo são os operários. E a gente ainda cai em cima deles de
porrada?
— Doutor, desculpe de novo, mas o senhor é comunista, comunista
mesmo. Comunista dos brabos.
— Fazio, você se engana com essa história de comunismo. Eu não sou
comunista, entendeu?
— Tá bom, mas fala e raciocina como se fosse.
— Vamos deixar a política pra lá?
— Tá bom. Então: Aurelio Di Blasi, filho de Giacomo e Maria Antonietta
Carlentini, falecidos, nascido em Vigàta em 3 de abril de 1937...
— Quando você fala assim me dá um nervoso. Parece um funcionário do
registro civil.
— Não gostou, senhor doutor? Quer que eu cante em música? Que recite
em poesia?
— Você também, em matéria de antipatia, hoje de manhã está impossível.
O telefone tocou.
— Pelo jeito, vamos acabar isto aqui lá pela noite — suspirou Fazio.
— Alô, dotor? Tá no telefone aquele senhor Càcono que telefonou antes.
O que é que eu faço?
— Me passe.
— Comissário Montalbano? Aqui é Gillo Jàcono. Tive o prazer de
conhecê-lo em casa da senhora Vasile Cozzo, sou ex-aluno dela.
Ao fundo, Montalbano escutou uma voz anunciando no microfone a
última chamada do voo para Roma.
— Me lembro muito bem. Pode falar.
— Estou no aeroporto, tenho só alguns segundos, desculpe a pressa.
Brevidade era uma coisa que o comissário estava sempre disposto a
desculpar, em qualquer situação.
— Estou ligando por causa daquela moça assassinada...
— O senhor a conhecia?
— Não. É que na quarta-feira, por volta da meia-noite, fui de Montelusa
pra Vigàta no meu carro. Mas o motor começou a falhar e eu tive que andar
devagarinho. Perto de Tre Fontane, fui ultrapassado por um Twingo escuro,
que parou pouco adiante, na frente de uma casinha de campo. Desceram um
homem e uma mulher, e pegaram a trilha. Não vi mais nada, mas disso que
eu vi tenho certeza.
— Quando é que o senhor retorna a Vigàta?
— Na próxima quinta-feira.
— Venha me procurar. Obrigado.
Montalbano ausentou-se, no sentido de que o seu corpo continuou
sentado, mas a cabeça estava longe.
— O que é que faço, volto daqui a pouco? — perguntou Fazio, resignado.
— Não, não. Fale.
— Bom, onde foi que eu parei? Ah, sim. Engenheiro civil, mas não
constrói propriamente. Domiciliado em Vigàta, rua Laporta número 8, casado
com Teresa Dalli Cardillo, prendas domésticas, mas prendas domésticas com
dinheiro. Proprietário de um bom pedaço de terreno agrícola em Raffadali,
província de Montelusa, com casa de colono anexa, que ele reformou. Tem
dois automóveis, um Mercedes e um Tempra. Dois filhos, um homem e uma
mulher. A filha mulher se chama Manuela, trinta anos, casada com um
comerciante, mora na Holanda. Têm dois filhos, Giuliano, três anos, e
Domenico, um. Moram...
— Agora eu encho sua cara de porrada — disse Montalbano.
— Por quê? O que foi que eu fiz? — perguntou Fazio, fingidamente
ingênuo. — O senhor não disse que queria saber tudo tudo?
O telefone tocou. Fazio limitou-se a gemer e erguer os olhos para o teto.
— Comissário? Aqui é Emanuele Licalzi. Estou ligando de Roma. O
avião saiu de Bolonha com duas horas de atraso, e eu perdi o Roma-Palermo.
Estarei aí lá pelas três da tarde.
— Não se preocupe. Eu espero.
Olhou para Fazio e Fazio olhou para ele.
— Falta muito pra acabar essa lengalenga?
— Tou quase no fim. O filho homem se chama Maurizio.
Montalbano endireitou-se na cadeira e aguçou os ouvidos.
— Trinta e um anos, estudante universitário.
— Com trinta e um anos?!
— Isto mesmo. Parece um pouquinho lerdo de cabeça. Mora com os pais.
E acabou.
— Não, tenho certeza de que não acabou. Pode continuar.
— Bom, são mexericos...
— Não faça cerimônia.
Era evidente que Fazio estava se divertindo: nessa partida com o seu
superior, tinha nas mãos as cartas melhores.
— Bom. O engenheiro Di Blasi é primo em segundo grau do doutor
Emanuele Licalzi. Dona Michela ficou íntima dos Di Blasi. E Maurizio
perdeu a cabeça por ela. Para quem quisesse ver, era uma diversão: quando a
senhora Licalzi saía por aí, ele ia atrás, com a língua de fora.
Então, o nome que Anna Tropeano não quis dizer era o de Maurizio.
— Todo mundo com quem eu falei — prosseguiu Fazio — me disse que
ele é uma figura. Boa gente, mas um pouquinho apalermado.
— Tá bom, obrigado.
— Tem mais uma coisa — disse Fazio, e estava claro que ele ia disparar a
última bomba, a maior, como se faz com fogos de artifício. — Parece que o
rapaz tá desaparecido desde a noite de quarta-feira. Não sei se fui claro.
— Alô, doutor Pasquano? Montalbano. Novidades pra mim?
— Algumas. Eu ia lhe telefonar.
— Me conte tudo.
— A vítima não tinha jantado. Ou então comeu pouca coisa, um
sanduichinho, talvez. Tinha um corpo esplêndido, por dentro e por fora.
Saúde total, mecanismo perfeito. Não tinha bebido nem ingerido tóxicos. A
morte foi causada por asfixia.
— Só isso? — fez Montalbano, decepcionado.
— Não. Ela teve relações sexuais, não há dúvida.
— Foi violentada?
— Não creio. Teve uma relação vaginal muito forte, como direi, intensa.
Mas não há vestígio de líquido seminal. Depois teve uma relação anal,
também muito forte e sem líquido seminal.
— Mas como é que o senhor sabe que ela não foi violentada?
— Muito simples. Pra preparar a penetração anal, foi usado um creme
emoliente, talvez um daqueles hidratantes que as mulheres têm no banheiro.
Já ouviu falar de um estuprador que se preocupa em não causar dor na
vítima? Não, pode acreditar: ela consentiu. Bom, por enquanto é só.
Informarei outros detalhes assim que os tiver.
Dono de uma excepcional memória fotográfica, o comissário fechou os
olhos, pôs a cabeça entre as mãos e se concentrou. E, dali a pouco, viu
nitidamente o potinho de creme hidratante, com a tampa ao lado, o último à
direita, na bancada do desarrumado banheiro da casa de campo.

Na rua Laporta, número 8, a plaquinha do interfone dizia: “Eng. Aurelio Di


Blasi” e só. Ele tocou, e uma voz feminina atendeu.
— Quem é?
Melhor não a deixar em guarda: naquela casa todos deviam estar com os
nervos à flor da pele.
— O engenheiro está?
— Não. Mas volta já. Quem é?
— Um amigo de Maurizio. Posso entrar?
Por um instante, sentiu-se um merda, mas esse era o seu trabalho.
— Último andar — fez a voz feminina.
A porta do elevador foi aberta por uma mulher de seus sessenta anos,
despenteada e transtornada.
— O senhor é amigo de Maurizio? — perguntou ela, ansiosa.
— Sim e não — respondeu Montalbano, sentindo que a merda já lhe
chegava ao pescoço.
— Sente-se.
Ela o conduziu a uma sala de estar grande e decorada com bom gosto,
indicou-lhe uma poltrona e foi sentar-se numa cadeira, balançando o tronco
para a frente e para trás, muda e desesperada. As persianas estavam fechadas,
uma luz avarenta se filtrava entre as varetas, e Montalbano teve a impressão
de estar fazendo uma visita de pêsames. Pensou que talvez o morto existisse,
mas invisível, e se chamava Maurizio. Espalhadas na mesinha de centro,
umas dez fotos que representavam todas o mesmo rosto, mas na penumbra do
aposento não se distinguiam os traços. O comissário deu um longo suspiro,
como quando a gente se prepara para um mergulho em apneia, e realmente
estava quase imergindo naquele abismo de dor que eram os pensamentos da
senhora Di Blasi.
— Teve notícias do seu filho?
Era mais do que evidente que as coisas continuavam como Fazio havia
relatado.
— Não. Todo mundo está procurando, em todos os lugares. Meu marido,
os amigos dele... Todos.
Ela começou a chorar mansamente, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto e
iam cair na saia.
— Ele estava com muito dinheiro?
— Pelo menos meio milhão. E também o cartão Bancomat.
— Vou buscar um copo d’água pra senhora — fez Montalbano,
levantando-se.
— Pode deixar, eu vou — disse ela, levantando-se também e saindo da
sala. Em um segundo Montalbano apanhou uma das fotos, olhou-a um
pouquinho, um rapaz de cara de cavalo, olhos inexpressivos, e meteu-a no
bolso. Via-se que o engenheiro Di Blasi tinha mandado fazer aquelas cópias
para distribuir. A mulher voltou, mas, em vez de se sentar, ficou de pé sob a
arcada da porta. Tinha se tornado suspeitosa.
— O senhor é muito mais velho do que o meu filho. Como disse que se
chama?
— Na verdade, Maurizio é amigo do meu irmão mais novo, Giuseppe.
Escolhera um dos nomes mais comuns na Sicília. Mas a senhora já não
estava prestando atenção; sentou-se e recomeçou a balançar para a frente e
para trás.
— Então, os senhores não têm notícias dele desde quarta à noite?
— Nenhuma, nenhuma. À noite ele não voltou. Nunca havia feito isso. É
um rapaz simples, ingênuo, se lhe contarem que os cães voam ele acredita. A
certa altura da manhã, meu marido ficou preocupado e começou a telefonar.
Um amigo, Pasquale Corso, tinha visto quando ele passou em direção ao bar
Italia. Podiam ser nove da noite.
— Ele estava com telefone celular?
— Estava. Mas o senhor quem é?
— Bom — cortou Montalbano, erguendo-se —, não quero incomodá-la
mais.
Dirigiu-se rapidamente à porta, abriu-a e voltou-se.
— Quando foi a última vez em que Michela Licalzi esteve aqui?
O sangue subiu ao rosto da senhora.
— Não fale o nome daquela puta! — disse.
E bateu a porta atrás dele.

O bar Italia era quase grudado ao comissariado; todos, inclusive Montalbano,


eram de casa. O proprietário estava sentado atrás da caixa registradora; era
um homão de olhar truculento, que contrastava com sua gentileza inata.
Chamava-se Gelsomino Patti.
— Mando servir o quê, comissário?
— Nada, Gelsomì. Preciso de uma informação. Você conhece Maurizio
Di Blasi?
— Acharam ele?
— Ainda não.
— O pai, coitadinho, passou por aqui pelo menos umas dez vezes, pra
saber se eu tinha notícias. Mas que notícias eu posso ter? Se ele voltar, vai
pra casa, não vai vir se sentar aqui no bar.
— Escuta, Pasquale Corso...
— Comissário, o pai também falou disso comigo, ou seja, que Maurizio,
ali pelas nove da noite, veio aqui. O fato é que ele parou na rua, bem aí em
frente, eu estava na caixa e vi muito bem. Ele ia entrando, mas depois parou,
pegou o celular, chamou um número e começou a falar. Depois de um
tempinho, eu não o vi mais. Agora, que ele não entrou aqui na noite de
quarta, isto é certo. Que interesse eu teria em dizer uma coisa por outra?
— Obrigado, Gelsomì. Até logo.

— Dotor! Tilifonou de Montelusa o dotor Latte.


— Lattes, Catarè, com s no fim.
— Dotor, um s a mais ou a menos não quer dizer nada. Ele falou assim,
que é pro senhor chamar ele mediatamente. E depois telefonou também Guito
Serafalle. Deixou o número de Bolônia. Está escrito aqui neste papelzinho.
Era hora de sair para almoçar, mas ainda havia tempo para um
telefonema.
— Alô? Quem fala?
— Aqui é o comissário Montalbano. Estou ligando de Vigàta. É o senhor
Guido Serravalle?
— Sim. Comissário, procurei muito pelo senhor hoje de manhã, porque,
quando telefonei ao Jolly para falar com Michela, soube...
Uma voz quente, madura, de cantor romântico.
— O senhor é parente?
Sempre se demonstrara boa essa tática de fingir ignorar, durante uma
investigação, as relações entre as várias pessoas envolvidas.
— Não. Na verdade, eu...
— Amigo?
— Sim, amigo.
— Até que ponto?
— Desculpe, como assim?
— Amigo até que ponto?
Guido Serravalle hesitou em responder. Montalbano lhe deu uma
ajudinha.
— Íntimo?
— Hum... sim.
— Bom, pode falar.
Nova hesitação. Evidentemente, os modos do comissário deixavam o
outro embatucado.
— Pois é, eu queria dizer... me colocar à disposição. Aqui em Bolonha
tenho uma loja de antiguidades que posso fechar quando quiser. Se o senhor
precisar de mim, pego um avião e vou. Eu queria... eu era muito ligado a
Michela.
— Entendo. Se for preciso, mandarei chamá-lo.
Montalbano desligou. Detestava gente que dava telefonemas inúteis. O
que Guido Serravalle podia dizer que ele já não soubesse?

Saiu a pé para ir almoçar na trattoria San Calogero, onde sempre havia peixe
fresquíssimo. A certa altura, deteve-se, praguejando. Tinha esquecido que a
trattoria estava há seis dias fechada para reforma da cozinha, voltou, pegou o
carro e dirigiu-se para Marinella. Assim que saiu da ponte, olhou a casa que
agora sabia pertencer a Anna Tropeano. Foi mais forte do que ele: encostou,
freou e desceu.
Era um palacete de dois andares, muito bem conservado, com um
jardinzinho ao redor. Montalbano aproximou-se e apertou o botão do
interfone.
— Quem é?
— O comissário Montalbano. Vou incomodar?
— Não, entre.
O portão se abriu e, ao mesmo tempo, abriu-se a porta da casa. Anna
tinha trocado de roupa e recuperado suas cores.
— Sabe de uma coisa, doutor Montalbano? Eu tinha certeza de que iria
revê-lo hoje.
Capítulo VII

— Estava almoçando?
— Não, estou sem fome. E também, assim, sozinha... Quase todos os dias
Michela vinha comer aqui. Raramente almoçava no hotel.
— Posso lhe fazer um convite?
— Pode, mas entre.
— Quer vir à minha casa? E a dois passos daqui, perto do mar.
— Mas talvez a sua mulher, sem ter sido avisada...
— Eu moro sozinho.
Anna Tropeano não parou para pensar nem um segundo.
— Encontro o senhor no carro.
Viajaram em silêncio: Montalbano, ainda surpreso por ter feito o convite;
Anna, certamente maravilhada consigo mesma por tê-lo aceitado.
O sábado era o dia que Adelina dedicava a uma cuidadosa faxina, e o
comissário, ao ver tudo tão limpo e arrumado, alegrou-se: certa vez, também
num sábado, tinha convidado um casal amigo, mas Adelina faltou naquele
dia. Acabou que a mulher do amigo, para botar a mesa, precisou primeiro
liberá-la de uma montanha de meias imundas e de cuecas para lavar.
Como se já conhecesse a casa, Anna se dirigiu à varanda e sentou-se no
banco, olhando o mar, a poucos passos dali. Montalbano pôs na frente dela a
mesinha dobrável, um cinzeiro e foi até a cozinha. Adelina tinha deixado no
forno uma boa porção de merluza, na geladeira, já estava pronto o molhinho
de anchovas e azeite para temperá-la.
Ele voltou à varanda. Anna estava fumando e, a cada minuto que passava,
parecia ficar mais tranquila.
— Como é bonito aqui!
— Quer um pouquinho de merluza ao forno?
— Comissário, não se ofenda, mas meu estômago está trancado. Façamos
o seguinte: enquanto o senhor come, eu tomo um copo de vinho.
Meia hora depois, o comissário havia devorado a tripla porção de merluza, e
Anna, bebido dois copos de vinho.
— É bom mesmo — elogiou ela, enchendo de novo o copo.
— Quem faz... quem fazia era o meu pai. Quer um café?
— Café eu não rejeito.
O comissário abriu uma embalagem de Yaucono, preparou a cafeteira,
botou-a no fogo e voltou à varanda.
— Tire esta garrafa da minha frente. Senão eu vou beber tudo — pediu
Anna.
Montalbano obedeceu. O café estava pronto, ele serviu. Anna tomou-o
degustando, em pequenos goles.
— É forte e gostoso. Onde o senhor compra?
— Eu não compro. Um amigo me manda de Porto Rico alguns pacotes.
Anna afastou a xícara e acendeu o vigésimo cigarro.
— O que o senhor quer me dizer?
— Temos novidades.
— Quais?
— Maurizio Di Blasi.
— Viu? Eu não lhe disse o nome hoje de manhã por ter certeza e que o
senhor descobriria facilmente, todo mundo ria dele.
— Estava apaixonado?
— Mais do que isso. Para ele, Michela virou uma obsessão. Não sei se lhe
informaram que Maurizio não era um rapaz como os outros. Ficava no limite
entre a normalidade e o distúrbio mental. Houve dois episódios que...
— Me conte.
— Uma vez, Michela e eu fomos a um restaurante. Dali a pouco Maurizio
chegou, falou conosco e se sentou na mesa ao lado. Comeu pouquíssimo, os
olhos grudados em Michela. E de repente começou a babar, eu senti ânsias de
vômito. Ele babou, acredite, um fio de saliva escorrendo pelo canto da boca.
Tivemos que ir embora.
— E o outro episódio?
— Eu tinha ido à casa de campo para ajudar Michela. No fim do dia, ela
foi tomar banho e depois desceu nua para a sala. Fazia muito calor. Ela
gostava de andar pela casa sem nada em cima. Sentou-se numa poltrona e
começamos a conversar. A certa altura, escutei uma espécie de gemido, vindo
de fora. Me virei para olhar. Era Maurizio, com o rosto quase grudado na
vidraça. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ele recuou alguns passos,
dobrado em dois. Então compreendi que ele estava se masturbando.
Anna fez uma pausa, olhou o mar e suspirou.
— Pobre filho — disse, baixinho.
Por um instante, Montalbano se comoveu. O amplo ventre de Vênus. Essa
extraordinária capacidade, toda feminina, de compreender profundamente, de
penetrar nos sentimentos, de conseguir ser ao mesmo tempo mãe e amante,
filha e esposa. Ele pousou a mão sobre a de Anna, que não a retirou.
— Sabia que ele desapareceu?
— Sim, sei. Na mesma noite de Michela. Mas...
— Mas?
— Comissário, posso falar sinceramente?
— E o que foi que nós fizemos até agora? E me faça um favor, mi chame
de Salvo.
— Se o senhor me chamar de Anna.
— Combinado.
— Mas os senhores se enganam, se pensam que Maurizio foi capaz de
assassinar Michela.
— Me dê uma boa razão.
— Não se trata de razão. Veja bem, com a polícia as pessoas não gostam
de falar. Mas, se o senhor mandar fazer uma sondagem, uma pesquisa de
opinião como se costuma chamar, Vigàta inteira irá dizer que não vê em
Maurizio um assassino.
— Anna, tem outra coisa que eu ainda não lhe contei.
Anna fechou os olhos. Havia intuído que aquilo que o comissário estava
para contar era difícil de falar e de ouvir.
— Estou pronta.
— O doutor Pasquano, o médico-legista, chegou a algumas conclusões
que eu passo a lhe informar.
E disse tudo, os olhos fixos no mar, evitando encarar a moça. Não
escondeu os detalhes.
Anna escutou, o rosto entre as mãos, os cotovelos apoiados na mesinha.
Quando o comissário terminou, levantou-se, muito pálida.
— Vou ao banheiro.
— Eu mostro onde é.
— Eu descubro sozinha.
Dali a pouco, Montalbano ouviu-a vomitar. Consultou o relógio: ainda
dispunha de uma hora, antes da chegada de Emanuele Licalzi. E também
aquele doutor conserta-osso de Bolonha podia muitíssimo bem esperar.
Anna voltou com uma expressão decidida e sentou-se de novo ao lado de
Montalbano.
— Salvo, o que esse legista pretende significar ao dizer que ela
consentiu?
— O mesmo que você e eu entendemos, ou seja, que ela estava de acordo.
— Mas, em certos casos, é possível parecer que se está de acordo porque
não há possibilidade de resistir.
— Certo.
— E então eu pergunto a você: o que o assassino fez com Michela não
pode ter acontecido contra a vontade dela?
— Mas existem alguns detalhes que...
— Deixa pra lá. Primeiro, não sabemos nem mesmo se o assassino
abusou de uma mulher viva ou de um cadáver. Além disso, ele teve todo o
tempo que queria pra ajeitar as coisas de um modo que atrapalhasse a polícia.
Haviam passado a tratar-se por você sem perceber.
— Você tem uma hipótese mas não está me dizendo.
— Sem problemas — fez Montalbano. — Neste momento, tudo é contra
Maurizio. A última vez em que ele foi visto aconteceu às nove da noite,
diante do bar Italia. Estava telefonando.
— Pra mim — disse Anna.
O comissário deu literalmente um pulo do banco.
— O que era que ele queria?
— Saber de Michela. Eu disse que nós tínhamos nos separado pouco
depois das sete, ela iria passar no Jolly e depois jantar com os Vassallo.
— E ele?
— Desligou sem sequer se despedir.
— E isso pode ser um ponto em desfavor dele. Certamente, também
telefonou aos Vassallo. Não encontra Michela, mas intui onde pode encontrá-
la e vai até lá.
— Na casa de campo.
— Não. Na casa eles chegaram pouco depois da meia-noite.
Desta vez, foi Anna quem teve um sobressalto.
— Uma testemunha me contou — prosseguiu Montalbano.
— Essa pessoa reconheceu Maurizio?
— Estava escuro. A testemunha viu somente um homem e uma mulher
saltarem do Twingo e se encaminharem para a casa. Bem, uma vez lá dentro,
Maurizio e Michela fazem amor. A certa altura, Maurizio, que vocês todos
descrevem como uma personalidade instável, tem um surto.
— Nunca, mas nunca, Michela...
— Como reagia a sua amiga à perseguição de Maurizio?
— Ficava chateada, e às vezes sentia por ele uma pena profunda, que...
Anna se interrompeu: compreendera aonde Montalbano queria chegar.
Seu rosto perdeu o frescor, rugas lhe apareceram nos cantos da boca.
— Mas tem umas coisas que não combinam — prosseguiu Montalbano,
que sofria ao vê-la sofrer. — Por exemplo: Maurizio teria sido capaz, logo
depois do crime, de imaginar friamente o despistamento, sumindo com as
roupas e a mochila?
— Nem pensar!
— O verdadeiro problema não são os detalhes do assassinato, mas saber
onde esteve e o que fez Michela, desde a hora em que se separou de você até
o momento em que foi vista pela testemunha. Quase cinco horas, não é
pouco. E agora vamos indo, porque o doutor Emanuele Licalzi está
chegando.
Na hora em que iam entrando no carro, Montalbano turvou a água, como
faz a sépia.
— Não estou tão certo assim quanto à unanimidade das respostas à sua
pesquisa de opinião sobre a inocência de Maurizio. Um, pelo menos, teria
sérias dúvidas.
— Quem?
— O pai dele, o engenheiro Di Blasi. Do contrário, ele teria chamado a
polícia pra procurar o filho.
— É natural que ele imagine tudo. Ah, me lembrei de uma coisa. Quando
Maurizio me ligou procurando Michela, eu sugeri que ele ligasse para o
celular. Ele respondeu que havia tentado, mas o aparelho estava fora do ar.

Na porta do comissariado, Montalbano quase tropeçou em Galluzzo, que


vinha saindo.
— Já voltaram da heroica investida?
Fazio devia ter comentado com o colega sobre a bronca daquela manhã.
— Sim — respondeu Galluzzo, embaraçado.
— O doutor Augello está aqui?
— Não, senhor.
O embaraço ficou mais evidente ainda.
— Está onde? Descendo o couro em outros grevistas?
— Ele está no hospital.
— Que foi que houve? O que aconteceu? — perguntou Montalbano,
preocupado.
— Uma pedrada na cabeça. Levou três pontos. Mas resolveram deixar ele
em observação. Me mandaram voltar às oito da noite. Se tudo tiver corrido
bem, eu levo ele pra casa.
A enxurrada de palavrões do comissário foi interrompida por Catarella.
— Ah, dotor, dotor! De primeiro telefonou duas vez o dotor Latte com s
no fim. Disse assim, que é pro senhor chamar ele pessoalmente logo. Depois
tem outros telefonema registrados neste papelzinho.
— Use pra limpar o cu.

O doutor Emanuele Licalzi era um sessentão miúdo, óculos de ouro, todo


vestido de cinza. Parecia recém-saído da tinturaria, do barbeiro e da
manicure: impecável.
— Como foi que o senhor veio até aqui?
— Do aeroporto? Aluguei um carro, levei quase três horas.
— Já passou pelo hotel?
— Não. A mala está no carro. Vou depois.
Como era que ele conseguia não ter nem um amassadinho?
— Vamos até a casa de campo? A gente conversa durante a viagem,
assim o senhor ganha tempo.
— Como queira, comissário.
Pegaram o carro alugado do doutor.
— Foi um amante que a matou?
Não tinha papas na língua, esse doutor Emanuele Licalzi.
— Não temos condições de dizer. Mas é certo que ela teve repetidas
relações sexuais.
O doutor não se alterou, continuou a dirigir tranquilo e sereno, como se a
morta não fosse sua mulher.
— O que o faz pensar que ela teria um amante aqui?
— Porque em Bolonha tinha um.
— Ah.
— Sim. Michela me disse o nome, Serravalle, acho. Um antiquário.
— Um tanto incomum.
— Ela me dizia tudo, comissário. Tinha muita intimidade comigo.
— E o senhor, por sua vez, dizia tudo à sua mulher?
— Sem dúvida.
— Um casamento exemplar — ironizou o comissário.
Às vezes Montalbano se sentia irremediavelmente ultrapassado pelas
novas maneiras de viver. Era um tradicionalista: para ele, casal aberto
significava um marido e uma mulher que se corneavam reciprocamente e
tinham até a cara de pau de contar um ao outro o que faziam embaixo ou em
cima do lençol.
— Exemplar, não — corrigiu o doutor Licalzi, imperturbável —, mas de
conveniência.
— Para Michela? Para o senhor?
— Para os dois.
— Poderia explicar melhor?
— Sem dúvida.
E virou à direita.
— Pra onde o senhor vai? — fez o comissário. — Por aqui não se chega a
Tre Fontane.
— Desculpe — disse o doutor, iniciando uma complexa manobra para
retornar. — Mas é que eu não venho por estas bandas há dois anos e meio,
desde quando me casei. Michela foi quem cuidou da construção, eu só vi em
fotografia. Por falar em fotografia, eu trouxe algumas de Michela, talvez
possam ser úteis.
— Sabe de uma coisa? A vítima pode até não ser a sua mulher.
— Está brincando?
— Não. Ninguém a identificou oficialmente, e, das pessoas que a viram
morta, nenhuma a conhecia. Quando terminarmos aqui, vou falar com o
legista para o reconhecimento. Quanto tempo o senhor pretende ficar?
— Dois, três dias, no máximo. Vou levar o corpo de Michela para
Bolonha.
— Doutor, vou lhe fazer uma pergunta e depois não volto ao assunto. Na
quarta à noite, o senhor estava onde, e fazendo o quê?
— Quarta? No hospital. Fiz cirurgias até tarde da noite.
— O senhor estava falando do seu casamento.
— Ah, sim. Conheci Michela três anos atrás. Ela estava acompanhando
ao hospital um irmão, que atualmente mora em Nova York, por causa de uma
fratura um tanto complexa que ele tinha sofrido no pé direito. Gostei dela na
hora, achei-a muito bonita, mas o que mais me atraiu foi o seu caráter. Estava
sempre disposta a ver o lado bom das coisas. Tinha perdido os pais antes de
completar quinze anos e foi morar com um tio, que, um dia, violentou-a sem
cerimônia. Para encurtar a história, ela procurava desesperadamente uma
situação qualquer. Durante anos tinha sido amante de um industrial, que
depois a dispensou com uma certa quantia em dinheiro, com a qual ela foi se
arranjando. Michela poderia ter tido todos os homens que quisesse, mas,
substancialmente, ser teúda e manteúda era uma coisa que a humilhava.
— O senhor propôs que Michela se tornasse sua amante e ela recusou?
Na face impassível de Emanuele Licalzi desenhou-se pela primeira vez
uma espécie de sorriso.
— O senhor está completamente enganado, comissário. Ah, antes que eu
esqueça: Michela me disse que havia comprado aqui, para seus
deslocamentos, um Twingo verde-garrafa. Que fim levou o carro?
— Sofreu um acidente.
— Michela dirigia mal.
— Ela não teve nenhuma culpa, nesse caso. O Twingo estava estacionado
normalmente, na entrada da trilha de acesso à casa, quando levou uma batida.
— E como é que o senhor sabe disso?
— Quem bateu fomos nós, da polícia. Mas ainda ignorávamos...
— Que história curiosa.
— Eu conto em outra oportunidade. Foi justamente esse acidente que nos
permitiu descobrir o cadáver.
— Acha que eu posso recuperar o carro?
— Não creio que haja algum problema.
— Posso deixá-lo com alguém de Vigàta que venda carros usados?
Montalbano não respondeu: estava cagando para a sorte do Twingo
verde-garrafa.
— A casa é aquela à esquerda, não? Reconheci pelas fotos.
— É aquela.
O doutor Licalzi fez uma manobra elegante, parou no começo da trilha,
desceu e começou a observar a construção, com a curiosidade distante de um
turista de passagem.
— Bonitinha. O que foi que nós viemos fazer aqui?
— Nem mesmo eu sei — retrucou Montalbano, de mau humor. O doutor
Licalzi tinha o poder de deixá-lo nervoso. Decidiu cutucá-lo um pouquinho.
— Sabia? Alguns pensam que quem matou sua mulher, depois de violentá-la,
foi Maurizio Di Blasi, o filho do seu primo engenheiro.
— É mesmo? Eu não o conheço. Quando estive aqui, dois anos e meio
atrás, ele estava estudando em Palermo. Me disseram que é um pobre idiota.
De nada adiantou a tentativa de rasteira do comissário.
— Vamos entrar?
— Um momento, não quero me esquecer.
O médico abriu o porta-malas, pegou a valise chiquérrima que estava lá
dentro e tirou um envelope.
— As fotos de Michela.
Montalbano guardou-as consigo. O doutor estava puxando do bolso um
chaveiro.
— São da casa? — perguntou Montalbano.
— São. Eu sabia onde Michela guardava as de reserva, em nossa casa.
“Agora eu pego ele a pontapés”, pensou o comissário.
— Faltou acabar de me contar por que o casamento convinha tanto ao
senhor quanto a ela.
— Bom, a Michela convinha porque ela estava casando com um homem
rico, embora trinta anos mais velho. A mim, porque isso calava a boca dos
que poderiam me prejudicar numa hora em que eu me preparava para um
grande salto na minha carreira. Estavam dizendo que eu tinha virado
homossexual, porque havia dez anos ninguém me via circulando com uma
mulher.
— E era verdade, isso de o senhor não andar mais com mulher?
— Para fazer o quê, comissário? Aos cinquenta anos, fiquei impotente.
Irreversivelmente.
Capítulo VIII

— Bonitinha — fez o doutor Licalzi, depois de dar uma olhada circular na


sala.
Afinal, ele não sabia dizer outra coisa?
— Aqui é a cozinha — mostrou o comissário, acrescentando: Habitável.
Na mesma hora, enfureceu-se consigo mesmo. Por que havia deixado
escapar aquele “habitável”? Que sentido fazia? Sentiu-se como se tivesse
virado um corretor que mostrava o imóvel a um provável cliente.
— O banheiro fica ao lado. Dê uma olhada — disse, com rudeza.
O doutor não notou ou fingiu não notar a entonação. Abriu a porta do
banheiro, meteu rapidamente a cabeça lá dentro e fechou-a.
— Bonitinho.
Montalbano sentiu as mãos tremendo. Viu distintamente a manchete nos
jornais: “COMISSÁRIO DE POLÍCIA ENLOUQUECE DE REPENTE E
AGRIDE MARIDO DA VÍTIMA”.
— No andar de cima tem um quartinho de hóspedes, um banheiro grande
e um quarto de casal. Suba.
O doutor obedeceu. Montalbano ficou na sala. Acendeu um cigarro e
tirou do bolso o envelope com as fotos de Michela. Esplêndida. O rosto, que
ele só vira deformado pela dor e pelo horror, tinha uma expressão alegre,
aberta.
Terminou o cigarro e deu-se conta de que o doutor não descera de volta.
— Doutor Licalzi?
Nenhuma resposta. Montalbano subiu rapidamente. O doutor estava de pé
num canto do quarto, as mãos cobrindo a face, os ombros sacudidos pelos
soluços.
O comissário levou um susto: podia esperar qualquer coisa, menos aquela
reação. Aproximou-se e apoiou a mão nas costas do viúvo.
— Coragem.
O doutor inclinou o tronco, num gesto quase infantil, e continuou a
chorar, o rosto escondido nas mãos.
— Pobre Michela! Pobre Michela!
Não era fingimento: as lágrimas e a voz dilacerada eram verdadeiras.
Montalbano pegou-o com firmeza por um braço.
— Vamos descer.
Deixando-se guiar, o doutor se mexeu sem olhar a cama, o lençol rasgado
e manchado de sangue. Como médico, compreendera o que Michela devia ter
sofrido nos últimos instantes de sua vida. Mas, se Licalzi era médico,
Montalbano era um tira, e de repente, vendo-o em lágrimas, compreendeu
que o doutor não havia conseguido manter a máscara de indiferença que tinha
criado para si; a armadura de distanciamento que ele costumava usar, talvez
para compensar a desgraça da impotência, estava esfacelada.
— Desculpe — fez Licalzi, sentando-se numa poltrona. — Eu não
imaginava... É terrível morrer daquela maneira. O assassino empurrou o rosto
dela contra o colchão, não foi?
— Sim.
— Eu queria muito bem a Michela, muito. Sabe de uma coisa? Ela se
tornou como uma filha, para mim.
As lágrimas voltaram a correr, e ele enxugou-as desajeitadamente com
um lenço.
— Por que ela quis mandar construir esta casa justamente aqui?
— Ela sempre mitificou a Sicília, mesmo antes de conhecê-la. Quando
finalmente veio, encantou-se. Acho que queria criar um refúgio aqui. Está
vendo aquela cristaleira? Ali dentro estão as coisinhas dela, bugigangas
trazidas de Bolonha. E isso é bastante significativo quanto às suas intenções,
não acha?
— Pode conferir se está faltando alguma coisa?
O doutor se levantou e aproximou-se da cristaleira.
— Posso abrir?
— Claro.
Depois de olhar longamente as prateleiras, o doutor estendeu a mão,
pegou o velho estojo de violino, abriu-o, mostrou ao comissário o
instrumento que havia dentro, fechou-o, guardou-o no mesmo lugar e fechou
a cristaleira.
— À primeira vista, me parece que não falta nada.
— Ela tocava violino?
— Não. Nem violino nem qualquer outro instrumento. Este aqui foi do
avô materno dela, que tinha uma luteria em Cremona. E agora, comissário,
por favor me conte tudo.
E Montalbano contou tudo, desde o acidente da manhã de quinta até
aquilo que o doutor Pasquano havia relatado.
No fim, Emanuele Licalzi ficou em silêncio por algum tempo, e depois
disse apenas duas palavras:
— Fingerprinting genético.
— Eu não falo inglês.
— Desculpe. Eu estava pensando no desaparecimento das roupas e dos
sapatos.
— Talvez um despistamento.
— Pode ser. Mas também pode ser que o assassino tenha sido obrigado a
dar sumiço nesses objetos.
— Porque estavam manchados? — perguntou Montalbano, pensando na
tese de dona Clementina.
— O legista disse que não havia vestígios de líquido seminal, não foi?
— Sim.
— E isso reforça a minha hipótese: o assassino não quis deixar o menor
indício de padrão biológico através do qual fosse possível fazer, digamos
assim, fingerprinting genético, o exame do DNA. Impressões digitais é
possível eliminar, mas como fazer com o esperma, os cabelos, os pelos? O
assassino tentou limpar o terreno.
— Pois é — disse o comissário.
— Desculpe, mas, se o senhor não tiver mais nada para me dizer, eu
gostaria de sair daqui. Estou começando a sentir o cansaço da viagem.
O doutor fechou a porta a chave, Montalbano repôs os lacres de
interdição. Saíram.
— O senhor tem celular?
O doutor passou-lhe o aparelho. O comissário ligou para Pasquano e
marcou o reconhecimento para as dez da manhã seguinte.
— O senhor também vai?
— Deveria, mas não posso, tenho um compromisso fora de Vigàta. Mas
mando um dos meus homens, ele o acompanha.
Quando começaram a aparecer as primeiras casas de Vigàta, Montalbano
preferiu descer do carro. Precisava fazer uma caminhada.

— Ah, dotor, dotor! O dotor Latte com s no fim telefonou três vezes, cada
vez mais emputecido, com o devido respeito. O senhor precisa ligar pra ele
pessoalmente em pessoa agora mermo.
— Alô, doutor Lattes? Aqui é Montalbano.
— Até que enfim! Venha imediatamente a Montelusa, o chefe de polícia
quer falar com o senhor.
E desligou. Devia ser coisa séria, porque o mieles havia desaparecido
inteiramente do lattes.

Estava ligando o carro quando viu chegar a viatura, dirigida por Galluzzo.
— Notícias do doutor Augello?
— Sim. Telefonaram do hospital avisando que ele teve alta. Aí eu fui
buscar e deixei ele em casa.
Às favas com o chefe de polícia e suas urgências. Montalbano passou
primeiro na casa de Mimì.
— Como está você, intrépido defensor do capital?
— Com dor, a cabeça parece que vai estourar.
— É bom, assim você aprende.
Mimì Augello estava sentado numa poltrona, pálido, cabeça enfaixada.
— Uma vez me deram uma traulitada, levei sete pontos e não fiquei
derrubado como você está.
— Sinal de que lhe deram a traulitada por uma causa que você
considerava justa. E assim se sentiu traulitado e gratificado.
— Mimì, você, quando capricha, sabe realmente ser babaca.
— Você também, Salvo. Eu ia te ligar hoje à noite pra dizer que não vou
estar em condições de dirigir amanhã.
— A gente vai ver sua irmã outro dia.
— Não, Salvo, vá assim mesmo. Ela insistiu muito pra te ver.
— Mas você sabe por quê?
— Não faço a menor ideia.
— Bom, vamos fazer o seguinte. Eu vou, mas você, amanhã às nove e
meia, tem que estar em Montelusa, no Jolly. Pegue o doutor Licalzi, que já
chegou, e vá com ele ao necrotério. Combinado?

— Como vai? Como vai, meu prezado? Vejo-o algo abatido. Coragem.
Sursum corda! Assim diziam nos tempos da Ação Católica.
O perigoso mel do doutor Lattes transbordava. Montalbano começou a se
preocupar.
— Vou avisar imediatamente ao chefe.
Lattes sumiu e dali a pouco voltou.
— O chefe está momentaneamente ocupado. Venha, eu o acompanho à
sala de espera. Quer um café, uma bebida?
— Não, obrigado.
O doutor Lattes desapareceu, depois de enviar-lhe à distância um amplo
sorriso paternal. Montalbano teve a certeza de que o chefe de polícia o havia
condenado a uma morte lenta e dolorosa. Garrote, talvez.
Na mesa de centro da saleta esquálida havia um semanário, Famiglia
Cristiana, e um diário, L’Osservatore Romano, sinais evidentes da presença
do doutor Lattes na chefatura. Montalbano passou a mão na revista e
começou a ler um artigo de Susanna Tamaro.
— Comissário! Comissário!
Uma mão lhe sacudia o ombro. Ele abriu os olhos e viu um agente.
— O chefe de polícia está esperando pelo senhor.
Jesus! Tinha adormecido profundamente. Consultou o relógio: eram oito,
aquele corno deixara-o de molho na antessala por duas horas.
— Boa noite, senhor chefe de polícia.
O nobre Luca Bonetti-Alderighi não respondeu, não disse a nem bê,
continuou olhando para a tela de um computador. O comissário contemplou a
inquietante cabeleira do seu superior, abundantíssima e com um volumoso
topete alto, retorcido como certos toletes cagados ao ar livre. Igualzinha,
cuspida e escarrada, à cabeleira daquele louco psiquiatra criminal que
provocara toda aquela carnificina na Bósnia.
— Como se chamava?
Tarde demais, Montalbano deu-se conta de que, ainda caindo de sono,
falara em voz alta.
— Como se chamava quem? — perguntou o chefe de polícia, erguendo
finalmente os olhos e encarando-o.
— Nada, não tem importância — disse Montalbano.
O chefe continuou a fitá-lo com um misto de desprezo e comiseração:
evidentemente, vislumbrava no comissário inequívocos sintomas de
demência senil.
— Falarei com extrema sinceridade, Montalbano. Eu não o tenho em alta
estima.
— Nem eu ao senhor — fez o comissário, curto e grosso.
— Muito bem. Destarte, entre nós a situação é clara. Convoquei-o para
dizer-lhe que o senhor foi afastado do inquérito sobre o assassinato da
senhora Licalzi. Passei esse encargo ao doutor Panzacchi, o titular da Móvel,
a quem, ademais, ele caberia de direito.
Ernesto Panzacchi era um supercupincha de Bonetti-Alderighi, que o
trouxera consigo para Montelusa.
— Posso perguntar por quê, embora eu esteja me lixando totalmente pra
isso?
— O senhor cometeu uma insensatez que pôs em sérias dificuldades o
trabalho do doutor Arquà.
— Ele escreveu isso no relatório?
— Não, no relatório ele não escreveu, pois, generosamente, não queria
prejudicá-lo. Mas depois se arrependeu e me confessou tudo.
— Ah, esses arrependidos! — fez o comissário.
— O senhor tem alguma coisa contra os arrependidos?
— Vamos deixar pra lá.
Montalbano saiu sem sequer se despedir.
— Tomarei providências! — gritou às suas costas o nobre Bonetti-
Alderighi.

A Perícia funcionava no subsolo do prédio.


— O doutor Arquà está?
— No gabinete dele.
Montalbano entrou sem bater.
— Boa noite, Arquà. Estou indo à sala do chefe de polícia, ele quer falar
comigo. Então me ocorreu passar por aqui, pra saber se temos alguma
novidade.
Vanni Arquà estava evidentemente sem graça. Mas, como Montalbano
dissera que ainda iria ver o chefe, decidiu responder como se ignorasse que o
comissário já não era o responsável pelo inquérito.
— O assassino limpou tudo cuidadosamente. Mesmo assim, encontramos
muitas impressões digitais, mas, evidentemente, elas não tinham nada a ver
com o crime.
— Por quê?
— Porque eram todas suas, comissário. O senhor continua a ser muito,
muito estabanado.
— Ah, escute, Arquà. Sabia que delação é pecado? Informe-se com o
doutor Lattes. O senhor vai ter que se arrepender mais uma vez.

— Ah, dotor! Pois não é que o senhor Cacono tilifonou novamente de novo?
Disse assim, que ele se lembrou de uma coisa que talvez é importante. O
número tá escrito aqui neste papelzinho.
Montalbano olhou o quadradinho de papel e começou a sentir o prurido
no corpo inteiro. Catarella tinha escrito os números de tal modo que o três
podia ser um cinco ou um nove, o dois um quatro, o cinco um seis e assim
por diante.
— Catarè, mas qual é o número, afinal?
— Esse aí, dotor. O número de Cacono. O que está escrito está escrito.
Antes de encontrar Gillo Jàcono, Montalbano falou com um bar, com a
família Jacopetti e com o doutor Balzani.
A quarta tentativa ele já fez desanimado.
— Alô? Com quem estou falando? Aqui é o comissário Montalbano.
— Ah, comissário, foi bom o senhor ligar, eu estava de saída.
— Andou me procurando?
— Eu me lembrei de um detalhe, não sei se é útil ou não. O homem que
eu vi descendo do Twingo e se encaminhando para a casa com uma mulher
carregava uma mala.
— Tem certeza?
— Absoluta.
— Uma vinte e quatro horas?
— Não, comissário, era maior. Mas...
— Sim?
— Mas eu tive a impressão de que o homem carregava a mala facilmente,
como se ela não estivesse muito cheia.
— Obrigado, senhor Jàcono. Quando voltar, me procure.
A seguir, Montalbano ligou para a casa dos Vassallo, depois de procurar
o número no catálogo.
— Comissário! Hoje à tarde, como havíamos combinado, eu fui procurá-
lo, mas o senhor não estava. Esperei por algum tempo e depois vim embora.
— Queira me desculpar. Escute, na noite de quarta-feira passada, quando
os senhores aguardavam a senhora Licalzi pro jantar, quem telefonou?
— Bom, um amigo meu de Veneza e também a nossa filha, que mora em
Catânia, mas isso não tem interesse para o senhor. Mas, e era isso que eu
queria lhe contar quando estive aí, Maurizio Di Blasi telefonou duas vezes.
Pouco antes das vinte e uma e pouco depois das vinte e duas. Estava
procurando por Michela.

Uma solene comilança por certo diluiria o mal-estar resultante do encontro


com o chefe de polícia. A trattoria San Calogero estava fechada, mas ele se
lembrou de que, segundo lhe dissera um amigo, havia uma osteria de respeito
na entrada de Joppolo Giancaxio, uma aldeiazinha a vinte quilômetros de
Vigàta, na direção do interior. Montalbano entrou no carro e logo conseguiu
achá-la. Chamava-se La Cacciatora e, claro, caça eles não tinham. O
proprietário-caixa-garçom, bigodes em forma de guidom de bicicleta e
vagamente parecido com o Rei Fidalgo, começou por botar na frente dele
uma generosa porção de caponatina[9] de excelente sabor. “Princípio tão
ditoso bem conduz”, escreveu Boiardo, e Montalbano resolveu deixar-se
conduzir.
— Vai pedir o quê?
— Traga o que quiser.
O Rei Fidalgo sorriu, apreciando a confiança.
Primeiro veio um grande prato de macarrão com um molhinho chamado
“fogo vivo” (sal, azeite, alho, bastante pimentão vermelho seco), sobre o qual
o comissário foi obrigado a entornar meia garrafa de vinho. Como segundo
prato, uma substancial porção de cordeiro à caçadora, que exalava um
gostoso perfume de cebola e orégano. Por fim, doce de ricota e um copinho
de anisete, como viático e encorajamento à digestão. Depois de pagar a conta,
uma miséria, Montalbano trocou um aperto de mãos e um sorriso com o Rei
Gentil:
— Me diga, quem é o cozinheiro?
— Minha mulher.
— Transmita a ela meus parabéns.
— Vou transmitir.

Na volta, em vez de tomar a direção de Montelusa, pegou a estrada para


Fiacca, de modo que chegou a Marinella pelo lado oposto àquele que
habitualmente percorria quando vinha de Vigàta. Levou bem uma meia hora
além do tempo normal, mas em compensação evitou passar pela frente da
casa de Anna Tropeano. Tinha certeza de que iria parar, não haveria jeito, e
faria um papel ridículo diante da moça. Ligou para Mimì Augello.
— Como você está?
— Uma merda.
— Escute, ao contrário do que eu falei, amanhã de manhã você fica em
casa. Já que a coisa não nos compete mais, eu mando Fazio acompanhar o
doutor Licalzi.
— Como assim, não nos compete mais?
— O chefe me tirou do inquérito. Passou para a Móvel.
— E por quê?
— Não vem ao caso. Algum recado para a sua irmã?
— Pelo amor de Deus, não conte que me quebraram a cabeça! Senão ela
já vai me ver à beira da morte.
— Melhoras, Mimì.

— Alô, Fazio? Montalbano.


— Que foi que houve, doutor?
O comissário mandou-o passar todos os telefonemas relativos ao caso à
Móvel de Montelusa e explicou o que ele devia fazer com Licalzi.

— Alô, Livia? Salvo. Tudo bem?


— Mais ou menos.
— Posso saber por que esse tom? Da última vez você desligou na minha
cara, sem me dar tempo de falar.
— Também você me ligou àquela hora da noite, ora!
— Mas era o único momento de paz que eu tinha!
— Coitadinho! Eu gostaria de lembrar que você, botando temporais,
tiroteios e atentados no meio da conversa, conseguiu espertamente se livrar
de responder à minha pergunta, muito clara, de quarta à noite.
— Eu queria contar que amanhã vou ver François.
— Com Mimì?
— Não, Mimì não pode, levou uma porrada.
— Ah, meu Deus! É grave?
Ela e Mimì simpatizavam um com o outro.
— Me deixe terminar! Ele levou uma porrada na cabeça. Besteira, três
pontos. Então eu vou sozinho. A irmã de Mimì quer falar comigo.
— Sobre François?
— E sobre quem mais seria?
— Ai, meu Deus. Ele deve estar doente. Vou ligar pra lá agora!
— Mas eles se deitam com o pôr do sol! Amanhã à noite, assim que eu
voltar, te ligo.
— Não esqueça, eu quero saber. Hoje não vou conseguir dormir mais.
Capítulo IX

Para ir de Vigàta a Calapiano, qualquer pessoa de bom senso, dotada de um


conhecimento ainda que superficial da malha rodoviária siciliana, pegaria
primeiro a via expressa para Catânia, entraria a seguir na estrada que dobrava
na direção do interior à altura dos mil e cento e vinte metros de Troìna, para
depois descer, nos seiscentos e cinquenta e um metros de Gagliano, por uma
espécie de caminho que tinha conhecido a primeira e última camada de
asfalto cinquenta anos antes, nos primórdios da autonomia regional, e
finalmente alcançar Calapiano trafegando por uma provincial que claramente
se recusava a ser considerada como tal, sendo sua mais autêntica aspiração a
de reassumir o aspecto da esburacada trilha que ela havia sido outrora. E não
acabava aí. A propriedade da irmã de Mimì Augello com o marido distava da
aldeia quatro quilômetros, e chegava-se até lá percorrendo uma senda de
cascalho em serpentina, sobre a qual até as cabras alimentavam certa
perplexidade em apoiar uma só das quatro patas de que dispunham. Esse era,
digamos assim, o melhor percurso, aquele que Mimì Augello sempre fazia,
no qual as dificuldades e os enguiços deixavam para aparecer somente no
último trecho.
Naturalmente, não foi o que escolheu Montalbano, que decidiu cortar
transversalmente a ilha, vendo-se assim a percorrer, desde os primeiros
quilômetros, estradinhas ao longo das quais os camponeses remanescentes
interrompiam o trabalho para olhar, incrédulos, aquele carro audacioso que
passava por ali. Mais tarde contariam aos filhos, em casa:
— Sabe hoje de manhã? Passou um automóvel.
Aquela, no entanto, era a Sicília de que gostava o comissário, áspera, de
escasso verde, da qual parecia (e era) impossível tirar o sustento, e onde, cada
vez mais raramente, ainda havia alguém de perneiras, barretina e fuzil ao
ombro, que o cumprimentava de cima da mula levando dois dedos à pala.
O céu estava sereno e claro, declarando abertamente o seu propósito de
ficar assim até a noite. Fazia quase calor. As janelas abertas do carro não
impediam que, dentro da cabine, persistisse um delicioso cheiro vindo dos
pacotes e pacotinhos que literalmente atulhavam o banco de trás. Antes de
partir, Montalbano passara pelo café Albanese, onde faziam os melhores
doces de Vigàta inteira, e comprara, além de vinte cannoli recém-feitos, dez
quilos entre bombons da região, biscoitos variados, taralli, tetù, mostazzoli de
Palermo, frutti di martorana e, para coroar, uma coloridíssima cassata de
cinco quilos[10].
Quando chegou, já passava do meio-dia, e ele calculou que tinha levado
mais de quatro horas. A enorme casa de fazenda pareceu-lhe vazia, somente a
chaminé fumegante revelava que havia alguém. Montalbano buzinou e dali a
pouco Franca, a irmã de Mimì, apareceu à porta. Era uma siciliana loura,
forte e alta, que já tinha passado dos quarenta. Enxugando as mãos no
avental, ela olhou com estranheza aquele carro, que não conhecia.
— Sou eu — disse o comissário, abrindo a porta e descendo.
Depois de correr ao encontro dele com um largo sorriso, Franca o
abraçou.
— E Mimì?
— Na última hora, não pôde vir. Está adoentado.
Franca encarou-o. Montalbano não sabia mentir às pessoas por quem
sentia estima: atrapalhava-se, enrubescia, desviava o olhar.
— Vou ligar pra Mimì — disse Franca, decidida, e entrou na casa.
Miraculosamente, Montalbano conseguiu equilibrar todos os pacotes e
pacotinhos e dali a pouco seguiu-a.
Franca estava desligando o telefone.
— Ainda sente dor de cabeça.
— Está mais tranquila? Foi uma bobagem, pode acreditar — disse o
comissário, descarregando sobre a mesa os pacotes e pacotinhos.
— Mas o que é isso? — espantou-se Franca. — Quer transformar isto
aqui em confeitaria?
Ela guardou os doces na geladeira.
— Como anda você, Salvo?
— Bem. E vocês?
— Todos bem, graças a Deus. De François, depois a gente fala. Ele
cresceu, deu uma boa esticada.
— Onde estão?
— Por aí, no campo. Mas, quando eu toco a sineta, vêm correndo pra
comer. Você dorme aqui hoje? Preparei um quarto.
— Franca, eu lhe agradeço, mas você sabe que eu não posso. Vou embora
às cinco, no máximo. Não sou como o seu irmão, que corre por essas estradas
como um louco.
— Não quer tomar uma chuveirada?
Uns quinze minutos depois, já refrescado, Montalbano voltou, e Franca
estava arrumando a mesa para umas dez pessoas. Ele achou que aquela talvez
fosse a melhor hora para tocar no assunto.
— Mimì disse que você queria conversar comigo.
— Mais tarde, mais tarde — cortou Franca. — Está com fome?
— Bom, estou.
— Quer um pouquinho de pão? Tirei do forno não faz nem uma hora.
Sirvo?
Sem esperar a resposta, ela cortou ainda na fôrma duas fatias, temperou-
as com azeite, sal, pimenta-do-reino e queijo pecorino, pôs uma sobre a outra
e deu-as a Montalbano.
O comissário saiu, sentou-se num banco ao lado da porta e, à primeira
mordida, sentiu-se rejuvenescer em quarenta anos, voltou a ser criança, o pão
estava igualzinho àquele que sua avó lhe servia.
Ficou ali comendo sob aquele sol, sem pensar em nada, apenas sentindo-
se em gostosa harmonia com o corpo, com a terra, com o cheiro de mato.
Pouco depois escutou um vozerio e viu chegarem três meninos apostando
corrida, aos saltos e empurrões. Eram Giuseppe, de nove anos, seu irmão
Domenico — a quem fora dado o nome do tio Mimì —, da mesma idade de
François, e o próprio François.
Ao vê-lo, o comissário levou um susto: ele tinha se tornado o mais alto
dos três, o mais vivo e mais safo. Como diabos havia conseguido
transformar-se daquele jeito, depois de apenas dois meses em que os dois não
se viam?
Montalbano correu ao encontro dele, braços abertos. François o
reconheceu e parou de repente, enquanto seus companheiros se dirigiam para
a casa. Sempre de braços abertos, Montalbano acocorou-se.
— Oi, François.
O menino deu um pulo e esquivou-se.
— Oi — disse.
O comissário viu-o desaparecer dentro de casa. O que estava
acontecendo? Por que não leu nenhuma alegria nos olhos do garotinho?
Consolou-se: talvez se tratasse de um ressentimento infantil, provavelmente
François tinha se sentido esquecido por ele.
As duas cabeceiras foram destinadas ao comissário e ao marido de Franca,
Aldo Gagliardo, um homem de pouquíssimas palavras que era galhardo de
nome e de fato. À direita acomodaram-se Franca e os três meninos. François
era quem estava mais longe, sentara-se ao lado de Aldo. À esquerda ficaram
rapazes de uns vinte anos, Mario, Giacomo e Ernst. Os dois primeiros eram
estudantes universitários que ganhavam o pão trabalhando no campo; o
terceiro, um alemão de passagem, disse a Montalbano que esperava ficar
mais três meses. O almoço, massa ao molho de salsicha e, a seguir, salsicha
na brasa, foi bastante rápido: Aldo e seus três ajudantes tinham pressa de
voltar ao trabalho. Todos avançaram nos doces levados pelo comissário.
Depois, a um aceno de cabeça de Aldo, levantaram-se e saíram.
— Vou fazer mais um café pra você — disse Franca. Montalbano estava
inquieto: percebera que Aldo, antes de sair, trocara um rápido olhar com a
mulher. Franca serviu o café e sentou-se diante do comissário.
— A conversa é séria — anunciou.
E nessa hora entrou François, decidido, os braços ao longo dos flancos, as
mãos fechadas. Parou à frente de Montalbano, encarou-o com expressão dura
e firme e, com voz trêmula, disse:
— Você não vai me tirar de perto dos meus irmãos.
Virou as costas e fugiu. Montalbano sentiu como uma pancada repentina,
uma ardência na boca. Então disse a primeira coisa que lhe passou pela
cabeça, e infelizmente era uma cretinice:
— Mas como aprendeu a falar bem esse menino!

— O que eu queria lhe dizer, ele já disse — resumiu Franca. — E olha que
tanto eu quanto Aldo falamos o tempo todo de Livia e de você, de como ele
vai morar com os dois, de como vocês querem e vão querer bem a ele. Não
houve jeito. Foi um pensamento que ele teve de repente, à noite, há mais ou
menos um mês. Eu estava dormindo e senti alguém me cutucar um braço. Era
ele. Aí perguntei:
“Está se sentindo mal?”
“Não.”
“Então, o que é que você tem?”
“Estou com medo.”
“Medo de quê?”
“Que Salvo venha e me leve daqui.”
— De vez em quando — prosseguiu Franca —, ele está brincando ou
comendo e esse pensamento volta, e aí ele fica tristonho, ou mesmo rebelde.
Ela continuou a falar, mas Montalbano não a escutava mais. Perdera-se na
recordação de um período de sua infância, quando ele tinha a mesma idade de
François, ou melhor, um ano menos. A avó estava morrendo, a mãe tinha
adoecido gravemente (mas essas coisas ele só entendeu depois) e o pai, para
poder cuidar melhor das duas, levou-o para a casa de uma irmã, Carmela, que
era casada com o proprietário de um bazar bagunçado, um homem brando,
gentil, chamado Pippo Sciortino. Esses tios não tinham filhos. Depois de
algum tempo, o pai foi buscá-lo, de gravata preta e uma larga faixa, também
negra, no braço esquerdo, lembrava-se muito bem. Mas ele tinha se recusado
a ir.
“Não vou com você”, disse ao pai. “Fico com Carmela e Pippo. Agora eu
também sou Sciortino.”
Tinha ainda diante dos olhos o rosto entristecido do pai, as faces
embaraçadas de Pippo e Carmela.
— ... porque criança não é pacote que a gente pode ficar levando pra lá e
pra cá — concluiu Franca.

Na volta, pegou a estrada mais fácil e, por volta das nove da noite, já estava
em Vigàta. Resolveu passar pela casa de Mimì Augello.
— Você parece melhor.
— Hoje à tarde eu consegui dormir. A conversa com Franca foi difícil,
hem? Ela me ligou preocupada.
— É uma mulher muito, muito inteligente.
— Ela queria falar de quê?
— De François. Temos um problema.
— O menino se afeiçoou a eles?
— Como é que você sabe? Sua irmã lhe contou?
— Não, ela não falou nada comigo. Mas nem precisava, é fácil de
perceber. Eu já imaginava que as coisas iam acabar assim.
Montalbano fez uma cara tristonha.
— Entendo que isso lhe doa — disse Mimì —, mas quem garante que não
seja uma sorte?
— Para François?
— Também. Mas principalmente pra você, Salvo. Você não foi feito pra
ser pai, mesmo que de um filho adotivo.

Assim que transpôs a ponte, Montalbano viu as luzes da casa de Anna ainda
acesas. Encostou e desceu.
— Quem é?
— Sou eu, Salvo.
Anna abriu a porta e levou-o à sala de jantar. Estava assistindo a um
filme, mas logo desligou a televisão.
— Quer um uisquinho?
— Quero. Puro.
— Está chateado?
— Um pouco.
— A coisa não é fácil de digerir.
— Pois é, não.
Ele parou um instante, pensando no que Anna acabava de dizer: não é
fácil de digerir. Mas como podia saber sobre François?
— Desculpe, Anna, mas como foi que você soube?
— Deu na televisão, no jornal das oito.
De que ela estava falando, afinal?
— Que televisão?
— A Televigàta. Disseram que o chefe de polícia transferiu o inquérito do
caso Licalzi para o diretor da Móvel.
Montalbano começou a rir.
— Mas pra isso eu não tou ligando! Me referia a outra coisa!
— Então me conte por que está tão abatido.
— Outra hora, desculpe.
— Afinal, você esteve com o marido de Michela?
— Sim, ontem à tarde.
— Ele falou do casamento branco entre os dois?
— Você sabia?
— Sim, ela me contou. Michela gostava muito dele, acredite. Nessas
condições, ter um amante não era exatamente uma traição. O doutor sabia de
tudo.
O telefone tocou em outra sala, Anna foi atender e voltou agitada.
— Era uma amiga minha. Parece que, uma meia hora atrás, o tal diretor
da Móvel foi à casa do engenheiro Di Blasi e levou ele pra chefatura em
Montelusa. O que será que eles querem?
— Simples: saber onde Maurizio foi parar.
— Mas então Maurizio já é considerado suspeito!
— É a coisa mais óbvia, Anna. E o doutor Ernesto Panzacchi, da Móvel,
é um homem absolutamente óbvio. Bom, obrigado pelo uísque e boa noite.
— Que é isso, você já vai?
— Desculpe, estou cansado. Amanhã a gente se vê.
Um denso e pesado mau humor tinha desabado sobre o comissário.

Abriu a porta da casa com um chute e correu para atender ao telefone.


— Salvo, mas que merda! Grande amigo você é!
Ele reconheceu a voz de Nicolò Zito, o jornalista da Retelibera com quem
mantinha relações de sincera amizade.
— É verdade essa história de que o inquérito não está mais com você? Eu
não dei a notícia, queria primeiro que você me confirmasse. Mas, se for
verdade, por que você não me contou?
— Desculpe, Nicolò, isso aconteceu ontem, tarde da noite. E hoje de
manhã cedo eu viajei, fui visitar François.
— Quer que eu dê alguma coisa na televisão?
— Não, nada, obrigado. Ah, vou te contar uma coisa que você certamente
ainda não sabe, assim me redimo. O doutor Panzacchi levou o engenheiro
civil Aurelio Di Blasi, de Vigàta, pra um interrogatório na chefatura.
— É ele o assassino?
— Não, eles suspeitam do filho, Maurizio, que desapareceu na mesma
noite em que mataram a senhora Licalzi. O rapaz era apaixonadíssimo por
ela. Ah, e tem outra coisa. O marido da vítima está em Montelusa, no Hotel
Jolly.
— Salvo, se te chutarem da polícia, eu fico com você. Assista ao jornal da
meia-noite. E muito obrigado mesmo, hem?
O mau humor de Montalbano passou na mesma hora em que ele desligou
o telefone.
O doutor Ernesto Panzacchi estava com a cama feita: à meia-noite, toda a
sua movimentação se tornaria de domínio público.
O comissário não sentia a menor fome. Despiu-se, entrou no chuveiro e ficou
ali um tempão. Vestiu cueca e camiseta limpas. Agora, vinha a parte difícil.
— Oi, Livia.
— Ah, Salvo, eu estava há horas esperando você ligar! Como vai
François?
— Muito bem, até cresceu.
— Viu como ele fez progressos? Toda semana, quando eu telefono, ele
fala italiano cada vez melhor. Está conseguindo se explicar muito bem, não
acha?
— Até demais.
Livia não deu importância, tinha pressa de fazer outra pergunta.
— E Franca queria o quê?
— Falar comigo sobre François.
— Ele está muito bagunceiro? Desobediente?
— Livia, o problema é outro. Talvez nós tenhamos errado em deixá-lo
tanto tempo com Franca e o marido. O menino se apegou a eles, e me disse
que não quer sair de lá.
— Foi ele mesmo quem disse?
— Sim, espontaneamente.
— Espontaneamente! Mas como você é bobo!
— Por quê?
— Porque foram eles que o mandaram dizer isso! Querem ficar com ele.
Precisam de mão de obra gratuita na fazenda, aqueles dois canalhas!
— Livia, você pirou!
— Não, é isto mesmo! Querem ficar com ele! E você ficou bem alegrinho
em deixar!
— Livia, tente raciocinar.
— Eu estou raciocinando, meu caro, e muito bem! Vocês não perdem por
esperar, você e aqueles dois ladrões de crianças!
Livia desligou. Sem vestir nenhuma outra roupa, o comissário foi sentar-
se na varanda, acendeu um cigarro e, finalmente, deu asas à melancolia que
vinha contendo havia horas. Embora Franca tivesse deixado claro que a
decisão seria dele e de Livia, François estava definitivamente perdido. A
verdade, nua e crua, era aquela que a irmã de Mimì tinha lhe dito: criança não
é pacote que se pode guardar ora aqui, ora ali. Não se pode ignorar os
sentimentos de um menino. O advogado Rapisarda, que estava
acompanhando o processo de adoção, tinha avisado que seriam necessários
pelo menos outros seis meses. E François teria muito tempo para criar fortes
raízes na família Gagliardo. Livia estava delirando, se achava que Franca
podia ter posto na boca de François o que este havia dito. Ele, Montalbano,
flagrou a expressão do garoto, quando correu para abraçá-lo. Agora se
lembrava muito bem daqueles olhos: havia neles medo e ódio infantis. Por
outro lado, compreendia os sentimentos do menino: já tinha perdido a mãe e
temia perder a nova família. No fundo, no fundo, Livia e ele haviam ficado
pouquíssimo tempo com o garotinho, as figuras dos dois tinham desbotado
pouco a pouco. Montalbano sentiu que nunca, jamais teria a coragem de
infligir a François um outro trauma. Não tinha esse direito. E tampouco Livia.
O menino estava perdido para sempre. No que dependesse dele, consentiria
que François permanecesse com Aldo e Franca, que estavam felizes em
adotá-lo. Montalbano começou a sentir frio, levantou-se e entrou.

— Estava dormindo, doutor? Aqui é Fazio. Queria lhe informar que fizemos
uma assembleia, hoje à tarde. Escrevemos uma carta de protesto ao chefe de
polícia. Todo mundo assinou, o doutor Augello abriu a lista. Vou ler: “Nós,
abaixo assinados, integrantes do comissariado de Segurança Pública de
Vigàta, lamentamos...”
— Peraí, vocês já remeteram?
— Já, doutor.
— Mas são uns babacas mesmo! Podiam me comunicar, antes de mandar!
— Por quê? Antes ou depois, que importância tem?
— Eu convenceria vocês a não fazer uma besteira dessas.
Realmente furioso, Montalbano desligou.

Demorou para pegar no sono. Mas, depois de dormir por uma hora, acordou
de repente, acendeu a luz e sentou-se na cama. Viera-lhe uma espécie de
relâmpago, que o fez abrir os olhos. Durante a vistoria na casa de campo com
o doutor Licalzi, tinha acontecido alguma coisa, uma palavra, um som,
alguma coisa dissonante. O que era? Montalbano deu uma bronca em si
mesmo: “Mas que porra você tem a ver com isso? Essa investigação não lhe
pertence mais.”
Apagou a luz, voltou a se deitar.
“Assim como François”, acrescentou, com amargura.
Capítulo X

Na manhã seguinte, no comissariado, o time estava quase completo: Augello,


Fazio, Germanà, Gallo, Galluzzo, Giallombardo, Tortorella e Grasso. Só
faltava Catarella, em justificada ausência porque se encontrava em
Montelusa, para a primeira aula do curso de informática. Mostravam todos
uma cara sombria, de finados, evitando Montalbano como se ele tivesse algo
contagioso, não o olhavam nos olhos. Sentiam-se duplamente ofendidos:
primeiro, pelo chefe de polícia, que havia tirado o inquérito das mãos do
superior deles, só para sacaneá-lo; e, segundo, pelo próprio superior, que
reagira mal à carta de protesto ao chefe de polícia. Não apenas o comissário
não lhes agradecera, paciência, ele era assim mesmo; mas, ainda por cima,
chamara-os de babacas, como Fazio havia relatado.
Todos presentes, portanto, mas todos entediados até a morte, porque,
excetuando-se o crime Licalzi, fazia dois meses que não acontecia nada de
substancial. Por exemplo: as famílias Cuffaro e Sinagra, as duas quadrilhas
de mafiosos que disputavam o território e que costumavam providenciar, com
excelente regularidade, a descoberta de um assassinado por mês (uma vez um
dos Cuffaro e, na seguinte, um dos Sinagra), pareciam haver perdido o
entusiasmo, já fazia algum tempo. E isso desde quando Giosuè Cuffaro, preso
e fulminantemente arrependido por seus delitos, tinha mandado para as
grades Peppuccio Sinagra, o qual, preso e fulminantemente arrependido por
seus delitos, tinha facilitado a detenção de Antonio Smecca, primo dos
Cuffaro, o qual, fulminantemente arrependido por seus delitos, botara em
cana Cicco Lo Càrmine, dos Sinagra, o qual...
Os únicos estampidos escutados recentemente em Vigàta remontavam a
um mês antes, durante a festa de são Gerlando, quando haviam soltado fogos
de artifício.
“Os números um estão todos na cadeia!”, exclamara triunfalmente,
durante uma concorridíssima entrevista coletiva, o chefe de polícia Bonetti-
Alderighi.
“E os de cinco estrelas ocuparam os lugares deles”, pensara o comissário.
Naquela manhã, Grasso, que tinha substituído Catarella, fazia palavras
cruzadas, Gallo e Galluzzo disputavam uma partida de escopa, Giallombardo
e Tortorella jogavam damas e os outros liam ou olhavam para a parede. Em
suma: a atividade fervia.
Sobre sua mesa, Montalbano encontrou uma montanha de papéis para
assinar e documentos para liberar. Sutil vingança dos seus homens?

A bomba, inesperada, explodiu à uma da tarde, quando o comissário, já com


o braço direito com câimbras, meditava sobre onde ir almoçar.
— Doutor, tem uma moça, Anna Tropeano, que quer falar com o senhor.
Parece muito nervosa — disse Grasso, telefonista do turno da manhã.
— Salvo! Meu Deus! Deu nas chamadas do telejornal que mataram
Maurizio!
Não havendo aparelhos de tevê no comissariado, Montalbano saiu
chispando de sua sala e correu ao vizinho bar Italia.
Fazio o interceptou:
— Que foi que houve, doutor?
— Mataram Maurizio Di Blasi.
O proprietário do bar, Gelsomino, e dois fregueses olhavam de queixo
caído para a televisão, na qual um jornalista da Televigàta falava do assunto.
“... e durante esse longo interrogatório noturno do engenheiro Aurelio Di
Blasi, o diretor da Móvel de Montelusa, doutor Ernesto Panzacchi, levantou a
hipótese de que Maurizio, filho do engenheiro, sobre o qual pesavam fortes
suspeitas quanto ao assassinato de Michela Licalzi, estivesse escondido numa
casa de campo de propriedade dos Di Blasi, situada nas proximidades de
Raffadali. O engenheiro, porém, sustentou que seu filho não estava refugiado
lá, porque ele mesmo havia ido procurá-lo nesse local, na véspera. Por volta
das dez horas da manhã de hoje, o doutor Panzacchi, acompanhado de seis
agentes, foi a Raffadali e iniciou uma cuidadosa busca pela casa, que é
grande. A certa altura, um dos agentes notou um homem correndo por uma
colina árida que fica praticamente encostada à casa. Iniciada a perseguição, o
doutor Panzacchi e seus agentes localizaram uma caverna onde Maurizio Di
Blasi estava escondido. Depois de espalhar os agentes pela área, o doutor
Panzacchi intimou o rapaz a sair, de mãos para o alto. De repente, Di Blasi
apareceu, gritando: ‘Me castiguem! Me castiguem!’, enquanto brandia
ameaçadoramente uma arma. Um dos agentes prontamente fez fogo, e o
jovem Maurizio Di Blasi caiu, mortalmente atingido por uma rajada no peito.
A invocação quase dostoievskiana do rapaz, ‘Me castiguem!’, é mais do que
uma confissão. O engenheiro Aurelio Di Blasi foi convidado a escolher um
defensor. Sobre ele pairam suspeitas de cumplicidade na fuga do filho, tão
tragicamente concluída.”
Enquanto aparecia na tela uma foto da cara cavalar do pobre rapaz,
Montalbano saiu do bar e voltou ao comissariado.
— Se o chefe não tivesse tirado esse caso de você, seguramente o
pobrezinho ainda estaria vivo! — comentou Mimì, furioso.
Montalbano não respondeu: entrou em seu gabinete e fechou a porta.
Havia uma contradição gigantesca naquela narrativa do jornalista. Se
Maurizio Di Blasi queria ser punido, se desejava tanto essa punição, por que
segurava uma arma, com a qual ameaçava os agentes? Um homem armado,
apontando a pistola sobre os que querem prendê-lo, não deseja um castigo,
está apenas tentando escapar, evitar a prisão.
— Posso entrar, doutor? — Era a voz de Fazio.
Com espanto, Montalbano viu que, atrás de Fazio, entravam também
Augello, Germanà, Gallo, Galluzzo, Giallombardo, Tortorella e até Grasso.
— Fazio falou com um amigo dele da Móvel de Montelusa — disse Mimì
Augello, fazendo sinal a Fazio para prosseguir.
— O senhor sabe o que era a arma com que o rapaz ameaçou o doutor
Panzacchi e os homens dele?
— Não.
— Um sapato. O pé direito. Antes de cair, ele ainda conseguiu jogar esse
sapato na direção de Panzacchi.

— Anna? Aqui é Montalbano. Acabei de ouvir.


— Não pode ter sido ele, Salvo! Tenho certeza! É tudo um erro trágico!
Você precisa fazer alguma coisa!
— Olha, não te liguei por causa disso. Você conhece a senhora Di Blasi?
— Conheço. Já nos falamos algumas vezes.
— Vá já pra lá. Estou preocupado. Não gostaria de que ela ficasse
sozinha, com o marido preso e o filho recém-assassinado.
— Vou agora mesmo.
— Doutor, posso lhe contar uma coisa? Aquele meu amigo da Móvel de
Montelusa ligou de novo.
— E disse que a história do sapato era só uma brincadeira, ele quis te
passar um trote.
— Exatamente. Então, era tudo verdade.
— Olha, eu estou indo pra casa. Acho que vou ficar em Marinella hoje à
tarde. Se precisarem, me chamem.
— Doutor, o senhor tem que fazer alguma coisa.
— Mas quando é que vocês vão parar de me encher o saco?

Passada a ponte, seguiu em frente: não queria ouvir novamente de Anna que
ele tinha de interferir. A que título? Eis o cavaleiro sem medo e sem mácula!
Eis Robin Hood, Zorro e o justiceiro noturno, todos numa só pessoa: Salvo
Montalbano!
Perdido o apetite que estava sentindo, o comissário encheu uma tigelinha
com azeitonas verdes e pretas, cortou uma fatia de pão e, enquanto beliscava,
discou o número de Nicolò Zito.
— Nicolò? Montalbano. Sabe dizer se o chefe de polícia convocou uma
coletiva?
— Está marcada para as cinco da tarde de hoje.
— Você vai?
— Claro.
— Então, me faça um favor. Pergunte a Panzacchi com que arma
Maurizio Di Blasi ameaçou os policiais. E, depois que ele responder,
pergunte se pode mostrá-la.
— O que é que tem por trás?
— Te conto na devida hora.
— Salvo, posso dizer uma coisa? Aqui, todos temos certeza de que, se a
investigação continuasse com você, Maurizio Di Blasi ainda estaria vivo.
Agora era Nicolò a se meter, como Mimì.
— Ora, vai cagar!
— Boa ideia, estou precisando, desde ontem não consigo. Olha, a coletiva
vai ser transmitida ao vivo.

Montalbano foi sentar-se na varanda, com o livro de Denevi nas mãos. Mas
não conseguiu ler. Um pensamento martelava-lhe a cabeça, o mesmo que
tinha surgido na noite anterior: o que era mesmo que ele havia visto ou
escutado de estranho, de anômalo, durante a vistoria na casa de campo com o
doutor?

A coletiva começou às cinco em ponto: Bonetti-Alderighi era um maníaco


por pontualidade (“é a cortesia do rei”, repetia, sempre que surgia a ocasião;
evidentemente, sua fração de origem nobre subia-lhe à cabeça e ele já se via
com uma coroa em cima dos cornos).
Eram três, sentados a uma mesinha coberta com um pano verde: o chefe
de polícia no meio, Panzacchi à direita e o doutor Lattes à esquerda. De pé,
atrás deles, os seis agentes que haviam participado da ação. Enquanto as
faces dos agentes estavam sérias e tensas, as das três autoridades
expressavam um moderado contentamento, moderado porque eles não
podiam prender o morto.
O chefe de polícia foi o primeiro a falar. Limitou-se a fazer um elogio a
Ernesto Panzacchi (“um homem destinado a um brilhante porvir”) e a dar
discretos parabéns a si mesmo, por haver decidido confiar o inquérito ao
diretor da Móvel, o qual “soube resolver o caso em vinte e quatro horas,
enquanto outras pessoas, com métodos hoje antiquados, sabe Deus quanto
tempo levariam”.
Montalbano, diante da televisão, engoliu aquilo sem reagir, nem mesmo
mentalmente.
A seguir, o chefe deu a palavra a Ernesto Panzacchi, o qual repetiu
exatamente o que o comissário já tinha ouvido do jornalista da Televigàta.
Não se demorou em detalhes, parecia ter pressa de sair dali.
— Alguma pergunta? — quis saber o doutor Lattes.
Um repórter levantou o dedo.
— É verdade que o rapaz gritou: me castiguem?
— Totalmente verdade. Duas vezes. Todos ouviram.
E Lattes virou-se para os seis agentes, que baixaram a cabeça em sinal de
assentimento: pareciam marionetes.
— E com que tom! — reforçou Panzacchi. — Desesperado.
— O pai é acusado de quê? — perguntou um segundo repórter.
— Favorecimento — disse o chefe de polícia.
— E talvez de outra coisa — acrescentou Panzacchi, com ar misterioso.
— Cumplicidade no crime? — arriscou um terceiro.
— Eu não disse isso — retrucou Panzacchi, secamente.
Por fim, Nicolò Zito fez sinal de que desejava falar.
— Com que arma Maurizio Di Blasi ameaçou os senhores?
Certamente, os repórteres que ignoravam como as coisas tinham
acontecido não notaram nada, mas o comissário viu distintamente os seis
agentes se crisparem e o meio sorriso desaparecer da cara do diretor da
Móvel. Somente Bonetti-Alderighi e seu chefe de gabinete não mostraram
reações particulares.
— Uma bomba manual — respondeu Panzacchi.
— E quem a teria dado a ele? — insistiu Zito.
— Veja bem, é uma bomba do tempo da guerra, mas ainda funciona.
Fazemos uma certa ideia sobre onde ele pode tê-la encontrado, mas ainda
precisamos conferir algumas coisas.
— O senhor poderia mostrá-la?
— Está com a Perícia.
E assim terminou a coletiva.

Às seis e meia, Montalbano chamou Livia. O telefone tocou um tempão. Ele


começou a preocupar-se. Será que ela havia passado mal? Ligou então para
Giovanna, amiga e colega de trabalho de Livia, e de quem ele tinha o
número. Giovanna contou que Livia havia ido trabalhar normalmente, mas
que ela, Giovanna, tinha achado a colega muito pálida e nervosa. Livia
também tinha avisado que havia desligado o telefone, não queria ser
incomodada.
— Como vão as coisas entre vocês? — perguntou Giovanna.
— Eu diria que não muito bem — respondeu diplomaticamente
Montalbano.

Não importava o que fizesse, ler o livro ou olhar o mar, fumando um cigarro,
volta e meia a pergunta lhe voltava, precisa, insistente: o que era mesmo que
ele tinha visto ou escutado de destoante na casa de campo?

— Alô, Salvo? Aqui é Anna. Acabei de sair da casa da senhora Di Blasi.


Você fez bem em pedir que eu fosse lá. Os parentes e amigos tomaram o
cuidado de evitar uma família que tem um pai preso e um filho homicida,
você entende. Filhos da puta.
— Como é que ela está?
— Como poderia? Passou muito mal, eu precisei chamar o médico. Agora
se sente melhor, também porque o advogado escolhido pelo marido telefonou
dizendo que o engenheiro seria liberado dali a pouco.
— Não conseguiram comprovar a cumplicidade?
— Não sei dizer. Parece que ele vai ser acusado do mesmo jeito, mas em
liberdade. Você vai passar aqui em casa?
— Não sei, vamos ver.
— Salvo, você tem que se mexer. Maurizio era inocente, eu tenho
certeza, ele foi assassinado.
— Anna, tire essas ideias malucas da cabeça.

— Alô, dotor? É o senhor pessoalmente em pessoa? Aqui é Catarella.


Telefonou o marido da falecida, ele disse assim, que é para o senhor chamar
ele pessoalmente no Cholli hoje de noite, ali pelas dez horas.
— Obrigado. Como foi o primeiro dia do curso?
— Bem, dotor, bem. Eu entendi tudo. O instrutor se comprimentou. Ele
falou assim, que são raras as pessoas como eu.

A ideia repentina veio-lhe pouco antes das oito, e ele resolveu executá-la sem
perder um minuto. Entrou no carro e partiu para Montelusa.
— Nicolò está no ar — disse uma secretária —, mas já vai terminar.
Dali a cinco minutos chegou Zito, afobado.
— Fui útil? Você viu a coletiva?
— Vi, Nicolò, e acho que acertamos em cheio.
— Dá pra me dizer por que essa bomba é tão importante assim?
— Você subestima uma bomba?
— Ora, diga logo do que se trata.
— Ainda não posso. Ou melhor, talvez você não demore a entender, mas
isso é com você, e eu não lhe contei nada.
— Prossiga, o que é que você quer que eu faça ou diga no jornal? Veio
aqui pra isso, não? Agora você é o meu diretor oculto.
— Se você fizer, te dou um presente.
Montalbano puxou do bolso uma das fotos de Michela que o doutor
Licalzi tinha lhe entregado e passou-a a Nicolò.
— Você é o único jornalista a saber como era ela. Na chefatura de
Montelusa eles não têm fotos: a carteira de identidade, a de motorista, o
passaporte, se existia, estavam na mochila que o assassino levou. Pode
mostrar aos seus espectadores, se quiser.
Nicolò torceu a boca.
— Então, o favor que você vai me pedir deve ser grande. Manda.
Montalbano levantou-se e foi virar a chave da porta da sala do jornalista.
— Não — fez Nicolò.
— Não o quê?
— Não pra qualquer coisa que você pretenda me pedir. Se trancou a
porta, nessa eu não entro.
— Se você me der uma mãozinha, depois te passo todos os elementos
para desencadear uma confusão a nível nacional.
Zito não respondeu. Estava claramente dividido, um coração de formiga e
outro de leão.
— O que é que eu devo fazer? — perguntou finalmente, a meia voz.
— Dizer que te ligaram duas testemunhas.
— Existem?
— Uma sim, outra não.
— Me conte apenas o que disse essa que existe.
— Só as duas. E pegar ou largar.
— Mas você se dá conta de que, se descobrirem que eu inventei uma
testemunha, podem me cassar o registro?
— Claro. Caso em que está autorizado a dizer que fui eu que te convenci.
Assim me mandam também pra casa, e iremos juntos plantar batatas.
— Vamos fazer o seguinte: primeiro você me fala da testemunha falsa. Se
for factível, aí você fala também da verdadeira.
— Ótimo. Bom. Hoje à tarde, depois da coletiva, ligou pra você um
cidadão que estava caçando pertíssimo do lugar onde acertaram Maurizio Di
Blasi. Ele disse que as coisas não aconteceram como Panzacchi declarou. Em
seguida, desligou, sem deixar nome e sobrenome. Estava claramente
apavorado. Você cita esse episódio só de passagem, afirma nobremente que
não quer dar muito peso a isso, pois se trata de um telefonema anônimo, e sua
deontologia profissional não lhe permite alardear insinuações anônimas.
— Enquanto isso, a coisa em si eu já terei alardeado.
— Desculpe, Nicolò, mas essa não é a técnica habitual de vocês? Jogam a
pedra e escondem a mão.
— Sobre isso, depois te digo uma coisa. Continue, fale da testemunha
verdadeira.
— Chama-se Gillo Jàcono, mas você vai dar só as iniciais, G. J., e pronto.
Esse senhor, na quarta-feira, pouco depois da meia-noite, viu o Twingo
chegando ao local, Michela e um desconhecido desembarcando e se dirigindo
tranquilamente para a casa de campo. O homem carregava uma mala. Eu
disse mala, não maleta. Ora, a pergunta é a seguinte: por que Maurizio Di
Blasi foi violentar a senhora Licalzi levando uma mala? Dentro estavam os
lençóis pra trocar, no caso da cama ficar suja? E mais: o pessoal da Móvel
achou essa mala em algum lugar? Na casa de campo, isto é certo, ela não
estava.
— Acabou?
— Acabei.
Nicolò tinha esfriado, evidentemente não havia relevado o comentário de
Montalbano sobre as práticas jornalísticas.
— Agora, a respeito da minha deontologia profissional. Hoje à tarde,
depois da coletiva, me ligou um caçador pra contar que as coisas não tinham
acontecido do jeito que a polícia descreveu. Mas, como ele não deu o nome,
eu não transmiti essa informação.
— Você tá querendo me sacanear.
— Vou chamar a secretária pra lhe mostrar a gravação do telefonema —
fez o jornalista, levantando-se.
— Desculpe, Nicolò. Não é preciso.
Capítulo XI

Passou a noite revirando-se na cama, mas não conseguia adormecer. Via


diante de si o quadro de Maurizio alvejado, conseguindo ainda jogar o sapato
contra os seus perseguidores, gesto a um tempo cômico e desesperado de um
pobrezinho acuado. “Me castiguem”, gritou, e todos correram a interpretar
essa invocação da maneira mais óbvia e tranquilizadora: me castiguem
porque estuprei e matei, me castiguem pelo meu pecado. Mas, e se, naquele
instante, ele tivesse pretendido significar outra coisa, inteiramente diversa? O
que lhe teria passado pela cabeça? Me castiguem porque sou diferente, me
castiguem porque amei demais, me castiguem por haver nascido: podia-se
continuar até o infinito, e aqui o comissário se deteve, tanto por não gostar de
enveredar pela filosofia de bolso e literária quanto por ter compreendido, de
repente, que o único modo de exorcizar aquela imagem obsessiva e aquele
grito não era um interrogar-se genérico, mas o confronto com os fatos. Para
fazer isso, havia apenas um caminho, só um. E só assim ele conseguiu fechar
os olhos durante umas duas horas.

— Todo mundo — disse Montalbano, entrando no comissariado, a Mimì


Augello.
Dali a cinco minutos, estavam todos no gabinete, na frente dele.
— Fiquem à vontade — fez Montalbano. — Isto não é uma preleção
oficial, é uma conversa entre amigos.
Mimì e dois ou três se sentaram, os outros continuaram de pé. Grasso, o
substituto de Catarella, apoiou-se à ombreira da porta, de ouvido ligado na
mesa telefônica.
— Ontem, o doutor Augello, ao saber que Di Blasi tinha sido morto, me
disse uma coisa que me doeu. Ele falou mais ou menos o seguinte: se você
continuasse nessa investigação, a esta hora o rapaz ainda estaria vivo. Eu
poderia ter respondido que o chefe de polícia havia tirado esse caso das
minhas mãos, e que, portanto, eu não tinha nenhuma responsabilidade no
acontecido. Formalmente, isso é verdade. Mas o doutor Augello tinha razão.
Quando o chefe de polícia me convocou para me ordenar que não
investigasse mais o crime Licalzi, eu cedi ao orgulho. Não protestei, não me
rebelei, deixei subentendido que ele podia até enfiar esse caso no cu. E,
assim, brinquei com a vida de um homem. Porque eu tenho certeza de que
nenhum de vocês atiraria num pobre desgraçado que não regulava muito bem
dos miolos.
Os homens, que jamais haviam escutado o comissário falar daquele jeito,
encaravam-no embasbacados, prendendo a respiração.
— Esta noite eu pensei no assunto e me decidi. Vou retomar essa
investigação.
Quem começou a bater palmas? Montalbano soube transformar a
comoção em ironia.
— Eu já disse que vocês são uns babacas, não me façam repetir. — E
prosseguiu: — A esta altura, o inquérito já foi encerrado. Portanto, se vocês
estiverem de acordo, teremos que trabalhar debaixo d’água, só com o
periscópio de fora. E um aviso: se vierem a saber disso em Montelusa, todos
nós podemos ter problemas sérios.

— Comissário Montalbano? Aqui é Emanuele Licalzi.


Montalbano lembrou-se de que Catarella, na noite anterior, disse que o
doutor havia ligado. Ele tinha esquecido.
— Desculpe, mas ontem à noite eu tive...
— Ora, por favor, tudo bem. Até porque, de ontem à noite pra cá, as
coisas mudaram.
— Em que sentido?
— No sentido de que, no final da tarde de ontem, tinham garantido que na
quarta de manhã eu poderia voltar a Bolonha, levando a pobrezinha. Mas,
hoje cedo, me ligaram da chefatura para dizer que eles precisavam de mais
tempo, a cerimônia fúnebre só pode ser oficiada na sexta. Então eu resolvi ir
para Bolonha e retornar aqui na quinta à noite.
— Doutor, o senhor certamente soube que o inquérito...
— Sim, claro, mas eu não me referia ao inquérito. Lembra que nos
falamos do carro, o Twingo? Já posso pedir a alguém para tentar revendê-lo?
— Doutor, façamos o seguinte: eu mesmo mando levar o carro a uma
oficina de confiança, afinal somos nós os responsáveis pelo prejuízo e temos
que pagar. Se o senhor quiser, posso encarregar nosso mecânico de achar um
comprador.
— O senhor é uma pessoa rara, comissário.
— Uma curiosidade: o que é que o senhor vai fazer com a casa.
— Também vou botar à venda.

— Como se queria demonstrar. Aqui é Nicolò.


— Não entendi.
— Fui convocado pelo juiz Tommaseo para as quatro da tarde de hoje.
— E o que é que ele quer?
— Mas você é mesmo cara de pau! Que é isso? Me mete nesse rolo e
depois fica sem imaginação? Ele vai me acusar de ter escondido da polícia
testemunhas preciosas. E se depois vier a saber que uma dessas duas
testemunhas eu não sei nem quem é, vai me criar um problemão, é capaz de
me botar em cana.
— Se acontecer, me informe.
— Claro! Assim você vai me visitar uma vez por semana, levando
laranjas e cigarros.

— Galluzzo, preciso falar com o seu cunhado, o jornalista da Televigàta.


— Vou chamar ele agora, comissário.
Galluzzo ia saindo, mas a curiosidade levou a melhor.
— Mas se for coisa que eu também posso saber...
— Não só pode como deve, Gallù. Preciso que o seu cunhado colabore
conosco nesse caso Licalzi. Já que não podemos nos mover à luz do sol,
temos que recorrer à ajuda que as televisões privadas podem nos prestar,
dando a impressão de que estão se mexendo por sua própria iniciativa,
entendeu?
— Perfeitamente.
— Você acha que o seu cunhado se disporia a ajudar?
Galluzzo começou a rir.
— Aquele lá, doutor, se o senhor pedir pra dizer na televisão que
descobriram que a lua é feita de ricota, ele diz. Sabia que morre de inveja?
— De quem?
— De Nicolò Zito, doutor. Diz que o senhor dá preferência a ele.
— E é verdade. Ontem à noite, Zito me fez um favor e eu compliquei a
vida dele.
— E agora o senhor quer fazer o mesmo com o meu cunhado?
— Se ele quiser.
— Me diga o que o senhor deseja, não vai ter problema.
— Então você mesmo transmite a ele o que eu quero. Toma aqui. É uma
foto de Michela Licalzi.
— Caramba, como era bonita!
— Na redação, o seu cunhado deve ter uma foto de Maurizio Di Blasi,
acho que a vi quando deram a notícia da morte dele. No noticiário da uma, e
também no da noite, o seu cunhado deve exibir as duas fotos lado a lado,
enquadrando as duas juntas. E dizer que, considerando a lacuna de cinco
horas entre as sete e meia da noite de quarta, quando Michela deixou uma
amiga, e pouco depois da meia-noite, quando foi vista indo para a casa de
campo em companhia de um homem, o seu cunhado gostaria de saber se
alguém teria informações a dar sobre os deslocamentos de Michela Licalzi
nesse intervalo. Ou melhor: se alguém a viu nesse horário, e onde, em
companhia de Maurizio. Fui claro?
— Claríssimo.
— De agora em diante, você acampa na Televigàta.
— Como assim?
— Você fica por lá, como se fosse um dos redatores. Assim que alguém
se manifestar pra passar alguma informação, você dá um jeito de atender, de
falar com a pessoa. E depois me conta.

— Salvo? Aqui é Nicolò Zito. Preciso incomodar você outra vez.


— Alguma novidade? Mandaram os carabinieri te prender?
Evidentemente, Nicolò não sentia a menor vontade de brincar.
— Você pode vir imediatamente à redação?

Montalbano ficou espantadíssimo ao descobrir na sala de Nicolò o advogado


Orazio Guttadauro, penalista controvertido, defensor de todos os mafiosos da
província e até de fora da província.
— Grande comissário Montalbano! — fez o advogado, assim que o viu
entrar. Nicolò parecia um pouquinho embaraçado.
O comissário olhou interrogativamente o jornalista: por que este o havia
chamado com Guttadauro ali presente? Zito respondeu em voz alta.
— O advogado é aquele senhor que telefonou ontem, o que estava
caçando.
— Ah — fez o comissário. Com Guttadauro, quanto menos a pessoa
falasse, melhor: ele não era homem para se repartir o pão.
— As palavras que o egrégio jornalista aqui presente — principiou o
advogado, no mesmo tom de voz que empregava no tribunal — adotou para
me definir, na televisão, fizeram com que eu me sentisse um verme!
— Meu Deus, o que foi que eu disse? — perguntou Nicolò, preocupado.
— O senhor usou exatamente estas expressões: caçador desconhecido e
interlocutor anônimo.
— Sim, mas o que é que tem de ofensivo nisso? Existe o Soldado
Desconhecido...
— ... o Anônimo Veneziano... — reforçou Montalbano, que estava
começando a se divertir.
— O quê?! O quê?! — continuou o advogado, como se não tivesse
ouvido. — Orazio Guttadauro ser implicitamente acusado de covardia? Não
pude suportar, e aqui estou.
— Mas por que nos procurou? Seu dever era ir falar em Montelusa com o
doutor Panzacchi, para informar...
— Estão brincando, meus jovens? Panzacchi estava a vinte metros de
mim, e no entanto contou uma história completamente diferente! Entre ele e
mim, acreditam nele! Sabem quantos constituintes meus, homens íntegros,
viram-se comprometidos e acusados pela palavra mentirosa de um policial
civil ou de um carabiniere? Centenas!
— Bom, senhor advogado, mas em quê, afinal, a sua versão dos fatos
difere daquela do doutor Panzacchi? — perguntou Zito, que não aguentava
mais a curiosidade.
— Num detalhe, ilustre.
— Qual?
— O de que o jovem Di Blasi estava desarmado.
— Ah, não! Não acredito. O senhor quer sustentar que os agentes da
Móvel atiraram a sangue-frio, pelo simples prazer de matar um homem?
— Digo simplesmente que Di Blasi estava desarmado, mas os outros
acreditaram-no armado, porque ele tinha na mão um objeto. Foi um terrível
equívoco.
— Ele tinha o quê, na mão?
A voz de Nicolò Zito havia se tornado aguda.
— Um pé de sapato, meu amigo.
Enquanto o jornalista desabava na cadeira, o advogado prosseguiu:
— Julguei ser do meu dever levar o fato ao conhecimento da opinião
pública. Penso que o meu alto dever cívico...
E, aqui, Montalbano entendeu o jogo de Guttadauro. Não era um
homicídio de máfia, e portanto, testemunhando, ele não prejudicava nenhum
dos seus constituintes; ganhava fama de cidadão exemplar e,
simultaneamente, desmoralizava a polícia.
— No dia anterior eu também o tinha visto — continuou o advogado.
— Quem? — perguntaram juntos Zito e Montalbano, perdidos em seus
pensamentos.
— O jovem Di Blasi, não? Aquela é uma zona onde se fazem boas
caçadas. Eu o vi à distância, não tinha levado binóculo. Ele mancava. Depois
entrou na gruta, sentou-se ao sol e começou a comer.
— Um momento — fez Zito. — Segundo eu entendi, o senhor afirma que
o rapaz estava escondido lá, e não na casa de campo da família? Ela fica ali
pertinho!
— O que quer que eu lhe diga, meu caro Zito? Nesse mesmo dia anterior,
quando passei diante da casa de campo dos Di Blasi, vi que o portão estava
trancado com um cadeado do tamanho de um baú. Tenho certeza de que ele
nunca se escondeu lá, talvez para não envolver a família.
Montalbano convenceu-se de duas coisas: o advogado estava pronto para
desmentir o diretor da Móvel, inclusive sobre o esconderijo de Maurizio, e
com isso a incriminação do pai deste, o engenheiro, cairia no vazio, com
grave dano para Panzacchi. Quanto à segunda coisa que compreendera, quis
ter antes uma confirmação.
— Me esclarece uma coisa, senhor advogado?
— Às ordens, comissário.
— O senhor está sempre caçando, nunca vai ao tribunal?
Guttadauro sorriu, Montalbano sorriu de volta. Haviam-se entendido.
Muito provavelmente, o advogado jamais tinha caçado em sua vida. Os que
haviam visto tudo e mandado que ele tomasse a frente deviam ser amigos
daqueles que Guttadauro chamava de seus constituintes: o objetivo era
provocar um escândalo na chefatura de Montelusa. Era preciso ir devagar,
Montalbano não gostaria de tê-los como aliados.
— Foi o doutor aqui presente quem pediu para me chamar? — perguntou
ele a Nicolò.
— Foi.
Então, os caras sabiam de tudo. Estavam cientes de que Montalbano tinha
levado uma rasteira, imaginavam-no decidido a se vingar e queriam usá-lo.
— Doutor, o senhor certamente soube que eu não sou mais o titular desse
inquérito, o qual, aliás, deve ser considerado encerrado.
— Sim, mas...
— Não tem nenhum mas, doutor. Se o senhor quer realmente fazer o seu
dever de cidadão, procure o juiz Tommaseo e conte a sua versão dos fatos.
Bom dia.
O comissário virou as costas e saiu. Nicolò correu atrás e segurou-o por
um braço.
— Você sabia! Você sabia da história do sapato! Por isso me pediu pra
perguntar a Panzacchi qual era a arma!
— Sim, Nicolò, eu sabia. Mas te aconselho a não usar isso no noticiário,
não existe prova de que as coisas aconteceram como Guttadauro conta,
embora, muito provavelmente, seja verdade. Vá com calma.
— Mas se você mesmo está dizendo que é verdade!
— Procure entender, Nicolò. Eu sou capaz de apostar que o advogado não
sabe nem mesmo em que porra de lugar fica a gruta onde Maurizio se
escondeu. Ele é uma marionete, e a máfia manipula os fios. Os amigos
souberam alguma coisa e decidiram que seria conveniente tirar proveito dela.
Jogam a rede no mar e esperam pescar Panzacchi, o chefe de polícia e o juiz
Tommaseo. Um belo terremoto. Mas, para puxar a rede até o barco, eles
precisam de um homem forte, ou seja, eu, que estaria cego pela ideia de
vingança, segundo pensam. Percebe?
— Sim. E o que é que eu faço com o advogado?
— Repita as mesmas coisas que eu disse. Mande-o procurar o juiz, e verá
que ele vai se recusar. Ou seja, é você quem vai transmitir a Tommaseo,
palavra por palavra, o que Guttadauro contou. Se o juiz não for bobo, e não é,
vai entender que também está em perigo.
— Mas ele não tem nada a ver com o assassinato de Maurizio.
— Não, mas assinou as acusações contra o pai, o engenheiro. E essa
turma de Guttadauro está pronta a testemunhar que Maurizio jamais se
escondeu na casa da família em Raffadali. Tommaseo, se quiser tirar o cu da
reta, precisa desarmar Guttadauro e seus comparsas.
— De que jeito?
— E eu sei?

Já que estava em Montelusa, Montalbano dirigiu-se à chefatura, esperando


não encontrar Panzacchi. Desceu correndo ao subsolo onde ficava a Perícia e
entrou diretamente no gabinete do chefe do setor.
— Bom dia, Arquà.
— Bom dia — fez o outro, frio como um iceberg. — Em que lhe posso
ser útil?
— Eu ia passando por aqui e me veio uma curiosidade.
— Estou ocupadíssimo.
— Não tenho a menor dúvida, mas vou lhe roubar um minuto. Queria
algumas informações sobre a bomba que Di Blasi tentou lançar contra os
agentes.
Arquà não moveu um só músculo.
— Não sou obrigado a lhe dar nenhuma informação.
Seria possível que ele tivesse tanto controle?
— Ora, colega, seja gentil. Bastam três dados: cor, tamanho e marca.
Arquà pareceu sinceramente espantado. Em seus olhos surgiu claramente
uma pergunta: Montalbano não teria enlouquecido?
— Mas que diabos você está dizendo?
— Vou lhe dar uma ajudinha. Cor preta? Marrom? Tamanho quarenta e
três? Quarenta e quatro? Mocassim? Marca Superga? Varese?
— Calma, calma — fez Arquà, sem que fosse necessário, mas seguindo a
regra de que com os malucos convém ir devagar. — Venha comigo.
Montalbano seguiu-o, e os dois entraram numa sala onde havia uma
grande mesa branca em meia-lua, com três homens de guarda-pó branco
trabalhando.
— Caruana — disse Arquà a um deles —, mostre a bomba aqui ao colega
Montalbano.
E, enquanto o outro abria um armário de ferro, Arquà continuou.
— Já está desmontada, mas, quando trouxeram, ela estava perigosamente
pronta a funcionar.
Ele pegou o saco plástico que Caruana lhe estendia e mostrou-o ao
comissário.
— Uma velha OTO de propriedade do nosso exército, nos anos 40.
Montalbano não conseguia falar: olhava a bomba em pedaços com a
mesma expressão do proprietário de um vaso Ming que tivesse acabado de se
espatifar.
— Vocês acharam impressões digitais?
— Muitas estavam confusas, mas duas do jovem Di Blasi apareciam
claramente: o polegar e o indicador da mão direita.
Arquà pôs o saco plástico sobre a mesa, apoiou a mão no ombro do
comissário e conduziu-o até o corredor.
— Desculpe, foi tudo culpa minha Eu não imaginava que o chefe de
polícia tiraria o inquérito de você.
Ele atribuía o que lhe parecera um momentâneo ofuscamento das
faculdades mentais de Montalbano ao choque súbito pela destituição. No
fundo, um bom moço, o doutor Arquà.

O chefe da Perícia tinha sido indubitavelmente sincero, não podia ser um ator
tão formidável, pensou Montalbano, enquanto dirigia de volta a Vigàta. Mas
como se consegue jogar uma bomba segurando-a unicamente com o polegar e
o indicador? A menor coisa que pode acontecer, lançando-a assim, é fazer
explodir os próprios colhões. Arquà deveria ter achado também a marca de
uma boa parte da palma da mão direita. Se só havia as do polegar e do
indicador, onde, e em que momento, os agentes da Móvel tinham feito a
operação de pegar dois dedos de Maurizio, já morto, e pressioná-los sobre a
bomba? Mal formulou essa pergunta, Montalbano passou para a outra pista e
voltou a Montelusa.
Capítulo XII

— O que é que o senhor quer? — interpelou Pasquano, assim que o viu entrar
em sua sala.
— Preciso apelar para a nossa amizade — começou Montalbano.
— Amizade? E por acaso nós somos amigos? Jantamos juntos? Trocamos
confidências?
O doutor Pasquano era assim, e o comissário não se sentiu nem um pouco
abalado por esse jeito de falar. Precisava apenas achar a frase adequada.
— Bom, se não for amizade, é estima.
— Isto, sim — admitiu Pasquano.
Tinha acertado. Agora, o caminho estava aberto.
— Doutor, que outras averiguações o senhor ainda precisa fazer no corpo
de Michela Licalzi? Tem novidades?
— Que novidades? Há muito tempo eu já avisei ao juiz e ao chefe de
polícia que, por mim, o cadáver está liberado pra ser entregue ao marido.
— Ah, é? Porque, veja bem, o próprio marido me disse que recebeu um
telefonema da chefatura informando que a cerimônia fúnebre só pode ser
feita na sexta de manhã.
— Alguma merda lá deles.
— Doutor, me desculpe por abusar da sua paciência. Tudo normal no
corpo de Maurizio Di Blasi?
— Em que sentido?
— Bom, como foi que ele morreu?
— Pergunta mais cretina! Uma rajada de metralhadora, quase cortaram o
rapaz em dois, podiam fazer um busto pra botar num pedestal.
— E o pé direito?
O doutor Pasquano entrefechou os olhos, que já eram pequeninos.
— Por que perguntar justamente sobre o pé direito?
— Porque o esquerdo não me parece interessante.
— Bom. Estava machucado, uma torção ou algo assim, ele não podia
calçar o sapato. Mas isso aconteceu alguns dias antes da morte. E o rosto
também estava inchado por uma pancada.
Montalbano teve um sobressalto.
— Bateram nele?
— Não sei. Ou ele levou uma forte porrada na cara ou tinha caído. Mas
não foram os agentes. Essa contusão também é de alguns dias antes.
— E quando foi que ele torceu o pé?
— Mais ou menos na mesma ocasião.
Montalbano levantou-se e estendeu a mão ao doutor.
— Muito obrigado, eu já vou indo. Só uma última coisa. O senhor foi
avisado logo?
— De quê?
— De que eles tinham atirado em Di Blasi.
O doutor Pasquano apertou tanto os olhinhos que parecia ter adormecido
de repente. Não respondeu logo.
— Essas coisas o senhor sonha de noite? Fala com os espíritos? As almas
lhe contam? Não, eles atiraram no rapaz às seis da manhã. Me pediram pra
chegar às dez. Disseram que antes queriam terminar as buscas na casa.
— Uma última pergunta.
— Com tantas últimas perguntas, o senhor vai me obrigar a fazer serão.
— Depois que lhe entregaram o corpo de Di Blasi, alguém da Móvel lhe
pediu permissão para examinar sozinho o cadáver?
O doutor Pasquano se espantou.
— Não. Pra que eles precisariam fazer isso?

Montalbano voltou à Retelibera, a fim de informar Nicolò Zito sobre suas


últimas descobertas. Certamente, pensou, o advogado Guttadauro já tinha ido
embora.
— Por que você voltou?
— Depois te conto, Nicolò. Como foram as coisas com o advogado?
— Fiz o que você mandou. Sugeri que ele procurasse o juiz. Ele
respondeu que ia pensar. Mas acrescentou uma coisa curiosa, que não tinha
nada a ver. Ou pelo menos parecia não ter, com essa gente nunca se sabe. “O
senhor tem sorte, vive no meio de imagens! Hoje em dia é a imagem que
conta, não a palavra.” Foi o que ele disse. O que significa?
— Não sei. Olha, Nicolò, eles têm mesmo uma bomba.
— Ah, meu Deus! Então o que Guttadauro contou é mentira!
— Não. É verdade. Panzacchi é esperto, conseguiu se garantir com muita
habilidade. A Perícia está examinando uma bomba com impressões digitais
de Di Blasi.
— Santa Mãe, que confusão! Panzacchi se protegeu com uma verdadeira
armadura! E eu conto a Tommaseo o quê?
— Tudo, conforme combinamos. Só que não convém se mostrar muito
cético quanto à existência da bomba. Entendeu?

Para ir de Montelusa a Vigàta existia também uma estradinha abandonada da


qual o comissário gostava muito. Ele entrou por ali e, chegado à altura de
uma pontezinha construída sobre uma torrente que havia séculos não era mais
torrente, e sim uma vala cheia de pedras e seixos, parou o carro, desceu e
meteu-se por uma brenha no meio da qual surgia uma gigantesca oliveira
sarracena, daquelas que se contorcem e rastejam pelo chão como serpentes,
antes de se erguerem para o céu. Sentou-se num galho, acendeu um cigarro e
começou a pensar sobre os fatos ocorridos naquela manhã.

— Mimì, entre, feche a porta e sente-se. Preciso de umas informações.


— Diga.
— Se eu sequestro uma arma, sei lá, um revólver, uma metralhadora, o
que faço com ela?
— Geralmente, você entrega a quem estiver mais perto.
— Amanheceu hoje com senso de humor, é?
— Você quer saber as disposições legais? As armas sequestradas são
imediatamente consignadas ao setor competente da chefatura de Montelusa,
onde são arroladas e depois trancadas a chave num pequeno depósito que fica
em frente às instalações da Perícia, no caso específico de Montelusa. Deu pra
esclarecer?
— Sim. Mimì, vou arriscar uma reconstituição. Se eu falar besteira, me
interrompa. Bom: Panzacchi e seus homens vistoriam a casa de campo do
engenheiro Di Blasi. Note que o portão principal está fechado com um
cadeado grande.
— Como é que você sabe?
— Mimì, não se aproveite da permissão que eu lhe dei. Um cadeado não
é besteira. Eu sei e pronto. Mas eles acham que aquilo pode ser um despiste,
que o engenheiro, depois de abastecer o filho com comida, trancou ele lá
dentro pra dar a impressão de que não tem ninguém na casa. Pretende soltar o
filho quando passar o estardalhaço do momento. A certa altura, um dos
homens percebe que Maurizio está indo se enforcar. Eles circundam a gruta,
Maurizio sai com uma coisa na mão, um agente mais nervoso do que os
outros pensa que aquilo é uma arma, atira e mata o rapaz. Quando percebem
que o objeto era simplesmente o pé direito do sapato, que o infeliz não podia
calçar porque estava com o pé machucado...
— Como é que você sabe?
— Mimì, para com isso ou eu não conto o resto. Quando percebem que
era um sapato, compreendem que estão na merda até o pescoço. A brilhante
operação de Ernesto Panzacchi e seus seis canalhas ameaça terminar no
maior fedor. Pensa pra lá, pensa pra cá, a única saída é sustentar que
Maurizio realmente estava armado. Tudo bem. Mas com quê? E, nesta altura,
o diretor da Móvel tem uma bela ideia: uma bomba manual.
— Por que não uma pistola, que é mais fácil?
— Você não está à altura de Panzacchi, Mimì, conforme-se. O diretor da
Móvel sabe que o engenheiro Di Blasi não tem porte de arma nem registrou a
posse de nenhuma arma. Mas uma lembrança de guerra, de tanto que uma
pessoa vê aquilo na sua frente todo dia, não é mais considerada uma arma.
Ou então foi guardada no sótão e esquecida.
— Posso falar? Nos anos 40 o engenheiro Di Blasi podia ter uns cinco
anos, e fazia a guerra com pistola de rolha.
— E o pai dele, Mimì? O tio? O primo? O avô? O bisavô? O...
— Tá bom, tá bom.
— O problema é onde achar uma bomba manual que seja sobra de guerra.
— No depósito da chefatura — concluiu calmamente Mimì Augello.
— Certíssimo. E isso leva tempo, porque o doutor Pasquano só foi
solicitado para quatro horas depois que Maurizio morreu.
— Como é que você sabe? Tá bom, desculpe.
— Você conhece o responsável pelo depósito?
— Sim. E você também: Nenè Lofàro. Ele trabalhou aqui conosco
durante um certo tempo.
— Lofàro? Se bem me lembro, não é uma pessoa a quem você possa
dizer: me dá a chave que eu preciso pegar uma bomba.
— Precisamos ver como foram as coisas.
— Vá ver você, em Montelusa. Eu não posso ir, estão de olho em mim.
— Certo. Ah, Salvo, posso tirar folga amanhã?
— Tá dando em cima de alguma puta?
— Não é uma puta, é uma amiga.
— Mas você não pode estar com ela à noite, depois que sair daqui?
— Ela vai embora amanhã à tarde.
— De fora, é? Tá bem, boa sorte. Mas antes você precisa destrinchar essa
história da bomba.
— Tranquilo. Hoje, depois do almoço, eu vou à chefatura.

O comissário sentia vontade de ficar um pouquinho com Anna, mas, passada


a ponte, seguiu direto para casa.
Na caixa de correspondência encontrou um envelope grande, o carteiro
precisara dobrá-lo para fazê-lo entrar. Não havia indicação de remetente.
Com fome, Montalbano abriu a geladeira: polvinhos alla luciana[11] e um
molho muito simples de tomate fresco. Via-se que Adelina não tinha tido
tempo ou vontade de caprichar. Enquanto esperava que a água dos spaghetti
fervesse, ele abriu o envelope. Dentro havia um catálogo colorido da
Eroservice: vídeos pornô para todos os gostos. Montalbano rasgou-o e jogou-
o na lixeira. Depois de comer, foi ao banheiro. Mas entrou e saiu correndo,
calça arriada, parecia estar numa comédia de Ridolini[12]. Como era que não
tinha pensado nisso antes? Precisara que lhe chegasse o catálogo de vídeos
pornô? Achou o número no catálogo de Montelusa.
— Alô, doutor Guttadauro? Aqui é o comissário Montalbano. O senhor
estava almoçando? É? Queira desculpar.
— Diga, comissário.
— Pois é, eu estava jogando conversa fora com um amigo, sabe como é, e
ele me disse que o senhor tem uma bela coleção de vídeos que o senhor
mesmo filma quando vai caçar.
Pausa demoradíssima. O cérebro do advogado devia estar trabalhando em
alta rotação.
— É verdade.
— Estaria disposto a me mostrar algum?
— Pois é, eu sou muito ciumento com o que é meu. Mas podemos chegar
a um acordo.
— Era isso que eu esperava ouvir.
Despediram-se como grandes amigos. Estava claro como tinham sido as
coisas. Os comparsas de Guttadauro, pois certamente havia mais de um,
assistem casualmente à morte de Maurizio. Depois, quando veem um agente
sair de carro às pressas, percebem que Panzacchi arranjou um esquema para
livrar a cara e a carreira. Um deles, então, corre a buscar uma câmera. E volta
a tempo de gravar a cena dos agentes estampando na bomba as impressões
digitais do morto. Agora, os comparsas de Guttadauro também possuem uma
bomba, embora de tipo diferente, e o fazem entrar em cena. Uma situação
feia e perigosa, da qual era absolutamente necessário se livrar.

— Engenheiro Di Blasi? Aqui é o comissário Montalbano. Preciso falar


urgente com o senhor.
— Por quê?
— Porque tenho muitas dúvidas sobre a culpa do seu filho.
— Mas agora ele já se foi.
— Sim, o senhor tem razão. Mas trata-se da memória dele.
— Faça como achar melhor.
Resignado, o engenheiro parecia um morto que respirava e falava.
— Daqui a meia hora, no máximo, estarei aí.

O comissário se surpreendeu ao ver a porta ser aberta por Anna.


— Fale baixo. Finalmente, a senhora está descansando.
— O que é que você está fazendo aqui?
— Foi você quem me envolveu. Depois, não tive mais coragem de deixar
a pobre sozinha.
— Como, sozinha? Não chamaram nem uma enfermeira?
— Chamaram, claro. Só que ela quer é a mim. Vai, entra.
A sala estava ainda mais no escuro do que quando o comissário fora
recebido pela senhora. Ao ver Aurelio Di Blasi largado de qualquer jeito
numa poltrona, Montalbano sentiu um aperto no coração. O engenheiro
mantinha os olhos fechados, mas pressentiu a presença do comissário, porque
falou.
— O que é que o senhor quer? — perguntou, com aquela terrível voz
morta.
Montalbano explicou o que queria. Falou sem parar durante meia hora e,
aos poucos, foi vendo o engenheiro endireitar-se, abrir os olhos, encará-lo e
escutar com interesse. Então, compreendeu que estava vencendo.
— O pessoal da Móvel está com as chaves da casa de Raffadali?
— Sim — disse o engenheiro já com outra voz, mais forte. — Mas eu
tinha mandado fazer outro jogo. Maurizio guardava essas cópias na gaveta da
mesa de cabeceira. Vou buscar.
Não conseguiu levantar-se da poltrona, e o comissário teve de ajudá-lo.

Dali, disparou para o comissariado.


— Fazio, Gallo, Giallombardo, vamos comigo.
— Pegamos a viatura?
— Não, vamos no meu carro. Mimì Augello já voltou?
Mimì não tinha voltado. Montalbano partiu voando. Fazio, que nunca o
vira correr tanto, ficou preocupado: não confiava muito em seu superior
enquanto motorista.
— Quer que eu dirija? — perguntou Gallo, que, evidentemente, sentia a
mesma preocupação.
— Não me encham o saco. Temos pouco tempo.
De Vigàta a Raffadali, levou uns vinte minutos. Saiu da cidadezinha e
pegou uma estrada rural. O engenheiro havia explicado claramente como
chegar à casa. Todos a reconheceram, de tanto vê-la e revê-la na televisão.
— Estou com as chaves. Vamos entrar e procurar minuciosamente —
disse Montalbano. — Ainda temos algumas horas de luz natural, precisamos
aproveitar. Temos que achar esse troço antes de escurecer, porque não
podemos acender as luzes, alguém lá fora pode ver. Fui claro?
— Claríssimo — respondeu Fazio —, mas o que é que a gente veio
procurar?
O comissário disse, e acrescentou:
— Espero estar errado, sinceramente.
— Mas nós vamos deixar impressões digitais, não trouxemos luvas —
inquietou-se Giallombardo.
— Que se fodam eles.

Infelizmente, no entanto, Montalbano não estava errado. Depois de uma hora


de buscas, foi chamado pela voz triunfante de Gallo, que examinava a
cozinha. Correram todos. Gallo estava descendo de uma cadeira, com um
pequeno cofre de couro nas mãos.
— Estava no alto deste aparador.
O comissário abriu o cofre: dentro, havia uma bomba manual, idêntica à
que ele vira na Perícia, e uma pistola que devia ser das que um dia tinham
sido usadas pelos oficiais alemães.

— De onde vocês estão vindo? O que é que tem nesse pequeno cofre? —
perguntou Mimì, que era curioso como um gato.
— E você, o que me conta?
— Lofàro está doente e tirou um mês de licença. Há quinze dias foi
substituído por um tal de Culicchia.
— Conheço bem — fez Giallombardo.
— Que tipo de gente é?
— Desses que não gostam de ficar sentados na frente de uma mesa,
fazendo registros. Daria a alma pra voltar a ser operativo, quer fazer carreira.
— Ele já deu a alma — disse Montalbano.
— Posso saber o que tem aí dentro? — insistiu Mimì, cada vez mais
curioso.
— Confeitos, Mimì. Agora, escutem. A que horas Culicchia larga o
serviço? Deve ser às oito.
— Isto mesmo — confirmou Fazio.
— Quando Culicchia sair da chefatura, você, Fazio, e você,
Giallombardo, convençam ele a entrar no meu carro. Não expliquem nada.
Assim que ele se sentar com vocês, mostrem o cofre. Ele nunca viu isso daí, e
portanto vai perguntar o que significa esse teatro.
— Mas afinal se pode saber o que tem dentro? — perguntou mais uma
vez Mimì Augello, mas ninguém respondeu.
— Por que ele nunca viu?
A pergunta era de Gallo. O comissário olhou-o de banda.
— Será que vocês não raciocinam? Maurizio Di Blasi era um retardado e
uma pessoa de bem, não devia ter amigos que pudessem lhe fornecer armas
que ainda funcionassem. O único lugar onde ele poderia ter encontrado a
bomba manual é a casa de campo da família. Mas era necessária uma prova
de que ele a teria apanhado na casa. Então Panzacchi, que é muito vivo,
ordena ao seu agente que vá a Montelusa e recupere duas bombas e uma
pistola do tempo da guerra. Uma, ele diz que estava na mão de Maurizio. A
outra, junto com a pistola, ele leva consigo, arruma um cofrinho, volta
discretamente à casa de Raffadali e esconde tudo num lugar onde qualquer
pessoa iria logo procurar.
— Então é isso que tem aí dentro! — exclamou Mimì, dando um tapa na
testa.
— Em resumo, aquele corno criou uma situação extremamente plausível.
E, se alguém perguntar por que as outras armas não foram encontradas
durante a primeira busca, ele pode alegar que foi interrompido porque na
mesma hora Maurizio estava sendo descoberto, enquanto se escondia na
gruta.
— Que filho da puta! — indignou-se Fazio. — Não só mata o pobre do
rapaz, porque, embora não tenha dado os tiros, ele é o chefe e portanto, o
responsável, como ainda por cima tenta acabar com um pobre velho, pra se
safar!
— Bem, voltando ao que vocês devem fazer. Cozinhem esse Culicchia
em fogo brando. Digam que o cofrinho foi achado na casa de Raffadali.
Depois mostrem a bomba e a pistola. Em seguida, perguntem, assim como se
fosse só por curiosidade, se todas as armas sequestradas estão arroladas. E,
pra terminar, mandem ele sair do carro, mas fiquem com as armas e o cofre.
— Só isso?
— Só isso, Fazio. A iniciativa seguinte é com ele.
Capítulo XIII

— Doutor? Galluzzo no telefone. Quer falar pessoalmente em pessoa com o


senhor. O que é que eu faço, doutor? Passo ele?
Era indubitavelmente Catarella, que estava fazendo o turno vespertino.
Mas por que o chamara duas vezes de doutor, e não dotor?
— Pode passar. Fala, Galluzzo.
— Comissário, depois que a Televigàta botou no ar as fotos da senhora
Licalzi e de Maurizio, juntas como o senhor pediu, ligou um cara. Ele garante
que viu dona Michela com um homem, por volta das onze da noite, mas o
homem não era Maurizio Di Blasi. Diz que os dois pararam no bar dele, que
fica antes de chegar a Montelusa.
— Ele tem certeza de que isso foi na quarta à noite?
— Absoluta. Explicou que na segunda e na terça não foi ao bar, porque
estava fora, e na quinta eles não abrem. Deixou nome e endereço. O que é
que eu faço? Volto?
— Não, fique aí até depois do jornal das oito. Pode ser que mais alguma
pessoa telefone.

A porta escancarou-se e bateu contra a parede, assustando o comissário.


— Dá licença? — perguntou Catarella, sorridente.
Catarella tinha com as portas uma relação problemática, quanto a isso não
havia dúvida. Montalbano, porém, diante daquela cara de inocente, conteve a
explosão de raiva.
— Entra, o que foi?
— Acabaram de trazer este pacotinho e esta carta para o senhor
pessoalmente em pessoa.
— Como vai o curso de formática?
— Bem, doutor. Mas se diz é informática, doutor.
Montalbano olhou-o, intrigado, enquanto ele saía. Estavam corrompendo
Catarella.
Dentro do envelope havia poucas linhas, escritas à máquina e não
assinadas:

“ESTA É SÓ A PARTE FINAL. ESPERO QUE SEJA DO SEU


AGRADO. SE A GRAVAÇÃO COMPLETA LHE INTERESSAR, ME
LIGUE QUANDO QUISER.”

Montalbano apalpou o pacote. Uma fita de vídeo.

Como seu carro estava com Fazio e Giallombardo, ele chamou Gallo para
saírem na viatura.
— Aonde a gente vai?
— À redação da Retelibera, em Montelusa. E não corra, veja lá, não
vamos repetir a proeza da última quinta-feira.
Gallo fechou a cara.
— Hum. Só porque me aconteceu uma vez, o senhor já entra no carro se
lastimando!
Fizeram o caminho em silêncio.
— É pra esperar? — perguntou Gallo, ao chegarem.
— É. Não vou demorar.
Nicolò Zito recebeu-o em sua sala. Estava nervoso.
— Como foram as coisas com Tommaseo?
— Como é que você queria que fossem? Ele me deu uma solene
espinafração, uma bronca de arrancar o couro. Queria os nomes das
testemunhas.
— E você, o que fez?
— Invoquei a Quinta Emenda.
— Ora, não seja cretino, ela não existe na Itália.
— Sorte nossa! Porque, nos Estados Unidos, quem apelou pra Quinta
Emenda se fodeu do mesmo jeito.
— O que foi que ele fez quando ouviu o nome de Guttadauro? Deve ter
tido alguma reação.
— Ficou enroladíssimo, parecia preocupado. De qualquer maneira, me
deu uma notificação formal. Da próxima vez não tem conversa, ele me bota
na cadeia.
— Era isso que eu queria.
— Que ele me mandasse pra cadeia?
— Não, idiota. Que ele soubesse que o advogado Guttadauro e sua turma
estão metidos nisso.
— O que será que Tommaseo vai fazer, em sua opinião?
— Levar o assunto ao chefe de polícia. Ele deve ter percebido que
também foi apanhado na rede e vai tentar cair fora. Escuta, Nicolò, eu preciso
ver isto aqui.
Nicolò pegou a fita e botou-a no videocassete. Apareceu uma panorâmica
que mostrava alguns homens no campo, os rostos não dava para distinguir.
Duas pessoas de guarda-pó branco carregavam um corpo numa padiola. Por
cima da imagem, na parte inferior, uma legenda inequívoca: MONDAY
14.04.97. Quem operava a câmera deu um zoom, e agora viam-se Panzacchi
e o doutor Pasquano conversando. Não se escutava o som. Os dois trocaram
um aperto de mãos e o doutor saiu de cena. A imagem se alargou de modo a
abranger os seis agentes da Móvel, que rodeavam seu superior. Panzacchi
lhes disse alguma coisa, e todos saíram de cena. Fim do programa.
— Caralho! — disse Zito, a meia voz.
— Me faça uma cópia.
— Aqui não tenho equipamento, tenho que ir pra outra sala.
— Sim, mas cuidado: não deixe ninguém ver.
Montalbano pegou na gaveta de Nicolò uma folha de papel e um
envelope não timbrados e sentou-se à máquina de escrever.

“VI A AMOSTRA. NÃO INTERESSA. FAÇA COM ISSO O QUE


QUISER. MAS ACONSELHO A DESTRUIÇÃO, OU UM USO
MUITO PRIVADO.”

Não assinou nem escreveu o endereço, que sabia pelo catálogo telefônico.
Zito voltou com duas fitas.
— Esta é a original e esta é a cópia. Ficou mais ou menos, você sabe,
fazer cópia da cópia...
— Não estou concorrendo ao festival de Veneza. Me dá um envelope
grande, reforçado.
O comissário guardou consigo a cópia e pôs a carta e a fita original no
envelope. Nem mesmo neste escreveu o endereço.
Gallo, dentro da viatura, lia La Gazzetta dello Sport.
— Sabe onde é a rua Xerri? No número 18 fica o escritório do advogado
Guttadauro. Deixe lá este envelope e volte pra me apanhar.
Já passava das nove quando Fazio e Giallombardo reapareceram no
comissariado.
— Ah, doutor! Foi uma farsa e também uma tragédia! — lamentou-se
Fazio.
— O que foi que ele disse?
— Primeiro falava, e depois não — contou Giallombardo.
— Quando a gente mostrou o cofrinho, ele não entendeu. Dizia: mas o
que é isso, uma brincadeira? É uma brincadeira? Mas quando Giallombardo
informou que aquilo tinha sido achado em Raffadali, ele começou a mudar de
cara, foi ficando cada vez mais branco.
— Aí, quando viu as armas — interveio Giallombardo, que também
queria dizer seu texto —, pirou de vez. Quase teve um troço dentro do carro,
deu até medo na gente.
— Tremia, parecia com febre terçã. Depois deu um pulo, passou por cima
de mim e saiu correndo — disse Fazio.
— Corria que nem uma lebre ferida, uma perna aqui outra lá concluiu
Giallombardo.
— E agora? — perguntou Fazio.
— Demos o tiro, agora vamos esperar o eco. Obrigado por tudo.
— Nosso dever — disse Fazio, seco. E acrescentou: — Onde a gente bota
o cofrinho? No cofrão?
— Sim — respondeu Montalbano.
Na sala de Fazio havia um cofre bastante grande, para guardar não apenas
documentos, mas também drogas e armas sequestradas, antes de serem
levadas para Montelusa.

O cansaço pegou-o à traição, os quarenta e seis já o esperavam ali na esquina.


Ele avisou a Catarella que iria para casa, pedindo que o outro lhe passasse
eventuais telefonemas. Depois da ponte, parou, desceu e aproximou-se do
palacete de Anna. E se alguém estivesse com ela? Mesmo assim, tocou.
Anna veio até o portão.
— Entra, entra.
— Tem alguém aí?
— Ninguém.
A moça instalou-o no sofá diante da televisão, saiu da sala e voltou com
dois copos: um de uísque para o comissário e um de vinho branco para ela.
— Já jantou?
— Não — disse Anna.
— Você não come nunca?
— Já comi no almoço.
Anna sentou-se ao lado dele.
— Não chegue muito perto, sinto que estou fedendo — disse Montalbano.
— Foi uma tarde cansativa?
— Bastante.
Anna esticou um braço no encosto, Montalbano deitou a cabeça para trás
e apoiou a nuca sobre a pele dela. Fechou os olhos. Por sorte, tinha deixado o
copo na mesinha, porque de repente caiu no sono, como se o uísque
contivesse ópio. Acordou com um sobressalto dali a meia hora. Passou os
olhos ao redor, intrigado, compreendeu e sentiu vergonha.
— Peço desculpas.
— Ainda bem que você acordou, eu já estava com formiguinha no braço.
O comissário levantou-se.
— Preciso ir.
— Eu acompanho você.
Na porta, com naturalidade, Anna pousou levemente os lábios sobre os de
Montalbano.
— Descanse bem, Salvo.

Tomou uma ducha demoradíssima, vestiu roupa de baixo limpa e ligou para
Livia. O telefone tocou uma eternidade, depois a comunicação se interrompeu
automaticamente. Mas o que estaria fazendo aquela danada? Macerando-se
na dor pelo que estava acontecendo com François? Era muito tarde para
telefonar à amiga dela e pedir notícias. Montalbano sentou-se na varanda e
dali a pouco chegou a uma decisão: se não achasse Livia nas próximas
quarenta e oito horas, mandaria tudo e todos à merda, pegaria um avião para
Gênova e ficaria com ela pelo menos por um dia.

A campainha do telefone obrigou-o a correr da varanda: tinha certeza de que


era Livia, finalmente.
— Alô? Falo com o comissário Montalbano?
Já ouvira essa voz, mas não lembrava a quem ela pertencia.
— Sim. Quem é?
— Ernesto Panzacchi.
O eco estava chegando.
— Diga.
Tratavam-se por você ou por senhor? Àquela altura, porém, isso não tinha
importância.
— Queria falar com você. Pessoalmente. Vou até aí?
Montalbano não tinha a menor vontade de ver Panzacchi ali em sua casa.
— Não, vou eu. Você mora onde?
— No Hotel Pirandello.
— Estou indo.

O quarto de Panzacchi no hotel era grande como um salão. Além da cama de


casal e de um guarda-roupa, havia duas poltronas, uma mesa grande, com
televisão e videocassete, e o frigobar.
— Minha família ainda não pôde se transferir.
“Ainda bem, assim evita o transtorno de se transferir e se retransferir”,
pensou o comissário.
— Licença, preciso fazer xixi.
— Olha que no banheiro não tem ninguém.
— Mas eu realmente preciso fazer xixi.
Numa serpente como Panzacchi era melhor não confiar. Montalbano
voltou do banheiro e Panzacchi lhe ofereceu uma poltrona. O diretor da
Móvel era um homem atarracado mas elegante, olhos muito claros, bigodes à
tártara.
— Sirvo alguma coisa?
— Nada.
— Vamos logo ao assunto? — perguntou Panzacchi.
— Como queira.
— Bom, esta noite veio me procurar um agente, um tal de Culicchia, não
sei se você conhece.
— Pessoalmente, não. De nome, sim.
— Estava literalmente apavorado. Parece que foi ameaçado por dois
homens do seu comissariado.
— Ele falou isso?
— Acho que entendi assim.
— Entendeu mal.
— Então me diga você.
— Escuta aqui, é tarde e eu estou cansado. Fui à casa de Di Blasi em
Raffadali, procurei e levei pouco tempo para achar um cofrinho com uma
bomba manual e uma pistola dentro. Estão no cofre do comissariado.
— Mas o que é isso? Você não tinha autorização! — fez Panzacchi,
levantando-se.
— Você está no caminho errado — respondeu Montalbano, calmo.
— Isso é ocultação de provas!
— Eu já disse que você está no caminho errado. Se é pra falar de
autorizações, de hierarquia, eu me levanto, vou embora e te deixo na merda.
Porque na merda você já está.
Panzacchi hesitou um instante, mediu os prós e os contras e voltou a
sentar-se. Não havia dúvida: tinha perdido o primeiro round.
— E devia inclusive me agradecer — continuou o comissário.
— Pelo quê?
— Por eu ter sumido com o cofrinho de dentro da casa. Ia servir pra
demonstrar que Maurizio Di Blasi tirou a bomba dali, não é? Só que, nele, o
pessoal da Perícia não iria encontrar as impressões de Di Blasi, nem por um
cacete. E como você explicaria isso? Dizendo que Maurizio estava de luvas?
Todo mundo ia cair na gargalhada.
Panzacchi não respondeu nada, os olhos claríssimos fixos nos do
comissário.
— Posso continuar? A culpa inicial, ou melhor, não, eu tou cagando pras
suas culpas, o erro inicial você cometeu quando saiu à caça de Maurizio Di
Blasi sem ter certeza de que ele era o assassino. Mas você queria fazer a
“brilhante” operação a qualquer custo. Depois aconteceu o que aconteceu, e
você certamente suspirou de alívio. A pretexto de livrar a cara de um agente
seu, que confundiu um sapato com uma arma, você armou a história da
bomba e, pra tornar essa história mais convincente, foi esconder o cofrinho
na casa dos Di Blasi.
— Papo furado. Se você contar isso ao chefe de polícia, pode ter certeza
de que ele não vai acreditar. Você está espalhando essa conversa pra sujar a
minha barra, pra se vingar porque a investigação foi tirada de você e passada
pra mim.
— E com Culicchia, como é que você faz?
— Amanhã de manhã ele me procura na Móvel. Pago o preço que ele
pediu.
— E se eu levar as armas ao juiz Tommaseo?
— Aí Culicchia diz que foi você quem pediu a chave do depósito, um dia
desses. Está pronto pra jurar isso. Entenda: ele precisa se defender. E eu
sugeri como fazer.
— Então eu perdi?
— É o que parece.
— Esse vídeo funciona?
— Sim.
— Dá pra rodar esta fita?
Montalbano puxou-a do bolso e estendeu-a ao outro. Panzacchi obedeceu
sem fazer perguntas. As imagens começaram a aparecer. Ele viu tudo até o
fim, rebobinou a fita, tirou-a do aparelho e devolveu-a a Montalbano. Sentou-
se e acendeu um meio toscano.
— Esta é só a parte final. A gravação inteira está comigo, no mesmo
cofre das armas — mentiu Montalbano.
— Como foi que você fez?
— Quem gravou não fui eu. Nas vizinhanças, tinha duas pessoas que
viram e documentaram. Amigos do advogado Guttadauro, que você conhece
bem.
— Um imprevisto dos brabos.
— Bem mais brabo do que você pensa. Você tá acuado, eu de um lado e
eles do outro.
— As razões deles eu entendo muito bem. Mas, me permita, as suas não
me parecem tão claras, a não ser que você esteja sendo impelido por
sentimentos de vingança.
— Então tente você me entender: eu não posso permitir, simplesmente
não posso, que o diretor da Móvel de Montelusa se torne refém da máfia,
objeto de chantagem.
— Veja bem, Montalbano, eu realmente quis proteger o bom nome dos
meus homens. Já pensou o que aconteceria se a imprensa tivesse descoberto
que nós matamos um homem que estava se defendendo com um sapato?
— E por isso você botou no meio o engenheiro Di Blasi, que não tinha
nada a ver com a história?
— Com a história, não, mas com o meu plano, sim. E, quanto às possíveis
chantagens, eu sei me defender.
— Acredito. Você resiste, já deu pra perceber, mas quanto resistirão
Culicchia e os outros seis, que vão ser apertados todo dia? Basta que um
deles entregue os pontos e sua armação é descoberta. Vou levantar outra
hipótese, muito provável: quando se cansarem de suas recusas, aqueles caras
são capazes de exibir essas imagens publicamente ou de mandar a fita pra
uma emissora privada, elas adoram dar furo, mesmo com risco de cadeia. E,
neste último caso, dança até o chefe de polícia.
— O que é que eu faço?
Por um instante, Montalbano sentiu admiração por ele: Panzacchi era um
jogador impiedoso e sem escrúpulos, mas, quando perdia, sabia perder.
— Você tem que se antecipar, descarregar a arma que eles têm na mão.
E, sem conseguir evitar uma maldade da qual se arrependeu:
— Isto aqui é bem mais que um sapato. Fale ainda esta noite com o chefe
de polícia. Achem juntos uma solução. Mas, escute bem: se até o meio-dia de
amanhã vocês não se mexerem, me mexo eu, e do meu jeito.
Levantou-se, abriu a porta e saiu.

“Me mexo eu, e do meu jeito”, bela frase, bastante ameaçadora. Mas,
concretamente, o que significava? E se o diretor da Móvel ganhasse o apoio
do chefe de polícia e este, por sua vez, conseguisse amansar o juiz
Tommaseo? Ele, Montalbano, estaria fodido e mal pago. Mas seria possível
que em Montelusa todos tivessem ficado desonestos de repente? Uma coisa é
a antipatia que uma pessoa pode provocar, outra é o caráter, a integridade
dessa pessoa.
Chegou a Marinella cheio de dúvidas e de perguntas. Teria agido bem, ao
falar daquele jeito com Panzacchi? O chefe de polícia se convenceria de que
ele não estava sendo levado pela vontade de ir à forra? Discou o número de
Livia. Como das outras vezes, ninguém atendeu. Deitou-se, mas levou umas
duas horas para conseguir fechar os olhos.
Capítulo XIV

Entrou no gabinete tão obviamente nervoso que os seus homens, pelo sim,
pelo não, acharam melhor se manter à distância. “A cama é uma grande
cousa, se não se dorme se repousa”, dizia o provérbio, mas um provérbio
equivocado, porque o comissário, na cama, não apenas havia dormido aos
pedacinhos como também se levantara como se tivesse corrido uma
maratona.
Somente Fazio, que de todos era quem tinha mais liberdade com ele,
arriscou-se a fazer uma pergunta:
— Alguma novidade?
— Só vou saber dizer depois do meio-dia.
Galluzzo apresentou-se.
— Comissário, ontem de noite eu procurei o senhor por terra e mar.
— E no ar, você olhou?
Galluzzo compreendeu que não era o caso de preâmbulos.
— Comissário, depois da transmissão do jornal das oito, ligou um cara.
Disse que na quarta-feira, por volta das oito, oito e quinze, no máximo, a
senhora Licalzi parou no posto de gasolina dele e mandou encher o tanque.
Ele deixou nome e endereço.
— Tudo bem, mais tarde a gente dá um pulinho lá.
Estava tenso, não conseguia nem examinar algum papel, consultava o
relógio a cada segundo. E se, depois do meio-dia, ninguém da chefatura desse
sinal de vida?
Às onze e meia, tocou o telefone.
— Doutor — disse Grasso —, é o jornalista Zito.
— Vou atender.
Na hora, não entendeu o que estava acontecendo.
— Tchan-tchan-tchan-tchan, tchan-tchan-tchan-tchan — fazia Zito.
— Nicolò?
— Fratelli d’Italia, l’Italia s’è desta...
Zito entoava solenemente o hino nacional.
— Ora, Nicolò, eu não tou pra brincadeiras.
— E quem está brincando? Vou ler pra você um comunicado que acabou
de chegar. Ajeite bem o rabo na poltrona. Pra seu conhecimento, ele foi
mandado para nós, para o pessoal da Televigàta e cinco correspondentes de
jornais. Vá ouvindo. “CHEFATURA DE MONTELUSA. POR MOTIVOS
ESTRITAMENTE PESSOAIS, O DOUTOR ERNESTO PANZACCHI
SOLICITOU SER AFASTADO DO CARGO DE DIRETOR DO
GRUPAMENTO MÓVEL E POSTO EM DISPONIBILIDADE. SEU
PEDIDO FOI ACEITO. O DOUTOR ANSELMO IRRERA ASSUMIRÁ
TEMPORARIAMENTE O CARGO DEIXADO VAGO PELO DOUTOR
PANZACCHI. CONSIDERANDO QUE, AO LONGO DAS
INVESTIGAÇÕES SOBRE O CRIME LICALZI, SURGIRAM NOVOS E
INESPERADOS DESDOBRAMENTOS, O DOUTOR SALVO
MONTALBANO, DO COMISSARIADO DE VIGÀTA, DARÁ
PROSSEGUIMENTO AO INQUÉRITO. ASSINADO: BONETTI-
ALDERIGHI, CHEFE DE POLÍCIA DE MONTELUSA.” Ganhamos,
Salvo!
Montalbano agradeceu ao amigo e desligou. Não estava contente: a
tensão tinha desaparecido, claro, a resposta esperada havia chegado, mas ele
sentia uma espécie de mal-estar, um intenso desagrado. Sinceramente,
maldisse Panzacchi, não tanto pelo que este tinha feito, mas por havê-lo
obrigado a agir de um modo que agora lhe pesava.
A porta se escancarou e todos irromperam.
— Doutor! — disse Galluzzo. — O meu cunhado acabou de me ligar da
Televigàta. Chegou um comunicado...
— Já sei, já conheço.
— Então a gente vai comprar uma garrafa de espumante e...
Sob o olhar severo de Montalbano, Giallombardo gelou, e não conseguiu
terminar a frase. Saíram todos lentamente, resmungando baixinho. Que
temperamento esquisito o deste comissário!

Sem coragem de mostrar a cara a Salvo Montalbano, o juiz Tommaseo,


debruçado sobre a escrivaninha, fingia examinar papéis importantes. Naquele
momento, pensou o comissário, o juiz talvez desejasse ter uma barba tão
cerrada que lhe cobrisse inteiramente o rosto, até fazê-lo parecer um
abominável homem das neves, só que do yeti ele não tinha o porte.
— O senhor precisa entender, comissário. Quanto a retirar a acusação
relativa à posse de armas de guerra, não há problema, eu convoquei o
advogado do engenheiro Di Blasi. Mas não posso eliminar tão facilmente a
acusação de cumplicidade. Até prova em contrário, Maurizio Di Blasi é réu
confesso do assassinato de Michela Licalzi. As minhas prerrogativas não
permitem de maneira alguma que...
— Bom dia — cortou Montalbano, levantando-se e saindo.
O juiz Tommaseo alcançou-o no corredor.
— Comissário, espere! Eu gostaria de esclarecer...
— Não tem nada pra esclarecer, senhor juiz. Falou com o chefe de
polícia?
— Sim, bastante, nós nos vimos às oito da manhã de hoje.
— Então, sem dúvida o senhor tem conhecimento de alguns detalhes que
lhe parecem secundários. Por exemplo, que o inquérito sobre o crime Licalzi
foi feito nas coxas, que o jovem Di Blasi era inocente com noventa e nove
por cento de probabilidade, que ele foi morto como um porco por equívoco,
que Panzacchi acobertou tudo. O senhor não tem saída: não pode eximir o
engenheiro da acusação de posse de armas e, ao mesmo tempo, não proceder
contra Panzacchi, que botou essas armas na casa dele.
— Estou examinando a posição do doutor Panzacchi.
— Muito bem, pode examinar. Mas escolhendo a balança certa, entre as
muitas que o senhor tem aqui no gabinete.
Tommaseo ia reagindo, mas pensou melhor e não disse nada.
— Uma curiosidade — continuou Montalbano. — Por que os despojos da
senhora Licalzi ainda não foram entregues ao marido?
Cada vez mais embaraçado, o juiz fechou em punho a mão esquerda e
meteu dentro o indicador da direita.
— Ah, isto foi... sim, foi uma ideia do doutor Panzacchi. Ele me fez notar
que a opinião pública... Quer dizer, primeiro a descoberta do cadáver, depois
a morte do rapaz Di Blasi, depois o funeral da senhora Licalzi, depois o do
jovem Maurizio... Compreende?
— Não.
— Era melhor dar um intervalo... Evitar muita pressão sobre as pessoas,
toda hora uma multidão...
Ele continuou falando, mas o comissário já estava no fim do corredor.
Já eram duas horas quando Montalbano saiu do Palácio de Justiça de
Montelusa. Em vez de retornar a Vigàta, ele pegou a Enna-Palermo. Galluzzo
tinha lhe explicado bem onde ficavam tanto o posto de gasolina quanto o bar-
restaurante, os dois lugares onde Michela Licalzi tinha sido vista. O posto, a
uns três quilômetros de Montelusa, estava fechado. O comissário soltou uns
palavrões e prosseguiu por mais dois quilômetros, até ver à sua esquerda uma
placa que dizia: “BAR-TRATTORIA DO CAMINHONEIRO”. Havia um
tráfego intenso. Ele esperou pacientemente que alguém se decidisse a deixá-
lo passar, mas, já que ninguém dava a mínima, cortou a estrada como pôde,
provocando um pavoroso estrépito de freadas, buzinadas, xingamentos,
insultos, e parou no estacionamento do bar.
As mesas estavam cheias de gente, e ele se aproximou do caixa.
— Gostaria de falar com Gerlando Agrò.
— Sou eu. E o senhor, quem é?
— Comissário Montalbano. O senhor telefonou à Televigàta pra dizer
que...
— Puta que o pariu! E tinha que vir agora! Não tá vendo o trabalho que
eu tenho pela frente?
Montalbano teve uma ideia quê lhe pareceu genial.
— Como é que se come aqui?
— Bom, esse pessoal sentado aí é tudo caminhoneiro. Já viu
caminhoneiro errar o golpe?
No fim da refeição (a ideia não tinha sido genial, mas só boa, a comida se
mantinha numa férrea normalidade, sem picos de fantasia), depois do café e
do licor, o caixa se fez substituir por um rapazinho e se aproximou da mesa.
— Agora podemos. Posso sentar?
— Claro.
Gerlando Agrò logo mudou de ideia.
— Talvez seja melhor o senhor vir comigo.
Os dois se afastaram um pouco.
— Bom. Na quarta-feira, ali pelas onze e meia da noite, eu estava aqui
fora fumando um cigarrinho. E vi chegar o tal Twingo, que vinha pela Enna-
Palermo.
— Tem certeza?
— Boto a mão no fogo. O carro parou bem na minha frente e a dona que
estava ao volante desceu.
— Pode botar a outra mão no fogo como era a mesma que o senhor viu na
televisão?
— Comissário, com uma mulher como aquela, coitadinha, não dá pra
gente se enganar.
— Continue.
— O homem ficou dentro do carro.
— Como sabe que era um homem?
— Os faróis de um caminhão iluminaram ele. Me espantei, geralmente é
o homem quem desce, e a mulher fica esperando. Bem, ela mandou fazer dois
sanduíches de salame e também pegou uma garrafa de água mineral. No
caixa estava o meu filho Tanino, aquele que está agora lá. A dona pagou e
desceu estes três degrauzinhos aqui. Mas, no último, tropeçou e caiu. Os
sanduíches voaram da mão dela. Eu desci pra ajudar e dei de cara com o
homem, que a esta altura também tinha saído do carro. “Nada, nada”, ela
disse. Ele voltou pro carro, ela mandou fazer outros dois sanduíches, pagou e
os dois partiram na direção de Montelusa.
— O senhor foi muito claro. Portanto, tem condições de sustentar que o
homem visto na televisão não era o mesmo que estava no carro com aquela
senhora.
— Sem dúvida. Duas pessoas completamente diferentes!
— De onde ela tirou o dinheiro? De uma mochila?
— Não, comissário. Não vi mochila nenhuma. Ela estava com uma
carteira na mão.

Depois da tensão daquela manhã e do almoço, o cansaço o atacou. Ele


decidiu ir a Marinella para uma horinha de sono. Passada a ponte, porém, não
soube resistir. Parou, desceu e tocou o interfone. Ninguém atendeu.
Provavelmente, Anna tinha ido ver a senhora Di Blasi. E talvez fosse melhor
assim.
De casa, ligou para o comissariado.
— Às cinco, quero a viatura aqui, com Galluzzo.
Discou o número de Livia. O telefone tocou, tocou, e nada. Então, ele
ligou para a amiga dela, de Gênova.
— Aqui é Montalbano. Estou começando a me preocupar seriamente, faz
alguns dias que Livia...
— Não se preocupe. Ela me telefonou agora há pouco pra dizer que está
tudo bem.
— Mas se pode saber por onde ela anda?
— Eu não sei. Só sei é que ela ligou pro departamento de pessoal e pediu
mais um dia de folga.
Foi só desligar, e o telefone tocou.
— Comissário Montalbano?
— Sou eu, quem fala?
— Guttadauro. Tiro-lhe o chapéu, comissário.
Montalbano pôs o fone no gancho, tirou a roupa, entrou no chuveiro e, nu
como estava, jogou-se na cama. Adormeceu na hora.

Triiimm, triiimm, fazia um som remotíssimo, dentro de sua cabeça. Ele


compreendeu que era a campainha da porta. Levantou-se a custo e foi abrir.
Ao vê-lo nu, Galluzzo deu um pulo para trás.
— Que foi, Gallù? Tá com medo que eu leve você lá pra dentro e te
obrigue a fazer sacanagem?
— Comissário, eu tou tocando há meia hora. Já ia arrombar a porta.
— E teria que pagar uma nova. Já vou.

O encarregado do posto, uns trinta anos, olhos negros e brilhantes, corpo


enxuto e ágil, vestia um macacão, mas o comissário facilmente imaginou-o
de sunga, na praia de Rimini, dando em cima das alemãs.
— Então, segundo diz o senhor, a moça vinha de Montelusa, e eram oito
horas.
— Certo como a morte. Eu tava fechando, era o fim do nosso turno. Ela
baixou o vidro e perguntou se ainda dava pra encher o tanque. “Pra senhora
eu deixo isto aqui aberto a noite inteira, é só pedir”, eu disse. Ela saiu do
carro. Nossa Senhora, como era bonita!
— Lembra-se de como estava vestida?
— Toda de jeans.
— Alguma bagagem?
— O que eu vi foi uma espécie de mochila, no banco de trás.
— Continue.
— Acabei de encher o tanque, disse o total e ela me pagou com uma nota
de cem mil, tirada de uma carteira. Na hora de dar o troco, eu gosto de mexer
com as mulheres, aí perguntei: “Tem mais alguma coisa de especial que eu
possa fazer pela senhora?” Eu esperava uma engrossada, mas não. Ela deu
um sorriso e disse: “Para as coisas especiais eu já tenho alguém.” E foi
embora.
— E não voltou pra Montelusa, tem certeza?
— Absoluta. Puxa vida, quando penso que ela teve o fim que teve!
— Tá bom. Muito obrigado.
— Ah, comissário, uma coisa. Ela estava com pressa, já saiu daqui
correndo. Tá vendo ali? Tem uma reta. Eu fiquei olhando até ela fazer a
curva, lá no final. Corria bastante.

— Eu só ia retornar amanhã — disse Gillo Jàcono —, mas, como voltei


antes, achei que era meu dever aparecer logo aqui.
Era um homem de seus trinta anos, cara simpática.
— Eu lhe agradeço.
— Queria dizer que, diante de uma coisa dessas, a gente fica pensando e
repensando.
— Quer modificar o que me falou por telefone?
— De jeito nenhum. Mas, de tanto relembrar o que vi, posso acrescentar
um detalhe. Mas nisso que eu vou contar o senhor ponha um monte de
“talvez”, por via das dúvidas.
— Pode falar.
— Pois é, o homem carregava a mala com facilidade, e com a mão
esquerda, por isso eu tive a impressão de que ela não estava muito cheia. No
braço direito dele, a moça estava se segurando.
— De braço dado?
— Não exatamente. Era a mão apoiada no braço. Me pareceu, repito, me
pareceu, que ela mancava um pouquinho.

— Doutor Pasquano? Montalbano. Estou atrapalhando?


— Bem, eu ia começando a fazer uma incisão em Y num cadáver, não
creio que ele se chateie se eu interromper por alguns minutos.
— Descobriu algum sinal, no corpo da senhora Licalzi, indicando uma
queda que ela levou?
— Não me lembro. Vou ver no relatório.
O legista voltou antes de o comissário acender um cigarro.
— Sim. Ela caiu sobre os joelhos. Mas quando estava vestida. Na
escoriação do joelho esquerdo havia fibras microscópicas do jeans que ela
usava.

Não era mais necessário cruzar informações. Às oito da noite, Michela


Licalzi enche o tanque e toma a direção do interior. Três horas e meia depois,
está no caminho de volta, com um homem. Depois da meia-noite é vista,
sempre em companhia de um homem, certamente o mesmo, dirigindo-se para
a casinha de campo de Vigàta.
— Oi, Anna. Salvo. Passei hoje pela sua casa, no início da tarde, mas
você não estava.
— O engenheiro Di Blasi tinha me telefonado, a mulher dele estava
péssima.
— Espero não demorar a ter boas notícias para eles.
Anna não comentou nada, e Montalbano compreendeu que havia falado
uma besteira. A única notícia que os Di Blasi poderiam considerar boa seria a
da ressurreição de Maurizio.
— Anna, queria te contar uma coisa que descobri sobre Michela.
— Vem pra cá.
Não, não devia. Sabia que, se Anna pousasse novamente os lábios nos
dele, a coisa seguramente iria se complicar.
— Não posso, Anna. Tenho um compromisso.
Ainda bem que estava no telefone, porque, se dissesse isso pessoalmente,
Anna logo perceberia que era mentira.
— O que é que você quer me contar?
— Apurei, com pequena margem de erro, que às oito da noite de quarta-
feira Michela pegou a estrada Enna-Palermo. Pode ser que tenha ido a algum
lugar da província de Montelusa. Pense bem, antes de responder: que você
saiba, ela teria outros conhecidos, além dos que fez em Montelusa e em
Vigàta?
A resposta não veio logo. Anna, como pedira o comissário, estava
pensando.
— Olha, amigos, não. Ela teria me contado. Conhecidos, sim, alguns.
— Onde?
— Por exemplo, em Aragona e em Comitini, que ficam nessa estrada.
— Que tipo de conhecidos?
— Em Aragona ela comprou os ladrilhos. Em Comitini, abasteceu-se de
alguma outra coisa, agora não lembro o quê.
— Portanto, simples relações de negócios?
— Eu diria que sim. Mas veja bem, Salvo, dessa estrada a pessoa pode ir
a qualquer lugar. Tem uma bifurcação que leva a Raffadali: o diretor da
Móvel poderia até ter usado isso pra história dele.
— Outra coisa: depois da meia-noite, ela foi vista saindo do carro,
apoiada num homem, e andando pela trilha que leva à casa.
— Tem certeza?
— Tenho.
Desta vez, a pausa foi demoradíssima, o comissário chegou a pensar que
a ligação tinha caído.
— Anna, você ainda está aí?
— Estou. Salvo, vou repetir, claramente e de uma vez por todas, aquilo
que eu já lhe disse. Michela não era mulher de encontros eventuais, tinha
confidenciado a mim que era fisicamente incapaz disso, entende? Ela queria
bem ao marido. E era muito, muito ligada a Serravalle. Não pode ter
consentido naquela relação, não importa o que pense o médico-legista. Ela foi
horrivelmente violentada.
— Como é que você explica o fato dela não ter avisado aos Vassallo que
não iria mais jantar lá? Tinha celular, não?
— Não entendi aonde você quer chegar.
— Eu explico. Quando, às sete e meia da noite, Michela se despede de
você dizendo que vai passar no hotel, nesse momento está absolutamente
falando a verdade. Depois, intervém alguma coisa que a faz mudar de ideia.
Só pode ter sido um telefonema para o celular, porque, quando pega a Enna-
Palermo, ela ainda está sozinha.
— Então, você acha que ela estava indo encontrar alguém?
— Não há outra explicação. É um fato imprevisto, mas esse encontro ela
não quer perder. Por isso, não avisa aos Vassallo. Sem desculpas plausíveis
para justificar a ausência, a melhor coisa a fazer é sumir, não deixar pistas.
Vamos excluir o encontro amoroso, se você quiser, talvez seja um encontro
de negócios que depois se transforma em alguma coisa de trágico. Te
concedo isso, por um momento. Mas, então, pergunto: o que haveria de tão
importante, a ponto de fazê-la dar um bolo nos Vassallo?
— Não sei — fez Anna, desconsolada.
Capítulo XV

“O que pode ter havido de tão importante?”, perguntou-se novamente o


comissário, depois de se despedir da amiga. Se não era amor nem sexo — e,
na opinião de Anna, essa hipótese devia ser totalmente excluída —, sobrava
apenas a grana. Durante a construção da casa, Michela devia ter
movimentado dinheiro, e em quantidade. Será que a chave estava escondida
aí? Tal suposição, porém, pareceu-lhe inconsistente como um fio de teia de
aranha. Mas seu dever era procurar, mesmo assim.
— Anna? Salvo.
— O compromisso dançou? Você vai poder vir?
Na voz da moça havia ansiedade e alegria, e o comissário não quis
acrescentar o timbre da decepção.
— Pode ser que eu consiga ir.
— A qualquer hora.
— Tudo bem. Queria te perguntar uma coisa. Sabe se Michela havia
aberto uma conta corrente em Vigàta?
— Sim, ficava mais prático para os pagamentos. Era no Banco Popular.
Mas não sei quanto tinha.
Muito tarde para dar um pulo no banco. Montalbano tinha guardado numa
caixa todos os papéis encontrados no quarto do Jolly. Então selecionou as
dezenas e dezenas de notas fiscais e o caderninho de anotar as despesas,
desprezando a agenda e os outros papéis. Seria um trabalho demorado, chato
e, em noventa por cento, absolutamente inútil. Ainda por cima, ele não sabia
lidar com números.
Examinou cuidadosamente todas as notas fiscais. Por menos que
entendesse disso, assim, por alto, não lhe pareceram superfaturadas, os preços
cobrados correspondiam aos de mercado. Em alguns casos, eram até
ligeiramente mais baixos, via-se que Michela sabia pechinchar. Nada,
trabalho inútil, como ele tinha pensado. A seguir, por acaso, notou uma
discordância entre o valor de uma nota e a transcrição que Michela havia
feito dessa soma no caderninho: aqui, o total estava majorado em cinco
milhões. Seria possível que Michela, sempre tão organizada e precisa, tivesse
cometido um erro tão evidente? Ele recomeçou do início, com santa
paciência. Por fim, chegou à conclusão de que a diferença entre os valores
realmente gastos e os anotados no caderninho chegava a cento e quinze
milhões.
Excluía-se, portanto, a hipótese de erro; mas, se não havia erro, aquilo
não fazia sentido, porque significava que Michela estaria pagando comissão a
si mesma. A menos que...
— Alô, doutor Licalzi? Aqui é o comissário Montalbano. Desculpe ligar
pra sua casa, depois de um dia de trabalho.
— Pois é. Foi um dia e tanto.
— Eu queria saber uma coisa sobre as relações... ou seja, explicando
melhor: o senhor e dona Michela mantinham uma conta conjunta?
— Comissário, mas o senhor não tinha sido...
— Afastado da investigação? Sim, mas depois tudo voltou a ser como
antes.
— Não, não tínhamos conta conjunta. Era Michela com a dela e eu com a
minha.
— Ela não tinha renda própria, certo?
— Certo. Fazíamos assim: a cada seis meses, eu transferia uma certa
quantia da minha conta para a da minha mulher. Se houvesse despesas
extraordinárias, ela me falava e eu cobria.
— Entendo. Alguma vez ela lhe mostrou as notas relativas à casa de
campo?
— Não, e de resto isso não me interessava. De qualquer maneira, ela
transportava as despesas para um caderninho. De vez em quando, pedia que
eu desse uma olhada.
— Doutor, eu lhe agradeço, e...
— Já providenciou?
Providenciar o quê? Montalbano não soube responder.
— O Twingo — sugeriu o doutor.
— Ah, sim, já.
No telefone, era fácil mentir. Despediram-se, marcando um encontro para
a manhã da sexta-feira, quando seria realizada a cerimônia fúnebre.
Agora, tudo fazia mais sentido. Michela faturava um extra sobre o
dinheiro que pedia ao marido para a construção da casa. Destruídas as notas
fiscais (ela certamente pretendia fazer isso), restariam apenas, como
comprovação, as cifras anotadas no caderninho. E, assim, cento e quinze
milhões haviam entrado por fora, e Michela tinha disposto dessa soma como
bem queria.
Mas por que precisava desse dinheiro? Estaria sendo chantageada? E, em
caso afirmativo, o que Michela Licalzi tinha a esconder?

Na manhã seguinte, ele já estava pronto para pegar o carro e seguir para o
trabalho quando o telefone tocou. Por um momento, sentiu-se tentado a não
atender: um telefonema para a sua casa, àquela hora, certamente significava
um chamado do comissariado, algum aborrecimento, alguma chateação.
Depois, o indubitável poder que o telefone exerce sobre as pessoas levou
a melhor.
— Salvo?
Ao reconhecer imediatamente a voz de Livia, ele sentiu que suas pernas
viravam ricota.
— Livia! Até que enfim! Onde você está?
— Em Montelusa.
E o que fazia ela em Montelusa? Quando tinha chegado?
— Vou te buscar. Você está na estação?
— Não. Se você me esperar, daqui a meia hora, no máximo, chego a
Marinella.
— Eu espero.
Mas o que era aquilo? Que merda estaria acontecendo? Montalbano ligou
para o comissariado.
— Não telefonem aqui pra casa.
Em meia hora, tomou quatro xícaras de café. Repôs no fogo a cafeteira.
Depois, ouviu o barulho de um automóvel que chegava e parava. Devia ser o
táxi de Livia. Ele abriu a porta. Não era um táxi, mas o carro de Mimì
Augello. Livia desceu, o carro fez uma curva e foi embora.
Montalbano começou a entender.
Desarrumada, despenteada, olheiras, pálpebras inchadas pelo choro. Mas,
sobretudo, como conseguira se tornar tão miudinha e frágil? Um passarinho
depenado. Montalbano sentiu-se invadir pela ternura, pela comoção.
— Vem cá — disse ele. Pegando-a pela mão, conduziu-a para dentro de
casa e sentou-a na sala de jantar. Livia estremeceu.
— Está com frio?
— Estou.
Ele foi ao quarto, pegou um paletó e cobriu com ele os ombros da moça.
— Quer um café?
— Quero.
O café acabava de ficar pronto, ele o serviu fervendo. Livia tomou-o
como se estivesse frio.

Agora, estavam sentados no banco da varanda. Livia tinha querido caminhar.


O dia estava tão sereno que parecia de mentira, sem vento, ondas suaves.
Livia, em silêncio, observou demoradamente o mar. Depois deitou a cabeça
no ombro de Salvo e começou a chorar, sem soluços. As lágrimas corriam-
lhe pela face e banhavam a mesinha. Montalbano segurou-lhe a mão, ela
abandonou-a, sem vida. O comissário sentia uma desesperada vontade de
acender um cigarro, mas não o fez.

— Fui ver François — disse Livia, a certa altura.


— Eu percebi.
— Não quis avisar a Franca. Peguei um avião, um táxi e apareci por lá de
surpresa. François, assim que me viu, se jogou nos meus braços. Estava
realmente feliz por me rever. E eu, feliz por abraçá-lo e furiosa com Franca e
o marido, e mais ainda com você. Me convenci de que tudo era como eu
desconfiava: você e eles estavam de combinação pra me tirar o menino. Aí
comecei a xingar, a insultar os dois. A certa altura, enquanto eles tentavam
me acalmar, percebi que François não estava mais ali por perto. Me veio a
suspeita de que eles tinham escondido François de mim, trancado o menino a
chave, num quarto, e comecei a gritar. Tão alto que todo mundo veio
correndo, as crianças de Franca, Aldo, os três trabalhadores. Uns
perguntavam aos outros, e ninguém tinha visto François. Preocupados, eles
saíram por ali, chamando o nome dele, e eu fiquei sozinha, chorando. Dali a
pouco escutei uma voz: “Livia, estou aqui.” Era ele, que havia ficado
escondido em algum canto da casa, enquanto os outros procuravam lá fora.
Viu como ele é? Esperto, inteligentíssimo.
Sem conseguir mais conter o choro, Livia explodiu novamente em
lágrimas.
— Descanse. Vá se deitar um pouquinho. Depois você me conta o resto
— disse Montalbano, que não aguentava o sofrimento de Livia e a custo
continha a vontade de abraçá-la. Intuía que, naquele momento, esse seria um
movimento equivocado.
— Mas eu estou indo embora — respondeu Livia. — O avião sai de
Palermo às duas da tarde.
— Eu te levo.
— Não, já combinei com Mimì. Daqui a uma hora ele vem me buscar.
“Assim que Mimì se apresentar no comissariado”, pensou Montalbano,
“vai levar um esculacho do tamanho de um bonde.”
— Foi ele quem me convenceu a vir falar com você, eu já queria ter ido
ontem.
Só faltava essa: então ele também deveria agradecer a Mimì?
— Você não queria me ver?
— Tente entender, Salvo. Eu preciso ficar sozinha, organizar as ideias,
chegar a alguma conclusão. Pra mim isso tudo foi terrível.
O comissário sentiu curiosidade de saber.
— Bom, me diga o que aconteceu depois.
— Assim que François apareceu na sala, eu instintivamente corri ao seu
encontro. E ele se esquivou.
Montalbano reviu a cena de que havia sido vítima alguns dias antes.
— Me olhou bem nos olhos e disse: “Eu quero bem a você, mas não largo
mais esta casa, os meus irmãos.” Eu fiquei parada, gelei. E ele: “Se você me
levar daqui, eu fujo mesmo, e você não me vê mais.” Aí saiu correndo,
gritando: “Estou aqui, estou aqui.” Me deu uma tonteira, e depois me vi
deitada numa cama, com Franca do meu lado. Meu Deus, como as crianças às
vezes sabem ser cruéis!
“E o que a gente queria fazer com ele não seria uma crueldade?”,
perguntou Montalbano a si mesmo.
— Eu estava fraquíssima, tentei me levantar mas desmaiei de novo.
Franca não me deixou ir embora, chamou um médico, ficou grudada em mim.
Dormi lá. Dormi! Fiquei foi a noite toda sentada numa cadeira, junto da
janela. Na manhã seguinte, Mimì chegou, chamado pela irmã. Mimì foi mais
do que um irmão. Deu um jeito de eu não me encontrar mais com François,
me levou pra passear, me fez percorrer meia Sicília. E me convenceu a vir
aqui, mesmo que só por uma hora. “Vocês precisam conversar, se explicar”,
dizia. Ontem à noite chegamos a Montelusa e ele me deixou no Hotel Della
Valle. Hoje de manhã foi me buscar pra me trazer aqui. Minha mala está no
carro dele.
— Não creio que haja muito o que explicar — fez Montalbano.
A explicação só seria possível se Livia, depois de compreender que tinha
se enganado, tivesse tido uma palavra, uma só, de compreensão pelos
sentimentos dele. Ou achava que ele, Salvo, não tinha sofrido nada, ao
constatar que François estava perdido para sempre? Livia, fechada em sua
dor, não abria espaço, só enxergava, egoisticamente, o próprio desespero. E
ele? Até prova em contrário, os dois não eram um casal construído sobre o
amor, claro, sobre o sexo, também, mas sobretudo sobre uma relação de
compreensão recíproca, que às vezes chegara a aflorar a cumplicidade? Uma
palavra em excesso, naquele momento, poderia provocar uma fratura
incurável. Montalbano engoliu o ressentimento.
— O que é que você pretende fazer?
— Em relação ao... menino? — Ela já não conseguia pronunciar o nome
de François.
— Sim.
— Não vou me opor.
Livia levantou-se de um pulo e correu para o mar, lamentando-se
baixinho, como um animal ferido mortalmente. Depois não se aguentou mais
e caiu, de rosto na areia. Montalbano pegou-a por um braço, levou-a para
dentro de casa, deitou-a na cama e delicadamente, com uma toalha úmida,
tirou-lhe a areia do rosto.

Ao escutar a buzina do carro de Mimì Augello, Montalbano ajudou Livia a


levantar-se e ajeitou-lhe as roupas. Ela deixou-o agir, absolutamente passiva.
Montalbano pegou-a pela cintura e acompanhou-a até o lado de fora. Mimì
não desceu do carro. Sabia que não era prudente aproximar-se muito do seu
superior, podia ser mordido. Mirava fixamente algum ponto à sua frente, para
não cruzar o olhar com o do comissário. Um segundo antes de entrar no
automóvel, Livia virou levemente a cabeça e beijou Montalbano na face. O
comissário entrou em casa, foi até o banheiro e, vestido como estava, entrou
embaixo do chuveiro, abrindo-o ao máximo. Depois engoliu dois
comprimidos de um sonífero que ele não tomava nunca, regou-os com um
copo de uísque e se jogou na cama, esperando a inevitável pancada que o
derrubaria.
Eram cinco da tarde quando ele acordou, enjoado e com um pouquinho de
dor de cabeça.
— Augello taí? — perguntou, entrando no comissariado.
Mimì entrou no gabinete de Montalbano e, prudentemente, fechou a porta
atrás de si. Parecia resignado.
— Só que, se você for começar a gritar, como é do seu costume — avisou
—, talvez seja melhor a gente ir lá pra fora.
O comissário ergueu-se da poltrona, aproximou-se dele, cara a cara, e
passou-lhe um braço sobre os ombros.
— Você é um amigo de verdade, Mimì. Mas eu te aconselho a sair já
desta sala. Se eu pensar muito, posso te pegar a pontapés.

— Doutor? É dona Clementina Vasile Cozzo. Devo transferir?


— Quem é você?
Era impossível que fosse Catarella.
— Como, quem sou eu? Sou eu.
— E como diabos você se chama?
— Catarella, dotor! Eu pessoarmente em pessoa!
Ainda bem! A fulminante busca de identidade trouxera de volta o velho
Catarella, não aquele que o computador estava inexoravelmente
transformando.
— Comissário! O que foi que aconteceu? Estamos brigados?
— Minha senhora, acredite, estes meus últimos dias...
— Está desculpado, está desculpado. O senhor poderia aparecer aqui?
Tenho uma coisa para lhe mostrar.
— Agora?
— Agora.

Dona Clementina indicou-lhe a sala de jantar e desligou a televisão.


— Veja isto aqui. É o programa do concerto de amanhã, que o maestro
Cataldo Barbera me mandou agora há pouco.
Montalbano pegou a folha quadriculada, arrancada de um caderno, que a
senhora lhe estendia. Era por isso que o chamara com urgência?
A lápis, estava escrito: “Sexta-feira, às nove e trinta. Concerto em
memória de Michela Licalzi.”
Montalbano teve um sobressalto. Cataldo Barbera conhecia a vítima?
— Foi por isso que o chamei — disse a senhora Vasile Cozzo, lendo a
pergunta nos olhos dele.
O comissário olhou de novo o papel.
“Programa: G. Tartini, Variações sobre um tema de Corelli; J. S. Bach,
Largo; G. B. Viotti, trecho do Concerto nº 24 em mi menor.”
Ele devolveu o papel.
— A senhora sabia que os dois se conheciam?
— Nunca soube. E me pergunto como foi, já que o maestro nunca sai de
casa. Assim que li o programa, compreendi que isso poderia lhe interessar.
— Vou subir agora mesmo e falar com ele.
— Perda de tempo, não será recebido. São seis e meia da tarde, a esta
hora ele já foi para a cama.
— E fica fazendo o quê? Assistindo à televisão?
— Ele não tem televisão e não lê jornal. Adormece e, lá pelas duas da
manhã, acorda. Já perguntei à empregada por que o maestro tem esses
horários tão estranhos, e ela disse que não entendia nada. Mas eu, de tanto
pensar no assunto, cheguei a uma explicação plausível.
— Qual?
— Eu acho que, fazendo isso, ele cancela um tempo preciso, anula, salta
as horas nas quais antigamente dava seus concertos. Dormindo, não tem
recordações.
— Entendo. Mas eu tenho que falar com ele.
— Tente amanhã de manhã, depois do concerto.
No andar de cima, uma porta bateu.
— Ouviu? — disse dona Clementina. — A empregada está indo para
casa.
O comissário dirigiu-se à saída.
— Vá devagar, doutor. Mais do que empregada, ela é uma espécie de
governanta — advertiu dona Clementina.
Montalbano abriu a porta. Uma mulher de seus sessenta anos, vestida
com propriedade, e que estava descendo os últimos degraus da escada,
cumprimentou-o com um aceno de cabeça.
— Com licença, eu sou o comissário...
— Eu conheço o senhor.
— A senhora já está indo para casa e eu não quero atrasá-la. O maestro e
dona Michela Licalzi se conheciam?
— Sim. Há uns dois meses. Foi ela quem tomou a iniciativa de se
apresentar. Ele ficou muito contente, gosta de mulheres bonitas. Conversaram
sem parar, eu levei café, eles tomaram e depois se trancaram no estúdio,
aquele de onde não sai nenhum som.
— Com isolamento acústico?
— É. Assim não incomoda os vizinhos.
— Ela voltou outras vezes?
— Que eu estivesse aqui, não.
— E qual é o seu horário?
— Não está vendo? À tardinha eu vou embora.
— Uma curiosidade. Se o maestro não tem televisão e não lê jornal, como
foi que soube do assassinato?
— Eu contei, assim por acaso, hoje à tarde. Tinha visto na rua o aviso
sobre a função de amanhã.
— E ele, como reagiu?
— Muito mal. Ficou branco, branco, pediu as pílulas para o coração.
Levei o maior susto! Mais alguma coisa?
Capítulo XVI

Naquela manhã, o comissário apresentou-se no gabinete metido num terno


cinza, camisa azul-clara, gravata de cor discreta, sapatos pretos.
— Parece um manequim — sacaneou Mimì Augello.
Montalbano não podia contar que estava arrumado daquele jeito porque,
às nove e meia, iria assistir a um concerto para violino solo. Mimì diria que
ele estava maluco. E com razão, porque era uma coisa meio de manicômio
mesmo.
— Pois é, eu tenho que ir ao funeral — murmurou ele.
Entrou na sala e o telefone tocou.
— Salvo? Anna. Guido Serravalle acabou de me ligar.
— De Bolonha?
— Não, de Montelusa. Disse que, tempos atrás, Michela tinha dado a ele
o meu número. Sabia da amizade entre nós duas. Veio para o funeral,
hospedou-se no Della Valle. Perguntou se depois eu almoçaria com ele, vai
embora à tarde. O que é que eu faço?
— Em que sentido?
— Não sei, mas sinto que não vou ficar à vontade.
— E por quê?

— Comissário? Aqui é Emanuele Licalzi. O senhor vai à cerimônia?


— Vou. A que horas vai ser?
— Às onze. Depois, o carro fúnebre parte para Bolonha diretamente da
igreja. Descobriu mais alguma coisa?
— Nada importante, por enquanto. O senhor se demora em Montelusa?
— Só até amanhã de manhã. Preciso negociar a venda da casa com uma
imobiliária. Devo ir até lá hoje à tarde, para mostrá-la ao corretor. Ah, ontem
à noite, Guido Serravalle também estava no meu voo. Ele veio para o funeral.
— Deve ter sido embaraçoso — deixou escapar o comissário.
— Acha?
O doutor Emanuele Licalzi tinha baixado novamente a máscara.
— Rápido, já vai começar — disse dona Clementina, chamando-o para a
saletinha ao lado da sala. Instalaram-se, circunspectos. Ela vestia um longo,
especialmente para a ocasião. Parecia uma dama de Boldini, só que um pouco
mais velha. Às nove e meia em ponto, o maestro Barbera começou. E, em
menos de cinco minutos, o comissário começou a experimentar uma sensação
estranha, que o deixou perturbado. Pareceu-lhe a certa altura que o som do
violino se transformava numa voz, uma voz de mulher, que pedia para ser
escutada e compreendida. Lenta mas seguramente, as notas se transmutavam
em sílabas, ou melhor, em fonemas, e todavia expressavam uma espécie de
lamento, um canto de dor antiga, que em certos momentos atingia cumes de
uma ardente e misteriosa tragicidade. Aquela voz comovida de mulher dizia
existir um segredo terrível, que só podia ser compreendido por quem
soubesse abandonar-se completamente ao som, à onda de som. Ele fechou os
olhos, profundamente emocionado. Mas, dentro de si, também estava
surpreso: como era possível que aquele violino tivesse mudado de timbre a
tal ponto, desde a última vez em que o ouvira? Sempre com os olhos
fechados, deixou-se guiar pela voz. E viu a si mesmo entrando na casa de
campo, atravessando a sala, abrindo a cristaleira, apanhando o estojo do
violino... Eis o que o atormentara, o elemento que não combinava com o
conjunto! A luz que explodiu dentro de sua cabeça foi tão forte que o fez
soltar um gemido.
— O senhor também se comoveu? — quis saber dona Clementina,
enxugando uma lágrima. — Ele jamais tocou assim.
O concerto devia ter acabado justamente naquele momento, porque ela
religou o telefone, discou o número e aplaudiu.
Desta vez o comissário, em vez de se unir a dona Clementina, pegou o
fone.
— Maestro? Eu sou o comissário Montalbano. Preciso muito falar com o
senhor.
— Eu também, com o senhor.
Montalbano desligou e, num rompante, inclinou-se, abraçou dona
Clementina, beijou-a na testa e saiu.

A porta do apartamento foi aberta pela empregada-governanta.


— Aceita um café?
— Não, obrigado.
Cataldo Barbera veio ao encontro dele, mão estendida.
Sobre como o encontraria vestido, Montalbano já havia pensado enquanto
subia os dois lances de escada. Acertou em cheio: o maestro, que era um
homem miúdo, cabelos brancos, olhos negros pequenos mas de intensa
expressão, usava um fraque de excelente corte.
A única coisa que destoava era uma echarpe branca, de seda, enrolada em
torno da parte inferior do rosto, cobrindo inteiramente o nariz, a boca e o
queixo, e deixando visíveis somente os olhos e a testa. Estava presa por um
alfinete de ouro.
— Sente-se, fique à vontade — disse Barbera, com grande cortesia, e
levando-o para o estúdio.
Lá dentro havia uma vitrine com cinco violinos; uma complicada
instalação de som estéreo; uma estante metálica, de escritório, com cds,
discos e fitas empilhados; outra estante com livros, uma escrivaninha e duas
poltronas. Sobre a escrivaninha estava um outro violino, evidentemente
aquele que o maestro tinha acabado de usar no concerto.
— Hoje toquei com o Guarnieri — confirmou Barbera, apontando o
instrumento. — Ele tem uma voz incomparável, celestial.
Montalbano congratulou-se consigo mesmo: embora não entendesse nada
de música, tinha intuído que o som daquele violino era diferente daquele do
concerto anterior.
— Para um violinista, ter à disposição uma joia destas é um autêntico
milagre, acredite.
O maestro suspirou.
— Infelizmente, vou ter de devolvê-lo.
— Não é seu?
— Quem me dera! Só que não sei mais a quem o devo entregar. Hoje eu
pretendia chamar por telefone alguém do comissariado e expor o problema.
Mas, já que o senhor está aqui...
— As suas ordens.
— Pois é, este instrumento pertencia à pobre senhora Licalzi.
O comissário sentiu que todos os seus nervos se tensionavam como
cordas de violino: se o maestro o tocasse com o arco, ele certamente emitiria
sons.
— Cerca de dois meses atrás — contou Barbera —, eu estava ensaiando
com a janela aberta. A senhora Licalzi, que passava casualmente pela rua, me
ouviu. Ela entendia de música, sabe? Leu o meu nome no interfone e quis me
ver. Tinha assistido em Milão ao meu último concerto. Depois eu iria me
aposentar, mas ninguém sabia disso.
— Por quê?
A pergunta, feita assim tão diretamente, pegou o maestro de surpresa. Ele
hesitou um momento, depois despregou o alfinete e, lentamente, puxou a
echarpe. Um monstro. Já não tinha metade do nariz, e o lábio superior,
totalmente corroído, deixava descoberta a gengiva.
— Não lhe parece uma boa razão?
Cataldo Barbera repôs a echarpe e prendeu-a com o alfinete.
— É um caso raríssimo de lúpus incurável, de evolução destrutiva. Como
poderia eu me apresentar em público?
O comissário sentiu-se grato por ele haver reposto logo a echarpe. Era
impossível olhar aquilo sem sentir pavor e náusea.
— Pois bem, aquela gentil e bela criatura, falando de uma coisa e outra,
me disse que havia herdado um violino de um bisavô que tinha uma luteria
em Cremona. E que, desde pequena, ouvira dizer em casa que esse
instrumento valia uma fortuna, mas nunca havia dado muita importância a
isso. Em certas famílias, são frequentes essas lendas do quadro precioso, da
estatueta que vale milhões. Fiquei curioso. Algumas noites depois, ela me
telefonou, me apanhou aqui e me levou à casinha de campo, recém-
construída. Mal vi o violino, pode acreditar, senti alguma coisa explodir
dentro de mim, uma espécie de choque elétrico. Estava um tantinho
maltratado, mas bastava pouco para deixá-lo em perfeita forma. Era um
Andrea Guarnieri, comissário, facilmente reconhecível pelo verniz de cor
âmbar-amarelada, de extraordinária força iluminadora.
O comissário olhou o violino e, sinceramente, não achou que o
instrumento emitisse luz. Ele, porém, era uma negação total nesses assuntos
de música.
— Experimentei-o — prosseguiu o maestro — e, durante dez minutos,
toquei transportado ao paraíso com Paganini, com Ole Bull...
— Que preço ele vale no mercado? — perguntou o comissário, que
habitualmente voava baixo, sem jamais alcançar o paraíso.
— Preço?! Mercado?! — horrorizou-se o maestro. — Mas um
instrumento destes não tem preço!
— Tudo bem, mas, se quiséssemos quantificar...
— Como saber? Dois, três bilhões.
Tinha ouvido bem? Tinha ouvido bem.
— Eu alertei a senhora quanto ao risco de deixar um instrumento de tal
valor numa casinha praticamente desabitada. Procuramos uma solução, até
porque eu queria uma confirmação autorizada para a minha suposição, ou
seja, de que se tratava de um Andrea Guarnieri. Então ela sugeriu que o
violino ficasse aqui comigo. Eu não queria assumir uma tal responsabilidade.
Ela, porém, conseguiu me convencer, não quis aceitar nem um recibo.
Trouxe-me de volta para cá e eu lhe entreguei um violino meu para substituir
o Guarnieri no mesmo estojo. Se o roubassem, não seria grande problema:
valia somente algumas centenas de milhares de liras. Na manhã seguinte,
falei por telefone com um amigo meu de Milão, o qual, em matéria de
violinos, é o maior expert que existe. A secretária me disse que ele estava
viajando pelo mundo e só voltaria no fim deste mês.
— Com licença — interrompeu Montalbano —, daqui a pouco eu volto.
Saiu correndo e chegou esbaforido ao comissariado.
— Fazio!
— Pode mandar, doutor.
Montalbano escreveu um bilhete, assinou-o e apôs o carimbo do
comissariado, para autenticá-lo.
— Venha comigo.
Pegou o carro e parou não muito longe da igreja.
— Entregue este bilhete ao doutor Licalzi. Ele vai lhe dar as chaves da
casa de campo. Eu não posso ir à igreja, se eu entrar e me virem falando com
o doutor, ninguém mais segura os boatos por aí.
Em menos de cinco minutos, os dois já partiam para Tre Fontane.
Desceram do carro, Montalbano abriu a porta. Havia um cheiro pesado,
sufocante, que não se devia apenas ao fato de a casa estar fechada, mas
também aos pós e sprays adotados pela Perícia.
Sempre seguido por Fazio, que não fazia perguntas, Montalbano abriu a
cristaleira, pegou o estojo com o violino, saiu e fechou a porta.
— Espere aí, eu quero ver uma coisa.
Contornando a casa, foi até a parte de trás, o que não havia feito das
outras vezes em que estivera ali. Havia um esboço do que deveria ter-se
tornado um vasto jardim. À direita, quase grudada à construção, crescia uma
grande sorveira, com frutinhos de um vermelho intenso e sabor levemente
azedo, dos que Montalbano comia em quantidade, quando criança.
— Suba até o ramo mais alto.
— Quem? Eu?
— Não, o seu irmão gêmeo.
Fazio mexeu-se de má vontade. Já não era muito jovem, temia cair e
quebrar o pescoço.
— Espere aí.
— Tá bom, doutor, quando eu era pequeno gostava de Tarzan.
Montalbano abriu de novo a porta, foi até o andar de cima, acendeu a luz
do quarto, onde o cheiro era insuportável, e içou a persiana sem abrir os
vidros.
— Dá pra me ver?
— Dá, perfeitamente.
O comissário saiu da casa, fechou a porta e dirigiu-se para o carro.
Fazio não estava lá. Continuava no alto da árvore, esperando que seu
chefe lhe dissesse o que ele devia fazer.

Depois de desembarcar Fazio na frente da igreja, com as chaves para


devolver ao doutor Licalzi (“avise que talvez a gente ainda precise delas”),
Montalbano voltou à casa de Cataldo Barbera, subindo os degraus dois a
dois. O maestro veio abrir. Havia tirado o fraque, vestia calça e suéter de gola
rulê. Mas continuava com a echarpe branca, presa pelo alfinete de ouro.
— Entre — convidou Barbera.
— Não é necessário, maestro. Só uns poucos segundos. É este o estojo
onde estava o Guarnieri?
O maestro pegou o objeto, examinou-o atentamente e o devolveu.
— Acho que sim.
Montalbano abriu o estojo e, sem tirar dali o instrumento, perguntou:
— É este o violino que o senhor entregou a dona Michela?
O maestro deu dois passos para trás e estendeu uma das mãos à frente,
como para manter à distância uma cena horrível.
— Mas isto aí é um objeto no qual eu não tocaria nem com um dedo!
Imagine! É feito em série! Uma afronta a um verdadeiro violino!
Era a confirmação daquilo que a voz do violino tinha revelado, ou
melhor, trazido à luz. Porque, inconscientemente, Montalbano já o havia
registrado: a diferença entre conteúdo e continente. Estava clara até mesmo
para ele, que não entendia de violinos. Nem de qualquer instrumento, para
falar a verdade.
— Além do mais — prosseguiu Cataldo Barbera —, o que eu entreguei a
Michela era de modestíssimo valor, sem dúvida, mas muito parecido com o
Guarnieri.
— Obrigado. Até logo.
O comissário começou a descer a escada.
— O que é que eu faço com o Guarnieri? — perguntou em voz alta o
maestro, ainda achando tudo muito estranho e sem entender nada.
— Por enquanto, fique com ele. E toque-o quantas vezes puder.

Estavam pondo o caixão no carro fúnebre, muitas coroas alinhavam-se diante


do portão da igreja. Várias pessoas rodeavam Emanuele Licalzi, dando-lhe os
pêsames. Ele parecia insolitamente perturbado. Montalbano aproximou-se e
puxou-o de lado.
— Eu não esperava essa gente toda — disse o doutor.
— Dona Michela soube ganhar o afeto de muitas pessoas. Recebeu as
chaves? Talvez eu tenha que pedi-las novamente.
— Eu só preciso delas entre dezesseis e dezessete horas, para acompanhar
o corretor.
— Não vou esquecer. Escute, doutor, quando o senhor chegar lá,
provavelmente vai notar que na cristaleira falta o violino. Eu peguei. À noite
devolvo.
O doutor pareceu intrigado.
— Tem alguma coisa a ver? É um objeto sem valor.
— Preciso dele por causa das impressões digitais — mentiu Montalbano.
— Bom, se é por isso, lembre-se de que eu o tive nas mãos, quando o
mostrei ao senhor.
— Lembro-me perfeitamente. Ah, doutor, só por curiosidade: a que horas
o senhor partiu de Bolonha, ontem à noite?
— Tem um voo que sai às dezoito e trinta, faz-se uma conexão em Roma
e, às vinte e duas, chega-se a Palermo.
— Obrigado.
— Comissário, queira desculpar: não esqueça o Twingo.
Droga, mas que saco essa história do carro!

Em meio às pessoas que já iam embora, Montalbano viu finalmente Anna


Tropeano, conversando com um quarentão alto, muito distinto. Certamente
tratava-se de Guido Serravalle. Ao perceber Giallombardo passando ali pela
rua, o comissário chamou-o.
— Aonde você vai?
— Comer em casa, comissário.
— Lamento, mas você não vai.
— Ah, minha Nossa Senhora, logo hoje, que a minha mulher fez pasta
‘ncasciata[13] pra mim!
— Você come hoje à noite. Está vendo aqueles dois, a moça morena
conversando com um senhor?
— Sim.
— Não perca esse cara de vista. Eu daqui a pouco vou pro comissariado,
me mantenha informado de meia em meia hora. O que ele está fazendo,
aonde foi.
— Tudo bem — resignou-se Giallombardo.
Montalbano deixou-o e aproximou-se dos dois. Anna, que não o viu
chegar, iluminou-se toda. Evidentemente, a presença de Serravalle a
aborrecia.
— Salvo, como vai?
Ela fez as apresentações.
— Comissário Salvo Montalbano, doutor Guido Serravalle.
Montalbano fingiu perfeita surpresa.
— Mas nós nos falamos por telefone!
— Sim, eu me coloquei à sua disposição.
— Lembro-me muito bem. Veio por causa da pobre senhora?
— Era o mínimo que eu podia fazer.
— Compreendo. Vai embora hoje?
— Sim, deixo o hotel por volta das dezessete horas. Tenho um voo de
Punta Ràisi às vinte.
— Muito bem, muito bem — fez Montalbano. Parecia alegrar-se com o
fato de todos poderem ficar felizes e contentes e, ainda por cima, contar com
a regularidade da partida dos aviões.
— Sabe? — fez Anna, assumindo um ar fútil e desenvolto. — O doutor
Serravalle estava me convidando pra almoçar. Por que não vem conosco?
— Isso me deixaria muito feliz — disse Serravalle, engolindo em seco.
Um profundo desprazer se desenhou repentinamente na face do
comissário.
— Ah, se eu soubesse antes! Infelizmente, já tenho um compromisso.
Estendeu a mão a Serravalle.
— Muito prazer em conhecê-lo. Embora, considerando a ocasião, não
seja oportuno dizer isso.
Temeu estar exagerando ao representar o perfeito cretino, o personagem
se sobrepunha ao ator. E, de fato, Anna observava-o com olhos que eram dois
pontos de interrogação.
— De qualquer modo, a gente se telefona, hem, Anna?

Na porta do comissariado, cruzou com Mimì, que vinha saindo.


— Aonde você vai?
— Almoçar.
— Que merda, vocês todos só pensam na mesma coisa!
— Mas, se tá na hora de comer, você quer que a gente pense em quê?
— Quem é que nós temos em Bolonha?
— Como prefeito? — espantou-se Augello.
— Caguei pro prefeito de Bolonha! Na chefatura de lá, temos algum
amigo que possa nos dar uma resposta no máximo em uma hora?
— Peraí, tem Guggino, lembra?
— Filiberto?
— Ele mesmo. Foi transferido há um mês. Está chefiando o setor de
Imigração.
— Vai, vai comer os teus spaghetti alle vongole com um monte de
parmesão — disse Montalbano como único agradecimento, olhando-o com
desprezo. Afinal, de que outro jeito se podia olhar uma pessoa que revelava
um tal gosto?

O relógio marcava doze e trinta e cinco. A esperança era a de que Filiberto


ainda estivesse no trabalho.
— Alô? Aqui é o comissário Montalbano. Estou ligando de Vigàta, queria
falar com o doutor Filiberto Guggino.
— Um momento.
Depois de vários clics, ouviu-se uma voz alegre.
— Salvo! Que bom te ouvir! Como vai você?
— Bem, Filibè. Vou te incomodar por uma coisa urgentíssima. Preciso de
uma resposta dentro de uma hora, uma hora e meia, no máximo. Estou
procurando uma motivação econômica para um crime.
— Então, eu tenho que correr contra o tempo.
— Apure o máximo possível sobre um cara que talvez pertença ao círculo
das vítimas de agiotas, um comerciante, alguém que joga alto...
— Isso dificulta muito as coisas. Eu posso dizer quem são os agiotas, mas
não as pessoas que eles arruinaram.
— Tente. Vou te dar o nome e o sobrenome.

— Doutor? Giallombardo. Eles estão almoçando no restaurante de Centrada


Capo, aquele bem em cima do mar, conhece?
Infelizmente, sim, Montalbano conhecia. Tinha ido lá uma vez, por acaso,
e não o esqueceu jamais.
— Estão com dois carros? Cada um com o seu?
— Não, um carro só, ele dirigindo, por isso...
— Não perca esse homem de vista. Ele certamente vai deixar a moça em
casa e depois volta ao hotel, o Della Valle. Continue me informando.

Sim e não, responderam-lhe da locadora de automóveis de Punta Ràisi,


depois de meia hora enrolando para não darem informações, a ponto de
Montalbano ter precisado recorrer à chefia do setor de Segurança Pública do
aeroporto. Sim, ontem à noite, quinta-feira, o senhor em questão havia
alugado um carro que ainda estava usando. Não, na quarta-feira da semana
passada esse mesmo senhor não tinha alugado nenhum carro, era o que dizia
o computador.
Capítulo XVII

A resposta de Guggino chegou quando faltavam alguns minutos para as três.


Longa e detalhada. Montalbano anotou tudo meticulosamente. Cinco minutos
depois, Giallombardo se manifestou para comunicar que Serravalle tinha
voltado ao hotel.
— Não arrede o pé daí — ordenou-lhe o comissário. — Se ele sair de
novo antes de eu chegar, não deixe, arrume um pretexto qualquer, faça strip-
tease, dança do ventre, sei lá, mas não permita que ele se afaste.
Montalbano remexeu rapidamente os papéis de Michela, lembrava-se de
ter visto um cartão de embarque. Havia, sim, era o da última viagem
Bolonha-Palermo que a pobrezinha havia feito. Ele meteu-o no bolso e
chamou Gallo.
— Vamos comigo ao Della Valle, na viatura.
O hotel, no meio do caminho entre Vigàta e Montelusa, tinha sido
construído justamente atrás de um dos mais belos templos do mundo, e isso
na cara de superintendências artísticas, normas paisagísticas e planos
urbanísticos.
— Você me espera aí — disse o comissário a Gallo. Aproximou-se do
seu carro, dentro do qual Giallombardo cochilava.
— Era com um olho só! — justificou-se o agente.
O comissário abriu o porta-malas e pegou o estojo com o violino barato.
— Volte pro comissariado — ordenou a Giallombardo.
Quando atravessou o pátio do hotel, parecia um diretor de orquestra,
igualzinho.
— O doutor Serravalle está?
— Sim, no quarto. Quem eu devo anunciar?
— Você não vai anunciar nada, vai apenas fechar o bico. Eu sou o
comissário Montalbano. E, se você pensar em pegar no telefone, te meto a
mão na cara e depois a gente conversa.
— Quarto andar, apartamento 416 — disse o recepcionista, com os lábios
trêmulos.
— Ele recebeu telefonemas?
— Quando voltou eu dei os recados, três ou quatro.
— Quero falar com a telefonista.
A telefonista — imaginada pelo comissário, sabe-se lá por quê, como
uma moça muito jovem e bonitinha — era na verdade um coroa sessentão,
careca e de óculos.
— O recepcionista falou comigo. A partir do meio-dia, começou a
telefonar um tal de Eolo, de Bolonha. Não deixou o sobrenome em nenhuma
das vezes. Uns dez minutos atrás ele chamou de novo, e eu transferi a ligação
pro quarto.

No elevador, Montalbano puxou do bolso os nomes de todos os que, na


quarta-feira da semana anterior, haviam alugado um carro no aeroporto de
Punta Ràisi. Isto mesmo: Guido Serravalle não estava na lista, mas Eolo
Portinari, sim. E, por Guggino, ele soube que esse Eolo era muito amigo do
antiquário.

Bateu de leve na porta e, enquanto isso, lembrou-se de que sua pistola tinha
ficado no porta-luvas do carro.
— Pode entrar, está aberta.
O antiquário estava reclinado na cama, as mãos atrás da nuca. Havia
tirado somente os sapatos e o paletó, mantendo a gravata sem afrouxar. Ao
ver o comissário, pulou em pé, como aqueles bonecos de mola que saltam
assim que a gente abre a tampa da caixa que os comprime.
— Fique à vontade, fique à vontade — fez Montalbano.
— Ora, por favor! — disse Serravalle, calçando precipitadamente os
sapatos. Vestiu inclusive o paletó. Montalbano sentara-se numa cadeira, o
estojo sobre os joelhos.
— Pronto. A que devo a honra?
O antiquário evitava cuidadosamente olhar para o estojo.
— Daquela vez, por telefone, o senhor disse que se colocava à minha
disposição, se eu viesse a precisar.
— Certamente, e repito — disse Serravalle, sentando-se por sua vez.
— Eu evitaria esse transtorno, mas, já que o senhor veio para o funeral,
quero aproveitar.
— É um prazer. O que eu devo fazer?
— Apenas me ouvir.
— Não entendi bem, queira desculpar.
— Me escutar. Quero lhe contar uma história. Se achar que eu estou
exagerando ou dizendo coisas equivocadas, me interrompa, me corrija.
— Não vejo como eu poderia fazer isso, comissário. Eu não conheço a
história que o senhor vai contar.
— Tem razão. Nesse caso, me diga suas impressões quando eu chegar ao
fim. O protagonista da minha história é um cavalheiro que vive muito bem, é
um homem de bom gosto, proprietário de uma conhecida loja de móveis
antigos, com uma boa clientela. Uma atividade que o nosso herói herdou do
pai.
— Com licença — fez Serravalle —, sua história se passa onde?
— Em Bolonha — disse Montalbano, continuando: — Mais ou menos no
ano passado, esse cavalheiro conhece uma jovem senhora da alta burguesia.
Os dois se tornam amantes. Um relacionamento que não corre perigo: o
marido dela, por razões que seria demorado explicar agora, fecha, como se
costuma dizer, não um olho, mas os dois. Essa senhora quer muito bem ao
marido, mas, sexualmente, é muito apegada ao amante.
O comissário se interrompeu.
— Posso fumar? — perguntou.
— Mas é claro — disse Serravalle, passando-lhe um cinzeiro.
Montalbano puxou o maço do bolso, devagar, tirou três cigarros e
enrolou-os um a um entre o polegar e o indicador, optou por aquele que lhe
pareceu mais macio, voltou a guardar os outros dois no maço e começou a se
apalpar, procurando o isqueiro.
— Infelizmente não posso ajudá-lo, não fumo — fez o antiquário.
O comissário achou finalmente o isqueiro no bolso do paletó, examinou-o
como se nunca o tivesse visto, acendeu o cigarro e repôs o isqueiro no bolso.
Antes de recomeçar a falar, observou Serravalle, com olhar
aparentemente distraído. O antiquário tinha o lábio superior úmido e
começava a transpirar.
— Onde foi mesmo que eu parei?
— Na mulher que era muito apegada ao amante.
— Ah, sim. Infelizmente, o nosso protagonista tem um vício muito feio.
Aposta alto, jogos de azar. Neste último trimestre, foi surpreendido por três
vezes em cassinos clandestinos. Um dia, imagine, leva uma surra e acaba no
hospital. Ele diz que foi vítima de agressão e roubo, mas a polícia supõe,
repito, supõe, que tenha sido uma espécie de aviso por dívidas de jogo não
saldadas. De qualquer modo, para o nosso protagonista, que continua a jogar
e a perder, a situação vai ficando cada vez mais difícil. Ele se lamenta com a
amante, e esta procura ajudá-lo como pode. Ela tem a intenção de mandar
construir uma casinha aqui, porque adora o lugar. E a casa se revela uma feliz
oportunidade: inflando as despesas, a moça poderá arranjar para o amigo uns
cem milhões. Projeta um jardim e, provavelmente, fará uma piscina: novas
fontes de dinheiro por fora. Mas essas somas não passam de uma gota no
deserto, só duzentos ou trezentos milhões. Um dia, essa moça, que pra
facilitar a narrativa chamarei de Michela...
— Um momento — interrompeu Serravalle, com uma risadinha que
pretendia ser sardônica. — E o nome do protagonista?
— Guido, digamos assim — retrucou Montalbano, como se isso não
tivesse a menor importância.
Serravalle fez uma careta. Agora, o suor grudava-lhe a camisa ao peito.
— Não gosta? Também podemos chamá-los de Paolo e Francesca, se
preferir. Até porque a substância não muda.
O comissário esperou que Serravalle dissesse alguma coisa, mas, como o
antiquário não abria a boca, prosseguiu.
— Um dia, Michela encontra em Vigàta um famoso violinista que vive
retirado aqui. Nasce entre os dois uma simpatia, e ela revela ao mestre que
possui um velho violino herdado do bisavô. Michela mostra o instrumento ao
mestre, acho que meio por brincadeira, e este, logo à primeira vista, percebe
estar diante de um objeto de altíssimo valor, musical e pecuniário. Algo que
ultrapassa os dois bilhões. Ao voltar para Bolonha, Michela conta essa
história ao amante. Se as coisas forem como diz o mestre, o violino é
perfeitamente vendável, o marido de Michela só deve tê-lo visto uma ou duas
vezes, ninguém conhece o verdadeiro valor do instrumento. Bastará substituí-
lo, botar no estojo uma porcaria de violino qualquer, e Guido, finalmente,
estará livre de preocupações.
Montalbano parou de falar, tamborilou com os dedos no estojo e suspirou.
— Agora vem a pior parte — disse.
— Bem — fez Serravalle —, o senhor pode terminar de contar em outra
ocasião.
— Eu poderia, mas para isso precisaria fazer o senhor voltar de Bolonha
pra cá, ou então ir eu mesmo pra lá. Muito incômodo. Já que o senhor está
fazendo a cortesia de me ouvir com paciência, embora esteja morrendo de
calor, vou explicar por que considero esta próxima parte como a pior.
— E isso porque o senhor vai ter que falar de um homicídio?
Montalbano olhou o antiquário, de boca aberta.
— Por isso, acha? Não, aos homicídios eu estou habituado. Considero
essa parte como a pior porque devo abandonar os fatos concretos e penetrar
na mente de um homem, naquilo que ele pensa. Para um romancista, o
caminho seria mais fácil, mas eu sou apenas um leitor de livros que considero
bons. Queira me desculpar pela divagação. A esta altura, o nosso protagonista
coleta algumas informações sobre o mestre de que Michela lhe falou. E assim
descobre que se trata não só de um grande intérprete, de nível internacional,
mas também de um conhecedor da história do instrumento que ele toca. Em
suma, a possibilidade de que o mestre esteja certo é de noventa e nove por
cento. Porém, não há dúvida de que o assunto, se for deixado nas mãos de
Michela, vai demorar a se resolver. E não só isso: ela vai querer vender o
instrumento até mesmo com discrição, mas legalmente. Ou seja, daqueles
dois bilhões, tirando despesas várias, percentuais e o nosso Estado, que vai
cair em cima como um ladrão pra receber a sua parte, só vai restar menos de
um milhão. Mas existe um caminho mais curto. O nosso protagonista pensa
nele dia e noite, conversa com um amigo. Este amigo, digamos que se chama
Eolo...
Estava indo bem, a suposição se transformara em certeza. Como se
alvejado por um tiro de grosso calibre, Serravalle dera um pulo da cadeira,
para voltar a cair sentado com todo o peso. Depois afrouxou o nó da gravata.
— Sim, vamos chamá-lo de Eolo. Eolo concorda com o protagonista em
que só existe um caminho: liquidar a moça e pegar o violino, substituindo-o
por um outro de pouco valor. Serravalle convence o amigo a lhe dar uma
mãozinha. A propósito, a amizade entre eles é clandestina, talvez de jogo,
Michela nunca viu a cara de Eolo. No dia marcado, os dois amigos pegam o
último voo de Bolonha que tenha conexão em Roma para Palermo. Eolo
Portinari...
Serravalle estremeceu de leve, como quando se dispara um segundo tiro
sobre um moribundo.
— ... mas que idiota eu sou, botei até um sobrenome! Bem, Eolo Portinari
viaja sem bagagem ou quase, mas Guido tem uma mala grande. No avião, os
dois fingem não se conhecer. Pouco antes de partir de Roma, Guido telefona
pra Michela e diz que está chegando, que precisa dela, pede que ela vá buscá-
lo no aeroporto de Punta Ràisi, talvez dê a entender que está fugindo dos
credores, os quais pretendem matá-lo. Chegados a Palermo, Guido parte pra
Vigàta com Michela, enquanto Eolo aluga um carro e vai também pra Vigàta,
mantendo-se, porém, a uma certa distância. Eu suponho que, durante a
viagem, o protagonista diga à amante que, se não fugisse de Bolonha,
dançaria de vez. E que pensou em se esconder por alguns dias na casinha de
campo de Michela. Quem teria a ideia de ir procurá-lo naquele lugar?
Michela concorda, feliz por ter consigo o amante. Antes de chegar a
Montelusa, ela para num bar, compra dois sanduíches e uma garrafa de água
mineral. Mas tropeça num degrau e cai, ocasião em que Serravalle é visto de
frente pelo dono do bar. Os dois chegam à casa depois da meia-noite.
Michela vai logo tomar um banho e corre para os braços do seu homem. Eles
fazem amor uma vez, e depois Guido pede a Michela pra repetir a dose de um
modo particular. E, no fim dessa segunda relação sexual, empurra a cabeça
dela contra o colchão até sufocá-la. Sabe por que ele pediu pra ter esse tipo de
relação? Certamente, os dois já tinham transado assim antes, mas, naquele
momento, Guido não queria que sua vítima o olhasse de frente, enquanto era
assassinada. Mal acaba de cometer o crime, o protagonista escuta uma
espécie de lamento, um grito abafado, vindo lá de fora. Ele se debruça e,
auxiliado pela luz que se projeta da janela, percebe um voyeur, pelo menos é
o que lhe ocorre, encarapitado numa árvore muito próxima, e que assistiu ao
crime. Nuzinho como está, o protagonista sai correndo, arma-se com alguma
coisa e dá uma pancada no rosto do desconhecido, que mesmo assim
consegue fugir. Não há um minuto a perder. Nosso protagonista se veste, abre
a cristaleira, apanha o violino, guarda-o na mala, tira dessa mesma mala o
violino barato e bota-o no estojo do outro. Daí a poucos minutos, Eolo passa
com o carro e o protagonista embarca. Não importa o que eles fazem depois.
O fato é que, na manhã seguinte, estão em Punta Ràisi e pegam o primeiro
voo pra Roma. Até aqui, tudo correu bem pro nosso homem, que certamente
se mantém informado dos desdobramentos comprando os jornais sicilianos. E
as coisas melhoram ainda mais quando ele fica sabendo que o assassino foi
descoberto e que, antes de ser morto num confronto a tiros, teve tempo para
se dizer culpado. O protagonista compreende que não há mais necessidade de
esperar pra botar o violino à venda, clandestinamente, e encarrega Eolo
Portinari de cuidar do negócio. Mas surge uma complicação: o protagonista
toma conhecimento de que as investigações foram reabertas. Aproveita a
oportunidade da cerimônia fúnebre e se precipita pra Vigàta, a fim de falar
com a amiga de Michela, a única que ele conhece de nome e que tem
condições de lhe dizer como andam as coisas. Depois volta pro hotel. E, a
esta altura, vem um telefonema de Eolo: o violino vale poucas centenas de
milhares de liras. O protagonista compreende que está fodido, matou uma
pessoa inutilmente.
— Então — fez Serravalle, que parecia ter lavado a cara sem se enxugar,
tão ensopado estava de suor —, o seu protagonista foi cair naquela margem
mínima de erro, a de um por cento, atribuída aos cálculos do mestre.
— Pois é, quando uma pessoa não tem sorte no jogo... — foi o
comentário de Montalbano.
— Bebe alguma coisa?
— Não, obrigado.
Serravalle abriu o frigobar, pegou três garrafinhas de uísque, virou-as
num copo, sem gelo, e bebeu tudo em dois tragos.
— É uma história interessante, comissário. O senhor sugeriu que eu
fizesse minhas observações no fim e, se me permite, vou fazê-las.
Começando. O seu protagonista não deve ter sido bobo de viajar de avião
usando o verdadeiro nome, certo?
Montalbano puxou do bolso, o suficiente para que o outro visse, a
pontinha do cartão de embarque.
— Não, comissário, isso daí não serve de nada. Admitindo-se que exista
um cartão de embarque, isso não significa nada, mesmo que tenha o nome do
protagonista. Qualquer um pode usar, eles não pedem a carteira de
identidade. E quanto ao encontro no bar... O senhor diz que aconteceu à
noite, e durante poucos segundos. Seria um reconhecimento inconsistente,
concorda?
— Seu raciocínio faz sentido — disse o comissário.
— Continuando. Proponho uma variante para a sua narrativa. O
protagonista confidencia a descoberta da amante a um cara chamado Eolo
Portinari, um delinquente de quinta categoria. E Portinari, vindo a Vigàta por
iniciativa própria, faz tudo o que o senhor atribui ao seu protagonista.
Portinari alugou o carro mostrando a própria carteira de motorista, Portinari
tentou vender o violino em relação ao qual o mestre se enganou, e foi
Portinari quem violentou a mulher, pra aparentar um crime passional.
— Sem ejacular?
— Claro! Do esperma se chegaria facilmente ao DNA.
Montalbano levantou dois dedos, como se pedisse licença para ir ao
banheiro.
— Eu gostaria de dizer duas coisas sobre suas observações. O senhor tem
toda a razão: demonstrar a culpa do protagonista vai ser demorado e difícil,
mas não impossível. Portanto, de hoje em diante, o protagonista terá dois cães
ferozes em seus calcanhares: os credores e a polícia. A segunda coisa é que o
mestre não se enganou ao avaliar o instrumento. O violino vale realmente
dois bilhões.
— Mas se agora há pouco...
Serravalle compreendeu que estava se traindo e calou-se de repente.
Montalbano continuou, como se não tivesse ouvido.
— Meu protagonista é muito esperto. Imagine que ele continua a ligar
para o hotel, procurando pela moça, mesmo depois de matá-la. Mas ele não
sabe de um detalhe.
— Qual?
— Veja bem, a coisa é tão inacreditável que eu estou quase não contando.
— Faça um esforço.
— Não sei se consigo. Tá bom, só mesmo pra lhe fazer um favor. Tendo
sabido, pela amante, que o mestre se chama Cataldo Barbera, o meu
protagonista recolheu muitas informações sobre ele. Então, o senhor agora
chama o telefonista e pede uma ligação pro mestre, o número está no
catálogo. Fale com ele em meu nome, peça que ele mesmo lhe conte.
Serravalle levantou-se, pegou o fone, disse ao telefonista com quem
desejava falar e ficou esperando, com o aparelho na mão.
— Alô? É o mestre Barbera?
Assim que ouviu a resposta, desligou.
— Prefiro ouvir da sua voz.
— Pois não. Dona Michela leva o mestre à casa de campo, tarde da noite.
Cataldo Barbera, mal vê o violino, quase desmaia. Toca o instrumento e não
tem mais dúvidas: trata-se de um Guarnieri. Ele comenta isso com Michela e
diz que gostaria de submetê-lo ao exame de um perito competente. Ao
mesmo tempo, aconselha a moça a não guardar o violino naquela casinha de
campo, praticamente desabitada. Ela então o deixa com o mestre, que o leva
para casa e, em troca, entrega um violino dele pra Michela botar no estojo. O
mesmo que o meu protagonista, sem saber de nada, se precipita em roubar.
Ah, eu já ia esquecendo: o meu protagonista, depois de matar Michela,
também rouba a bolsa cheia de joias e o Piaget. Como é que se diz mesmo?
Tudo dá caldo. E ele ainda some com as roupas e os sapatos, mas isso é pra
turvar ainda mais a água e tentar evitar o exame de DN A.
Montalbano esperava tudo, menos a reação de Serravalle. De início,
achou que o antiquário, agora de costas e olhando para fora pela janela,
estava chorando. Depois Serravalle se voltou e Montalbano percebeu que, ao
contrário, ele estava era contendo, com dificuldade, um ataque de riso. Mas
bastou que, por um segundo, os olhares dos dois se cruzassem para a risada
explodir em toda a sua violência. Serravalle ria e chorava. A seguir, com
evidente esforço, acalmou-se.
— Talvez seja melhor eu ir com o senhor — disse.
— É o que eu lhe aconselho — fez Montalbano. — O pessoal que
aguarda o senhor em Bolonha tem outras intenções.
— Vou botar alguma coisa numa valise e podemos sair.
Montalbano viu-o inclinar-se para a maleta que estava sobre uma
bancada. Mas alguma coisa na atitude de Serravalle o assustou, e ele pulou
em pé.
— Não! — gritou o comissário. E precipitou-se.
Tarde demais. Guido Serravalle já metera na boca o cano de um revólver
e apertara o gatilho. Contendo a custo a sensação de nojo, o comissário
passou as mãos no rosto, do qual escorria uma matéria viscosa e quente.
Capítulo XVIII

O tiro arrancara metade da cabeça de Guido Serravalle. O estampido, naquele


pequeno quarto de hotel, tinha sido tão forte que Montalbano sentia uma
espécie de zumbido nos ouvidos. Como era possível que ainda não tivesse
aparecido ninguém para bater à porta, perguntando o que havia acontecido?
O Hotel Della Valle, construído no fim do século 19, tinha paredes grossas e
sólidas, e talvez, àquela hora, os turistas estivessem todos fora, fotografando
os templos. Melhor assim.
O comissário foi até o banheiro, limpou como pôde as mãos grudentas de
sangue e depois pegou o telefone.
— Aqui é o comissário Montalbano. No estacionamento de vocês tem
uma viatura policial. Mandem o agente subir, e me chamem imediatamente o
gerente.
O primeiro a chegar foi Gallo, que se apavorou ao ver o seu superior com
sangue no rosto e nas roupas.
— Doutor, o senhor está ferido, doutor?
— Calma, o sangue não é meu, é desse cara aí.
— E quem é ele?
— O assassino de Michela Licalzi. Mas, por enquanto, não diga nada a
ninguém. Corra até Vigàta e peça a Augello que mande um telegrama fonado
ao nosso pessoal em Bolonha: é pra manterem sob estreita vigilância um
elemento chamado Eolo Portinari, um delinquente sobre o qual eles
certamente têm dados. É o cúmplice deste aqui — concluiu o comissário,
apontando o suicida. — Ah, e depois volte logo pra cá.
Gallo, já na porta, afastou-se de lado para dar passagem ao gerente, um
homão de dois metros de altura e de largura proporcional. Este, ao ver o
corpo sem metade da cabeça e o quarto todo respingado, disse “hem?” —
como quem não entendeu uma pergunta —, foi caindo devagarinho de
joelhos e por fim se estabacou de cara no chão, desmaiado. Uma reação tão
imediata que Gallo ainda não tinha tido tempo de sair. Ele e Montalbano
arrastaram o gerente até o toalete e encostaram o corpanzil na borda da
banheira. Gallo pegou o chuveirinho, abriu o jato e dirigiu-o para a cabeça do
homão, que se recuperou quase na mesma hora.
— Que sorte! Que sorte! — exclamava ele, enxugando-se.
Ao perceber que Montalbano o olhava com ar interrogativo, o gerente,
confirmando o que o comissário já tinha pensado, explicou:
— O grupo japonês está todo fora.

Antes de chegarem o juiz Tommaseo, o doutor Pasquano, o novo diretor da


Móvel e a turma da Perícia, o comissário, cedendo à insistência do gerente,
que fazia questão de lhe emprestar umas roupas, trocou de terno e de camisa.
Nos trajes do homão caberiam dois Montalbano. Mãos perdidas dentro das
mangas e pernas da calça desabando em sanfona por cima dos sapatos, ele
ficou parecendo um anão de circo. E isso o deixava de mau humor, bem mais
do que a necessidade de contar a todos, a cada vez recomeçando do começo,
os detalhes da descoberta do assassino e do suicídio deste. Entre perguntas e
respostas, entre observações e esclarecimentos, entre os se, os talvez, os mas
e os porém, ele só ficou livre para retornar a Vigàta, ao comissariado, lá pelas
oito e meia da noite.
— Você encolheu? — informou-se Mimì, ao vê-lo entrar.
Por um triz, conseguiu esquivar-se do soco de Montalbano, que lhe
espatifaria o nariz.

Não foi preciso dizer “todo mundo!”, pois, espontaneamente, todo mundo se
apresentou. E o comissário deu a satisfação que eles mereciam: explicou,
tintim por tintim, desde o nascimento das suspeitas sobre Serravalle até o
trágico desfecho. A observação mais inteligente partiu de Mimì Augello.
— Ainda bem que ele se matou. Seria difícil meter esse homem na cadeia
sem uma prova concreta. Um bom advogado logo conseguiria tirar ele de lá.
— Mas ele se suicidou! — disse Fazio.
— E o que significa isso? — retrucou Mimì. — Aliás, a morte do pobre
Maurizio Di Blasi pode ter sido suicídio também. Quem nos diz que ele não
saiu da gruta, com o sapato na mão, esperando que os agentes atirassem,
como aconteceu, achando que aquilo era uma arma?
— Desculpe, comissário, mas por que ele gritava que queria ser punido?
— perguntou Germanà.
— Porque havia assistido ao crime e não tinha conseguido impedi-lo —
concluiu Montalbano.
Enquanto saíam todos da sala, o comissário lembrou-se de uma coisa que
precisava mandar fazer logo, sob o risco de, no dia seguinte, tê-la esquecido
inteiramente.
— Gallo, venha cá. Vá até a nossa garagem, pegue todos os papéis que
estiverem dentro do Twingo e me traga. Fale com o nosso mecânico e peça
um orçamento para o conserto. Depois, diga que ele pode vender o carro de
segunda mão, se tiver interesse.

— Doutor, o senhor me escuta um minuto somentesmente?


— Entra, Catarè.
Catarella estava rubro, encabulado e contente.
— O que foi? Fala.
— Me deram o boletim da primeira semana, doutor. O concurso de
informática vai de segunda a sexta de manhã. Queria mostrar ele ao senhor.
Era um papel dobrado em dois. Em tudo, Catarella havia ganho
“Excelente”; sob o item “Observações”, estava escrito: “É o primeiro da
turma”.
— Parabéns, Catarella! Você é a bandeira do nosso comissariado!
Por pouco Catarella não se debulhou em lágrimas.
— Quantos são, no curso?
Catarella começou a contar nos dedos:
— Amato, Amoroso, Basile, Bennato, Bonura, Catarella, Cimino,
Farinella, Filippone, Lo Dato, Scimeca e Zìcari. Doze, doutor. Se eu tivesse
um computador aqui, a conta ficava mais fácil.
O comissário botou a cabeça entre as mãos.
Teria um futuro a humanidade?

Gallo voltou da ida até o Twingo.


— Falei com o mecânico. Ele pode cuidar da venda. No porta-luvas,
achei o manual e um mapa rodoviário.
Ele colocou tudo sobre a mesa do comissário, mas ficou por ali. Estava
mais encabulado do que Catarella.
— O que foi?
Gallo não respondeu: limitou-se a estender a Montalbano um
retangulozinho de cartolina.
— Achei embaixo do assento dianteiro, o do carona.
Era o canhoto de um cartão de embarque para o voo Roma-Palermo, o
que aterrissava no aeroporto de Punta Ràisi às dez da noite. O dia assinalado
no cartão era a quarta-feira da semana anterior e o nome do passageiro, G.
Spina. Por que, perguntou-se Montalbano, quem usa nome falso quase
sempre mantém as iniciais do verdadeiro? Guido Serravalle havia perdido o
cartão no carro de Michela. Depois do crime, não havia tido tempo de
procurá-lo, ou então tinha pensado que ainda o tinha no bolso. Eis por que, ao
falar disso, tinha negado a existência do cartão e aludido à possibilidade de
que o nome do passageiro não fosse o verdadeiro. Mas agora, com o canhoto
na mão, seria possível chegar, embora com certo trabalho, ao nome de quem
realmente havia viajado. Só então Montalbano percebeu que Gallo ainda
estava diante da escrivaninha, com uma cara muito séria. Quase sem voz, o
agente comentou:
— Se a gente tivesse olhado antes dentro do carro...
Pois é. Se tivessem inspecionado o Twingo no dia seguinte ao da
descoberta do cadáver, as investigações teriam logo seguido na direção certa,
Maurizio Di Blasi ainda estaria vivo e o verdadeiro assassino, na cadeia. Se...

Desde o princípio, tudo tinha sido uma troca atrás da outra. Maurizio tomado
por um assassino, o sapato confundido com uma arma, um violino substituído
por outro e este, por um terceiro, Serravalle querendo se fazer passar por
Spina... Depois da ponte, Montalbano parou o carro, mas não desceu. Havia
luz na casa de Anna, ele sentia que ela o esperava. Acendeu um cigarro, mas,
chegado à metade, jogou-o pela janela, ligou o motor e partiu.
Realmente, não era o caso de acrescentar à lista mais uma troca.

Entrou em casa, tirou as roupas que o transformavam em anão de circo, abriu


a geladeira, pegou umas dez azeitonas e cortou uma fatia de queijo-cavalo.
Foi sentar-se na varanda. A noite estava luminosa, o mar ondulava
lentamente. Ele não quis perder mais tempo. Levantou-se e discou o número.
— Livia? Sou eu. Te amo.
— O que foi que aconteceu? — perguntou Livia, alarmada.
Durante todo o tempo em que eles estavam juntos, Montalbano só havia
dito que a amava em momentos difíceis, ou até perigosos.
— Nada. Amanhã de manhã eu vou estar ocupado, preciso escrever um
relatório enorme para o chefe de polícia. Mas, se não tiver nenhuma
complicação, à tarde pego um avião e chego aí.
— Eu espero você — disse Livia.
Nota do autor

Nesta quarta investigação do comissário Montalbano (com nomes, lugares e


situações inventados em sã consciência), entram na dança os violinos. O
autor, como o seu personagem, não está habilitado a falar e escrever sobre
música (durante algum tempo, e para o desespero dos vizinhos, ousou tentar
estudar sax tenor): por isso, tirou todas as informações dos livros que S. F.
Sacconi e F. Farga dedicaram ao violino.
O doutor Silio Bozzi evitou que eu incorresse em algum erro “técnico” ao
narrar a investigação: e por isso lhe sou grato.
Andrea Camilleri nasceu em Porto Empedocle, Itália, em 1925. Durante anos, foi
diretor, dramaturgo e roteirista de televisão. Nos anos 80 começou a dedicar-se com
mais frequência à literatura, conquistando público e crítica com seus romances
ambientados na cidade de Vigàta e protagonizados pelo comissário Montalbano. Com
esses romances policiais, foi finalista do prêmio Noir, vencedor do Ostia, em 1997, e
do Selezione Bancarella, em 1998. Autor, também, de romances históricos, ganhou,
em 1998, o prestigiado prêmio Empedocle.
Notas

[1] “Carapinhada”, refresco de laranja ou limão com bastante gelo moído. (N. da T.)
[2] Alusão a um episódio da luta pela independência e unificação da Itália, no século XIX.
Belfiore, nos arredores de Mântua, é um vale próximo a um lago em cuja margem foram
executados alguns rebeldes. (N. da T.)
[3] Jogo de palavras com lattemiele, literalmente “leitemel”, indivíduo um tanto meloso, a
ponto de parecer falso. (N. da T.)
[4] Famoso e controvertido apresentador de programas e concursos na tevê, ex-diretor
artístico e apresentador do festival de música de San Remo. (N. da T.)
[5] Poeta, romancista, crítico, gramático e dicionarista, durante algum tempo o italiano
Nicolò Tommaseo (1802-1874) exerceu sobre os escritores de sua época uma espécie de
ditadura da linguagem. (N. da T.)
[6] Cerca de R$ 500 mil. (N. da T.)
[7] Folhas e brotos de abobrinha siciliana cozidos “no ponto certo”. (N. da T.)
[8] Arma dei Carabinieri, ou Arma Benemerita, corpo do exército italiano com funções de
polícia militar, judiciária e civil. Esta última atribuição coincide com as de Montalbano e
sua equipe. (N. da T.)
[9] Ou caponata, prato siciliano feito à base de berinjela frita, alcaparra, azeitona e aipo,
com tempero agridoce, e servido frio. (N. da T.)
[10] O cannoli, “canudinho”, consiste num cilindro de massa recheado com uma mistura
de ricota, açúcar, frutas cristalizadas, chocolate, baunilha etc., recheio esse que pode variar,
segundo a região. Taralli é uma espécie de rosca, temperada com sementes de anis, que
pode ou não levar açúcar. O tetù é o taralli colorido. Mostazzoli são docinhos feitos de
farinha misturada com mel ou mosto cozido, chocolate, uvas-passas, figos secos e
amêndoas trituradas. Frutti di martorana: docinhos modelados sob várias formas (legumes,
peixinhos, frutas) e distribuídos no Dia de Finados, tradição que parece ter-se originado
num convento anexo à igreja da Martorana, em Palermo. A cassata siciliana é uma torta
feita com ricota e guarnecida com cubinhos de chocolate e frutas cristalizadas. (N. da T.)
[11] Depois de cozidos em água e sal e cortados em pedacinhos, os polvos são temperados
com caldo de limão, azeite, salsa, alho, sal e pimenta. (N. da T.)
[12] Nome dado na Itália a Larry Semon (1889-1928), comediante americano de cinema
mudo. (N. da T.)
[13] Massa gratinada ao forno, em camadas alternadas com carne moída, berinjela,
mortadela ou salame, ovos cozidos, três tipos de queijo e alguns outros ingredientes. (N. da
T.)

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