Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Juliano C. S. Neves*1
1
Universidade Federal do ABC, Centro de Ciências Naturais e Humanas, Santo André, SP, Brasil.
The most commented scientific image in 2019 was the image of M87*, the central supermassive black hole at the
Messier 87 galaxy. From the Event Horizon Telescope’s observation, we were able to see a black hole. Indeed, the
famous image shows us the shadow of M87*. In this article, the concept of black hole shadow will be introduced
as well as its importance to researches in gravitation and cosmology.
Keywords: Black Hole; Shadow; General Relativity.
4 Para
uma leitura sobre o primeiro teste da relatividade geral em
3 Parauma leitura histórica dessa importante solução ou conquista Sobral, a Revista Brasileira de Ensino de Física publicou um
da teoria einsteiniana, veja Saa [8] sobre os 100 anos da solução de número especial em comemoração aos seus 100 anos. Veja, por
Schwarzschild. exemplo, os artigos [21–23].
Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 42, e20200216, 2020 DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0216
Neves e20200216-3
negro entre o fundo estrelado e nós, haverá uma região anteriormente, para o buraco negro de Schwarzschild
sem brilho, escura, cuja silhueta marca o limite da sombra rf = 3M , já o raio√de sua sombra, devido ao efeito gra-
do buraco negro. Como podemos ver na figura 2 (em vitacional, é de 3 3M . Para obter as trajetórias para
cima), raios de luz de estrelas atrás do buraco negro as quais r = rf , precisamos das equações das geodésicas
(em relação à nossa posição ou a de um observador) para o buraco negro em questão. E como, neste artigo,
podem cair no buraco negro ou atingir o nosso observador. o buraco negro escolhido é o de Kerr, veremos então as
Haverá trajetórias da luz que passam na borda da sombra. equações das geodésicas para essa geometria.
Tais trajetórias delimitam a chamada silhueta da sombra. O distante observador, segundo a figura 2 (em cima),
São órbitas instáveis, podem conduzir ao buraco negro localizado em r = robs rf , observa a sombra e usa
ou ao seu exterior. Portanto, em r = rf temos uma coordenadas especiais para mapeá-la. Coordenadas ce-
região de fótons aprisionados ou desviados pelo campo lestes são usadas para descrever a sombra. Quando tais
gravitacional do buraco negro, uma região externa ao coordenadas são projetadas num plano cartesiano, temos
horizonte de eventos chamada de esfera de fótons. Se então um círculo ou um quase círculo que representa a
assumirmos que o raio do horizonte de eventos é r = rh , sombra ou a sua silhueta.
logo Como podemos notar na figura 1, na imagem divul-
rf > rh . (1) gada pela EHT, há no entorno da sombra uma região
avermelhada-alaranjada. Nessa região existe matéria (gás
No entanto, como podemos ver na figura 2 (em baixo), de-
e poeira) orbitando e caindo em direção ao M87*. Nós
vido ao desvio da luz promovido pela grande massa de um
a enxergamos porque em seu movimento essa matéria
buraco negro, efeito também chamado de lente gravitaci-
emite, por exemplo, raios X. Portanto, deve-se esperar
onal, o observador e os radiotelescópios da EHT medem
que uma sombra não esteja a sós, um disco de acreção com
um raio ou diâmetro para a sombra maior do que o raio
matéria ionizada ou plasma é concebido no entorno de
ou diâmetro da esfera de fótons. Como foi mencionado
uma sombra. Há um campo de estudo atualmente que diz
respeito à melhor maneira de modelar a vizinhança de um
buraco negro, seja usando plasma ou matéria escura. É
um campo fértil dentro da atual física de buracos negros.5
Neste artigo, nas sombras construídas a partir da geome-
tria de Kerr, considerarei, por simplicidade, um buraco
negro girante no completo vácuo. Tal simplificação pode
ser justificada quando a matéria avermelhada-alaranjada
não tem uma massa incrivelmente grande, podendo assim
ser ignorada a sua influência na geometria ou nas formas
do espaço-tempo e da sombra em estudo.
Toda sombra é observada a partir de um ângulo, indi-
cado aqui por θo , que é o ângulo em que um observador
mapeia a sombra, o seu ângulo a partir do eixo de ro-
tação do buraco negro (veja figura 2). O valor de θo na
observação famosa é estimado pela colaboração a patir
de jatos emitidos pelo buraco negro supermassivo M87*.
Como é suposto que tais jatos são emitidos na direção
do eixo de rotação de um buraco negro, a observação
dos jatos de M87* indica 17◦ . Portanto, assume-se que
o buraco negro está sendo observado àquele ângulo. Ou-
tro parâmetro que diz respeito à observação — e não a
uma característica em si do objeto — é a nossa distân-
cia em relação ao M87*. A colaboração EHT relata o
valor robs = (16.8 ± 0.8)Mpc (em megaparsec ou, apro-
Figura 2: (Em cima) Na representação, a sombra está entre o ximadamente, 55 milhões de anos-luz de distância). O
fundo estrelado e o observador que a mapeia com o uso das diâmetro angular do objeto observado (incluindo a área
coordenadas x e y. O distante observador coloca-se a um ângulo avermelhada-alaranjada) é outro parâmetro observaci-
θo em relação ao eixo de rotação do buraco negro. (Em baixo) onal que diz respeito à nossa posição em relação ao
Nosso observador O observa um diâmetro aparente D para a fenômeno observado. Seu valor obtido pela EHT é de
sombra maior do que o diâmetro da esfera de fótons (região d = 42 ± 3 µas (em micro arco-segundo). Por fim, a
escura que captura os raios de luz). Devido ao efeito do desvio
sombra de M87* é levemente deformada, seu desvio da
dos raios de luz (deflexão da luz) pela grande massa do buraco
circularidade é menor do que 10%, ou seja, ∆C . 0.1,
negro, o observador constatará, a partir do diâmetro angular do
fenômeno (d = 42 ± 3 µas para M87*), um diâmetro linear para e isso indica que M87* não é estático, mas gira. Como
sombra maior do que o diâmetro da esfera de fótons. 5 Veja Cunha e Herdeiro [24] para uma revisão do tema.
DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0216 Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 42, e20200216, 2020
e20200216-4 O buraco negro e sua sombra
disse, um desvio da circularidade diferente de zero só é escrita como uma matriz diagonal. Isso torna cálculos,
possível a um objeto com rotação sobre o seu próprio como o de geodésicas, a partir da métrica de Kerr, algo
eixo. muito mais complicado.
Outros parâmetros importantes de M87* são a sua A geometria ou espaço-tempo de Kerr é uma solução
massa e o seu momento angular. E tais parâmetros são exata das equações de Einstein
intrínsecos ao objeto observado, não dependem da posição
relativa do observador. Sua massa é bem estabelecida pela Gµν = 8πTµν , (4)
EHT, é M = (6.5 ± 0.7) × 109 M , onde M é a massa do em que Gµν é o tensor de Einstein (diz respeito à geo-
Sol. Já o seu momento angular ainda é um parâmetro que metria), e Tµν é o tensor energia-momento (diz respeito
está sob debate. Estimativas feitas a partir da deformação à matéria e à energia do espaço-tempo). A geometria de
da sombra ou do seu desvio da circularidade rejeitam um Kerr é uma solução com simetria axial, ao contrário da
valor muito pequeno para a rotação do buraco negro. Tal de Schwarzschild que tem um grau maior de simetria por
deformação, para o ângulo de 17◦ em que é observado, só possuir a simetria esférica. Ou seja, a geometria de Kerr
é possível para um buraco negro que gira apressadamente. é simétrica em relação ao eixo segundo o qual um corpo
Na próxima seção, veremos quão rápido pode ser esse ou um buraco negro com massa M roda. Como roda,
movimento. têm momento angular J. Fazendo-se a = 0, o momento
angular é nulo, logo temos a métrica de Schwarzschild ou
3. Um Buraco Negro com Rotação um corpo sem rotação. Em Kerr, o corpo gira no vácuo,
portanto o tensor energia-momento é nulo, i.e., Tµν = 0.
3.1. A geometria A métrica (2) possui dois dos três possíveis parâmetros
Na teoria da relatividade geral, como disse, a métrica que definem qualquer buraco negro: são eles a massa,
ou geometria de Kerr descreve um corpo em rotação. o spin ou o momento angular e a carga (podendo ser
Se a geometria de um corpo estático foi construída por elétrica e, até mesmo, uma ainda não observada carga
Schwarzschild logo após Einstein divulgar as suas equa- magnética). À Kerr só lhe falta a carga.7 É o teorema
ções do campo gravitacional em 1916, foram necessários no-hair (ou teorema da calvície) aquele que afirma que
quase 50 anos para que alguém construísse um espaço- um buraco negro — descrito pela teoria da relatividade
tempo que descreve um corpo em rotação no contexto geral acoplada ao electromagnetismo — é caracterizado
einsteiniano. Roy Kerr o fez num já clássico trabalho [6]. por apenas três parâmetros.8
Na forma mais adotada, nas chamadas coordenadas de A função ∆ da métrica tem grande importância. Seus
Boyer-Lindquist6 (t, r, θ, φ), a métrica de Kerr é escrita zeros ou raízes indicam os raios do horizonte de eventos
como r = rh e do horizonte interno r = ri . Ao contrário do
buraco negro de Schwarzschild, em Kerr há um segundo
1 Σ horizonte, um interno, que para o fenômeno sombra não
ds2 = gµν dxµ dxν = − ∆ − a2 sen2 θ dt2 + dr2
Σ ∆ tem relevância. Os zeros de ∆ indicam
sen2 θ 2
(r + a ) − ∆a sen θ dφ2 rh = M + M 2 − a2 e ri = M − M 2 − a2 , (5)
2 2 2 2 2
p p
+Σdθ +
Σ
−
4aM r
sen θdtdφ,
2
(2) e podemos ver que quando a = 0, temos rh = 2M , que é o
Σ raio de Schwarzschild. A condição a2 ≤ M 2 na métrica de
sendo que as funções da métrica ∆ e Σ são definidas Kerr diz respeito à existência de horizontes, pois caso essa
como desigualdade seja violada não há raízes reais para ∆, ou
seja, ri e rh tonam-se números complexos. Tal condição
∆ = r2 + a2 − 2M r e Σ = r2 + a2 cos2 θ. (3) é um limite superior à rotação do buraco negro. Caso
não seja obedecida, o buraco negro de Kerr é substituído
Aqui, as coordenadas r, θ e φ têm o mesmo significado das por uma singularidade nua, uma singularidade que não
coordenadas de um problema tratado com coordenadas é escondida ou “vestida” por um horizonte de eventos.9
esféricas, sendo r a coordenada radial, θ o ângulo polar, e 7A solução das equações de Einstein para um corpo ou buraco
φ é o ângulo azimutal. E, claro, t é a coordenada temporal negro com rotação e carga é a solução de Kerr-Newman.
na geometria em destaque. Os parâmetros a e M na 8 Veja Carroll [26], capítulo 6, para uma discussão sobre o tema.
métrica (2) são o parâmetro de rotação, que se relaciona Aqui calvície significa que caso um buraco negro “engula” matéria
em diversas configurações, o resultado disso será um buraco negro
com o momento angular J do corpo por a = J/M , e a descrito por apenas três parâmetros, e toda a informação e carac-
massa do buraco negro, respectivamente. Como podemos terística daquilo que entrou é definitivamente perdida, como os fios
notar diretamente da equação (2), a métrica de Kerr não de cabelo de um potencial careca.
9 Claro, desde que aceitemos a noção de singularidade como algo
é diagonal, quando escrita como uma matriz gµν . Há
“real”. No entanto, buracos negros regulares não têm uma singula-
elementos fora da diagonal principal, são eles gtφ = gφt , ridade e são possíveis mesmo na teoria da relatividade geral (veja
ao contrário da geometria de Schwarzschild que pode ser a referência [27] para uma apresentação do tema na Revista Brasi-
leira de Ensino de Física). Um estudo sobre a ficcionalidade do
6 Veja Boyer e Lindquist [25]. conceito problemático de singularidade é encontrado em Neves [28].
Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 42, e20200216, 2020 DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0216
Neves e20200216-5
Além dos horizontes, a métrica (2) indica uma região energia de um buraco negro em rotação. Extrai-se a
especial na geometria de Kerr. É a ergoesfera, algo exte- energia do buraco negro, diminuindo a sua rotação. Tal
rior ao horizonte de eventos, uma região em que não há mecanismo só é possível em buracos negros que possuem
observadores estacionários. Em tal região, um observador uma ergosfera.10
é arrastado pela rotação do buraco negro, é o fenômeno Por fim, um comentário sobre os extremos da geo-
do arrasto do espaço-tempo que ocorre na ergoesfera, metria ou buraco negro de Kerr. Para valores grandes
fenômeno que, como veremos, influencia a forma da som- da coordenada radial r, o espaço-tempo de Kerr tende
bra. Na linguagem técnica da geometria diferencial, o ao espaço-tempo de Hermann Minkowski. Ou seja, a
limite da ergosfera, a chamada superfície do limite es- métrica de Kerr é assintoticamente plana, seu limite,
tacionário, indicada por S+ na figura 3, dá-se por uma quando r → ∞, é o espaço-tempo de Minkowski. Por
superfície de Killing em que vetores de Killing tangentes outro lado, quando olhamos para dentro do buraco negro
a tal superfície são nulos, i.e., têm norma igual a zero (ve- de Kerr, encontramos uma singularidade que, ao contrá-
tores de Killing proveem quantidades conservadas, como rio da singularidade de Schwarzschild, não é um ponto.
veremos). Tal como para os horizontes, em Kerr existe A singularidade em Kerr tem a “forma” de um anel (veja
igualmente uma superfície interna do limite estacionário, figura 3). Uma singularidade, seja a de Schwarzschild ou
indicada por S− . As superfícies do limite estacionário, a de Kerr, diz respeito à infinitude de quantidades físicas
que encerram regiões proibitivas a um observador estaci- e geométricas ou, mais precisamente, à descontinuidade
onário, são dadas por zeros de outra função, nesse caso de geodésicas.11
são zeros da função métrica gtt . Suas expressões são
3.2. As geodésicas
(6)
p
S± = M ± M 2 − a2 cos2 θ,
Foi Brandon Carter [30] quem calculou, pela primeira
coincidindo com os raios dos horizontes interno e externo vez, as geodésicas da geometria de Kerr. Como a massa
nos polos, quando θ = 0 (veja figura 3). A ergosfera, como de um corpo (seja em repouso ou em movimento) altera
uma região especial no espaço-tempo de Kerr, localiza-se a geometria ou a “forma” do espaço-tempo, para cada
então entre rh e S+ , é a região em que a coordenada solução das equações de Einstein que especifica uma dada
radial assume os valores rh < r < S+ . Observadores condição a um corpo ou a vários corpos, temos então
estacionários somente são possíveis para além da super- geodésicas diferentes. Portanto, geodésicas no espaço-
fície do limite estacionário, fora de ergosfera, i.e., para tempo de Schwarzschild são diferentes das do espaço-
r > S+ . tempo de Kerr. Neste, como vimos, há a rotação como
O conceito de ergosfera, por sua característica peculiar, um parâmetro a mais para o buraco negro.
possibilitou uma engenhosa construção de Roger Penrose Geodésicas são curvas especiais na teoria da relativi-
[29]. O mecanismo de Penrose é uma forma de “roubar” dade geral. Numa geodésica γ(τ ), parametrizada pelo pa-
râmetro τ , o vetor tangente v µ = dxµ /dτ em cada ponto
da curva é transportado paralelamente a si mesmo.12
Como bem sabemos, no espaço plano geodésicas são li-
nhas retas. Mas em geral, na geometria não plana, na
geometria riemanniana, que é a área da matemática que
propiciou a teoria da relatividade geral, geodésicas obe-
decem à seguinte equação:
d2 xµ dxν dxγ
2
+ Γµνγ = 0. (7)
dτ dτ dτ
Há três tipos de vetores na relatividade geral: tipo tempo,
tipo luz e tipo espaço. Diferenciam-se entre si pelo valor
que suas normas assumem. Na convenção usada aqui,
um vetor é tipo tempo se v 2 = v µ vµ < 0, tipo luz
se v 2 = 0 e tipo espaço caso v 2 > 0. Como para o
fenômeno sombra devemos nos ater às geodésicas tipo
Figura 3: A estrutura do espaço-tempo de Kerr e a indicação luz, que são as trajetórias de raios de luz, tais geodésicas
das quatro superfícies especiais. A superfície cujo raio é ri têm vetores tangentes — propagados paralelamente a
indica o horizonte interno, já rh é o raio do horizonte externo, si mesmos — com norma nula. A equação (7) contém
que é o próprio horizonte de eventos para quem está fora do
buraco negro. As superfícies S− e S+ são as superfícies interna 10 VejaCarroll [26], capítulo 6, para uma introdução ao estudo sobre
e externa do limite estacionário, respectivamente. A ergosfera a ergosfera e o mecanismo de Penrose.
11 Em Wald [31], capítulo 9, há um tratamento detalhado sobre
não é uma superfície mas uma região entre rh e S+ . Por fim,
singularidades na relatividade geral.
a linha tracejada no centro é a singularidade na geometria de 12 Para uma compreensão mais precisa do conceito de geodésica,
Kerr. A singularidade neste buraco negro é “anelar”. veja Carroll [26], capítulo 3, e Wald [31], igualmente o capítulo 3.
DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0216 Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 42, e20200216, 2020
e20200216-6 O buraco negro e sua sombra
dois termos ainda a serem apresentados: τ , parâmetro momento generalizado de uma partícula é definido por
da geodésica, é chamado parâmetro afim, e no caso de pµ ≡ ∂∂Lẋµ = gµν ẋ , em que o operador ponto significa
ν
geodésicas percorridas por um corpo com massa ou um derivação em relação ao parâmetro afim, isto é, d/dτ .
observador, τ é o tempo próprio marcado pelo relógio Portanto, se usarmos essa definição de momento genera-
transportado pelo observador. Outro termo de (7) é Γµνγ , lizado e a equação (12), substituindo-as na equação (11),
chamado conexão afim, que é um tensor calculado a partir teremos as equações das geodésicas. E para a métrica (2),
da métrica gµν , ou seja, é diferente para cada geometria tais equações (uma para cada componente na base das
ou espaço-tempo. A conexão afim é definida como coordenadas t, r, θ e φ) são melhor escritas e utilizadas
1
∂gγρ ∂gνρ ∂gνγ
como derivadas em relação ao parâmetro afim, ou seja,
Γµνγ = g µρ + − . (8)
∂xν ∂xγ ∂xρ 1 (r2 + a2 )P
2 dt
− a aE sen θ − L , (13)
2
=
Para um espaço-tempo plano como o de Minkowski, a dτ Σ
√
∆
conexão afim é zero. dr R
Carter, para construir as geodésicas de Kerr, partiu = , (14)
dτ √Σ
da equação de Hamilton-Jacobi. Determinou que um dθ Θ
corpo ou uma partícula de teste ao longo de uma geo- = , (15)
dτ Σ
désica no espaço-tempo (2) tem quatro constantes de
dφ 1 aP
movimento. A primeira é a massa m da partícula de − aE − cossec2 θ L . (16)
=
teste, duas outras quantidades surgem diretamente pelas dτ Σ ∆
simetrias da métrica de Kerr. Tal métrica não possui As funções P , R e Θ são definidas como
termos que dependam das coordenadas t e φ, logo, pelos
P = r2 + a2 E − aL, (17)
manuais de geometria diferencial, a métrica de Kerr tem
quantidades conservadas relacionadas à independência 2 2 2
(18)
R = P −∆ m r +K ,
de tais coordenadas. A independência em relação à t e φ Θ = Q − cos θ a m − E + cossec θ L (19)
2
2 2 2
2 2
.
diz-nos que a métrica de Kerr tem dois campos vetoriais
importantes, dois campos de Killing, ξt e ξφ , e tais cam- As quatro equações (13)-(16) fornecem as componentes
pos estão relacionados a duas constantes no movimento de uma geodésica percorrida por uma partícula de massa
da partícula ao longo da geodésica — são elas E and m na geometria ou espaço-tempo de Kerr, cuja métrica
L, i.e., a energia (dada pela componente temporal do é dada pela equação (2). Em particular para o fenômeno
momento generalizado) e o momento angular (dado pela sombra, o parâmetro m, a massa da partícula, é nulo, pois
componente azimutal do momento generalizado): estamos lidando com fótons ou partículas de luz e raios de
luz que nos permitem traçar a silhueta da sombra. Por fim,
pt = −E e pφ = L. (9)
a última constante ao longo de uma geodésica no espaço-
Por fim, a última quantidade conservada é hoje conhecida tempo de Kerr, a constante de Carter, é relacionada à
como constante de Carter, que, como veremos, será indi- constante Q, na equação (19), por
cada pela letra K. A constante de Carter é a constante
(20)
2
de separação das equações da geodésica. Q = K − (L − aE) .
O método de Carter mostrou a separabilidade das Vale a pena notar que Q é nula para órbitas equatoriais,
equações da geodésica, conduzindo-nos a equações inde- pois dθ/dτ = Θ = 0, ou seja, para órbitas equatoriais
pendentes para uma geodésica e à sua constante K. A θ = π/2 conduz à Q = 0. E a constante de Carter pode
partir da equação de Hamilton-Jacobi então ser apresentada como K = (L − aE) , ou seja,
2
Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 42, e20200216, 2020 DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0216
Neves e20200216-7
DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0216 Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 42, e20200216, 2020
e20200216-8 O buraco negro e sua sombra
Figura 5: Silhuetas de sombras produzidas por um buraco negro de Kerr. Escritas a partir das coordenadas x e y, podemos notar que
a sombra deforma-se mais para altos valores do ângulo θo em que é observada e do parâmetro de rotação adimensional a∗ = a/M .
Há fortes indícios no sentido de que a sombra de M87* foi observada num ângulo θo = 17◦ . Outra característica na projeção da
sombra é o seu deslocamento para direita e a sua deformação à esquerda, produzida pela rotação do buraco negro. Aqui é assumida
a rotação no sentido anti-horário, ou seja, à esquerda fótons viajam no mesmo sentido da rotação do buraco, já à direita, a viagem
é contra a rotação. Nas sombras esboçadas, utilizei as unidades geométricas (G = c = 1) e assumi M = 1 e robs = 50M por
conveniência.
esquerda para a direita. Como os raios de luz vêm por da sombra ficam entre 2.1×1010 km . rf . 2.9×1010 km.
trás do buraco negro (a partir do fundo estrelado), à Ou seja, a sombra tem um tamanho na escala do horizonte
esquerda na sombra temos as trajetórias dos raios que de eventos, possui um raio que é um pouco maior do que
acompanham a rotação do buraco negro, já à direita o dobro do raio do horizonte de eventos. Este é motivo
temos um movimento no sentido inverso da rotação. À pelo qual a colaboração afirmou, peremptoriamente, que
esquerda as trajetórias são dadas por rf − , são trajetórias foram construídas imagens de M87* na escala do seu
que avançam. À direita as trajetórias são dadas por rf + , horizonte de eventos.
são as trajetórias retrógradas. Essa diferença entre as
trajetórias provoca o achatamento da sombra no seu lado
esquerdo, algo que fica mais pronunciado para altos valo-
4. Aplicações das Sombras
res do parâmetro de rotação e para grandes ângulos de Acima de tudo, sombras de buracos negros são testes
observação, cuja deformação máxima está em θo = 90◦ . à teoria da relatividade geral quando campos gravita-
Na imagem obtida pela colaboração, como disse, te- cionais fortíssimos estão envolvidos. Como vimos, por
mos θo = 17◦ , e a deformação da sombra de M87* neste causa da imensa massa do girante M87* ser bilhões de
ângulo exclui pequenos valores do parâmetro de rotação, vezes a massa solar, efeitos gravitacionais que são so-
ou seja, a∗ ' 0 é praticamente descartado. Estimativas mente previstos pela teoria einsteiniana, como o arrasto
posteriormente publicadas à imagem, feitas a partir da do espaço-tempo, são então colocados a teste. Sombras
matéria atraída por M87*, afirmam um valor mínimo colocam em teste modelos, geometrias, métricas geradas
para o parâmetro de rotação, a∗ > 0.4 em Nemmen [33], a partir das equações de Einstein. Não apenas, as sombras
e até mesmo um valor com boa precisão, a∗ = 0.90 ± 0.05 podem também colocar em teste teorias gravitacionais
em Tamburini et al. [34]. No último trabalho citado, é que estão além da teoria da relatividade geral, teorias
afirmado, com um grandíssimo nível de confiança esta- que supostamente sucederiam a teoria einsteiniana em
tística, que M87* está rodando. Parâmetros de rotação regimes de altas energias. Seleciono aqui alguns traba-
serão ainda melhor determinados em futuras sombras. lhos atuais que usam parâmetros da sombra de M87*
Com mais sombras no futuro, tratamentos estatísticos (e de futuras sombras) para obter vínculos e limites a
poderão ser realizados para cada parâmetro de uma som- parâmetros de teorias, modelos e geometrias:
bra e do buraco negro que a gera, melhorando ainda mais
os valores até agora estimados. • Uso da sombra e da matéria em acreção por M87*
Por fim, com a melhor estimativa do parâmetro de para a determinação da rotação do buraco negro
rotação de M87* discutida acima (além do preciso valor [33, 34], inclusive para propor, como em Bambi et
para a sua massa obtido pela EHT), pode-se calcular o al. [35], um superspinar, um buraco negro em que
valor do horizonte de eventos de M87* a partir da equação a2 > M 2 ou a∗ > 1 como origem da famosa imagem.
(5). Calculando-o, temos rh ' 1.4 × 1010 km ou um raio Propostas para alternativas ao buraco negro de
de um horizonte de eventos maior do que o raio da órbita Kerr na descrição dos parâmetros de M87* incluem
de Plutão! Já os raios das órbitas que formam a silhueta buracos negros regulares [36] e buracos negros em
Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 42, e20200216, 2020 DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0216
Neves e20200216-9
eletrodinâmica não linear [37]. Como mais um teste ou equações de Einstein: a solução ou buraco negro de
da teoria da relatividade geral a partir de M87*, Roy Kerr.
Yan et al. [38] estudaram uma possível violação O buraco negro de Kerr é um buraco negro em rotação.
do princípio de equivalência (um dos princípios Por estar em rotação, pode produzir sombras deforma-
fundacionais da teoria einsteiniana) num regime de das a partir de conjuntos específicos de parâmetros, em
intenso campo gravitacional. conformidade à sombra relatada pela colaboração interna-
• Tsupko et al. [39] sugerem o uso da sombra para cional. Neste trabalho, a solução de Kerr foi apresentada,
obter parâmetros cosmológicos, como o parâmetro e suas principais características foram destacadas. Um
de Hubble. Uma sombra poderá ser, de acordo com procedimento para o cálculo de sombras foi introduzido.
os autores, uma régua padrão assim como uma Com isso, fomos capazes de enxergar o efeito da rotação
supernova o é. na sombra. Fomos capazes de confirmar a colaboração.
• Determinação de parâmetros de modelos e teorias, Por fim, elenquei algumas aplicações das sombras (a
com o uso de sombras, em propostas que tentam atual de M87* e as vindouras) na gravitação e na cosmo-
ir além da teoria de Einstein. Parâmetros como o logia. O estudo de sombras apresenta-se, acima de tudo,
raio da dimensão extra em mundos brana [40] ou a como um estudo a partir de campos gravitacionais inten-
influência dessa mesma dimensão extra em nosso sos, gerados por buracos negros com milhões e bilhões
universo quadridimensional, por meio de uma carga de massas solares. Em tal contexto, diferente de testes
de maré [41,42], foram estimados. No trabalho [36], e experimentos feitos no sistema solar, modelos, teorias,
a sombra de M87* produziu um limite superior ao teoremas e conjecturas poderão ser melhor determinados
parâmetro de gravidade quântica de um princípio e testados. O “fim do mundo” indicado por uma sombra
de incerteza generalizado, um princípio que torna poderá ser o começo de um novo mundo dentro da física.
o princípio de incerteza de Werner Heisenberg um
caso particular. Já Liu et al. [20], à luz dos parâme-
Agradecimentos
tros de M87*, estudaram a sombra de um buraco
negro numa proposta de unificação da teoria da Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
relatividade e da mecânica quântica, a gravidade de Nível Superior (CAPES) o apoio financeiro.
quântica em loop (loop quantum gravity).
DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0216 Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 42, e20200216, 2020
e20200216-10 O buraco negro e sua sombra
A base (e0 , e1 , e2 , e3 ), calculada na posição do observa- E, por fim, as coordenadas celestes foram igualmente
dor (robs , θo ), é escrita em componentes dos vetores da determinadas na configuração e geometria adotadas:
base das coordenadas ( ∂t ∂ ∂
, ∂r ∂
, ∂θ ∂
, ∂φ ). As características
da tetrada acima são: e0 é a quadrivelocidade do obser-
dr
Σ dτ
(36)
cos α = ,
vador, e e3 aponta na direção do buraco negro, ou seja,
2 2
(r + a )E − aL (robs ,θo )
na direção ∂r ∂
. Além disso, é escolhida a direção e0 ± e3
senθ
!
como tangencial à direção das congruências nulas princi- ∆Σ dφ
senβ (37).
dτ
= √ − a
pais, que são usadas para caracterizar espaços-tempo na ∆ senα 2 2
(r + a )E − aL (robs ,θo )
teoria da relatividade geral.16 Com a tetrada acima, o
observador não está necessariamente em repouso, além Portanto, se usarmos as equações para as componentes
de não estar no “infinito”. É comum em trabalhos que tra- r e φ da geodésica, indicadas nas equações (14) e (16),
tam de espaços-tempo assintoticamente planos assumir e as substituirmos nas equações (36)-(37), obteremos
que robs → ∞ para a descrição da sombra. No entanto, as formas para α e β (ou senα e senβ) mostradas na
o caminho adotado aqui permite observadores distan- subseção 3.3.
tes mas não obrigatoriamente no “infinito”. Com isso,
a abordagem exposta neste apêndice permite o estudo
Referências
de sombras de buracos negros em espaços-tempos que
não são assintoticamente planos, ou seja, que não são o [1] K. Akiyama, A. Alberdi, R. Azulay, A.K. Baczko, M.
espaço-tempo de Minkowski quando robs → ∞. Exemplos Baloković, J. Barrett, L. Blackburn, K.L. Bouman, G.C.
de tais espaços-tempo são os assintoticamente de Sitter e Bower, C.D. Brinkerink et al., Astrophys. J. Lett. 875,
anti-de Sitter, como estudados nas referências [14, 19, 36]. L1 (2019).
Para descrever os raios de luz que passam por rf [2] K. Akiyama, A. Alberdi, R. Azulay, A.K. Baczko, M.
(a região de fótons que marca a silhueta da sombra) e Baloković, J. Barrett, L. Blackburn, K.L. Bouman, G.C.
chegam ao observador, as curvas que os representam, ou Bower, C.D. Brinkerink et al., Astrophys. J. Lett. 875,
seja, as curvas γ cujos vetores tangentes são do tipo luz, L6 (2019).
[3] G.E.A. Matsas, Rev. Bras. Ensino Fis. 27, 137 (2005).
têm vetores tangentes na base das coordenadas dados
[4] D. Alighieri, A Divina Comédia: Inferno (Editora 34,
por
São Paulo, 2010).
dγ
dt ∂
dr ∂
dθ ∂
dφ ∂ [5] A. Einstein, Sitzungsber. K. Preuß. Akad. Wiss. 1, 688
= + + + . (1916).
dτ dτ ∂t dτ ∂r dτ ∂θ dτ ∂φ
[6] R.P. Kerr, Phys. Rev. Lett. 11, 26 (1963).
(33)
[7] K. Schwarzschild, Sitzungsber. K. Preuß. Akad. Wiss.
Como disse, precisamos de uma descrição do fenômeno 1916, 189 (1916).
na posição em que se encontra o observador, portanto [8] A. Saa, Rev. Bras. Ensino Fis. 38, e4201 (2016).
o vetor acima será decomposto em termos da tetrada. [9] J.L. Synge, Mon. Not. R. Astron. Soc. 131, 463 (1966).
Decompondo-o, fica [10] J.M. Bardeen, Timelike and Null Geodesics in the Kerr
Metric, in Black Holes, edited by C. DeWitt and B.
dγ
= ζ (−e0 + senα cos βe1 + senα senβe2 + cos αe3 ) , DeWitt (Gordon and Breach, New York, 1973), p. 215.
dτ [11] A.F. Zakharov, F. De Paolis, G. Ingrosso, A.A. Nucita,
(34)
Astron. Astrophys. 442, 795 (2005).
de tal forma que os ângulos α and β são as já indica-
[12] A. de Vries, Classical Quantum Gravity 17, 123 (2000).
das coordenadas celestes (caracterizadas na figura 4). [13] V. Perlick, O.Y. Tsupko, G.S. Bisnovatyi-Kogan, Phys.
Como afirmado na subseção 3.3, a descrição da sombra Rev. D. 97, 104062 (2018).
é feita pelas coordenadas celestes, depois de projetadas [14] A. Grenzebach, V. Perlick, C. Lämmerzahl, Phys. Rev.
estereograficamente no plano cartesiano. D. 89, 124004 (2014).
Com a decomposição (34) do vetor tangente aos raios [15] Z. Li, C. Bambi, J. Cosmol. Astropart. Phys. 01, 041
de luz com o uso da tetrada (e0 , e1 , e2 , e3 ), o fator ζ (2014).
pôde ser escrito como [16] A. Abdujabbarov, M. Amir, B. Ahmedov, S.G. Ghosh,
Phys. Rev. D. 93, 104004 (2016).
(r2 + a2 )E − aL [17] M. Amir, S.G. Ghosh, Phys. Rev. D. 94, 024054 (2016).
ζ=− √ . (35)
∆Σ
(robs ,θo )
[18] L. Amarilla, E.F. Eiroa, Phys. Rev. D. 85, 064019 (2012).
[19] E.F. Eiroa, C.M. Sendra, Eur. Phys. J. C. 78, 91 (2018).
16 Existem formas de classificar soluções do campo gravitacional na [20] C. Liu, T. Zhu, Q. Wu, K. Jusufi, M. Jamil, M. Azreg-
relatividade geral, como a solução de Kerr, a partir do tensor de Aïnou, A. Wang, Phys. Rev. D. 101, 084001 (2020).
curvatura ou do tensor de Weyl e suas propriedades. Na classificação [21] J.A.S. Lima, R.C. Santos, Rev. Bras. Ensino Fis. 41,
que usa o tensor de curvatura e direções principais nulas, atribuída e20190199 (2019).
a Aleksei Petrov, a solução de Kerr é tida como algebricamente
[22] J.P.S. Lemos, Rev. Bras. Ensino Fis. 41, e20190260
especial, tem até dois vetores nulos principais diferentes. Veja
Wald [31], capítulo 7, para um estudo sobre as classificações de (2019).
soluções e, em especial, os dois vetores nulos principais da geometria [23] H.L. César, P.J. Pompeia, N. Studart, Rev. Bras. Ensino
de Kerr encontram-se na p. 313. Fis. 41, e20190238 (2019).
Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 42, e20200216, 2020 DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0216
Neves e20200216-11
DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0216 Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 42, e20200216, 2020