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A LÍRICA TROVADORESCA

Duby, Georges "A mulher, o amor e o

cavaleiro" in Amor e Sexualidade no

Ocidente,intr. Georges Duby, trad. Ana

Paula Faria, ed. Terramar

A mulher, o amor e o cavaleiro

Georges Duby

Se se interrogar sobre a condição feminina, o historiador da alta Idade

Média sente-se de mãos vazias. Sentir-se-á menos, quando chega ao século XII.

A obscuridade, de facto, começa a dissipar-se um pouco. Escreve-se mais.

Conserva-se melhor os textos. No meio destes, aparecem restos de uma

literatura profana, transmitindo algumas imagens da vida, embora

deformada, pois esta literatura é de evasão, ainda que se mantenham

estreitas as suas relações com aquilo que foi foi efectivamente vivido. É um

facto, de qualquer modo, que estes escritos falam cada vez mais das

mulheres.

Será que elas contam mais? É o que parece decorrer das representações

do cristianismo. Aí se vê avançar, para o primeiro plano, algumas figuras

femininas que não são apenas a alegoria a alegoria dos vícios. Santa Madalena

conquista então devotos em vastas províncias. Por sua vez, no grande teatro
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montado nos pórticos das catedrais, a figura da virgem apresenta-se

simultaneamente com feminidade e autoridade até adquirir uma estatura

idêntica à de Jesus, num trono semelhante ao seu na iconografa das

coroações. Multiplicações dos conventos dominicais. Heloísa dialogando com

Abelardo - e em que tom! Finalmente, o lugar concedido às mulheres em todas

as seitas, espalhadas por todo o lado, mas rotuladas como sendo heresias pelo

Poder, que se obstinava em dissolvê-las. Tantos sinais. Mas é sobretudo o

século XII que parece ser, na evolução do casamento no seio da nossa cultura,

ponto de uma inflexão decisiva.

É nesta época que , no termo de uma longa inflação doutrinal vem

estabelecer-se como um dos sete sacramentos da Igreja - e alguns doutores até o

proclamam como sendo o mais eminente de todos, pois foi instituído pelo próprio

Deus, no paraíso, antes de Adão e Eva caírem em desgraça. Após um combate

de séculos, os dirigentes da Igreja conseguem que o laicado aceite o seu modelo

de moral matrimonial, retocado e suavizado. Por outro lado, e em jeito de

compensação torna-se visível no século XII um modelo antigo elaborado

para a aristocracia laica, no centro do qual se instala aquilo a que especialistas da

literatura chamam o amor cortês.

(pg. 225 e 226)

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Submetida e abandonada

O destino normal da rapariga é, de facto, passados os 14 anos, o de

ser, no meio de grande pompa, desflorada pelo varão a quem fora

prometida, havia muito tempo, pelos seus parentes masculinos,

ingressando numa outra casa - a do seu «senhor» (dominus), como se diz -

e aí vivendo em submissão. A tendência das linhagens é para praticar a

endogamia: unir primos pelo casamento protege mais eficazmente os

patrimónios contra a dispersão. Mas isso é ter de enfrentar a Igreja, cuja

concepção do incesto é então desmedida: sustenta a proibição de casar com um

parente abaixo do sétimo grau. Exigência excessiva, prescrição inaplicável:

todos os cavaleiros de uma dada província são de facto primos muito mais

chegados. Embora o impedimento de parentesco tenha por função principal a de

legitimar os divórcios. Com efeito, os varões da nobreza são deliberadamente

polígamos. Na moral laica, nada há que reprove a repudiação: o homem, muito

naturalmente, devolve a esposa - sob condição de devolver o dote aos pais dela e

de fazer concessões quanto às arras - se ela demora a dar-lhe filhos varões ou se

ele encontra melhor partido. E claro que estas práticas ferem a moral da Igreja.

Esta, porém, sabe ser acomodatícia e, com o pretexto de incesto, dispõe-se a

dissolver a união, sendo apenas uma questão de preço.

Mas há um ponto em que leigos e membros do clero de acordo: o valor da

fidelidade conjugal. As conveniências restringem o impudor masculino aos tempos

de «juventude» ou de viuvez. Assim, o conde de Guines não se importa de que se

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saiba que gerou trinta e três bastardos, pelo menos; orgulha-se disso e também

de lhes ter dado uma excelente educação e ainda de ter conseguido casar todas

as suas filhas ilegítimas - apenas pretende que se diga que todos eles foram

concebidos antes do seu casamento ou após a morte da sua mulher. As

conveniências obrigam-no também a gostar da mulher. Mas não muito. 0

clero e os trovadores também estão de acordo neste ponto. Os primeiros

porque consideram o marido muito apaixonado como fornicador; os

segundos, porque a porque a fine amour vive da liberdade e só poderia


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estiolar-se na coleira matrimonial. Em todo o caso, a infidelidade da mulher é

punida com a condenação máxima. A adúltera poderia de facto transmitir a

herança da linhagem a intrusos, provenientes de um sangue que não é o dos

antepassados.

pg. 233 - 235

1 0 amor cortês (fin'amors ou fine amour, no feminino)

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Eva dos malefícios

Este perigo conta, sem dúvida, no meio de todas as razões que podem

explicar um fenómeno abundantemente testemunhado pelos documentos que nos

informam: as atitudes masculinas para com a mulher, na época de que falo,

parecem estar dominadas menos pel0o desejo do que pelo medo. A

natureza feminina - é o que se repete por todo o lado - é perversa. Por meio da

mulher, tentadora e reptilizante - aqueles que sonham com as relações entre o

cosmos e este microcosmos que é o homem situam-na do lado da sombra, da

lua, da água adormecida -, o pecado introduziu-se no mundo. Ela é suspeita de

ser portadora de heresias, de utilizar armas dissimuladas, malefícios, filtros,

venenos. Se um marido morre de mal misterioso, logo todos os olhos se

voltam para a sua esposa. O sexo feminino é tido por sôfrego e impetuoso,

insaciável e, por tudo isto, devorador. Os cavaleiros do século XII vivem

rodeados de Evas que consideram simultaneamente débeis, corrompidas e

corruptoras. Eles desconfiam delas: com elas, é permanente a

possibilidade de desgraça. Um remédio: o casamento. Através dele, a

concupiscência desvanece-se. Num instante, desarma a mulher, tornando-a

mãe.

pg. 235

Rainha captiva do amor cortês

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Tal como a mãe de Cristo, a mulher nobre é exaltada enquanto

«dama». A dama (domina, feminino de dominus - «senhor» em latim) é, em

primeiro lugar, a esposa, logo a mãe. Há amas no quarto dos filhos ainda

muito pequenos: assim, a esposa do senhor pode, todos os anos, dar-lhe um

herdeiro. Passa de uma gravidez a outra. Para ela, há urna probabilidade, em

cada duas, de morrer de parto, esgotada - o que favorece também a poligamia na

prática. Em contrapartida, esta função procriadora, mesmo que seja a única

função positiva que lhe é reconhecida, confere-lhe algum poder. A dama

«domina», pelo menos, os seus filhos mais novos. Por vezes, sobrevivendo às

sucessivas maternidades, já viúva e usufruindo das arras, governa, triunfante, o

senhorio em nome dos seus filhos ainda menores . E como as restrições ao

casamento dos filhos varões têm por consequência directa a desigualdade das

condições no casamento - os cabeças de linhagem é que escolhem,

encontrando facilmente, filho que casam, uma esposa mais rica - a fortuna,

a glória, a «nobreza» estão, quase sempre, do lado da ascendência

materna. A posição da esposada na casa do marido fica talvez assim

reforçada, mas sobretudo a posição dos seus irmãos e a influência

destes sobre a sua progenitura: numerosos testemunhos atestam a força

particular dos laços que unem um sobrinho ao respectivo tio materno - que,

sendo frade ou padre, vela pela sua educação ou lhe dá a apoio no ingresso no

seio da Igreja, ou que, sendo cavaleiro, o ajuda a seguir a carreira das armas, a

encontrar uma esposa abastada.

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Mas a dama é também a peça central de um divertimento, do jogo de


xadrez, cuja grande voga data desta época, de outro jogo sobretudo - esse
jogo que é o amor cortês. Expressão, entre outras, da ideologia
cavaleireca na sua resistência à aculturação eclesiástica, o amor cortês torna-
se, no século XII, a principal actividade lúdica dos primórdios modernidade,
nas cortes formadas pelos príncipes mais importantes, onde são lançadas
as modas aristocráticas. Como todos os jogos, propõe-se proporcionar a
evasão do quotidiano, graças à inversão das relações normais. É um desafio
à exortação da Igreja contra o afundamento nos prazeres mundanos. E um
desafo às probições da moral matrimonial. Segundo as suas regras, um
«jovem» - um cavaleiro celibatário - escolhe uma «dama» - esposa de um
senior - para a servir, macaqueando as atitudes vassálicas, com a esperança
de uma recompensa. Mas a dama nunca é tomada pela força, nem cedida. O
jogo exige que ela se dê, progressivamente, e os seus favores são tanto mais
preciosos quanto eles parecem não ligar importância aos grandes castigos
destinados aos adúlteros. A posição da mulher - envolvida por homenagens,
desejada, lenta mas incompletamente condescendente - parece, à primeira
vista, ser de superioridade. Mas é necessário não nos iludirmos com as
aparências. Trata-se de um jogo de homens. Quem conduz o jogo é o próprio
senhor, que finge entregar a esposa, mas que se serve dela como isco. A
competição de que ela é fulcro permite-lhe segurar pela rédea o grupo de
jovens que fazem a glória da sua casa. Enfim, se o desejo é de facto o
aguilhão do amor cortês, a verdade é que se trata apenas do desejo
masculino. A CORTESIA, AINDA MAIS DO QUE O CASAMENTO, FAZ DA MULHER NOBRE UM OBJECTO.

Nesta sociedade, a mulher aparece assim dominada de todas as

maneiras. Ninguém põe em dúvida que a subordinação do feminino ao masculino

seja um facto da natureza, conforme portanto com o decreto divino e a ordem do

mundo. Todavia, existe uma área em que alguns espíritos aventureiros começam
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a ver estabelecer-se a igualdade - é o amor do casal. Aqui, a ideologia religiosa e

a ideologia profana tendem a encontrar-se de novo. A Igreja, devido ao horror que

sente pelo carnal, pretende privilegiar, no casal, o acordo das vontades, o

consentimento mútuo, o qual institui o casamento, na sua maneira de ver. Em

relação aos deveres que o casamento impõe, a Igreja proclama a igualdade entre

o homem e a mulher. Ouçamos Abelardo: ele afirma que a mulher foi criada

fisicamente como igual ao homem e que o pecado a colocou sob o domínio

masculino, mas que estedomínio cessa no acto conjugal, em que o homem e a

mulher detêm igual poder sobre o corpo do outro. Quanto aos poetas lentamente -

o limite só foi atingido em finais do século XIII, na segunda parte do Roman de la

Rose -, progridem rumo à ideia de que a união dos corpos só é perfeita se forem

ao encontro um do outro. Entendamo-nos: o desejo masculino e este outro

desejo, o da mulher, ao qual o amor cortês não ligava importância.

pg. 235 - 23

Solé, Jacques "Os trovadores e o amor-


paixão" in Amor e Sexualidade no
Ocidente, int. Georges Duby, trad.
Ana Paula Faria, ed. Terramar

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Os trovadores e o amor-paixão
Jacques Solé

«Cortesia» - uma palavra que se tornou insípida. E, no entanto, no

coração da Idade Média, ela nasceu de uma prodigiosa aventura - a do

amor "cortês", exaltação espiritual e carnal das relações entre o homem e a

mulher, inovação decisiva, tanto no campo literário como no social. Ficou a dever-

se a algumas centenas de trovadores occitanos 2


que viveram no que hoje

chamamos Midi da França, nos séculos XII e XIII, no seio de uma aristocracia
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próspera.

Isto não significa que o sentimento amoroso fosse desconhecido das

outras civilizações, como podemos ser levados a pensar ao ler a obra célebre de

Denis de Rouge-mont, O amor e o Ocidente, publicada em 1939. Muito pelo

contrário, a erótica cortês construiu-se a partir de elementos inerentes ao seu

meio de origem, assim como às sociedades vizinhas. A influência da poesia

neolatina dos goliardos, dos clérigos vagantes (clerici vagi) do século X, está bem

distante. A influência, tão diversa, do folclore meridional, da brilhante civilização

árabe andaluza e da moral cavaleiresca está bem mais próxima.

E temos ainda a considerar as tradições populares. No mês de Maio,

rapazes e raparigas iam aos bosques cortar ramos verdes para ornamentar a

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Da Occitânia (Occitanie, em francês): conjunto das regiões francesas em que, na Idade Média, se
falava a língua de oc (em vernáculo: linguadoque; em francês, langue d'oc). (N.T.)

3Meio-Dia, o Sul da França: abrange a bacia da Aquitânia, o Rossilhão, o Languedoque e a


Provença. (N.T.)
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igreja. Dançavam nos campos e o ento fazia subir as saias às raparigas.

«Eis o bonito mês de Maio, cada namorado muda de amiga» diziam as

canções occitanas. Maio é o mês do amor sensual, da corte pré--nupcial. 0

casamento será mais tarde. Depois do casamento, um outro costume, mais

perturbador e proveniente do Norte:o valantinage. Este costume concede ás

esposas, por um dia - ou mais -, na cara dos respectivos maridos, toda

a familiaridade com um «valentino» (a mesma palavra que «namorado»),

celibatário e escolhido realmente... à sorte. «Ter-me-ás amanhã. Esta noite é

do meu amante» diz a mulher ao marido nas canções francesas. É, na verdade,

um adultério mais simbólico do que real.

Podemos chamar-lhe jogo rústico. Tudo é diferente no mundo andaluz

que, no século XI, ainda está às portas do Languedoque ou, pelos menos, da

Catalunha. A Sensualidade tem aí a sua expressão. Uma mulher exclama:

«Qual a condição para eu te amar? Que juntes a pulseira do meu


tornezelo às argolas das minhas orelhas!»

Mas os poetas árabes exaltam o amor e a mulher a quem o dedicam.

Comunhão espiritual dos corações, submissão do amante à sua dama,

exaltação mística da castidade - todos estes temas, que se impuseram aos

Aquitânios, vinham do sul.

Eis um testemunho de Ibn Zaydun, de Córdova:

«Entre ti e mim, se quisesses, haveria alguma coisa que não se perderia,

um segredo que, mesmo que todos os outros fossem divulgados, fcaria para

sempre escondido [...].

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Que te baste saber que, se encheres o meu peito com o que os outros

corações não conseguem suportar; o meu suportá-lo-á.

Sê altiva e eu aceitarei. Demora-te e eu serei paciente. Sê orgulhosa e eu

serei insignificante. Foge e eu avançarei. Fala e eu te escutarei. Ordena e eu

obedecerei!»

Tenho duas éguas

O amor cavaleiresco contemporâneo dos trovadores constitui, sem

dúvida, a última fonte da erótica provençal. Exigia do amante a submissão à

sua dama e transpunha para o domínio amoroso um certo número de

virtudes «viris»:coragem lealdade, generosidade. Mas, consagrado de

forma realista a relações entre iguais - senão legitímas, pelo menos

legitimáveis (por um casamento após divórco) - representava, a partir

deste ponto de vista, a antítese dos comportamentos que os trovadores

iriam enaltecer. Isto aconteceu no decurso do século XII, em três etapas

sucessivas, ao ritmo das transformações da sociedade provençal.

À frente da primeira geração de trovadores, Guilherme IX da

Aquitânia, conde de Poitiers (1071 - 1127), foi ao mesmo tempo um poeta e

um grande senhor. Este «intrujão de mulheres», como lhe chamavam,

representa um erotismo masculino ainda muito tradicional, perfeitamente

«gaulês». Num poema cheio de humor, explica aos seus amigos que tem «duas

éguas». «Uma, de entre os cavalos da montanha, era dos melhores corredores

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[mas tornou-se] rebelde e selvagem. [A outra], quando ainda era potra da

pradaria [foi oferecida por Guilherme da Aquitânia a um outro senhor]. lá

longe, para além de Confolens. Mas continuei com os meus direitos sobre ela»

acrescentou. Adiante... Todavia, exprime noutros lados uma concepção um tanto

purificada do amor exaltando a alegria do desejo, sublinhando a obediência

devida à mulher amada, à boa maneira dos Árabes. Mas esta idealização do

amor cavaleiresco não é ainda a «cortesia».

Esta aparece na segunda geração dos poetas provençais.

Exceptuando Jaufré (Geoffroi) Rudel, são trovadores ou modestos cavaleiros,

Cercamon, Marcabru e Bernart Marti exprimem as aspirações dos seus irmãos

de idade ou de classe que desdenham das nobres damas. Têm aversão à

prática, então muito em voga, do adultério interconjugal. Praticado entre os

senhores e as suas esposas, excluía os jovens cavaleiros e, com mais razão

ainda, os «jograis». Eis a razão por que os excluídos satirizam as mulheres

imorais que aspiram ao amor carnal dos grandes e celebram um amor

purificado, insistindo na união dos corações, na duração e na importância do

«serviço» efectivado pelo amante junto da sua dama. Este amor torna-se o

fundamento de todas as virtudes. Hostil ao naturalismo banal dos poderosos e

dos campónios, quase sempre onírico, o amor cortês não deixa de cantar

mulheres reais, assim como não separa o amor da sua base carnal.

Estando a teoria constituída, só faltava que a sociedade a adoptasse. Foi o

que aconteceu no final do século XII. A erótica dos trovadores anexou então o

espírito cavaleiresco, introduzindo-o num universo aristocrático

transformado sob a pressão dos jovens cavaleiros celibatários e


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ambiciosos. Amontoados na corte do senhor, esperavam que a dama dele

os distinguisse com um amor sincero e desinteressado e o ideal do amor

cortês, tornado comum aos grandes senhores e aos novos-ricos,

constituiu assim um meio de atenuar a tensão entre os diferentes estratos

da nobreza feudal. Ao exaltar o prazer puro, a poesia clássica dos

trovadores - apesar do alargamento do seu público - mantinha

integralmente os privilégios culturais do estrato superior. Conseguiu

isso graças à pressão das damas que aceitavam apesar de tudo, amar

cavaleiros de um nível social inferior ao seu. Todos tinham a sua conta. Ficavam

satisfeitos tanto o orgulho como a dignidade das grandes damas. O PURO AMOR

(FIN'AMOR), NEM NATURALISTA NERN PLATÓNICO, CELEBRAVA A ABSTINÊNCIA, CONSERVANDO AO

MESMO TEMPO UMA COLORAÇÃO CARNAL E, POR ISSO MESMO, AGRADAVA À ALTA NOBREZA . A

exaltação, ao mesmo tempo alegre e casta, do desejo suscitado pela mulher

amada tomava uma tonalidade mística e saciava facilmente, os fantasmas dos

mais modestos.

Assim, o sentimento amoroso continuava a ser a condição de todas as

virtudes. Traduzia-se num «serviço» tipicamente feudal: relação de

suzerano a vassalo, com uma série de graus que constituíam um método de

purificação do desejo. Muito frequentemente, ficava-se por um casta beijo.

Na intimidade amorosa, como na sociedade, o amante perfeito não era mais que

um simples servidor da sua dama. Os seus deveres consistiam em agradar-

lhe, em amá-la e não amar mais nenhuma, em exaltá-la, ser discrcto. Em troca,

a sua amante, cheia de amor, devia ter em apreço o comportamento

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Tudo era permitido, excepto...

Para além do beijo, o amante podia receber duas outras recompensas,

condimento essencial deste jogo subtilmente adúltero. Primeiro, a graça de

contemplar o corpo nu da sua dama. Depois, o asag («prova» - a mesma palavra

aplica-se com o significado de ensaio), onde quase tudo era permitido, excepto o

acto sexual propriamente dito . A fascinante condessa de Die descreve-nos

esta cerimónia em que, no seu leito, tomando nos braços nus o seu cavaleiro, ela

lhe fazia do seu peito uma almofada, ao mesmo tempo que o beijava cheia de

amor. Feliz por assim o abraçar em vez do seu marido, sabia que o seu amante

não iria nunca além daquilo que ela lhe permitia.

Menos lúbrica que continente, esta situação lembra-nos que, no seio da

magia amorosa cantada pela poesia trovadoresca, o elemento essencial

continuava a ser - porque era factor de igualdade - a troca de corações. Se

ficamos surpreeendidos com a tensão, um tanto afectada, imposta pelos

trovadores à sua tradução carnal, Denis de Rougemont não teve razão, sem

dúvida, ao distinguir, nesta exaltação, um príncipio de morte e de perdição. Pelo

contrário, tratava-se de uma erótica, senão perfeitamente sã, pelo menos

escrupulosamente moralizadora e notavelmente moderada. A sua orientação

era certamente anticristã, mas nem por isso ousava atacar a origem de todas

as virtudes.

Esta foi, em matéria amorosa, a grande invenção sentimental do século

XII. Não foi certamente suficiente para fazer do Ocidente o criador do amor

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psicológico entre os sexos, pois os fenómenos sociais a que podemos ligá-la

estão igualmente presentes noutras civilizações. Em contrapartida, devemos ter

consciência da importância da iniciativa das nobres damas daquele tempo:

elas aproveitavam a ocasião para finalmente se sobreporem, no interior do

mundo feudal, aos valores da amizade masculina - próprios, havia muito

tempo, das fratemidades guerreiras. Os aristocratas occitanos

impuseram, a uma sociedade misógina, a sobrevalorização das suas

dualidades e a procura desvairada da sua estima.

O catolicismo e o catarismo, religiões rivais, tinham em comum, pelo

menos na sua origem, o facto de se preocuparem muito pouco com a

emancipação feminina e ainda menos a valorização do amor das mulheres. No

apogeu da civilização provençal, as nobres damas garantiram o êxito de uma

uma moda

manifestamente anticlerical - a da nova devoção erótica unilateral que lhes

sujeitava o homem. Submetendo-se a isso; segundo as tradições da poesia

árabe, os trovadores e os seus inúmeros imitadores permitiram à mulher

das classes superiores do Ocidente o acesso a um estado, até então

inesperado; de intimidade psíquica e de familiaridade com o mundo viril.

Constituído na sua plenitude, o amor europeu virá a permanecer, no

domínio das relações intersexuais, como a extensão dos valores inicialmente

inerentes à amizade masculina.

A doutrina do amor cortês, na sua essência, conheceu uma rápida

degradação nos séculos XIII e XIV. No decurso do primeiro destes períodos,

os poetas Peire Cardenal e Montagnol virão a testemunhar o seu declínio,


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em consequência da dupla investida da Igreja romana e do feudalismo

francês, culminando na destruição da própria civilização provençal levada a

cabo pela cruzada anticátara (1209 -1229). Esta catástrofe tornou

impossível, na prática, uma erótica que já não era mais do que uma

reivindicação moral.

Para os católicos evidentemente, uma heresisa - uma heresia bem distinta

da dos cátaros. Foi a este propósito que, em 1277, o bispo de Paris condenou o

tratado Sur l'Amour , de André Chapelain (1185), assim como um conjunto de


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teses sobre a teologia. Não seria normal que a idealização amorosa própria dos

trovadores estivesse sujeita aos ataques de uma ortodoxia cristã definitivamente

endurecida? Por fim, valorizando o casamento amor, a Igreja achou por bem

combater a exaltação de sentimentos extracanjugais opostos à sua concepção

do homem. Teve a satisfação de ver desaparecer, num primeiro momento, uma

inspiração erótica que acabou por morrer, no início do século XIV, na Catalunha.

Viva a paixão !

No entanto, a fecundidade histórica da poesia provençal e das suas

invenções sentimentais iria resistir a toda e qualquer prova. Os seus temas,

ao mesmo tempo feministas, carnais e espiritualistas, exerceram

posteriormente uma influência considerável sobre as teorias literárias do

amor no Ocidente. De Petrarca aos cultistas e conceptistas, passando pelos

4 Foi originalmente escrito em latim, com o título de Tractatus Amoris, por volta de 1186. (N.T)

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neoplatónicos do Renascimento, nenhum conseguiu escapar completamente a

esta influência. Estes jogos senhoriais proporcionavam a conservação da

associação estreita entre o espírito cavaleiresco e a ideia de amor, na aristocracia

europeia. Paralelamente, as práticas sexuais do folclore rural, indissoluvelmente

castos e ardentes, atestavam a permanência da recordação dos trovadores. A

sua lição viria mesmo a invadir completamente o mundo ocidental a partir de

1800, ao ritmo triunfal das conquistas do amor-paixão. Assim, a erótica de

inspiração provençal, hoje espalhada universalmente, apesar de adulterada,

merece a atenção dos observadores das sociedades actuais.

O sentimento de comunhão espiritual, no seu papel de excitante sexual,

trouxe ao antigo casamento uma fantasia menos temível, embora não o pareça, já

que o que está por detrás, quer das separações quer dos divórcios, é a

reconstituição da união amorosa. Os actuais amantes perpetuam assim o

ensinamento mais certo e profundo erótica dos trovadores, segundo o qual o pior

dos crimes é fazer amor sem amor, por ser contra o próprio amor.

pg. 105 - 112


Solé, Jacques "Os trovadores e o amor-paixão" in Amor e Sexualidade no
Ocidente, int. Georges Duby, trad. Ana Paula Faria, ed. Terramar

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