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Resumo
Nosso objetivo geral é aproximar as reflexões de Foucault sobre a governamentalidade à
proposta de Benjamin acerca da reprodutibilidade técnica da obra de arte mediante um foco
específico: uma análise sobre o neoliberalismo. Com essa mirada, trataremos, no primeiro
tópico, da obra de arte e sua transformação em mercadoria por meio da técnica.
Enfatizaremos que a obra de arte convertida em mercadoria serve à condução das massas.
No segundo tópico, começaremos caracterizando a indústria cultural como um dispositivo
que favorece o exercício do poder na forma de condução de condutas, tal como proposto
por Foucault. Segundo essa leitura, a indústria cultural seria um dispositivo importante para
compreendermos a atuação da governamentalidade em nossos dias.
Palavras-chave: reprodutibilidade técnica da obra de arte, governamentalidade, Benjamin,
Foucault.
Abstract
Our general objective is to bring Foucault's reflections on governmentality closer to
Benjamin's proposal about the technical reproducibility of the artwork through a specific
focus: an analysis of neoliberalism. Based on it, in the first topic, the artwork and its
transformation into merchandise through technique is seen. There is an emphasis on the fact
that the artwork converted into merchandise serves to guide the masses. In the second topic,
it starts by characterizing the cultural industry as a device that favors the exercise of power
which drives the conduct, as proposed by Foucault. According to this point of view, the
cultural industry would be an important device for understanding the role of
governmentality in our days.
Keywords: technical reproducibility of the artwork, governmentality, Benjamin, Foucault.
Introdução
É certo que Michel Foucault não pode ser aproximado da Escola de Frankfurt de
modo indiscriminado. Mesmo com extremo cuidado, e ressalvadas as distâncias, a obra de
Foucault pode ser considerada a crítica mais radical ao Iluminismo desde a Dialética do
Esclarecimento (HONNETH, 1986, p. 48). Convém resgatar aqui uma fala do próprio
Foucault, na qual ele cita a Escola de Frankfurt como um exemplo daquilo que chamou de
ontologia do presente. Para ele, esse modo de fazer Filosofia poderia ser enquadrado na
tradição crítica (FOUCAULT, 2007a, p. 69)1.
Num primeiro momento, exporemos como a obra de arte foi gradativamente sendo
transformada em mercadoria por meio da técnica. Para esse fim, utilizaremos a obra de
Walter Benjamin A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Dentro do marco
proposto por Adorno e Horkheimer ao apresentarem o conceito de indústria cultura na
Dialética do Esclarecimento, veremos como a mercadoria foi sendo transformada em
mediadora das relações sociais a partir dos argumentos de Guy Debord. Nosso intuito maior
é prover uma compreensão do modo como os sujeitos foram afetados pela compreensão de
que poderiam alcançar um maior exercício de sua liberdade através do consumo.
1
Sobre a inserção de Foucault na Teoria crítica, remetemos aos textos: Fred Rush (Org.). Teoria crítica;
Ashenden & Owen, Foucault contra Habermas; João Barros, Crítica e ontologia do presente em Michel
Foucault e Genealogía y crítica. Vale à pena pontuar, como contraponto, que a crítica à técnica empreendida
por Foucault está muito mais próxima de Heidegger (DREYFUS, 1999, p. 95).
funcionamento dessa sociedade neoliberal. Atuando sobre a liberdade dos indivíduos, a
governamentalidade tornará possível aos sujeitos a percepção de que estão sendo cada vez
mais livres ao atuarem como consumidores, sem, no entanto, se darem conta de que podem
estar mais e mais restritos em sua autonomia. Para tanto, as obras principais serão
Nascimento da biopolítica (2004a) e Segurança, Território, População (2004b).
2
Este é um ponto de contato com os argumentos de Foucault. Principalmente se pensamos em sua concepção
produtiva de poder.
proporcionar uma experiência completamente inversa. Já não há lugar para associações
próprias. Já não há pausa para a contemplação da imagem. O filme dá ao espectador as
associações prontas, acabadas e em ritmo muitas vezes assaz acelerado.
Sobre isso, Georges Duhamel, citado por Benjamin, é exemplar em suas palavras na
obra Cenas da vida futura:
[o cinema é] um passatempo para a ralé, uma diversão para criaturas
iletradas, miseráveis, gastas pelo trabalho e consumidas pelas
preocupações [...] um espetáculo que não exige concentração nem
pressupõe qualquer capacidade de raciocínio [...] que não ilumina nenhum
coração e que de forma alguma desperta qualquer esperança a não ser a
esperança ridícula de vir um a ser estrela em Los Angeles (DUHAMEL,
1930, apud BENJAMIN, 1989, p. 53)3.
De forma geral, o cinema veio intensificar um processo que já havia sido iniciado
com o rádio. Neste, a obra musical pôde ser transmitida ao vasto público, dentro de suas
casas, no trabalho, na rua. Além da transmissão em massa, a influência da técnica também
se faz presente na própria produção da obra, com equipamentos cada vez mais sofisticados.
Assim a obra perde gradativamente seus atributos artísticos, passando cada vez mais a ser
assemelhada a uma mercadoria.
À tal função da obra de arte como ferramenta de governo sobre a classe trabalhadora
é possível relacionar o caráter sistêmico da indústria cultural. Do ponto de vista interno, o
3
Esta citação encontra-se na terceira versão do texto publicada em 1955.
rádio, o cinema, as revistas e a TV constituem um “sistema” (ADORNO e HORKHEIMER,
2007, p. 133). Funcionam harmonicamente com respeito à produção e difusão da obra
artística padronizada. Do ponto de vista externo, também funcionam como um sistema.
Neste âmbito mais amplo, tornam-se parceiros dos grandes oligopólios da sociedade
capitalista, como petróleo, energia elétrica e química. Neste ponto é interessante o
argumento de Antônio Zuin:
Nestes termos, a condução e exploração das massas tem na obra de arte tecnificada uma
ferramenta importante para a manutenção dessa ordem neoliberal. Com seu uso, o
neoliberalismo esforça-se para transformar o operário em consumidor.
Quanto à busca por ilusões que talvez nunca serão alcançadas nessa relação entre
ídolo-espectador/consumidor, temos um ponto interessante a ser ressaltado. O
espectador/consumidor segue o ídolo por uma promessa de felicidade baseada no consumo
de uma mercadoria para a qual este foi tomado como referência viva. O consumidor é
levado como ovelha ao matadouro do mercado, que sempre está à espreita para golpear a
conduta autônoma de um sujeito desatento.
Podemos usar de um exemplo banal de nossos dias. Quantas vezes não vemos uma
criança usando uma camisa de futebol. Muitas das vezes essa criança, notoriamente, não
tem as mínimas condições de adquirir um produto como este. Vendidas a preços
exorbitantes, essas camisas não deixam de ser objeto de desejo para muitos que não têm
condições de pagar por elas. Levando nosso pensamento a pontos mais distantes do planeta,
pensemos nos olhares de uma criança do distante deserto oriental que brilham por uma
camisa de futebol. Por via do espetáculo, a criança vê nessa camisa a imagem de um ídolo,
sendo que o simples ato de vesti-la já seria a realização de um sonho. Nestes termos,
podemos pensar que
Nestes termos, a obra de arte tecnificada pode ser vista como um ingrediente a mais
na estratégia neoliberal de condução das massas. No próximo tópico, veremos como esses
argumentos podem ser aproximados da proposta de Foucault no que concerne ao governo
sobre a população e a produção de desejos necessários a esse fim.
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Para uma análise mais detida do conceito de esquematismo da produção, remetemos ao texto Nascimento e
descentramento do sujeito moderno (2018).
crítica se consideramos suas reflexões sobre o poder e a sua influência na sociedade. Em
suas palavras:
Somente com esse passo [análise do poder inspirada por Nietzsche] seu
trabalho deixa o quadro da história do conhecimento e se torna uma
análise social: o lugar das formas culturais determinantes do
conhecimento é agora substituído pelas estratégias institucionais e
cognitivas do integração social; e com isso Foucault entra no terreno no
qual a tradição da Escola de Frankfurt está situada (HONNETH, 1986, p.
51).
Muito mais próximo às bases teóricas propostas por Foucault, encontramos na obra
de Nikolas Rose um suporte adequado para fazer essa aproximação. Segundo ele, ao
refletirmos sobre os modos de governo em democracias neoliberais, seria necessário levar
em consideração que a indústria cultural pode ser entendida também como um dispositivo
de governo das populações. Assim se expressa Rose ao considerar que
Ou seja, o que Rose nos propõe é compreender como os sujeitos são governados através da
produção de suas liberdades. Essa produção pode ser averiguada no momento em que eles
assumem para si interesses daqueles que os governam5. Em outras palavras, é importante
para o fabricante de carros que mais pessoas comprem carros; é importante para as
indústrias de aparelhos eletrônicos que as pessoas troquem de celular ou de computador em
intervalos mais curtos. Contudo, esses consumidores podem não se dar conta das
consequências ao assumirem para si esses objetivos.
Antes, nessa mesma linha, outro autor que usa o conceito de dispositivo para se
referir à indústria cultural e os meios de comunicação é Maurizio Lazzarato. Em seu texto A
fábrica do homo ‘debitor’ – Notas sobre a condição neoliberal, somos apresentados ao
seguinte argumento:
Em sua análise, Lazzarato propõe o conceito de homo debitor a partir das reflexões
de Foucault sobre o homo oeconomicus. De acordo com o italiano, a atividade de consumo
é incitada muito além da capacidade de endividamento dos cidadãos. Sendo lançados em
5
Nesses mesmos termos expressa-se Rodrigo Duarte, 2003, p. 51, ao refletir sobre a indústria cultural.
um mundo no qual as opções de aquisição são muito mais amplas que a capacidade
financeira da maioria das pessoas, muitas delas terminam ficando em um estado de dívida
constante. E aqui algo salta aos nossos olhos. Se esse endividamento constante fosse
identificado como um dispositivo de governo, logo seria desmascarado e rechaçado por boa
parte dos indivíduos. No entanto, não é isso que acontece. Vendo no ato de consumo uma
realização da liberdade e crescente satisfação dos desejos, muitas vezes os indivíduos têm
na busca de uma satisfação momentânea a causa de uma relação de poder que será
estabelecida por tempo muito mais prolongado.
Ademais, outro ponto é que a dívida é revestida de uma culpa. Recorrendo à obra de
Nietzsche, Lazzarato afirma o seguinte:
Ao ser vista como resultado de um ato livre, a dívida é encarada como resultado de uma
ação que poderia e deveria ser evitada. Não obstante, essa operação esconde justamente os
dispositivos de segurança que estão por traz dessa relação etimológica entre dívida e culpa.
Além disso, o fato de buscarem uma satisfação, uma realização, leva a um vínculo
que Lazzarato expressa muito bem em sua reflexão. Lançando mão novamente da obra de
Nietzsche, para quem a dívida pode ser entendida como um dos arquétipos das relações
sociais, suas palavras nos alertam para a possibilidade de a dívida configurar um controle
da subjetividade. De modo mais específico,
Com tônica distinta, o Neoliberalismo espera que o Estado oriente suas ações como
forma de impor à sociedade a lógica de mercado. Ou seja, ao Estado cabe a tarefa de fazer
imperar a lógica de mercado nas relações entres os indivíduos. Já não estamos falando de
6
Para um argumento mais detalhado sobre o conceito de homo oeconomicus em Foucault, sugerimos a leitura
do texto A Cidade Biopolítica. Dispositivos de segurança, população e homo oeconomicus (2016).
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Daqui em diante, todas as referências à obra de Foucault serão compostas pelo original seguido da tradução.
um mercado que pede ao Estado que se afaste e deixe o laissez-faire ocorrer sem
interferências, ou apenas com as regulamentações mínimas para a proteção da propriedade
privada. Neste estágio de desenvolvimento do capitalismo, o Neoliberalismo espera que o
Estado atue como um interventor direto e parceiro para a implementação da lógica de
mercado em todos os âmbitos do tecido social.
O que está evidente nessa colocação é uma estratégia de governo que tenta aliar à cada
necessidade natural um produto artificial. Estratégia ambiciosa, mas perfeitamente viável
em nossos dias. Se considerarmos nossas sociedades ocidentais movidas pelo consumo, a
condição de homo debitor vigora em áreas antes impensáveis.
Dito isso, qual seria o ambiente ou o espaço mais propício para a realização dessa
lógica de mercado? Questão à qual podemos responder: a cidade. O espaço urbano como
espaço recortado e regulado intensamente pelos dispositivos torna-se muito propício para a
lógica de mercado. Lembremos que Foucault sinaliza em alguns textos que a cidade é
considerada durante a Modernidade um espaço de produção e intercâmbio por excelência.
Como exemplo, lembramos da seguinte passagem de Segurança, Território, População:
Enquanto não for questionada a postura de não garantia de uma vida digna para
todas as pessoas, mesmo que elas não sejam capazes de pagar por isso, teremos
dificuldades. Por vida digna, referimo-nos ao necessário e básico para o exercício da
cidadania em tempos como o nosso. Não apenas o necessário para sobreviver. A dignidade
humana expressa na Declaração dos direitos humanos vai além disso. O acesso a produtos e
serviços básicos da vida moderna não pode estar condicionado ao poder aquisitivo de cada
8
Claro que em grandes metrópoles do terceiro mundo esse controle do espaço ganha múltiplas facetas. Se
considerarmos que a concentração populacional em frações diminutas do território é uma estratégia de
controle, “é importante perceber que estamos lidando aqui com uma reorganização fundamental do espaço
metropolitano, que envolve uma diminuição drástica das interseções entre a vida dos ricos e a dos pobres, que
transcende a segregação social e a fragmentação urbana tradicionais. Alguns autores brasileiros recentemente
falaram na “volta da cidade medieval”, mas as consequências da secessão entre a classe média e espaço
público, assim como de qualquer vestígio de uma vida cívica junto com os pobres, são mais radicais”
(DAVIS, 2006, p. 124).
indivíduo. Trata-se de uma decisão da sociedade garantir as condições de moradia digna,
serviço de saúde de qualidade, formação escolar básica e superior de qualidade, segurança e
transporte público eficientes a um custo baixo, etc.
Nessa passagem, vemos que mesmo nossas relações familiares são compreendidas
como econômicas por teóricos do Neoliberalismo. Talvez o último reduto da vida social
antes não atingido por esse paradigma também poder ser quantificado mediante o tempo e a
qualidade dessas relações. Desse modo, mais uma esfera de atuação dos indivíduos fica sob
o crivo do paradigma econômico.
Nessa combinação entre biopoder e indústria cultural, podemos perceber que essas
duas concepções proporcionam um olhar distinto sobre o modo como a indústria cultural
atua sobre nossas vidas. A partir disso, a reflexão sobre a formação de uma subjetividade
sujeitada também ganha novos elementos. Elementos esses que são extremamente
pertinentes em nossos dias, dados os tempos midiatizados nos quais vivemos.
Tendo em conta que alguns autores como Lazzarato e Rose, tributários da obra de
Foucault, reconhecem os meios de comunicação como um dispositivo de poder, foi possível
fazer a ponte entre ambas as correntes. Como tecnologias de governo, esses dispositivos
servem à produção de subjetividades sujeitadas que serão governadas de modo mais
eficiente. Isso nos ajudou a fazer jus à consideração de Foucault sobre a ambiguidade das
Luzes. Se por um lado temos liberdade, por outro estão as disciplinas (FOUCAULT, 1975,
p. 258; 2009, p. 209).
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