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Foucault e o neoliberalismo

Da reprodutibilidade técnica da obra de arte à governamentalidade


João Barros
UNILA

Resumo
Nosso objetivo geral é aproximar as reflexões de Foucault sobre a governamentalidade à
proposta de Benjamin acerca da reprodutibilidade técnica da obra de arte mediante um foco
específico: uma análise sobre o neoliberalismo. Com essa mirada, trataremos, no primeiro
tópico, da obra de arte e sua transformação em mercadoria por meio da técnica.
Enfatizaremos que a obra de arte convertida em mercadoria serve à condução das massas.
No segundo tópico, começaremos caracterizando a indústria cultural como um dispositivo
que favorece o exercício do poder na forma de condução de condutas, tal como proposto
por Foucault. Segundo essa leitura, a indústria cultural seria um dispositivo importante para
compreendermos a atuação da governamentalidade em nossos dias.
Palavras-chave: reprodutibilidade técnica da obra de arte, governamentalidade, Benjamin,
Foucault.

Foucault and the Neoliberalism


From the technical reproducibility of the artwork to the Governmentality

Abstract
Our general objective is to bring Foucault's reflections on governmentality closer to
Benjamin's proposal about the technical reproducibility of the artwork through a specific
focus: an analysis of neoliberalism. Based on it, in the first topic, the artwork and its
transformation into merchandise through technique is seen. There is an emphasis on the fact
that the artwork converted into merchandise serves to guide the masses. In the second topic,
it starts by characterizing the cultural industry as a device that favors the exercise of power
which drives the conduct, as proposed by Foucault. According to this point of view, the
cultural industry would be an important device for understanding the role of
governmentality in our days.
Keywords: technical reproducibility of the artwork, governmentality, Benjamin, Foucault.

Introdução
É certo que Michel Foucault não pode ser aproximado da Escola de Frankfurt de
modo indiscriminado. Mesmo com extremo cuidado, e ressalvadas as distâncias, a obra de
Foucault pode ser considerada a crítica mais radical ao Iluminismo desde a Dialética do
Esclarecimento (HONNETH, 1986, p. 48). Convém resgatar aqui uma fala do próprio
Foucault, na qual ele cita a Escola de Frankfurt como um exemplo daquilo que chamou de
ontologia do presente. Para ele, esse modo de fazer Filosofia poderia ser enquadrado na
tradição crítica (FOUCAULT, 2007a, p. 69)1.

Não obstante certas diferenças, faremos um esforço teórico para aproximar a


reflexão de Foucault sobre a governamentalidade à proposta de Benjamin acerca da
reprodutibilidade técnica da obre de arte. Para tanto, temos um foco específico: uma análise
sobre o neoliberalismo. Tal opção se deve ao fato de ambos ou autores nos proporcionarem
argumentos que versam sobre a atuação do mercado sobre a subjetividade dos indivíduos.
Por meio da indústria cultural ou da governamentalidade, vislumbramos um caminho para
problematizar a formação de cidadãos consumidores, tendo como foco a constituição de
uma subjetividade sujeitada. Isso nos ajudará a compreender certas técnicas de governo que
atuam sobre a sociedade no intuito de favorecer uma lógica neoliberal.

Num primeiro momento, exporemos como a obra de arte foi gradativamente sendo
transformada em mercadoria por meio da técnica. Para esse fim, utilizaremos a obra de
Walter Benjamin A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Dentro do marco
proposto por Adorno e Horkheimer ao apresentarem o conceito de indústria cultura na
Dialética do Esclarecimento, veremos como a mercadoria foi sendo transformada em
mediadora das relações sociais a partir dos argumentos de Guy Debord. Nosso intuito maior
é prover uma compreensão do modo como os sujeitos foram afetados pela compreensão de
que poderiam alcançar um maior exercício de sua liberdade através do consumo.

Num segundo momento, traremos algumas formulações de Foucault sobre o


neoliberalismo e a governamentalidade como seu modo de governo específico. Daremos
ênfase à produção de uma subjetividade consumidora como elemento-chave para o

1
Sobre a inserção de Foucault na Teoria crítica, remetemos aos textos: Fred Rush (Org.). Teoria crítica;
Ashenden & Owen, Foucault contra Habermas; João Barros, Crítica e ontologia do presente em Michel
Foucault e Genealogía y crítica. Vale à pena pontuar, como contraponto, que a crítica à técnica empreendida
por Foucault está muito mais próxima de Heidegger (DREYFUS, 1999, p. 95).
funcionamento dessa sociedade neoliberal. Atuando sobre a liberdade dos indivíduos, a
governamentalidade tornará possível aos sujeitos a percepção de que estão sendo cada vez
mais livres ao atuarem como consumidores, sem, no entanto, se darem conta de que podem
estar mais e mais restritos em sua autonomia. Para tanto, as obras principais serão
Nascimento da biopolítica (2004a) e Segurança, Território, População (2004b).

Indústria cultural: reprodutibilidade técnica da obra de arte e condução das massas

Começaremos nosso argumento discorrendo sobre a reprodutibilidade técnica da


obra de arte conforme proposta por Walter Benjamin (1892-1940). Em seguida,
recorreremos à obra de Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento, no intuito de
proporcionar mais detalhes do como se dá essa relação entre indústria cultural e condução
das massas. Finalizaremos esse tópico com a posição de Guy Debord, ao propor que a
mercadoria, enquanto exposta mediante o espetáculo, tem reforçado seu papel de
mediadora das relações sociais.

Benjamin dirá, em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, que a


obra de arte sempre foi reprodutível. Contudo, essa característica estava condicionada aos
limites físicos do ser humano. Com o advento da sociedade industrial e o desenvolvimento
do rádio, da fotografia e do cinema, foi iniciado outro período na história da criação
artística que a iria modificar definitivamente. É a chamada era da reprodutibilidade técnica.

A obra de arte submetida à reprodutibilidade técnica ganha em autonomia e poder


de penetração. Autonomia em relação ao artista, já que a mesma obra pode ser reproduzida
em inúmeras cópias em uma velocidade cada vez maior. Poder de penetração porque a
interferência da técnica na produção artística, por meio de sucessivas inovações
tecnológicas, dá a perceber características do mundo natural que não estão ao alcance dos
sentidos humanos. Esse poder de penetração é exemplificado pelo autor com a ampliação e
a câmera lenta.

E, assim como na ampliação, não se trata somente de uma mera


clarificação daquilo que “de qualquer modo” se veria de modo indistinto,
mas vêm à luz formações estruturais da matéria inteiramente novas; do
mesmo modo, a câmera lenta não torna visível apenas motivos de
movimentos conhecidos, mas, também, nestes, descobre motivos
totalmente desconhecidos [...] Desse modo, torna-se evidente ser uma
natureza que fala à câmera e outra que fala aos olhos (BENJAMIN, 2014,
p. 98-99).

Ao comparar reprodutibilidade técnica com os modos anteriores que estavam


limitados à capacidade física do artista, é possível notar também uma amplificação do
poder de impacto da arte sobre o espectador. No tocante a este ponto, Benjamin faz a
distinção entre imersão, ou contemplação, e distração.

À imersão, que se tornou, na degeneração da burguesia, uma escola de


comportamento associal [sic], contrapõe-se a distração como uma
modalidade de comportamento social. [...]. De uma aparência sedutora aos
olhos ou de uma convincente imagem sonora a obra de arte convertia-se
[...] em um projétil. Atingia com violência o espectador (BENJAMIN,
2014, p. 107).

A imersão seria característica da obra de arte quando esta convida o espectador à


reflexão diante da realidade. As associações feitas a partir desta contemplação são
autônomas e partem de um esforço do espectador em elaborar livremente sentidos e
questões suscitadas pela obra artística. Já a distração é o efeito característico da obra de arte
reproduzida pela técnica, que tinha no cinema sua expressão máxima. O poder desta causa
um “efeito de choque” tão intenso sobre a capacidade perceptiva do espectador que não lhe
resta mais nenhuma opção a não ser entregar-se a um movimento insano e repetitivo de
estímulos (BENJAMIN, 2014, p. 108, n. XVI). Nessa condição, o espectador fica
entorpecido pelas associações que já são dadas na sequência fílmica, a ponto de não ser
capaz de refletir livremente sobre a realidade retratada pela obra artística.

Dito deslocamento terá como premissa a característica histórica da percepção


humana. “O modo como a percepção se organiza [...] não é apenas condicionado
naturalmente, mas também historicamente” (BENJAMIN, 2014, p. 25). Ou seja, nossa
capacidade perceptiva está estreitamente relacionada com o contexto do qual fazemos parte.
O tempo histórico que vivenciamos e as forças que atuam sobre nós influem muito no
modo como percebemos o mundo que nos cerca2. A realidade da qual fazemos parte perde
assim uma caracterização essencialista para adquirir um valor estético e epistemológico que
não estará presente em outros tempos. A consequência de ambos os fatores é a mudança da
“[...] função social da arte”, transpondo-a ao campo da “política” (BENJAMIN, 2014, p.
35).

Ao falar de reprodutibilidade técnica da obra de arte, se faz necessário mencionar o


papel decisivo do capital cinematográfico.

Sob essas circunstâncias, a indústria cinematográfica possui todo o


interesse em estimular a participação das massas por meio de
representações ilusórias e especulações ambíguas. Com esse objetivo,
mobilizou um poderoso aparelho publicitário [...]. Tudo isso para
falsificar [...] o interesse originário e justificado das massas pelo cinema –
um interesse de autoconhecimento e, com isso, de conhecimento de classe
(BENJAMIN, 2014, p. 83).

Desse modo, o capital cinematográfico alcança uma “constituição corrupta da massa”,


pondo-a no lugar de uma “consciência de classe” (BENJAMIN, 2014, p. 77). Tendo seus
interesses falsificados pelo capital por meio da obra de arte tecnificada, a massa tem
dificuldades de alcançar autoconhecimento e emancipação. A arte, que inicialmente poderia
ser instrumento de reflexão crítica sobre a realidade, torna-se seu contrário. Torna-se mais
um meio pelo qual a massa é levada a estar alienada do seu próprio mundo, não sendo
capaz de interpretar adequadamente aquilo que a cerca.

A influência da reprodutibilidade técnica da obra de arte e a condução das massas é


algo muito presente na obra de Benjamin. Num primeiro momento, a reprodução da obra de
arte em grande escala possibilitou à indústria um alcance cada vez maior, atingindo um
público continuamente mais amplo. Num segundo momento, o poder da técnica é
manifestado ao atentarmos para o impacto da obra artística sobre o espectador. Tendo o
cinema como foco de análise, Benjamin aponta para a passividade do público diante da
obra fílmica. Em contraposição à tela do pintor, diante da qual o indivíduo se detém e tem a
possibilidade de elaborar associações a partir dos elementos presentes na obra, o filme pode

2
Este é um ponto de contato com os argumentos de Foucault. Principalmente se pensamos em sua concepção
produtiva de poder.
proporcionar uma experiência completamente inversa. Já não há lugar para associações
próprias. Já não há pausa para a contemplação da imagem. O filme dá ao espectador as
associações prontas, acabadas e em ritmo muitas vezes assaz acelerado.

Nessa experiência, o sujeito é conduzido pelo roteiro da obra, com uma


possibilidade de reflexão muito diminuta. Sua autonomia para extrair o significado dessa
obra de modo livre fica extremamente reduzida. Diante do filme, em alguma medida, não é
possível pausar a imagem sem perder o sentido dado pelo roteiro. Ele mal registra a
imagem ou os sons e esses elementos já são substituídos por outros. Isso provoca uma
alteração acelerada, resultando um efeito de vertigem e entorpecimento no sujeito. Se
pensarmos em um vídeo que falha ao ser descarregado on line, isso fica muito evidente em
nossos dias. Há a possibilidade de pausarmos a imagem. Contudo, se este artifício for usado
seguidamente, a obra parece sem sentido, perdendo seu significado. Por outro lado, se
assistimos o filme continuamente, ‘respeitando’ o roteiro e deixando-nos levar pela
sequência da obra, somos conduzidos por ela como uma massa é conduzida pelo político de
forma irreflexiva.

[...] tanto mais se separam [...] a postura crítica da postura de fruição no


público. [...] E aqui a circunstância decisiva é que, na sala de cinema, mais
que em qualquer outro lugar, as reações do indivíduo, cuja soma constitui
a reação em massa do público, mostram-se condicionadas de antemão por
sua massificação iminente. E, na medida em que se manifestam, essas
reações se controlam (BENJAMIN, 2014, p. 91; 93).

Considerando a estrutura do cinema, o indivíduo já não pode pensar o que quer. As


imagens em movimento tomaram o lugar de seu pensamento e suas associações próprias. O
observador perde sua autonomia ao registrar as imagens de forma tão frenética, figurando
como um personagem menor na relação com a obra artística. Ao estar dirigido a um público
mais amplo, o cinema tem a capacidade de conduzi-lo em suas associações, prejudicando a
capacidade desse público de pensar-se como massa. Já não pensam a não ser o que o filme
lhes transmite.

Sobre isso, Georges Duhamel, citado por Benjamin, é exemplar em suas palavras na
obra Cenas da vida futura:
[o cinema é] um passatempo para a ralé, uma diversão para criaturas
iletradas, miseráveis, gastas pelo trabalho e consumidas pelas
preocupações [...] um espetáculo que não exige concentração nem
pressupõe qualquer capacidade de raciocínio [...] que não ilumina nenhum
coração e que de forma alguma desperta qualquer esperança a não ser a
esperança ridícula de vir um a ser estrela em Los Angeles (DUHAMEL,
1930, apud BENJAMIN, 1989, p. 53)3.

De forma geral, o cinema veio intensificar um processo que já havia sido iniciado
com o rádio. Neste, a obra musical pôde ser transmitida ao vasto público, dentro de suas
casas, no trabalho, na rua. Além da transmissão em massa, a influência da técnica também
se faz presente na própria produção da obra, com equipamentos cada vez mais sofisticados.
Assim a obra perde gradativamente seus atributos artísticos, passando cada vez mais a ser
assemelhada a uma mercadoria.

Com esses elementos é possível compreender a extensão da afirmação de Adorno e


Horkheimer, ao dizerem que “os consumidores são os trabalhadores e empregados,
agricultores e pequenos burgueses. A produção capitalista absorve-os de tal modo em corpo
e alma, que se submetem sem resistência a tudo o que se lhe oferece. [...] as massas
enganadas sucumbem” à influência da obra artística que foi convertida em mercadoria
cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 2007, p. 146). O produto dessa conversão será usado
para a condução das massas, deixando perceber a especificidade da indústria cultural em
criar uma atmosfera na qual o indivíduo tem reduzida a capacidade de fazer suas escolhas
livremente.

Ao receber a obra artística influenciada pela técnica em sua casa, o trabalhador já


está cansado de sua rotina diária na linha de produção. Nessa condição, disfruta de um lazer
controlado, adaptando-se às opções que lhe são dadas. A distração oferecida pela diversão
colaboraria para a condução das massas pelas elites, à medida que esta suaviza o trabalho
do pensamento, eufemizando os problemas cotidianos, como também conformando o
indivíduo e levando-o a aceitar a exploração vivida no trabalho.

À tal função da obra de arte como ferramenta de governo sobre a classe trabalhadora
é possível relacionar o caráter sistêmico da indústria cultural. Do ponto de vista interno, o

3
Esta citação encontra-se na terceira versão do texto publicada em 1955.
rádio, o cinema, as revistas e a TV constituem um “sistema” (ADORNO e HORKHEIMER,
2007, p. 133). Funcionam harmonicamente com respeito à produção e difusão da obra
artística padronizada. Do ponto de vista externo, também funcionam como um sistema.
Neste âmbito mais amplo, tornam-se parceiros dos grandes oligopólios da sociedade
capitalista, como petróleo, energia elétrica e química. Neste ponto é interessante o
argumento de Antônio Zuin:

É no auge da chamada revolução técnico-científica, cujas forças


propulsoras foram representadas pelas indústrias do aço, do petróleo, da
energia elétrica e da química, que Adorno relaciona as vidas tecnificadas
com um processo psicossocial de contínua dessensibilização [...] (ZUIN,
2006, p. 74).

Nestes termos, a condução e exploração das massas tem na obra de arte tecnificada uma
ferramenta importante para a manutenção dessa ordem neoliberal. Com seu uso, o
neoliberalismo esforça-se para transformar o operário em consumidor.

Ampliando um pouco nosso argumento para a relação da indústria cultural com os


grandes conglomerados da indústria, essa estratégia se dá pela mediação da mercadoria
como espetáculo. É o que propõe Guy Debord em A sociedade do espetáculo, ao afirmar
que

Ao mobilizar todo uso humano e ao assumir o monopólio de sua


satisfação, ele conseguiu dirigir o uso. O processo de troca identificou-se
com os usos possíveis, os sujeitou. [...] O consumidor real torna-se
consumidor de ilusões. A mercadoria é essa ilusão efetivamente real, e o
espetáculo é sua manifestação geral (DEBORD, 1997, p. 33).

Quanto à busca por ilusões que talvez nunca serão alcançadas nessa relação entre
ídolo-espectador/consumidor, temos um ponto interessante a ser ressaltado. O
espectador/consumidor segue o ídolo por uma promessa de felicidade baseada no consumo
de uma mercadoria para a qual este foi tomado como referência viva. O consumidor é
levado como ovelha ao matadouro do mercado, que sempre está à espreita para golpear a
conduta autônoma de um sujeito desatento.
Podemos usar de um exemplo banal de nossos dias. Quantas vezes não vemos uma
criança usando uma camisa de futebol. Muitas das vezes essa criança, notoriamente, não
tem as mínimas condições de adquirir um produto como este. Vendidas a preços
exorbitantes, essas camisas não deixam de ser objeto de desejo para muitos que não têm
condições de pagar por elas. Levando nosso pensamento a pontos mais distantes do planeta,
pensemos nos olhares de uma criança do distante deserto oriental que brilham por uma
camisa de futebol. Por via do espetáculo, a criança vê nessa camisa a imagem de um ídolo,
sendo que o simples ato de vesti-la já seria a realização de um sonho. Nestes termos,
podemos pensar que

A sociedade portadora do espetáculo não domina as regiões


subdesenvolvidas apenas pela hegemonia econômica. Domina-as como
sociedade do espetáculo. Nos lugares onde a base material ainda está
ausente, em cada continente, a sociedade moderna já invadiu
espetacularmente a superfície social (DEBORD, 1997, p. 38).

Assim, estamos muito próximos de um esquematismo da produção4 tal como proposto


pelos autores da Escola de Frankfurt. A partir de sua incidência, esse esquematismo
impediria que o sujeito pudesse interpretar a realidade que o cerca de modo autônomo.
Assumiria para si, desse modo, os padrões que a própria indústria cultural lhe proporciona,
desejando o que ela oferece.

Nestes termos, a obra de arte tecnificada pode ser vista como um ingrediente a mais
na estratégia neoliberal de condução das massas. No próximo tópico, veremos como esses
argumentos podem ser aproximados da proposta de Foucault no que concerne ao governo
sobre a população e a produção de desejos necessários a esse fim.

Governamentalidade e indústria cultural

A relação entre as reflexões de Foucault e da Escola de Frankfurt não são novidade.


Axel Honneth, afirma que Foucault pode ser considerado um autor pertencente à Teoria

4
Para uma análise mais detida do conceito de esquematismo da produção, remetemos ao texto Nascimento e
descentramento do sujeito moderno (2018).
crítica se consideramos suas reflexões sobre o poder e a sua influência na sociedade. Em
suas palavras:

Somente com esse passo [análise do poder inspirada por Nietzsche] seu
trabalho deixa o quadro da história do conhecimento e se torna uma
análise social: o lugar das formas culturais determinantes do
conhecimento é agora substituído pelas estratégias institucionais e
cognitivas do integração social; e com isso Foucault entra no terreno no
qual a tradição da Escola de Frankfurt está situada (HONNETH, 1986, p.
51).

Outro exemplo, é o livro Consumido (2009 [2007]), do cientista político Benjamin


Barber, quem chama à atenção para o fato de a sociedade estar passando por um processo
de homogeneização. Recorrendo a textos de Marcuse, Adorno, Horkheimer e Foucault, o
autor tenta aliar a reflexão sobre a sociedade de consumo àquela que proporia a formação
de uma sociedade disciplinar, na qual todos são objeto e agentes de uma vigilância
constante.

Muito mais próximo às bases teóricas propostas por Foucault, encontramos na obra
de Nikolas Rose um suporte adequado para fazer essa aproximação. Segundo ele, ao
refletirmos sobre os modos de governo em democracias neoliberais, seria necessário levar
em consideração que a indústria cultural pode ser entendida também como um dispositivo
de governo das populações. Assim se expressa Rose ao considerar que

[...] nosso século acrescentou os meios de comunicação de massas [...], as


pesquisas de opinião e outros mecanismos que proporcionam conexões
recíprocas entre as autoridades e os sujeitos; a regulação dos estilos de
vida através da publicidade, do marketing e do mundo das mercadorias,
sem esquecer dos especialistas da subjetividade. Essas tecnologias [...]
possibilitaram que fossem introduzidos os objetivos das autoridades
políticas, sociais e econômicas no interior das eleições e compromissos
dos indivíduos, situando-os em redes reais ou virtuais de identificações
através das quais podem ser governados (ROSE, 1996, p. 58).

Ou seja, o que Rose nos propõe é compreender como os sujeitos são governados através da
produção de suas liberdades. Essa produção pode ser averiguada no momento em que eles
assumem para si interesses daqueles que os governam5. Em outras palavras, é importante
para o fabricante de carros que mais pessoas comprem carros; é importante para as
indústrias de aparelhos eletrônicos que as pessoas troquem de celular ou de computador em
intervalos mais curtos. Contudo, esses consumidores podem não se dar conta das
consequências ao assumirem para si esses objetivos.

Essa dificuldade de compreender as malhas do poder nessas circunstâncias podem


advir da atuação de dispositivos, como por exemplo a indústria cultural, tais como
propostos por Foucault. Atuando na produção de desejos e expectativas, a indústria cultural
poderia ser analisada sob esse viés. Com isso, seria possível considerá-la um dispositivo de
segurança nos moldes propostos por ele ao analisar o neoliberalismo. Este ponto será
explorando mais adiante.

Antes, nessa mesma linha, outro autor que usa o conceito de dispositivo para se
referir à indústria cultural e os meios de comunicação é Maurizio Lazzarato. Em seu texto A
fábrica do homo ‘debitor’ – Notas sobre a condição neoliberal, somos apresentados ao
seguinte argumento:

Consumir não se reduz a adquirir e gastar um serviço ou produto [...],


sobretudo trata-se de pertencer a um mundo, estar aderido a um universo.
[...] Basta ligar a televisão ou o rádio, [...] adquirir uma revista ou um
jornal, para saber que este mundo está constituído [pela] publicidade e o
expressado (o sentido) é o reclame ou uma ordem; que são em si mesmos
uma avaliação, um juízo, uma crença; que são exercidos sobre o mundo,
sobre si mesmo, e sobre os demais. O expressado (o sentido) não é uma
avaliação ideológica, mas uma incitação [...] um chamado a abraçar uma
forma de vida, isto é, a abraçar uma maneira de vestir, uma maneira de ter
um corpo, uma maneira de comer, uma maneira de comunicar, uma
maneira de habitar [...]. A televisão é um fluxo de publicidade
regularmente interrompido por filmes, programas de entretenimento e
noticiários [...]. O rádio é um fluxo ininterrupto de publicidades e de
emissões nas quais resulta cada vez mais difícil saber onde começam
umas e terminam outras (LAZZARATO, 2015, p. 1).

Em sua análise, Lazzarato propõe o conceito de homo debitor a partir das reflexões
de Foucault sobre o homo oeconomicus. De acordo com o italiano, a atividade de consumo
é incitada muito além da capacidade de endividamento dos cidadãos. Sendo lançados em
5
Nesses mesmos termos expressa-se Rodrigo Duarte, 2003, p. 51, ao refletir sobre a indústria cultural.
um mundo no qual as opções de aquisição são muito mais amplas que a capacidade
financeira da maioria das pessoas, muitas delas terminam ficando em um estado de dívida
constante. E aqui algo salta aos nossos olhos. Se esse endividamento constante fosse
identificado como um dispositivo de governo, logo seria desmascarado e rechaçado por boa
parte dos indivíduos. No entanto, não é isso que acontece. Vendo no ato de consumo uma
realização da liberdade e crescente satisfação dos desejos, muitas vezes os indivíduos têm
na busca de uma satisfação momentânea a causa de uma relação de poder que será
estabelecida por tempo muito mais prolongado.

Ademais, outro ponto é que a dívida é revestida de uma culpa. Recorrendo à obra de
Nietzsche, Lazzarato afirma o seguinte:

Como nos recorda Nietzsche, o conceito de Schuld (culpa), de


importância fundamental na moral, remonta ao conceito muito material de
Schulden (dívidas). A moral da dívida induz uma moralidade [...] “a culpa
é de vocês”, “vocês são os culpados”. [Assim] o devedor é “livre”, mas
seus atos, seus comportamentos, devem ser desdobrados nos marcos
definidos pela dívida” (LAZZARATO, 2013, p. 37).

Ao ser vista como resultado de um ato livre, a dívida é encarada como resultado de uma
ação que poderia e deveria ser evitada. Não obstante, essa operação esconde justamente os
dispositivos de segurança que estão por traz dessa relação etimológica entre dívida e culpa.

Além disso, o fato de buscarem uma satisfação, uma realização, leva a um vínculo
que Lazzarato expressa muito bem em sua reflexão. Lançando mão novamente da obra de
Nietzsche, para quem a dívida pode ser entendida como um dos arquétipos das relações
sociais, suas palavras nos alertam para a possibilidade de a dívida configurar um controle
da subjetividade. De modo mais específico,

Ver na dívida o arquétipo da relação social significa duas coisas. Por um


lado, fazer que a economia e a sociedade comecem por uma assimetria de
poder; introduzir os diferenciais de poder entre grupos sociais [...]. Por
outro lado, começar pela dívida implica que a economia seja
imediatamente subjetiva, porque aquela é uma relação econômica que
para ser realizada pressupõe uma modelização e um controle da
subjetividade, de tal maneira que o “trabalho” seja indissociável de um
“trabalho sobre si mesmo” (LAZZARATO, 2013, p. 40-41).
Voltando ao conceito trabalhado por Foucault, vemos que o indivíduo, governado
pela lógica do consumo característica das sociedades neoliberais, é convertido em homo
oeconomicus6 passa à condição de “ator de eleição racional que gasta dinheiro para
produção de sua própria satisfação através da compra de mercadorias” (O’MALLEY, 2011,
p. 40). Como bem observa Pat O’Malley, algo que deve ser considerado nesse contexto é o
fato do preço ter sido convertido em uma ferramenta de modulação daqueles que são
governados. O sujeito passa a buscar sua própria satisfação, sendo esta busca já
padronizada pela indústria cultural e seus parceiros. A satisfação não está em toda a
compra. O indivíduo somente realizará seus desejos na aquisição de um bem ou serviço
condizente com a classificação à qual está inserido. Se pensamos no caráter sistêmico da
indústria cultural e sua relação com parceiros externos, podemos perceber como a
realização de desejos está condicionada pela aquisição de certas mercadorias.

Desse modo, mesmo buscando a satisfação de seus desejos, mesmo agindo e


fazendo suas escolhas, os indivíduos ainda convivem com certo grau de governo atuando
em suas vidas. Suas escolhas, suas preferências e mesmos as opções que lhe são oferecidas
encontram na indústria cultural uma técnica de governo mediante a classificação
proporcionada por categorias e preços.

De acordo com Foucault em Nascimento da biopolítica, a transição do Liberalismo


para o Neoliberalismo está caracterizada pela modificação do papel do Estado
(FOUCAULT, 2004a, p. 120ss; 2012, p. 151ss)7. No Liberalismo a pugna era para que o
Estado não interferisse na dinâmica de mercado. Assim, os indivíduos poderiam contribuir
para o bem da sociedade à medida que buscassem seus próprios interesses sem
interferências externas sobre suas liberdades. A liberdade concebida como ausência de
impedimentos é uma concepção fundamental desse período.

Com tônica distinta, o Neoliberalismo espera que o Estado oriente suas ações como
forma de impor à sociedade a lógica de mercado. Ou seja, ao Estado cabe a tarefa de fazer
imperar a lógica de mercado nas relações entres os indivíduos. Já não estamos falando de

6
Para um argumento mais detalhado sobre o conceito de homo oeconomicus em Foucault, sugerimos a leitura
do texto A Cidade Biopolítica. Dispositivos de segurança, população e homo oeconomicus (2016).
7
Daqui em diante, todas as referências à obra de Foucault serão compostas pelo original seguido da tradução.
um mercado que pede ao Estado que se afaste e deixe o laissez-faire ocorrer sem
interferências, ou apenas com as regulamentações mínimas para a proteção da propriedade
privada. Neste estágio de desenvolvimento do capitalismo, o Neoliberalismo espera que o
Estado atue como um interventor direto e parceiro para a implementação da lógica de
mercado em todos os âmbitos do tecido social.

Nesses moldes, vêm ao encontro de nosso argumento as palavras de Barber:

Precisar e comprar se tornam sinônimos: “Eu compro; portanto, eu sou”,


[...] paródia essencialmente cartesiana [...] A ideia é uma economia de
mercado que domina cada setor humano, tornando outros setores
dependentes do consumo para se satisfazerem: recreação, trabalho, arte,
educação e até religião definem um mercado que engloba tudo (BARBER,
2009, p. 268).

O que está evidente nessa colocação é uma estratégia de governo que tenta aliar à cada
necessidade natural um produto artificial. Estratégia ambiciosa, mas perfeitamente viável
em nossos dias. Se considerarmos nossas sociedades ocidentais movidas pelo consumo, a
condição de homo debitor vigora em áreas antes impensáveis.

Essa condição, [que] representa o núcleo da estratégia neoliberal, passou a


ocupar a totalidade do espaço público. O conjunto dos papeis assignados
na divisão social do trabalho das sociedades neoliberais [...] está
atravessado por essa figura subjetiva do “homem endividado”, que os
metamorfoseia em consumidores endividados, usuário endividado e,
finalmente, como é o caso da Grécia [e de muitos países em
desenvolvimento], em cidadão endividado (LAZZARATO, 2013, p. 44).

Nisso é possível perceber a dívida como um dispositivo de controle e subjetivação,


de modulação e condução de liberdades. Nesse prisma, Foucault se expressa da seguinte
maneira em Segurança, Território, População:

Essa liberdade, simultaneamente ideologia e técnica de governo, deve ser


compreendida no interior das mutações e transformações das tecnologias
de poder. E de uma maneira mais precisa e particular, a liberdade não é
outra coisa senão o correlato da introdução dos dispositivos de segurança
(FOUCAULT, 2004b, p. 50; 2007b, p. 71).
O Liberalismo clássico via no intercâmbio sem interferências um dado natural do
ser humano. Ou seja, bastava ao Estado não se imiscuir na economia de mercado e deixar
que o laissez-faire fosse realizado de modo automático, que assim estaria respeitando algo
próprio do atual humano. Contudo, o Neoliberalismo, tomando o exemplo do
Ordoliberalismo alemão analisado por Foucault, afirmava que essa concepção era
equivocada. Seja pelo intercâmbio (séc. XVIII), seja pela concorrência (séc. XIX), o
Liberalismo sofria de uma “ingenuidade naturalista” ao afirmar a lógica de mercado como
algo natural do ser humano (FOUCAULT, 2004a, p. 123; 2012, p. 152).

Não existirá o jogo do mercado ao qual deve deixar-se livre [...], a


concorrência pura, que é a essência do mercado, só pode aparecer si é
produzida, e se é produzida por uma governamentalidade ativa. Haverá,
portanto, uma sorte de superposição completa da política governamental e
dos mecanismos de mercado ajustados à concorrência. [...] É preciso
governar para o mercado [...] E nessa medida, vê-se que a relação definida
pelo liberalismo do séc. XVIII fica inteiramente invertida (FOUCAULT,
2004a, p. 125; 2012, p. 154).

Justamente tendo isso em consideração, Foucault alerta para a atividade preponderante do


mercado sobre a conduta dos indivíduos. Técnicas de governo estarão a todo momento
sendo empregadas com o objetivo de fazer com que os indivíduos atuem de modo a
incrementar a dinâmica de mercado no seio da sociedade.

Dito isso, qual seria o ambiente ou o espaço mais propício para a realização dessa
lógica de mercado? Questão à qual podemos responder: a cidade. O espaço urbano como
espaço recortado e regulado intensamente pelos dispositivos torna-se muito propício para a
lógica de mercado. Lembremos que Foucault sinaliza em alguns textos que a cidade é
considerada durante a Modernidade um espaço de produção e intercâmbio por excelência.
Como exemplo, lembramos da seguinte passagem de Segurança, Território, População:

[...] o soberano do território havia se convertido em arquiteto do espaço,


disciplinado, mas também e quase ao mesmo tempo em regulador de um
meio no qual não se trata tanto de fixar os limites e as fronteiras, ou de
determinar localizações como, sobretudo e essencialmente, de permitir,
garantir, assegurar distintos tipos de circulação: de gente, das
mercadorias, do ar, etc. (FOUCAULT, 2004b, p. 31; 2007b, p. 45).
O soberano age como um ordenador do espaço, interferindo diretamente na
circulação de pessoas e mercadorias; de indivíduos no uso de suas liberdades e também na
produção e disseminação de objetos de consumo. Assim, “a cidade, reconfigurada em sua
disposição espacial, articula no território as esferas necessárias para sobrevivência do
capital: produção, circulação e consumo” (BARROS, 2016, p. 218)8.

A interferência sobre as liberdades seria discutida por Foucault também em


Nascimento da Biopolítica, ao afirmar que a liberdade é o correlato dos dispositivos de
segurança. A “liberdade é algo que se fabrica a cada instante”, expressa ele (FOUCAULT,
2004a, p. 66; 2012, p. 85). Trata-se de “uma liberdade solicitada, controlada, fabricada,
cuja medida depende da relação, ela mesma variável, entre governantes e governados”
(SENELLART, 1995, p. 6, n. 11).

Nesse ambiente, se considerarmos que o Neoliberalismo tem como característica


fundamental a ação do Estado em prol do mercado para que a lógica deste passe a imperar
sobre a sociedade, então temos algo novo diante de nós. A novidade consiste justamente em
enxergar um número cada vez maior de circunstâncias nas quais o cálculo econômico pode
ser aplicado. Seja considerando a governamentalidade ou a indústria cultural, um dos
maiores desafios em uma sociedade neoliberal é romper com o paradigma econômico que
rege as relações.

Enquanto não for questionada a postura de não garantia de uma vida digna para
todas as pessoas, mesmo que elas não sejam capazes de pagar por isso, teremos
dificuldades. Por vida digna, referimo-nos ao necessário e básico para o exercício da
cidadania em tempos como o nosso. Não apenas o necessário para sobreviver. A dignidade
humana expressa na Declaração dos direitos humanos vai além disso. O acesso a produtos e
serviços básicos da vida moderna não pode estar condicionado ao poder aquisitivo de cada

8
Claro que em grandes metrópoles do terceiro mundo esse controle do espaço ganha múltiplas facetas. Se
considerarmos que a concentração populacional em frações diminutas do território é uma estratégia de
controle, “é importante perceber que estamos lidando aqui com uma reorganização fundamental do espaço
metropolitano, que envolve uma diminuição drástica das interseções entre a vida dos ricos e a dos pobres, que
transcende a segregação social e a fragmentação urbana tradicionais. Alguns autores brasileiros recentemente
falaram na “volta da cidade medieval”, mas as consequências da secessão entre a classe média e espaço
público, assim como de qualquer vestígio de uma vida cívica junto com os pobres, são mais radicais”
(DAVIS, 2006, p. 124).
indivíduo. Trata-se de uma decisão da sociedade garantir as condições de moradia digna,
serviço de saúde de qualidade, formação escolar básica e superior de qualidade, segurança e
transporte público eficientes a um custo baixo, etc.

A distância que algumas sociedades se encontram dessa compreensão pode ser


atestada pela passagem de NB, na qual Foucault menciona que o próprio convívio dos pais
com os filhos pode ser avaliado em termos econômicos.

[...] a generalização da forma econômica do mercado, para além dos


intercâmbios monetários, funciona no neoliberalismo norteamericano
como princípio de inteligibilidade, princípio de deciframento das relações
sociais e dos comportamentos individuais. Isso significa que a análise em
termos de economia de mercado [...] servirá como esquema capaz de ser
aplicado a âmbitos não econômicos. E graças a esse esquema de análise,
essa chave de leitura da realidade, [...] poderão ser postos em evidência
em processos não econômicos, em relações não econômicas, em
comportamentos não econômicos, uma séria de relações inteligíveis que
não haviam aparecido desse modo: uma espécie de análise economicista
do não econômico. [...] os neoliberais tratam de explicar, por exemplo,
que a relação mãe-filho, caracterizada concretamente pelo tempo que a
primeira passa com o segundo, a qualidade dos cuidados que lhe
proporciona, o afeto que lhe entrega, a vigilância com a qual segue seu
desenvolvimento, sua educação, [...] tudo isso representa para eles [...] um
investimento [...] um capital humano. (FOUCAULT, 2004a, p. 249; 2012,
p. 280).

Nessa passagem, vemos que mesmo nossas relações familiares são compreendidas
como econômicas por teóricos do Neoliberalismo. Talvez o último reduto da vida social
antes não atingido por esse paradigma também poder ser quantificado mediante o tempo e a
qualidade dessas relações. Desse modo, mais uma esfera de atuação dos indivíduos fica sob
o crivo do paradigma econômico.

Tendo o discurso econômico como preponderante e a relação de dívida como


arquétipo das relações sociais, temos condição de traçar uma compreensão sobre a
sociedade neoliberal. Nela não podemos pensar que somos unicamente sujeitos livres para
escolher os produtos ou serviços que estão disponíveis. Temos a possibilidade de enxergar
em cada produto e em nosso desejo sobre ele uma amostra de relações de poder que atuam
sobre nós. Resta-nos encarar nossos padrões de consumo, nossos desejos por certas
mercadorias, como um sinal das relações de poder circulando através de nós.
Conclusão

Nessa combinação entre biopoder e indústria cultural, podemos perceber que essas
duas concepções proporcionam um olhar distinto sobre o modo como a indústria cultural
atua sobre nossas vidas. A partir disso, a reflexão sobre a formação de uma subjetividade
sujeitada também ganha novos elementos. Elementos esses que são extremamente
pertinentes em nossos dias, dados os tempos midiatizados nos quais vivemos.

Tendo em conta que alguns autores como Lazzarato e Rose, tributários da obra de
Foucault, reconhecem os meios de comunicação como um dispositivo de poder, foi possível
fazer a ponte entre ambas as correntes. Como tecnologias de governo, esses dispositivos
servem à produção de subjetividades sujeitadas que serão governadas de modo mais
eficiente. Isso nos ajudou a fazer jus à consideração de Foucault sobre a ambiguidade das
Luzes. Se por um lado temos liberdade, por outro estão as disciplinas (FOUCAULT, 1975,
p. 258; 2009, p. 209).

Tanto se consideramos o conceito de indústria cultura, refletindo sobre a incidência


da técnica sobre a obra de arte, ou o conceito de governamentalidade, pelo qual Foucault
propõe um modo de exercício de poder na forma de condução de condutas, chegamos a um
ponto comum. Em nossas sociedades neoliberais nosso papel de cidadãos está cada vez
mais marcado pelo paradigma econômico. Somos sujeitos de produção, sujeitos de
consumo e devedores perenes.

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