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TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Autoria: Vanessa Roberta Massambani Ruthes

UNIASSELVI-PÓS
Programa de Pós-Graduação EAD
CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito
Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC
Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090

Reitor: Prof. Hermínio Kloch

Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol

Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Ivan Tesck


Equipe Multidisciplinar da
Pós-Graduação EAD: Prof.ª Bárbara Pricila Franz
Prof.ª Tathyane Lucas Simão
Prof. Ivan Tesck

Revisão de Conteúdo: Neivor Schuck


Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais
Revisão Pedagógica: Bárbara Pricila Franz

Diagramação e Capa:
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Copyright © UNIASSELVI 2017


Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri
UNIASSELVI – Indaial.

231.044
R974t Ruthes, Vanessa Roberta Massambani
Teologia moral e ética / Vanessa Roberta Massambani
Ruthes. Indaial: UNIASSELVI, 2017.

138 p. : il.

ISBN 978-85-69910-77-0

1.Teologia.
I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.
Vanessa Roberta Massambani Ruthes

Doutoranda em Teologia pela Pontifícia


Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Possui
Mestrado em Teologia pela mesma Instituição.
Possui Especialização em Bioética pela PUCPR;
Especialização em Espiritualidade pela Faculdade
Vicentina e Especialização Princípios Educacionais
pela PUCPR. Possui Aperfeiçoamento em Ética de la
investigación con seres humanos pela UNESCO; e
Aperfeiçoamento em Ensino de Filosofia pela UFPR.
Licenciada em Filosofia e Pedagogia. Atua como
professora e gestora tanto na Iniciativa Privada,
quanto no Setor Público. É consultora e palestrante.
Possui livros publicados na área de Teologia
e Filosofia, como também vários artigos
em periódicos científicos e em jornais de
circulação.
Sumário

APRESENTAÇÃO........................................................................... 01

CAPÍTULO 1
Introdução à Ética Cristã........................................................... 09

CAPÍTULO 2
História da Moral Cristã............................................................. 53

CAPÍTULO 3
A Moral Revelada e a Moral Renovada..................................... 79

CAPÍTULO 4
A Lei Moral.................................................................................. 105
APRESENTAÇÃO
O presente livro “Teologia Moral e Ética”, tem por objetivo apresentar a
temática de Teologia Moral e Ética de forma clara, objetiva e didática, buscando
proporcionar uma reflexão mais ampla sobre os temas abordados. Nesta
perspectiva, a partir de grupos temáticos, diferentes assuntos foram abordados.

No primeiro capítulo, intitulado a “Introdução à Ética Cristã”, é realizada a


diferenciação conceitual entre ética e moral. A partir desta, analisa-se a relação
existente entre as dimensões do agir moral, correlacionando as dimensões deste
agir moral com os fundamentos bíblicos.

No segundo capítulo a “História da Moral Cristã”, analisamos de que forma


a construção teórica da moral cristã foi sendo realizada. Para tanto, buscamos
comparar as teorias morais com as diferentes mentalidades dos tempos históricos,
e por fim procuramos compreender o desenvolvimento das diferentes percepções
da moral cristã na história.

No terceiro capítulo “A Moral Revelada e a Moral Renovada”, diferenciamos


estes duas concepções de moral, demonstrando seus fundamentos e a forma
como foram engendradas. Também analisamos a estrutura do decálogo e como
este é influenciado pela moral revelada. Por fim buscamos identificar os principais
desafios da moral renovada na reflexão ética atual.

No quarto capítulo “A Lei Moral”, analisamos a forma como a lei natural é


utilizada para pressupor conceitos e doutrinas da moral cristã. Procuramos
compreender como esta lei influencia até os dias atuais a constituição da moral
cristã, e por fim apresentamos quais são as bases conceituais que fundamentam
a lei natural.

Como você pode perceber, caro(a) pós-graduando(a), as análises propostas


por esta obra pretendem auxilia-lo a ampliar seu conhecimento e reflexão sobre a
Moral e a Ética a partir de uma perspectiva teológica. Boa leitura!
C APÍTULO 1
Introdução à Ética Cristã

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

� Conhecer a diferença entre os conceitos de ética e moral.

� Identificar as diferentes dimensões do agir moral.

� Conhecer os fundamentos bíblicos da ética cristã.

� Analisar a relação existente entre as dimensões do agir moral.

� Correlacionar as dimensões do agir moral com os fundamentos bíblicos.


TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

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Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

Contextualização
Estudar a teologia moral e a ética é um esforço que precisamos empreender
para entendermos as atitudes e disposições morais no nosso cotidiano. Uma ação
moral implica consequências e, por conseguinte, responsabilidades.

Desta maneira, para estudar a ética e a moral cristã precisamos começar


por nos dedicar ao conhecimento das Escrituras e dos textos produzidos a partir
delas. Deixamos claro aqui que moral e religião não são sinônimos. Embora a
religião contenha uma conduta moral, elas se distinguem por vários motivos. O
principal é que não precisamos de religião para estruturar uma moral, mas não
existe nenhuma religião sem código moral ou ético.

Vamos caminhar juntos nesta discussão muito importante para nossas vidas
e nossa construção do conhecimento humano. Vamos descobrir um pouco mais
sobre ética e moral cristã durante este curso.

Conceito de Ética e Moral


A ética e a moral podem ser entendidas como muito próximas. Faremos uma
distinção neste texto que é eminentemente didático e serve para fins acadêmicos
e de organização de material.

No dia a dia utilizamos a palavra ética para indicar aquilo que consideraríamos
correto. Por exemplo, quando designamos uma pessoa como ética, estamos
concordando com suas atitudes e seus valores. Entretanto, a ética enquanto
conceito é muito mais ampla.

A ética é daquelas coisas que todo mundo sabe o que são,


mas que não são fáceis de explicar, quando alguém pergunta.
Tradicionalmente, ela é entendida como um estudo ou uma reflexão,
científica ou filosófica, e eventualmente até teológica, sobre os
costumes ou sobre as ações humanas. Mas também chamamos de
ética a própria vida, quando conforme aos costumes considerados
corretos. A ética pode ser o estudo das ações ou dos costumes,
e pode ser a própria realização de um tipo de comportamento.
Enquanto uma reflexão científica, que tipo de ciência seria a ética?

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TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Tratando de normas de comportamentos, deveria chamar-se uma


ciência normativa. Tratando de costumes, pareceria uma ciência
descritiva. Ou seria uma ciência de tipo mais especulativo, que
tratasse, por exemplo, da questão fundamental da liberdade?

Fonte: Valls (2005, p. 7).

A moral definiremos como um conjunto de regras que nos foram transmitidas


e que sob nenhuma hipótese mudam com um debate ou a vontade de um
indivíduo. O exemplo típico disto é o mandamento “Não matarás”, ele em nenhum
momento mudou em toda a história da teologia moral. Mesmo que sempre
apareçam pessoas que o transgridam de modo a produzir grande sofrimento ao
tirar a vida das outras pessoas.

A ética, por sua vez, pode ser debatida e discutida, entendida como o hábito
de um povo, ou de um grupo de pessoas, ela sempre pode ser deliberada e
renovada na medida da qualidade dos debates decorrentes. Embora pareça muito
diferente da moral, no cotidiano é muito difícil distinguir a prática moral da ética.
Por isso sugerimos que a moral seja pensada como algo a ser cumprido sem
necessária discussão, e a ética como algo a ser refletido.

As questões da ética nos aparecem a cada dia. [...] logo


poderíamos nos perguntar se, num país capitalista, o princípio do
lucro poderia ou deveria situar-se acima ou abaixo das leis da ética.
E em épocas mais difíceis, muitas vezes nos perguntamos se uma
lei injusta de um Estado autoritário precisa ou não ser obedecida. E
quando nós temos um “problema de consciência”, quando estamos
com um “sentimento de culpa”, coisa que ocorre a todos, não se torna
importante saber se este sentimento corresponde de fato a uma culpa
real? Cabe à reflexão ética perguntar se o homem pode realmente
ser culpado, ou se o que existe é apenas um sentimento de um mal-
estar sem fundamento. E as artes também levantam problemas para
a ética. Por exemplo: o poder de sedução, de encantamento, da
música, pode (ou deve) ser usado para condicionar o comportamento
das pessoas? E o mandamento evangélico do amor aos inimigos é
válido como uma obrigação ética para todos? E quando, lendo um
romance de Dostoievski, encontramos um personagem como Ivan,
de Os Irmãos Karamazov, afirmando que “se Deus não existe tudo
é permitido”, devemos então concluir que isso é uma proposta de

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Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

abolição da ética? Os problemas que acabamos de mencionar


implicam todos alguma relação com outras disciplinas teóricas e
práticas, mas são todos problemas específicos da ética.

Fonte: Valls (2005, p. 9).

Podemos dizer de outro modo o que entendemos acerca de moral e ética: a


moral é um modo de conduta, um mandamento, uma forma de se comportar. É
dela que seguimos certa quantidade de valores e regras que nos foram passadas
de outras gerações que nos precederam. No que tange aos costumes, Valls
(1994) defende que estes surgem a partir das práticas e relações existentes nas
diferentes sociedades e tempos históricos. O processo de teorização da moral,
fundamentada na reflexão ética, é posterior.

Quanto às grandes teorizações, há documentos


importantíssimos pelo menos desde os gregos antigos, há uns
dois mil e quinhentos anos. Mas é importante então lembrar que
as grandes teorias éticas gregas também traziam a marca do tipo
de organização social daquela sociedade. Tais reflexões não
deixavam de brotar de uma certa experiência de um povo, e, num
certo sentido, até de uma classe social. Tais enraizamentos sociais
não desvalorizam as reflexões mais aprofundadas, mas sem dúvida
ajudam a compreender a distância entre as doutrinas éticas escritas
pelos filósofos, de um lado, e os costumes reais do povo e das
diferentes classes, por outro lado, tanto no Egito quanto na Grécia,
na Índia, em Roma ou na Judeia. Em certos casos, só chegaremos
a descobrir qual a ética vigente numa ou noutra sociedade através
de documentos não escritos ou mesmo não filosóficos (pinturas,
esculturas, tragédias e comédias, formulações jurídicas, como as do
Direito Romano, a políticas, como as leis de Esparta ou Atenas, livros
de medicina, relatórios históricos de expedições guerreiras e até os
livros penitenciais dos bispos medievais).

Fonte: Valls (2005, p. 11-12).

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TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Aquilo que chamamos de moral é um conjunto de regras cuja mutabilidade


é muito difícil, sempre permanece e se perpetua por muito tempo. Mas podemos
entender um conjunto de regras morais de diferentes modos a partir de um
processo de concordância axiológica. Assim, se defendermos uma determinada
moral, somos capazes de nos portar de tal modo. Se queremos mudar regras
morais é porque ou pertencemos a outro grupo moral, ou estamos inseridos em
um processo de crise de valores que nos faz questionar as normas às quais
estamos submetidos.

Desta maneira, percebemos a complementariedade existente entre a ética e a


moral, pois a discussão e o debate sobre os valores, condutas e comportamentos
só são viáveis a partir de um referencial, de um conjunto de normas com as quais
se concorde ou discorde.

Axiológica: está relacionado com a axiologia, que indica o valor


que algo possui ou tem.

Uma moral ou Há diferentes formas de abordagem utilizadas pela moral e pela


ética legalista, ética. Podemos falar de uma moral ou ética legalista, personalista,
personalista, cientificista ou, ainda, uma moralizante. A primeira diz respeito ao
cientificista ou,
cumprimento estrito da lei e nada mais, em outras palavras: siga os
ainda, uma
moralizante. mandamentos e pronto. A segunda é a personalista, tudo gira em
torno da pessoa humana e nada escapa a esta dinâmica. Já a terceira,
chamada de cientificista, é aquela que se fundamenta em princípios da ciência,
querendo mensurar a lei moral e conferir a ela credibilidade da ciência. A quarta,
que denominamos de moralizante, quer proporcionar um exemplo a ser seguido,
um testemunho.

De acordo com Moser (1996), há uma estreita ligação entre moral e ética.
Segundo o pensador brasileiro, a moral e a ética possuem duas fontes: uma
que é inteiramente religiosa e a outra que é filosófica. Ambas têm o papel de
proporcionar a construção dos hábitos e da configuração de um sentido.

Segundo Moser (1996), a moral e a ética precisam uma da outra para


poderem melhorar mutuamente. Além disso, para o pensador, precisamos de
moral para orientar nossa conduta segundo os ancestrais, e de ética para debater
os problemas atuais e mais emergentes.

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Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

Não seria exagerado dizer que o esforço de teorização no


campo da ética se debate com o problema da variação dos costumes.
E os grandes pensadores éticos sempre buscaram formulações que
explicassem, a partir de alguns princípios mais universais, tanto a
igualdade do gênero humano no que há de mais fundamental,
quanto as próprias variações. Uma boa teoria ética deveria atender
à pretensão de universalidade, ainda que simultaneamente capaz
de explicar as variações de comportamento, características das
diferentes formações culturais e históricas. Dois nomes merecem ser
logo citados, como estrelas de primeira grandeza desse firmamento:
o grego antigo Sócrates (470-399 a.C.) e o alemão prussiano Kant
(1724-1804).

Fonte: Valls (2005, p. 16).

Mas ambas, ética e moral, precisam de outros indivíduos para


Mas ambas, ética e
poderem constituir um sentido e uma determinada condição de
moral, precisam de
organização social e de hábitos. Ressaltamos que existem dois outros indivíduos
grandes momentos de configuração da moral no Ocidente. O primeiro para poderem
é proveniente da cultura judaico-cristã, com o estabelecimento do constituir um sentido
decálogo e sua posterior reinterpretação feita por meio do anúncio e uma determinada
do Evangelho de Jesus Cristo. O segundo momento é caracterizado condição de
organização social e
pelas questões lógicas e a presença de uma relação racional com a
de hábitos.
elaboração ética das filosofias gregas e do pensamento dele resultante.

Como uma avaliação acerca dos costumes, para reprová-los ou


aceitá-los, a moral corresponde a algo de constitutivo da sociedade.
Efetivamente, não se pode imaginar a vida social sem a presença
de regras de conduta a que se devam cingir seus protagonistas.
Contudo, o processo segundo o qual essa esfera da cultura ganha
autonomia e vem a ser considerada sem referenciais religiosos, ou
de outra índole, é de muito difícil reconstituição.

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TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Presumivelmente, os códigos de que se tem notícia ou foram


preservados correspondem a fenômeno tardio. Antes de atingir esses
estágios avançados de sistematização, deve ter-se efetivado esforço
inimaginável na linha da fixação de normas que contribuíssem para
a coesão e a sobrevivência dos agrupamentos humanos. Além de
tardios, os códigos são precedidos de larga tradição oral. Assim, a
partir mesmo do texto fundamental para a cultura ocidental que é o
Deuteronômio de Moisés, sabe-se que só assumiu a forma que nos
foi transmitida no século V antes de Cristo, muitas centúrias após a
morte daquele a quem é atribuída sua autoria. No mesmo ciclo, são
conhecidas outras codificações, consagradoras de tradições culturais
diversas. Afora tais dificuldades, a moralidade revestiu-se de feição
perfeitamente diferenciada entre o Ocidente e o Oriente, registrando
as teorizações sobre a moral nos países do Oriente grandes avanços
em relação ao Ocidente, facultando elucidação mais precisa de
diversos problemas teóricos.

Esse tipo de moralidade aparece associado à religião e, do ponto


de vista em que nos colocamos, o momento inicial mais destacado é
representado pelo texto bíblico denominado Deuteronômio (palavra
que provém da tradução grega da Bíblia e significa “a segunda lei”).
O Deuteronômio, por sua vez, é parte do Pentateuco (coleção dos
cinco livros de Moisés). Na Bíblia, Moisés apresenta o Decálogo ou
Dez Mandamentos da Lei de Deus, que na cultura ocidental viria a
constituir-se no ponto de partida para a elaboração da moralidade,
uma das dimensões essenciais do homem, ao lado da religiosidade,
da política, do direito etc.

Na tradição cristã, o texto fundamental em que se retoma


a pregação de Moisés é o Sermão da Montanha, no primeiro dos
evangelhos que abrem o Novo Testamento: Evangelho segundo São
Mateus. Os evangelhos correspondem a uma espécie de compilação
do que se contava acerca de Cristo. A primeira seria devida ao
Apóstolo Mateus, em Jerusalém, que a teria escrito em arameu
(língua do povo que vivia em Aram, denominação da Síria antiga),
não se tendo conservado o seu texto. A versão que figura na Bíblia
é a tradução grega, efetivada por volta do ano 70 de nossa era. A
Bíblia contém outras três compilações de tais eventos, denominadas
Evangelhos segundo São Marcos, São Lucas e São João [...].

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Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

O segundo momento do processo de constituição da moral


ocidental é representado pela meditação grega. Enquanto na tradição
judaica, incorporada ao Velho Testamento, a moral é ensinada como
sendo constituída de preceitos sugeridos diretamente pela divindade,
o pensamento grego está voltado para a delimitação das esferas
da vida humana. Nessa busca é que iria esbarrar com o problema.
Os gregos chamariam ética à elaboração teórica que se dirige à
conceituação da moralidade. Na Grécia, a reflexão autônoma acerca
do comportamento moral do homem tem uma história muito rica,
se bem que os estudiosos do tema destaquem as contribuições de
Sócrates (470/399 a.C.) e Platão (438/348 a.C.). Contudo, Aristóteles
(384/322 a.C.) é o autêntico fundador da disciplina filosófica a que
se deu o nome de ética, tendo ademais formulado os principais de
seus problemas teóricos. A busca do conceito de ética, na meditação
grega, obedece a dois esquemas fundamentais: sua dissociação do
conceito de política; e identificação da ética seja com a sabedoria,
com a virtude ou com o prazer.

Fonte: Paim, Prota e Rodriguez (s.d., p. 3).

É na cultura humana que se organiza a moral e seus aspectos de


entendimento dos nossos costumes. É na sistematização cultural que se
desenvolve o problema da moral como costume, como hábito de um determinado
grupo de pessoas. Neste aspecto, a moral não é igual a cultura, é exercida dentro
de uma determinada cultura.

Segundo a perspectiva da tradição judaico-cristã que fundamenta a teologia,


somos seres feitos à imagem e semelhança de Deus e por isso somos descritos
no livro da criação como seres capazes de entender o que o Criador quer de nós.

Somos feitos à imagem e semelhança de Deus e por isso temos obrigações


morais com relação ao nosso criador. Quando o homem e Deus se unem em uma
aliança do povo eleito e começam uma relação de cunho moral e de fé é que
podemos notar a diversidade das atitudes possíveis em nossa existência.

Em muitos momentos o ser humano procurou se afastar da vontade do


Criador e tentou se colocar como um ser autônomo e independente. Contudo, em
todos estes momentos acabou por retornar aos dilemas morais de sempre.

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TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Em sua infinita bondade, Deus não nos abandonou, ele continuou a seguir os
nossos passos e confirmar a sua vontade de nos levar para junto dele. Por mais
paradoxal que possa parecer, toda vez que nos afastamos dele, Ele nos procurou
e apresentou sua proposta de salvação.

Nas discussões acerca da moral e da ética cristã estes dilemas sempre estão
presentes, sendo pauta de estudos da Teologia Moral, que é uma forma de leitura
do comportamento humano a partir da ótica da religiosidade.

Atividade de Estudos:

1) Como vimos, a Ética e a Moral são disciplinas cujas reflexões têm


como ponto de partida e objeto de estudo o agir humano. Nós
vivemos hoje em uma sociedade na qual as relações são cada dia
mais complexas e o agir humano, por consequência, também o é.
Assim, leia o fragmento do artigo: Teologia moral, bioética e cultura
da morte, de José Antônio Tafaretti, e a partir dele identifique um
dilema moral que vivenciamos na sociedade atual.

“Vivemos num contexto social cujos paradigmas estão se


transfor­mando rapidamente”. Schockenhoff (2010, p. 369) afirma
que atualmente “temos um universo policêntrico que é definido
pela falta de um princípio estrutural dominante e por uma
pluralidade de perspectivas que gozam de igual posição”. Essa
cultura policêntrica, que caracteriza o comporta­mento de pessoas
e instituições, tem gerado situações sociais, culturais e religiosas
que manifestam um estado de crise. Essa é uma crise econô­
mica global que tem, evidentemente, suas incidências sobre a
vida moral de pessoas ou de grupos. A crise atual é estrutural
e formal (OLIVEIRA, 1993). Estrutural porque afeta a vida das
instituições (família, escola, igreja, polícia etc.) e formal porque
tem colocado em xeque-mate o papel dos agentes morais como
indivíduos dotados de comportamento ético. Não se trata de uma
crise passageira, mas de um processo permanente, deixando
atônitos todos os envolvidos. É necessário estarmos atentos e
nos prepararmos para enfrentá-la.

Estamos todos indignados! O caráter cético ou niilista da


sociedade de massa não é difícil de ser compreendido. O mundo
dos shopping centers, das vitrines coloridas, a sensação de vazio

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Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

ao fazermos uma compra têm produzido uma cultura do nada.


Um nada que se expressa na indiferença e apatia de muitos
brasileiros (TRASFERETTI, 2007). Crescemos tecno­logicamente,
é verdade, mas estamos cada vez mais empobrecidos como
pessoas humanas. Mediocridade e banalidades reinam em
nossas rela­ções. O sorriso fácil estampado no rosto de milhões
de brasileiros beira a mentira ontológica que se consome entre
um hambúrguer e outro. Como recuperar a saúde pessoal?
Como curar a alma do sofrimento e da frag­mentação banal? Os
males dos homens contemporâneos estão em livros, revistas,
periódicos, jornais e televisão.

Para Bauman (1997), é possível observar que o mal-estar na


atual civilização está associado a um estilo de vida que conduz
as pessoas à ausência de si mesmas. De acordo com Vidal
(2003), a Teologia Moral é uma ciência prática que procura
ajudar as pessoas no discernimento no momento das escolhas
morais. Fazemos escolhas morais todos os dias de muitos
modos, mas como fazer boas escolhas morais vivendo num
país eminentemente corrupto? Do ponto de vista moral, estamos
viven­do momentos complexos no Brasil e no mundo. A violência
não tem fim! É comum encontrarmos pessoas que não sabem
discernir entre o ato moral “correto” e o “incorreto”. Justiça e
injustiça são valores que se perderam no tempo, criando confusão
na sociedade. Muitos vivem como folhas balança­das pelo vento,
não têm raízes. Pessoas assim são levadas pelo consumismo
e se perdem neste emaranhado de nomes e cores disformes,
pior ainda: na sociedade pós-moderna o poder social sobre as
pessoas aumentou. Somos vítimas de um mundo dominado pelo
marketing. O mercado com o seu de­sejo insaciável de lucro e
molda o comportamento de todos”

Fonte: Trasferetti (2013, p. 149-150).

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TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Os Sujeitos do agir Moral


O agir moral, por si, não pode ser compreendido senão em relação ao
sujeito que promove a ação. Segundo Pighin (2005), no passado era realizada
uma dissociação tendo em vista uma preocupação em definir o que era ou não
lícito ser realizado a partir de comportamentos isolados. Entretanto, como vimos
na seção anterior, a moral é um conjunto de costumes estabelecidos e como tal
fundamenta o agir humano, e este só pode ser entendido, pela reflexão ética, em
suas ocasiões particulares.

“A partir de uma “A partir de uma perspectiva teológica, existem basicamente dois


perspectiva
sujeitos do agir moral: o ser humano e a sociedade” (PIGHIN, 2005,
teológica, existem
basicamente dois p. 133). Criado por Deus à sua imagem e semelhança e chamado
sujeitos do agir à corresponsabilidade junto à criação, o ser humano é dotado de
moral: o ser humano características que o diferenciam dos demais seres criados e que
e a sociedade” propiciam a esse a ação moral.
(PIGHIN, 2005, p.
133).
A primeira característica é a autoconsciência, a capacidade de
compreender sua própria identidade, tendo em vista a percepção dos
seus processos psíquicos de autocompreensão.

A segunda característica é a racionalidade, a capacidade de pensar de


forma abstrata a realidade que o cerca. Esta abstração permite a ele a elaboração
de conceitos e sentidos que irão fundamentar a forma como este irá expressar
seus juízos de valor. Estes juízos são a base de toda a ação moral e de sua
posterior reflexão.

A terceira característica é a capacidade de autodeterminação a partir da


forma como ele conceitua e atribui sentido à realidade, o ser humano tem a
possibilidade de estabelecer escolhas e decidir entre várias alternativas possíveis.

Contudo, não podemos cair no reducionismo de afirmar que o ser humano,


enquanto sujeito moral, é definido somente a partir destas três características. Elas
são as fundamentais, mas questões relacionadas à afetividade, à sexualidade, às
relações de poder, dentre tantas outras, também são importantes no processo de
ação moral.

Outro ponto fundamental para definirmos o sujeito do agir moral é a questão


da heteronomia e da autonomia.

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Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

Por heteronomia compreendemos a dependência da vontade


em relação à faculdade do desejo. Por autonomia entendemos a
independência da vontade em relação a qualquer desejo ou objeto
de desejo.

Assim, a pessoa heterônoma é aquela que tem uma postura passiva


frente à moral. Ela se permite influenciar e dominar por seus impulsos internos,
circunstâncias, pela sorte, pelo medo, pela vontade alheia, sem exercer, por
meio de sua consciência, suas escolhas de forma livre. Já a pessoa autônoma é
aquela que tem uma postura ativa, que se fundamenta em uma forma equilibrada
de controle das pulsões internas e no posicionamento, a partir dos seus valores,
frente à realidade que o cerca, de forma responsável, livre e independente.

No que diz respeito à concepção de sociedade como um sujeito do agir


moral, é importante salientarmos que tal visão não tem como objetivo diminuir
a centralidade da pessoa no desenvolvimento da ação moral. Mas reconhecer a
existência de “sujeitos morais que transcendem a identidade individual e que se
qualificam como sociais, econômicos, políticos, educacionais”, e que a partir de
uma determinada ideologia têm atividades e finalidades imbuídas de senso moral
(PIGHIN, 2005, p. 140).

O moralista Bruno Fábio Pighin nos alerta que a compreensão


da sociedade como sujeito do agir moral é recente. E esta deve-se
às seguintes circunstâncias: “O sujeito do agir moral, para muitos
séculos de história do cristianismo, foi considerado apenas a pessoa
individual enquanto responsável pelos seus atos. Isso aconteceu
em razão de uma visão individualista. No século XX, em particular,
amadureceu, ao invés, uma visão mais atenta à sociedade,
graças também às contribuições de diversas disciplinas, como a
sociologia, a estatística, as ciências políticas e econômicas. Todavia,
alguns movimentos ideológicos, como o comunismo marxista e a
contestação global que explodiu em 1968, contribuíram cada qual ao
seu modo para chamar a atenção sobre a sociedade como artífice de
moralidade”. (PIGHIN, 2005, p. 140).

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TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Assim, quando nos referimos à sociedade, estamos designando agregações


de pessoas que têm a possibilidade “de colocar em ato decisões e operações
que tendem a alcançar objetivos” em torno de valores e finalidades em comum
(PIGHIN, 2005, p. 141). Alguns exemplos que podemos dar são: associações
de moradores, empresas, partidos políticos, organizações não governamentais,
comunidades religiosas, entre outras.

Como vimos, os dois sujeitos da ação moral, o ser humano e a


sociedade (agregação de pessoas), possuem características de ação
diferenciadas, mas, ao mesmo tempo, níveis de responsabilidade
semelhantes perante suas práticas.

Em especial, quando nos referimos à atuação moral de diferentes


organismos da sociedade, encontramos uma grande e vasta seara
de exemplos de como, de forma autônoma e a partir de valores
específicos, pode-se dedicar à promoção ou defesa de uma causa.

Dentre estes grupos está a Organização não governamental


Anistia Internacional, que desde 1961 realiza campanhas e ações
para o reconhecimento, a promoção e a defesa, em nível nacional e
internacional, dos direitos humanos.

Assim, buscando ampliar sua compreensão sobre o papel da


sociedade no processo do agir moral, acesse o site: <https://anistia.
org.br> e procure nos documentos publicados o Informe Anual
intitulado: O estado dos direitos humanos no mundo. Leia a seção
que aborda os direitos humanos no Brasil.

Se você quiser conhecer outras organizações civis que


desenvolvem um agir moral sistematizado, damos como sugestão os
seguintes sites:

• Cruz Vermelha Internacional: <https://www.icrc.org/pt>.


• Médicos sem fronteiras: <http://www.msf.org.br/>.
• Cáritas Internacional: <http://www.caritas.org/>.

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Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

Na perceptiva teológica, o agir moral tem sua origem na narração da criação


do ser humano à imagem e semelhança de Deus. Esta se fundamenta em seis
características básicas:

1. A racionalidade, isto é, a capacidade e a obrigação que


o humano tem de conhecer e de compreender o mundo
criado.
2. A liberdade, que implica a capacidade e o dever de decidir
e a responsabilidade que a pessoa tem pelas decisões
tomadas (Gn 2).
3. Uma posição de comando, porém de modo algum absoluto,
e sim sob o domínio de Deus.
4. A capacidade de agir em conformidade com Aquele do qual
a pessoa humana é imagem, ou seja, de imitar Deus.
5. A dignidade de ser uma pessoa, um ser ‘relacional’, capaz
de ter relações pessoais com Deus e com os outros seres
humanos (Gn 2).
6. A busca da santidade da vida humana (PONTIFÍCIA
COMISSÃO BÍBLICA, 2008, p. 8).

Observamos que estas características da existência humana configuram o


seu modo moral de ver e se relacionar com este mundo à sua volta. Contudo,
cada uma destas características citadas traz uma série de implicações morais.
Dentre estas, podemos citar:

1) O conhecimento e o discernimento fazem parte do dom


de Deus. O ser humano é capaz e, como criatura, está obrigado a
indagar o projeto de Deus e a procurar discernir a vontade divina
para poder agir com justiça.

2) Por causa da liberdade que lhe é dada, o ser humano é chamado


ao discernimento moral, à escolha, à decisão. Em Gn 3,22, depois do
pecado de Adão e a sua sanção, Deus diz: “Eis que o homem se tornou
como um de nós, capaz de conhecer o bem e o mal”. O texto é difícil
de explicar. Por um lado, tudo indica que a afirmação tem um sentido
irônico, porque mediante as próprias forças, apesar da proibição, o
homem procurou apoderar-se do fruto e não esperou que Deus lhe
desse no tempo oportuno. De outro lado, o significado da árvore do
conhecimento total – assim se deve entender a expressão bíblica
‘conhecer o bem e o mal’ – não se limita a uma perspectiva moral, mas
significa também o conhecimento dos resultados bons e maus, isto é,
do futuro e do destino: isso compreende o domínio do tempo, que é
competência exclusiva de Deus. Quanto à liberdade moral dada ao
ser humano, ela não se reduz a uma simples autorregulamentação e
autodeterminação, uma vez que o ponto de referência não é o eu nem
o tu, mas o próprio Deus.
23
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

3) A posição de comando confiada ao ser humano implica


responsabilidade, empenho de gestão e administração. Também ao
homem compete a tarefa de formar de modo “criativo” o mundo feito
por Deus. Ele deve aceitar essa responsabilidade, também porque
a criação não deve ser conservada num estado determinado, mas
está desenvolvendo-se, e o homem, como ser que une em si mesmo
natureza e cultura, encontra-se junto a toda a criação.

4) Essa responsabilidade deve ser exercitada de um modo sábio


e benévolo, imitando o domínio do próprio Deus sobre a sua criação.
Os homens podem conquistar a natureza e explorar as amplidões do
espaço. Os extraordinários progressos científicos e tecnológicos do
nosso tempo podem ser considerados como realizações da tarefa
dada pelo Criador à humanidade, a qual, entretanto, deve respeitar
os limites fixados pelo Criador. Caso contrário, a Terra torna-se
lugar de exploração indevida, que pode destruir o delicado equilíbrio
e a harmonia da natureza. Seria certamente ingênuo pensar que
possamos encontrar a solução da atual crise ecológica no Salmo
8; ele, porém, entendido no contexto de toda a teologia da criação
em Israel, questiona praxes hodiernas e exige um novo sentido de
responsabilidade pela Terra. Deus, a humanidade e o mundo criado
estão conexos entre si e por isso também teologia, antropologia e
ecologia. Sem o reconhecimento do direito de Deus em relação a nós
e em relação ao mundo, o domínio degenera facilmente em dominação
desenfreada e em exploração que conduzem ao desastre ecológico.

5) A dignidade que as pessoas possuem como seres relacionais


convida-as e as obriga a procurarem e viverem um relacionamento com
Deus a quem devem tudo; fundamental para o relacionamento com
Deus é a gratidão (cf. o parágrafo seguinte, n. 12, baseado nos salmos).
Isso também implica entre as pessoas uma dinâmica das relações de
responsabilidade comum, de respeito ao outro e uma contínua busca de
equilíbrio, não somente entre os sexos, mas também entre a pessoa e a
comunidade (entre valores individuais e sociais).

6) A santidade da vida humana requer um respeito e tutela


totalmente abrangentes, e veta o derramamento do sangue humano,
“porque à imagem de Deus ele fez o ser humano” (Gn 9,6).

Fonte: Pontifícia Comissão Bíblica (2008, p. 11).

24
Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

Liberdade e a Responsabilidade no
Agir Moral
A questão da liberdade é um tema central para a reflexão ética, tendo em
vista que ela é que pressupõe a possibilidade da ação moral. O ser humano só
pode ser considerado como um sujeito do agir moral se suas atitudes partirem de
uma escolha livre.

Neste ponto poderíamos questionar: o que é a liberdade? Contudo, tal questão


não possui uma resposta única e nem simples. A liberdade é um conceito complexo
que diversos pensadores, de diferentes tempos históricos, buscaram compreender.
A partir de suas reflexões, podemos esquematicamente afirmar que existem
basicamente três formas de entender a liberdade em relação ao agir moral:

1) Como autocausalidade, ou autodeterminação, afirmam a possibilidade da


existência da liberdade por meio da escolha realizada de forma autônoma.
2) Há aqueles que defendem o determinismo, não acreditam na
possibilidade de um agir moral livre, tendo em vista os condicionamentos
presentes na realidade.
3) Por fim, alguns afirmam que a vivência da liberdade só é possível por meio
de um processo de complementariedade entre as duas visões anteriores.

Os condicionamentos, ou seja, aquilo que impõe limites à


liberdade, podem ser classificados de duas formas, como estruturais
e acidentais. Os condicionamentos estruturais são aqueles
relacionados à estrutura biológica da pessoa (incluindo processos
bioquímicos e psíquicos) e às suas relações socioculturais. Os
condicionamentos acidentais, por sua vez, podem ser de caráter
transitório ou permanente, e estão associados a situações
particulares de cada pessoa, como doenças e acesso à informação.

Fonte: Pighin (2005, p. 147).

25
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

A concepção de liberdade entendida como autocausalidade ou


autodeterminação é “incompatível com qualquer determinação externa ao sujeito”
(VAZQUEZ, 2005, p. 120). Fundamenta-se na noção de que a vontade humana
tem a plena possibilidade de determinar a si mesma, sem ser influenciada por
condicionantes externos. O sujeito dá a si mesmo os significados e os motivos nos
quais seu agir moral se fundamenta. Isto não significa a negação dos condicionantes
externos, mas a afirmação da autonomia da vontade frente a estes.

Contemporaneamente, ao defender esta visão de liberdade, Jean Paul Sartre


enfatiza as escolhas que o ser humano faz perante a realidade devem estar
pautadas na vontade humana. Lutar ou resignar, continuar ou parar são atitudes
movidas interiormente e não determinadas por circunstâncias apresentadas pelo
mundo que nos cerca. Por este motivo é que Sartre afirma que “o homem está
condenado a ser livre”, pois “uma vez que foi lançado no mundo é responsável por
tudo o que faz” (SARTRE, 1973, p. 12). Leia o texto no qual Sartre fundamenta
esta compreensão da liberdade:

“Dostoievski escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria


permitido”. Eis o ponto de partida do existencialismo. De fato, tudo
é permitido se Deus não existe, e, por conseguinte, o homem está
desamparado porque não encontra nele próprio nem fora dele nada
a que se agarrar. Para começar, não encontra desculpas. Com
efeito, se a existência precede a essência, nada poderá jamais ser
explicado por referência a uma natureza humana dada e definitiva;
ou seja, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é
liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não encontramos, já
prontos, valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta.
Assim, não teremos nem atrás de nós, nem na nossa frente, no
reino luminoso dos valores, nenhuma justificativa e nenhuma
desculpa. Estamos sós, sem desculpas. É o que posso expressar
dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado,
porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma
vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz. O
existencialismo não acredita no poder da paixão. Ele jamais admitirá
que uma bela paixão é uma corrente devastadora que conduz o
homem, fatalmente, a determinados atos, e que, consequentemente,
é uma desculpa. Ele considera que o homem é responsável por
sua paixão. O existencialista não pensará nunca, também, que o

26
Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

homem pode conseguir o auxílio de um sinal qualquer que o oriente


no mundo, pois considera que é o próprio homem quem decifra o
sinal como bem entende. Pensa, portanto, que o homem, sem apoio
e sem ajuda, está condenado a inventar o homem a cada instante”.

A liberdade, nesta
Aqueles que defendem o determinismo entendem que tudo na
perspectiva, não
realidade concreta está submetido a uma ordem natural que dá a si é entendida como
mesma suas leis, regras e normas. Assim, sendo o ser humano parte uma livre escolha
da natureza, ele estaria submetido a estas. Neste ponto, poderíamos da pessoa, mas é a
afirmar que para o determinismo não há a possibilidade de liberdade necessidade de agir
na ação, tendo em vista que os condicionamentos externos são um em concordância
com sua natureza e
impeditivo para o exercício dela.
o ordenamento que
possui.
Mas é necessário compreender que para estes pensadores esta
ordem natural não é apenas externa, mas também interna. A pessoa, como parte
integrante da realidade concreta do mundo, também está submetida a esta ordem
e ela é que interiormente rege as ações humanas. A liberdade, nesta perspectiva,
não é entendida como uma livre escolha da pessoa, mas é a necessidade de agir
em concordância com sua natureza e o ordenamento que possui.

Por fim, há ainda os que defendem a vivência da liberdade como um processo


de complementariedade entre as duas visões anteriormente apresentadas. Para
ser livre não é uma concepção abstrata, que se pressupõe apenas no trabalho
da consciência que busca doar sentido à realidade e a partir deste sentido
realizar suas escolhas. Mas, também a liberdade não está relacionada apenas à
factibilidade do mundo que nos impõe condicionamentos.

Merleau-Ponty nos alerta que essa dualidade entre a concepção abstrata e


a factível da liberdade produz uma cisão na própria compreensão do ser humano.
Para ele, a liberdade reside exatamente a partir da complementação entre
consciência e natureza, entre mundo interior e exterior: “A verdade não habita
apenas no homem interior, ou antes, não existe homem interior, o homem está no
mundo que ele se conhece” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 6).

27
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Atividade de Estudos:

1) Como vimos, a liberdade é a condição essencial para o agir


moral. Mas, por si, a liberdade é uma realidade complexa.
O texto a seguir, do pensador Merleau-Ponty, reflete sobre a
complexidade da liberdade frente à moral e ao proceder humano.
Assim, após a leitura e reflexão do texto, explique o paradoxo
existente entre a liberdade e os determinismos da vida humana.

“O que é então a liberdade? Nascer é ao mesmo tempo nascer


do mundo e nascer no mundo. O mundo está já constituído,
mas também não está nunca completamente constituído. Sob
o primeiro aspecto, somos solicitados, sob o segundo somos
abertos a uma infinidade de possíveis. Mas esta análise ainda
é abstrata, pois existimos sob os dois aspectos ao mesmo
tempo. Portanto, nunca há determinismo e nunca há escolha
absoluta, nunca sou coisa e nunca sou consciência nua. Em
particular, mesmo nossas iniciativas, mesmo as situações que
escolhemos, uma vez assumidas, nos conduzem como que por
benevolência. A generalidade do “papel” e da situação vem em
auxílio da decisão e, nesta troca entre a situação e aquele que
a assume, é impossível delimitar a “parte da situação” e a “parte
da liberdade”. Torturam um homem para fazê-lo falar. Se ele se
recusa a dar os nomes e os endereços que querem arrancar-
lhe, não é por uma decisão solitária e sem apoios; ele ainda se
sente com seus camaradas e, engajado ainda na luta comum,
está como que incapaz de falar; ou então, há meses ou anos,
ele afrontou esta provação em pensamento e apostou toda a
sua vida nela; ou enfim, ultrapassando-a, ele quer provar aquilo
que sempre pensou e disse da liberdade. Esses motivos não
anulam a liberdade, mas pelo menos fazem com que ela não
esteja sem escoras no ser. Finalmente, não é uma consciência
nua que resiste à dor, mas o prisioneiro com seus camaradas ou
com aqueles que ele ama e sob cujo olhar ele vive. [...]. E sem
dúvida é o indivíduo, em sua prisão, quem revivifica a cada dia
esses fantasmas, eles lhe restituem a força que ele lhes deu,
mas, reciprocamente, se ele se envolveu nesta ação, se ele ligou
a estes camaradas ou aderiu a esta moral, é porque a situação
histórica, os camaradas, o mundo ao seu redor, parecem esperar
dele aquela conduta. Assim, poderíamos continuar sem fim a

28
Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

análise. Escolhemos nosso mundo e o mundo nos escolhe. A


escolha que fazemos de nossa vida sempre tem lugar sobre a
base de um certo dado. Minha liberdade pode desviar minha vida
de sua direção espontânea, mas por uma série de deslizamentos,
primeiramente esposando-a, e não por alguma criação absoluta.
Todas as explicações de minha conduta por meu passado, meu
temperamento, meu ambiente são, portanto, verdadeiras, sob
a condição de que os consideremos não como contribuições
separáveis, mas como momentos de meu ser total do qual é-me
permitido explicar o sentido em diferentes direções, sem que
alguma vez se possa dizer se sou eu quem lhes dá seu sentido
ou se o recebo deles. Sou uma estrutura psicológica e histórica.
Com a existência recebi uma maneira de existir, um estilo.
Todos os meus pensamentos e minhas ações estão em relação
com esta estrutura, e mesmo o pensamento de um filósofo não
é senão uma maneira de explicitar seu poder sobre o mundo,
aquilo que ele é. E, todavia, sou livre, não a despeito ou aquém
dessas motivações, mas por seu meio, pois esta vida significante,
esta certa significação da natureza e da história que sou eu, não
limita meu acesso ao mundo, ao contrário, ela é meu meio de
comunicar-me com ele. É sendo sem restrições nem reservas
aquilo que sou presentemente que tenho oportunidade de
progredir, é vivendo meu tempo que posso compreender os outros
tempos, é me entranhando no presente e no mundo, assumindo
resolutamente aquilo que sou por acaso, querendo aquilo que
quero, fazendo aquilo que faço que posso ir além. Só posso deixar
a liberdade escapar se procuro ultrapassar minha situação natural
e social recusando-me a em primeiro lugar assumi-la, em vez de,
através dela, encontrar o mundo natural e humano”.

Fonte: Merleau-Ponty (1999, p. 608-611).

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TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

No que diz respeito à noção cristã de liberdade, é preciso esclarecer que ela
não se fundamenta em nenhuma das visões aqui apresentadas. Ela é entendida a
partir de um ponto de vista soteriológico, ou seja, por meio da salvação oferecida por
Deus aos seres humanos na pessoa de Cristo. É Nele que a pessoa encontra seus
sentidos e valores e é chamada a viver de forma responsável em busca da santidade.

Quem desenvolveu uma vasta apreciação sobre o tema da liberdade foi São
Paulo, em suas epístolas. Para ele, a existência cristã nada mais é que uma vida
de profunda experiência da liberdade. O cristão liberto por Jesus, não apenas das
amarras do pecado e da morte, mas também da escravidão da lei, é chamado a
viver uma vida em Cristo, que tem como pilares a busca da santidade e o serviço
à justiça (Rm 6, 18-23).

Neste sentido, a liberdade não pode ser confundida com autodeterminação


a partir da qual o homem estabelece o que é lícito ou não fazer. A liberdade não
pode se tornar, segundo São Paulo, argumento para viver segundo a carne e
segundo os vícios (Rm 6, 15).

“Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém. Tudo me é


permitido, mas não me deixarei escravizar por coisa alguma. Os
alimentos são para o ventre e o ventre para os alimentos, e Deus
destruirá aqueles e este. Mas o corpo não é para a fornicação e, sim,
para o Senhor, e o Senhor é para o corpo” (1 Cor. 6, 12-13).

Esta noção, própria da teologia paulina, influenciou demasiadamente Santo


Agostinho. Este, a partir das noções de liberdade e livre-arbítrio, salienta que o ser
humano tem a possibilidade de realizar suas escolhas. Estas o levarão a realizar
atitudes boas (segundo a vontade de Deus) ou más (que divergem da vontade
de Deus). Contudo, a pessoa somente será livre à medida que suas escolhas
forem afastando ela do mal, proveniente do pecado, e se aproximando de Deus
por meio da vivência da graça (TOMASEVICIUS, 2006, p. 1084).

30
Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

O livre-arbítrio deve ser entendido como a possibilidade


que o ser humano tem de livre escolha (entre o bem e o mal). Já
a liberdade é aquela condição de escolha na qual o ser humano
vivencia a presença e o dom da graça de Deus. A graça deve ser
entendida como fruto da misericórdia de Deus e que possibilita a
força necessária para a vivência do bem.

Assim, na concepção cristã a liberdade não é vista como um fim em si


mesma e nem tendo um valor absoluto, mas sua vivência tem um duplo objetivo: a
promoção da caridade (1 Cor. 9, 19) e da justiça (Rm 6, 18) a partir dos princípios
do Evangelho.

Consciência Moral
Nas diferentes circunstâncias que a vida apresenta somos impelidos a
fazer escolhas. Estas devem estar fundamentadas em um agir autônomo, livre e
responsável. Para que isto seja possível, fazemos uso da consciência moral.

Mas como podemos definir a consciência moral? Para respondermos tal


questão, é necessário compreender a estrutura racional do agir humano.

Habermas (1989) afirma que o homem pode fazer três usos


diferentes da razão prática: o uso pragmático, o uso ético e o uso Uso pragmático, o
uso ético e o uso
moral (HABERMAS, 1989, p. 5), todavia o que determina a ação,
moral.
em cada um dos três casos, é a motivação mais fundamental ou o
interesse que impulsiona.

Razão prática, como a capacidade humana de pensar e


raciocinar tendo em vista que está voltada para o agir.

31
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

O primeiro tipo de uso define o agir orientado através de fins, do resultado que
se deseja obter. Esse tem como princípio a eficácia e procura sanar a necessidade
de um indivíduo, ou um grupo pequeno inserido em uma coletividade.

O uso ético da razão prática é aquele que busca o que é considerado bom
para toda uma sociedade, as ações visam ao bem-estar de todos. Contudo, tal
uso não estabelece uma ruptura com a visão individualista e egocêntrica, pois
“a vida boa para mim toca também às formas de vida que nos são comuns”
(HABERMAS, 1989, p. 9). Assim, a vida boa é definida pelo grupo social ao qual
o indivíduo pertence, trata-se de um ideal coletivo ancorado na tradição, ao qual é
necessário integrar-se.

O terceiro tipo de uso é o moral, que está em contraposição aos dois


anteriores, pois é movido pela pergunta: será que determinada realidade
é moralmente certa? Rompe-se com as tradições e com os valores e surge a
pergunta se determinada ação é justa. É um tipo de atitude que busca horizontes
de expectativas diferentes, pois analisa a situação posta procurando discernir o
que é justo e benéfico.

Assim, podemos afirmar que a consciência moral é a estrutura a partir da


qual as relações humanas se estabelecem. Ela está relacionada:

• A um processo avaliativo das atitudes humanas;


• À tomada de decisão frente às situações que a vida nos apresenta, e;
• À responsabilidade sobre as consequências de nossas ações.

Entretanto, esta estrutura própria da consciência moral não é algo inato, mas
vai sendo desenvolvido pelo ser humano. Segundo Pighin (2005), este processo
de elaboração ocorre a partir de três dinamismos psicossociais.

O primeiro deles é a identificação, por meio da qual a pessoa se reconhece


como um ser capaz de fazer avaliações, julgamentos e escolhas frente às
diferentes conjunturas que a vida apresenta.

Por meio deste dinamismo é que o sujeito pode estabelecer um processo de


rejeição das avaliações e ações que não estejam relacionadas a si mesmo, a suas
escolhas autônomas, mas que tenham sido tomadas ou impostas por outrem.

Estas duas dinâmicas proporcionam a idealização, ou seja, a capacidade de


distinguir entre o seu estado de vida atual e o que é chamado a realizar por meio
de suas escolhas pessoais.

32
Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

Um dos pensadores que ao estudar o processo de desenvolvimento cognitivo


da criança nos ajuda a compreender também o de consciência moral é Piaget
(1896-1980). Segundo ele, a criança possui quatro fases de desenvolvimento:
o sensório-motor (de 0 a 2 anos de idade), o pré-operatório (de 2 a 7 anos de
idade), de operações concretas (de 7 a 12 anos) e o de operações formais (a
partir dos 12 anos). Em cada um destes estágios encontramos a presença dos
três dinamismos sociais.

Assim, a partir da proposta de Piaget (2012), podemos afirmar que a con-


sciência moral é desenvolvida por meio de quatro fases:

1) Anomia: neste período as escolhas morais estão diretamente ligadas ao


comportamento pulsional do que lhe dá prazer ou causa desconforto.
2) Heteronomia: fase em que acontece o acolhimento paulatino das normas
morais, sem ainda um processo de questionamento do mesmo. A pessoa
sabe que a transgressão da norma moral irá acarretar uma punição e
que a conformidade de sua vida com a mesma pode lhe proporcionar
benefícios.
3) Socionomia: o comportamento da pessoa se caracteriza a partir
da pertença dela a um determinado grupo social, representado
principalmente pela família. O estabelecimento de normas específicas
auxilia na percepção de que a moral não está relacionada apenas às
ações individuais, mas também coletivas.
4) Autonomia: é o período em que as convicções morais que foram sendo
desenvolvidas são assumidas pelo indivíduo, tornando-se próprias. Suas
ações e escolhas estarão fundamentadas em suas próprias convicções e
vividas de maneira coerente.

É importante salientar que este esquema proposto por Piaget


(2012) se refere a um processo ideal de formação da consciência
moral. Muitas vezes, as pessoas, mesmo adultas, ainda permanecem
em estado de heteronomia moral, ou seja, suas ações e escolhas
expressam apenas a mera obediência às normas morais.

33
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

É importante salientar que a partir da vivência autônoma da consciência


moral, a pessoa tem a possibilidade de identificar os conflitos existentes entre
as circunstâncias que se apresentam e as normas morais. É a partir do exercício
autônomo que a pessoa identifica aquilo que denominamos dilemas morais.

Estes podem ser entendidos, segundo Moser (1996), como situações


particulares que, em busca de evitar um mal ou solucionar um impasse, acabamos
flexibilizando ou transgredindo uma norma moral.

Um exemplo clássico de dilema moral foi o famoso caso dos


sobreviventes de um acidente aéreo em 1972 nos Andes. Estes,
para sobreviverem às condições inóspitas da região onde estavam,
tiveram que optar por comer a carne humana de seus amigos
mortos que estavam enterrados na neve. Com a transgressão moral
da antropofagia, eles conseguiram que um número de pessoas
sobrevivesse até encontrar ajuda 69 dias após o acidente.

Caso você queira conhecer detalhes do exemplo dado,


acesse o site: <http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/
aviao-caiu-nos-andes-sobreviventes-precisaram-comer-os-mortos-
em-1972-11124788>.

Os dilemas morais não proporcionam a relativização da moral, mas


demonstram a cada um de nós a importância do processo de discernimento frente
às circunstâncias. Aristóteles afirmava que para isto era necessário ao homem o
desenvolvimento da virtude.

A virtude era definida em termos de uma escolha prudente em uma situação


concreta – na qual sempre permanecia o meio entre dois extremos, o equilíbrio
entre os contrários (TARNAS, 2000, p. 83). A esta sabedoria prática Aristóteles
dava o nome de phrônesis.

34
Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

Phrônesis: “disposição prática acompanhada de uma razão


veraz, em torno do que é bem e mal para o homem” (ARISTÓTELES,
1992, VI, 1140 b). A phrônesis ajudaria o ser humano para que ele
direcione seu agir para os verdadeiros fins, no sentido de apontar os
meios mais saudáveis para alcançá-los.

Assim, por meio da phrônesis, ou seja, de uma capacidade de integrar


o conhecimento com a vivência cotidiana, a pessoa se torna capaz de refletir
sobre o dia a dia, e encontrar o justo meio nas ações. Sendo este o processo
de reflexão da consciência moral: de compreender seus valores e começar a
detectar o que seria justo.

Atividade de Estudos:

1) A partir do que refletimos sobre a formação da consciência


moral e ainda sobre sua importância frente aos dilemas morais,
leia o fragmento do texto: O retorno do estágio 6, de Lawrence
Kohlberg, e identifique o motivo pelo qual o autor apresenta o
diálogo como fundamental para a resolução dos dilemas morais.

O dilema apresenta uma situação na qual há três pessoas


em um bote e com quase nenhuma chance de sobrevivência
a não ser que uma dessas pessoas saia dele. As três pessoas
são o capitão, que é quem sabe navegar, um homem forte
e jovem e um velho fraco com o ombro quebrado e que não
pode remar eficientemente. Nenhum deles quer saltar do bote
espontaneamente. Parece haver três escolhas neste dilema. A
primeira é uma solução utilitária extrema, baseada na chance
de salvar mais vidas. Essa solução exige que o capitão mande
o velho saltar do bote. A segunda solução, que pode ser
considerada mais justa, seria tirar a sorte para ver quem deve
pular. A terceira solução é aquela na qual ninguém pula do bote,
caso em que há uma grande probabilidade de todos virem a
morrer. Em resposta a esse dilema, o juiz D. diz: Penso que eles
realmente deveriam ter tirado a sorte. Esse método, pelo menos,
seria consistente com minha convicção de igualdade entre os

35
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

seres humanos. Nenhuma vida é melhor que a outra e não há


razão no mundo para dois tirarem a vida de outro. E o motivo é
exatamente o mesmo a que venho me referindo, isto é, o respeito
pela dignidade da vida humana. [...]

O juiz D. resolve o dilema do bote salva-vidas com o


princípio de respeito pelas pessoas manifestado na opção de
tirar a sorte. No entanto, ele não interpreta esse princípio como
a obrigatoriedade de obter a concordância por meio do diálogo.
[...]. Ao contrário, a concepção de Joana de respeito pelas
pessoas a leva a procurar o acordo por meio do diálogo a ponto
de manter o diálogo, na situação do bote salva-vidas, embora,
nessas condições, fique muito ameaçada a probabilidade de
sobrevivência de todos. [...] – como ela afirma – acho que nessa
situação é difícil acreditar que ninguém tomaria a decisão de
pular do barco, mas se não o fizerem, todos irão morrer. Quero
dizer que os três estão na situação juntos, devendo haver uma
decisão cooperativa ou nada.

Enquanto afirmamos que a disposição de entrar em diálogo


é uma parte necessária do ponto de vista moral, também
questionamos se o compromisso de Joana com a busca de
acordo por meio do diálogo até que todos morram seria a solução
moralmente mais correta ao dilema. [...] Frankena relaciona
claramente a necessidade de diálogo com o ponto de vista
moral. Entretanto, também está consciente do fato de que o
diálogo pode ser interrompido. Neste caso, Frankena afirma que
o pensador moral maduro não exige um consenso real, mas um
consenso ideal. Como ele diz: ‘Aqui entra a autonomia do agente
moral – ele deve adotar o ponto de vista moral exigindo um
consenso eventual com outros que fazem o mesmo, porém ele
próprio deve julgar (mesma que se engane)’.

Fonte: Kohlberg (2002, p. 108-112).

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Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

Os Fundamentos Bíblicos da Moral


Cristã
Ao abordarmos a questão da moral nas Sagradas Escrituras, é importante
salientar alguns aspectos basilares.

A moral deve ser entendida não apenas como um conjunto de normas


e regras, mas a partir do princípio da revelação de Deus ao ser humano, pois,
biblicamente, os dois princípios fundantes do discurso sobre a moral são: a criação
e a aliança. A primeira como aquela que propicia o dom da vida, e a segunda que
oferece uma relação íntima do ser humano com Deus.

“O Deus da Bíblia não revela antes de tudo um código, mas “a si


mesmo” no seu mistério e “o mistério da sua vontade” (PONTIFÍCIA
COMISSÃO BÍBLICA, 2008, p. 4).

Nesta perspectiva é que podemos falar de uma moral revelada, pois a lei
moral presente nas Escrituras é parte deste processo de revelação e se constitui
um caminho por meio do qual a criatura se aproxima do Criador.

Nesta perspectiva, ao pensarmos o conteúdo moral apresentado na Sagrada


Escritura, temos que ter o cuidado necessário para não o segmentar. Os dois
testamentos narram a história da revelação.

No coração da Primeira Aliança, o “caminho” designa ao mesmo


tempo um percurso de êxodo (o evento libertador primordial) e um
conteúdo didático, a  Torá. No coração da Nova Aliança, Jesus diz
de si mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6).
Condensa, portanto, na sua pessoa e na sua missão, toda a dinâmica
libertadora de Deus e também, em certo sentido, toda a moral,
concebida teologicamente como dom de Deus, isto é, caminho para
chegar à vida eterna, à intimidade total com Ele.

Fonte: Pontifícia Comissão Bíblica (2008, p. 5).

37
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Vamos nos A partir destes pressupostos, vamos nos aproximar das


aproximar das Escrituras buscando compreender a moral como um caminho para o
Escrituras buscando relacionamento com Deus. Pois, “relação entre dom divino e resposta
compreender a
humana, entre ação antecedente de Deus e tarefa do homem, é
moral como um
caminho para o determinante para a Bíblia e para a moral nela revelada” (PONTIFÍCIA
relacionamento com COMISSÃO BÍBLICA, 2008, p. 7).
Deus.
Assim, ao falarmos da moral no Antigo Testamento, temos que ter
em mente, em linhas gerais, que o homem justo é aquele que tem e cultiva uma
relação de Aliança e que caminha junto a Deus. O homem injusto e pecador, por
sua vez, é considerado como aquele que rompe esta Aliança buscando, a partir
da livre escolha, fundamentar suas ações.

Isto é verificável a partir da descrição dos diferentes personagens


veterotestamentários. Adão e Eva, por exemplo, ao desobedecerem a Deus e
romperem a aliança que havia sido firmada, desviam seu caminho do caminho
divino (Gn. 3, 8). Abraão é considerado como um homem justo, tendo em vista
que abandona sua terra e assume o caminho que Deus lhe mostra rumo à terra
prometida (Gn. 12,1).

Contudo, nos diferentes conjuntos de escritos do Antigo Testamento,


encontramos diferentes formas de abordagem do tema da moral: fundamentada
na lei, nos livros proféticos e nos livros sapienciais.

No que diz respeito à primeira abordagem, a da lei, presente nos escritos do


Pentateuco e dos Livros Históricos, podemos salientar as seguintes características:
o contexto é o da Aliança de Deus com seu povo. O conteúdo moral possui
formulações um pouco diferentes nos diversos livros, tendo principalmente como
influência o estilo de vida dos diferentes povos. Geralmente, este conteúdo é
expresso em caráter de proibição, e estas não se limitam a prescrições exteriores,
mas principalmente estão relacionadas à dimensão interior do homem.

Para Pighin (2005, p. 93), estas características dão à conduta moral


pressuposta na lei alguns significados essenciais:

• A moral é entendida como dom de Deus para alcançar a salvação;


• A vida moral é uma resposta do humano à ação salvífica de Deus;
• Entendida como empenho social, a moral é que norteia a vida do povo
de Israel frente à vivência da aliança;
• A moral é compreendida como uma escolha de liberdade para o homem
e para a comunidade;
• A moral é realizada como obediência a Deus e não como uma imposição
exterior abstrata;

38
Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

• A moral tem um valor histórico, aberto à possibilidade de modificação,


mas sempre no respeito à fidelidade a Deus na história.

Atividade de Estudos:

1) Observando as características da moral fundamentadas na lei,


compreendemos que esta não se baseia em simples cumprimento
de preceitos, mas, de forma mais ampla, a lei é entendida como
um caminho que conduz a Deus. Assim, leia o fragmento do
documento Bíblia e Moral, da Pontifícia Comissão Bíblica, e
aponte como o texto destaca a importância da Aliança para a vida
do povo.

De que maneira expressou Israel, na sua literatura sagrada,


essa aliança única entre o povo e Deus, esse Deus que desde o
início o acompanha, o liberta, se dá a ele e o recolhe?

Das alianças humanas à aliança teológica

Num dado momento, difícil de determinar com exatidão, um


conceito interpretativo maior (abrangente) impôs-se aos teólogos
de Israel: a noção de aliança.

O tema tornou-se tão importante que determinou, desde o


início, ao menos retrospectivamente, a concepção das relações
entre Deus e o seu povo privilegiado. De fato, no relato bíblico, o
evento histórico fundamental e fundador é quase imediatamente
seguido por uma conclusão de aliança: “no terceiro mês depois
da saída do Egito” (Ex 19,1), respectivamente símbolo de um
tempo divino e símbolo de um início. Isso quer dizer: o evento
fundamental e fundador inclui, no seu alcance meta-histórico, a
estipulação da aliança no Sinai a tal ponto que, da perspectiva de
uma teologia bíblica diacrônica, o evento primordial será descrito
nos termos de êxodo-e-aliança.

Além disso, esse conceito interpretativo, que vem aplicado


aos eventos da saída do Egito, estende-se retrospectivamente ao
passado em forma de etiologia. De fato, encontra-se no Gênesis.
A ideia da aliança é utilizada para descrever o relacionamento
entre o SENHOR Deus e Abraão, o antepassado (Gn 15; 17).

39
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Antes, num passado ainda mais longínquo e misterioso, entre o


SENHOR Deus e os seres vivos que sobreviveram ao dilúvio no
“tempo” de Noé, o patriarca (Gn 9, 8-17).

No antigo Próximo e Médio Oriente as alianças entre


contraentes humanos existiam em forma de tratados,
convenções, contratos, matrimônios, e até em pactos de
amizade. E deuses protetores funcionavam como testemunhas
e fiadores no processo da estipulação dessas alianças humanas.
Também a Bíblia recorda alianças desse gênero.

Porém, até prova em contrário – e nenhum documento


arqueológico até agora encontrado torna inválida essa
constatação – a transposição teológica da ideia da aliança é uma
originalidade bíblica: só aí se encontra o conceito de uma aliança
propriamente dita entre um contraente divino e um ou mais
contraentes humanos.

A aliança entre contraentes desiguais



É certo que Israel, nas origens, não podia sequer sonhar
em exprimir a sua relação privilegiada com Deus, o Totalmente
Outro, o Transcendente, o Onipotente, segundo um esquema de
igualdade, horizontal:

Deus ↔ Israel

No momento em que se introduziu a ideia teológica da


aliança, espontaneamente se pôde pensar só nas alianças entre
contraentes desiguais, bem conhecidas na praxe diplomática
e jurídica do antigo Próximo Oriente extrabíblico: os famosos
tratados de vassalagem

É difícil excluir completamente o influxo da ideologia política


da vassalagem como ponto concreto de referência para a
compreensão da aliança teológica. A intuição de um contraente
divino que toma e preserva a iniciativa de um termo ao outro do
processo da aliança constitui a perspectiva de fundo de quase
todos os textos maiores da aliança no Antigo Testamento.

Deus

Israel

40
Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

‘Nesse tipo de relacionamento entre os contraentes, o


soberano empenha-se para com o vassalo e empenha o vassalo
para consigo. Noutras palavras, ele obriga-se para com o
vassalo do mesmo modo como obriga o vassalo de sua parte.
No processo das estipulações da aliança, Ele é o único que se
exprime: o vassalo, nessa etapa, permanece calado.

Esse duplo movimento exprime-se, em campo teológico,


através de dois termos principais: a Graça (o SENHOR empenha-se
a si mesmo) e a Lei (o SENHOR empenha o povo que se torna sua
“propriedade”: Ex 19,5-6). Nessa moldura teológica, a graça pode ser
definida como o dom (incondicionado, em certos textos) que Deus
faz de si mesmo. E a Lei, como o dom que Deus faz à coletividade,
de um meio, uma via, um “caminho” ético-cultual que permite ao ser
humano entrar e permanecer “em situação de aliança.

Fonte: Pontifícia Comissão Bíblica (2008, p. 7).

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Nesta perspectiva da Aliança se insere a questão dos dez mandamentos.


Segundo o Catecismo da Igreja Católica, em seu parágrafo 2067, “os dez
mandamentos enunciam as exigências do amor de Deus e do próximo. Os
três primeiros referem-se mais ao amor de Deus: os outros sete, ao amor do
próximo”. Contudo, apesar desta diferenciação, não podemos tomar o decálogo
como proposições separadas umas das outras. Há uma unidade indissociável
na qual cada um dos mandamentos se completa e se esclarece mutuamente
(CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1999, p. 2069).

41
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

O Decálogo compreende-se, antes de mais nada, no contexto do


Êxodo que é o grande acontecimento libertador de Deus, no centro
da Antiga Aliança. Quer sejam formulados como preceitos negativos
ou interdições, quer como mandamentos positivos (por exemplo:
“Honra teu pai e tua mãe”), as “dez palavras” indicam as condições
duma vida liberta da escravidão do pecado.

Fonte: Catecismo da Igreja Católica (1999, p. 2057).

A abordagem moral realizada nos livros proféticos, por sua vez, não
A abordagem moral traz elementos novos à compreensão àquela feita por meio da lei. Mas,
realizada nos livros como portadores da mensagem de Deus, os profetas acabam por incidir na
proféticos. conduta moral do povo. Isto ocorre em situações de correção de conduta.

Entre os temas tratados encontramos a defesa do culto a Deus não apenas


como uma obrigação moral, mas uma celebração da própria vida da pessoa.
A necessidade da vivência dos deveres sociais, como o apoio aos mais fracos
e vulneráveis. Mas, principalmente, a recusa de uma obediência formalista e
exterior aos preceitos da lei, ressaltando principalmente a necessidade de uma
interiorização destes preceitos, impedindo uma vivência meramente imperativa e
promovendo uma vivência responsável.

O justo comportamento moral é um tema fundamental em todos


os profetas, mas não o tratam jamais por si mesmo nem de modo
sistemático. Eles ocupam-se da ética sempre em relação com o fato
de que Deus conduz Israel através da história. [...] Sobre a base da
presença de Deus na história de Israel, os profetas confrontaram
o povo com o seu efetivo modo de viver, que estava em plena
contradição com a “Lei” de Deus. Essa regra divina para a conduta
de Israel continha toda sorte de normas e costumes, provenientes
da jurisdição tribal e local, das tradições familiares, do ensinamento
sacerdotal e da instrução sapiencial. A pregação moral dos profetas
põe o acento sobre o conceito social de ‘justiça’. Os profetas
confrontaram a sociedade israelita com esse modelo humano e
divino em todos os aspectos.

Fonte: Pontifícia Comissão Bíblica (2008, p. 36-37).

42
Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

Por fim, a abordagem moral realizada nos Livros Sapienciais difere A abordagem moral
das anteriores, pois seu conteúdo pode ser considerado como amplo, realizada nos Livros
abordando diversos aspectos da vida e a necessidade do cultivo da Sapienciais.
modéstia e da sabedoria. Por este motivo, encontramos em poucas
passagens uma reflexão fundamentada no interdito, sua estrutura argumentativa
proporciona o oferecimento de conselhos, e o estabelecimento de máximas que
promovem a deliberação sobre os aspectos da existência.

Em especial, nos Salmos percebemos uma abordagem da condição humana


como uma criatura que busca a Deus ou por Ele é buscado, denotando a
fragilidade da existência e a necessidade humana do Criador.

O Criador assinalou uma posição especial ao ser humano. Não


obstante a fragilidade e a caducidade humanas, o salmista afirma
com assombro: “Contudo, tu o fizeste só um pouco menor que um
deus, de glória e de honra o coroaste. Tu o colocaste à frente das
obras de tuas mãos, tudo puseste sob os seus pés (Sl 8, 6-7). “Glória”
e “honra” são atributos do rei: mediante eles vem atribuída ao ser
humano uma posição régia na criação de Deus. Esse “status” torna o
ser humano próximo de Deus, o qual é sobremaneira caracterizado
por “glória” e “honra” (cf. Sl 29,1: Sl 104, 1), e o coloca, ao homem,
acima do restante da criação. Chama-o a governar sobre o mundo
criado, mas com responsabilidade e de modo sábio e benévolo,
características do reino do próprio Criador.

Fonte: Pontifícia Comissão Bíblica (2008, p. 9).

Outra característica importante é que a estrutura narrativa não fundamenta


sua argumentação primeiramente na Palavra de Deus, mas nas circunstâncias
próprias da vida, do bom senso e buscando gerar uma avaliação sobre a
viabilidade das ações. Isto tem como objetivo a busca de uma vida equilibrada, a
partir do relacionamento com Deus que proporciona a realização do ser humano.

43
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Escopo dos livros sapienciais é ensinar o justo comportamento


às pessoas. Por isso, constituem uma manifestação importante
da ética bíblica. Alguns são mais determinados pela experiência
humana (por exemplo, o livro dos Provérbios) e pela reflexão sobre
a condição humana, constituindo um nexo precioso com a sabedoria
de outros povos, enquanto outros se encontram num relacionamento
mais estreito com a Aliança e com a Torá. Ao primeiro grupo pertence
o livro de Coélet; ao segundo, o livro do Sirácida. Destes dois livros
nos ocupamos a título de exemplo.

Fonte: Pontifícia Comissão Bíblica (2008, p. 39).

No Novo Testamento, as questões relativas à moral continuam a ser


entendidas a partir do relacionamento do humano com o divino. Contudo, a partir
da pessoa de Jesus, de sua vida e pregação, os ensinamentos morais passam
por um processo de reinterpretação.

Antes de abordarmos especificamente este assunto, é importante pontuar


que o Jesus histórico conformava sua vida e existência às normativas próprias
da sociedade judaica. Era assíduo frequentador da sinagoga, realizava
várias peregrinações a Jerusalém, salientava a importância da vivência dos
mandamentos como caminho para se encontrar a vida eterna.

Entretanto, em várias passagens dos Evangelhos sinóticos encontramos Jesus


com um comportamento moral que não apenas contrariava a Lei, mas apresentava
uma nova perspectiva para a vivência dessa. Um dos pontos mais polêmicos eram
atividades de Jesus no dia de sábado, considerado pelos judeus como dia sagrado
e no qual nenhuma atividade deveria ser realizada. Mas em diversas passagens
encontramos os doentes sendo curados e a palavra anunciada.

Os Evangelhos sinóticos são os de Mateus, Marcos e Lucas,


que possuem em comum uma certa cronologia da vida, pregação,
morte e ressureição de Jesus.

44
Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

“Ele estava ensinando numa das sinagogas, no sábado. E


havia ali uma mulher que tinha um espírito de fraqueza havia 18
anos; ela estava encurvada e não conseguia de modo algum se
endireitar. Quando a viu, Jesus lhe dirigiu a palavra, dizendo: “Mulher,
você está livre da sua fraqueza”. E ele pôs as mãos sobre ela, e ela
se endireitou instantaneamente e começou a glorificar a Deus.  Em
vista disso, porém, o presidente da sinagoga, indignado porque
Jesus havia feito a cura no sábado, disse à multidão: “Há seis dias
em que se deve trabalhar;  portanto, venham nesses dias e sejam
curados, e não no dia de sábado”. O Senhor, porém, respondeu-lhe:
“Hipócritas! Cada um de vocês, no sábado, não desata o seu touro
ou o seu jumento da baia e o leva para beber água?  Não deveria
esta mulher, que é filha de Abraão e a quem Satanás manteve presa
por 18 anos, ser libertada dessa prisão no dia de sábado?” Quando
ele disse isso, todos os seus opositores ficaram envergonhados” (Lc.
13, 10-17).

“E dizia-lhes: o sábado foi feito para o homem, e não o homem


para o sábado; e para dizer tudo, o Filho do homem é senhor também
do sábado” (Mc. 2, 27-28).

Nesta perspectiva Jesus apresenta uma nova perspectiva moral, que não
se fundamenta na negação da antiga Lei, ou na formação de um novo estatuto
normativo, mas, sim, dar-lhes seu pleno cumprimento (Mt. 5, 17). Em especial,
no Evangelho de Mateus encontramos várias ocasiões nas quais Jesus se
posicionava frente à lei de Moisés buscando dar-lhe uma nova interpretação.
Dentre estas, em especial, vamos abordar a que Jesus trata do tema do divórcio.

É importante salientarmos que na lei mosaica o divórcio é permitido (Dt. 24,


1). Quando interpelado pelos fariseus sobre se tal atitude é lícita, Jesus se opõe
firmemente a tal prática, afirmando que ela foi permitida por Moisés por causa da
dureza do coração humano. E evocando a narração da criação, ele salienta que
esta prática nem sempre foi assim.

45
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

“Após esses discursos, Jesus deixou a Galileia e veio para a


Judeia, além do Jordão. Uma grande multidão o seguiu e ele curou
seus doentes. Os fariseus vieram perguntar-lhe para pô-lo à prova: É
permitido a um homem rejeitar sua mulher por um motivo qualquer?
Respondeu-lhes Jesus: Não lestes que o Criador, no começo, fez o
homem e a mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se
unirá à sua mulher; e os dois formarão uma só carne? Assim, já não
são dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem o que
Deus uniu. Disseram-lhe eles: Por que, então, Moisés ordenou dar
um documento de divórcio à mulher, ao rejeitá-la? Jesus respondeu-
lhes: É por causa da dureza de vosso coração que Moisés havia
tolerado o repúdio das mulheres; mas no começo não foi assim. Ora,
eu vos declaro que todo aquele que rejeita sua mulher, exceto no
caso de matrimônio falso, e desposa uma outra, comete adultério. E
aquele que desposa uma mulher rejeitada, comete também adultério”
(Mt. 19, 1-9).

Nesta perspectiva, percebemos que a proposta moral contida nos Evangelhos


não está relacionada a uma simples observância dos preceitos da Lei, mas à busca
de uma fidelidade a Deus, por meio de sua Palavra. Um dos exemplos clássicos
desta concepção é a interpelação que o jovem rico faz a Jesus: “Mestre, o que
tenho que fazer para ganhar a vida eterna?” (Mt. 19, 16). Este já vivia todos os
mandamentos prescritos, mas lhe faltava a adesão radical ao seguimento de Cristo.

A essência deste seguimento é apresentada do discurso das bem-


aventuranças, pois mais que suplantar a lei de Moisés, neste discurso Jesus
pontua o impacto que a lei deve gerar no interior humano e, consequentemente,
em suas ações. Como afirma Pighin (2005, p. 105), “o fundamento da vida moral
do cristão não repousa em conceitos abstratos, mas, sim, sobre a doação que
Deus faz de si mesmo, em Cristo revelando-se como amor”.

46
Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

Atividade de Estudos:

1) A partir da reflexão sobre as bem-aventuranças desenvolvida


no documento Bíblia e Moral, identifique no texto a seguir quais
são os elementos que demonstram esta preocupação com uma
interiorização dos preceitos, que geram uma coerência do agir
humano.

Uma série de virtudes ou de atitudes fundamentais


encontram-se nas bem-aventuranças. Mateus refere oito e Lucas
quatro, no início do primeiro e mais longo discurso de Jesus (cf.
Mt 5,3-10; Lc 6,20-22), apresentando-as como uma espécie de
síntese do seu ensinamento. As bem-aventuranças são uma
forma literária utilizada no Antigo Testamento e também em
outras partes do Novo Testamento. Nelas, alegria e felicidade são
atribuídas a certas pessoas e atitudes, normalmente em conexão
com uma promessa de futura bênção. Em ambos os evangelhos,
a primeira bem-aventurança refere-se aos pobres e a última aos
perseguidos: Jesus declara-os proprietários do reino de Deus,
criando assim uma estreita conexão entre o tema central do seu
anúncio e as atitudes por ele acentuadas.

Em Mateus (5,3-10) as bem-aventuranças mencionam os
‘pobres no espírito’, isto é, aqueles que vivem numa situação
precária e, sobretudo, sabem e reconhecem que nada têm por si
mesmos e dependem em tudo de Deus; depois, os ‘aflitos’, que
não se fecham em si mesmos mas participam, na compaixão, das
necessidades e sofrimentos dos outros. Seguem os ‘mansos’,
que não usam de violência mas respeitam o próximo assim como
ele é. Os que têm ‘fome e sede da justiça’ desejam intensamente
agir segundo a vontade de Deus na expectativa do reino. Os
‘misericordiosos’ ajudam ativamente os necessitados (cf. Mt
25,31-46) e estão prontos ao perdão (Mt 18,33). Os ‘puros de
coração’ procuram a vontade de Deus com um empenho íntegro
e indiviso. Os ‘promotores da paz’ fazem de tudo para manter e
para restabelecer entre as pessoas a convivência inspirada no
amor. Os ‘perseguidos por causa da justiça’ permanecem fiéis à
vontade de Deus não obstante as graves dificuldades que essa
atitude lhes traz.

47
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Tais virtudes e atitudes correspondem ao ensinamento


de Jesus em todos os evangelhos e refletem igualmente o
comportamento do próprio Jesus. Por isso, o fiel seguimento de
Jesus conduz a uma vida animada por essas virtudes.

Já recordamos a estreita conexão entre a atitude humana


e o agir de Deus (reino de Deus) na primeira bem-aventurança
e na última. Mas essa conexão encontra-se em todas as bem-
aventuranças. Cada uma delas, talvez um pouco veladamente, na
sua parte final, fala do ‘futuro agir’ de Deus: Deus os consolará,
Deus os fará herdar a terra, Deus os saciará, Deus será
misericordioso para com eles, Deus os admitirá à sua visão, Deus
os reconhecerá como seus filhos. Nas bem-aventuranças Jesus
não estabelece um código de normas e obrigações abstratas que
se referem ao justo agir humano; mostrando o agir justo dos seres
humanos, ele revela ao mesmo tempo o futuro agir de Deus. Por
isso, as bem-aventuranças são uma das mais densas e explícitas
revelações sobre Deus que se encontram nos evangelhos. Elas
apresentam o futuro agir de Deus não só como recompensa do
justo agir humano, mas também como base e motivo que torna
possível e razoável o agir humano requerido. Ser ‘pobres no
espírito’ ou fiéis na perseguição não são obrigações isoladas:
quem aceita com fé a revelação de Jesus sobre o agir de Deus,
condensada no anúncio do reino de Deus, torna-se capaz de não
se fechar na própria autonomia e sim reconhecer sua completa
dependência de Deus, capaz também de não querer salvar sua
própria vida a qualquer custo, mas enfrentar a perseguição.

Não podemos mencionar todas as atitudes justas que se


manifestam no comportamento e no ensinamento de Jesus.
Recordemos só a forte insistência de Jesus no perdão em relação
àqueles que se tornaram nossos devedores (Mt 6,11.14-15;
18,21-35); a solicitude pelas crianças (Mc 9,35-37; 10,13-16) e
a ternura pelos pequenos (Mt 18,10-14). O seguimento de Jesus
manifesta-se, de modo especial, na atitude de não querer ser
servido, mas estar pronto a servir. Jesus funda essa exigência
explicitamente no exemplo dado por ele mesmo: “Pois o Filho do
Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida
em resgate por muitos” (Mc 10,45). O serviço de Jesus é sem
limite e inclui o sacrifício da vida. A morte de Jesus na cruz por
toda a humanidade é a expressão mais alta do seu amor. Por
isso o convite ao discipulado não significa somente seguir Jesus
no seu agir, no seu estilo de vida, no seu ministério, mas inclui o

48
Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

convite a participar nos seus sofrimentos e na sua cruz, a aceitar


perseguições e até uma morte violenta. É o que se manifesta
também na exigência que Jesus dirige a todos, aos discípulos e
à multidão: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo,
tome a sua cruz e siga-me!” (Mc 8,34)

Fonte: Pontifícia Comissão Bíblica (2008, p. 39).

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Nos escritos paulinos encontramos uma perspectiva diferente de abordagem


sobre a moral. Em especial, suas concepções não estão relacionadas com a
questão do valor da lei de Moisés, mas questionam profundamente se a adesão a
estas é obrigatória ou não. Isto tendo em vista que para o apóstolo, em Jesus, por
sua vida, paixão, morte e ressureição fomos libertos do julgo da lei.

“Onde está, portanto, o motivo de se gloriar? Foi eliminado. Por


qual lei? Pela das obras? Não, mas pela lei da fé. Porque julgamos
que o homem é justificado pela fé, sem as observâncias da lei” (Rm
3, 27-28).

Desta concepção paulina descendem algumas consequências:

• A primeira é que aquelas disposições da Lei que estão em conformidade


com os ensinamentos de Cristo são absorvidas e renovadas por meio de
vida e pregação. As demais leis perdem seu sentido.

49
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

• A segunda se refere às leis do Antigo Testamento que são assumidas


pelos cristãos a partir de uma nova motivação, o que vem demonstrar
que não há a abolição das leis morais, mas dar-lhes pleno cumprimento.

Percebemos, assim, que tanto o Antigo quanto o Novo Testamento


apresentam, no processo de revelação de Deus à humanidade, normas morais,
que, tendo em vista o devido respeito ao tempo, se fundamentam na busca do
profundo relacionamento com o divino.

Algumas Considerações
Como vimos ao longo deste capítulo, estudar teologia moral e a ética é um
esforço que precisamos empreender para entendermos as atitudes e disposições
morais no nosso cotidiano, bem como na moral cristã, o que implica termos um
conhecimento histórico e teológico sobre a Sagrada Escritura.

Neste capítulo também procuramos apresentar a diferença entre os conceitos


de ética e moral, identificar as diferentes dimensões do agir moral, conhecer
os fundamentos bíblicos da ética cristã, analisar a relação existente entre as
dimensões do agir moral, bem como correlacionar as dimensões do agir moral
com os fundamentos bíblicos, dentre outros.

Nas discussões acerca da moral e da ética há diversos dilemas, embates


e reflexões, que podem e devem ser inclusive pauta de estudos e reflexões da
Teologia Moral, que nada mais é do que uma forma de leitura do comportamento
humano a partir da ótica da religiosidade.

Referências
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1992.

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Capítulo 1 Introdução à Ética Cristã

COMPAGNONI, Francesco et al. Dicionário de teologia moral. Trad. Lourenço


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52
C APÍTULO 2
História da Moral Cristã

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

� Compreender o desenvolvimento das diferentes percepções da moral cristã na


história.

� Analisar de que forma a construção teórica da moral cristã foi se realizando.

� Comparar as teorias morais com as diferentes mentalidades dos tempos


históricos.
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

54
Capítulo 2 História da Moral Cristã

Contextualização
Nesta nossa seção de estudos, vamos nos dedicar a conhecer o itinerário
histórico pelo qual a moral cristã foi desenvolvida durante os seus mais de 20 séculos.

É importante salientarmos que o impacto que este processo reflexivo


teve, sobretudo sobre o Ocidente, foi deveras importante. Isto tendo em vista
o processo de cristianização desta região e da disseminação dos valores que
foram sendo incorporados de diversas formas pelas várias culturas nos diferentes
tempos históricos.

Tendo em vista esta dinâmica, podemos afirmar que a moral cristã, em todo o
percurso histórico que realizou, teve muitos e variados problemas e preocupações
teóricas e práticas sobre o comportamento humano e a sua adequação com o
conteúdo da fé.

Vamos conhecer este roteiro!

A Moral Cristã como Elemento de


Contradição no Mundo
Greco-Romano
Como sabemos, o cristianismo, como doutrina, tem sua origem na pregação
realizada por Jesus Cristo e posteriormente difundida pelos seus discípulos
mais próximos, os apóstolos. Nos registros que possuímos sobre esta pregação,
contidos na Sagrada Escritura, podemos perceber uma grande tendência de
Jesus em realizar um processo de reinterpretação doutrinal: “Não julgueis que
vim abolir a lei ou os profetas. Não vim para os abolir, mas sim para levá-los à
perfeição” (Mt. 5, 17).

Tal percepção pode ser confirmada na narração das bem-aventuranças


realizada por Mateus. Nesta passagem, as proposições feitas por Jesus
relacionam-se com um novo modo de viver a fé, não mais vinculado à lei mosaica,
mas sim a uma proposta fundamentada na experiência do amor e da misericórdia
de Deus e da coerência das ações.

55
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

A lei mosaica é uma referência a lei de Moisés. Deve ser


entendida como o conjunto de ensinamentos, leis e preceitos
presentes nos primeiros cinco livros da Sagrada Escritura (Torah para
os judeus, Pentateuco para os cristãos), que constituem o padrão
moral pelo qual o povo de Deus deveria agir. Algumas linhas do
judaísmo consideram também os ensinamentos contidos no Talmud
como integrantes da lei mosaica.

Desta forma, não bastava apenas cumprir os dez mandamentos, mas era
necessário que a essência destes fizesse parte da vida da pessoa. Dentre os
exemplos apresentados na passagem que mencionamos, há vários que nos são
dados pelo próprio Cristo. Todos estes procuram demonstrar a importância de
amplificar a compreensão moral e perceber que esta não se relaciona apenas
com atos externos ou preceitos a serem cumpridos, mas principalmente com
aquilo que está presente no coração humano.

Atividade de Estudos:

1) Tendo em vista a pregação de Jesus frente ao legalismo judaico,


leia o fragmento do Evangelho de São Mateus no qual baseamos
nossa argumentação e procure identificar dois pontos nos
quais há uma nítida releitura da doutrina judaica no processo
de estruturação da moral defendida por Jesus. Posteriormente,
explique o porquê da relevância desta ser vivida a partir do
interior humano.

“Então abriu a boca e lhes ensinava, dizendo: Bem-


aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o
Reino dos céus! Bem-aventurados os que choram, porque serão
consolados! Bem-aventurados os mansos, porque possuirão
a terra! Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados! Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia! Bem-aventurados os puros de
coração, porque verão Deus! Bem-aventurados os pacíficos,
porque serão chamados filhos de Deus! Bem-aventurados os que
são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos

56
Capítulo 2 História da Moral Cristã

céus! Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem, quando


vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós
por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a
vossa recompensa nos céus, pois assim perseguiram os profetas
que vieram antes de vós. [...] Não julgueis que vim abolir a lei
ou os profetas. Não vim para os abolir, mas sim para levá-los à
perfeição. Pois em verdade vos digo: passará o céu e a terra,
antes que desapareça um jota, um traço da lei. Aquele que violar
um destes mandamentos, por menor que seja, e ensinar assim
aos homens, será declarado o menor no Reino dos céus. Mas
aquele que os guardar e os ensinar será declarado grande no
Reino dos céus. Digo-vos, pois, se vossa justiça não for maior
que a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos céus.
Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não matarás, mas quem
matar será castigado pelo juízo do tribunal. Mas eu vos digo:
todo aquele que se irar contra seu irmão será castigado pelos
juízes. Aquele que disser a seu irmão: Raça, será castigado pelo
Grande Conselho. Aquele que lhe disser: Louco, será condenado
ao fogo da Geena. Se estás, portanto, para fazer a tua oferta
diante do altar e te lembrares de que teu irmão tem alguma
coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro
reconciliar-te com teu irmão; só então vem fazer a tua oferta.
Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto
estás em caminho com ele, para que não suceda que te entregue
ao juiz, e o juiz te entregue ao seu ministro e sejas posto em
prisão. Em verdade te digo: dali não sairás antes de teres
pago o último centavo. Ouvistes que foi dito aos antigos: Não
cometerás adultério. Eu, porém, vos digo: todo aquele que lançar
um olhar de cobiça para uma mulher, já adulterou com ela em
seu coração. [...] Foi também dito: Todo aquele que rejeitar sua
mulher, dê-lhe carta de divórcio. Eu, porém, vos digo: todo aquele
que rejeita sua mulher, a faz tornar-se adúltera, a não ser que se
trate de matrimônio falso; e todo aquele que desposa uma mulher
rejeitada comete um adultério. Ouvistes ainda o que foi dito aos
antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás para com o Senhor os
teus juramentos. Eu, porém, vos digo: não jureis de modo algum,
nem pelo céu, porque é o trono de Deus; nem pela terra, porque
é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade
do grande Rei. Nem jurarás pela tua cabeça, porque não podes
fazer um cabelo tornar-se branco ou negro. Dizei somente: Sim,
se é sim; não, se é não. [...] Tendes ouvido o que foi dito: Amarás
o teu próximo e poderás odiar teu inimigo. Eu, porém, vos digo:
amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos

57
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

que vos [maltratam e] perseguem. Deste modo sereis os filhos de


vosso Pai do céu, pois ele faz nascer o sol tanto sobre os maus
como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os
injustos. Se amais somente os que vos amam, que recompensa
tereis? Não fazem assim os próprios publicanos? Se saudais
apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem
isto também os pagãos? Portanto, sede perfeitos, assim como
vosso Pai celeste é perfeito” (Mt. 5, 1-12. 17-28. 31-37. 43-48).
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Com a expansão da pregação da proposta cristã para além dos territórios


judaicos, sua proposta moral – que segundo Pighin (2005) possui um vínculo
profundo com a dimensão da fé – se apresenta como proposta de ressignificação,
mas como elemento de contradição frente às tradições pagãs, principalmente as
pertencentes à cultura greco-romana.

Estas possuíam valores e práticas pressupostas na exaltação da força e da


altivez humanas que difundiam formas de dominação, busca pelo poder e tirania.
Seu sistema religioso era politeísta, e como tal expressava-se por meio de diversas
formas de culto baseadas em doutrinas órficas. A vivência da sexualidade não
possuía padrões de regulação. Poderíamos afirmar que a dimensão sexual tinha um
aspecto orgiástico, no qual todas as práticas seriam permitidas e possíveis. Aqui
não nos referimos apenas a relações extraconjugais, prostituição, homossexualidade,
mas também a questões como incesto, zoofilia, estupro, entre outras.

58
Capítulo 2 História da Moral Cristã

A palavra orgiástico vem de orgia, que significa em sua primeira


designação uma festa realizada em honra a Baco, o deus romano do
vinho. Estas festas, também nomeadas de bacanais, tinham como
finalidade celebrar o deus por meio de práticas que recordassem a
alegria e o prazer. A prática sexual, sem estabelecimento de padrão
algum, era parte integrante das festas. Atualmente, utiliza-se também,
como foi no caso do texto, a palavra orgiástico para designar toda e
qualquer atividade relacionada à sexualidade que não siga modelo
algum de conduta.

Este macrocenário constitui-se um grande desafio para o processo de


inculturação da mensagem cristã nos primeiros séculos, não apenas pelos
elementos contraditórios, mas também pela diversidade. A pregação do
evangelho é realizada para judeus e pagãos, públicos bem distintos para os quais
a mensagem necessitava de enfoques diferentes, mas que convergissem para a
mesma finalidade.

Assim, segundo Pighin (2005, p. 34), os principais desafios enfrentados pela


Igreja cristã no início de sua pregação estão relacionados:

• A uma atitude frente ao sistema ético-religioso do judaísmo que


é considerado demasiadamente legalista, não proporcionando
necessariamente uma vivência coerente e livre dos valores que
descendem da fé.
• A um posicionamento perante a estrutura moral predominante no mundo
grego-romano que enfatiza a força, o poder e a dominação como
princípios morais.
• Ao combate das práticas e crenças de advinhação das religiões
politeístas, principalmente aquela que pretendia o culto ao imperador.
• A uma atitude em relação à vivência sexual, principalmente dos povos
pagãos, que era considerada como imoral, e principalmente como
degenerativa da natureza humana.

Estes desafios foram enfrentados pelos apóstolos, principalmente por


Paulo, que em suas cartas exorta diversas comunidades na vivência da correta
vida moral. Mas foram os padres apostólicos, aqueles que sucederam os que
conviveram com Jesus no processo de pregação do evangelho e condução da
Igreja, que se dedicaram a versar sobre a temática.

59
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Se você quiser conhecer os escritos de Paulo que abordam as


questões morais, indicamos que leia as seguintes passagens das
seguintes epístolas paulinas: 1Ts, 4; 1 Cor. 3-7.

É importante salientar que não há, neste período, uma estruturação de


uma doutrina moral sistematizada e uniforme. Mas, nas diferentes abordagens
encontradas nos escritos da época, podemos encontrar pontos comuns e,
portanto, inferir os principais temas doutrinários acerca da moralidade que eram
abordados. Dentre estes salientamos:

• A rejeição do legalismo formalista que advinha do judaísmo;


• A vinculação entre fé e moral como pressuposto da vida religiosa
autêntica;
• A conexão existente entre o agir humano e a dimensão teocêntrica e
cristocêntrica de buscar fazer a vontade de Deus;
• A importância da graça de Deus para a vivência dos valores do evangelho,
tendo em vista que a vontade humana é falha e limitada (COMPAGNONI
et al., 1997, p. 586).

Posteriormente, a partir do século II, na reflexão dos padres apologetas –


assim chamados por se constituírem como aqueles que defendem a Igreja de
doutrinas equivocadas, principalmente advindas da filosófica greco-romana do
período helenista – já encontramos uma estruturação mais sistematizada dos
temas relativos à moral.

Suas análises tendem a um certo rigorismo. Estabelecem um limite entre


a concepção cristã, a mentalidade judaica e as filosofias que tinham como
fundamento moral a prática da ascese. Sendo isto de fundamental importância,
haja vista o ecletismo que começava a acontecer e, consequentemente, deturpar
a moral cristã.

Entretanto, estes teólogos da Igreja primitiva não podiam desconsiderar a


influência e a importância da filosofia greco-romana. Neste sentido, um de seus
esforços foi o de respaldar a doutrina moral cristã nas teorias filosóficas estoica
e neoplatônica, apropriando-se apenas dos pontos que são convergentes com os
preceitos cristãos e com a Sagrada Escritura.

60
Capítulo 2 História da Moral Cristã

Assim, vamos encontrar sendo desenvolvidas no período teorias como: a da


importância de conservar o coração longe das circunstâncias apresentadas pelo
mundo, tentando incutir neste os princípios cristãos por meio do testemunho de
vida; a importância da vivência da castidade; a oração como princípio fundante
para o desenvolvimento de uma vida moral pautada nos bons costumes; o mérito
da prática das boas obras e da esmola.

Enfim, percebemos que neste período há uma insistência doutrinal na


relevância da interioridade do ato moral e principalmente na exigência moral da
religião. Tendo em vista que é a partir dos ensinamentos de Cristo que a pessoa
encontra o reto caminho para suas ações.

A Reflexão Patrística da Moral


A partir do século IV inicia-se uma nova fase no pensamento cristão, já não
mais tão preocupado com a defesa da fé cristã, mas principalmente com sua
fundamentação teológica. Segundo Compagnoni et al. (1997), há três aspectos
importantes que caracterizam este período e que denotam esta transição: a
cristianização paulatina do Império Romano; esta que fará cessar as perseguições
e que culminará no estabelecimento da vida cristã como modelo; e o surgimento
de fortes personalidades – tanto no Oriente grego, quanto no Ocidente latino –
que assumiram a liderança da Igreja.

No que tange à questão da cristianização e do estabelecimento do modelo


cristão de vida, é importante salientar que o Império Romano, a partir da moral cristã,
intervirá em sua legislação normatizando, assim, os hábitos e ações da população.

[...] o domingo será declarado dia festivo, e são favorecidos o


matrimônio e a família com a proibição do concubinato para o
homem casado, com a severidade em relação ao adultério e
ao rapto, com os obstáculos interpostos ao divórcio, impedindo
o infanticídio e tornando mais difícil a exposição dos recém-
nascidos [...] a partir do ano 483 serão suprimidos os combates
de gladiadores. A Igreja, pela voz de seus bispos, prega aos
governantes a não violência, a humanidade, a clemência, a
mansidão, a mitigação da escravidão e do encarceramento
(COMPAGNONI et al., 1997, p. 566).

Os principais pensadores que desenvolveram suas teorias acerca da moral


neste período podem ser divididos em dois grandes grupos: os Padres da Igreja
Oriental (grega) e os Padres da Igreja Ocidental (latina).

61
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Segundo Lacoste (2004), os Padres da Igreja podem ser


considerados como “os autores dos primeiros séculos cristãos
universalmente invocados como testemunhas diretas ou indiretas da
doutrina cristã”. Eram também “intérpretes ou exegetas da Escritura.
Um Padre se define por seu apego à tradição da Igreja, [e] por sua
fidelidade à Escritura” (LACOSTE, 2004, p. 131

Dentre os Padres Orientais destacam-se Basílio Magno e Gregório de Nissa,


já no que tange aos Padres Latinos, o grande expoente é Santo Agostinho.

Basílio Magno (330-379) possui uma reflexão de aspecto prático, seu


interesse pela moral reside principalmente em estabelecer parâmetros para
o agir humano. Foi autor das Regras morais, obra que além de estabelecer os
princípios da vida monástica no Oriente, evoca a necessidade de todos os cristãos
buscarem uma vida fundamentada na ascese. Esta deveria ser vivenciada a partir
da humildade e do jejum, que seriam a fonte principal para uma vida virtuosa.
Um aspecto muito relevante no pensamento de Basílio é sua preocupação social.
Afirmava que o acúmulo de riquezas não engrandecia o homem, mas sim o que
tinha guardado em seu coração. Pontuava também que o rico não era detentor de
seu patrimônio, mas apenas o administrador, tendo em vista que todos os bens
vêm de Deus. Assim, criticava duramente a desigualdade social de seu tempo,
fomentando os cristãos à prática da caridade.

Gregório de Nissa (335-394) é conhecido como um dos padres mais místicos


deste período e sua doutrina moral tem como pressuposto esta dimensão. Ele
inicia suas reflexões a partir do conceito de imagem e semelhança: sendo o ser
humano criado de tal forma, é necessário que no processo da existência ele
deixe que esta imagem se realize plenamente. Isto não significa a passividade
da pessoa frente ao agir moral, mas que esta é profundamente dependente da
graça de Deus para que tal dinâmica se efetive. O papel do ser humano, frente à
moral, está em seguir os ensinamentos do evangelho, nos diferentes tipos de vida
(matrimonial ou celibatária) e por meio de diversas práticas baseadas na caridade.
É válido salientar que, como no pensamento de Basílio Magno, Gregório também
possui uma grande preocupação com os pobres, por este motivo incentiva a
prática da esmola e considera a usura como uma falta altamente condenável.

Santo Agostinho (354-430) é o Padre da Igreja que mais abordou a temática


da moral em seus escritos. Fundamenta toda sua doutrina a este respeito em uma
base cristológica. Em outras palavras, o núcleo da vida moral do cristão é Jesus
no contexto do mistério pascal.

62
Capítulo 2 História da Moral Cristã

O mistério pascal, do ponto de vista histórico, que é o que nos


referenciamos, indica o evento da paixão, morte e ressurreição
de Cristo, por meio da qual “o Senhor passou da morte à vida,
abrindo-nos o caminho, a nós que cremos em sua ressurreição,
para que nós também passássemos da morte para a vida”
(LACOSTE, 2004, p. 1351).

A pessoa, desta maneira, é considerada como imagem do próprio Cristo,


único caminho e modelo para a vida cristã. Caminho, pois é pela graça advinda
Dele que o ser humano consegue chegar à vivência da virtude, cujo ápice está em
uma vida de caridade. Esta é considerada por Agostinho como a forma mais plena
de virtude, pois congrega em si a prudência, a fortaleza e a temperança.

No contexto da obra de Agostinho é salutar pontuar a importância que este


dá à atuação da graça na vida humana. Posicionando-se de forma contrária ao
Pelagianismo, o autor salienta que tendo em vista o pecado original, o ser
humano não consegue alcançar a virtude somente por seus esforços e por meio
de sua liberdade.

O Pelagianismo é a doutrina que afirma que o ser humano nasce


em um estado de inocência e, consequentemente, só será possível
alcançar a perfeição por meio das próprias atitudes humanas. A
realidade do pecado e da graça é profundamente negada.

Fonte: Moser (1996, p. 102).

O pecado original é uma doutrina que afirma que o ser humano,


a partir da desobediência de Adão, da qual participa, permanece
em estado de alienação em relação a Deus. Neste sentido, está
submetido às concupiscências e também privado da bênção original.

Fonte: Moser (1996, p. 81).

63
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

“Assim, a graça é aquela que sustenta e fortifica a pessoa na escolha de


afastar-se do mal e fazer o bem” (AGOSTINHO, 1999, p. 59).

Portanto, quem de modo conveniente se serve da lei, chega


ao conhecimento do mal e do bem e, não confinado na sua força,
refugia-se na graça, cujo auxílio lhe dá forças para se afastar do
mal e fazer o bem. E quem recorre à graça? Não é aquele cujos
passos são orientados pelo Senhor e escolhe seus caminhos?
Assim, o desejo da graça é início da graça, da qual fala o salmista:
Então eu digo: Agora começo: está mudada a destra do Altíssimo.
Consequentemente, devemos confessar que temos liberdade para
fazer o mal e o bem; mas para fazer o mal, é mister libertar-se da
justiça e servir ao pecado, ao passo que na prática do bem ninguém
é livre se não for libertado por aquele que disse: Se, pois, o Filho vos
libertar, sereis realmente livres. Mas ninguém pense que, uma vez
libertado da sujeição ao pecado, não lhe é mais necessário o auxílio
do libertador. Pelo contrário, ouvindo dele: Sem mim nada podeis
fazer, responda-lhe: Tu és minha ajuda; não me deixes.

Fonte: Agostinho (1999, p. 59).

A Alta Idade Média e a Moral


Penitencial
A Alta Idade Média se inicia com a queda do Império Romano em 476 e se
estende até o início do feudalismo no século XI. Neste, não há grandes reflexões
no campo da moral. O que há de novo são pequenas publicações que aparecem
entre os anos de 650 e 800, as quais recebem o nome de Liber poenitentialis, livros
que continham uma doutrina moral demasiadamente fundamentada na noção de
culpa. Estes foram paulatinamente proibidos pela Igreja, tendo em vista sua origem
teológica e também a natureza das penitências que eram atribuídas a cada um
dos pecados. Posteriormente, cerca de dois séculos, retomaram sua importância,
principalmente durante a reforma gregoriana, entre os séculos XI e XIII.

Os penitenciais, como se denominavam estes livros, tinham seu fundamento


teológico na casuística e se constituíam uma relação de pecados e de penas que
os redimiam.

64
Capítulo 2 História da Moral Cristã

A casuística era um método de análise moral que buscava


analisar os atos humanos utilizando acontecimentos concretos e
particulares, procurando compreender quais eram as causas e as
possíveis soluções para as questões relacionadas à consciência.

Fonte: Compagnoni et al. (1997).

A originalidade desta penitência encontrava-se nas tarifas


penitenciais: para cada culpa era atribuída uma penitência precisa
(especialmente jejuns) de acordo com uma causa (casuística)
que tinha em conta as circunstâncias da ação e da qualidade dos
penitentes: clero, monge, leigo, homem, mulher etc. Estas tarifas
eram indicadas em volumes para o uso dos confessores, chamados
livros penitenciais.

Fonte: Compagnoni et al. (1997, p. 568).

Provavelmente sua origem histórica esteja relacionada com a vivência


monástica, contudo, posteriormente secularizaram-se, sendo aplicados a
todos os fiéis.

É importante salientar que a moral penitencial sofreu um processo de


evolução no qual os primeiros livros ou manuais tinham uma característica
sumária: determinado pecado tem determinada penitência a ser cumprida. Já os
últimos penitenciais a serem desenvolvidos levavam em consideração as normas
canônicas, a conjuntura na qual o pecado havia sido cometido e também as
qualidades da pessoa.

Mesmo se constituindo um período de mediana importância para a história


da moral, segundo Pighin (2005), podemos salientar sua contribuição nos
seguintes aspectos:

• A incidência da evolução na disciplina e prática penitencial, apesar desta


nem sempre estar relacionada com as orientações da Igreja.

65
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

• A contribuição no processo de discernimento da consciência humana em


descobrir a sua responsabilidade frente às desordens morais.
• Doaram as poucas notícias que se tem sobre a vida moral no período da
Alta Idade Média.

A era dos penitenciais se encerrou por volta do ano de 1140, com o Decreto
de Graciano, uma compilação das normas canônicas existentes que tinha como
objetivo organizar um corpo jurídico considerado canônico.

A Escolástica e o Reavivamento da
Teologia Moral
A partir do século XII a teologia passa por um processo de reavivamento,
este é devido a um conjunto de fatores que englobam em si o fervor cultural
que culminou com o surgimento das universidades e a renovação espiritual
do monarquismo. As reflexões no campo da moral retomam o ciclo de
desenvolvimento, em um primeiro momento a partir das escolas monásticas e
posteriormente das universidades.

No que tange à influência das escolas monásticas, é importante


mencionarmos que suas análises tinham como ponto de partida a própria vida
consagrada. Elas englobavam aspectos relacionados à vida espiritual, que
unia em si as perspectivas ascética e mística, as quais pressuponham-se nos
ensinamentos da Sagrada Escritura, nos escritos dos padres da Igreja e na
vivência litúrgica.

Entre as escolas monásticas, a mais importante é a de Cluny. Esta possui


como um dos mais expressivos representantes São Bernardo de Claraval, o
qual, em seus escritos espirituais, pontuava de forma enérgica a importância da
coerência entre crença (fé), pensar e agir. O principal tema desenvolvido por ele é
o da consciência que necessita estar ligada à verdade.

O pensamento moral desenvolvido no âmbito de caráter mais acadêmico


utiliza um método e pressupostos diferentes. Eles iniciam um novo tipo de
reflexão, a partir de categorias filosóficas, que possibilita a formação de um novo
gênero argumentativo, conhecido como das sentenças.

66
Capítulo 2 História da Moral Cristã

As sentenças são as formulações por meio das quais os


teólogos do período da escolástica desenvolviam seu pensamento.
Estas eram constituídas de uma série de considerações que tinham
como objetivo depurar as contradições que determinado pensamento
de um autor ou uma temática possuíam. Para alcançar este objetivo,
duas áreas do conhecimento eram fundamentais: a filologia, para
compreensão dos conceitos, e a lógica formal, para analisar a
estrutura de argumentação.

Dentre os pensadores do período salientamos a importância das reflexões


no campo da moral de Pedro Abelardo. Ele afirmava que a lei que fundamenta
toda a realidade e consequentemente a moral, é a lei natural. Disto decorrem suas
críticas profundas a uma moral cristã pautada na casuística, tendo em vista que ela
desconsiderava aspectos mais universais do ser e do agir humanos. Dentre estes
aspectos está o da intencionalidade. Pois, para ele, a intenção com que determinada
ação foi realizada impacta de forma direta na objetividade desta. Assim, destaca a
importância da atuação da consciência e da responsabilidade humana.

A partir do século XIII, com a consolidação do pensamento escolástico e o


surgimento de duas ordens religiosas – dominicanos e franciscanos –, a reflexão
sobre a moral recebe novos contornos.

A escola dominicana tem como principal representante Tomás de Aquino.


Este, a partir do método das sentenças, elabora o primeiro sistema ético-filosófico
da Idade Média. Ele buscou analisar os principais temas relacionado à dimensão
do agir humano tendo como ponto de partida a filosofia de Aristóteles, a Sagrada
Escritura e os escritos dos Padres da Igreja.

O desenvolvimento de sua doutrina acerca da moral parte da existência de


Deus, que, vinculada à questão da Aliança, tem na criação e na redenção seus
pressupostos. É em Cristo que encontramos o caminho para a vivência das
virtudes que nos possibilita nosso retorno ao próprio Deus e a vivenciar, mesmo
que imperfeitamente, a felicidade na vida terrena.

67
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

As virtudes na teologia tomista são consideradas como


princípios internos do agir moral. Como tais, elas se constituem como
hábitos que são desenvolvidos pela pessoa. Como o próprio Tomás
de Aquino afirma: “A virtude designa certa perfeição da potência. Mas
a perfeição de uma coisa é considerada, principalmente, em ordem
do seu fim. Ora, o fim da potência é o ato. Portanto, a potência será
perfeita na medida em que é determinada por seu ato. As potências
racionais próprias do homem não são determinadas a uma coisa
só, antes se prestam, indeterminadamente, a muitas coisas. Ora, é
pelos hábitos que elas se determinam aos atos. Por isso as virtudes
humanas são hábitos” (TOMÁS DE AQUINO, 2009 I, II, q. 55 a.1).

Discordando de filósofos, como Abelardo, ele não vê diferenças entre a


vivência da moral fundamentada na lei natural (ordenamento natural da realidade
existente) e na moral cristã. Tomás de Aquino afirma que aquela participa de
forma direta da lei eterna de Deus e foi por este imputada na realidade. Assim, a
lei natural participa da lei eterna de Deus que fundamenta a moral cristã.

A escola franciscana, por sua vez, fundamentada nas concepções que


pressupõe seu carisma, salienta o primado da vontade sobre a racionalidade e da
caridade sobre o conhecimento. Compreendendo que a vida ética só é possível
a partir de uma mística, um de seus principais representantes, John Duns
Scott, juntamente com uma série de outros autores franciscanos, se posiciona
contrariamente à teologia tomista.

A palavra mística pode ser empregada com diversos sentidos.


Em especial nos referenciamos à experiência que a pessoa faz dos
mistérios e do sagrado e a partir da qual passa a fundamentar sua
vida e suas ações.

Fonte: Ruthes (2015, p. 23).

68
Capítulo 2 História da Moral Cristã

No campo da moral, afirmava que o agir humano, mesmo que realizado


a partir da racionalidade, não procede dela em primeiro, mas sim da vontade.
Entendendo esta a partir da liberdade, salienta que para a análise da vivência
ética deve-se levar em consideração aquilo que moveu tal ação, ou seja, a
intencionalidade.

Para Scott, existe um ordenamento natural imputado na realidade (lei


natural), mas este não é entendido nem de forma autônoma como em Abelardo,
nem como idêntica à lei eterna, como afirmava Tomás de Aquino. Esta provém da
vontade divina, que tudo ordenou de forma a esta vontade ser cumprida.

Ao fim da Escolástica, no século XIV, temos a ascensão do movimento


nominalista. Este cujo principal representante é Guilherme de Ochkam, que
criticava de forma contundente a harmonia entre fé e razão apresentada pela
filosofia medieval que, segundo ele, havia pautado seus argumentos em
uma racionalidade abstrata, não considerando a singularidade das coisas e,
principalmente, a vontade de Deus como soberana.

Assim, a ética nominalista terá como princípio o voluntarismo radical,


para o qual a moral é fruto de atos particulares cuja principal característica é a
liberdade humana. As virtudes não são consideradas como exteriorização da
moral, mas sim como adequação e subordinação da liberdade no processo de
desenvolvimento dos hábitos. Assim, a reflexão moral deixa de ser entendida em
sua forma ampla, tornando-se casuística.

Tal revolução provocada pelo nominalismo, e as mudanças históricas do


século XVI – com a ascensão das ideias renascentistas, o estabelecimento do
sistema político monárquico na Europa e a Reforma Protestante –, proporcionaram
o surgimento de um movimento que buscava “o retorno às fontes” da teologia cristã.

Tendo como pressuposto a necessidade de intentar a genuína vida cristã,


diversas escolas e pensadores desenvolveram métodos e doutrinas morais.

A Escola de Salamanca e a
Companhia de Jesus
No século XVI, uma série de teólogos, pertencentes à Universidade de
Salamanca, dedicaram-se ao estudo da moral. Eles, segundo Pighin (2005, p. 63),
“representam o ponto de encontro entre o ockhamismo, como atenção à situação
concreta, o humanismo, como empenho de redescoberta das fontes, e o tomismo,
como linha central do pensamento”.

69
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Dentre estes está Francisco de Vitória, considerado como iniciador da Escola


de Salamanca. Suas doutrinas são conhecidas de forma parcial, tendo em vista
que muitas delas não foram registradas. Mas, a partir daquelas que chegaram até
nós, podemos afirmar que sua reflexão era profundamente inovadora para a época.
Uma das principais temáticas abordadas é a questão dos direitos do homem em
relação ao Estado. A partir do conceito de dignidade, ele ressalta o princípio de
igualdade entre as pessoas. Tal questão foi salutar para a reflexão sobre a natureza
e a dignidade dos indígenas, povos habitantes das terras recém-descobertas.

Outros pensadores desta escola, como Melchior Cano, Domingos Soto


e Bartolomeu de Medina, desenvolveram suas reflexões acerca de aspectos
metodológicos e dogmáticos, como a natureza da graça e o pecado original.

A Companhia de Jesus (jesuítas) também deu uma grande contribuição ao


início de renovação da reflexão sobre teologia e moral, desde o Colégio Romano
(atual Universidade Gregoriana). Em especial, pontuamos a obra de Francisco
Suárez, que é considerado o pai da teologia moral moderna. Para ele, a natureza
humana é o fundamento para o julgamento moral, disto deriva que as leis morais
emanam da lei divina à qual os valores e os atos humanos devem ser adequados.
A casuística passa a ter uma interpretação menos abstrata e mais relacionada
com as questões concretas.

Neste período entre os séculos XVI e XIX são estruturados diversos sistemas
morais, que têm sua origem com o objetivo de fornecer ao agir humano normas que
assegurem que as escolhas estejam fundamentadas na lei. Com a preocupação
de auxiliar nas questões práticas da moral, os sistemas morais buscam formar a
consciência para que se encontre o justo meio entre liberdade e lei.

Com o nome de sistemas morais denominam-se os manuais de


teologia moral das doutrinas morais de várias escolas teológicas sobre
a formação do juízo de consciência, quando quem deve ou quer agir se
encontra frente a leis que aparecem objetivamente incertas. Os sistemas
morais transformam por via dedutiva, do universal ao particular, os
princípios e as leis universais, em regras particulares, por casos típicos.

Fonte: Compagnoni et al. (1997, p. 1006).

Dentre os sistemas existentes nos cabe ressaltar o tuciorismo (absoluto e


mitigado), probabiliorismo, compensacionismo, equiprobabilismo, probabilismo
e laxismo.
70
Capítulo 2 História da Moral Cristã

Atividade de Estudos:

1) Leia o texto a seguir. Procure identificar as características de


cada um dos sistemas morais e posteriormente faça um mapa
conceitual de cada um deles.

Neste sentido, o tuciorismo cai num rigorismo, pois se deve


seguir sempre a opinião em favor da lei, evitando o perigo de
infringi-la. Mas o tuciorismo pode ser absoluto ou mitigado. O
tuciorismo absoluto afirma que basta uma mínima probabilidade
sobre a existência de uma lei para estar obrigado ao
cumprimento da mesma. Já o mitigado afirma que a consciência
deveria conformar-se sempre com a opinião provável que
propõe a lei, a menos que esta seja contestada por uma opinião
probabilíssima em favor da liberdade.

No probabiliorismo também domina, como norma moral, a lei.


Deve-se sempre seguir a opinião que é mais provável, que tem
mais razões a seu favor. Assim, defende-se que não é necessária
uma opinião probabilíssima favorável à livre autodeterminação para
poder recusar a opinião oposta que está em favor da lei. Basta uma
opinião mais provável que a oposta para estar em favor da lei.

Também o compensacionismo reafirma como limite de licitude


para a livre autodeterminação a forte probabilidade da lei. Porém,
admite a validez da opinião simplesmente provável, sempre que
exista uma razão que evite e compense a eventual transgressão da
lei que parece mais provável. Em oposição a este grupo de quatro
sistemas que defendem a ordem objetiva expressa em leis, se situam
os outros três sistemas. Estes põem em primeiro plano a instância
da subjetividade, que se expressa na liberdade de determinar o juízo
da consciência na escolha a realizar “aqui e agora”.

Daí, temos o laxismo, que é a antítese do tuciorismo


absoluto. Afirma que a lei, para obrigar, deve ser tão certa que
faça improvável ou pouco provável a opinião benigna, de modo
que se agiria prudentemente de acordo com uma probabilidade.
Tanto o tuciorismo absoluto quanto o laxismo foram condenados
pelo Magistério da Igreja (cf. Decretos do Santo Ofício de
07/12/1690 e 02/03/1679, respectivamente).

71
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Já o probabilismo admite que, para agir honestamente,


é preciso agir de acordo com a prudência. Porém, ensina que
se age prudentemente quando o juízo de consciência está
apoiado numa razão verdadeiramente provável, mesmo que
seja menos provável que a opinião expressa na instância da
lei. Consequentemente, ela aparece como “mais provável”. Ou
seja, é lícito seguir uma opinião provável também se a opinião
contrária em favor da lei tenha maior possibilidade. Isto porque a
consciência é vista como um juiz da dialética interna da pessoa
entre a lei e a liberdade.

Finalmente, o equiprobabilismo é uma variante do
probabilismo. Este assume o princípio de que, quando se está
em estado de dúvida pela presença de duas opiniões prováveis
opostas, prevalece a lei se esta é certa e se há dúvidas de que
haja cessado, e que prevalece a liberdade quando se há dúvidas
de que a lei exista. O equiprobabilismo toma o princípio de que
a lei duvidosa não obriga, para afirmar que tal dúvida cessa
somente quando a lei tem em favor uma opinião mais provável
que a oposta em favor da liberdade. Esta é a posição de Santo
Alfonso de Liguori, que também se move neste quadro transmitido
pela casuística. Mas, para ele, a liberdade é anterior à lei que vem
a limitá-la. Para que este veto possa suspender a liberdade, é
necessário que seja perfeitamente claro e manifesto: a liberdade
ocupa o lugar até que uma lei não venha a desalojá-la”. (ARAÚJO,
2007, p. 156).

72
Capítulo 2 História da Moral Cristã

A Escola de Tübingen
O século XIX é marcado por uma série de mudanças políticas, sociais,
econômicas e científicas. A Revolução Francesa e a Revolução Industrial,
pautadas nos princípios do Iluminismo, iniciam um processo de renovação que
se configura como orgânica. No campo da moral, tanto no que tange à reflexão
e à prática, há uma aspiração profunda pela liberdade. Esta é preconizada pelas
filosofias que se fundamentam na autonomia da razão humana para afirmá-la.

Neste contexto encontramos a Escola de Tübingen, que dentro deste


processo de modificação paulatina dos pressupostos pelos quais a moral
era refletida, promoveu uma ruptura no modo de refletir acerca das questões
relacionadas ao comportamento humano e suas consequências (principalmente
no que tange ao método da casuística). Podemos afirmar, desta forma, que ela
promove o início de uma mudança de paradigma.

Os teólogos desta Escola, voltados para os problemas do


tempo presente e de uma forma profética e visionária, reagiram a um Representando
a possibilidade
“envelhecimento” da reflexão teológica, representando a possibilidade
de uma forma de
de uma forma de produção para a teologia moral para os novos produção para a
tempos. Defendiam que a moralidade não tinha necessidade de ser teologia moral para
mesquinhamente árida, abstrata e teórica, e que podia ser vivificada por os novos tempos.
uma fragrância evangélica mais evidente e reflexiva.

Dentre os principais representantes desta escola está Johann Michael


Sailer. Em seus estudos, desenvolveu um processo de reflexão que tinha como
pressuposto a união da moral, do dogma e da exegese. A grande novidade de seu
pensamento foi o abandono da casuísta, desenvolvendo parcialmente um tratado
moral que apresentava que o centro da vida do cristão está na prática da caridade.

Outros pensadores importantes da Escola de Tübingen foram Magnus


e Linsenman, que desenvolveram suas reflexões a partir da teologia paulina
centralizando a moral sob a doutrina do Corpo Místico de Cristo e enfatizando a
relação entre a lei e a liberdade, respectivamente.

Mesmo que tardiamente, já no século XX, é importante ressaltar que o teólogo


Bernard Häring também integrou a Escola de Tübingen. Ele será o exemplo da
importância que esta teve para o processo de renovação moral, ao pressupor a
moral na Sagrada Escritura e opondo-se à casuística.

73
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

A Moral Renovada
Este processo de renovação moral deu origem ao movimento que
Surge em oposição
historicamente ficou conhecido como Moral Renovada. Esta surge em
ao modelo moral
que foi formado na oposição ao modelo moral que foi formado na teologia ao longo da história
teologia ao longo que até agora analisamos.
da história que até
agora analisamos. Suas origens estão na década de 1930, e tem no teólogo Bernard
Häring uma de suas referências. Ele possuía um método de trabalho
interdisciplinar, procurava levar em consideração as diversas áreas do saber e, em
especial, as ciências humanas. A dimensão evangélica é considerada acadêmica e
ao mesmo tempo pastoral.

Um primeiro princípio da Moral Renovada é o cristocentrismo, que se


pressupõe sobre as implicações éticas de Jesus Cristo na Sagrada Escritura,
tendo em vista que Ele não se constitui apenas um modelo moral, mas um
novo sentido de vida. Um segundo princípio, de caráter antropológico, é o
personalismo, tendo em vista que o ser humano é uma pessoa inacabada, que
se constrói e se realiza como sujeito na relação com Deus, com os outros e com o
mundo, já que somos essencialmente liberdade.

O personalismo é uma corrente de pensamento que tem como


princípio primeiro de análise o ser humano. Uma moral pernonalista
é aquela que “considera os atos morais como da pessoa, valorizando
a responsabilidade e o compromisso como exercício da opção
fundamental interior”. É, antes de tudo, “uma moral da pessoa antes
que da lei” (SANCHES, 2004, p. 80).

Assim, a alteridade também constitui parte da Moral Renovada, uma vez que
a liberdade e responsabilidade constituem a autonomia da consciência, sendo
esta parte da categoria básica dos princípios morais e religiosos do sujeito ético,
como é apresentada pelo teólogo.

Para Häring (1999), a moral cristã não culmina no antropocentrismo, nem


no teocentrismo estranho ao mundo, e sim na união sobrenatural do homem com
Deus, no diálogo, na responsabilidade. Trata-se de obediência da fé, isto é, da
escuta da palavra de Deus. A ética da responsabilidade concretiza-se e comprova-
se na obediência e na escuta recíproca.
74
Capítulo 2 História da Moral Cristã

A perspectiva básica da teologia moral de Häring está na integração da atitude


religiosa e da atitude ética na existência cristã e na ética da responsabilidade
cristã. Sua reflexão moral é baseada na existência concreta da pessoa humana,
na responsabilidade e no amor. Para Häring (1999), a religião e a moral estão
intimamente interligadas. Existe uma profunda unidade e interpenetração entre
a vida religiosa pessoal e a vida moral. Assim, podemos afirmar que para o
movimento da Moral Renovada, a moral se fundamentava:

• Na Sagrada Escritura e que enfatiza a graça e a misericórdia de Deus;


• No diálogo com a pessoa humana de hoje e, ao mesmo tempo,
ecumênico;
• Na inculturação contínua e constante renovação;
• Na moral de cunho comunitário, não individualista, não perfeccionista,
mas de solidariedade salvífica;
• E, por fim, na moral que liberta a pessoa humana, não a domina nem a
oprime.

Atividade de Estudos:

1) Tendo em vista as características da Moral Renovada que


apresentamos há pouco, leia o texto a seguir e faça um esquema
sobre seus fundamentos.

• “A Sagrada Escritura é assumida como a alma de toda a Teologia.


Com isso, a Teologia Moral passa a se apoiar numa visão e
exposição histórico-salvífica aprofundada.
• Jesus Cristo é o centro da Teologia Moral, constituindo-se na
referência maior, cujo mistério orienta a vida moral em todas as
suas dimensões. Jesus Cristo, nova e eterna Aliança, encarna
a proposta salvífica de Deus e a resposta perfeita e total do
humano, pois Ele é a revelação plena do Pai e a realização plena
do humano.
• Fé e moral se incluem. A partir do seguimento de Jesus Cristo,
“recupera-se e repropõe-se o verdadeiro rosto da fé cristã,
que não é simplesmente um conjunto de proposições a serem
acolhidas e ratificadas com a mente. Trata-se, antes, de um
conhecimento existencial de Cristo, uma memória viva dos seus
mandamentos, uma verdade a ser vivida. Aliás, uma palavra só é
verdadeiramente acolhida quando se traduz em atos, quando é
posta em prática”.

75
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

• Uma visão integral ou unitária do ser humano é fundamental


para abrir o caminho e compreender melhor a grandeza do ser
humano. Esta visão funda-se na Sagrada Escritura, que concebe
o ser humano todo como uma unidade vivente. Deus nos solicita
por inteiro e não apenas parcialmente, assim como sua graça
nos envolve por inteiro. O ser humano é chamado ao amor e
ao dom de si na sua “unidade corpórea-espiritual”. Por isso, no
dizer do próprio Concílio Vaticano II, “não é lícito desprezar a vida
corporal”, pois o ser humano é “verdadeiramente uno”. Importante
mesmo é integrar as dimensões corporais, psicoativas, sociais e
espirituais.
• Instaura-se, assim, na Teologia Moral, um clima propício ao
crescimento, porque nos sentimos cativados por Jesus Cristo,
redescobrindo a maleabilidade do Amor e, consequentemente,
a força da graça e da misericórdia como realidades maiores do
que o pecado. Não se trata de dizer que agora as exigências são
menores, antes “trata-se, mais radicalmente, de aderir à própria
pessoa de Cristo, de compartilhar a sua vida e o seu destino, de
participar da sua obediência livre e amorosa à vontade do Pai”
(AGOSTINI, 2007, p. 48).

76
Capítulo 2 História da Moral Cristã

Algumas Considerações
A partir deste itinerário que percorremos, é importante salientarmos que a moral
cristã se constituiu em seu início um sinal de contradição social tanto no âmbito
do judaísmo quanto do Império Romano. Sua proposta, que unia a vida espiritual
e moral, foi uma verdadeira revolução no campo da moralidade, mas ao mesmo
tempo não foi aceita de forma ampla e generalizada pela sociedade de então.

A grande preocupação da Igreja nascente foi a pregação e a defesa destes


princípios. Os Padres da Igreja, principalmente Agostinho, buscaram fundamentar
a doutrina moral a partir da pessoa de Cristo e da necessidade de buscar ser a ele
semelhante, sendo isso possível apenas por meio da experiência da graça.

No período da Alta Idade Média, a casuística e a vivência a partir dos


penitenciais irão conduzir à vivência prática da moral, que voltará a ter uma
reflexão mais profunda no período da Escolástica. Neste, Tomás de Aquino fala
sobre a importância da vivência das virtudes, que eram adquiridas por meio da
vivência. Já Duns Scott salientava a importância da mística.

No período de transição para o Renascimento, Guilherme de Ockham


ressalta a importância da vivência da liberdade humana.

Fazendo frente a esta doutrina, a Escola da Salamanca retoma as


reflexões tomistas e discute questões importantes acerca dos direitos humanos.
Pensadores da Companhia de Jesus retomam a noção de natureza humana em
suas reflexões acerca da casuística, e entre os séculos XVI e XIX os sistemas
morais são estruturados.

No século XIX, com a Escola de Tübingen, inicia-se uma proposta de reflexão


da moral a partir de fundamentos outros daqueles que vinham sendo utilizados,
principalmente a casuística.

Por fim, o movimento da Moral Renovada apresenta o cristocentrismo, a


centralidade na Palavra de Deus e o personalismo como pressupostos para as
reflexões morais.

77
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Referências
AGOSTINHO. A correção e a graça. São Paulo: Paulus, 1999.

AGOSTINI, N. Teologia Moral Hoje. Para uma Catequese Renovada. In: CNBB.
Catequistas para a catequese com adultos: Processo formativo. 1. ed. São Paulo:
Paulus, 2007.

ARAÚJO, José Wiliam Corrêa de. A noção de consciência moral em Bernhard


Häring e sua contribuição à atual crise de valores. Rio de Janeiro: PUCRJ, 2007.

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição revista e ampliada. São


Paulo: Paulus, 2002.

BOFF, Clodovis. Teologia e prática. Petrópolis: Vozes, 1993.

COMPAGNONI, Francesco, et al. Dicionário de teologia moral. Trad. Lourenço


Costa. São Paulo: Paulus, 1997.

HÄRING, B. Minhas esperanças para a igreja. Aparecida: Santuário. São


Paulo: Paulus, 1999.

LACOSTE, J. Y. Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Loyola, 2004.

LIBÂNIO, J. B. Concílio Vaticano II. São Paulo: Loyola, 2005.

MOSER, Antonio. O pecado: do descrédito ao aprofundamento. Petrópolis:


Vozes, 1996.

MOSER, A. O pecado: do descrédito ao aprofundamento. Petrópolis: Vozes, 1996.

PIGHIN, Bruno Fabio. Os fundamentos da moral cristã: manual de ética


teológica. Trad. José Joaquim Sobral. São Paulo: Ave Maria, 2005.

RUTHES, Vanessa Roberta Massambani. Ensaios de espiritualidade cristã.


São Paulo: Ixtlan, 2015.

SALVODI, V. (Org.). Häring. Uma autobiografia à maneira de entrevista. São


Paulo: Paulinas, 1998.

SANCHES, Mário Antônio. Bioética ciência e transcendência: uma perspectiva


teológica. São Paulo: Loyola, 2004.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica vol. III. São Paulo: Loyola, 2009.

78
C APÍTULO 3
A Moral Revelada e a Moral Renovada

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

� Definir a moral revelada e a moral renovada.

� Compreender a estrutura do decálogo e como este é influenciado pela moral


revelada.

� Identificar os principais desafios da moral renovada.

� Diferenciar a moral revelada da moral renovada


TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

80
Capítulo 3 A Moral Revelada e a Moral Renovada

Contextualização
Até a primeira metade do século XX, predominou no Cristianismo uma
Teologia Moral que buscava, a partir de um pressuposto universal, dar um caráter
unitário à moral. Esta reflexão moral tinha como fundamento o aspecto ontológico
presente nas diversas concepções teológicas e que fundamentavam a doutrina
sobre a natureza da criação e da natureza humana.

Tendo como princípio o ordenamento colocado por Deus na realidade e a


lei que dele é evocada, os pensadores de então afirmavam que o conteúdo da
moral e seu fundamento primeiro eram revelados. Por este motivo, esta reflexão
teológica é comumente denominada de Moral Revelada.

Entretanto, diversos acontecimentos de ordem mundial – que se desdobraram


desde o século XVIII, mas que tiveram seu ápice na primeira metade do século
XX – e o surgimento de algumas correntes teológicas que possuíam métodos e
objetos de estudo diferenciados, influenciam as reflexões no campo da moral.
Esta, gradativamente, passa a fundamentar sua metodologia de análise também
a partir de aspectos antropológicos, cristológicos, e dos textos da Sagrada
Escritura. Este enfoque recebe o nome de Moral Renovada.

O histórico da construção destas reflexões sobre a moral, seus pressupostos


conceituais e desdobramentos serão o tema deste capítulo.

A Moral Revelada: Histórico e


Características
Podemos afirmar que moral revelada é uma concepção teológica, calcada
em aspectos ontológicos, acerca dos fundamentos do comportamento humano,
que tem como pressupostos elementos contidos no mistério da revelação divina.
Nesta concepção, desde a criação do mundo, Deus, ao ordenar todas as coisas
e dispô-las conforme sua vontade, inseriu na realidade uma lei cujo objetivo era
normatizar todas as criaturas a fim de que elas, e principalmente o ser humano,
concebido como o centro da criação, encontrassem sua plenitude.

81
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Área do conhecimento que se dedica ao estudo das


características fundamentais do ser, ou seja, das determinações
necessárias das quais não pode prescindir tendo em vista que
definem sua natureza.

A revelação divina é o processo por meio do qual Deus se dá a


conhecer aos seres humanos. Este teve seu início na própria criação,
perpassa a Aliança feita com Abraão, Moisés, os profetas e culmina
na plena revelação que acontece na pessoa de Jesus. Como afirma
a Carta aos Hebreus: “Muitas vezes e de diversos modos, outrora
falou Deus aos nossos pais pelos profetas. Ultimamente nos falou
por seu Filho, que constituiu herdeiro universal, pelo qual criou todas
as coisas” (Hb. 1, 1-2).

Desta lei, a qual chamamos de divina-natural, é que descendem os valores


que regem a vida de cada uma das pessoas e que devem reger também a vida
na sociedade. Nesta concepção é que a moral revelada foi calcada. Três grandes
teólogos nos ajudam a compreender a forma e o conteúdo que foram sendo dados
à moralidade tendo em vista esta ótica, são eles: São Paulo, Santo Agostinho e
Santo Tomás de Aquino.

Nos escritos paulinos, principalmente na Carta aos Romanos, encontramos


uma vasta abordagem sobre a questão da Lei, em especial a contraposição entre
a Lei apresentada no Antigo Testamento e aquela que existia, naturalmente, no
coração humano. Sendo o homem um ser que é sujeito de seu querer e agir,
busca o bem para si mesmo. Tal ação não tem outra finalidade senão conduzi-lo
à vida e à felicidade. Esta tendência nada mais é do que a expressão de uma Lei
que é universal a todo ser humano.

Quando então os gentios, não tendo Lei, fazem naturalmente


o que é prescrito pela Lei, eles, não tendo Lei, para si mesmos
são Lei; eles mostram a obra da Lei gravada em seus corações,
dando disto testemunho sua consciência e seus pensamentos
que alternadamente se acusam ou defendem (Rm. 2, 14).

Neste ponto, é interessante recordar uma passagem do Livro da Sabedoria


que alarga, de um viés antropológico, para um ecológico. A passagem, em seu
início, afirma: “Sim, naturalmente vãos foram todos os homens que ignoraram a
Deus e que, partindo dos bens visíveis, não foram capazes de conhecer Aquele
que é” (Sb. 13, 1).

82
Capítulo 3 A Moral Revelada e a Moral Renovada

Poder-se-ia questionar: como é possível tal dinâmica de conhecimento?


Ela só é possível se nós entendermos que há uma ordem estabelecida no plano
natural pelo Criador, a qual proporciona ao humano reconhecer gradativamente
a Deus. Tal ideia é utilizada por Paulo no seu discurso no Areópago, quando
estabelece diálogo com os filósofos, a fim de anunciar Cristo. O apóstolo afirma:

Se de um princípio único [Deus] fez todo o gênero humano


para habitar sobre a superfície da Terra, se fixou tempos
determinados e os limites do habitat dos homens, foi a
fim de procurarem a divindade e, se possível, atingi-la às
apalpadelas e encontrá-la. (At. 17, 26-27).

Como sabemos, Paulo foi o apóstolo dos gentios, ou seja, ele


desenvolveu sua missão nos territórios pagãos. Um dos lugares nos
quais realizou suas pregações foi na Grécia, chegando a discutir
com filósofos estoicos a doutrina cristã. Esta ocasião aconteceu no
Areópago, local de grande importância política e filosófica.

A partir desta dimensão, pode-se afirmar que a Lei, para Paulo, já Como uma ordem
universal que rege
não pode ser entendida somente em seu sentido veterotestamentário,
a todos os seres
mas sim em seu sentido natural: como uma ordem universal que rege a criados, inclusive o
todos os seres criados, inclusive o humano. humano.

Veterotestamentário indica uma realidade que tem relação direta


ao Antigo Testamento.

Esta mesma concepção permeia a doutrina de Santo Agostinho sobre a


moralidade. Tendo como princípio a noção de lei natural e a partir de sua doutrina
sobre a criação, o Bispo de Hipona afirma a existência de uma ordem universal
colocada na realidade pelo Criador. Esta é expressa pela existência das razões
seminais, que possuem em si um princípio de atividade e de desenvolvimento
que possibilita que tal ordem seja eternamente mantida.

83
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Figura 1 – Imagem da criação

Fonte: Disponível em: <www.google.com.br/


search?q=imagem+da+criação>. Acesso em: 26 set. 2017.

O afresco “A Criação de Adão”, de Michelangelo, por exemplo,


é uma demonstração, por meio da arte, do ordenamento universal
colocado por Deus na criação.

O conceito de razões seminais é central para compreendermos


a interpretação da teoria de Agostinho. Para ele, todas as coisas
foram feitas por Deus no momento da criação. Após este, nada mais
foi criado de novo, entretanto algumas realidades foram criadas de
forma completa, e outras em forma germinativa, as quais viriam a ser
completas no tempo devido. “Estas são as razões seminais: forças
germinativas criadas por Deus que, no tempo determinado, vêm a se
tornar aquilo para o qual foram designadas: Portanto, afirmou-se, então,
que a terra produziu de modo causal as ervas e as árvores, ou seja,
que recebeu a virtude de produzir. Pois nela, como que nas raízes dos
tempos, por assim dizer, tinham sido feitas as coisas que existiriam
durante os tempos futuros” (COSTA; BRANDÃO, 2007, p. 17).

84
Capítulo 3 A Moral Revelada e a Moral Renovada

No que se refere à moralidade, cabe salientar que ela possui É a lei interior que
como escopo a manutenção da reta ordem estabelecida por Deus na rege a vida moral da
realidade, pois esta se identifica com a bondade objetiva, ao passo que pessoa humana em
harmonia com as
o mal consiste na transgressão culposa, ou seja, a partir da escolha
normas eternas da
consciente da pessoa, desta mesma ordem. divina sabedoria.

Para Agostinho, a natureza, a vida e o cosmo são perfeitamente ordenados e


regidos pela lei natural, que se identifica com a vontade divina, que é a lei interior
que rege a vida moral da pessoa humana em harmonia com as normas eternas
da divina sabedoria.

A partir disto pode-se inferir que as normas da razão e da vontade remontam


a uma mesma fonte, podendo-se afirmar que a tarefa moral do homem se resume
na realização das normas eternas, pois “todas as prescrições particulares de
nossa consciência moral [...] descendem de uma única e mesma regra” (GILSON,
2006. p. 248).

Tal processo e atitude, fundamentados na racionalidade, pressupõem um ato


livre da vontade, que impulsionado pelo amor culmina na liberdade. O problema
central da moralidade em Agostinho é o da reta escolha das coisas a serem
amadas. Sendo a beatitude, ou seja, a felicidade o objeto último de nosso querer,
é preciso voltar-se para o Soberano Bem, para o próprio Deus.

Tal constatação nos permite inferir que os erros morais surgem a partir
do mau uso do livre-arbítrio. “A transgressão da lei divina, o pecado, teve por
consequência a rebelião do corpo contra a alma” (GILSON, 2006, p. 154), sendo
que o homem não possui, por si, forças próprias para suplantar esta dimensão. É
necessário a ele o auxílio divino, o auxílio premente da graça. “A iluminação divina
não se limita a nos prescrever regras de ação (...) ela nos dá também o meio de
as colocar em prática” (GILSON, 2006, p. 249).

Nesta perspectiva, a graça “é necessária ao livre-arbítrio do homem para


lutar eficazmente contra os assaltos da concupiscência desregrada pelo pecado
(...) sem [ela], pode-se conhecer a lei; com ela, pode-se, além disso, consumá-la”.
(GILSON, 2006, p. 155).

Entendendo esta postura, é interessante salientar que a virtude, para


Agostinho, reside na conformação à lei, e que o vício se constitui um movimento
da vontade que, “desviando-se das realidades inteligíveis e comuns a todos, volta-
se para os corpos para apropriar-se deles” (GILSON, 2006, p. 250).

A virtude tem como função regrar a vida humana: discernir o bem do mal
e evitar todo erro na escolha do que se deve fazer. Desta maneira, o homem

85
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

crente torna-se capaz de alcançar o bem, a partir de uma vida conforme a lei.
Assim, podemos constatar que Agostinho insere, na dinâmica da moralidade,
a necessidade da vivência segundo a lei natural, contudo, com uma diferença:
esta só pode ser vivida na liberdade, em uma liberdade que se vê necessitada da
graça para que o escopo da vida humana possa ser atingido: a manutenção da
reta ordem para o alcance da felicidade.

Tomás de Aquino, nesta mesma perspectiva, apesar de utilizar fundamentos


e métodos diferentes, também irá realizar sua análise moral a partir de uma
perspectiva de revelação tendo como pressuposto para o agir humano a lei natural.

Para este teólogo, tudo deve estar relacionado a Deus e compreendido a


partir desta relação, que é concebida de duas maneiras:

• Deus é o princípio de todas as criaturas, ou seja, tudo Dele deriva e tudo


Dele recebe o movimento e a ordem necessária;
• Deus é também a finalidade de toda a criação, tudo a Ele retorna para
exprimir sua grandeza, para louvá-lo e glorificá-lo.

Deduzimos desta questão que dois são os movimentos existentes: um


descendente (que deriva) e um ascendente (que retorna). Esta estrutura
demonstra a unidade fundamental da criação com o Criador.

Poderíamos questionar: tal estrutura não constitui uma ordem natural doada
à realidade pelo Criador à qual todas as criaturas estão submetidas? Bem, se
entendermos que esta ordem é a expressão da razão universal que a tudo rege,
podemos afirmar que sim.

No que tange ao ser humano, tal ordem é expressa no campo da moralidade.


Tendo por base uma passagem da Epístola aos Romanos, afirma: “Mesmo que
não tenham a lei escrita, têm, porém, a lei divina e natural, pela qual qualquer um
entende e é cônscio do que é bem e do que é mal” (TOMÁS DE AQUINO, 2005.
Sth. II, I, q. 91, a. 2).

A partir desta perspectiva, objeta os argumentos destacando que todos os


seres, indistintamente, estão sujeitos à Providência Divina e que, portanto, são
regulados pela lei eterna.

86
Capítulo 3 A Moral Revelada e a Moral Renovada

“Os pagãos, que não têm a lei, fazendo naturalmente as coisas que
são da lei, embora não tenham a lei, a si mesmos servem de lei; eles
mostram que o objeto da lei está gravado nos seus corações, dando-
lhes testemunho a sua consciência, bem como os seus raciocínios,
com os quais se acusam ou se escusam mutuamente. Isso aparecerá
claramente no dia em que, segundo o meu Evangelho, Deus julgar as
ações secretas dos homens, por Jesus Cristo” (Rm. 2, 14-16).

Ressalta que a criatura racional está de modo mais profundo ligada à


Providência, pois é participante da razão eterna.

E tal participação da lei eterna na criatura racional se chama lei


natural [...] a luz da razão natural, pela qual discernimos o que
é o bem e o mal, que pertence à lei natural, nada mais seja que
a impressão da luz divina em nós [...] a lei natural nada mais
é que a participação da lei eterna na criatura racional (TOMÁS
DE AQUINO, 2005. Sth. II, I, q. 91, a. 2).

Por esta dedução, podemos afirmar que a lei eterna, entendida como razão
divina, é a fonte da qual a lei natural recebe a sua validade: “[...] todas as leis,
enquanto participam da razão reta, nessa medida derivam da lei eterna” (TOMÁS
DE AQUINO, 2005. Sth. II, I, q. 93, a. 3). Tal compreensão nos permite concluir
que a lei eterna, para Tomás de Aquino, é a norma suprema dos atos humanos.

Ela tem como finalidade conduzir o homem à beatitude, não somente em seu
sentido individual, mas também comunitário, pois: “como toda parte se ordena ao
todo como o imperfeito ao perfeito e cada homem é parte da comunidade perfeita,
é necessário que a lei propriamente vise à ordem para a felicidade comum”
(TOMÁS DE AQUINO, 2005. Sth. II, I, q. 90, a. 2).

Assim, o bem de todos os seres criados, do qual o ser humano faz parte, é
resultado de sua escolha em agir conforme a ordem doada à realidade por Deus e
à lei por ele estabelecida na realidade.

87
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

O Decálogo como Expressão da


Moral Revelada
Como vimos, a moral compreendida a partir da revelação de Deus (a moral
revelada) tem como princípio e fundamento a lei divina e natural imputada pelo Criador
na realidade e que deve ser seguida pelo ser humano para que possa encontrar a
beatitude, a felicidade. Nesta perspectiva é que desejamos analisar o decálogo.

Dou como sugestão este estilo de imagem do decálogo que proporcione ao


estudante a dimensão de tempo histórico.

Figura 2 - Decálogo

Fonte: Disponível em: </www.google.com.br/


search?q=decálogo>. Acesso em: 26 set. 2017.

Nas várias alianças que Deus estabeleceu com seu povo, a do Sinai tem um
significado, no campo da moral, muito importante, tendo em vista a compreensão da
vivência segundo a Lei divina. A Moisés são repassadas as tábuas da lei, nelas foram
inscritos os dez mandamentos. Estes são o sinal do vínculo do povo com Deus, a
partir da vivência dos mesmos eles estarão demonstrando sua fidelidade e devoção.

“Então Deus pronunciou todas estas palavras: “Eu sou o Senhor


teu Deus, que te fez sair do Egito, da casa da servidão. Não terás
outros deuses diante de minha face. Não farás para ti escultura, nem
figura alguma do que está em cima, nos céus, ou embaixo, sobre a
terra, ou nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante delas
e não lhes prestarás culto. Eu sou o Senhor, teu Deus, um Deus
zeloso que vingo a iniquidade dos pais nos filhos, nos netos e nos

88
Capítulo 3 A Moral Revelada e a Moral Renovada

bisnetos daqueles que me odeiam, mas uso de misericórdia até a


milésima geração com aqueles que me amam e guardam os meus
mandamentos. “Não pronunciarás o nome de Javé, teu Deus, em
prova de falsidade, porque o Senhor não deixa impune aquele que
pronuncia o seu nome em favor do erro. Lembra-te de santificar o dia
de sábado. Trabalharás durante seis dias, e farás toda a tua obra.
Mas no sétimo dia, que é um repouso em honra do Senhor, teu Deus,
não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem
teu servo, nem tua serva, nem teu animal, nem o estrangeiro que
está dentro de teus muros. Porque em seis dias o Senhor fez o céu,
a terra, o mar e tudo o que contêm, e repousou no sétimo dia; e por
isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o consagrou. Honra teu
pai e tua mãe, para que teus dias se prolonguem sobre a terra que
te dá o Senhor, teu Deus. Não matarás. Não cometerás adultério.
Não furtarás. Não levantarás falso testemunho contra teu próximo.
Não cobiçarás a casa do teu próximo; não cobiçarás a mulher do teu
próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu
jumento, nem nada do que lhe pertence” (Êx. 20, 1-17).

Entretanto, ao mesmo tempo, ao analisarmos o conteúdo destes


mandamentos, percebemos que eles estão devidamente ordenados com a lei
divina imputada na realidade pelo Criador. Em outras palavras, as leis ali contidas
exprimem muitas verdades naturalmente acessíveis à razão humana. Assim,
vamos fazer o exercício de compreender um a um dos mandamentos:

• O primeiro Mandamento: Amar a Deus sobre todas as coisas. É o


mais importante e sintetiza os outros. Amar é fundamentalmente um ato
da vontade, que significa querer bem. E quem realmente ama a Deus,
deseja que Ele seja glorificado e obedecido por toda a Humanidade.
• O  segundo mandamento: Não tomar seu santo Nome em vão.  É mais
do que a blasfêmia e condena a idolatria, sendo o ídolo uma coisa “vã”.
Rejeita-se, assim, toda degeneração religiosa.
• O terceiro mandamento: Guardar domingos e festas. É o oásis espiritual
do culto, no meio do período ferial: através dele se entra no repouso
divino, a eternidade, e se descobre a harmonia com a criação e se exalta
a liberdade.
• O  quarto mandamento: Honrar pai e mãe é a essência da vida social.
É provado pela bênção que segue: no pai e na mãe, que são os
fundamentos da família, espelham-se todas as relações sociais.

89
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

• O  quinto mandamento: Não matar.  Celebra de modo positivo o direito


à vida. É claro que no Antigo Testamento existem exceções reguladas
pela lei do Talião ou pelo “anátema”, o massacre sagrado. Será Cristo
que recordará a radicalidade autêntica desse mandamento.
• O sexto mandamento: Não pecar contra a castidade. Sublinha o
direito ao matrimônio e propõe um uso humano e correto da sexualidade.
• O sétimo mandamento:  Não furtar. Não só preserva o direito à
propriedade, mas fala da liberdade pessoal.
• O  oitavo mandamento: Não levantar falsos testemunhos. A verdade
acima de tudo, principalmente em âmbito processual, fundamental em
todas as sociedades.
• O Nono mandamento: Não desejar a mulher do próximo. Há três formas
de cobiça ou concupiscências: a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a
soberba da vida. Conforme a tradição cristã, o nono mandamento proíbe
a cobiça da carne. A concupiscência é uma forma de desejo humano.
A teologia ensina que se trata de um apetite sensível que se opõe aos
ditames da razão. Provém da desobediência do primeiro pecado.
• O Décimo mandamento: Não cobiçar as coisas alheias. Conforme
a tradição cristã, o nono mandamento proíbe a cobiça da carne, uma
concupiscência que transforma as faculdades morais do homem e,
sem ser pecado em si mesma, força-o a cometê-lo. O homem é um ser
composto de espírito e carne e em seu interior desenrola-se uma luta.
Essa luta interior é uma consequência do pecado original.

Resumidamente, podemos afirmar que o Decálogo expressa


sistematicamente pela lei natural, que por sua vez também expressa a ordenação
divina da criatura racional para seu fim último, gravada na natureza humana e
percebida pela luz da razão.

A Transição da Moral Revelada Para


a Renovada: Concílio Vaticano II
A partir do século XVIII este modelo de moral, fundamentado no princípio
da revelação divina, começa a sofrer suas primeiras críticas. Estas advêm
principalmente nos movimentos filosóficos que questionam os princípios
ontológicos que são considerados como seu fundamento.

Uma mudança de Entretanto, no campo teológico, é em fins do século XIX, e início do


paradigma frente XX, que se inicia um processo de transição na reflexão moral. Um fato
à forma de análise ou evento considerado como central para este foi o Concílio Vaticano
e abordagem
teológica.

90
Capítulo 3 A Moral Revelada e a Moral Renovada

II. Este, como já vimos, objetivava, tendo em vista as necessidades dos tempos,
uma mudança de paradigma frente à forma de análise e abordagem teológica
(VIDAL, 1989, p. 26).

A palavra paradigma pode ser entendida como modelo, como


uma concepção de mundo, uma visão de realidade, uma forma de
compreender e interpretar intelectualmente o mundo. (STIGAR, 2016).

Devemos lembrar que o Concílio Vaticano II não elaborou um documento


específico para a Teologia Moral, entretanto nos deixou várias pistas de conduta
e moral cristã em vários documentos: Constituição Dogmática Dei Verbum,
o Decreto Optatam Totuis, a Declaração Dignitatis Humanae, a Constituição
Dogmática Lumen Gentium, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes. O conjunto
de assuntos relativos à moral contidos nestes documentos é que nos permite falar
em uma concepção moral a partir do Concílio.

Dentre os assuntos tratados, é importante salientar: os fundamentos da moral,


a dignidade da pessoa, questões relacionadas à vida (sua defesa e promoção),
ao matrimônio, à sexualidade. Pontuou também inúmeras preocupações e fez
diversas denúncias acerca da violação à vida humana, como as práticas de:
preconceito (em todas as suas formas), homicídios, genocídios, abortos, suicídios,
e tantas outras.

Este contexto reflexivo, no que tange ao campo da moral, gerou impactos


significativos que proporcionaram uma transição na forma de pensar e proposição
dos enunciados acerca da moralidade.

Para compreendermos quais são as principais mudanças


que ocorreram neste período, leia a seguir o quadro comparativo
que apresenta os principais temas tratados pela teologia moral
tanto na perspectiva da revelação, quanto na perspectiva desta
mudança de paradigma:

91
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Quadro 1 - Quadro analítico do processo de transição


da Moral Revelada para a Moral Renovada
Antes do Concílio Vaticano II Depois do Concílio Vaticano II
A compreensão de que a salvação da
A centralidade da reflexão moral estava na humanidade perpassa a historicidade da
noção de culpa. pessoa passa a ser o centro da reflexão
moral.
A centralidade da análise migra para a
dimensão da esperança, esta que surge
Havia uma certa centralidade na doutrina
a partir da ressureição de Cristo, que nos
acerca do pecado.
redime e nos dá a possibilidade da sal-
vação.
Há uma ampliação no conceito de sal-
A noção de salvação era identificada com vação, que não se resume a apenas uma
a de redenção eterna em uma realidade al- vida eterna extraterrena, mas a uma vida
heia à vida presente. Assim, a conduta das cristã autêntica, que se inicia a partir da
pessoas era passiva frente às realidades vivência dos valores do Evangelho. Esta
injustas do mundo. tem como fundamento o comprometimento
da pessoa frente às realidades injustas do
mundo.

Fonte: Cadernos de Teologia Pública – Instituto Humanitas Unisinos (2013, p. 07).

Neste contexto podemos afirmar que dois são os aspectos centrais nos quais
se fundamenta esta mudança de paradigma da reflexão da teologia moral: um
antropológico e outro cristológico.

O Concílio Vaticano II assume resolutamente a centralidade antropológica,


partindo da situação do homem no mundo moderno, responde à vocação do
homem com uma análise a partir da ótica cristã. Esta, por sua vez, termina
em reflexões sobre o mistério de Cristo, iluminador da realidade do homem. A
Antropologia abre-se à Cristologia como sua transcendência num diálogo aberto
entre o humanismo cristão e outros humanismos ou culturas. Cristo é considerado
o homem novo.

A perspectiva escatológica esteve presente no conteúdo dos grandes


documentos conciliares, buscando recolher e conciliar o essencial da renovação
e da reflexão levada a cabo durante quase um século, sendo fiel a uma renovada
consciência da natureza e da missão cristã. Salientamos que neste ponto
o principal aspecto a ser pontuado é o destaque dado à doutrina da salvação
(VIDAL, 1989, p. 34).

92
Capítulo 3 A Moral Revelada e a Moral Renovada

Apesar de o Concílio Vaticano II não tratar expressa e


formalmente de todos os temas que, em Teologia, se costumam
reservar à Teologia Moral, devemos dizer que contribuiu
decisivamente para a renovação desta disciplina. Todo o seu espírito
e feição pastoral constituem já veemente apelo à renovação. [...] o
Concílio realça sistematicamente as incidências vitais do mistério
cristão, sugere um novo estilo, mais vivo e querigmático, de
formulação da mensagem evangélica, e recomenda aos teólogos
a colaboração com outros cultores das demais ciências em ordem
à penetração e vivência mais profundas da verdade. No entanto, a
ordem expressa e as coordenadas elementares da renovação da
Teologia Moral e das restantes disciplinas filosóficas e teológicas,
consideradas indispensáveis para atualizada formação sacerdotal,
encontram-se no decreto Optatam Totius. Transcrevemos o texto
que se refere à Teologia Moral: “Ponha-se especial cuidado em
aperfeiçoar a Teologia Moral, cuja exposição científica, mais
alimentada pela Sagrada Escritura, deve revelar a grandeza da
vocação dos fiéis em Cristo e a sua obrigação de dar frutos na
caridade para a vida do mundo”. A Teologia Moral aparece-nos
assim como a parte da Teologia que tem por objeto e missão revelar
e propor cientificamente uma verdade e uma obrigação básicas da
economia cristã. A verdade é a grandeza da nossa vocação em Cristo;
a obrigação, consequente e inseparável, consiste em produzir frutos
na caridade para a vida do mundo. Neste objeto e missão destaca-
se mais a vocação que a lei e mais o dom gratuito que a exigência
onerosa. O referido texto do Concílio permite-nos ainda discernir os
predicados ou propriedades essenciais da Teologia Moral renovada.
Ou seja, para servir proficientemente o homem contemporâneo.

Fonte: Silva (1971, p. 281-282).

93
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

A Moral Renovada: Histórico e


Características
Segundo Vidal (1989, p. 25), “entre os frutos do Concílio Vaticano II, a
renovação da teologia moral é um dos maiores”. O próprio Decreto Optatam
Totius salienta este aspecto:

Tenha-se especial cuidado em aperfeiçoar a teologia moral,


cuja exposição científica, nutrida mais intensamente pela
doutrina da Sagrada Escritura, deverá mostrar a excelência da
vocação dos fiéis em Cristo e a sua obrigação de produzir frutos
na caridade para a vida do mundo (CONCÍLIO VATICANO II,
1986, 16).

Assim, logo após o Concílio Vaticano II, coube aos teólogos, em comunhão
com o Magistério da Igreja, o trabalho de sistematizar a área da Teologia nos
caminhos da renovação.

Segundo Agostini (2007), este propiciou que a Igreja prestasse atenção ao


tempo e ao espaço em que nos encontramos situados, na consciência de sermos,
como Igreja, um dom de Deus a serviço da humanidade, fazendo da coordenada
da historicidade uma referência importante; assim, a própria Teologia Moral busca
situar-se no tempo e no espaço para ser um suporte adequado ao ser humano
hoje, diante dos desafios e interrogações do momento presente.

Ela realiza isto na escuta atenta dos apelos de Deus nos


acontecimentos da história. Supera-se, assim, aquela visão que
achava que, no campo da moral, tudo já estava estabelecido
uma vez por todas, sem necessidade de renovação alguma.
Há, com certeza, valores de caráter universal e perene, que
marcam uma continuidade na Teologia Moral; há conjuntamente
uma renovação constante (AGOSTINI, 2007, p. 3).

Para Agostini (2007), assume-se uma visão integradora do ser humano e do


mundo, na qual o mundo é o lugar onde Deus manifesta o seu plano de amor, sendo
Jesus Cristo a manifestação plena deste amor, bem como da graça santificante.

Busca-se superar o dualismo, com sua visão negativa e pessimista em


relação ao ser humano, ao mundo, ao corpo e à sexualidade, que separou. Assim
sendo, o legalismo, no seu exagero, abre espaço para as categorias da aliança,
das bem-aventuranças e, especialmente, do Reino de Deus.

Deus é aquele que convida e não o que obriga, Jesus Cristo é


aquele que propõe e não o que impõe. Deixar-se cativar pelo
convite de Deus, pela proposta de Jesus Cristo, na força do
Espírito Santo, passa a ser o suporte de uma moral revestida
dentro de um espírito evangélico (AGOSTINI, 2007, p. 3).
94
Capítulo 3 A Moral Revelada e a Moral Renovada

Agostini (2007) destaca que devemos reconciliar o humano e o divino,


sendo o cristão um parceiro de Deus que, criado à Sua imagem, é chamado ao
“domínio” da criação, no cuidado, no respeito e na reta administração desta, sem
deixar-se dominar por nenhuma espécie de “idolatria”, reconhecendo sua relação
de historicidade e alteridade.

A moral que enfatizava por demais o “não pode”, “não deve” e


o “medo” dá lugar a uma moral segundo a qual o cristão “pode”
e “deve” participar dos projetos de Deus por um mundo novo,
sendo estes – aqui e agora – o lugar e o tempo da graça de
Deus para nós (AGOSTINI, 2007, p. 3).

É importante salientarmos que o princípio histórico é


fundamental para entendermos a atuação da Moral Renovada, pois:
“Segundo Moser, o pensamento ocidental, sobretudo a partir da
filosofia hegeliana, redescobre a dimensão histórica como um dos
fundamentos da condição humana (1996, p. 51). Nesta dimensão,
todos os processos da vida humana se encontram inseridos em
uma dinâmica do vir-a-ser, o humano não é somente aquilo que
é no presente, mas o que foi e o que será. O ser humano é ele
mesmo quando está em busca de sua própria identidade, que é
conquistada progressivamente. Entendido desta forma, o princípio
da historicidade insere-se na perspectiva da Revelação divina que
se manifesta por meio de um processo que culmina na encarnação
de Cristo, e que continua manifestando-se no presente. No que
tange à Teologia Moral, esta chave de análise incide diretamente em
sua fundamentação, pois segundo Moser, “a aceitação do princípio
de historicidade pressupõe a dessacralização das elaborações
teológicas” e a retomada de um “fato primordial tematizado nas
Escrituras: Deus nos ama e pede uma resposta de amor” (1996, p.
53). Uma outra implicação é a aceitação de uma Teologia Moral mais
dinâmica, pois não se configuraria como uma simples aplicação de
princípios, mas em uma busca renovada de depurar os preceitos
até então utilizados para que se possa desvelar o outro na sua
autenticidade. Uma terceira implicação que advém com o principio de
historicidade é a compreensão de que a Teologia Moral se insere na
história, ou seja, deve estar atenta e aberta aos sinais dos tempos.
Como afirma a Constituição Gaudium et Spes: “O povo de Deus
(...) esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências

95
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

e aspirações (...) quais os verdadeiros sinais da presença ou da


vontade de Deus” (GS. 11). Assim, para responder aos desafios do
momento presente é necessária uma reorientação temática e uma
mudança metodológica. Da moral do direito natural deve-se passar
para a moral da aliança e do seguimento, da moral dos princípios
abstratos para a moral do chamamento e da resposta, da moral
casuística de atos para a moral da opção fundamental e das atitudes

Fonte: Ruthes (2011, p. 70).

A partir desta perspectiva é que podemos salientar os aspectos a partir dos


quais a Moral Renovada é fundamentada:

• A Sagrada Escritura é assumida como a alma de toda a Teologia:


Com isso, a Teologia Moral passa a se apoiar numa visão e exposição
histórico-salvífica aprofundada.
• Jesus Cristo é o centro da Teologia Moral: constituindo-se na referência
maior, cujo mistério orienta a vida moral em todas as suas dimensões.
Jesus Cristo, nova e eterna Aliança, encarna a proposta salvífica de
Deus e a resposta perfeita e total do humano, pois Ele é a revelação
plena do Pai e a realização plena do humano.
• Fé e moral se incluem: A partir do seguimento de Jesus Cristo, “recupera-
se e repropõe-se o verdadeiro rosto da fé cristã, que não é simplesmente
um conjunto de proposições a serem acolhidas e ratificadas com a
mente. Trata-se, antes, de um conhecimento existencial de Cristo, uma
memória viva dos seus mandamentos, uma verdade a ser vivida. Aliás,
uma palavra só é verdadeiramente acolhida quando se traduz em atos,
quando é posta em prática.
• Uma visão integral ou unitária do ser humano: para abrir o caminho e
compreender melhor a grandeza do ser humano é fundamental ter uma
visão holística. Esta visão funda-se na Sagrada Escritura, que concebe
o ser humano todo como uma unidade vivente. Deus nos solicita por
inteiro e não apenas parcialmente, assim como sua graça nos envolve
por inteiro. O ser humano é chamado ao amor e ao dom de si na sua
“unidade corpórea-espiritual”.

Com esse contexto que temos, passamos a ter na Teologia Moral um


clima mais agradável e propício ao crescimento espiritual, até porque nos
sentimos cativados por Jesus Cristo, redescobrindo a maleabilidade do Amor e,
consequentemente, a força da graça e da misericórdia como realidades maiores
do que o pecado e a culpa, que acabam sendo superados.

96
Capítulo 3 A Moral Revelada e a Moral Renovada

Elementos como estes foram sendo refletidos, analisados, amadurecidos e


sendo reelaborados na Teologia Moral no pós-Vaticano II, até os dias de hoje, num
embate epistemológico acalorado entre os conservadores e os progressistas, na
teologia católica e na protestante.

Atividade de Estudos:

1) Uma perspectiva de análise que é característica da Moral


Renovada é a reflexão a partir de temáticas e não necessariamente
a produção de grandes tratados sobre a moral. Neste sentido, há
uma ampliação dos temas sobre a moral e, ao mesmo tempo,
uma mudança de perspectiva sobre a consideração temporal e
epistemológica acerca das reflexões produzidas.

O texto a seguir aprofunda esta questão. Assim, após


sua leitura, aponte quais são as mudanças (temporal e
epistemológica) que este novo tipo de reflexão fez emergir no
cenário da Teologia Moral:

A renovação da Teologia Moral não se tem concretizado em


sistematizações de conjunto, mas sim na elaboração e publicação
de obras mais ou menos vastas e profundas sobre temas
restritos e seletos, geralmente inspirados [...] nos acontecimentos
que vão reclamando a atenção dos teólogos. A via indutiva de
auscultação e resposta, facilitada por aperfeiçoados recursos
técnicos na comunicação social, tem sido preferida na tarefa
de responder às interpelações dos sinais dos tempos. Também
as línguas vulgares, admitidas como veículo credenciado na
comunicação do pensamento teológico, permitem alcançar
público cada vez mais vasto e, frequentemente, ávido de cultura.
Embora no ensino da Teologia se afirme e mantenha, por razões
metodológicas e pragmáticas, a diversidade das disciplinas,
a elaboração e exposição dos temas apontam a sua unidade,
pois em cada um deles se costuma projetar a luz proveniente
dos diversos lugares teológicos. Por sua vez, os dados das
outras ciências, sobretudo humanas e sociais, têm encontrado
peculiar acolhimento nas obras dos teólogos moralistas. Há
obras que primam pela profundidade científica e outras que
enveredam pelo caminho da divulgação. Em quase todas, em
vez da preocupação apologética e do estilo polêmico de tempos

97
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

atrás, sobressai o espírito conciliador e a abertura ecumênica [...]


Além da renovação em si mesma e de suas implicações gerais,
os temas preferidos dos teólogos moralistas poderão reduzir-
se aos seguintes: o homem chamado a seguir a Cristo, em
sua unidade substancial de corpo e alma (espírito encarnado),
como pessoa (ser individual e comunitário), em sua dignidade
e historicidade; a liberdade humana como dom e conquista,
como princípio de responsabilidade e perfectibilidade, em suas
limitações intrínsecas e suas manipulações extrínsecas; a
consciência como norma próxima e decisiva das opções morais,
capaz de formação e refratária a ingerências prepotentes, em
suas relações com a lei e a situação; o pecado como trágico não
ao apelo de Cristo, em sua dimensão vertical e horizontal, em
perspectiva bíblica e psicológica, e a conversão como alegre e
condizente sim à vocação cristã, em sua estrutura sacramental,
desde o Batismo e Penitência até à maturidade cristã pela vida
teologal e eucarística; a caridade como dom, vida e fruto do
Espírito Santo, como essência da vida cristã e alma de todas as
relações humanas em Cristo; a fé como adesão pessoal à Pessoa
de Cristo e ao Deus Pessoal por Ele revelado; a esperança
não só como prospecção das realidades futuras que nos estão
prometidas, mas também como antecipação e vivência dessas
realidades eternas nos compromissos temporais; a justiça como
medianeira da caridade e fator de progresso e de paz; a religião
como alvo da contestação hodierna, em sua essência imutável,
em suas expressões transitórias e em suas deformações mais
ou menos conscientes e degradantes; o trabalho em todo
o seu valor pessoal, comunitário e religioso; a sexualidade
como dom e virtude, como fator e índice de maturidade, como
dinamismo presente e atuante no discernimento e realização
das vocações específicas; a emancipação da mulher e a
complementaridade dos sexos na realização das tarefas sociais
e eclesiais; o matrimônio e a família em sua dignidade e missão;
o papel do amor no matrimônio e na família; a indissolubilidade
e a ruptura do matrimônio; o crescimento demográfico e a
regulação dos nascimentos; os direitos e os deveres cívicos
nas comunidades políticas evoluídas e os deveres destas
para com as subdesenvolvidas; a autoridade e a obediência
como modalidades de serviço comunitário; o progresso e a
paz; a colaboração internacional; a violência das estruturas,
da revolução e da repressão; a manipulação dos genes, a
eugenia, o aborto e a eutanásia; a transplantação de órgãos e
as experiências em seres humanos; o alcoolismo, as drogas e a

98
Capítulo 3 A Moral Revelada e a Moral Renovada

poluição; a psicoterapia, sobretudo pela psicanálise; a virgindade


e o celibato como caminhos de seguimento de Cristo e serviços
ao Reino e ao mundo; sentido e destinação universais dos bens
materiais; justiça e injustiça na posse e uso dos bens temporais;
o bem da cultura e os direitos e deveres com ela relacionados.
Adveio já inegável enriquecimento à Teologia Moral com o
estudo minucioso e atualizado destes temas e de muitos outros
neles implicados. Devemos, porém, advertir que nem todas as
conclusões são necessariamente normativas e de valor prático
imediato; muitas vezes, devem olhar-se apenas como resultados
de investigação e reflexão que nos permitem conhecer melhor
os diversos problemas morais e contarão certamente como
elementos de futuras soluções mais válidas e decisivas.

Fonte: Silva (1971, p. 300-302).

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Os Desafios Atuais da Moral


Renovada
Como vimos, o processo de transição da reflexão moral a partir da perspectiva
da revelação para aquele que denominamos de renovado – que se pressupõe em
uma dimensão antropológica, cristológica, escatológica e nos textos da Sagrada
Escritura – foi lento, tendo em vista que teve seu início no século XVIII, e ao mesmo
tempo recente, pois teve seu processo de efetivação após meados do século XX.

Desta forma, ao mesmo tempo que a Moral Renovada já se estabeleceu


como um paradigma de análise teológica, ela tem ainda muitos desafios atuais,

99
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

principalmente tendo em vista a necessidade de estabelecer interlocução com


diversas áreas da sociedade e do conhecimento. Nesta dimensão, apontamos
como alguns dos principais desafios da Moral Renovada:

• A centralidade da pessoa humana: Como vimos, um dos princípios


sobre os quais a Moral Renovada se fundamenta é o antropológico: a
importância de percebermos o ser humano a partir de sua totalidade.
Mas, ao falarmos de centralidade da pessoa, não significa que este
princípio seja mais importante ou deva em hierarquia ser considerado
como o primeiro para uma escala analítica. Mas, que a reflexão moral
deve ter em consideração uma visão ampla do ser humano e do contexto
em que está inserido, abandonando assim toda e qualquer influência
casuística e seu caráter legalista e, muitas vezes, a-histórico.
• Posicionamento frente às injustiças sociais: Fome, guerras, tráfico de
drogas, desemprego, corrupção, prostituição, tráfico de pessoas, enfim,
são inúmeras as misérias provocadas pelo ser humano. Certamente
não podemos, enquanto cristãos, deixarmos de nos posicionarmos
criticamente e repudiarmos essas injustiças, assim como fez Jesus Cristo
por inúmeras vezes. Neste sentido, o processo de reflexão de teologia
moral, a partir do princípio cristológico e escatológico, principalmente
tendo em vista a questão da salvação e da esperança, precisará
desempenhar um papel profético frente a estas realidades e semear o
Reino de Deus.
• O diálogo com a ciência: Nos últimos cem anos temos produzido mais
conhecimento e técnica do que nos últimos mil anos da humanidade. Isto
gera um impacto direto na vida dos seres humanos. Necessariamente
deve haver uma reflexão moral sobre estes impactos, principalmente tendo
em vista que este conhecimento tem a possibilidade de manipular a vida.
Essa reflexão caminha juntamente com a bioética, procurando promover
uma reflexão humanizada nas relações entre biotecnociências e pessoa.
• O diálogo inter-religioso: Uma das temáticas emergentes na atual
sociedade é a questão do diálogo inter-religioso, dada a necessidade
da paz mundial que, segundo Hans Kung, só será possível se houver
paz nas religiões, e essa paz, por sua vez, começa com um princípio
básico, que é o diálogo. A demanda aumenta com o processo de
globalização, que aumentou a violência entre as culturas, violando suas
identidades. Outro aspecto que demanda a necessidade de um diálogo
inter-religioso é o aumento do fundamentalismo religioso, que vem
crescendo rapidamente no interior de algumas denominações religiosas.
Assim sendo, precisamos resgatar a paz entre as culturas e tradições
religiosas, que, por sua vez, só será possível com o diálogo.

100
Capítulo 3 A Moral Revelada e a Moral Renovada

Atividade de Estudos:

1) Neste capítulo procuramos estudar sobre a Moral Revelada e a


Moral Renovada, numa perspectiva histórica e teológica. Para
tal, utilizamos alguns conceitos, academicamente chamados de
epistemologias, que são, na realidade, olhares críticos sobre a
referida temática. No artigo que indicamos a seguir também existe
uma epistemologia, ou seja, um olhar crítico sobre o tema escolhido.

Leia atenciosamente o artigo “Contexto e Desenvolvimento


Histórico do Concílio Vaticano II” e apresente uma resenha sobre
a quarta parte do Concílio Vaticano II, que na realidade contempla
os encaminhamentos para o mundo atual. Artigo disponível em:
<http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-content/
uploads/2009/05/contexto_desenvolvimento.pdf>.
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101
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Algumas Considerações
Sabemos que a presente temática de estudo é ampla e complexa, precisando
assim de mais tempo e de espaço para reflexão e pesquisa. Nesta perspectiva, o
presente material se coloca na condição de introdução ao referido tema de Moral
Revelada e Moral Renovada.

Procuramos apresentar neste capítulo alguns conceitos de Moral


Revelada e Moral Renovada, bem como diferenciá-las. Num segundo momento
procuramos estudar a estrutura do decálogo, a fim de compreender como este
foi e é influenciado pela Moral Revelada. Na sequência, procuramos interpretar o
Decálogo à luz da racionalidade, ou seja, à luz da Moral Revelada, tendo como
pano de fundo as influências do Concílio Vaticano II. Por fim, buscamos identificar
os principais desafios da Moral Renovada no mundo atual.

Esperamos que com este trabalho possamos ter contribuído de alguma forma
positiva para o processo de formação dos leigos, religiosos, pastores, presentes e
atuantes na Igreja e no Reino de Deus.

Referências
AGOSTINI, Nilo. Teologia Moral Hoje: Moral Renovada para uma Catequese
Renovada. CNBB - Catequistas para a catequese com adultos: Processo
formativo. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2007.

CODINA, Victor. Há 50 anos houve um concílio... significado do Vaticano II.


Cadernos de Teologia Pública, Instituto Humanitas Unisinos: São Leopoldo, 2013.

COMPAGNONI, Francesco, et al. Dicionário de Teologia Moral. Trad. Lourenço


Costa. São Paulo: Paulus, 1997.

CONCÍLIO VATICANO II. Decreto Optatam Totius. Petrópolis: Vozes, 1986.

COSTA, Marcos Roberto Nunes; BRANDÃO, Ricardo Evangelista. A Teoria da


Criação segundo Santo Agostinho. Revista Ágora Filosófica. v. 7., n. 1. 2007.

DEMMER, Klaus. Introdução à Teologia Moral. São Paulo, Edições Loyola,


1999.

GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Trad. Cristiane


Negreiros. São Paulo: Paulus, 2006.

102
Capítulo 3 A Moral Revelada e a Moral Renovada

MOSER, Antônio. Teologia Moral: impasses e alternativas. 3. ed. Petrópolis:


Vozes, 1996.

PIGHIN, Bruno Fabio. Os fundamentos da Moral Cristã: manual de ética


teológica. Trad. José Joaquim Sobral. São Paulo: Ave Maria, 2005.

SILVA, Antonio Pereira da. Teologia Moral em Renovação. Revista Didaskalia. v.


1., n. 2. 1971.

STIGAR, Robson. A política nacional de humanização como novo paradigma de


gestão nos processos de saúde. Revista Gestão & Saúde, v. 14, n. 1, p. 22–30,
2016.

VIDAL, Marciano. Caminhos para a ética cristã. Trad. Antonio Silva. Aparecida:
Santuário, 1989.

______. Ética Teológica: Conceitos Fundamentais. Trad. Jaime Clasen.


Petrópolis: Vozes, 1999.

______. Novos Caminhos: da crise moral à moral crítica. Trad. Isabel Fontes
Leal Ferreira. São Paulo: Paulinas, 1978.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Vol. 4. Trad. Carlos-Josaphat de Oliveira.


São Paulo: Loyola, 2005.

103
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

104
C APÍTULO 4
A Lei Moral

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

Compreender como a lei natural influencia a constituição da moral cristã.


Esclarecer quais são as bases conceituais que fundamentam a lei natural.


Analisar a forma como a lei natural é utilizada para pressupor conceitos e



doutrinas da moral cristã.
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

106
Capítulo 4 A Lei Moral

Contextualização
No âmbito da Teologia Moral, a temática da lei se constiti deveras central.
Isto se deve à estrutura própria do processo de constituição da reflexão moral.

No Antigo Testamento, a estruturação moral estava fundamentada em


regras bem estabelecidas, no Novo Testamento este processo passa por uma
reinterpretação, e a partir de Cristo e de sua mensagem vamos encontrar um
novo parâmetro para a Lei. Em Paulo, vamos compreender que esta mesma lei
presente desde a primeira aliança não é heterônoma, mas sim parte da própria
natureza do ser humano.

Sob esta ótica, vamos ainda aprofundar o que os teólogos posteriores


refletiram sobre a lei moral e suas implicações na vida humana.

A Lei Moral: Conceitos e Diferentes


Fundamentos
Quando abordamos a questão do conceito de lei é importante salientarmos
que este é próprio do período do helenismo, quando da tradução da Sagrada
Escritura para o grego, a chamada Septuaginta.

O helenismo é o período que se refere “À influência que a


cultura grega passou a ter no Oriente Próximo (Síria, Egito, Palestina,
chegando até a Mesopotâmia) após a morte de Alexandre (323 a.C.)
e em consequência de suas conquistas” (JAPIASSÚ; MARCONDES,
2006, p. 129).

A Septuaginta foi a primeira tradução grega do Antigo Testamento


realizada por 72 tradutores independentes, levando portanto, este
nome (LACOSTE, 2004, p. 1.752).

107
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Nesta o termo hebraico torah, que significa ensinamento, é substituído pelo


grego nomos, que indicará lei. Contudo, os dois termos não são sinônimos, por
este motivo vamos analisar ambos separadamente, tendo em vista os contextos
do Antigo e Novo Testamento.

Segundo Stigar e Ruthes (2014), torah tradicionalmente é traduzida como


ensinamento. Entretanto, este não deve ser entendido apenas como repasse do
que é certo ou errado, mas “visa indicar a direção para a qual se deve caminhar,
[...] a sua finalidade é conduzir o ser humano no caminho reto da vida” (STIGAR;
RUTHES, 2014, p. 110). Há necessariamente uma conexão entre o moral e o
espiritual, que faz parte do contexto do povo de Israel.

Já no Novo Testamento, o termo nomos será utilizado algumas vezes nos


Evangelhos, principalmente por Paulo, e segundo Pighin (2005), ele possui os
seguintes significados:

• Lei civil.
• Lei mosaica escrita nos livros do Antigo Testamento.
• Degeneração da lei mosaica em um sistema ético-normativo suprimido
por Cristo.
• Intervenções históricas de Deus que o homem deve conhecer e acolher
como normativas para sua vida (PIGHIN, 2005, p. 233).

Os diversos teólogos da tradição cristã versaram sobre a questão da lei moral


tendo como fundamento a Sagrada Escritura. Em especial, os primeiros padres
da Igreja salientaram a representatividade que a lei moral fazia da vontade de
Deus para o ser humano, no que diz respeito ao seu comportamento e aos seus
principais deveres. A entendida, como uma obra da Sabedoria divina, que, revelada
por Deus, tem a sua razão de ser na dignidade da pessoa humana; pois somente
esta é imagem e semelhança do seu Criador, está destinada à vida eterna.

“Apenas o homem, entre todos os seres vivos, pode gabar-se de


ter sido digno de receber de Deus uma lei. Animal dotado de razão,
capaz de entendimento e discernimento, regulará a sua conduta
dispondo de liberdade e de razão, na submissão àquele que tudo lhe
confiou” (CIC, 1951).

108
Capítulo 4 A Lei Moral

Santo Agostinho, referência à lei moral a partir da ordem inerente ao amor


de Deus, tem como pressuposto o jusnaturalismo. Esta afirma que as regras que
norteiam a vida humana e em sociedade têm seus fundamentos nas leis inerentes
à natureza humana, e não no contrato.

Neste sentido, ele apresenta duas perspectivas a partir das quais podemos
entender a lei moral: a lei eterna e a humana.

• Lei eterna: Que está inscrita na natureza e no próprio coração humano.


Entretanto, tendo em vista o pecado original, o homem não consegue ter
acesso direto à mesma, a não ser por meio de um processo gradativo
(realizado através do livre-arbítrio) que se dá por meio da fé.
• Lei humana: Que foi elaborada pelo ser humano para reger a vida
em sociedade. Para Agostinho, a partir do livre-arbítrio, o fundamento
destas leis deveria ser a fé, para que elas tivessem uma orientação
minimamente justa, visando assim a paz social.

Neste contexto, Agostinho salienta a importância de se refletir sobre a


autonomia humana. Assim, pontuando que o ser humano é uma unidade de corpo
e alma, na qual a razão possui uma superioridade em relação ao corpo, ele é
também responsável por suas escolhas. Segundo Reegen (2007), nisto pode
residir a causa da existência do mal moral. Pois, sendo possuidor do livre-arbítrio,
o ser humano pode se exceder em alguma ação, deixando-se levar pelas paixões
em detrimento da razão, infringindo desta maneira não apenas a lei humana, mas
também a lei divina.

Outro grande pensador que versou sobre a lei moral foi Tomás de Aquino.
Em sua Summa Theologica, ele a apresenta como uma norma de vida, que tem
a finalidade de conduzir os seres humanos à bem-aventurança. Fundamentando
sua análise na primazia da razão, afirma que esta se constitui o princípio da ação
humana e, consequentemente, a lei que regula as suas atividades é regulada
pela razão. Assim, os atos serão bons ou maus, certos ou errados, se estiverem
conforme a razão divina e humana, fonte de sua perfeição e bondade.

A lei eterna, esclarece São Tomás, se constitui na “razão ou plano da divina


sabedoria, enquanto dirige todos os atos e movimentos das criaturas" (TOMÁS DE
AQUINO, 2005. I-II. q. 93, a 1). Trata-se do plano de Deus, para o governo de suas
criaturas. Para São Tomás, em cada criatura encontramos uma causalidade de sua
natureza, consequência de um lugar designado por Deus em seu projeto divino.

109
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

A causalidade deve ser entendida como a lei eterna que é causa


de todas as demais leis, e é expressa por diversas formas:

• Causalidade eficiente: ou seja, todas as leis têm na Lei Eterna


sua primeira moção, só podendo regular sua própria matéria
enquanto movida por ela. Ademais, depende da Lei Eterna toda
autoridade que vem de Deus.
• Causa exemplar: Essa ordem se traduz no fato de que a verdade
e a justiça que devem regular toda a lei eterna seu princípio de
regulação.
• Causalidade final: todos os fins especificados pela lei estão
ordenados ao bem comum por essência, que é o objeto próprio
da Lei Eterna.

As concepções de Agostinho e Tomas de Aquino – mantidas as devidas


particularidades – nos oferecem algumas características essenciais do que vem a
ser a lei moral:

• Ela deve ser entendida como um conjunto orgânico e


harmonioso dos princípios objetivos e obrigatórios do agir
moral.
• Ela é a manifestação dos valores morais inatos na natureza
humana e na revelação.
• Ela é parte integrante da consciência humana e auxilia no
processo de escolha e discernimento frente aos fatos e
oportunidades (PIGHIN, 2005, p. 237).

As reflexões teológicas realizadas a partir da segunda metade do século


XX buscaram salientar alguns aspectos complementares a estes três pontos
já ressaltados. Em primeiro posicionam o valor central e absoluto da caridade
como um “princípio meta-ético, ou seja, proveniente de um dom de Deus que dá
sentido a toda a vida”. Salientam também o aspecto positivo da lei moral, que
não se constitui apenas um conjunto de preceitos, mas sim, possui uma relação
intrínseca com o espírito dado ao coração humano que o impele a viver conforme
a lei contida em seu coração.

110
Capítulo 4 A Lei Moral

Neste sentido, podemos afirmar que as principais funções da lei moral em


favor da pessoa humana e da sociedade são:

• A educação para a responsabilidade, por meio do exercício


da liberdade.
• Descobrir o chamado de Deus, fruto do discernimento,
permitindo responder-lhe por meio de suas escolhas.
• Ser instrumento de crescimento, por meio do qual se
encontram os valores objetivos do sentido da vida.
• Ser instrumento de proteção da pessoa, que supera os
perigos da degradação da dignidade (PIGHIN, 2004, p. 239).

É importante trazermos a discussão de uma movimentação do


século XX que, no propósito de discutir a lei moral, acabou propondo
a eliminação metodológica desta e a inserção da ‘ética da situação’,
na qual as categorias de análise deixam de ser preestabelecidas e
passam a ser analisadas caso a caso levando-se em consideração
aspectos históricos, sociais, culturais, de gênero, dentre outros.
Salientamos que tal visão é inaceitável do ponto de vista da moral
cristã, tendo em vista os seguintes aspectos:

1) As instâncias morais foram subordinadas às necessidades


psicossociais do sujeito;
2) Reduziu-se a moral à intenção subjetiva pela sua natureza
extremamente mutável, descuidando os valores objetivos e
universais intrínsecos à lei moral revelada e natural;
3) Foi relativizada a mensagem moral cristã, filtrando-a através da
história e subordinando-a ao costume da sociedade.

Fontre: Pighin (2004, p. 237).

A Lei Natural: Conceituação e


Caraterísticas
Como vimos no item anterior, a lei moral tem sua referência na ordem que
Deus colocou em toda a realidade criada a fim de dispô-la conforme sua vontade.
Tal referência foi por nós também salientada no capítulo três, ao analisarmos os
fundamentos da Moral Revelada que afirmam a existência de uma lei natural. Esta
tinha como objetivo normatizar a existência para que se encontre a plenitude.

111
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Mas, como podemos conceituar a lei natural? Em primeiro lugar, é importante


pontuarmos que este é um conceito, como veremos, que foi sendo construído
historicamente e que recebeu diferentes conotações. Para o enfoque que
desejamos dar em nossas análises, vamos nos apropriar do pensamento de Leão
XIII, que afirma:

A lei natural se acha escrita e gravada na alma de todos e de


cada um dos [seres humanos], porque ela é a razão humana
ordenando fazer o bem e proibindo pecar. [...] Mas esta
prescrição da razão não poderia ter força de lei se não fosse a
voz e o intérprete de uma razão mais alta, à qual nosso espírito
e nossa liberdade devem submeter-se. (LEÃO XIII, 1888. 6).

Neste sentido, ao mesmo tempo em que ela é única, e permeia a vida


humana buscando lhe dar um ordenamento, ela é múltipla, pois possui elementos
secundários que deste decorrem. Segundo Tomás de Aquino, o elemento de
unicidade, que é fundamental para entender a lei natural, é o imperativo de
que todas as pessoas percebem em si o chamado a buscar viver o que é certo,
bom e justo. Dando sentido à sua vida a partir destas realidades, o ser humano
naturalmente evita o que é errado, mau e injusto (TOMÁS DE AQUINO, 2005. Sth.
q. 94. a. 2).

Deste imperativo descende um segundo elemento que pode ser verificado de


forma materializada, pois o certo, o bom e o justo, apesar das diferenças culturais
e históricas, podem ser verificados nos diferentes tempos e nos diferentes povos.
Os valores morais como amor, verdade e justiça, por exemplo, são considerados
como universais. Nesta mesma ótica, a partir da dimensão física, há a percepção
da necessidade de se respeitar as leis biológicas e cosmológicas para o bem da
humanidade. Um último elemento apresentado por São Tomás está no âmbito
comportamental, no que tange às intenções subjetivas e à natureza metafísica
dos atos humanos, ou seja, seu significado mais profundo (TOMÁS DE AQUINO,
2005. Sth. q. 94. a. 2).

Assim, tendo em vista estes elementos, podemos afirmar que as duas


características da lei natural são a universalidade e a imutabilidade, tendo em
vista que seus preceitos permanecem substancialmente e historicamente válidos
e se estendem a todos os seres humanos.

112
Capítulo 4 A Lei Moral

A lei ‘divina e natural’ mostra ao homem o caminho a seguir para


praticar o bem e atingir o seu fim. A lei natural enuncia os preceitos
primários e essenciais que regem a vida moral. Tem como fulcro a
aspiração e a submissão a Deus, fonte e juiz de todo o bem, assim
como o sentido do outro como igual a si mesmo. Quanto aos seus
preceitos principais, está expressa no Decálogo. Esta lei é chamada
natural, não em relação à natureza dos seres irracionais, mas porque
a razão que a promulga é própria da natureza humana:

‘Onde estão, pois, inscritas [estas regras] senão no livro


daquela luz que se chama a verdade? É lá que está
escrita toda a lei justa, e é de lá que ela passa para
o coração do homem que pratica a justiça; não que
imigre para ele, mas porque nele imprime a sua marca,
à maneira de um selo que do sinete passa para a cera
sem, contudo, deixar o sinete’.
A lei natural ‘não é senão a luz da inteligência posta em
nós por Deus; por ela, nós conhecemos o que se deve
fazer e o que se deve evitar. Esta luz ou esta lei, deu-a
Deus ao homem na criação’.

Presente no coração de cada homem e estabelecida pela razão,


a lei natural é universal  nos seus preceitos, e a sua autoridade
estende-se a todos os homens. Ela exprime a dignidade da pessoa e
determina a base dos seus deveres e direitos fundamentais:

‘Existe, sem dúvida, uma verdadeira lei, que é a reta


razão; ela é, conforme a natureza, comum a todos os
homens; é imutável e eterna; as suas ordens apelam
para o dever; as suas proibições desviam da falta. [...]
É um sacrilégio substituí-la por uma lei contrária: e é
interdito deixar de cumprir uma só que seja das suas
disposições; quanto a ab-rogá-la inteiramente, ninguém
o pode fazer’.

A aplicação da lei natural varia muito; pode requerer uma


reflexão adaptada à multiplicidade das condições de vida, segundo
os lugares, as épocas e as circunstâncias. Todavia, na diversidade
das culturas, a lei natural permanece como regra a unir os homens
entre si, impondo-lhes, para além das diferenças inevitáveis,
princípios comuns.

A lei natural é imutável e permanente através das variações


da história. Subsiste sob o fluxo das ideias e dos costumes e
está na base do respectivo progresso. As regras que a traduzem

113
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

permanecem substancialmente válidas. Mesmo que se lhe neguem


até os princípios, não é possível destruí-la nem tirá-la do coração
do homem; ela ressurge sempre na vida dos indivíduos e das
sociedades: ‘Não há dúvida de que o roubo é punido pela vossa Lei,
Senhor, e pela lei que está escrita no coração do homem e que nem
a própria iniquidade consegue apagar’.

Obra excelente do Criador, a lei natural fornece os


fundamentos sólidos sobre os quais o homem pode construir o
edifício das regras morais que hão de orientar as suas opções.
Também nela assenta a base moral indispensável para a
construção da comunidade dos homens”.

Fonte: Catecismo da Igreja Católica (2000, 1955-1958).

As Fontes da lei Natural


Ao abordarmos a moral por meio da lei natural é importante qualificarmos a
forma como compreendemos o conceito de natureza. Entendida em um primeiro
momento de forma muito ampla como “conjunto de propriedades que definem
um ser” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p. 198), a natureza pode também ter
definições mais restritas que denotem contrariedades entre si. Por este motivo,
dedicamos esta seção a esclarecer e aprofundar o sentido a partir do qual
utilizamos o conceito de natureza, para assim compreendermos as fontes, os
pressupostos da lei natural.

Assim, desenvolvemos nossa argumentação a partir do conceito de natureza
humana, tendo em vista que nosso objeto de estudo é a moral. Definir este tipo
de natureza é algo complexo, aspirando os diversos aspectos que a compõem.
Em especial, nós optamos por abordar cinco destes aspectos que consideramos
como essenciais também para o processo de compreensão da lei natural.

Capacidade racional O primeiro deles é a capacidade racional da pessoa de escolher o


da pessoa de
bem e evitar o mal. O ser humano, no processo de discernimento, não
escolher o bem e
evitar o mal. age segundo critérios subjetivos, mas por meio da razão utiliza critérios
objetivos para realizar suas escolhas. Sem estes critérios não haveria
a possibilidade de nenhum discernimento válido, entretanto não são eles que
determinam a ação, eles apenas são utilizados como parâmetros para o processo

114
Capítulo 4 A Lei Moral

de julgamento. Destacamos que estes mesmos critérios não são positivos, no


sentido de impostos, ou ainda heterônomos, eles estão, sim, inscritos na natureza
humana, que é racional e que deles faz uso de forma autônoma (TOMÁS DE
AQUINO, 2005. Sth. I II. q. 91. a. 2).

Modelada sobre a de Deus, a liberdade do homem não só não é


negada pela sua obediência à lei divina, mas apenas mediante essa
obediência, ela permanece na verdade e é conforme à dignidade do
homem, como diz claramente o Concílio: ‘A dignidade do homem
exige que ele proceda segundo a própria consciência e por livre
adesão, ou seja, movido e induzido pessoalmente desde dentro e não
levado por cegos impulsos interiores ou por mera coação externa. O
homem atinge esta dignidade quando, libertando-se da escravidão
das paixões, tende para o fim pela livre escolha do bem e procura a
sério e com diligente iniciativa os meios convenientes’.

Na sua inclinação para Deus, para Aquele que só é bom, o


homem deve livremente fazer o bem e evitar o mal. Mas, para isso,
o homem deve poder distinguir o bem do mal. Fá-lo, antes de mais,
graças à luz da razão natural, reflexo no homem do esplendor da
face de Deus. Neste sentido, escreve S. Tomás ao comentar um
versículo do Salmo 4: “Depois de ter dito: Oferecei sacrifícios de
justiça (Sal 4, 6), como se alguns lhe pedissem quais são as obras
da justiça, o Salmista acrescenta: Muitos dizem: quem nos fará ver o
bem? E, respondendo à pergunta, diz: A luz da Vossa face, Senhor,
foi impressa em nós. Como se quisesse dizer que a luz da razão
natural, pela qual distinguimos o bem do mal — naquilo que é da
competência da lei natural —, nada mais é senão um vestígio da luz
divina em nós’. Disto se deduz também o motivo pelo qual esta lei é
chamada lei natural: chama-se assim, não por referência à natureza
dos seres irracionais, mas porque a razão, que a dita, é própria da
natureza humana. 

O Concílio Vaticano II lembra que ‘a suprema norma da vida


humana é a própria lei divina, objetiva e universal, com a qual Deus,
no desígnio da sua sabedoria e amor, ordena, dirige e governa o
universo inteiro e os caminhos da comunidade humana. Desta sua
lei, Deus torna o homem participante, de modo que este, segundo a
suave disposição da Divina Providência, possa conhecer cada vez
mais a verdade imutável’.

115
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

O Concílio remete para a doutrina clássica sobre a lei eterna


de Deus. S. Agostinho define-a como ‘a razão ou a vontade de Deus
que manda observar a ordem natural e proíbe alterá-la’; S. Tomás
identifica-a com «a razão da divina sabedoria que conduz tudo ao
devido fim’. E a sabedoria de Deus é providência, amor que cuida
com diligência. É o próprio Deus, portanto, que ama e cuida, no
sentido mais literal e fundamental, de toda a criação (cf. Sab  7,
22; 8, 11). Mas aos homens, Deus provê de um modo diferente do
usado com os seres que não são pessoas: não «de fora», através
das leis da natureza física, mas «de dentro», mediante a razão que,
conhecendo pela luz natural a lei eterna de Deus, está, por isso
mesmo, em condições de indicar ao homem a justa direção do seu
livre agir. Deste modo, Deus chama o homem a participar da Sua
providência, querendo dirigir o mundo, por meio do próprio homem,
ou seja, através do seu cuidado consciencioso e responsável: não
só o mundo das coisas, mas também o das pessoas humanas.
Neste contexto, se situa a lei natural como a expressão humana da
lei eterna de Deus: ‘Em relação às outras criaturas — escreve S.
Tomás —, a criatura racional está sujeita de um modo mais excelente
à divina providência, enquanto ela também se torna participante
da providência ao cuidar de si própria e dos outros. Por isso, ela
participa da razão eterna, graças à qual tem uma inclinação natural
para o ato e o fim devidos; esta participação da lei eterna na criatura
racional é chamada lei natural.

Fonte: João Paulo II (1993, 42-43).

Uma segunda fonte ou pressuposto da lei natural é a capacidade racional


da humanidade, e não somente de cada pessoa individualmente, de discernir
entre o bem e o mal. A razão individual não consegue realizar um processo de
discernimento moral sem intermediação de elementos que são próprios do grupo
social. Dentre estes elementos estão a linguagem, aspectos de ordem física,
econômica, social e tantos outros que contribuem no processo de escolha do
indivíduo. Em tal dimensão, os aspectos não são contraditórios com o primeiro, mas
complementares, tendo em vista que no âmbito comunitário a lei natural é expressa
(ou pelo menos deveria) por meio das regras de convivência e legislações.

O terceiro aspecto a ser considerado é o de uma natureza comum a


todos os seres humanos. Este é um elemento estruturante no processo de
reflexão da moral, pois todas as pessoas têm a mesma dignidade em pertencer à

116
Capítulo 4 A Lei Moral

comunidade humana e, enquanto tal, possuem os mesmos direitos e são incluídas


no processo reflexivo por meio dos mesmos critérios. Uma vez reconhecida a
existência de um elemento comum, isto garante, por exemplo, a possibilidade de
uma reflexão ética a partir do prisma do consenso, as questões de ordem seriam
pensadas a partir da ótica da justiça e não da sanção.

Um quarto aspecto a ser ressaltado como fonte ou pressuposto da lei


natural é a natureza física do ser humano. Esta não deve ser entendida apenas
como a dimensão físico-biológica, mas a partir do conceito de corporeidade.

A corporeidade deve ser entendida como a forma como o ser


humano utiliza seu corpo – contém em si os aspectos fisiológicos,
psicológicos e espirituais – para se relacionar com o mundo, com
outros seres que nele estão presentes e com o transcendente.

Nesta perspectiva, as leis biológicas, as influências psicológicas e a


forma como o indivíduo se relaciona com o transcendente estão diretamente
relacionadas às suas escolhas morais. Mas, em especial as leis biológicas, nesta
interpretação, passam a ter valor moral. Assim, toda a intervenção que se faça
para a alteração das mesmas, pode vir a infringir a lei natural e ser considerada
como moralmente incorreta.

Perante uma tal interpretação, ocorre considerar atentamente


a reta relação que existe entre a liberdade e a natureza humana, e
particularmente o lugar que ocupa o corpo humano nas questões da
lei natural.

Uma liberdade, que pretenda ser absoluta, acaba por tratar o


corpo humano como um dado bruto, desprovido de significados e
de valores morais enquanto aquela não o tiver moldado com o seu
projeto. Consequentemente, a natureza humana e o corpo aparecem
como pressupostos ou preliminares, materialmente necessários para
a opção da liberdade, mas extrínsecos à pessoa, ao sujeito e ao ato
humano. Os seus dinamismos não poderiam constituir pontos de
referência para a opção moral, uma vez que as finalidades destas

117
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

inclinações seriam só bens físicos, chamados por alguns pré-morais.


Fazer-lhes referência, para procurar indicações racionais sobre a
ordem da moralidade, deveria ser qualificado como fisicismo ou
biologismo. Em semelhante contexto, a tensão entre a liberdade e
uma natureza concebida em sentido redutivo termina numa divisão
no mesmo homem.

Esta teoria moral não está de acordo com a verdade sobre


o homem e sobre a sua liberdade. Contradiz os ensinamentos da
Igreja sobre a unidade do ser humano, cuja alma racional é per se
et essentialiter a forma do corpo.  A alma espiritual e imortal é o
princípio de unidade do ser humano, é aquilo pelo qual este existe
como um todo — corpore et anima unus — enquanto pessoa. Estas
definições não indicam apenas que o corpo, ao qual é prometida a
ressurreição, também participará da glória; elas lembram igualmente
a ligação da razão e da vontade livre com todas as faculdades
corpóreas e sensíveis. A pessoa, incluindo o corpo, está totalmente
confiada a si própria, e é na unidade da alma e do corpo que ela
é o sujeito dos próprios atos morais. A pessoa, através da luz da
razão e do apoio da virtude, descobre no seu corpo os sinais prévios,
a expressão e a promessa do dom de si, de acordo com o sábio
desígnio do Criador. É à luz da dignidade da pessoa humana —
que se afirma por si própria — que a razão depreende o valor moral
específico de alguns bens, aos quais a pessoa está naturalmente
inclinada. E tendo em vista que a pessoa humana não é redutível
a uma liberdade que se autoprojeta, mas comporta uma estrutura
espiritual e corpórea determinada, a exigência moral originária de
amar e respeitar a pessoa como um fim e nunca como um simples
meio implica também, intrinsecamente, o respeito de alguns bens
fundamentais, sem os quais cai-se no relativismo e no arbitrário.

Fonte: João Paulo II (1993, p. 48).

O quinto aspecto a ser pontuado se refere à natureza dos atos humanos. Em


linhas gerais, estes sempre estão inseridos em um determinado contexto histórico-
cultural. Entretanto, há ações humanas que, independentemente destes aspectos,
estão presentes e respondem a modelos metafísicos comuns a todas as pessoas
e que são universalmente conhecidos. Destes podemos citar: a defesa da vida, a
tendência a geração da prole, o culto a divindades (PIGHIN, 2005, p. 262).

118
Capítulo 4 A Lei Moral

Entendida desta forma, a natureza humana é compreendida como uma


capacidade racional da pessoa que, ampliada para toda a humanidade, fundamenta
(ou deveria) as relações humanas, que devem estar pautadas na dignidade de
todos. Esta também fundamenta a noção de corporeidade e as escolhas morais
do indivíduo que, muitas vezes, respondem a modelos metafísicos.

A Lei Natural na Sagrada Escritura


Quando abordamos a questão da lei natural na Sagrada Escritura, é
importante salientarmos, em primeiro lugar, que não há um desenvolvimento
sistemático que tenha sido realizado por algum dos autores sagrados. Ela
aparece em diferentes passagens ou como fundamento implícito ou explícito da
argumentação, mas não é feita alguma referência direta a ela.

Já em algumas passagens do Antigo Testamento nós encontramos, a partir


deste princípio metodológico, a abordagem da lei natural.

Ao fazermos a análise dos princípios morais presentes nas diversas alianças


estabelecidas por Deus, encontramos dois tipos: as de caráter exclusivista e as
de caráter universal. No que tange às primeiras, temos a aliança estabelecida
entre Deus e Abraão e posteriormente entre Deus e o povo de Israel, através de
Moisés. Para Abraão, a promessa era de constituir sua família como uma grande
nação (Gn. 12, 2), e para Israel, de ser o povo abençoado por Deus (Ex. 6, 7).
No que se refere à de caráter universal, salientamos a aliança estabelecida com
Adão (Gn. 1 – 3) e com Noé (Gn. 9, 1-9), que incluem não apenas a descendência
deles, mas toda a humanidade.

Nos livros proféticos encontramos algumas passagens que fazem referência


a características comportamentais humanas relacionadas à natureza. Isaías, por
exemplo, faz uma analogia à natureza dos animais para se referir à humana: “O
boi conhece o seu possuidor, e o asno, o estábulo do seu dono; mas Israel não
conhece nada, e meu povo não tem entendimento” (Is. 1, 3). Já o profeta Jeremias
faz uma referência à vivência da lei do Senhor como algo próprio do ser humano:
“Até a cegonha pelo ar reconhece a estação, e as rolas e as andorinhas são fiéis
à migração. O meu povo, porém, não conhece a lei do Senhor” (Jr. 8, 7).

Já nos livros sapienciais são inúmeras as passagens nas quais encontramos


os preceitos morais sendo considerados como válidos não apenas para o povo
de Israel, mas para todo ser humano. No livro de Jó, após todo um discurso,
fundamentado no princípio da universalidade, sobre o sentido da existência e
a verdadeira sabedoria, o autor bíblico conclui a narrativa afirmando: “O temor
do Senhor, eis a sabedoria; fugir do mal, eis a inteligência” (Jó. 28, 28). No

119
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

livro de Provérbios nós também encontramos uma referência ao princípio da


universalidade, pois a partir de sentenças fundamentadas em motivações racionais
são válidas para todos os seres humanos, por exemplo: “O homem prudente
percebe a aproximação do mal e se abriga, mas os imprudentes passam adiante
e recebem o dano” (Pr. 22, 3). Todavia, no Livro da Sabedoria encontramos uma
perícope a partir da qual podemos inferir a existência de um ordenamento natural
na realidade que nos possibilita ascender a Deus: “Sim, naturalmente vãos foram
todos os homens que ignoraram a Deus e que, partindo dos bens visíveis, não
foram capazes de conhecer Aquele que é” (Sb. 13, 1).

No Novo Testamento, por sua vez, a temática da lei natural está presente
principalmente nos Evangelhos e nas cartas paulinas. No que tange ao primeiro
conjunto de livros, percebemos em inúmeras passagens que a mensagem da Boa
Nova não estava direcionada apenas para o povo judeu.

No Evangelho de João, no contexto do discurso sobre o bom pastor,


encontramos a afirmação: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste aprisco.
Preciso conduzi-las também, e ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e
um só pastor” (Jo. 10, 16). Já no Evangelho de Mateus, ao final da parábola dos
talentos encontramos a perícope que narra sobre a volta do Filho de Deus, na
qual todas as nações estarão reunidas perante ele (Mt. 25, 31-33).

Esta ideia de universalidade da mensagem evangélica tem como fundamento


primeiro que todos os seres humanos, independentemente de sua origem e
do vínculo de aliança estabelecido com Deus, possuem em si a lei moral e o
ordenamento próprio imputado pelo Criador. Estabelecendo assim um vínculo,
um nexo entre ambos, tornando assim todos os seres humanos destinatários na
mensagem salvífica de Cristo.

Tal compreensão se justifica na própria passagem do Evangelho de Mateus,


quando Jesus encerra o seu discurso antes da ascensão, com a seguinte
orientação aos discípulos: “Toda autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide,
pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi” (Mt. 28, 18-20). 

Sob outra perspectiva, as cartas paulinas também abordam a temática da


lei natural. Esta é inserida no contexto em que Paulo discute a importância da
lei moral na prática espiritual e religiosa dos cristãos advindos no paganismo. É
importante recordarmos que este apóstolo teve uma formação diferenciada, sendo
influenciado tanto pela cultura judaica quanto helênica. “Ele nasceu em Tarso,
na Diáspora [tendo contato com diferentes culturas, inclusive com a grega], e foi
educado na Palestina, mais especificamente em Jerusalém, aos pés de Gamaliel
na observância exata da Lei” (RUTHES, 2013, p. 62).

120
Capítulo 4 A Lei Moral

Segundo alguns autores, o apostolado de Paulo entre os


gentios é fruto de sua experiência espiritual em Damasco, que não
se constitui apenas o momento de seu processo de conversão,
mas também o estabelecimento de seu chamado. Segundo Ruthes
(2013): “Nos Atos dos Apóstolos, Lucas descreve duas passagens
nas quais o evento de Damasco constituiu um chamado para
anunciar o Evangelho entre os gentios. O escritor coloca na boca
de Paulo esta narração: “tu hás de ser testemunha, diante de todos
os homens, do que viste e ouviste” (At. 22, 15). Em um versículo
posterior à expressão “todos os homens” é especificado: “Vai, porque
é para os gentios, para longe, que quero enviar-te” (At. 22, 21). Em
outro relato, quando o apóstolo está perante o rei Agripa, novamente
encontra-se a referência sobre seu chamado: “... para constituir-te
servo e testemunha da visão na qual me viste (...) [para] as nações
gentias, às quais te envio” (At. 26, 16. 17). [...] Nesta perspectiva
é que Paulo começa a questionar a respeito da Lei, pois se Cristo
veio para gentios e judeus, ela, da forma como era concebida, não
poderia continuar sendo basilar. Uma nova concepção acerca da Lei
na teologia paulina advém quando estas questões são respondidas.

Fonte: Ruthes (2013, p. 62-63).

Nesta perspectiva é que a temática da lei se constitui um dos temas centrais


na teologia paulina. Principalmente a partir da Epístola aos Romanos, o apóstolo
começa a questionar o cumprimento da lei por parte dos cristãos não advindos do
judaísmo. Pois, se Cristo veio para judeus e gentios, como impor a estes últimos
uma lei que não lhes é própria?

Todavia, para podermos responder a esta e outras questões derivantes, é


muito importante compreendermos como Paulo compreende a estrutura própria
do ser humano e sua relação com Deus. Principalmente por que o ponto central
da doutrina paulina frente à lei é a influência da graça e da revelação na vida do
ser humano.

Segundo Bultmann (2004), na teologia paulina há quatro principais conceitos


que definem o ser humano: soma, sarx, psyche e nous.

121
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Soma: que para nós indica a realidade corporal. “Ele não deve
ser entendido somente em seu sentido físico, como um organismo
material, mas como uma corporificação da pessoa. Esta se constitui
como tal em determinado ambiente, com o qual estabelece um
relacionamento experiencial, ou seja, “é o eu corporificado, o meio
com o qual eu e o mundo agimos um sobre o outro. (...) O corpo
é o meio dessa interação e cooperação” (DUNN, 2003, p. 87)”. [...]
“vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros” (1Cor. 12,
27) indicando, desta forma, que os atos corporais demonstravam
a fidelidade e o caráter do seu compromisso moral e discipulado”
(RUTHES, 2011, p. 45).

Sarx: ele é muitas vezes confundido com o conceito de soma.


Todavia, ele possui duas interpretações distintas: “Em um primeiro
sentido ela pode ser entendida como uma força cósmica hostil,
como um princípio de pecado. Uma segunda interpretação não é
feita a partir de pressupostos cosmológicos, mas sim psicológicos,
distinguindo duas utilizações do termo sarx: en sarki (na carne)
e kata sarka (segundo a carne); o primeiro denota uma vida
terrena, entendida como efêmera, e a segunda, como afirmamos
anteriormente, uma orientação espiritual por meio da qual se busca
viver a vida em seu nível terreno” (RUTHES, 2011, p. 46).

Psyche: este termo é utilizado para complementar o conceito


de soma (corpo) e designar a completude do ser humano. Como
afirma Bultmann (2004), Paulo não tem uma visão dualista – que
separa corpo e alma –, assim, ele tem um sentido de pessoalidade
associado ao de comunhão espiritual e de receptividade à ação de
Deus (BULTMANN, 2004, p. 260).

Nous: ele muitas vezes é relacionado à mente ou a capacidade


cognitiva do ser humano. No entanto, ele não pode ser resumido a
um “simples o saber de algo, o compreender e julgar” (BULTMANN,
2004, p. 268), mas sim como a capacidade que a pessoa tem de
alcançar a Deus por meio da existência das coisas criadas. Desta
maneira, o nous é a dimensão humana que possibilita a vinculação
com o divino, sendo, portanto, compreendido como “mentalidade,
direção da vontade, intenção” (BULTMANN, 2004, pp. 268-269).

122
Capítulo 4 A Lei Moral

Para Paulo, o ser humano, entendido como nous, é acima de tudo “um eu
que é sujeito de seu querer e agir” (BULTMANN, 2004, p. 268). Como tal, busca
na realidade criada o bem para si. Como não pode alcançá-lo em sua plenitude,
vai gradualmente adquirindo para si o bem por meio de suas ações e escolhas
(BULTMANN, 2004, p. 322). Como Paulo afirma na Carta aos Romanos:

Porquanto o que se pode conhecer de Deus eles o leem em


si mesmos, pois Deus lhes revelou com evidência. Desde a
criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu
sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência,
por suas obras; de modo que não se podem escusar (Rm. 1,
19-20).

Este processo de aquisição ocorre de maneira natural e demonstra a


existência de uma lei que é própria ao ser humano e que tem como finalidade
conduzi-lo à plenitude.

Nesta perspectiva, todas as pessoas, sejam elas judeus ou gentios, estão


sob a exigência da lei, mas não mosaica, mas a imputada por Deus na realidade.
Como afirma Ruthes (2011): “a Lei para Paulo já não pode ser entendida somente
em seu sentido veterotestamentário, mas sim em seu sentido natural: como
uma ordem universal que rege a todos os seres criados, inclusive o humano”
(RUTHES, 2011, p. 48). Assim, a lei natural antecede a lei escrita, pois aquela lei
é a expressão do bem e como tal é objeto da vontade humana que é regida por
ela. Como o próprio Paulo afirma:

Diante de Deus, não há distinção de pessoas. Todos os que


sem a lei pecaram, sem aplicação da lei perecerão; e quantos
pecaram sob o regime da lei, pela lei serão julgados. Porque
diante de Deus não são justos os que ouvem a lei, mas serão
tidos por justos os que praticam a lei. Quando os pagãos, não
tendo Lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles,
não tendo Lei, para si mesmos são Lei; eles mostram a obra
da Lei gravada em seus corações, dando disto testemunho
sua consciência e seus pensamentos que alternadamente se
acusam ou defendem (Rm. 2, 12-14).

Percebemos desta maneira que em Paulo a reflexão sobre lei natural


é ampliada tendo em vista o contexto da evangelização dos povos pagãos e a
temática da vivência da lei de Moisés frente ao Evangelho.

123
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

A concepção de Lei natural na teologia paulina é central para o


cristianismo, pois foi ele o primeiro a abordar esta temática a partir
de categorias cristãs. Tendo em vista esta importância, leia o artigo:
RUTHES. Vanessa Roberta Massambani. O conceito de Lei Natural
na Teologia Paulina. In: Revista Cyberteologia: teologia & cultura.
Disponível em: <http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/
wp-content/uploads/downloads/2014/05/NOTA_TRES.pdf>, e faça
um mapa mental destacando as principais ideias que compõem a
estruturação do conceito de lei natural nos escritos paulinos.

Por fim poderíamos nos questionar, tendo em vista também o cenário moral
apresentado pelo Novo Testamento, qual seria o conteúdo deste bem que a
vivência da lei natural propicia. Diversas poderiam ser nossas respostas. Mas,
utilizando ainda Paulo como referência, podemos afirmar que os princípios que
fundamentam a noção de bem são: o amor, a alegria, a paz, a benignidade, a
bondade, a fidelidade, a mansidão, a castidade, entre outros (Gal. 2, 22-23).

A Lei Natural na Reflexão Filosófica


e Teológica
Apesar de influenciar a doutrina cristã de forma ímpar, a lei natural não é um
conceito originário desta. Ele tem sua origem na Grécia antiga, a partir do século
VII a.C., período de formação das pólis, quando houve um deslocamento paulatino
do interesse filosófico dos temas ligados à natureza (physis) para aqueles
referentes ao humano e àquilo que diz respeito à vida deste como membro de
uma sociedade (REALE, 2007, p. 73).

A pólis se constituía como uma unidade política e territorial,


sobretudo através do vínculo que os seus cidadãos mantinham com
ela por lealdade, identidade cultural e origem. É na pólis que se
dá a experiência da democracia, caracterizada pela igualdade dos
cidadãos perante a lei e pela participação na decisão política.

Fonte: Japiassú e Marcondes (2006, p. 220).

124
Capítulo 4 A Lei Moral

Aparece pela primeira vez em fragmentos atribuídos a sofistas da


A lei natural está
corrente naturalista, que denotam que a lei natural é universal. Estes
em oposição à lei
compreendem que a lei natural está em oposição à lei positiva (que positiva.
é elaborada por humanos), afirmando que esta é tirana e arbitrária,
pois somente era utilizada para defender uma ética aristocrática. Esta excluía
outras classes sociais da atividade política na pólis. Existindo, portanto, uma
antítese entre natureza (concebida como justiça) e legalidade (concebida como
convenção), opunha-se às leis escritas, consideradas como mutáveis, às naturais,
entendidas como universais.

Platão também aborda a questão da lei natural no contexto da filosofia


política. Todavia, em um de seus escritos, este filósofo realiza uma modificação
substancial na concepção afirmada pelos sofistas de que havia uma oposição
entre a lei natural e a lei positiva. A partir de uma argumentação dialética ele
demonstra que ambas expressam os mesmos conteúdos e afirma que é pior
cometer a injustiça do que sofrê-la (PLATÃO, 1959, 489 b).

Figura 3 – A escola de Atenas

Fonte: Disponível em: <https://latunicadeneso.wordpress.


com/2014/04/03/>. Acesso em: 28 set. 2019.

A pintura ‘Escola de Atenas’, de Rafael Sanzio, expressa a ideia


de legalidade trabalhada pelos filósofos da Grécia antiga, na qual lei
positiva e lei natural se contrastam.

125
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Diferentemente das abordagens feitas pelos sofistas e por Platão, Aristóteles,


por sua vez, não se acerca da temática da lei natural somente em seu sentido
político, mas amplia a discussão sobre a questão a partir da ontologia. O estagirita
compreende o ser como substância composta de matéria e forma e que deve ser
entendida “em múltiplos sentidos, mas sempre em referência a uma unidade e a
uma realidade determinada” (ARISTÓTELES, 1970. IV, 2. 1003 a).

Destes sentidos, o último – da substância entendida como ato e potência


– possui uma importância singular na concepção de lei natural em Aristóteles.
Como afirmamos, a substância é composta de matéria e forma. A primeira é
a potência, ou seja, a possibilidade ou capacidade de receber a forma que se
constitui o ato, ou seja, o ser plenamente realizado (JAPIASSÚ; MARCONDES,
2006, p. 20). Cabe ressaltar que o ato é anterior, que possui absoluta prioridade
e superioridade conceitual e substancial sobre a potência, pois não é possível
conhecer a potência por si, isto só o é se reportar-se ao ato (ARISTÓTELES,
1970. IX, 8. 1049b-1050a).

Tal dinâmica de atualização da possibilidade é que gera o movimento.


Uma das causas deste, doa uma finalidade e um sentido a todo este processo
(ARISTÓTELES, 1970. I, 3. 983a). Esta tem seu fundamento na existência do que
Aristóteles denominou de Motor Imóvel, um Princípio Eterno, isento de matéria
e totalmente privado de potencialidade. Assim, se constituindo ato puro, que é a
causa do movimento, mas também é entendido como seu fim. Isto nos permite
afirmar que há uma intencionalidade no devir, no movimento, este se constitui “um
progredir para a forma e a realização da forma” (REALE, 1994, p. 377-378).

No âmbito da ética, esta tendência teleológica e de autorrealização se torna


mais clara. O filósofo afirma: “toda ação e toda escolha têm em mira um bem
qualquer [...] se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos
por ele mesmo, tudo o mais é desejado no interesse deste fim” (ARISTÓTELES,
1987. I, 1094a). Tal é definido por Aristóteles como o Bem Supremo que pode ser
compreendido como a felicidade (ARISTÓTELES, 1987. I, 1094a; 1097b).

A partir destas afirmações podemos inferir uma forma como a questão da lei
natural pode permear a filosofia do estagirita: o Motor Imóvel outorga à realidade
o movimento, este se constitui na passagem do ser em potência para o ser em
ato, com a finalidade de atingir a sua completude. Sendo importante especificar
que a lei natural não se constitui no movimento, mas na tendência final que o ser
possui para sua autorrealização.

126
Capítulo 4 A Lei Moral

Contudo, apesar de permear diferentes doutrinas, o conceito de lei natural


será sistematizado na Filosofia antiga pelos primeiros pensadores do Estoicismo,
no início do século III a.C. Esta corrente filosófica possuía como peculiaridade
a questão da sistematicidade teórica. A sua doutrina se constitui como uma
totalidade orgânica, na qual todos os elementos são solidários. Os estoicos
antigos concebiam o mundo “como uma unidade perfeita e divina, viva, contínua,
autocriadora, organizada por leis inteligíveis e governada por uma razão [logos]
providencial e presente em todos os lugares” (IDELFONSE, 2007, p. 31).

O logos se constitui o princípio ativo do universo, a causa que


penetra toda a matéria e que lhe dá uma forma e movimento. O
logos permeia toda a realidade como um ‘sêmen’, como potência
germinativa, como razões seminais presentes em toda a realidade.

Fonte: Japiassú e Marcondes (2006).

O universo estoico pode ser entendido, desta maneira, como um grande


organismo (REALE, 2007, p. 285), no qual todos os corpos se harmonizam a
partir de uma ordem racional. Tal concepção de mundo tem um caráter finalista:
“tudo é como a razão quer que seja (...) tudo é como deve ser e como é bom que
seja” (REALE, 1994, 313). Portanto, pode-se inferir que a razão determina aquilo
que deve ser (GAZOLLA, 1999, p. 39).

Nesta perspectiva, o ordenamento da realidade – causa esta que se


identifica com o logos – pode ser alinhado com o conceito de nomos, de lei. Pois o
Estoicismo, visando criticar o princípio da lei positiva, e influenciado pela filosofia
pré-socrática, afirma a existência de uma só lei universal que a tudo ordena e
dirige, inclusive o ser humano: “É necessário que a lei seja soberana a todas as
coisas, divinas ou humanas. Deve dominar todas as realidades boas e más e
exercer sobre elas poder e hegemonia” (ARMIN, 2006, [C.e] 314).

Cabe ressaltar, por fim, que o logos, a razão universal, é, no estoicismo,


identificado com a Natureza. Esta deve ser entendida a partir do conceito grego
de physis, que indica o “princípio intrínseco agente que é, que dá e que toma
forma de todas as coisas, isto é, o princípio que faz tudo nascer, crescer e ser”
(REALE, 1994, p. 307). Sendo que a partir desta perspectiva, Logos e Physis se
constituem os princípios atuantes, que garantem a ordenação racional do mundo.

127
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Neste ponto poderíamos questionar: como se dá a manifestação da lei


natural na vida do ser humano? Ela se manifesta por meio de duas tendências:
a autoconservação e a apropriação do próprio ser. O termo grego oikeiosis, que
deriva do substantivo oikos (casa), designa aquilo que é familiar, íntimo, pessoal.
Este afirma a necessidade da apropriação de si, do próprio ser, que procede
necessariamente da autoconsciência que acompanha a percepção e alimenta
a tendência primitiva de autoconservação. Assim, pode-se concluir que a tarefa
primordial da ética é a realização da oikeosis, da apropriação do próprio ser (VAZ,
1999, p. 155).

No caso específico do humano, a característica ontológica preponderante,


a sua physis é a racionalidade, portanto, deverá este, como afirma Sêneca,
apropriar-se, conciliar-se com o seu ser racional. Interessante é destacar que a
doutrina ética do estoicismo possui como finalidade a realização do humano, ou
seja, a obtenção da verdadeira felicidade. Para que esta possa ser alcançada, é
necessário que se viva conforme a physis, a natureza própria: “Viver segundo a
natureza para os estoicos equivale a viver bem, e viver bem é para eles ser feliz,
segue-se que o viver segundo a natureza corresponde a ser feliz” (ARMIN, 2006,
[C.e] 17 [1]).

A vida conforme a natureza, conforme a razão, é que pauta as normas de


conduta moral e o fundamento de toda virtude. Esta é o aperfeiçoamento do
que é peculiar do humano, isto é, da racionalidade: “A virtude é uma disposição
para viver segundo a natureza; ela é desejável por si mesma, [...] nela reside a
felicidade”. (DIÓRGENES LAÉRCIO, VII, 89 apud REALE, 1994, p. 340).

Cabe ressaltar também a noção de universalidade da virtude: esta perpassa


a todos os humanos, sem qualquer distinção de gênero, classe social, raça e
cultura. “A virtude não é vetada a ninguém, é permitida a todos, acolhe a todos,
chama todos a si, livres, libertos, escravos, reis, êxules. Não escolhe a casa ou
o patrimônio [...]” (SÊNECA, De beneficiis, III, 18 apud REALE, 1994, p. 345).
Constata-se, desta forma, que os estoicos ultrapassam os limites particularistas
de outras doutrinas, pois viabilizam a possibilidade de vivência de valores
universais, que por sua vez estavam calcados nas doutrinas do logos e da physis,
que procedem da noção de lei natural (VAZ, 1999, p. 157).

Importante é ressaltar que vários conceitos sistematizados por como - o


Logos, a physis, a lei natural, a virtude e a universalização desta – influenciaram o
pensamento posterior de forma pontual. Vários historiadores da filosofia afirmam a
influência que o estoicismo teve em todo o pensamento posterior. Em sua maioria,
efetivam uma correlação da doutrina do Pórtico com o cristianismo nascente,
principalmente no que diz respeito à dimensão ética.

128
Capítulo 4 A Lei Moral

Segundo Tarnas (2000), o cristianismo, enquanto doutrina, se constitui


uma composição do conteúdo da pregação de Cristo, da tradição judaica e do
pensamento helênico, sendo que deste possui traços, principalmente da filosofia
platônica e do estoicismo (TARNAS, 2000, p. 121-122). Pohlenz, por sua vez,
afirma que: “Sem o encontro do estoicismo com o cristianismo, não se pode
compreender a evolução espiritual do cristianismo primitivo” (POHLENZ, v. I.,
p. 463 apud ULLMANN, 1996, p. 119). No que diz respeito, especificamente, à
questão da lei natural, é possível estabelecer aproximações muito profundas com
a doutrina cristã, até mesmo é possível afirmar que a noção de lei natural estoica
influencia a construção da doutrina teológica da lei natural. Em especial, vamos
abordar as contribuições feitas por Agostinho e Tomás de Aquino.

Em Agostinho a doutrina da lei moral tem direta correlação com a da Criação.


Fazendo uma interpretação alegórica do primeiro relato da Criação (Gn. 1), ele
afirma que Deus criou todas as coisas em seis dias. Tanto as que começaram
a existir a partir daquele momento, quanto as que viriam a existir. A diferença é
que estes seres que vão surgindo através dos tempos foram engendrados sob a
forma de germes primordiais, ou, como são denominados pelo bispo de Hipona,
razões seminais. No Capítulo 3 nós já vimos que estas são forças germinativas
responsáveis pela estabilidade da criação.

No que tange ao ser humano, as razões seminais têm um papel fundamental.


Concebido como uma unidade na qual a alma tem como função vivificar e
governar o corpo, as razões possuem um papel de mediação. Segundo Boehner
(1970), as razões seminais auxiliam a alma na dinâmica de submeter o corpo à
ordem colocada por Deus na realidade, sendo este o princípio da moral.

Uma coisa é, pois, criar e governar a criação como de um centro


íntimo e sumo de todas as causas, o que pertence somente a Deus;
outra coisa é realizar uma operação externamente de acordo com as
forças e faculdades concedidas por ele, para que neste ou naquele
momento, desta ou de outra maneira, se desenvolva o que ele
criou. Todos os seres já foram criados originária e primordialmente
com determinada estrutura de elementos previstos e predispostos
que se manifestam ao surgirem as oportunidades. Assim como as
mães ficam grávidas de seus filhos, assim o cosmos está grávido
de razões seminais. Tais razões são criadas pela essência divina na
qual nada nasce, nada morre, nada começa, nada deixa de existir.

129
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

(...) Assim, o que está escondido no seio da natureza irrompe e de


certo modo surge ao exterior, para o desenvolvimento das medidas,
dos números e dos pesos que dele receberam ocultamente o qual
dispõe todas as coisas com medida, número e peso.

Fonte: Agostinho (1994. III, 9, 16).

Neste sentido, “A finalidade da moralidade é a manutenção da reta ordem,


pois esta se identifica à bondade objetiva, ao passo que o mal consiste na
transgressão culposa desta ordem” (BOEHNER, 1970, p. 187). Como afirma
Ruthes: “Para Agostinho, a natureza, a vida e o cosmo são perfeitamente
ordenados e regidos pela lei natural, esta se assemelha com a vontade divina, que
é a lei interna regendo as criaturas em harmonia com as normas eternas da divina
sabedoria” (RUTHES, 2011, p. 56). Assim, as normas da racionalidade humana e
consequentemente da vontade aludem a uma mesma fonte e a vida moral está
direcionada para a realização das normas eternas. Como afirma Gilson (2006),
“todas as prescrições particulares de nossa consciência moral (...) descendem de
uma única e mesma regra” (GILSON, 2006, p. 248).

É importante salientarmos que tal dinâmica, pressuposta na racionalidade,


fundamenta livre vontade. Esta que, fecundada pela graça de Deus, segue o
ordenamento próprio da existência humana. “A iluminação divina não se limita
a nos prescrever regras de ação (...) ela nos dá também o meio de as colocar
em prática” (GILSON, 2006, p. 249). Assim, a graça divina “é necessária ao livre-
arbítrio do homem para lutar eficazmente contra os assaltos da concupiscência
desregrada pelo pecado” (GILSON, 2007, p. 155). Pois sem ela a lei pode ser
conhecida, mas com ela a lei é praticada.

Na teologia de Tomás de Aquino, a questão da lei natural é apresentada no


contexto próprio da análise moral, tendo também como fundamento a doutrina
da Criação. Esta havia sido realizada por Deus, que havia imputado nela uma
ação conservadora, se caracterizava como continuação do ato criador (TOMÁS
DE AQUINO, 1952. SCG. II, 25).

O ser humano, entendido como uma totalidade de corpo e alma, se relaciona


com as demais criaturas por meio dos sentidos e da racionalidade. Nesta está
presente o discernimento para o desenvolvimento de suas escolhas conforme o
ordenamento natural da criação e, necessariamente, conforme o bem. Este bem,
que é a finalidade da vida humana em último grau de plenificação, é o próprio
Deus. Assim, como afirma Ruthes (2011), “a vida terrestre é uma busca do divino

130
Capítulo 4 A Lei Moral

por meio dos bens que se apresentam, sendo mister ressaltar que tal atitude o
insere na dimensão da moralidade. Pois, além de viver direcionado para um fim
próprio, ele é capaz de conhecê-lo” (RUTHES, 2011, p. 63).

Assim, podemos concluir que, para Tomás de Aquino, a lei eterna, entendida
como razão divina, é a fonte da qual a lei natural recebe a sua validade: “...todas
as leis, enquanto participam da razão reta, nessa medida derivam da lei eterna”
(TOMÁS DE AQUINO, 2005. Sth. II, I, q. 93, a. 3).

Tal compreensão nos permite afirmar que a lei divina-natural, para Tomás de
Aquino, é a norma suprema das ações humanas, que está presente e baseada
na racionalidade: “A regra e a medida dos atos humanos é, com efeito, a razão,
a qual é o primeiro princípio dos atos humanos, (...) cabe, com efeito, à razão
ordenar este fim, que é o primeiro princípio do agir” (TOMÁS DE AQUINO, 2005.
Sth. II, I, 90, 1). Ela tem como finalidade conduzir o homem à beatitude, não
somente em seu sentido individual, mas também comunitário, pois: “como toda
parte se ordena ao todo como o imperfeito ao perfeito e cada homem é parte
da comunidade perfeita, é necessário que a lei propriamente vise à ordem para
a felicidade comum” (TOMÁS DE AQUINO, 2005. Sth. II, I, q. 90, a. 2). Assim,
a conservação e o bem dos seres, inclusive o ser humano, é resultado de sua
permanência na reta ordem imputada, sendo o contrário, ou seja, a desagregação
e o mal dos seres, também válido (RUTHES, 2011, p. 65).

Após as reflexões de Tomás de Aquino, não houve mudanças substanciais no


desenvolvimento teológico acerca da doutrina da lei natural. No Concílio Vaticano
II, esta voltou a ser implicitamente discutida em vários dos documentos conciliares.
Entretanto, em todos os documentos a lei natural continua a ser apresentada
como a capacidade racional do indivíduo de escolher livremente o bem e rejeitar
o mal, que tem como pressuposto critérios objetivos. Estes abstraídos da ordem
universal, com a qual Deus dirige e ordena o universo, fundamentam a moralidade.

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TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Na Declaração Dignitatis Humanae [...] encontramos uma


definição de lei natural que busca não só caracterizá-la, como
também defender a necessidade de o humano segui-la. Partindo
do pressuposto de que o homem é dotado de razão e livre vontade,
reafirma a responsabilidade moral de buscar a verdade. Esta só
pode ser conhecida por meio da lei, entendida como “eterna, objetiva
e universal, [que] ordena, dirige e governa o universo inteiro e os
caminhos da comunidade humana” (DH. 3) e que direciona o homem
à finalidade de sua vida: Deus.

A Declaração Inter Mirifica [...] também aborda a temática


da lei natural. Afirma que a não percepção desta é a causa das
controvérsias éticas, “pois a lei é a única que supera e harmoniza
todas as demais ordens de atividades humanas” (IM. 6). Assim, o
documento indica a necessidade de se obedecer esta lei na narração,
descrição e representação como vias de exaltação da verdade e do
bem [...].

Por fim, no que diz respeito à Constituição Pastoral Gaudium et


Spes, [...] a temática da lei natural é abordada de forma indireta, pois
a insere em argumentações que visam afirmar a interdependência
do humano com a sociedade e que o equilíbrio desta relação se
encontra na ordem que rege a realidade. [...] “Por isto a moralidade
da maneira de agir (...) não depende apenas da intenção sincera e
da reta apreciação dos motivos, mas deve ser determinada segundo
critérios objetivos tirados da natureza da pessoa.

Fonte: Ruthes (2011, p. 67-68).

Apenas com o movimento da Moral Renovada é que surgem novas


contribuições para o conceito de lei natural. Em especial três teólogos merecem
destaque: Bernard Häring, Marciano Vidal e Javier Gafo.

Häring afirmava que a “lei natural não é uma simples coleção de normas”,
mas sim uma “exigência positiva de uma conduta que corresponda à nossa
essência de criatura humana” (HÄRING, 1965, p. 30). Ressaltava a necessidade
de entender o conceito de lei natural como imutável, contudo, destacava o dever
de compreender a natureza humana como uma realidade inserida na história,

132
Capítulo 4 A Lei Moral

como algo que está em processo de mudança.

Neste sentido, o conceito deverá ser compreendido de diferentes formas,


segundo os diferentes tempos históricos: “Não há, nem pode ocorrer dispensa
(...) de nenhuma lei natural. Poderia, sim, ficar suspendida a aplicação de algum
princípio, sempre que se produzisse uma modificação na natureza, ou uma
simples mudança nas circunstâncias exteriores” (HÄRING, 1965, p. 282).

Marciano Vidal, por sua vez, critica veementemente a validade da utilização


da lei natural como fundamento do discurso moral. Afirma que “as mediações
naturais são inadequadas para encarar a moral cristã” (VIDAL, 1978, p. 24).
Segundo ele, tais mediações promovem uma ‘essencialização’ da moral, pois, se
sua referência é uma natureza abstrata, seus fundamentos e princípios também
o serão.

Nesta perspectiva, não se leva em consideração a dimensão antropológica


e cultural, como também a dimensão dinâmica da história humana. Poderíamos
questionar: quais seriam então as mediações que podem ser consideradas
corretas? Para Vidal, somente as mediações da autonomia, da secularidade e da
historicidade possibilitariam à moral cristã ser crítica (VIDAL, 1978, p. 31).

Por fim, Javier Gafo insere a temática da lei natural na reflexão sobre as
tecnologias de reprodução assistida. É importante salientar que tendo em vista
que o matrimônio tem como um de seus fundamentos a naturalidade, o princípio
unitivo entre os esposos, as tecnologias de reprodução assistida são condenadas.
Mas este teólogo, no mesmo caminho reflexivo produzido por Häring e Vidal, afirma:

Até que ponto se pode encarar a procriação assistida


como simples ato técnico e despersonalizado, quando
realizada no contexto de uma relação pessoal de duas
pessoas casadas, que vivem um projeto de vida comum
e recorrem a essas técnicas, com suas próprias células
germinais, para assim poderem ter um filho, fruto do seu
amor? (GAFO, 1999, p. 466).

Atividade de Estudos:

1) Leia o trecho a seguir do texto A noção de consciência moral


em A Lei de Cristo, identifique os principais pressupostos que
fundamentam a Teologia Moral desenvolvida por Bernard Häring
e que o levam a salientar a dimensão histórica na observância

133
TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

da lei. Posteriormente, escreva uma sinopse do texto salientando


estes pressupostos.

Na Moral de Bernhard Häring, fé e vida sempre se


encontram e se complementam. Sua Teologia Moral tem muito
de existencial. Não é algo que se pode exercer, de forma neutra,
sem se comprometer. A verdade é uma pessoa, Jesus Cristo. Por
isso, a Teologia não pode conformar-se em transmitir um sistema
doutrinal, sem que deva fazer presente Cristo que se concretiza
nas pessoas humanas.

Por outro lado, o ser humano deve ser visto inserido na


realidade do seu “entorno social”: ambiente e comunidade,
situado na sua dimensão histórico-temporal. Isto porque a
pessoa humana, na sua liberdade, não é um simples espectador,
mas um ator da história. O sujeito, levando em conta o passado,
deve projetar-se para o futuro no momento presente. Trata-se
de uma natureza histórica dinâmica, que busca viver a plenitude
do compromisso da ética cristã, fazendo de sua própria história
uma “história de salvação”. E isto se realiza num processo com
dimensão escatológica. Não é algo que se conquista de uma vez
por todas, mas que deve realizar-se passo a passo, com a graça
divina infundida na vida do cristão.

Por isso, Häring enfatiza o tempo presente como kairós,


tempo favorável, momento oportuno para a salvação. É também
por isso que a Igreja deve avançar, sem medo das novidades.
Por meio de uma concepção integral de pessoa humana, surge
o diálogo, que é comunicação e encontro vivo de pessoas na
palavra e no amor. Cristo chama cada pessoa humana como
pessoa individual e única e como ser social, superando a
dicotomia entre alma e corpo. É a pessoa humana que deve ser
salva, na sua totalidade, aberta ao “nós” da comunidade e ao
mundo, segundo o modo no qual nos apresenta a Bíblia.

Se a verdade da fé cristã é a pessoa de Cristo, a Teologia


deve manifestar sua presença nas pessoas humanas. Superando
uma Moral dos atos humanos, centrada no objeto, Häring prefere
centrar-se na pessoa, na complexa realidade do ser humano.
Por isso, busca e trabalha com uma antropologia que abrace
um conceito integral de pessoa, aberto à transcendência. Cristo
nos chama, e escutamos o seu chamado não pela lei exterior
(legalismo), mas no interior da consciência (personalismo). Nós

134
Capítulo 4 A Lei Moral

decidimos em nossas consciências e, com responsabilidade,


damos uma resposta a este chamado.

Neste sentido, a visão de Häring fica muito distante do


extrinsecismo e do juridicismo de uma Moral de atos, e se
estabelece a base para uma Moral de maior tom vital e teologal,
personalista ou de atitudes. O que mais se destaca nesta Moral
é a relacionalidade ou o diálogo com responsabilidade do sujeito
moral (a pessoa) com Deus e com o próximo numa chave de
resposta-seguimento. Ou seja, o chamado-vocação pessoal de
Deus em Cristo.

Neste contexto cristológico-dialogal, o tema do pecado se


apresenta não tanto como a fria transgressão da lei, mas como
a negação ou a debilidade na resposta-seguimento responsável
a Cristo. A conversão, tema novo com relação aos manuais
anteriores, realiza de modo positivo a recuperação da graça no
contexto do dinamismo da vida cristã com suas vicissitudes de
infidelidade e recuperação.

Fonte: Araújo (2007, p. 172-173).


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TEOLOGIA MORAL E ÉTICA

Algumas Considerações
Procuramos, neste rápido e curto capítulo que estuda e analisa a questão
da Lei Moral, compreender como a Lei Natural influencia a constituição da moral
cristã; esclarecer quais são as bases conceituais que fundamentam a Lei Natural
e, por fim, analisar a forma como a Lei Natural é utilizada para pressupor conceitos
e doutrinas da moral cristã.

Em um primeiro momento nos propusemos a refletir a Lei Moral a partir dos


seus conceitos e diferentes fundamentos, num segundo momento passamos a
estudar a conceituação e as características da Lei Natural, num terceiro momento
estudamos as fontes da Lei Natural, posteriormente passamos a estudar a Lei
Natural nas Sagradas Escrituras e, por último, realizamos uma análise filosófico-
teológica, realizada a partir de uma incursão histórica, na qual pontuamos a sua
origem, os desdobramentos, crítica atual e as novas perspectivas conceituais.

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