Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
Cultura: unidade
e diversidade
cultural
unidade
268
A cultura está
em (quase) tudo
Cultura só pode existir no plural. Em uma
comunidade há inúmeras culturas em movimen-
to, em integração. Cada sujeito é uma síntese
complexa da presença da diversidade cultural
no mundo. Alguém pode ao mesmo tempo
apreciar a culinária japonesa e nada saber de
literatura oriental. O que ocorre é a mistura, a
fusão, a confluência de saberes e modos de vida.
Durante muito tempo (e ainda hoje em diver-
269
Entendendo a
25 cultura no plural
capítulo
O emprego da palavra cultura, no cotidiano, é objeto de estudo de diversas
ciências sociais. O pensador francês Félix Guattari (1930-1992) reuniu os diferentes
significados de cultura em três grupos, por ele designados cultura-valor, cultura-
-alma coletiva e cultura-mercadoria.
Cultura-valor é o sentido mais antigo e explicita-se na ideia de “cultivar o espí-
rito”. É o que permite estabelecer a diferença entre quem tem cultura e quem não
tem ou determinar se o indivíduo pertence a um meio culto ou inculto, definindo
um julgamento de valor sobre essa situação. Nesse grupo inclui-se o uso do ter-
mo para identificar, por exemplo, quem tem ou não cultura clássica, artística ou
científica. Num certo sentido, a cultura-valor alimenta a posição presunçosa que
considera a cultura um requisito de poucos. Mais do que isso: ao se revelar símbolo
de um determinado status, a cultura se revela um instrumento de hierarquização
entre indivíduos e grupos humanos, dando à desigualdade social um tom quase
natural e irremediável.
O segundo significado, designado cultura-alma coletiva, é sinônimo de “civili-
zação”. Ele expressa a ideia de que todas as pessoas, grupos e povos têm cultura
e identidade cultural. Nessa acepção, pode-se falar de cultura negra, cultura chi-
nesa, cultura marginal etc. Tal expressão presta-se assim aos mais diversos usos
por aqueles que querem atribuir um sentido para a ação dos grupos aos quais
pertencem, com a intenção de caracterizá-los ou identificá-los. Vale também ob-
servar que uma cultura considerada “alma” aproxima ou distancia outras culturas,
abrindo brechas para comparações que podem levar a distorções e preconceitos,
como nos inúmeros casos de interpretações que consideram muitas religiões
ou ritos religiosos de sociedades indígenas brasileiras como “primitivos” ou até
mesmo “demoníacos”, indignos, portanto, de atenção e respeito. Nesse sentido,
o “civilizado” e o “bárbaro” se apresentam como culturas que, não podendo se
auxiliar ou se complementar, existem como antagônicas.
O terceiro sentido, o de cultura-mercadoria, corresponde à “cultura de massa”.
Nessa concepção, cultura compreende bens ou equipamentos – por exemplo, os
centros culturais, os cinemas, as bibliotecas e as pessoas que trabalham nesses
estabelecimentos – e os conteúdos teóricos e ideológicos de produtos que estão
à disposição de quem quer e pode comprá-los, ou seja, que estão disponíveis no
mercado, como filmes, discos e livros. Numa palavra, a cultura-mercadoria é típica
dos objetos que se transformam em bens para o consumo, importando muito
menos sua qualidade do que seu potencial de venda e expansão.
As três concepções de cultura estão presentes em nosso dia a dia, marcando
sempre uma diferença entre os indivíduos – seja no sentido elitista (entre as que
têm e as que não têm uma cultura erudita, por exemplo), seja no sentido de
270
identificação com algum grupo específico, seja ainda em relação à possibilidade
de consumir bens culturais. Todas essas concepções trazem uma carga valorativa,
dividindo indivíduos, grupos e povos entre os que têm e os que não têm cultura
ou acesso aos bens culturais, ou mesmo entre os que têm uma cultura considerada
superior e os que têm uma cultura considerada inferior.
Rubens Chaves/Pulsar Imagens
Antropologicamente falando...
Com distintas abordagens e definições, o conceito de cultura integra o quadro
teórico de todas as ciências sociais. No entanto, com frequência é vinculado à
antropologia, por ter sido amplamente discutido e utilizado por estudiosos dessa
área do conhecimento desde o século XIX, quando as explicações racialistas e
evolucionistas da diversidade humana eram dominantes.
Naquele contexto, uma das primeiras definições de cultura foi elaborada pelo
antropólogo inglês Edward Burnett Tylor (1832-1917). De acordo com esse autor,
cultura é o conjunto complexo de conhecimentos, crenças, arte, moral e direito, além
de costumes e hábitos adquiridos pelos indivíduos em uma sociedade. Trata-se de
uma definição muito ampla e, para Tylor, expressa a totalidade da vida social humana.
No livro Cultura primitiva, Tylor expôs sua análise das origens e dos mecanismos
de evolução da cultura em várias sociedades. Para ele, a diversidade cultural que se
observa entre os povos contemporâneos reflete os diferentes estágios evolutivos
de cada sociedade, em uma escala que varia do mais primitivo, representado por
povos tribais, ao mais desenvolvido, alcançado pelos europeus.
Contrapondo-se a essa visão evolucionista, segundo a qual a humanidade segue
uma trajetória comum, o antropólogo alemão Franz Boas (1858-1942) recusou qual-
quer generalização que não pudesse ser demonstrada por meio da pesquisa concreta
em sociedades determinadas. Para ele, cada cultura é única e deve ser analisada de
modo aprofundado e particular. Existem, portanto, “culturas”, e não “a cultura”, e
é essa diversidade cultural que explica as diferenças entre as sociedades humanas.
O antropólogo inglês Bronislaw K. Malinowski (1884-1942) afirmava que, para
fazer uma análise objetiva, era necessário examinar as culturas em seu estado atual,
sem preocupação com suas origens. Concebia as culturas como sistemas funcionais
e equilibrados, formados por elementos interdependentes que lhes davam carac-
terísticas próprias, principalmente no que dizia respeito às necessidades básicas,
como alimento, proteção e reprodução.
274
Cultura: a unidade
na diversidade 26
capítulo
Em A ideia de cultura, o pensador britânico Terry Eagleton (1943-) afirma que
poucas palavras têm tantas definições quanto cultura. Em meio a um oceano
de distintas e às vezes exageradas abordagens da palavra, o grande desafio
é encontrar uma explicação que não seja excessivamente ampla e, ao mesmo
tempo, refute interpretações muito reducionistas de um conceito tão rico e
decisivo para o entendimento da vida em sociedade.
Raymond Williams (1921-1988), um destacado crítico galês bastante lembrado
no livro de Eagleton, apontou em sua obra Cultura e sociedade quatro definições
complementares do conceito de cultura.
• A primeira delas seria relativa à disposição mental de cada indivíduo, ou seja,
diria respeito às escolhas que cada um faz diante do que aparece como pos-
sibilidade ou desejo. É possível e desejável que cada sujeito escolha suas
opções culturais, como as de preferência musical, literária e estética em geral,
relacionadas com modos de vestir, comunicar e se relacionar com os outros.
• A segunda definição apontada por Williams refere-se ao desenvolvimento
intelectual de toda a sociedade, seus níveis de conhecimento, integração
com outras comunidades, o uso que faz da técnica e dos saberes acumulados
e preservados no tempo. É nesse sentido que se pode, sim, falar em nível
cultural de um povo, levando-se em conta a partilha desses conhecimentos e
a maneira como ela é transmitida às gerações futuras e absorvida no contato
com culturas diferentes.
• O terceiro fragmento do conceito de cultura no pensamento de Williams
trata das artes – dos livros escritos, dos quadros emoldurados, das canções
compostas, dos estilos de vida aceitos e disseminados no interior de uma
determinada realidade social. A arte, na pluralidade de suas manifestações,
expressa a vida comunitária por meio da tentativa de materializar sonhos,
angústias, dinâmicas da felicidade e olhares sobre a história.
• Como quarto ingrediente da vasta significação de sua definição de cultura,
Williams sugere o modo de vida integral do grupo social, reunindo as institui-
ções de governo e relacionamentos cotidianos, a organização do trabalho e da
família e as variadas formas de comunicação e interações entre os diferentes
membros e coletivos da comunidade.
Há, portanto, muita generosidade na visão de Williams acerca do conceito
de cultura. Ele incorpora à palavra praticamente todas as manifestações da
vida social, desde as predileções individuais até o modo como se estruturam
as instituições e o mundo do trabalho. Da mesma forma, o entendimento que
Williams tem de cultura não deixa escapar que as dimensões particulares e
universais do conceito não existem separadamente; ao contrário, interligam-se
275
Cesar Diniz/Pulsar Imagens
a toda hora, compondo um mosaico de
riquezas e complexidades.
A Cultura – sim, com “C” maiúsculo –
possui a pretensão de ser única e de se
tornar um modelo ideal de civilização e
progresso para toda a diversidade hu-
mana. Para um necessário contraponto
a essa ideia, é preciso que entendamos
as culturas – isso mesmo, com “c” mi-
núsculo e no plural – como distintas em
sua origem e, principalmente, em sua
finalidade.
Se, portanto, de um lado, a Cultura se
orienta para o universal, para o comum,
as culturas, de outro, garantem a riqueza
Diante de um mapa que informa a programação cultural de um evento que está contida na diferença, sugerindo
público, as pessoas fazem suas escolhas culturais de acordo com suas
preferências, o que faz referência à primeira definição complementar de que haja aproximações e trocas de im-
cultura segundo Raymond Williams. São Paulo, 2012. pressões, criações e valores.
CanClini, Néstor Garcia. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003. p. 54-56.
Morte, tema-tabu
Entre crianças de seis anos de idade convidadas guras virtuais dos jogos eletrônicos que ensinam
a escrever cartas a Deus, uma delas propôs: “Deus, crianças a matar sem culpa.
todo dia nasce muita gente e morre muita gente. A morte é, como frisou Sartre, a mais solitá-
O Senhor deveria proibir nascimentos e mortes, ria experiência humana. É a quebra definitiva
e permitir a quem já nasceu viver para sempre”. do ego. Na ótica da fé, o desdobramento do ego
Faz sentido? Seriam evitados a superpopula- no seu contrário: o amor, o ágape, a comunhão
ção do planeta e o sofrimento de morrer ou ver com Deus.
desaparecer entes queridos. Mas quem garante A morte nos reduz ao verdadeiro eu, sem os
que, privados da certeza de finitude, essa raça adornos de condição social, nome de família,
de sobre-humanos não tornaria a nossa con- títulos, propriedades, importância ou conta ban-
vivência uma experiência infernal? Simone de cária. É a ruptura de todos os vínculos que nos
Beauvoir deu a resposta no romance Todos os prendem ao acidental. Os místicos a encaram
homens s‹o mortais. com tranquilidade por exercitarem o desapego
É esse ideal de infinitude que fomenta a cultu- frente a todos os valores finitos. Cultivam, na
ra da imortalidade disseminada pela promissora subjetividade, valores infinitos. E fazem da vida
indústria do elixir da eterna juventude: cosméti- dom de si – amor. [...]
cos, academias de ginástica, livros de autoajuda,
Betto, Frei. Morte, fen™meno natural. Disponível em: <http://
cuidados nutricionais, drágeas e produtos naturais odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-10-31/frei-betto-morte-
que prometem saúde e longevidade. [...] fenomeno-natural.html>. Acesso em: 21 jan. 2016.
Tenho amigos com câncer. Um deles obser-
vou: “Outrora, era tabu falar de sexo. Hoje, falar
1. No mundo de hoje, na nossa cultura, tem-se a im-
de morte”. Concordei. Outrora, a morte era vista
pressão de que os rituais pós-morte se resumem
como um fenômeno natural, coroamento inevi-
ao enterro em algum cemitério ou ao processo de
tável da existência. Hoje, é sinônimo de fracasso,
cremação. Entretanto, no passado e no presente,
quase vergonha social.
houve e há outras distintas formas de sepultamento
A morte clandestinizou-se nessa sociedade
ou de rituais mortuários característicos de diferentes
que incensa a cultura do prolongamento indefi-
culturas e credos, as quais mostram um pouco da
nido da vida, da juventude perene, da glamori-
zação da estética corporal. Nem sequer se tem diversidade cultural da humanidade. Pesquise na
mais o direito de ficar velho. [...] internet ou em outras fontes cerimônias pós-morte
“Morrer é fechar os olhos para enxergar me- representantes de culturas diferentes da sua.
lhor”, disse José Martí. As religiões têm respostas 2. A morte pode ser vista como fim ou como início,
às situações limites da condição humana, em como motivo de tristeza ou até de paz e libertação,
especial a morte. Isso é um consolo e uma espe- a depender da cultura que a assume como ritual,
rança para quem tem fé. Fora do âmbito religio- festa ou reunião de celebração de seus antepassa-
so, entretanto, a morte é um acidente, não uma dos. Em grupo e com a ajuda de seu professor, pro-
decorrência normal da condição humana. movam um debate sobre o tema “Além da morte,
Morre-se abundantemente em filmes e te- que outros fenômenos sociais podem ser vistos de
lenovelas, mas não há velório nem enterro. Os maneiras bastante distintas por culturas diversas
personagens são seres descartáveis como as no tempo e no espaço?”.
vítimas inclementes do narcotráfico. Ou as fi-
279
Os sentidos
27 do outro
capítulo
Ao se falar em alteridade, pensa-se sempre na capacidade de se colocar no
lugar do outro. Muitas vezes, só é possível compreender determinadas ações
se entendermos que o indivíduo tem uma cultura diversa da nossa ou se nos
dispusermos a nos colocar no lugar do outro. Quando isso não acontece, pode
ocorrer o que se designa por etnocentrismo ou preconceito.
O etnocentrismo
Uma vez que Cultura e culturas não param de se movimentar e encontrar
sínteses de diversidade cada vez mais ricas e de acesso ampliado em toda parte,
a multiplicação das formas de ser e viver nos leva a pensar na multiplicidade
humana, cultural e, consequentemente, na alteridade, isto é, no outro ser humano,
que é igual a nós e, ao mesmo tempo, diferente.
Observa-se, no entanto, grande dificuldade na aceitação das diversidades em
uma sociedade ou entre sociedades diferentes, pois os seres humanos tendem a
tomar seu grupo ou sociedade como medida para avaliar os demais. Em outras
palavras, cada grupo ou sociedade considera-se superior e enxerga com des-
prezo e desdém os outros, tidos como estranhos ou estrangeiros. Para designar
essa tendência, o sociólogo estadunidense
Albert Frisch/Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ
280
nas palavras de EVERARDO ROCHA
O rel—gio, o arco e a flecha
[…] Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens um pastor se preparou durante dias para
vir ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de evangelização e catequese. Muito generoso, comprou
para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.; modesto, comprou para si próprio apenas um
moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes, alarmes, fazer contas, marcar segundos, cro-
nometrar e até dizer a hora sempre absolutamente certa, infalível. [...] Tempos depois, fez-se amigo
de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregação e mostrava-se
admirado de muitas coisas, especialmente do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor
trazia no pulso e consultava frequentemente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o
pastor perdeu seu relógio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem índio.
[...] Dias depois, o índio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho.
Apontando seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio
fez o pastor divisar, não sem dificuldade, um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo
no centro o relógio. [...]
Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era
entregar aos superiores seus relatórios e, naquela manhã, dar uma última revisada na comunicação
que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso sobre evangelização. [...] Com o pé na porta
ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o que aquele índio foi fazer com o meu relógio.
Esta estória, não necessariamente verdadeira, porém, de toda evidência, bastante plausível,
demonstra alguns dos importantes sentidos da questão do Etnocentrismo.
Em primeiro lugar, não é necessário ser nenhum detetive ou especialista em Antropologia Social
(ou ainda pastor) para perceber que, neste choque de culturas, os personagens de cada uma delas
fizeram, obviamente, a mesma coisa. [...] Cada um “traduziu” nos termos de sua própria cultura o
significado dos objetos cujo sentido original foi forjado na cultura do “outro”. O etnocentrismo passa
exatamente por um julgamento do valor da cultura do “outro” nos termos da cultura do grupo do “eu”.
Em segundo lugar, esta estória representa o que se poderia chamar, se isso fosse possível, de um
etnocentrismo “cordial”, já que ambos — o índio e o pastor — tiveram atitudes concretas sem
maiores consequências. No mais das vezes, o etnocentrismo implica uma apreensão do “outro”
que se reveste de uma forma bastante violenta. […]
Rocha, Everardo. O que Ž etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 2002. p. 1-2. Disponível em: <http://sites.usjt.br/leonarde/
oqueeetnocentrismo.pdf>. Acesso em: 4 jan. 2016.
Os preconceitos
A palavra preconceito já diz muito sobre si mesma: é algo “pré”, ou seja, que
se estabelece antes de as coisas de fato acontecerem. Trata-se, pois, de um juízo
precoce ou, no mínimo, precipitado sobre pessoas e eventos.
Pensando historicamente, não é difícil constatar algumas marcas do preconceito
na trajetória humana. Escravos e servos, trabalhadores explorados e minorias sem
direitos, regimes de segregação racial e violência contra comunidades religiosas
e moradores das periferias dos grandes centros urbanos: em todos esses cenários
é possível encontrar os desdobramentos mais nítidos do preconceito, tais como o
ódio e, no limite, a prática da anulação, o extermínio.
O preconceito é, na verdade, a vitória implacável de uma ideia de cultura
sobre todas as outras. Há quem pense que existam etnias, valores, sentimentos,
leis e comportamentos superiores; estes, por se julgarem melhores, reivindicam
o direito de comunicar ao mundo a inferioridade de tudo que não lhes seja
complementar ou semelhante.
Cenas comuns nos noticiários de TV, como a de refugiados de muitas partes do
mundo peregrinando por vários países ou arriscando pelo mar uma fuga alucinante
para a Europa, revelam a face mais cruel do preconceito e, é claro, do etnocentrismo.
No Brasil, há o caso recente, entre inúmeros outros, dos haitianos que se
mudam em busca de emprego e melhores oportunidades de vida, principalmente
depois que um trágico terremoto destruiu o Haiti em 2010. Não raro, essas pessoas
veem-se vítimas de preconceito e indiferença.
Joel Saget/AFP
obstáculos que os separam de uma vida digna já são
quase intransponíveis, eles se tornam mais farpados
se, além de pobre, o indivíduo for negro; farpados
e eletrificados se o indivíduo for pobre, negro e do
sexo feminino; farpados, eletrificados e com elevado
risco de morte se a todas essas características forem
somadas à de ex-presidiário, prostituta, travesti etc.
Existe, portanto, uma dose agressiva e covarde de
preconceito contra sujeitos pertencentes a culturas,
classes sociais e mundos urbanos e morais diferentes
daqueles que são considerados pelo senso comum
adequados e decentes.
Mulher muçulmana
De maneiras distintas, sutis ou escancaradas, o preconceito se volta contra caminha pelas ruas
a diversidade cultural, as culturas no plural. Por ser algo preconcebido, não se de Paris. No cartaz,
propaganda de um
abre para discussões ou debates. O sujeito que pratica o preconceito, por meio
partido de extrema
de palavras ou ações, está convencido de suas posições, segundo ele, de supe- direita em momento
rioridade e não se permite ver os sentidos daquilo que o outro é e faz. Nota-se, de campanha eleitoral
na capital francesa,
em todas as dimensões do preconceito, claramente, a ausência de política no 2015. Ao pedir que os
seu sentido mais democrático. cidadãos “Escolham
Na Europa, a xenofobia – ódio ou medo exagerado de estrangeiros – vem seu bairro”, o partido
da Frente Nacional
fortalecendo os discursos políticos extremados de aversão a pobres, estrangei- reforça as diferenças e
ros e populações culturalmente distintas, como a de origem muçulmana. Na os preconceitos.
França, a Frente Nacional, associação partidária de extrema direita, recebe a
cada nova eleição mais votos ao defender a dificuldade de acessos e a retira-
da de direitos para estrangeiros. Esse crescimento evoca a célebre Doutrina
Monroe (“A América para os americanos”, 1823) e leva a uma adaptação dela:
a França para os franceses. Na Grécia, o fascismo é ingrediente oficial de
orientação da Aurora Dourada, agremiação política que vem conquistando
muitos votos e ganhando a adesão do eleitorado jovem que acredita que o
problema do país são os outros.
Nessas condições, a crise econômica, o desemprego e a instabilidade, no que
se refere aos padrões de qualidade de vida do europeu, acirram ódios e parecem
legitimar o apoio a causas radicais, notadamente aquelas que responsabilizam por
todos os males as diferenças culturais – culturas em letras minúsculas e no plural – e
os modelos de sociabilidade incapazes de prover o presente e se comprometer
com um futuro próspero. O preconceito, portanto, aparece como uma construção
social, algo que pode ser enfrentado por meio de estratégias políticas, jurídicas
e, principalmente, culturais (livros, filmes, escolas, professores e metodologias de
ensino e aprendizagem que não protejam nem abriguem nenhuma aproximação
nem tendência, por menor que seja, a um comportamento preconceituoso), e não
como uma questão da natureza, incontornável, como muitos se arriscam a afirmar.
A cultura é de todos
Uma forma bastante evidente de etnocentrismo mesclado com preconceito
é a separação entre cultura popular e erudita, com a atribuição de maior valor
à segunda. Essa visão está relacionada com a divisão da sociedade em classes,
ou seja, é resultado e manifestação das diferenças sociais. Há, de acordo com
essa classificação, uma cultura identificada com os segmentos populares e outra,
considerada superior, identificada com as elites.
285
Unidade e
diversidade
28 cultural no Brasil
capítulo
A cultura no Brasil compreende quantidade e diversidade imensas de expres-
sões – como festas, danças, canções, esculturas, pinturas, gravuras, literatura
(contos, romances, poesia, cordel), mitos, superstições, alimentação – presentes
no cotidiano e muitas vezes incorporadas pela indústria cultural.
Essa diversidade foi estudada por Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), que
registrou uma amostra das expressões culturais do país no Dicionário do folclore
brasileiro, publicado em 1954. Outro estudioso do assunto foi fernando de Azevedo
(1894-1974), que apresentou no livro A cultura brasileira, publicado em 1943,
um panorama de nossa cultura e uma análise histórica da vida intelectual no
Brasil. O trabalho desses dois autores, entre outros, auxilia no entendimento das
dificuldades para formular uma única definição de cultura brasileira.
286
cos com formação clássica, conhecidos ou anônimos. A produção musical brasileira
tem traços de origem marcadamente africana, indígena, sertaneja e europeia (sem
classificar o que é mais ou menos importante, simples ou complexo). Ela é fruto do
trabalho de milhares de pessoas ao longo de muito tempo.
Gerson Gerloff/pulsar Imagens
Apresentação de grupo
de danças folclóricas de
Santa Maria, Rio Grande
do Sul, 2012.
Yasuyoshi Chiba/Afp
Destaque de escola de
samba no carnaval do
Rio de Janeiro, 2015.
Ainda que se possa afirmar que alguns ritmos são notoriamente brasileiros,
como o maxixe, o chorinho, o frevo ou o samba, nenhum deles é “puramente
brasileiro”, pois as influências recebidas são as mais variadas possíveis, desde a
música medieval até a contemporânea. Genuínas mesmo são as músicas, as dan-
ças, a arte plumária e a cerâmica dos povos indígenas. As demais manifestações
culturais são fusões, hibridações, criações de uma vasta e longa herança de muitas
culturas. Talvez seja essa a característica que podemos chamar de “brasileira”.
Vale a pena capturar alguns exemplos do significado da “cultura brasileira”. O
primeiro tinha como objetivo desenvolver uma arte erudita a partir de elementos
da cultura popular do Nordeste brasileiro: o Movimento Armorial. Seu criador,
Ariano Suassuna (1927-2014), dramaturgo, poeta, escritor, popular no Brasil todo,
idealizou mesclar todas as formas de expressão artística: música, dança, litera-
1. É possível, assim como no caso das canções analisadas no texto, retratar o Brasil
por meio de histórias literárias, filmes e outras manifestações artísticas? Cite outras
expressões artísticas que possibilitam retratar o Brasil e escolha uma delas para fazer
uma análise própria.
Livros recomendados
A identidade cultural na pós-modernidade, de Stuart Hall. Rio de Janeiro:
Dp&A, 2011.
O sociólogo jamaicano Stuart Hall (1932-2014) apresenta as mudanças na cultura global e suas
implicações na identidade dos indivíduos, grupos e classe sociais. Com ricos exemplos e uma
linguagem cativante, Hall compreende que é mais difícil falar hoje em culturas e identidades
fixas, devido às mudanças radicais e sucessivas no modo como se organizam as sociedades
contemporâneas. Um livro, no mínimo, instigante.
Sugestões de filmes
Pride (Inglaterra, 2014). Direção: Matthew Warchus.
Em 1984, Margaret Thatcher está no poder e os mineiros estão em greve. O orgulho gay chega
a Londres e os ativistas resolvem arrecadar fundos para ajudar a família dos trabalhadores
sem salários. O que uniria numa causa tão nobre grupos tão distintos? O filme, de modo
muito bem-humorado, explora a cultura de uma era marcada pela supressão de direitos e,
ao mesmo tempo, pela ampliação da solidariedade entre indivíduos e diversos fragmentos
de classes sociais.
n Jone Bria
my Sto s/Ala
PENSE E
ck Pho
to/Foto
arena
sd/Bridgeman Images/Keystone Brasil
Karoly Lotz. A Village Wedding Feast.
DANCE!
DANÇA REGIONAL
A música é uma das mais ricas Festa de casamento na aldeia, de Karoly Lotz, óleo sobre
tela, s/d (Galeria Nacional da Hungria, Budapeste, Hungria).
expressões socioculturais. Ritos Esse renomado artista, cujas obras representam o estilo
religiosos, práticas de integração romântico, idealizado, é um dos mais importantes da
entre indivíduos e grupos, produções Hungria no século XIX. Na fotografia, grupo de jovens
culturais no cinema e no teatro têm usando roupas típicas reproduzem danças folclóricas
húngaras. Registro na obra de arte do que se vê na vida das
na música uma parceria pessoas. Na fotografia, dança tradicional húngara, 2012.
indispensável. É na dança que a
música apresenta mais beleza e
importância. Pelos ritmos e passos DANÇA DE RODA
da dança em todo o mundo, a cultura Candido Portinari (1903-1962) foi um dos mais importantes
revela os elementos da sua artistas plásticos brasileiros. O aspecto de sua produção
mais conhecido pelo grande público é a preocupação com
ancestralidade e a maneira como
a temática social, tanto nacional quanto internacional.
está sintonizada com o presente. Porém, existiu também uma faceta lírica em sua obra, com
A vida em sociedade é um enorme lembranças da infância, como em Roda infantil, óleo sobre
palco onde se apresentam tela, 1932 (Coleção particular).
incontáveis e surpreendentes Na fotografia, crianças brincando em vila rural na
Índia, 2008.
dançarinos, promovendo valores e
impressões culturais de
comunidades humanas cada vez
mais relacionadas entre si.
Candido Portinari. Roda Infantil, 1932
na
otoare
oto/F
ck Ph
y Sto
Alam
iney/
im Ga T
294