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Sumário

Início
Ghosts
Glossário
Prefácio
Ronda
Primeiro olhar
Missão
Dificuldades
Fuga
Caos
Ruína
Escuridão
Destruição
Sonhos perturbadores
Destino certo
Passado assombrado
Encontro inesperado
Reencontrando a calma
Consequências
Encarando o medo
Desespero
Sensações
Não olhe para trás
Conhecendo o passado
Desconhecido
Mente doentia
Um dia de cada vez
Ódio latente
Sem volta
Operação sigilosa
Encontro furtivo
Fantasmas
Acerto final
Pesadelo finito
Dor
Agradecimentos
Shadows
Nota da autora
Prólogo
Propósito
Retorno
Rastro sangrento
Sem perguntas
Seguindo o rastro
Manobra evasiva
Sangue frio
Noite insone
Exaustão
Salto mortal
Saia justa
Explosão química
Esquadrão ímpar
Cerco armado
Destino incerto
Estratégia de guerra
Desprezo
Mudança de planos
Ação furtiva
Confronto inesperado
Agonia
Rastreio
Sentimentos sombrios
Anseio ardente
Destinos distintos
Não seria um adeus
Reencontro inesperado
Nem um minuto a mais
Sombras
Agradecimentos
O menestrel
Copyright © M. S. Fayes, 2020
Copyright © The Gift Box, 2020
Todos os direitos reservados.
Direção Editorial:
Roberta Teixeira
Gerente Editorial:
Anastacia Cabo
Arte de capa:
Dri K. K. Design
Preparação de texto:
Cristiane Saavedra
Diagramação:
Carol Dias
Nenhuma parte do conteúdo desse livro poderá ser reproduzida em qualquer
meio ou forma – impresso, digital, áudio ou visual – sem a expressa
autorização da editora sob penas criminais e ações civis.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos
descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
nomes, datas ou acontecimentos reais é mera coincidência.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472
AVISO:
ESTE LIVRO POSSUI CENAS DE VIOLÊNCIA, ABUSO, ESTUPRO E CONTEÚDO SENSÍVEL,
ENTRE OUTRAS, QUE PODEM SER CONSIDERADAS GATILHO.
EPÍGRAFE
APENAS UM HOMEM ERA CAPAZ DE AFASTAR OS FANTASMAS DO SEU PASSADO.
Marine Corps: O Corpo de Fuzileiros Navais é uma subdivisão do
Departamento da Marinha Americana. Também chamados apenas de
Marines, compõem uma força maior que muitos exércitos no mundo inteiro.
Bootcamp: Campo de treinamento militar onde os novos recrutas
ingressam em um programa que oferece treinamento físico para desenvolver
condicionamento e força, além de habilidades específicas.
Parris Island: Região localizada no condado de Beaufort, na
Carolina do Sul, onde está localizado o Marine Corps Recruit Depot, centro
de treinamento dos fuzileiros navais. Única base onde a ala feminina de
recrutas pode se alistar.
Camp Pendleton: Uma das principais e maiores bases dos
fuzileiros navais na Costa Oeste dos Estados Unidos, situada em San Diego,
na Califórnia, a Marine Corps Base Camp é uma base que já visa o
treinamento dos fuzileiros para operações militares. Enquanto a base de
recrutas serve como um funil, esta serve para desenvolver e destacar os
soldados que têm aptidões em suas respectivas áreas.
Camp Lejeune: Situada em Jacksonville, na Carolina do Norte, a
Marine Corps Base Camp Lejeune, na Costa Leste, é a segunda maior base
de instalação no mundo. Além de ser um campo de treinamento de diversas
forças expedicionárias, como MARSOC, Segundo Grupo de Logística dos
Fuzileiros Navais, Segundo Batalhão dos Recon, Segundo Batalhão de
Inteligência, Escola de Infantaria, Escola de Combate dos Marine Corps,
ainda conta com o Hospital Naval e Escolas Militares.
Criada para atender às demandas logísticas para as incursões
militares, oferece ainda o local adequado para as famílias dos combatentes.
USSOCOM: United States Special Operations Command é o
órgão unificado de Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos,
que regulamente e está encarregado por supervisionar as divisões de
operações especiais de todas as Forças Armadas: Exército (US Army), Força
Aérea (USAAF), Marinha (US Navy e Marine Corps).
MARSOC: Marine Forces Special Operations Command é o
Comando de Operações Especiais da Marinha Americana que integra a
USSOCOM. São unidades especiais compostas pelos soldados RECONs que
atuam em expedições no exterior para missões específicas.
Recon: Também conhecido como Force Reconnossaince, é uma
unidade de Forças de Operações Especiais dos Fuzileiros Navais (Marine
Corps), que visa atuar por trás de linhas inimigas executando operações
incomuns e em base de apoio a guerras vigentes. Os métodos para inserções e
extrações aéreas, por vias aquáticas e subaquáticas e por terra são similares às
operadas pelos Seals, Green Berets e Air Force Combat Controllers, as
forças especiais de outras unidades armadas. No entanto, as missões e tarefas
executadas pelos Recons diferem um pouco por dar foco em apoio
principalmente às operações anfíbias e expedicionárias dos fuzileiros navais.
Navy Seals: Grupo de Operações Especiais da Marinha Americana,
os Seals são soldados altamente desenvolvidos e com habilidades superiores
para atuar em situações de risco e através dos elementos que compõem sua
sigla: Sea, Air and Land, mar, ar e terra. Apesar de estar debaixo da
autoridade da Marinha Americana, essa força de elite atua em todas as
operações onde é necessárias, sendo uma das mais reconhecidas e temidas
das Forças Armadas dos Estados Unidos.
H-Hawk: Sigla para UH-60 Blackhawk, um dos helicópteros de
combate usados pelas forças miliares.
H155: Considerado um dos helicópteros mais avançados em
tecnologia de voo no mundo, é usado para diversas missões, tendo uma
autonomia de voo ampla.
Porta-aviões: São navios de guerra que tem como intuito servir de
base aérea e representam um grande poderio militar. Atualmente, os Estados
Unidos são os que possuem o maior número de embarcações desse porte,
com onze no total, sendo considerado uma superpotência, já que a Marinha
Americana opera super porta-aviões com grande capacidade bélica.
Marpat: Abreviatura para Marine Pattern, ou o padrão de estampa
camuflada dos fuzileiros navais.
IDF: Sigla geral para Israel Defense Forces, ou Forças de Defesa
de Israel, que compreende todas as forças armadas que operam na segurança
da nação.
ISIS: Acrônimo em inglês para designar o grupo jihadista que atua
principalmente no Oriente Médio e se autoproclamou como um califado.
Considerado por diversos países do mundo como um grupo terrorista armado,
atualmente pode ser referido como Estado Islâmico, lembrando que não é
reconhecido por muitos como um “estado” e nem mesmo como “islâmico”.
Dog Tags: É como são chamadas, informalmente, as placas de
identificação militar. Os dados registrados são: patente, sobrenome, tipo
sanguíneo e outra informação relevante.
EPT/TEPT: Estresse Pós-Traumático é um transtorno que pode
durar meses ou anos após a exposição a algum evento e que pode trazer de
volta as memórias do trauma sofrido, seja com efeitos fisiológicos quanto
alterações emocionais. Deve ser tratado com psicoterapia e auxílio
medicamentoso para controlar os sintomas.
Tzahal: Acrônimo hebraico para IDF, que se classifica como união
de todas as forças terrestres, bem como Marinha e Força Aérea.
Sayeret Matkal: Subsidiária à Tzahal, é uma das unidades de
Forças Especiais de Reconhecimento, combate ao antiterrorismo e Extração
de Reféns. Embora equivalente aos Recons, como base de operações, é uma
potência de elite temida no mundo inteiro que se assemelha, e muito, à
atuação de combate dos Seals.
Gibbush: Campo de treinamento para formação de soldados de
elite da unidade Sayeret Matkal.
Mossad: Serviço Secreto de Israel. É um dos mais temidos do
mundo e ganhou bastante destaque por conta de suas operações especiais
durante a Guerra Fria. A palavra Mossad, que em hebraico significa “O
Instituto”, já coloca temor por se caracterizar como um dos melhores serviços
de inteligência internacional.
U.S.S Marula: Nome fictício do porta-aviões comandado pelo
Capitão Masterson e que já esteve sob comando do Major Justin Bradshaw
(Ghosts). A maioria dos porta-aviões americanos recebem nomes que
homenageiam seus ex-presidentes ou autoridades reconhecidas no meio
militar.
Kevlar: Os coletes à prova de balas são constituídos de várias
camadas de proteção, sendo que no meio delas há um núcleo de para-
aramida, tecido de fibra sintética flexível e leve. O polímero que a constitui
suporta altas temperaturas e chega a ser cinco vezes mais resistente que o aço.
EPT/TEPT: Estresse Pós-Traumático é um transtorno que pode
durar meses ou anos após a exposição a algum evento e que pode trazer de
volta as memórias do trauma sofrido, seja com efeitos fisiológicos ou
alterações emocionais. Deve ser tratado com psicoterapia e auxílio
medicamentoso para controlar os sintomas.
Nota da Autora: Embora façamos pesquisas para que os dados
sejam os mais verossímeis possíveis, é importante lembrar que esta não passa
de uma obra de ficção, e que a licença poética permite que muitas situações
sejam narradas de maneira que flua com a história a ser contada.
Que também fique claro que as situações expostas nada mais
refletem que a imaginação do autor para adequar o enredo, sem, em hipótese
alguma, se valer de preconceito cultural ou religioso.
Quando fui convidada para fazer a leitura desse livro – antes do
lançamento – me senti extremamente sortuda, e com medo, afinal é a M.S.
Fayes… ela meio que me dá medo. Só que depois do choque inicial do
convite e o quase surto para fazer o prefácio, eu mergulhei na leitura, com o
coração e a mente aberta.
Acreditava de verdade que já conhecia todas as nuances literárias
da Fayes… ledo engano, nesse livro ela mostrou que pode ser uma mulher de
mil faces, e que não se esconde quando um desafio é lançado.
Justin Bradshaw – O Major – me conquistou desde a primeira
linha. Seguro, confiante, cuidadoso, de pulso firme comanda muito mais que
o porta-aviões, é ele que me fez acreditar que amar não exige mudanças.
Apenas entrega.
Ailleen Anderson é uma força a ser reconhecida, com uma leveza
característica da autora, ela conseguiu uma mocinha forte e determinada, livre
de rótulos. Ailleen tem suas fraquezas, mas não se deixa abater, e isso me
surpreendeu demais. É o tipo de amiga que queremos por perto.
Ousado, com uma escrita rica em detalhes que vai deixar o leitor
envolvido com cada parte da história, Ghosts fala sobre superar seus medos,
sobre se entregar ao outro e, principalmente, sobre confiança. No amor e nas
pessoas que te cercam.
M.S. Fayes me deixou abismada do início ao fim desse livro e
confesso que raramente uma história consegue me pegar desprevenida…
Ghosts conseguiu, tornando o que eu acreditei que estava óbvio em uma
surpresa agradável que me deixou orgulhosa pela ousadia da autora.
É uma leitura que recomendo demais, porém, com um aviso:
Cuidado, você pode querer o Major e sua equipe para cuidar de você...
Andy Collins
Era inacreditável o que estava acontecendo. Só podia ser uma
brincadeira de mau-gosto, ou piada do destino. Depois de uma ronda
exaustiva de exercícios naquela manhã, trabalho burocrático e uma intensa
enxaqueca, tudo o que eu menos precisava era ter o Major Bradshaw na
minha cola, pelo motivo que fosse.
Na verdade, devia haver um motivo. Eu só não conseguia entender
o que poderia ser. Quando cheguei ao alojamento mais cedo, Carrie me
passou o recado que o temido Major estava à minha procura. Não sei dizer
bem, mas eu não o temia, embora conhecesse a fama que o precedia em toda
a base. Nunca tinha tido um contato maior com o homem, mas sabia que
muitas fuzileiras suspiravam por ele e, se pudessem, fariam contato de
terceiro grau.
A ala feminina da Marinha era recheada de mulheres em polvorosa.
Os longos e tenebrosos meses afastadas de seus companheiros e afins as
deixavam com os hormônios enlouquecidos quando estavam em missão.
Essa era a única explicação plausível que eu conseguia dar às
minhas colegas de alojamento.
― O Major gostoso quer te ver ― Carrie disse e sacudiu as
sobrancelhas de maneira espasmódica, implicando nitidamente comigo.
Guardei meus pertences na mochila e a coloquei embaixo da
beliche que alquebrava meu corpo.
― Não faço ideia do que ele queira, e te aconselho a procurar um
tratamento com botox para essas sobrancelhas aí ― falei e desviei de um
travesseiro voador.
― Uuuuh... o que será que nossa Ailleen fez para merecer uma
reprimenda do Major? ― Anastacia, mais conhecida como Anya, articulou.
― Já falei, não faço ideia. ― Mas agora a minha cabeça estava em
outro lugar. O que ele poderia querer comigo?
Eu sabia que devíamos obediência cega aos oficiais superiores, mas
não conseguia atinar o que havia levado o Major a requerer minha presença,
sendo que nunca antes fui solicitada em seu gabinete.
Uma das coisas mais claras que pude perceber era que ainda existia
um preconceito muito arraigado da ala masculina por conta da presença de
mulheres no serviço militar. Embora muita coisa tenha mudado, ainda havia
cochichos e piadas sujas que muitos homens faziam quando o esquadrão
feminino era posto junto. Os treinamentos de recrutas, assim que se
alistavam, eram executados em Bases de Treinamentos diferentes. Enquanto
as mulheres recrutadas só podiam treinar em Parris Islands, em Beaufort, na
Carolina do Sul, os fuzileiros podiam fazer seus treinamentos em qualquer
Base Naval do país. Somente por esta premissa já dava para ver. O
departamento da Marinha americana, que coordenava tanto o corpo de
fuzileiros, quanto a Marinha em si, ainda era retrógrado quanto a participação
da força feminina. Tanto que a maior parte do nosso serviço era burocrática e
quase nunca no front de batalha.
― Eu acho que ele precisa constatar todo o seu talento... ― Carrie
abarcou uma grande quantidade de seios, fazendo com que eu revirasse os
olhos.
Não me ligava ao fato de ter ou não o corpo perfeito que pudesse
fazer com que os homens virassem as cabeças. Na verdade, eu fazia questão
de escondê-lo o mais que podia, e as fardas militares eram um excelente
esconderijo para meus seios que nem podiam ser considerados atrativos.
― Você sabe que essa coisa de revirar os olhos, ao estilo heroínas
de romance, é um tanto quanto medonho, né? ― Anya falou, o que me fez
revirar novamente.
Essas duas só falavam merda o dia inteiro. Passavam horas
trocando informações sobre homens fictícios e mocinhas ingênuas e solitárias
que encontravam a felicidade nos braços destes caras magníficos.
Admito que em alguns momentos eu gostava de ler. Muitas vezes a
Carrie deixava o Kindle desbloqueado e eu lia sem que ela soubesse. Se
alguém me perguntasse se eu gostava de livros de vampiros, negaria até o
fim. Mas era o meu fraco. Tive uma fase juvenil com Edward Cullen, mas
acabei avançando as fileiras com vampiros mais intensos nas histórias de JR
Ward.
— Não consigo entender até agora o que o Sr. Grey vê de sexy nos
olhos revirados da mulher Exorcista — falei sem pensar.
Quando as duas começaram a rir, percebi meu erro.
— Você andou lendo Cinquenta Tons, sua safadinha? — Anya
perguntou e cobri sua boca rapidamente, antes que todo o alojamento
soubesse.
— Cale a boca, Anya! — Nem sei porque não pensei em ameaçá-la
com o nome da dita cuja do livro referido. Talvez tenha sido pelo pânico.
Meu desespero era palpável.
— Ora, ora! Se não estamos em um adorável momento de
recreação juvenil — a Segundo-tenente Hastings disse ao entrar no
alojamento. Uma coisa eu tinha certeza: aquela mulher me odiava com todas
as forças. Por qual razão eu não fazia ideia. Anya e Carrie juravam de pés
juntos que ela sentia ciúmes e inveja, mas eu me pergunto: por quê?
Levantamos em respeito para a criatura infame, já que seu posto era
superior ao nosso, mas era um gosto amargo. Ser subserviente. Eu preferia
mil vezes ser submissa do Sr. Grey na porra do quarto vermelho da desgraça.
— Ailleen.
— Sim, Sra. Tenente. — Eu sabia que ela odiava quando eu a
chamava de senhora. Exatamente por isso eu fazia questão de enfatizar nossa
diferença de idade.
Eu era oficial formada, porém não comissionada. Quando encerrei
o programa de recrutas, chamado de Bootcamp, onde passei onze semanas de
treinamento intenso, finalizando com o teste mais rigoroso já imposto a um
ser humano (ou ao menos eu via assim), ainda era chamada meramente de
Recruta. Galguei degraus exaustivos para conquistar, passo a passo, as etapas
e postos dentro da corporação.
Tive a opção de seguir para longe de todos que eu conhecia, e era o
que eu mais precisava, então segui para o Camp Pendleton, na Califórnia, na
tentativa de recuperar minha sanidade. Era a busca pelo conhecimento, onde
foquei todos os meus esforços apenas naquilo. Minha meta era entrar para a
Academia Naval dos Estados Unidos para obter um título como Oficial
Comissionada, e assim fazer carreira. Eu sabia que tinha uma árdua estrada
pela frente. Carrie e Anastacia estavam comigo, aptas a ingressar, após a
conclusão daquela etapa, em Anápolis, no rigoroso programa de treinamento
de seis meses em Quântico, na Virgínia, para alcançar a categoria de
Segundo-tenente.
O tempo de estudo na Academia poderia, em outras palavras, ser
equiparado a um período encurtado, da estrutura de vida glamorosa do nível
universitário. Bem, risque isso. Claro que não. Esqueça tudo o que você já leu
ou ouviu sobre regalias em Campi universitários. Ali era uma Academia
Militar. O que significava que havia ralação pesada e intensa, estudo massivo
e a necessidade de mente sã para aguentar o tranco. Fora todo o treinamento
físico anterior, porque o lema da Marinha e da corporação era: “Todo
fuzileiro naval é primeiramente um soldado”.
Porém, antes de podermos dar seguimento aos planos de seguir
para Anápolis, depois de um período em Camp Lejeune, na base da Carolina
do Norte, fomos destacadas a campo, e estávamos cumprindo o tempo no
porta-aviões.
— O Major aguarda você no gabinete há mais de trinta minutos,
podemos saber por que o fez esperar? — Seu tom era ríspido.
— Sra. Tenente, eu estava averiguando o treinamento dos soldados
recém-ingressados na base náutica, Senhora. Foi o tempo de preencher o
relatório e passar para o Sargento Mason quando recebi o recado. — Os olhos
da harpia averiguavam a todo o momento por alguma falha em minha
história. Ela não encontraria. Porque era a verdade.
— Você não tem tempo de trocar de roupa. O Major tem uma
reunião com o Tenente-coronel e o General, dentro de uma hora.
— Sim, Sra. Tenente.
Quando a víbora saiu, eu e minhas amigas respiramos. Parecia que
estávamos em um regime militar das forças da extinta União Soviética.
Caminhei pela plataforma da base naval com passos rápidos e
precisos. Ignorei os cumprimentos de alguns oficiais, sabendo que se desse
margem ou qualquer razão, a Segundo-tenente Hastings poderia alegar que eu
estava sendo indisciplinada e colocar uma reprimenda nos autos oficiais. Ato
este que ela já havia feito. Por uma razão muito boba, como o fato de não ter
me retirado do refeitório com maior presteza, em conjunto com meu
esquadrão destacado.
Entrei no longo corredor que separava as salas dos oficiais e as
salas de operações.
Quando cheguei à do Major, bati na porta e o esperei responder.
Ele era o responsável pelo porta-aviões, nada mais justo que ocupasse um
lugar digno ao posto.
— Entre — ele disse com sua voz de barítono. Pelo tom rouco,
supus que fumasse mais de um maço de cigarros por dia.
Ao entrar na sala, preste continência e aguardei que ele erguesse a
cabeça dos documentos que avaliava, identificando meu cumprimento
respeitoso.
— Você sabe muito bem que não exigimos continência em nossas
fileiras, Oficial Anderson — ralhou e recostou-se à cadeira de respaldar alto,
que rangeu sob seu peso.
— Sim, senhor. Perdão, senhor. Fui ensinada assim na escola
militar, senhor.
— Pelo amor de Deus. Corte o número de vezes em que vai me
chamar de senhor em uma só frase, ou vou me sentir tão idoso quanto o
General Stuart — brincou, mas mesmo assim não deixei a postura rígida.
Talvez percebendo que eu não sairia do padrão ao qual me impus, o
Major Bradshaw resolveu intervir:
— Sente-se, Anderson — comandou rispidamente.
Sentei na poltrona à sua frente, cruzando as mãos sobre as pernas.
Como a Segundo-tenente Hastings não me deu tempo para me trocar, eu
estava ainda com a farda suja, amarrotada da manhã e, para piorar, suada. Era
de bom tom que quando nos colocássemos diante de um superior, levássemos
nossa melhor apresentação, em sinal de respeito. Ainda mais aquele Oficial.
Fiquei em silêncio, quase sem piscar, porém olhando além dos
ombros fortes do Major, para não encarar aquelas tempestades azuis que ele
ostentava.
Por acaso já disse que o Major era realmente um belo exemplar de
homem? Realmente. Reeeealmente. Daquele tipo que ostentava uma beleza
máscula e imponente, associada a uma voz marcante e profunda que chegava
a ser hipnotizante.
Homens como ele tendiam a me deixar desconfortável, pois eu
ansiava me sentir tão normal quanto o restante das mulheres que fazia
questão de fofocar pelos cantos do navio, sobre a beleza do homem que eu
tinha à frente. Anya chegou a dizer que o Major Bradshaw, com toda a aura
dominante que exsudava, era capaz de fazê-la suspirar, salivar e arrepiar os
pelos do corpo, ainda que estivesse sob um sol escaldante num deserto árido
e inóspito. É óbvio que achei um exagero. Até aquele momento.
Com mais de 1,95 de altura, o homem era a epítome do macho alfa
americano, vestido em um uniforme militar, podendo ser fotografado a
qualquer momento, para uma edição de luxo desses calendários de moda
militar.
Mulheres tendem a desejar homens fardados. As que diziam que
eram imparciais ou resistentes à visão de um, quando colocavam os olhos em
Justin Bradshaw, se convertiam ao time das que hiperventilavam somente ao
vê-lo em carne e osso.
Bem, eu poderia até entrar nesse time, mas rasguei o ingresso
rapidamente. Já tinha visto o Major Bradshaw de longe. Sabia que era
realmente um homem distinto em matéria de aspecto físico. Além do mais,
meus instintos primitivos para este tipo de desejos estavam há muito
adormecidos. Ou enterrados.
Aquele cabelo dourado cortado rente ao couro, obedecendo à
tradição do corte militar, aliado ao belo rosto cinzelado, parecido a uma
escultura grega, tirava o fôlego de qualquer pessoa. O homem era
simplesmente perfeito na expressão da palavra.
Tentei fazer meus olhos não desviarem para a massa muscular de
seus braços, que seguiam cruzados à frente do corpo, numa atitude prepotente
e beligerante.
Alie a todo este pacote o profundo respeito que eu sentia pelo cara,
e você poderia entender a razão de eu evitar fazer contato visual. Aquele
homem era um ícone dentro da Marinha. Entre os fuzileiros navais ele ainda
era um monstro a ser temido e respeitado por onde passava. Já havia feito
parte da equipe de Força Tática Especial, sendo um RECON, o equivalente a
um Navy Seal americano.
Enquanto os Seal’s faziam parte das Forças Especiais da Marinha,
agindo em âmbito quase que geral entre as corporações militares, os RECON,
dos fuzileiros, agiam em operações táticas de reconhecimento em operações
onde eram necessárias observações e avaliações de território inimigo.
Eu não sabia a razão, mas o Major havia deixado as fileiras como
fuzileiro RECON e se concentrado basicamente em operações militares em
terra. Ou no caso, ao comando do porta-aviões no oceano Índico, próximo à
região da Arábia Saudita. Ficávamos transitando entre o Mar Vermelho e o
Golfo Pérsico.
— Eu soube que você recebeu treinamento intenso de cuidados
médicos em campo de batalha, verdade? — perguntou, avaliando minha
reação.
— Sim, senhor.
Aquela informação era interessante para ele saber, já que fiz
treinamento quando estava listada na base da Marinha, antes de me decidir
pelo programa dos fuzileiros navais.
— Também soube que a sua graduação em manobras de evacuação
e uso de armamento de guerra foi aclamada com louvor — falou e olhou os
papéis que estavam à sua frente. Pegou um em particular.
Meu interesse cresceu rapidamente. Assim como a curva da minha
sobrancelha, que eu podia sentir alcançando quase o couro cabeludo.
— Sim, senhor.
— Você pretende ingressar na Academia Naval, em Anápolis, para
tentar o cargo comissionado em algum momento — disse e olhou para mim,
que agora o encarava estupidamente.
— Sim, senhor. Minha função na base é como suporte de combate.
— Certo. O que temos aqui é uma situação operacional que nos foi
exigida de imediato. Somos a base naval mais próxima. Embora pudessem
enviar outra equipe saindo dos Estados Unidos nas próximas 24 horas, ainda
assim poderia levar tempo, coisa que não temos — disparou rapidamente. Eu
tentava prestar atenção. — Como você bem sabe, nossa equipe de fuzileiros,
nesse porta-aviões, não conta com um médico em serviço. O que nos foi
cedido pela Marinha está destacado na base de Cherry Point, mas foi enviado
para o Afeganistão.
Continuei prestando atenção ao que ele falava, tentando não sacudir
minha perna em nervosismo.
— Embora eu tenha certeza absoluta de que você nunca tenha
entrado em um conflito aberto, estamos com uma situação precária que
requer ação imediata de evacuação da equipe IV, que teve o Capitão em
comando ferido. De acordo com os relatos, nem mesmo os equipamentos de
kits médicos dos companheiros puderam ser suficientes, sendo necessária a
presença de um profissional gabaritado que saiba executar o serviço — o
Major disse e me olhou atentamente. — E é aqui que você entra. Uma equipe
será destacada para seguir com você até a área específica. Estamos projetando
um período máximo de cinco horas para que o Blackhawk resgate vocês,
antes que qualquer força inimiga perceba que estão ali.
— Sim, senhor — concordei, mas meu coração estava na boca. E
acredito que poderia ser ouvido pelo próprio homem sentado à minha frente.
Como ele mesmo havia salientado, treinar em uma escola militar,
com operações artificiais de guerra era uma coisa. Entrar na ativa era outra
completamente diferente.
Quando saí de casa ao término do ensino médio, depois da fatídica
noite de formatura, simplesmente resolvi burlar toda e qualquer convenção
tão regiamente imposta pelos meus pais e parti para um lugar completamente
desconhecido.
Ao invés de ingressar em Harvard ou Princeton, como muitos
supunham que fosse meu destino, simplesmente me alistei na escola militar e
me enfiei em um campo de treinamento por quase três meses, antes de ser
destacada para a Califórnia e depois fui enviada para a base de recrutas de
Parris Island, na Carolina do Sul.
Ali, também completei o treinamento necessário para me formar na
primeira etapa como fuzileira naval da Marinha americana. Depois de três
anos, fui encaminhada ao Camp Lejeune, para dar prosseguimento às
implantações no porta-aviões.
O que muitos não sabiam, mas aparentemente o Major Justin
Bradshaw estava bem informado, era que minha média de QI era tão elevada
que para suprir a demanda do treinamento, resolvi me aprofundar no
programa de habilidades médicas da Marinha.
Era engraçado que parecesse ser a mesma força operacional militar,
mas regia duas frontes de guerra diferentes. Daí o fato de fuzileiros terem
médicos cedidos pela Marinha, ao invés do corpo de fuzileiros, propriamente
ditos, formados na especialidade.
— Você tem alguma pergunta, Oficial Anderson? — ele perguntou,
olhando para mim atentamente.
— Não, senhor?
— Isso é uma afirmativa ou um questionamento?
— Uma afirmativa, senhor. Peço perdão.
— Ótimo. Preciso que prepare sua mochila tática com o mínimo
possível para... no máximo — disse olhando no relógio militar no pulso —,
uma hora e meia. É exatamente o tempo que o helicóptero H-Hawk vai deixar
você e mais dois fuzileiros das forças especiais que seguirão junto,
mantendo-a segura o tempo inteiro em campo.
— Sim, senhor.
— Está dispensada.
— Sim, senhor. Senhor. — Quase mordi a língua ao perceber que
repeti o pronome de tratamento, o que poderia ser deduzido como um
desrespeito, ou até mesmo sarcasmo camuflado, tão comum à minha
personalidade, mas eu sabia que se devia ao fato de estar nervosa e excitada,
simultaneamente, com uma missão de tal magnitude. E por ele tê-la confiado
a mim.
— Isso foi uma ironia, Anderson? — ele perguntou e arqueou uma
sobrancelha dourada.
Engoli em seco e me virei de volta.
— Não, senhor.
— Ótimo. Esteja pronta e no convés no horário combinado, sem
atraso ou desvios.
Não bati continência, porque já havia recebido a reprimenda assim
que cheguei.
Evitei correr até os alojamentos do porta-aviões, localizados na
parte inferior, a fim de arrumar a mochila, e otimizar meu tempo. Aquela
seria a aventura da minha vida. Talvez a que sempre esperei.
Só não entendia porque meu coração estava tão frenético e errático.
Esperava que não tivesse nada a ver com o Oficial que deixei para trás.
Quando cheguei, nenhuma das minhas amigas estava lá. Ajeitei na
mochila duas regatas, uma calça extra, além do kit essencial de primeiros
socorros pessoal e básico. Dois pares de meias e roupa íntima. Apenas para
uma eventualidade.
E só. Era um lance muito minimalista sair em uma missão em
campo. Mas quando essa missão duraria apenas cinco horas, era de se esperar
que eu levasse muito menos. O que eu sabia era que deveríamos estar sempre
prontos para um imprevisto. Bom, de todo jeito, eu teria que deixar meu kit
de loção cremosa e perfumada para trás. Ri sozinha do pensamento fútil.
Coloquei o uniforme MARPAT – o uniforme padrão dos fuzileiros
–, instalei minha faca reserva no compartimento secreto da bota, o colete
Kevlar por cima, sentindo falta de ter uma das garotas para me ajudar, mas...
ei, no campo de batalha eu não poderia pedir ajuda, certo? Retirei minha
maleta constando a pistola Beretta 92S-1, chequei as munições, a trava e
conferi o pente. Guardei o canivete de fácil acesso no bolso da calça, além de
conferir se faltava outro item.
Amarrei o cabelo num rabo de cavalo alto e bem apertado, embora
soubesse que o maldito fosse me dar uma baita dor de cabeça mais tarde, e
chequei se não atrapalharia o capacete.
Conferi item por item, averiguei novamente o kit médico,
observando se todas as medicações necessárias estavam ali, como
analgésicos, morfina, antibióticos, linha de sutura e agulha, e também
curativos anticoagulantes. Além de tudo aquilo, observei se a quantidade de
bandagens era ideal. O Major não deu detalhes do tipo de lesão que o Capitão
teve, mas não custava nada ser precavida e levar um pouco mais.
Quando observei o relógio, já havia se passado mais de uma hora
naquele ritual de preparação, e eu quase poderia afirmar que estava alguns
quilos mais pesada com tanto equipamento.
Estava saindo do alojamento, quando Anastacia e Carrie entraram
apressadamente.
— Puta que pariu! Ficamos sabendo agora mesmo! — Carrie disse
e me deu um abraço, mesmo por cima de toda a parafernália monumental que
eu levava.
— Ailleen, você tem certeza de que está preparada? — Anya
perguntou preocupada.
— Bom, preparada todos devemos estar a qualquer instante, desde
que ingressamos no serviço militar, certo? Com a evidência da guerra sempre
à espreita, somos sujeitas a ser requisitadas a qualquer momento — eu disse
nervosa.
— Sim, mas vamos ser honestas. As mulheres são relegadas aos
cargos mais administrativos dentro das forças. Quase nunca aos campos de
batalha propriamente ditos — Anya argumentou.
— Não estarei beeeem no campo de guerra, né? Vou ao resgate de
um membro de equipe que foi ferido em missão. Então executarei meu
serviço, sem necessariamente estar empunhando uma arma diretamente no
conflito.
— Mas vai correr riscos do mesmo jeito — Carrie completou.
— Corremos risco no exato instante em que nos alistamos, Carrie.
— Não queria que você fosse.
— Estou com medo também. Honestamente. Quase tomei uma
garrafa inteira de Pepto-Bismol, já que meu estômago resolveu se contorcer
como um artista do Cirque du Soleil — confessei. Eu sabia que usava de meu
humor sarcástico para camuflar muitas emoções que me assombravam. —
Mas vou fazer o que me foi mandado, por amor à pátria, por respeito a um
colega que foi ferido e por amor à nossa corporação.
Nós três batemos a bunda uma com a outra antes de chocarmos as
mãos no ar.
— Semper Fi[1] — dissemos em uníssono.
Imediatamente começamos a rir, porque se os homens vissem
nosso cumprimento, diriam que estávamos denegrindo a imagem totalmente
máscula do grito de guerra dos fuzileiros navais.
— Merda, esse colete Kevlar é pesado e quente pra caralho —
falei.
— Mas é o que vai lhe resguardar os peitos, querida. Então seja
boazinha e pare de reclamar — Anya admoestou.
— Bom, tenho que subir ao convés e aguardar o helicóptero.
— Será que podemos ir? — Carrie questionou.
— Não sei. Vocês não têm nenhuma tarefa agora? — perguntei
enquanto virei meu corpo pesado dos equipamentos e rumei para as escadas
de ferro que nos levariam ao piso superior.
— Fomos liberadas — Carrie respondeu.
— Então acho que não haverá problemas.
— Ótimo. Vai que tenho sorte e consigo dar uma olhada na bunda
do Major gostosão? — Anya cochichou baixinho.
Quando chegamos ao convés, estávamos rindo.
Tyson McCormack e Scott Bromsfield seriam os dois outros
fuzileiros que acompanhariam a pequena missão ao meu lado.
O Major estava ao lado da Segundo-tenente Hastings e quando me
viu chegar, senti seus olhos percorrerem meu corpo como se estivesse
buscando falhas.
Aparentemente, somente se ele tivesse visão Raio-X poderia dizer
que estava trajada de maneira diferente aos dois companheiros machos, já que
eu usava um conjunto de calcinha e sutiã esportivos caros até. Eu podia não
estar com um conjunto La Perla, contudo, fazia questão de ao menos manter
certo estilo. Seja militar, mas feminina. Esse era o meu lema. Eu pensava no
mínimo, ainda que optasse pelo conforto acima de tudo, e dava risada do
idealismo de Anastacia, que alardeava para os quatro cantos que devíamos
usar uma farda pesada e sem atrativo, mas por dentro, deveríamos ser como
um recheio apetitoso de um bombom a ser desembrulhado. Eu não queria
isso. Que meus atributos ficassem bem acomodados em um tecido macio e
bacana já valia.
— Onde está seu fuzil M-16, Anderson? — o Major perguntou
bruscamente.
— Eu não tive permissão para manter o meu no alojamento, senhor
— respondi com sinceridade e olhei para a Segundo-tenente Hastings. A
ordem havia partido dela.
A mulher perdeu um pouco a cor porque sabia que sobraria para ela
se o Major insistisse na questão.
— Quem deu essa ordem? Todos os fuzileiros devem manter o kit
tático de armamento de guerra pronto e à mão para um caso de emergência. E
se fôssemos atacados na base? Onde estariam suas armas? — perguntou
irritado.
— Como disse, Senhor. Só tive a permissão para manter a pistola
semiautomática — falei sucintamente.
— Quem deu esta ordem?
Olhei para a Segundo-tenente, que tentava a todo custo manter-se
estoica.
— A Segundo-tenente Hastings, Senhor — respondi por fim. Se
um olhar pudesse matar, eu estaria fuzilada naquele momento. Mortinha e
incinerada. E minhas cinzas estariam soprando ao vento e sendo jogadas no
mar, onde o porta-aviões estava navegando tranquilamente.
O Major virou-se para Hastings com um olhar abismado.
— Você fez isso, Segundo-tenente? Deu uma ordem para que o
armamento de segurança pessoal de todo fuzileiro naval não estivesse
armazenado com seu respectivo dono? — questionou.
— Ah... senhor, Major, Senhor. As fuzileiras navais como não são
solicitadas em embates táticos de guerra, foram deixadas apenas com as
armas de baixo calibre e manutenção.
— E eu te pergunto mais uma vez — o tom de voz de Justin
Bradshaw era gélido como o Ártico —, quem deu a autoridade para emitir tal
comando? Pelo que eu saiba, esse tipo de ordem tem que seguir uma cadeia
hierárquica de cima para baixo, Hastings. E o responsável por este porta-
aviões sou eu. E até onde sei, eu sou o Major aqui, e ainda há dois cargos
superiores diretamente acima do seu. E como sei que o Capitão Masterson e o
Primeiro-tenente Chammbers não seriam loucos e impertinentes o suficiente
para emitir uma ordem como essa, sem o meu prévio conhecimento, ou
melhor, sem que EU tenha lhe dado essa orientação, gostaria de saber por
qual razão você decidiu manter as fuzileiras sem o armamento bélico ao qual
têm direito e que deveriam usar como se fosse a extensão de seu braço.
— Senhor, Major... peço desculpas, senhor. Apenas... ap-apenas
achei que...
— Você não tem que achar absolutamente nada. Não tem que
privar um soldado de sua arma, porra! — ele bradou, fazendo com que a
pobre Hastings quase desmaiasse. A quem eu queria enganar? Estava me
deliciando com a bronca que ela estava levando.
— Quero que arrume suas coisas e se prepare para a próxima
partida da equipe do mar para terra. Você está sendo remanejada. Sem
questionamento — ele disse e virou as costas à mulher estupefata. Se eu não
a conhecesse melhor, poderia jurar que a bruxa estava prestes a chorar. —
Isaac, busque uma M-16 calibrada para a Oficial Anderson. Agora.
O ruído das hélices do helicóptero ficou audível naquele instante,
fazendo com que eu olhasse para cima, para apreciar a imponência da
aeronave.
Quando voltei minha atenção para o Major, vi que ele me encarava
abertamente, sem o menor pudor. Por um instante nossos olhares se
mantiveram conectados, até que abaixei o rosto.
Ele mesmo checou a configuração da arma, bem como conferiu o
escopo e a mira alinhada. Entregou o fuzil na minha mão, deixando a sua,
para que fizesse contato direto com a minha quando tentei retirar a arma de
sua mão.
Senti uma comichão percorrer meu corpo e me afastei rapidamente.
— Aqui está a bolsa médica com itens mais essenciais do que os
supérfluos que constam do seu kit médico pessoal — ele disse sucinto. —
Você fica sob o comando do sargento Tyson McCormack e faz exatamente o
que ele lhe ordenar, okay?
— Sim, Senhor.
Eu poderia ser uma garota rebelde agora e dizer que também fiz
treinamento militar, então que seria muito bom que o show de misoginia e
machismo parasse por ali, porém eu entendia perfeitamente que aqueles dois
fuzileiros já eram experientes no campo de batalha, enquanto eu não. Então,
deveria ser sábia e esperta, seguindo realmente os conselhos de quem
conhecia as artimanhas da guerra muito mais do que eu, que nunca havia
pisado em uma.
— Ótimo.
— Major, Senhor — Tyson disse. — As coordenadas nos levarão
diretamente ao local onde a equipe IV está?
— Exatamente. Perdemos o contato com o telefone por satélite,
mas pelos dados, assim que o H-Hawk deixar vocês no descampado, basta
seguir as coordenadas e dentro de pouco tempo estarão onde a equipe está
alojada.
— Certo.
— Boa missão — o Major disse. — Tenham cuidado.
Ao dizer aquilo, ele virou aqueles olhos luminosos diretamente
para mim. Como um cavalheiro, estendeu a mão para me ajudar a subir no
helicóptero, mesmo que isso tenha sido totalmente desnecessário.
Quando coloquei o cinto de segurança e a aeronave ganhou altura,
levantei os polegares para cima, dando um sorriso nem um pouco confiante
para minhas duas amigas que ficavam em solo.
Eu não poderia negar que estava apavorada. O frio na barriga era
intenso, eu podia sentir as mãos suando e uma gota escorrendo pela nuca. Se
ela continuasse o percurso, pararia lá na região sul.
— Primeira missão? — Tyson perguntou e deu um sorriso gentil.
— Sim.
— Não se preocupe. Estaremos com você em todo o momento —
ele disse e piscou os lindos olhos castanhos na minha direção.
— Vai ser ótimo que sua missão é quase uma de reconhecimento,
ao invés de enfrentamento, propriamente dito — Scott disse. — Pense pelo
lado bom. Você praticamente poderá dizer que fez parte de uma equipe
RECON, isso não é legal?
Sorri em resposta.
— Sim. Bem legal. — O pensamento furtivo surgiu rapidamente,
de que eles estavam me tratando como uma criança medrosa, a caminho de
um lugar indesejado até então.
A conversa foi amena, já que o ruído da aeronave dificultava,
mesmo que os capacetes tivessem um sistema de comunicação instalado.
Eu estava tensa, então preferi concentrar minha atenção no exterior.
Ou melhor, resolvi voltar a atenção totalmente aos membros da equipe. De
onde estávamos, a altura era monstruosa, e um tanto quanto assustadora.
— O Major não deu detalhes sobre a extensão da lesão do Capitão
Masterson? — perguntei diretamente a Tyson.
— Não. Mas saberemos em aproximadamente... — ele disse e
checou seu relógio —, três minutos.
Fechei os olhos porque naquele momento o helicóptero fez a
manobra de aterrissagem, o que levou meu estômago a uma volta de
montanha-russa nem um pouco agradável.
Agora era a hora em que eu poderia provar meu valor. Tanto a mim
mesma, quanto a qualquer pessoa que já tivesse duvidado em algum
momento que Ailleen Anderson faria algo grandioso na vida, mesmo que
tivesse todos os motivos para querer dar cabo dela.

[1] Termo utilizado por fuzileiros americanos que diz que eles se mantêm
sempre fiéis, sempre juntos, um não deixa o outro para trás.
Okay. Quem disser que imagina que andar no meio do nada, com
equipamento tático de guerra, é fichinha, está completa e redondamente
louca. E merecia um tapa na cara com um dos muitos cactos pelos quais
passei no caminho.
Ninguém faz ideia da dificuldade extrema que o corpo enfrenta
para se manter em linha reta, mesmo levando o que equivale a uma tonelada
de peso nas costas. Tudo bem, não era uma tonelada, mas bem se
assemelhava a um elefante. Grávido. De gêmeos.
Tyson e Scott pareciam estar passeando no parque, chegando a
assoviar em alguns momentos, fazendo com que eu sentisse uma vontade
imensa de pegar o cabo do meu fuzil e bater na cabeça de cada um deles.
Meus pés doíam, as pernas, o pescoço, a cabeça, até mesmo o
cabelo. E isso era só porque estávamos caminhando há... oh, vejam... quase
duas horas. Porra. Nem todo treinamento do mundo, sob as piores condições,
realmente te prepara para o momento em que você tem que enfrentar a
situação real. Treinar no campo, com exercícios de combate era uma coisa.
Enfrentar uma caminhada por um terreno inóspito, sob o risco de ficarmos à
mercê do inimigo, era outra, completamente diferente.
Tyson fechou o punho erguido, sinalizando que devíamos parar e
ficar quietos.
Scott estendeu a mão para trás, fazendo com que eu me escondesse
em uma área coberta de vegetação. Homens protetores do caralho.
Nem bem passou um minuto e um assovio baixo foi ouvido. Tyson
respondeu com outro.
Scott sorriu e virou-se para mim.
— É o código para mostrar que estamos perto. Alguém da equipe
ouviu nossa aproximação — informou.
Maravilha. Eu ficaria muito feliz em me sentar um pouco.
Caminhamos mais uns cinco minutos até chegarmos a uma clareira.
Outro assovio seguiu-se e Tyson nos guiou para a área onde a equipe IV
estaria.
Quando alcançamos a pequena caverna onde estavam enfurnados,
fomos recebidos pelo abraço dos três homens machucados e exaustos. Seus
olhos ficaram arregalados quando detectaram minha presença.
— Uma mulher?
Revirei os olhos diante da óbvia constatação.
— Até onde sei, esse é meu gênero, mas tenho nome. Ailleen,
prazer — disse e estiquei a mão para cumprimentá-los.
O que estava à frente me puxou para um abraço, ao invés de aceitar
minha mão.
— Estamos tão desesperados que se a Lady Gaga viesse em pessoa,
estaríamos felizes e ainda cantaríamos algumas canções junto — Teagan
disse. Tentei não rir, porque se analisasse o comentário, daria para ver o
machismo escorrendo dali, mas foi impossível.
— Onde está seu Capitão? — perguntei.
— Aqui — respondeu uma voz fraca.
Dei a volta e vi um homem forte, porém abatido, deitado no canto
mais distante da caverna. Em sua perna, um talho do tamanho da muralha da
China rasgava o músculo da coxa, mostrando claramente que não haveria
condição de ele sair dali se não recebesse pontos na ferida aberta.
Além daquele, ainda tinha uma ferida de bala no flanco esquerdo, o
que lhe garantiu a razão de estar vivo ainda. Se tivesse sido no lado direito,
provavelmente teria atingido o fígado, o que o levaria à morte em pouco
tempo.
Embora os três companheiros de equipe tenham feito esforços para
conter a lesão imediata, estancando o sangramento, pude ver que não foi
suficiente para conter o fluxo, ainda mais porque tiveram que mudar a
localização de onde foram feridos, para o local em que se encontravam agora.
— Muito bem, Cap — Tyson disse. — Como você conseguiu essas
belezinhas aí?
O homem tossiu antes de responder:
— Estávamos nos juntando às forças da coalizão quando fomos
surpreendidos por uma emboscada. Teagan, Colin e John conseguiram conter
o grande número de militantes do Estado Islâmico armados, mas quando
estávamos saindo, um morteiro atingiu exatamente o abrigo onde estávamos
escondidos. Os escombros caíram sobre mim. Ah, e antes disso, ainda
consegui ser alvejado por um tiro.
— Porra. Como esse filho da puta perfurou seu colete? — Scott
perguntou.
— Porque exatamente na hora eu estava escalando o muro para
alcançarmos o local para nos abrigar. O colete levantou e deu espaço para que
eu fosse atingido nas costas. Teagan ainda conseguiu me pegar antes que eu
caísse. Aí seria o fim.
Ouvi o relato enquanto abria a mochila e organizava os itens
médicos que seriam necessários.
Cheguei próxima ao Capitão e analisei as lesões.
— Okay, o que você quer primeiro? Sofrer por cima ou por baixo?
— perguntei.
— Querida, esse tipo de pergunta poderia ter uma conotação
totalmente diferente se não estivéssemos aqui — ele brincou.
Homens. Mesmo feridos só pensavam merda.
— Vamos lá, Cap. Quer que eu enfie o meu dedo — quando ele
começou a rir, corei como um pimentão porque percebi que o que falei foi
levado para uma conotação mais pejorativa ainda —, nesse seu bucho aberto
ou costure sua coxa?
Sua risada baixa, intercalada com a tosse, fez com que eu sentisse
pena de seu sofrimento.
— Faça o seu melhor, querida — ele disse e fechou os olhos. — No
momento, esses dois filhos da puta doem por igual.
— Vá na coxa primeiro, Ailleen — Tyson deu a dica. — Assim,
quando você for cavoucar a ferida abdominal, ele poderá mexer sem perder
mais sangue.
Observei os outros membros de sua equipe que me olhavam com
atenção, mesmo que não perdessem o foco da entrada da caverna.
— Okay. Você poderia pegar aquele frasco de solução iodada, por
favor? — pedi, enquanto com meu canivete cortava a calça do uniforme do
capitão.
Scott sentou-se ao meu lado e passou o frasco que solicitei.
Derramei a solução para esterilizar a área onde eu colocaria as
mãos.
Calcei o par de luvas cirúrgicas e ajeitei o material que usaria para
fechar o corte.
Depois que limpei todos os detritos restantes da grande extensão de
pele que lhe cortava o quadríceps inteiro, desde o quadril até quase o joelho,
peguei algumas bandagens para limpar e enxugar a área, de forma que eu
pudesse ver as partes da pele e músculos que eu deveria unir.
O corte era tão profundo que chegava a poder divisar o osso. Sorte
dele que não parecia haver fratura ali.
— Você poderia entregar um pedaço de madeira, ou talvez o cabo
da sua faca para que ele morda quando eu começar, que tal? — falei
diretamente para John, um dos que me observava.
Ele entregou a Ka-Bar do capitão para o mesmo, que ajeitou o cabo
na boca.
Assim que pincei a pele para aproximar os lados e iniciei a sutura
com o grampeador cirúrgico, ouvi os grunhidos que o pobre homem dava.
Devia estar doendo pra caralho. Mesmo com o bloqueio anestésico que
apliquei no local, ainda assim, fazer aquele procedimento, sem dar tempo
para que o efeito fosse efetivo, devia doer. Fora que a injeção já ardia
absurdamente.
Em um dado momento, Scott passou um pano pela minha testa, o
que me fez dar um leve sorriso.
— Estou me sentindo num centro cirúrgico, fazendo uma operação,
e tendo um enfermeiro prestativo secando meu suor — disse brincando,
tentando aliviar o clima tenso.
— Sinta-se à vontade. Sou seu escravo, senhorita — ele disse.
— Meu Deus, pare de paquerar minha cirurgiã, porra. Tenho medo
de que ela costure um coração aí, ao invés da linha reta que precisa — o
Capitão disse. Eu sabia que ele tentava brincar, mas sentia dor em um nível
altíssimo.
Em um determinado momento, notei que o Capitão estava ficando
mais fraco do que o usual. A perda de sangue, aliada ao esforço hercúleo em
tentar se manter forte durante todo o seu martírio, fizeram com que suas
reservas acabassem debandando.
Percebi o exato instante em que a luz de seus olhos começou a
diminuir, classificando uma possível complicação durante todo o processo,
pois não poderíamos correr o risco de um choque hipovolêmico durante o
próximo procedimento.
Parando os pontos que estava dando, que já ganhavam a forma de
um zíper macabro, olhei rapidamente à minha volta, tentando detectar qual
dos homens poderia me auxiliar.
Scott estava ao meu lado, ainda eliminando todos os suores que
escorriam em bicas do meu rosto, tentando conter as gotas de obstruir minha
visão. Então, optei por Tyson, que mantinha a guarda junto com os outros
três fuzileiros da equipe, com seus fuzis em punho, preparados para qualquer
eventualidade.
— Tyson?
— Sim? — ele me respondeu de pronto.
— Você poderia me ajudar aqui um instante?
— Claro. O que você precisa? — perguntou quando se agachou ao
meu lado.
Apontei o kit médico com minha mão ensanguentada.
— Dentro daquele kit reserva que o Major enviou, tem uma bolsa
avulsa de soro glicosado, compacta, além de cateter e toda aquela
parafernália para fazer uma fluidoterapia intravenosa.
Ele olhou para mim, tentando entender exatamente o que faríamos.
— Vou pegar um acesso rápido na veia do capitão, para hidratar e
colocar alguns fluidos pra dentro, tentando dar um pouco mais de forças a
fim de que ele consiga aguentar até o momento do resgate — falei enquanto
ele pegava tudo.
Os outros homens observavam ao longe.
Scott mais uma vez limpou minha testa.
— Scott, eu preciso que você segure essa gaze exatamente sobre
essa região aqui — falei enquanto guardava o grampeador na caixa estéril —,
depois que calçar as luvas que Tyson te entregar. Não queremos que o
Capitão acabe pegando uma infecção porque tocamos as mãos sujas nele, não
é? — Tentei brincar.
— Mas e o que acontece quando ganhamos uma ferida e o kit não
contém essas belezinhas? — Tyson brincou enquanto retirava um kit e jogava
para Scott, que imediatamente as colocava.
— Aí são outras circunstâncias. Situações desesperadas exigem
medidas desesperadas.
Scott assumiu minha posição segurando a gaze no local indicado,
enquanto eu peguei o kit de acesso venoso, abri tudo com cuidado e comecei
o procedimento.
Peguei a mão do Capitão, achando melhor não tentar mexer muito
na vestimenta e puxar a manga liberando a dobra do cotovelo, então eu usaria
o acesso periférico mais rápido. Arranquei a luva tática e procurei o melhor
acesso.
Com um garrote, estabilizei a veia que precisava para puncionar e
deixar o cateter no lugar. Perfurei, sabendo a todo o momento que o Capitão,
mesmo com os olhos a meio-mastro, me olhava como uma águia.
Tentei disfarçar as mãos trêmulas. Já estava sendo tenso ter que
suturar o homem a sangue frio, num ambiente nada propício para isso, em um
momento de pura urgência.
— Tem certeza que não quer um analgésico agora que temos um
acesso rápido? — perguntei enquanto fixava o cateter ao pequeno pacote
portátil de soro.
— Absoluta. O analgésico vai me deixar sonolento e pode
atrapalhar meus reflexos na hora de partirmos — respondeu com a voz rouca.
— Mas com dor você também não é muito funcional, senhor —
falei rapidamente. — Eu ainda vou ter que revirar sua lesão abdominal.
— Garota, mande brasa no que está fazendo aí. Está indo bem, por
sinal — disse e senti meu rosto corar.
— Bom, mesmo eu tendo sido muito gentil e educada, por questão
até mesmo de hierarquia de posto, dei a entender que o senhor poderia decidir
quanto ao uso ou não da medicação para a dor, mas... — falei e passei a
língua nos lábios agora secos — não posso, em sã consciência, Capitão, fazer
o próximo procedimento, sem que tenha preparado seu corpo para a dose
cavalar de dor que provavelmente vou infringir.
O Capitão me olhou assombrado, não sei se com minha ousadia, ou
não, mas não lhe dei tempo para proferir mais nenhuma palavra. Com a
agulha da medicação já preparada, apenas retirei o tampo protetor da agulha e
introduzi a dosagem no equipo.
— Sinto muito.
Depois que terminei de anexar tudo, voltei ao meu posto, ao lado
da coxa do Capitão, peguei o grampeador de volta, afastei a mão de Scott e
retornei ao trabalho.
— Obrigada, Scott.
— Sempre às ordens, linda — respondeu com uma piscadela. —
Quando eu tiver um dodói, vou chamar você pra cuidar de mim, ao invés da
enfermeira Custers.
— Ou do enfermeiro Klaus, lembra? Aquele que ficou
completamente gamado em você? — Tyson zoou de Scott.
— Porra, nem me lembre. Toda hora ele queria conferir o curativo
e a sonda.
Comecei a rir, mesmo que o momento não fosse o adequado.
Depois de “fechar o zíper” da coxa, finalmente a ferida do Capitão
Masterson estava fechada. Não poderia dizer que ficaria uma cicatriz digna
de um cirurgião plástico, mas foi o melhor que pude fazer nas circunstâncias
enfrentadas.
Passei o iodo novamente e em seguida anexei o curativo oclusivo,
para somente pensar em como poderia passar a bandagem em volta da coxa,
de forma que fizesse pressão e mantivesse tudo adequadamente seguro na
hora que ele fosse ser transportado dali para a padiola desmontável. Aquilo
lhe daria até mais confiança.
Fiquei olhando um tempo para a calça, mordendo o lábio, sem
saber o que fazer. Pior era que eu sabia que não tinha tempo para desperdiçar.
— O que você precisa, Ailleen? — Scott perguntou, notando minha
apreensão.
— Preciso que o Capitão tire as calças — falei de pronto e senti
meu rosto quente.
Esse era o mal com mulheres no meio de tantos homens. Entre os
machos haveria alguma brincadeira ridícula? Claro que não.
— Nossa, mas sem nem ao menos me chamar pra jantar? — o
Capitão falou, com a voz um pouco mais fortalecida pela infusão do soro.
Sorri discretamente.
— Eu sou rápida assim, Capitão — respondi na mesma medida.
Cinco anos na Marinha me ensinaram algo importante: os homens
faziam piadinhas com teor sexual como respiravam. E aprendi a não me
mostrar ofendida quando estava ao redor deles, mesmo que muitas vezes
ficasse desconfortável. Nas bases em que fiquei, meu distanciamento
impunha certos limites e os caras evitavam zoadas de duplo sentido, ou
brincadeiras pejorativas. Supus que aquele esquadrão que havia acabado de
me conhecer tentava usar o subterfúgio das brincadeiras tão rotineiras, para
amenizar o nervosismo e cansaço. Optei por entrar no espírito corporativo
para aliviar o clima.
Como ele apenas riu, imaginei que as piadinhas parariam ali.
— Okay. Tyson, embora eu goste que uma mulher faça as honras e
tire minhas calças, será que você poderia assumir esse cargo? — ele ladrou.
— É uma missão estranha e muito fora do meu perfil, Cap, mas o
que eu não faria pelo senhor, não é mesmo? — Tyson brincou.
Quando a calça do Capitão esteve na altura dos joelhos, evitei olhar
para que as brincadeiras de mau-gosto não se alastrassem além da minha
tolerância. Além do mais, não queria que meu rosto vermelho denunciasse o
meu completo constrangimento.
Peguei a atadura e passei várias voltas pela coxa, mantendo a
pressão ideal, nem tão apertado, para não obstruir o fluxo e piorar a situação
abaixo do joelho, nem tão frouxo, para manter a firmeza do processo que
desempenhei ali.
— Capitão, o senhor sabe que não ficará uma cicatriz discreta e
fantástica, digna de um cirurgião plástico, certo? — perguntei, dando voz ao
meu pensamento anterior, e olhei em seus olhos. Ele mantinha o olhar afiado
em mim o tempo inteiro. — Mas fiz o meu melhor.
— Garanto que se fosse um dos homens me costurando, a coisa
poderia ter ficado ao nível do Frankenstein, querida. Então eu agradeço
imensamente o esforço — ele disse com sinceridade.
Teagan pegou outra calça do capitão e ajudou Tyson a vesti-lo por
cima das ataduras, recolocando as botas e tudo mais. Okay. Da pelve para
baixo ele estava como novo. Mais ou menos.
Agora, bastava eu engatar minhas mãos ensanguentadas na ferida
que o homem levava na parte superior esquerda do abdômen.
Abri a camisa, afastando a camiseta por baixo e puxei a gaze que
foi colocada ali provisoriamente.
Teagan ajudou o Capitão a girar o corpo e vi que por trás havia um
curativo por igual.
— Okay, então ele recebeu um balaço pelas costas, suponho, que
saiu e atravessou. Isso é um fato — falei rapidamente.
— Colocamos o curativo anticoagulante, o pó contensor, e a
entrada da bala, na ferida posterior, conseguimos conter um pouco, mas a da
frente ainda não. Temo que qualquer movimento que ele fizer vai fazer com
que o fluxo seja mais intenso ainda — Teagan respondeu.
— Isso se dá pelo fato de eu acreditar seriamente que o Capitão
esteja com uma hemorragia interna. Muito provavelmente o baço foi atingido
no trajeto — falei. — O que nos leva à grande questão: é necessário colocá-lo
num helicóptero urgentemente, porque esse tipo de lesão, somente uma
cirurgia poderá resolver.
— Okay, pelos cálculos, o H-Hawk deverá estar de volta dentro de
mais uma hora — Tyson disse. — O que fazer nesse meio-tempo?
— Uma esplenectomia está totalmente fora de questão — eu disse
mais para mim mesma, do que para eles.
— Uma esplene o quê? — Teagan perguntou.
— A retirada do órgão. Normalmente quando a lesão é grave, o
baço é extirpado.
— Por favor, doutora. Não extirpe minhas tripas — o Capitão
brincou.
Sorri para o homem.
— Abrir para fechar? Porra. Okay, aqui vai o seguinte, preciso de
dois pares de mãos.
Enquanto eu falava, troquei as luvas que já estavam contaminadas,
por novas. Eu não estava num centro cirúrgico limpo e esterilizado.
Estávamos no meio de uma caverna nos territórios da Síria. Mas seria ali que
eu tentaria o meu melhor para que o Capitão chegasse vivo ao seu destino.
— Arranquem as roupas dele — falei rapidamente.
— Meu Deus, mulher. Você é rápida no gatilho, hein? Nem um
vinho? Flores?
— Não dá tempo para todo esse romantismo, Capitão. Você vai ter
que se desnudar na minha frente sem toda essa regalia — brinquei.
— Sem nem ao menos você tirar a sua roupa em conjunto?
Os homens riram e reviraram os olhos. Exatamente ao mesmo
tempo em que revirei os meus.
— Duvido muito que se fosse um soldado fazendo isso, essa
proposta indecente estaria em voga — retruquei.
— Boa resposta — o Capitão pareceu constrangido.
Quando Teagan conseguiu liberar a área que eu precisava, peguei a
solução iodada, joguei sobre a lesão e escutei o chiado inconfundível de dor.
— Vou aplicar uma injeção antibiótica de amplo espectro somente
por precaução. E nem adianta reclamar — ralhei.
— Eu não ia reclamar — ele resmungou.
— Só estava avisando, por garantia.
Com a mão livre, tirei o tubo de proteção da injeção com a boca,
cuspindo no chão de qualquer jeito. Dane-se o asseio. Estávamos no
desespero ali. E o tempo urgia louco e fungava no meu cangote.
Pincei uma parte do músculo e enfiei a injeção, sem mais delongas.
Observei a área lesionada e comecei a pensar o que eu poderia fazer e o que
seria inviável. Operá-lo ali era o mesmo que pedir que ele morresse nas
minhas mãos.
Uma bala quando entra, faz um orifício pequeno e quase oclusivo.
Mas na saída, ela deixa um pequeno estrago, ainda mais se for de um fuzil.
Aparentemente, o tiro não havia sido de fuzil, mas sim de uma
semiautomática. Não me perguntem como eu sei. Eu só sabia daquilo.
— Me dê esse pequeno bisturi, Scott. Já que você é meu ajudante,
continua no posto.
— Claro, madame.
Passei a lâmina fina do bisturi sobre a pele do Capitão, apenas para
expandir um pouco mais a lesão. No caso, muitas vezes eu poderia alegar que
estaria procurando estilhaços da bala, mas na verdade, eu queria chegar um
pouco mais profundo. Quando comprimi a parte posterior esquerda do
Capitão, ele não retratou nenhuma dor, o que significava que seu rim estava
livre.
Com os dedos abri as camadas de pele, músculo e gordura,
chegando à raiz do problema. A pequena fonte de cachoeira sanguinolenta
que teimava em continuar seu fluxo eterno.
— Okay. Aqui vai o seguinte. Vou fazer uma coisa totalmente não-
convencional. Eu vou ocluir a ferida à bala com gaze, como se estivesse
fazendo uma espécie de tampão. Dessa forma, evitamos um sangramento
extenso. Vou fechar tudo e vamos levar esse grande homem ao centro
cirúrgico mais próximo, o mais rápido possível, porque lá eles vão corrigir
esse trabalho fajuto aqui — falei e os homens me olhavam assustados. Tudo
isso porque enquanto eu falava, eu já executava as ações.
Meus dedos tocaram levemente no órgão esponjoso do baço. Porra.
Eu estava com os dedos dentro do Capitão Masterson. Dentro de suas
entranhas. E se aquilo não era uma posição de intimidade máxima, eu não
podia dizer o que mais seria. Estava realmente conhecendo intimamente o
interior do homem.
Scott limpava meu suor, que agora escorria loucamente pelo rosto e
pescoço.
Eu inseria as gazes por dentro, contendo o fluxo, de forma branda.
Eu tinha que dar o braço a torcer para os médicos-cirurgiões. Como
eles conseguiam fazer aquilo em uma base diária? Claro que com os
equipamentos certos, o local ideal, a estrutura adequada, era outra coisa. Mas
ali, no campo de batalha, no meio do desespero... estava sendo tenso e
aterrador. E olha que minha função era meramente... cobrir um buraco. Ou
dois.
Depois de quase vinte minutos de gemidos dolorosos do Capitão,
onde ele mordia o cabo de sua faca com tanta força que eu chegava a ouvir
sua mandíbula estalar, eu podia dizer que estávamos chegando ao final.
Fiz o mesmo processo na lesão da entrada da bala, cobri tudo com
curativos oclusivos e, por fim, enrolei o tronco do Capitão com a atadura
apertada, de maneira que mantivesse todo o processo de tamponamento
firme.
Era apenas uma questão de compreender que, o Capitão precisava
chegar a um centro cirúrgico imediatamente. O que fiz ali foi apenas uma
alternativa ao estilo “McGyver”, de forma tosca, para que quando fosse
transportado, não vazasse pelos poros como se estivesse com uma torneira
aberta.
— Mulher, você realmente me enrolou hoje, não é mesmo? —
brincou.
— Com certeza, Cap — respondi e lhe dei um sorriso. — Agora, eu
vou retirar o acesso venoso e vamos prepará-lo para colocá-lo na padiola —
eu disse aquilo, já ajudando o Capitão a vestir a camiseta, sem perceber que
quase estava com meu corpo por cima do dele. E muito menos notar que ele
não era um menininho que precisava de ajuda.
Acho que meu lado condoído estava aflorado por todo o tormento
que infringi ao homem, então, eu só queria ajudá-lo.
— Tudo bem.
Depois de tudo feito, retirei o acesso, joguei os apetrechos todos
usados, bem como as gazes ensanguentadas, dentro de um saco preto, guardei
na maleta de kit médico e nos preparamos para sair daquele pequeno inferno.
Teagan e John carregavam a padiola desmontável que levamos para
o resgate do Capitão. O que foi uma ótima decisão, já que mesmo sem
imaginar que a lesão fosse tão grave, seria impossível colocá-lo de pé,
mesmo o homem alegando que daria conta de ir caminhando. Porém era claro
como a água que ele estava sem forças suficientes para se manter por conta
própria, além de poder romper todos os pontos do excelente trabalho que eu
havia feito.
Tyson seguia na frente do grupo enquanto Colin e Scott protegiam
a retaguarda. Eu seguia atrás do Capitão, observando sua evolução. Ele
estava impaciente, pois tinha que permanecer amarrado. Eu entendia bem o
conflito.
Quando chegamos à clareira, nos mantivemos escondidos atrás de
um grande apanhado de arbustos, não sem antes Tyson correr até o centro da
área onde o helicóptero pousaria, a fim de colocar rapidamente um
sinalizador.
Daquela forma o piloto saberia de cima, que já estávamos a postos,
prontos a embarcar na aeronave. Em casos de resgate, muitas vezes o
helicóptero nem chegava a tocar o solo.
Os resgatados deviam ser rápidos e evacuar a área com precisão.
Era por isso que treinávamos ostensivamente táticas básicas de fuga e retirada
de reféns.
Eu nunca imaginei que estaria realmente envolvida em uma, mas
agora agradecia por ter me empenhado em cada treinamento recebido.
Suspirei aliviada quando a grande aeronave apontou acima de
nossas cabeças e desceu ao centro da clareira. Tyson guiou o grupo, com
Teagan e John praticamente correndo o mais rápido que podiam, carregando
a padiola com um pálido Capitão, que ainda se mantinha estoico, sendo
seguidos por mim, Colin e Scott, que corria de costas, olhando o tempo
inteiro se não estávamos sendo seguidos.
Cada um subiu no helicóptero, colocando seu cinto de segurança,
mas quando percebi que uma das alças da maca improvisada do capitão –
porque haveria a necessidade de ele ir deitado, obviamente –, estava solta,
podendo lhe trazer uma lesão sobre a área da coxa suturada, resolvi soltar
meu cinto para amarrá-la.
— O que está fazendo? — Colin gritou.
— Ele não pode ir com esta parte solta! Ou o tranco do helicóptero
pode movimentar a perna lesionada e área do flanco atingido! — gritei de
volta.
Colin tentou me ajudar, enquanto Scott mantinha o olho na área,
Teagan se firmava na lateral e John e Tyson davam comandos para o piloto
seguir.
Ao me virar para voltar ao meu lugar, senti uma agulhada no ombro
e gritei de dor.
— Atirador! Atirador! — Colin gritou para Scott que posicionou
sua arma em busca do alvo.
Foi apenas na segunda rodada que o tranco de uma bala atingiu o
colete Kevlar que eu usava, me desestabilizando totalmente da posição
agachada onde me encontrava.
Dali para o que aconteceu, podemos dizer que foi tudo em câmera
lenta e com horror total. Tanto meu, quanto da equipe de homens que
estavam comigo.
Meu corpo pendeu para trás, e a porta da aeronave ainda estava
aberta.
Como o piloto fez uma manobra de evacuação intensa para evitar
as rajadas de bala que vinham na nossa direção, ele virou o aparelho
exatamente para o lado que eu estava.
O resultado foi que, mesmo que o Capitão e Colin tivessem
esticado a mão para segurar meu corpo, foi impossível conter a minha queda.
Os outros homens estavam afivelados em seus próprios assentos e não
conseguiriam, em hipótese alguma, me alcançar a tempo.
Claro, não foi uma queda de um prédio de vinte andares. Foi mais
uma queda de uns dois metros até o solo arenoso, onde meu corpo estatelou-
se e eu só fiz um Ooooomff!, brusco. Chocado.
Meus olhos estavam arregalados, encarando os olhos mais
chocados ainda dos fuzileiros que ainda estavam no helicóptero que agora
ganhava altura.
Eu podia ouvir ao longe.
— Oficial ferido! Oficial ferido! Volta essa porra de helicóptero,
caralho!
Quem gritou, eu não poderia dizer, porque antes de eu fechar os
olhos para a escuridão, dois pares de olhos assustadores, com as cabeças
cobertas por aqueles lenços engraçados que os militantes da área usavam,
entraram em foco.
Puta merda. Eu estava, literalmente, na merda.
Consegui ajudar na fuga e resgate do Capitão Masterson. Mas o
preço foi que um sacrifício ficasse no local. Eu estava me sentindo a merda
de um cordeiro indo para o matadouro.
O helicóptero H-Hawk pousou no solo do porta-aviões no horário
exato e meu coração estava disparado porque eu não queria acreditar que as
informações enviadas para a sala de comando fossem verdadeiras. Não era
incomum que em alguma operação um problema surgisse, ainda mais em
áreas de conflitos intensos. Para todos os efeitos, tudo o que foi dito era
truncado, atropelado e eu só sabia que algo tinha saído errado.
Quando as portas se abriram, uma equipe médica já estava a postos;
uma aeronave estava preparada para levar o Capitão Masterson para a base da
Alemanha.
Ele saiu rugindo como um leão ferido, recusando-se a sair na maca.
— Que caralho! Esse piloto filho da puta não entende a merda de
um comando, porra! — gritou e eu marchei em sua direção.
Quando me viu, pude observar que seus olhos estavam vítreos e
com uma ira profunda irradiando.
— Acalme-se, Masterson. Ou isso vai agravar sua situação — falei
e vi quando cada um dos fuzileiros do grupo de operações especiais desceu.
— O piloto recusou-se a voltar para alvejarmos os alvos, Major.
Eles estavam na mira, mas quando fez a manobra de evacuação nos tirou da
reta! — Tyson gritou do outro lado.
Colin e Teagan estavam em igual estado.
O piloto ofendido desceu, temendo por sua vida.
— Major, eu fiz o que me foi mandado. Em caso de ameaça à vida,
evacuar a área não importa o quê — falou rapidamente e engoliu em seco.
Naquele momento percebi que algo estava errado. Pelo rádio, ouvi
que um dos fuzileiros havia sido atingido. O estado de nervos dentro da
aeronave estava tão acima do normal que o rádio não passava as informações
com coerência.
Senti meu sangue gelar.
— Onde está a Oficial Anderson? — perguntei, mas foi difícil
disfarçar o medo na minha voz.
— Esse piloto filho da puta nos fez perder a garota! — o Capitão
ladrou e só não avançou para o piloto porque John e Colin o seguraram. E
porque também estava impossibilitado e amarrado na padiola.
— O quê?
— Ela estava firmando uma das correias da maca, quando foi
atingida por um franco-atirador. O piloto fez uma manobra curva que a jogou
para fora da aeronave — Tyson disse e estava quase chorando. Era difícil ver
um homem chorando. Um fuzileiro então era quase impossível.
Uma das regras básicas de todo fuzileiro naval, ou mesmo todo
soldado, seja qual força ele esteja servindo. Nunca abandone seu
companheiro de equipe. Nunca. Então eu podia entender agora o que os
motivaram na ira ardente que sentiam.
— Como assim caiu da aeronave? — Eu ainda estava chocado.
— A porta lateral estava aberta. O helicóptero não pousou.
Entramos rapidamente, mas ela saiu do lugar quando viu uma correia solta.
Na manobra brusca, ela caiu — o Capitão falou.
— Eu acho que ela foi atingida duas vezes — Colin disse. — Uma
de raspão no ombro e acho que o que desestabilizou seu corpo foi o impacto
da segunda, que atingiu o Kevlar.
— E... e-ela caiu?
— Sim. De uma altura média de dois metros e meio. O helicóptero
ainda estava alçando voo. O problema é que se esse merda de piloto tivesse
mantido a posição, Scott e Teagan teriam conseguido atingir os franco-
atiradores, nos permitindo evacuar a área. Ou mesmo, se este merda tivesse
acionado a metralhadora com que esta porra de aeronave é equipada, caralho!
— o Capitão ladrou. — Teríamos matado os filhos da puta e os meninos
poderiam tê-la resgatado.
Naquele momento, seu corpo pediu arrego, já que começou a cair
deitado de volta na maca. John e Teagan o seguraram.
— Aquela garota me costurou inteiro, porra. Sem vacilar uma única
vez. Agiu com maestria, mesmo eu tendo percebido que provavelmente deve
ter sido sua primeira incursão em campo — ele disse em uma voz pesarosa.
— E agora ela está ferida e muito provavelmente caiu nas mãos de milicianos
do ISIS da área. Se não tiver acontecido coisa pior...
— Me recuso a acreditar que perdemos a menina — Tyson disse
firme. — Proponho que voltemos imediatamente para resgatá-la.
Ergui a mão e passei a outra pelo cabelo curto, sentindo vontade de
puxar pela raiz. Que porra! Eu havia colocado a jovem na missão. Crente que
cercada de seis fuzileiros navais bem treinados, ela estaria segura. Seis dos
melhores homens, não apenas dos comuns que estavam sob meu comando,
mas RECONs, então, o mínimo que eu esperava era que a garota estivesse
mais protegida do que o quadro da Monalisa no Louvre. E agora a situação
que eu tinha nas mãos estava completamente fora do meu controle.
Ela não somente estava ferida em algum lugar, mas Deus me
perdoe, sob as mãos de jihadistas, brutais e conhecidos pelo tratamento nem
um pouco acalentador com militares americanos.
O que dirá com uma mulher.
Caralho!
— Okay. Aqui está o que vamos fazer. Nós vamos selecionar duas
equipes distintas. Preciso apenas crer que ela será esperta e acionará o
mecanismo de rastreio que tem no MARPAT — falei confiante de que
Ailleen Anderson seria astuta para isso.
Claro que cada soldado era enviado com rastreio de GPS,
exatamente para o fato de que se caísse nas mãos atrás de linhas inimigas,
pudessem ser rastreados por seus compatriotas e resgatados o quanto antes.
O pior que poderia acontecer era que os militantes do Jihad, quando
capturavam soldados americanos, não tinham misericórdia alguma. Eles
faziam o pedido de resgate ao Governo americano, que era conhecido pela
política dura e extrema de nunca negociar com terroristas, em hipótese
alguma.
Muitos militares e civis perderam a vida por conta disso. Então
cabia ao comando superior enviar suas tropas específicas para resgate de
reféns. Era aí que entravam os oficiais das forças táticas oficiais de
reconhecimento, os RECONs ou quando exigidos, os Navy Seals, da Marinha
americana.
— Merda. Capitão, eu preciso que você siga para a Base alemã —
falei, e quando o vi negando, ergui a mão. — Não adianta discutir. Pense da
seguinte forma: coloquei esta jovem em perigo imediato para resgatar sua
bunda e resguardar sua vida. A dela não terá valido a pena se você for um
teimoso filho da puta e se recusar a seguir os tratamentos médicos
necessários para se manter vivo.
Ele calou a boca e assentiu.
— Vou mantê-lo informado. Os oficiais da equipe IV vão ficar e
descansar — falei.
— Senhor, pedimos permissão para ir junto, senhor — Teagan
disse. — Nos sentimos responsáveis pela garota.
— Eu sei, mas vocês estarão 100% para enfrentar novamente o
resgate? — perguntei. — Eu creio que não. Acabaram de voltar de uma
missão que durou mais do que deveria. Foram alvejados e precisam se
recuperar.
— Senhor, eu peço pra ir junto, senhor — Teagan insistiu. — Por
favor.
Conferi o estado geral do Tenente e percebi que suas injúrias eram
mínimas em comparação ao de seus companheiros.
— Okay. Tyson, Scott, Teagan e Mendes. — Olhei ao redor. —
Mendes! Venha aqui imediatamente!
— John, você segue para a base alemã com o seu Capitão —
informei. Vi quando ele quis refutar, mas meu olhar foi o suficiente para calá-
lo. — Colin, quero você aqui na base.
— Mas, Major...
— Você teve uma concussão na última missão, engatou nesta e
teve que ser resgatado. Seu corpo precisa de reparo, meu jovem. Sem
discussão.
Olhei ao redor e chequei a tabela de aplicativo do pequeno
dispositivo que sempre carregava.
— Stan, Bronx, Adam e eu vamos seguir na equipe alfa — falei e
ouvi o arfar de susto.
— O senhor vai junto? — Tyson perguntou assombrado. — Mas e
a Base?
— Meu segundo em comando, o Primeiro-tenente Chammbers
ficará encarregado enquanto não voltamos e trazemos nossa garota de volta
— falei.
Pouco me importava que eu tinha recebido ordens para seguir no
mesmo voo da Alemanha, junto com a equipe que levaria o Capitão
Masterson de volta à terra para os devidos cuidados.
Eu havia colocado Ailleen na missão. Nada mais justo que fosse eu
a tirá-la da enrascada. E Deus ajude que ela ainda estivesse inteira e bem,
porque o mundo iria ruir com a minha ira quando eu colocasse as mãos em
cada um que tivesse trazido dor àquela garota.
Acordei e tentei abrir os olhos, mas parecia que um quilo de areia
do deserto estava embaçando minha visão. A dor aguda no braço trouxe à
memória que muito provavelmente eu tinha levado um tiro, o que foi
chocante, já que foi a primeira vez, e puta que pariu, aquela experiência não
era nem um pouco agradável e divertida. Ainda bem que foi de raspão, ou eu
estaria sangrando até a morte. O que significava que estaria acordando em
outro plano, e esperava ardentemente que fosse no celeste.
Sentia minha boca rachada e precisava urgentemente de água.
Percebi que estava com as mãos e os pés amarrados, deitada em um catre,
num quarto úmido e escuro. Podia ouvir ao longe um rádio tocando uma
canção árabe melodiosa.
Mesmo sem forças, tentei sentar, e a dor quase trouxe um grito à
minha garganta já judiada.
Uma porta se abriu e imediatamente me encolhi num canto. Ou
tentei, da melhor maneira que pude, já que parecia um frango assado
amarrado.
Uma mulher jovem, vestida com os típicos trajes da região, entrou
e me olhou com desconfiança total. Okay, querida. Eu também estou
refletindo esse olhar desconfiado, certo?
— Água? — pedi educadamente. Eu sei que estava na merda,
provavelmente era uma refém, moeda de troca, mas não custava nada ser
educada, não é?
A mulher me ajudou a sentar, colocou um copo à frente da minha
boca e me ajudou a beber.
Meu corpo estava moído. Eu nunca imaginei que até os fios de
cabelo pudessem doer, mas era verdade. Acho que culpa do imenso galo que
eu tinha no couro cabeludo, resultado da queda brusca do helicóptero.
Yaaaay! Olha que emoção. Fui para minha primeira missão; costurei um
homem; meti os dedos dentro dele; levei um tiro; caí de um helicóptero em
pleno voo e agora era refém de militantes, muito provavelmente ligados ao El
Jihad, um dos grupos terroristas que mais odiavam os Estados Unidos. Pior,
se eles fossem ligados ao ISIS, eu realmente estava com meu atestado de
óbito assinado. Quão bacana era isso?
Depois que terminei de beber e babar bastante por todo o meu
corpo, a mulher cortou um pequeno pedaço de pão seco e colocou na minha
boca, esperando que eu mastigasse cada fatia.
Sacudi a cabeça, sinalizando que não queria mais.
— Obrigada — agradeci, mesmo que a situação fosse estranha pra
caralho. Quem agradece ao seu captor?
— Você americana? — ela perguntou com um forte sotaque.
— Sim.
— Soldado americana?
Apenas acenei.
— Homens acharam você — falou e continuou me encarando. —
Vão trocar você.
Fechei os olhos porque, ali, soube que era o meu fim. Não haveria
troca.
— Vão falar com você — ela disse, fazendo com que eu abrisse
meus olhos.
— Okay — respondi, mas senti o medo me assolar.
A mulher saiu e menos de vinte minutos depois, pelos meus
cálculos, dois homens fortemente armados entraram no quarto.
Engoli em seco, sentindo o medo se alastrar pelo meu corpo. Mas
eu não demonstraria em hipótese alguma.
Eu já tinha conseguido, milagrosamente, apertar o pequeno
dispositivo instalado no meu cinto. O dispositivo que poderia demarcar
exatamente para qualquer equipe de resgate, se é que haveria uma, onde era
minha exata localização.
Honestamente, eu esperava que houvesse um resgate.
Mesmo que fosse apenas um fuzileiro, eu sabia que o lema da nossa
força militar era nunca deixar um companheiro para trás. Então, eu esperava
que o Major resolvesse que minha vida valia a pena ser resgatada.
— Nunca pegamos soldados mulheres — um dos homens falou e
cuspiu no chão. — Agora os Estados Unidos estão ficando sem homens
suficientes e colocando suas mulheres à frente, é? — zombou e o outro riu.
— Pior que isso... estão deixando para trás — o outro disse e
passou a mão pelo meu rosto. Afastei a cabeça rapidamente.
O homem segurou meu queixo com força.
— Essa é bonita, Rashid. Daquelas que nos fazem cair em pecado,
que Alá nos ensina a dar uma lição por usar a beleza para tentar os homens
— cuspiu o ódio intenso em minha direção. — Ao invés das roupas que
deveria usar, cobrindo suas partes, usa essas coisas grudadas ao corpo,
mostrando tudo.
— Roupas de homens, Mohammad — o tal Rashid falou. — Talvez
ela seja como eles.
— Pode ser, mas ainda assim é mulher — disse, lambendo os
lábios enquanto olhava para o meu corpo com lascívia. Senti as náuseas
subirem.
— Como você faz contato com seu comando? — Rashid
perguntou, ainda segurando meu queixo. Provavelmente ficaria roxo.
Não respondi nada. Naquele momento, veio à memória todos
aqueles filmes onde víamos os soldados americanos caindo em mãos
inimigas e sendo torturados para delatar os segredos de seu país. Agora eu
entendia qual devia ser a sensação na vida real.
Resolvi que seguiria aquele episódio macabro como se fosse o
roteiro de um filme hollywoodiano, e não daria informação alguma aos meus
captores.
Mantive o silêncio.
— Fale, mulher!
Ainda assim não respondi.
O que não esperava era o tapa brutal que levei. Bom, se estivesse
seguindo o roteiro, claro que em todo filme, a tortura vinha acompanhada de
atos doloridos para a vítima indefesa. No caso, eu. Então, o que eu esperava?
Que o cara ali fosse me dar um chá de hortelã e um pedaço de cupcake?
Percebi que meus pensamentos estavam devaneando como se eu não quisesse
acreditar que aquilo ali fosse real.
Senti o sangue no canto da boca.
Voltei o rosto e mantive o ar estoico, embora a vontade fosse de
chorar como uma garotinha que estava apanhando do garoto valentão da sala.
Ops... eu já tinha enfrentado uma surra, anos atrás. No baile de formatura...
Bem, não naquelas condições em que eu me encontrava agora, mas, enfim...
— Como fazemos pedido de resgate ao seu Comandante? —
insistiu.
Cara... minha boca parecia que tinha uma superbonder. Eu não
conseguia abrir para responder adequadamente. Então fiquei calada.
E o meu silêncio foi a minha ruína.
Aquilo irritou os brutos à minha frente. Levei um soco no
abdômen, e mesmo com o colete Kevlar ainda – o que me mostrava que eram
amadores, já que não me despojaram dos aparatos militares básicos –, doeu
pra caralho. Agradeci a Deus por isso, mesmo naquele momento de agonia
extrema.
Um puxão de cabelo quase estalou meu pescoço, fazendo com que
eu rangesse os dentes, mas ainda assim não lhes dei o gostinho de me verem
chorar em lamúrias. Aguentei estoicamente. Um dos homens que não fazia
ideia do que era asseio bucal encostou o nariz ao meu e gritou:
— Como. Fazer. Contato. Com. Seu. Exército? — Ainda era
estúpido, o filho da puta, já que nem diferenciar as forças armadas,
aparentemente, ele sabia. Eu era Marinha, porra. Fuzileira naval com muito
orgulho. Sabia que os militares americanos eram detestados em quase todo o
Oriente Médio, mas se havia um esquadrão que eles mais temiam, era o dos
fuzileiros.
Diante do meu silêncio, só restou aguardar pelos próximos golpes
que vieram sem demora. Mais um tapa, outro soco, seguido de mais um, onde
terminei arfando e vomitando os pedaços de pão que a moça me dera antes,
além da água.
— Porca — um deles falou.
— Você bateu no estômago, imbecil. O que esperava? — o outro
retrucou.
— Ela vomitou na minha sandália.
— Vá limpar. E prepare o quarto escuro. Acho que nossa hóspede
vai ficar confortável ali.
Um dos homens saiu, mas o que permaneceu, manteve a atenção e
o foco em mim.
Passou as mãos pelo meu rosto, braços, especialmente sobre a lesão
aberta do tiro, afundando um dedo na área, onde gemi um pouco.
— Gosto de gemidos — ele disse.
Seus dedos percorreram meu pescoço e ele pensou seriamente em
retirar o colete.
— Pena que essa roupa de homem cobre seus atributos aqui —
disse e apontou para os meus seios. — Eu gosto dessa parte feminina. Mas
podemos brincar depois.
As carícias repugnantes prosseguiram pelo meu rosto.
— Você é bonita — ele disse.
Eu não gostava de ser bonita. Não queria ser lembrada em
momento algum que ao atrair a atenção de um homem e ficar à mercê dele,
eu não passaria de uma pessoa patética como a que estava sendo ali naquele
momento.
“Quando eu disser que você vai ser minha, é isso o que vai
acontecer... entendeu?”
Em todo momento, mesmo que ainda mantivesse ardendo em mim
a chama da feminilidade latente, ainda assim, sempre fiz questão de me
esconder por baixo de uma camada de indiferença, fazendo de tudo para não
chamar atenção de homem algum. Eu queria ser aquela a sentir desejo, não a
que fosse desejada. Porque sempre associei a isso... desejo repulsivo e
violência ante a negativa evidente.
Eu era uma prisioneira. Entendia bem o sentido da coisa. Ainda
assim, era duro lidar com o fato de que minha condição de mulher me
desfavorecia, pois era somente isso o que eles viam.
— Acho que vou gostar de me divertir com você. Depois que
aprender a respeitar Rashid — ele disse. — Você vai passar um tempo no
quarto escuro. Até pensar direito e responder minhas perguntas.
Fique sonhando, idiota. Mesmo que você pergunte, eu não tenho as
respostas. Não sou a merda de um agente secreto, seu burro.
Minha vontade era dar uns gritos daqueles, mas achei que já tinha
levado uma surra considerável. Eu já podia sentir meu rosto inchando. Um
dos socos atingiu o olho, ainda bem que ele evitou o nariz, ou certamente
estaria quebrado. Mas eu podia sentir o olho esquerdo começando a querer se
fechar como as cortinas de um espetáculo teatral macabro.
Quando o outro bruto voltou, me pegou sem a menor educação,
jogando meu corpo no chão, e saiu me arrastando, com uma mão firme no
meu rabo de cavalo, o que trouxe um grito de dor, e outra na alça do colete da
roupa.
O idiota nem ao menos se dignou a me erguer no colo, ou levar no
ombro, o que fosse, ele simplesmente me arrastou como um homem das
cavernas devia fazer com as mulheres na época.
Teve a ousadia de me arrastar por um lance de escadas, pequeno,
ainda bem, fazendo com que cada degrau fosse um choque de dor pelo meu
corpo. Podia sentir cada osso do meu corpo se chocando como peças de um
quebra-cabeça sendo desmontado.
Eu seria um mapa geográfico de roxos e hematomas das mais
diversas tonalidades daquele jeito. Sabia que no calor do momento, enquanto
a adrenalina ainda circulasse pelo meu corpo, a dor que eu percebia era
mínima perto da que eu sentiria logo mais.
Quando chegamos a um quarto no canto mais escuro da casa, ele
me jogou num canto, sem a menor cerimônia, e trancou a porta.
O quarto era totalmente escuro. Sem nenhuma fresta de luz. Nada.
Senti as grossas lágrimas descendo pelo rosto, porque agora eu
poderia dar vazão ao medo. Eu ainda estava com mãos e pés atados.
Literalmente. Senti medo como nunca havia sentido na vida.
Eu podia ser militar. Ser fuzileira com orgulho. Mas ainda assim
era humana. E estava com medo. Muito medo.
Não fazia ideia de quanto tempo estava ali. Já tinha perdido a
noção. Quando estamos vivendo um evento louco como o que eu enfrentava,
parecia como se estivéssemos em uma realidade paralela, como se fosse o
corpo alquebrado de outra pessoa, depositado no chão sujo. Espancado
sistematicamente, de uma em uma hora. Pelo menos era o que parecia. O tal
Rashid, depois de me trancafiar no quarto da escuridão, voltou um tempo
depois e começou uma sessão sistemática que faria inveja a Christian Grey.
Eu podia sentir até agora os vergões ardendo na minha pele. Foram
com tanta intensidade que tinha certeza de que haviam rompido as fibras da
roupa tática em um primeiro momento.
Quando o jihadista filho da puta retornou, voltou com um balde de
água gelada. Onde ele havia conseguido os cubos de gelo, eu ainda estava
matutando para descobrir. Para mim, naquele lugar árido, parecia meio
surreal imaginar um freezer para fabricação das pedrinhas que desceram
sobre o meu corpo como uma chuva de granizo com capacidade F5 na escala
dos furacões. Ou seja... nada de pedrinhas miúdas. Pense em cubos enormes
sendo arremessados.
— Como fazer contato com o seu comando? — Rashid gritava ao
me segurar pelo cabelo.
Trinquei os dentes. Podia sentir o sangue na boca, mas não falaria
nada. Eu podia morrer, mas morreria com honra.
O homem ficou enfurecido. Pode ter sido por conta do cuspe
ensanguentado que arremessei na direção do seu rosto, daí partiu pra pior. Ele
finalmente lembrou-se da faca que usou para cortar as amarrações do meu
colete Kevlar. Daquela vez usou para me despojar das minhas vestes. E o
medo bateu com intensidade. Medo de ser estuprada, talvez. Me matem, mas,
por favor, não tirem minha dignidade como mulher, tomando uma coisa que
não pertence a quem eu não queira entregar.
“Nunca vai dizer não para mim, entendeu? Nunca!”
Pensamentos voltaram e trouxeram lágrimas aos meus olhos
enquanto eu sentia a faca cortando as minhas roupas. Rashid me deixou
apenas com a camiseta e as roupas de baixo. E recebi mais um balde de água
gelada. Sufoquei, trincando os dentes.
— Eu vou voltar aqui, moça. E você não vai gostar nada. Porque
vou usar tanto o seu corpo, que você vai implorar pra morrer. Mas eu não vou
deixar. Vou usar de novo, e de novo e de novo. E depois, posso passar para o
Mohammad. E quando você for apenas uma boneca quebrada da pátria que
defende com tanta honra, vamos deixar seu corpo largado no mesmo lugar
onde a pegamos.
O imbecil falou aquilo e saiu. Fiquei no escuro novamente.
Desprovida das minhas roupas, da coragem e da esperança que sempre senti
quando estava nas forças armadas.
No processo, percebi que até mesmo cortou as amarras que ainda
me mantinham cativa, mas eu não tinha mais forças para sequer lutar contra
absolutamente nada que me exigisse esforço.
“Tão linda... gosto assim. Quieta. Apenas esperando e ao meu
dispor...”
Batendo os dentes de frio, até mesmo agradeci um pouco pela água
gelada, já que ela anestesiou um pouco as dores que meu corpo propagava ao
cérebro. Sim. Porque o comando inverteu ali. Meu cérebro já estava se
desligando totalmente. Minha mente revoava em busca de alternativas e
imagens onde eu pudesse focar e esquecer que meu destino era muito pior do
que o que imaginei.
Não haveria salvação para Ailleen Anderson. Eu seria apenas mais
um número de identificação em baixa. Desaparecida em missão. Ergui um
das mãos, com dificuldade extrema, e agarrei a dog tag que trazia meus dados
com a identidade da pessoa que eu era ali e que deixaria de ser. Um sorriso
deslizou pelo meu rosto, concomitante a uma lágrima furtiva, apesar de tudo.
Provavelmente eu seria lembrada, não é? Executei com maestria a missão de
“consertar” o Capitão, que era uma figura muito mais importante das forças
armadas do que eu, uma mera Oficial em treinamento. A Marinha americana
ficaria agradecida.
Eu esperava que ele estivesse bem. Esperava que Carrie e Anya
guardassem meus pertences e nunca abrissem a merda do meu diário, ou
descobririam que eu ainda tinha ilusões idiotas e românticas.
Estava tão alienada e desfocada do mundo ao redor que nem ao
menos registrei direito o momento em que duas mãos me levantaram do chão.
Oh, merda. Lá vinha o imbecil cumprir seu plano indecente.
— V-vo-cê po-pode me estu-tu-prar, idi-diota... ma-s da mi-minha
bo-boca não sa-sai na-nada — cuspi.
Acho que apaguei.
Você pensa em chegar com calma e conversar com alguns filhos da
puta que estão mantendo uma mulher refém? Não. Claro que não.
Como antigo RECON, sempre fui reconhecido como equilibrado.
Pensava, planejava com calma... antes de invadir determinada localização
para passar os dados necessários às equipes de busca. As medalhas que eu
guardava mostravam a razão de ser conhecido como Ghost.
Mas no momento em que as duas equipes entraram na aeronave e
desembarcaram na área designada, seguindo o rastro do dispositivo GPS que
mostrava a exata localização da Oficial Ailleen Anderson, sumiu o homem
focado. O Major equilibrado e bem constituído nas forças especiais. Em seu
lugar entrou um homem puto, obcecado em descobrir onde a garota estava
para retirá-la das mãos daqueles animais. Eu mesmo destruiria o lugar.
E na minha mente passavam imagens da forma hedionda com que
eu os mataria se algo tivesse acontecido com Ailleen. Eu me sentia
responsável por ela? Sim. Eu a coloquei na missão. Era mais do que justo que
me sentisse obrigado a partir em seu auxílio e garantir que ela estivesse bem.
Meu coração estava acelerado, podia sentir o estômago na boca, os joelhos
falhando. Até mesmo os meus dentes rangiam de ódio. O que a garota
corajosa e temerária devia estar sentindo naquele momento?
Homens muito mais fortes já se renderam aos horrores da guerra.
Ela estava segura e protegida, até então, dentro do porta-aviões. E eu
simplesmente a enfiei em um campo minado, onde militantes do grupo mais
brutal poderiam estraçalhar seu corpo pelo mero fato de ela ser militar das
forças americanas.
— Teagan, o sinal? Onde está? — perguntei.
— Vem daquele casebre no alto da viela, senhor. Vê? Com a parca
iluminação? Há apenas um homem de guarda. Scott disse que uma mulher
pode ser vista na cozinha, pela janela, mas usa as vestes típicas da região,
então achamos que pode ser companheira de alguém do grupo. Há três
homens na casa. O que faz a guarda e dois no interior — informou.
Naquele momento Mendes voltou com o outro grupo.
— Não há garantias de que as outras casas ao redor não abrigam
simpatizantes do ISIS, mas podemos armar pontos estratégicos para a fuga e
evasão do local, senhor. Qualquer ameaça será exterminada pela mira dos
snipers.
— Ótimo. Não queremos confusão e nenhum incidente diplomático
recaindo sobre uma possível missão surpresa e obscura no meio do nada na
Síria, sem o devido conhecimento do Comando da Marinha, mas não ia
passar por uma porra de burocracia para esperar resposta do General Stuart
até que fosse autorizado a buscar nossa garota — informei. — Já se passaram
quantas horas?
— Cinco, senhor.
Porra.
— Tempo mais do que suficiente para esses merdas fazerem sabe-
se Deus lá o quê com ela — relatei meu maior medo. — Quando entrarem na
casa, matem. Deixem apenas a mulher, se não impor ameaça. Pensem com o
instinto. Se houver crianças, evacuem para algum cômodo.
— Sim, senhor.
— Vamos agir rápido.
Marchamos pelas sombras que nos recobriam, entrando nos
escombros da viela pobre e decadente. Sinalizei para a equipe IV, comandada
por Teagan, para que cobrissem a área frontal.
Mendes, Adam e Bronx se posicionaram em ângulos perfeitos que
nos permitiriam evacuar o local carregando a carga que viemos buscar. Dali
não sairíamos sem ela. Stan seguia atrás, e manteria a guarda assim que
entrássemos no casebre.
Quando imobilizamos o primeiro homem, e por imobilizar eu quero
dizer exterminar mesmo, porque a adrenalina era tanta que não houve tempo
para parar e conversar sobre o clima ou a bolsa de valores, entramos na casa.
A mulher nos olhou assombrada e quando fez sinal que ia gritar, apontei o
fuzil diretamente para sua cabeça.
— Mulher soldado... — ela disse sem hesitação, mas com a voz
trêmula. — Lá embaixo. — Apontou uma porta que mostrava uma escada de
pedra decadente.
— Quantos homens na casa?
— Dois.
Eu já sabia disso, mas não custava nada conferir a informação.
Fiz sinal para que não falasse mais nada e alertei Scott para que a
mantivesse calada.
Desci as escadas com Teagan e Tyson às minhas costas. A parte
inferior era como se fosse uma caverna toda de pedra, com duas salas que
mais pareciam gaiolas imundas. No canto oposto, havia outra pequena
escada, que levava para outro piso. Era como se descêssemos para um nível,
mas houvesse outro às escondidas, que subia novamente.
Teagan vasculhou as duas jaulas, constatando que estavam vazias.
Ouvimos uma voz em árabe discutindo abertamente com outro homem e nos
colocamos à espreita, pois ele desceria exatamente da escada oculta. Quando
o homem atarracado apontou, arremessei meu corpo contra o dele e segurei
sua garganta em um aperto mortal. Podia sentir sua traqueia quase se partindo
entre meus dedos.
— Onde ela está?
O homem estava ficando roxo. As veias estouravam nos globos
oculares.
— Major, o sinal indica logo acima.
Minha vontade era espancar o homem, mas eu sabia que não teria
tempo, então, simplesmente apertei com mais firmeza até ouvir o estalo em
minha mão. O corpo sem vida caiu no chão.
Segui à frente, Teagan me dando cobertura, Tyson mantendo a
guarda na escada, para uma eventualidade.
O homem me viu e tentou gritar.
— Mas que...
Atirei em sua perna esquerda primeiro.
O grito foi ensurdecedor. Você pensa que eles são corajosos e
altamente guerreiros em táticas de tortura, mas quando chega o momento em
que precisam confrontar a morte, viram bebês chorões.
Cheguei diante do seu corpo esparramado no chão, onde o homem
tentava conter o fluxo de sangue, gemendo de dor.
— Eu espero que você não tenha feito nada com a minha garota.
Ou vai desejar não ter nascido — falei. O medo brilhou em seus olhos. —
Onde ela está?
Eu já tinha posicionado meu fuzil dentro da cavidade de sua boca,
sentindo um estranho prazer ao observar o pavor tomar conta de sua
fisionomia.
— Major... — Teagan me chamou do canto da sala. Um quarto
fechado por uma porta de madeira escura estava isolado no lugar. A chave
estava na fechadura do lado de fora.
Abri e entrei, tentando me acostumar ao breu total. Jogando o facho
de luz por todos os cantos do aposento minúsculo, meu coração quase parou
no peito quando focalizei a figura alquebrada no canto, deitada em posição
fetal. Desprovida de suas roupas militares.
O cabelo cobria o rosto.
Corri para o seu lado e afastei as mechas, mas não podia ver nada,
mesmo com a porta aberta, a claridade de fora não permitia que eu visse seu
estado real.
— Pooooorra... — falei.
Passei a alça do fuzil pelo ombro e comecei a levantar o corpo da
jovem, ansioso em retirá-la daquele covil.
Minha vontade era explodir aquela merda de casebre com os filhos
da puta dentro, tamanho era o meu ódio.
Quando a estava erguendo do chão, ela disse em uma voz fraca,
mas que atormentaria o resto dos meus dias:
— V-vo-cê po-pode me estu-tu-prar, idi-diota... ma-s da mi-minha
bo-boca não sa-sai na-nada — ela disse e apagou em seguida.
Senti meus olhos umedecerem de orgulho, pânico, dor e amargura.
Remorso balançava junto em um conflito de emoções que nunca havia
sentido em todos os meus anos nas forças militares.
A angústia tomou conta do meu peito e o medo bateu mais forte e
intenso quando saí à luz da sala e o assombro se mostrou nos rostos dos
oficiais que estavam comigo, Teagan e Tyson. Olhei para baixo e fechei os
olhos.
O ódio subiu de maneira tão intensa pelo meu corpo que eu podia
senti-lo vibrar como um diapasão desgovernado.
Aqueles animais haviam espancado Ailleen brutalmente. Sabemos
que na guerra não havia diferenciação de sexo, mas que há a nitidez de que as
mulheres são as mais afetadas em sua fragilidade e debilidade quando se
deparam com homens sem escrúpulos algum, isso é fato comprovado.
— Teagan, faça o favor — pedi baixinho, mesmo que não quisesse
largá-la e entregá-la aos cuidados de outra pessoa. Eu era responsável por ela.
O tenente chegou à minha frente e depositei o corpo judiado de
nossa companheira fuzileira em seus braços.
— Merda... — ele disse baixinho.
Marchei em direção ao homem que choramingava baixinho no
chão.
Arrastei seu corpo até o meio da sala e ali soltei os demônios que
me atormentavam. Deixei que meus punhos falassem o que as palavras não
podiam exprimir. Eu podia sentir a pele dos nódulos dos dedos rachando,
mesmo por baixo das luvas táticas, mas foda-se se eu ligava... estava sendo
catártico poder devolver cada golpe com que eles martelaram no corpo frágil
de Ailleen Anderson, no daquele projeto inútil de ser humano.
— Bater em uma mulher indefesa é fácil, não é? — cuspi, não
parando meus golpes, mesmo que sentisse que o homem já fosse uma massa
disforme no chão.
— Major — Tyson chamou minha atenção. — Acho que devíamos
evacuar a área. O helicóptero chegará em vinte e cinco.
Levantei com relutância e retirei a Colt 45 do coldre. Sem um
segundo pensamento, dei cabo à vida do homem que achava que poderia
despojar as honras da garota que só tinha recebido uma missão e a
desempenhou com maestria.
Pensei em pegá-la de volta de Teagan, mas ele já marchava para
fora dali com ela nos braços. Olhei ao redor, para ver se havia sinais de seus
equipamentos. Apenas o Kevlar rasgado e suas roupas destruídas no chão
mostravam a passagem de um militar americano por ali. Suas armas e
mochila haviam desaparecido, no entanto. Apanhei tudo e embolei debaixo
do braço, saindo daquele inferno.
Deixamos a mulher árabe estupefata e chorosa para trás. Corremos
pela vegetação que se misturava às rochas ao redor, dando-nos cobertura na,
agora, noite fria. Tyson havia retirado a parte superior de sua roupa militar e
colocado por cima do corpo exposto de Ailleen, e saímos dali como uma
matilha, perseguidos por predadores muito maiores ainda.
Chegamos à clareira com vinte e um minutos e o tempo de espera
para o H-Hawk descer foi de apenas dois.
A equipe se enfiou no helicóptero, sem dar uma palavra sequer.
Entrei antes e sinalizei para que Teagan me entregasse a carga que
viemos buscar. Levei-a no meu colo até a base do porta-aviões. Eu precisava
ter certeza, dessa vez, de que ela estava segura.
Nossa missão estava cumprida. Um companheiro nunca ficava para
trás. Nunca.
Eu só esperava que o pesadelo que aquela garota viveu naquele
breve cativeiro, em algum momento, ficasse.
Acordar sem saber onde está, é uma merda. A sensação é quase
hilária, para não dizer outra coisa. Um olho não abria. Mesmo fazendo força.
Para dizer a verdade, nem minha mente abria para clarear as ideias.
Então, sacudindo um pouco a cabeça, tentei focar nos eventos da
vida, para tentar me situar. E com isso, veio a puta onda de pânico, como um
tsunami tentando me engolfar, o que me deixou sem fôlego e quase clamando
por respirar.
Uma mão pousou no meu braço, e uma voz suavemente falou,
porém ainda assim com firmeza:
— Calma. Ou você vai acabar se machucando. — Não reconheci a
voz de imediato, mas foi o suficiente para que eu me acalmasse. Não estava
falando em árabe, e sim em inglês. E sem sotaque, logo, era amigo. E eu já
havia ouvido aquele timbre antes. Só não me lembrava de onde.
O outro olho resolveu cooperar e abriu, focalizando o teto
iluminado logo acima. Fechei os olhos, tentando lidar com a claridade
excessiva.
— Diminua um pouco a iluminação, Tyson. — A voz desconhecida
permanecia ressoando em minha cabeça e a mão quente ainda mantinha o
contato acalentador.
— Onde... onde estou? — perguntei com a garganta seca.
— Ailleen? Olhe pra mim — ele pediu.
Virei a cabeça e a enxurrada de informações desceu de uma só vez.
Major Bradshaw. Missão de resgate. Costurando o Capitão Masterson.
Corrida desesperada para o helicóptero. Dor no ombro e queda. Cativeiro
maldito. Surra. Surra. Surra. Medo e mais medo.
— Não vou perguntar se morri, porque se eu perguntar isso, você
vai pensar que estou dizendo que se parece com um anjo, ou então vou ter
que deduzir que estamos todos mortos em algum lugar muito bacana e cheio
de claridade. E se for cheio de claridade e não fizer calor, significa que não é
o inferno, então, já está ótimo — falei atropeladamente. Droga. Eu tinha esse
estranho hábito.
Uma risada veio do canto da sala e ergui a cabeça para ver o
homem que me observava. Tyson. Da missão.
— Olá. Então vocês me resgataram, né? — perguntei o óbvio.
— Tyson, você poderia nos dar licença, por favor? — o Major
Bradshaw pediu.
— Sim, senhor. É bom vê-la bem, Oficial Anderson.
— Obrigada.
“Bem” era algo meio ilusório. Mexer o dedo doía. Sacudi a cabeça
e o pescoço incomodou. Acho que devo ter gemido porque o Major chegou
ao meu lado com um copo de água e ergueu a cabeceira da cama.
— Beba aqui. Com calma.
Fiz o que me foi ordenado, porque vindo dele, nada era solicitado
com delicadeza ou educação. Era uma ordem. O homem, por si só, já exalava
autoridade. Acho que eu era capaz de beber Arsênico sem ver, se ele
mandasse. Ou tomaria no copo até de canudinho.
— Obrigada, senhor.
O Major passou a mão pelo cabelo e notei as olheiras de cansaço.
Deve ter sido meio tenso comandar outra equipe de resgate do porta-aviões,
em tão pouco tempo. O peso da responsabilidade era imenso.
— Muito obrigada por ter destacado outra equipe para me resgatar,
senhor — agradeci.
— Nós nunca deixaríamos um de nós para trás, Anderson. Você
sequer imaginou isso? Qual é o lema dos Fuzileiros? Qual o nosso bordão?
Estamos unidos e dispostos a morrer por nossos companheiros. Um cobre a
vida do outro. O que você fez foi o gesto mais honroso que poderíamos
esperar de um soldado em nossas fileiras. Você aceitou a missão, executou
com presteza e sem pestanejar por momento algum. Mas, por uma falha...
— Não posso dizer que houve uma falha, senhor. Um imprevisto,
talvez. Acredito piamente que isso acontece e é um risco que eu deveria estar
preparada para correr, uma vez que me alistei. Tenho que confessar que
nunca imaginei ir a campo, mas quando aceitei fazer parte das forças
armadas, jurei defender o país e encarar qualquer missão que a mim fosse
designada.
— Ailleen...
Estranhei que ele me chamasse pelo meu nome de batismo.
Estranhei mais ainda os arrepios que aquilo me causou. Droga.
Provavelmente eu estava possuída por algum medicamento que estava me
fazendo viajar em algum barato.
— Não há palavras que possam exprimir o que estamos sentindo
agora. Nós, como companheiros de força. Se deixar um membro da equipe
para trás já é difícil, que dirá uma mul...
Ergui a mão, quase acertando o rosto bem barbeado à minha frente.
Quase pedi desculpas.
— Se o senhor for falar “mulher”, pode parar, senhor. A minha
condição não deveria importar...
— Sim, deveria, porra! Me perdoe, mas importa, sim! Por mais que
vocês façam parte da corporação e exerçam funções magnânimas,
desempenhem missões com maestria, como a que mostrou nos cuidados com
o Capitão Masterson, ainda assim, sua condição como mulher torna tudo
muito mais intenso do ponto de vista da equipe.
A implicação do que ele queria dizer fez com que a raiva rugisse no
meu interior.
— Eu não sou o elo fraco! — gritei nervosa. Nem me atentei ao
fato de estar gritando com meu superior. Merda.
— Não estou dizendo que você seja o elo fraco. Você nos mostrou,
plenamente, que não há um osso fraco em seu corpo, Ailleen. O que preciso
que entenda é que, os horrores dessa guerra, as torturas infringidas por estes
animais, são tão ou mais traumáticas do que as que infringem aos homens,
muitas vezes.
— O senhor pode dizer isso às esposas dos militares que tiveram
suas cabeças decepadas? Ou que foram fuzilados? Me perdoe, senhor. Mas
não vejo diferença. Sou mulher, e daí?
— E daí que a primeira coisa que passa em nossa mente é o que
eles fariam com você, merda! — gritou exaltado. Ops. Agora ele estava puto.
— O senhor quer me perguntar alguma coisa, senhor? — perguntei
com a voz gélida. — Por que não pergunta logo ao invés de rondar o assunto?
Ele passou a mão pelo cabelo, nervosamente, afastou um pouco da
cama onde eu me encontrava e andou pelo quarto.
Soltou o ar algumas vezes. Inspirou e expirou.
— Eles... eles... a estupraram, Ailleen? — perguntou afinal.
Engoli em seco.
— Não, senhor. Provavelmente aquele seria meu destino antes de
me matarem, mas não chegaram a isso. Eu apenas apanhei — falei tentando
desmerecer o feito.
— Apenas? — Uma risada seca escapou dos lábios do Major. —
Ailleen... Você foi espancada, torturada, quase estuprada e assassinada... qual
dessas partes você não entendeu? Você terá um período de licença e será
enviada à base em terra.
— O quê? Mas... mas... por quê?
— É um período necessário onde você fará tratamento psicológico
para um possível estresse pós-traumático.
— Não! Não, senhor. Eu... eu estou bem. Eu vou me recuperar. Eu
juro.
— Você esteve desacordada por mais de um dia inteiro. Não a
enviamos ao Centro Hospitalar na Alemanha porque a equipe médica não
encontrou nenhum dano mais grave, salvo as lesões pelo espancamento
sofrido. Nós a deixamos em observação para o caso de alguma eventualidade
— continuou dizendo de forma prática, sem nem ao menos me olhar
abertamente. Eu podia sentir o coração na boca.
— Major, se o senhor está me dizendo que... que estou bem,
então... estou bem. São apenas feridas superficiais — tentei argumentar.
— As feridas externas curarão com rapidez, mas, e as internas,
Ailleen? — perguntou e me olhou atentamente.
— Elas não existem!
— Eu vou encaminhá-la diretamente à base dentro de dois dias.
— Senhor... Major Bradshaw! Por favor... eu não posso ficar fora.
Essa aqui é minha vida! — falei quase chorando. Não chorei na frente
daqueles imbecis enquanto eles me espancavam. Só chorei em silêncio e
sozinha, depois das sessões de surra. Mas agora estava quase aos prantos.
— Você não vai ficar fora, Ailleen. Vai apenas passar por um
período de recuperação.
Eu não precisava de recuperação! Droga. Eu não precisava. Eu já
tinha sobrevivido sozinha. Sobrevivi e fugi da vida que havia me levado
àquela merda. E agora, se eu voltasse, para onde iria? Para a casa dos meus
pais? Para perto de onde meu pior pesadelo residia?
— Mas... eu posso assegurar que estou bem, qu-que não tenho
trauma algum...
— Ailleen — os olhos do Major faiscavam —, durante o período
em que esteve desacordada, oscilando com breves momentos de consciência,
a cada toque ocasional que a equipe de enfermagem fazia, você esteve
alterada, demonstrando nitidamente que não está bem, em termos
psicológicos.
Senti um medo atroz percorrer minhas veias. Eu conhecia meus
gatilhos, que estavam oclusos há tanto tempo, mas provavelmente foram
despertados pelo pânico sentido no momento do cativeiro. Ainda assim
relutei em aceitar o destino que me aguardava.
— Major...
— É uma ordem, Oficial. Não há argumentos para isso. Você terá
dois meses de licença, fará acompanhamento com um psicólogo
especializado e só então, depois de uma avaliação, retornará à base náutica,
se esse for seu desejo.
Estava ficando sem ar. O pânico ameaçava me envolver.
— Então ainda estou recebendo a opção “se esse for meu desejo”?
— falei com ironia. — Com sua permissão, senhor, sabe o que vejo? Estou
sendo sutilmente dispensada.
— Você não está sendo dispensada — ele falou irritado.
Minha mente já havia se fechado. Abaixei a cabeça e comecei a
mexer no lençol que recobria minhas pernas. Podia sentir a presença do
Major ao lado. Ele estava chateado ao extremo, ainda mais porque eu estava
nitidamente o ignorando.
— Vamos conversar depois, quando você estiver mais calma — ele
disse e saiu do quarto.
Senti uma lágrima deslizar sorrateiramente. Era isso. Meu mundo
estava ruindo. Dois militantes do Jihad de merda não conseguiram me
quebrar, mas a realidade que eu enfrentaria dali a dois dias, sim.
Deitei novamente e deixei-me vagar para a terra dos sonhos. Era ali
onde eu achava que poderia me sentir segura. Ou não. Até que os monstros
do passado viessem acenar suas garras de maneira impiedosa. Ou até que um
homem que andava perturbando o meu juízo viesse servir como carrasco do
meu destino.
Sonhei com ele. Com o Major. E foram sonhos que me recuso a
narrar, pois o teor era muito mais distinto da realidade do que eu poderia
supor que minha imaginação seria capaz de criar.
Abafei um soluço no travesseiro.
Por um momento louco não dei graças pelo dom da vida. Desejei
que a tivesse perdido naquele cativeiro, já que a perspectiva para mim agora
era retornar para um lugar onde eu não seria apenas refém em corpo, mas
também das minhas próprias emoções. Dos fantasmas do meu passado.
O Major não fazia ideia, mas estava me enviando diretamente para
o lugar onde minha alma foi mais torturada do que meu corpo combalido.
Estava no meu quarto reservado no porta-aviões. Depois de guardar
todos os meus pertences na valise que levaria em terra, olhei ao redor e
conferi os documentos que precisaria levar para o Quartel General na
Carolina do Norte. Os pensamentos se atropelavam na minha mente porque
não conseguia apagar da memória a fisionomia abatida e destituída de toda a
alegria de Ailleen Anderson no momento em que a informei de seu período
de licença, dois dias atrás.
Ela não fazia ideia, mas eu a acompanharia até a Base, depois faria
questão de acompanhar seu tratamento, garantindo que estivesse sendo bem
assessorada. Não poderia explicar, mas sentia-me responsável pela garota.
Mais do que deveria. Se fosse um outro fuzileiro, eu teria aquele
desprendimento todo? Não sei.
O que importava era que desde o momento em que aquela jovem
adentrou no meu escritório, minha mente se tornou um turbilhão. Eu via
força, perseverança e garra em todas as suas atividades. Via determinação,
desafio e confiança em todas as avaliações e relatórios que li sobre sua vida
acadêmica. A moça me fascinava de uma maneira interessante, como há
muito tempo eu não me sentia fascinado.
Por um momento cheguei a cogitar não enviá-la à missão de resgate
da Equipe IV do Capitão Masterson, onde seus serviços na área médica foram
tão necessários, exatamente por conta do risco, mas achei que não podia
privá-la de provar seu valor.
O que não previ era a merda em que a missão se enfiaria,
colocando-a diretamente na zona de conflito, fazendo com que fosse ferida e
acabasse encarando o pior terror na vida de um militar: cair nas mãos do
inimigo.
Descrever o momento em que a encontrei no cativeiro é fácil. Em
apenas poucas palavras: perdi totalmente a cabeça. Do momento em que a
levamos diretamente ao porta-aviões, disfarcei os cuidados e os tremores que
sentia nas mãos ao tocar o corpo frágil e debilitado, coberto de hematomas
nos mais variados estágios.
Eu queria matar os homens que fizeram aquilo. Mas daí lembrei
que já havia feito isso. Eu queria espancar alguém. Lembrei-me que também
já havia feito exatamente aquilo. Sem peso na consciência. Para cada roxo
que eu via, esperava que tivesse devolvido em uma medida infinitamente
maior e infringido muito mais dor e tormenta, antes de matar o infeliz. Então,
veio o momento em que fiquei puto comigo mesmo por tê-lo matado. Porque
se não tivesse, agora poderia ter o animal em meu poder e poderia
descarregar a ira que percorria minhas veias, fazendo com que ele pagasse em
doses homeopáticas de tortura, por ter ousado torturar Ailleen Anderson.
O que aquilo me tornava? Um homem mau e sem escrúpulos
algum? Paciência. Que assim fosse.
Depois do atendimento pela equipe médica que tinha vindo
imediatamente da Alemanha ao porta-aviões, fiquei rondando a porta de seu
quarto, como um leão enjaulado. Pensando no que fazer.
Conversando com meu superior, Coronel Marshall, decidimos que
Ailleen merecia receber uma medalha honrosa por ter desempenhado sua
missão em auxiliar o resgate do Capitão Masterson com brilhantismo. Eu iria
à Base, inclusive, solicitar a possibilidade de que ela fosse promovida de
patente. Era um soldado que não foi abatido em nome da pátria. Mas quase
teve sua vida ceifada. Merecia ser valorizada por seus feitos.
Sempre tive a cabeça mais machista da família. Sendo o filho mais
velho de três irmãos, criado apenas por nosso pai, já que a mãe morreu cedo,
acabei herdando os valores do velho, um General da reserva. Meus irmãos
mais novos não seguiram carreira militar. Para desgosto do meu pai e alegria
minha, já que ficava tranquilo em saber que eles não arriscariam suas vidas
em prol da nação.
Bruce era um advogado conceituado que morava atualmente em
Boston, e Cole tinha um restaurante refinado na cidade em que o pai ainda
morava, Fayeteville, nossa cidade natal. Eu quase nunca os via, salvo nos
feriados importantes e quando tinha dispensa do serviço e ia para casa.
Meu tempo era dedicado à Marinha, ao corpo de Fuzileiros. Até
mesmo as mulheres com as quais me relacionei não tinham tanta importância
porque eu não aceitava dividir essa parte da minha vida. Até o momento,
nenhuma mulher havia capturado minha atenção de tal forma que me fizesse
balançar meus valores. Nenhuma. Até Ailleen.
Não entendia o que a jovem tinha de tão diferente. Talvez o fato de
que amasse com tanta paixão o mesmo que eu? Não sei.
Sua beleza? Possivelmente. Ela era linda. De uma forma
arrebatadora e espontânea, e parecia nem se dar conta. Os comentários entre
os homens no porta-aviões eram unânimes. Ela era a mais bonita dali.
Abrilhantava os dias cinzentos e trazia um pouco de cor ao lugar. Mesmo que
nunca tenha dado liberdade a nenhum macho que circulava à sua volta, ainda
assim, ela despertava o interesse de todos.
Havia despertado o meu. Certamente. Havia atraído a atenção de
todos da equipe que foram resgatá-la. O Tenente Teagan só falava em sua
bravura e coragem. Scott só narrava a forma como ela costurara seu Capitão.
Até mesmo este, empedernido e rabugento, só tinha palavras de elogios
tecidos a ela. Já havia enviado mensagens inúmeras vezes para descobrir
como ela estava.
Nem eu mesmo conseguia explicar a razão de estar tão irritado.
Não era do meu feitio.
Colocando a alça da sacola de viagem no ombro, fechei tudo e
tranquei a porta, subindo para o convés. Bastou chegar mais perto do avião de
carga para vê-la se despedindo das amigas que tinha ali.
— Está pronta, Oficial? — perguntei sem rodeios.
Ela se virou, sobressaltada, e me encarou com aqueles grandes
olhos que mais pareciam da cor do mel agora.
— Sim, senhor. — Virou-se para as outras fuzileiras. — Eu mando
notícias, juro. Só não email, odeio isso. Mas envio mensagens, e quando
vocês puderem, respondam, tudo bem? Vamos sempre manter contato.
— Por favor, Ailleen. Não nos esqueça.
— E não vou me esquecer de vocês, eu juro — disse e deu um
sorriso.
Franzi o cenho, sem entender. Ela estava se despedindo como se
nunca mais fosse voltar. Por quê?
As três se abraçaram singelamente, mas pude escutá-las baixinho:
— Semper Fi, irmãs.
Ailleen acenou para as amigas e quando estava passando pelos
outros oficiais, foi parada por cada um deles.
Teagan foi o primeiro.
— Oficial Anderson... foi um prazer tê-la na missão e estaremos à
sua espera — ele disse e pegou sua mão. Mas o filho da puta quebrou o
protocolo quando a puxou para um abraço. Imbecil.
Segurei para não ranger os dentes. Cada um daqueles merdas fez o
mesmo. Tyson, Scott, John e Colin, que haviam retornado da Alemanha.
— O Capitão manda lembranças e avisa que assim que retornar,
pretende convidá-la para um jantar adequado, já que agora você o viu sem
roupas — Colin disse.
Ela riu, mas ainda pude detectar o tom escarlate no rosto.
— Obrigada. Foi um prazer ter tido a experiência de uma missão
RECON com vocês, rapazes.
Os outros membros que participaram de seu resgate foram mais
comedidos, mas ela os agradeceu assim mesmo.
— Nunca vou me esquecer por terem ido ao meu resgate.
— Semper Fi — todos disseram a título de saudação.
— Ooh-rah — Teagan completou, arrancando um riso singelo dela.
Ailleen subiu no avião, carregando sua mochila, acomodou-se na
poltrona e afivelou o cinto. Depois de passar as diretrizes necessárias ao meu
próximo em comando, despedi-me de todos e também entrei na aeronave. Em
momento algum ergueu o olhar para mim. Eu pude vê-la disfarçando uma
lágrima, mas não entendia o porquê se despedia como se nunca mais fosse
voltar a ver os companheiros.
Cerca de trinta minutos após a decolagem, desisti de tentar mexer
no celular e soltei o cinto, indo me sentar exatamente ao seu lado.
— Oficial, porque está me ignorando? — perguntei sem saber o
motivo da minha irritação crescente. Quer dizer, era óbvio que eu sabia. E
estava meio puto.
Ela não voltou o rosto para mim em momento algum. Continuou
com as mãos cruzadas no colo, encarando-as como se ali guardasse o segredo
do Universo. Os olhos se mantinham fechados.
— Eu não o estou ignorando, senhor. Peço desculpas se passei essa
impressão.
— Ailleen?
O fato de chamá-la pelo primeiro nome fez com que uma fagulha
de atenção vibrasse em seu corpo. Agora sim, até mesmo o ritmo respiratório
dela estava alterado.
— Por quê. Está. Me. Ignorando? — perguntei com os dentes
entrecerrados.
Ela me olhou pela primeira vez e havia uma faísca de exasperação
ali que acabou atiçando algo mais no meu interior.
— Não faço ideia do que o senhor está falando.
— Faz, sim. Além disso, por que se despediu como se não fosse
mais voltar à Base? — perguntei e aguardei sua resposta.
— Porque não pretendo retornar à Base, senhor. Vou pedir
dispensa do serviço militar — ela disse e voltou a atenção para as mãos
entrelaçadas.
Aquela afirmação fez com que meu coração desse um baque e um
frio repentino gelou minha espinha.
— O quê? Por quê? — perguntei exaltado.
— Senhor, eu entrei nas forças armadas para somar, não para trazer
danos ou prejuízo. E não é minha intenção diminuir o prestígio da Base, ou
das missões, Major. Especialmente sob o seu comando. — Ela passou a mão
nervosamente pelo cabelo. — Honestamente, entrei no serviço com um
propósito grandioso, honrado, até. E talvez tenha me deparado com um dos
meus piores medos: a fraqueza.
— Em momento algum foi dito que você é fraca — afirmei,
tentando fazê-la entender aquele ponto.
— Eu sei, senhor. Depois que deixou o quarto da enfermaria, pude
compreender seus motivos, mas tive que me deparar com os meus. Talvez eu
esteja com medo de não ser mais suficiente para servir sob a bandeira da
Marinha, entende? Como nenhum serviço burocrático me anima, e estar no
porta-aviões sempre foi apenas uma etapa, acho que posso recalcular meus
planos. Tenho certeza de que conseguirei alguma vaga para estudar em uma
universidade qualquer do meu Estado — disse e deu um sorriso que não
chegou aos olhos.
— Ailleen! Você não foi dispensada, porra! Eu não a dispensei!
Não vou assinar a merda da carta de desistência do serviço.
— Eu não preciso que o senhor assine, Major. Pelo código, a partir
do momento que um fuzileiro é abatido, ou ferido em missão e encaminhado
para tratamento médico, ele pode solicitar dispensa por motivos médicos.
Como o senhor mesmo está me encaminhando para uma licença, a fim de
averiguar se vou desenvolver, possivelmente, um estresse pós-traumático, o
motivo já está definido. Basta que eu peça a dispensa — disse com a voz
firme. — Se eu parar pra pensar, posso até mesmo me sentir orgulhosa por
contabilizar quase cinco anos na Marinha, não é? Não são todas as pessoas
que se alistam e seguem nas forças armadas depois de cumprir o serviço
militar obrigatório.
Eu ainda estava abismado com a percepção errônea que ela havia
tido sobre nossa conversa, dois dias atrás. Ela achava que o fato de lhe ter
concedido uma licença médica era um demérito ao seu serviço como
fuzileira, quando, na verdade, era o contrário. Eu a queria por inteiro. Sem
máculas ou traumas do que viveu em cativeiro.
Já tive oficiais sob meu comando que ficaram destruídos com
muito menos. Eu apenas queria garantir que ela tivesse um atendimento
adequado e voltasse intacta à vida que abraçou.
Ailleen recostou a cabeça e fechou os olhos, mas eu podia perceber
pelo seu semblante que não estava descansada. Um ar de preocupação
permeava ao seu redor quase como uma nuvem palpável. Em todo o tempo,
mantive meu olhar atento ao rosto que andava assombrando meus sonhos
ultimamente.
Não faço ideia de quanto tempo me mantive assim. Horas, talvez.
Sei que também mantive a vigília ao lado dela, atento à mínima mudança em
seu ritmo respiratório. Decorei cada uma das equimoses de seu rosto,
sentindo vontade de ter o poder de extraí-las com o toque dos meus dedos.
Horas mais tarde, o piloto anunciou que faríamos o pouso, mas não
conseguia tirar os olhos dela. Atei o cinto de segurança ao seu lado, mesmo
que ela sequer parecesse notar minha presença ali. Era como se estivesse
totalmente alheia ao que se passava no interior da aeronave.
Quando o avião tocou as rodas no solo, Ailleen parecia ter sido
atacada por um enxame de abelhas. Simplesmente desatou o cinto, colocou
um par de óculos escuros, pegou a mochila de viagem aos seus pés, abaixo do
assento, e saiu em disparada. Não pude segui-la porque fui solicitado para
averiguar alguns detalhes por alguns dos oficiais que estavam ali.
Somente mais tarde, ao adentrar o prédio da Base, foi que soube
que ela já havia passado por ali e ido embora.
Meeeeerda.
Eu precisaria encontrá-la agora. Quando disse que acompanharia
seu processo de recuperação, não estava brincando. Estava sendo muito mais
sério do que poderia admitir.
Outra coisa que não havia a menor condição de permitir era que ela
seguisse pensando que era um fardo ou que não era mais apta para o Corpo
de Fuzileiros, quando nunca foi encarada daquela forma. Talvez minhas
palavras tenham sido expressadas de maneira torpe e sem jeito. Eu fui bruto
em minha preocupação e forma de demonstrar o pesar pelo trauma que ela
viveu.
Mas não deixaria que ela permanecesse naquele limbo de
sentimentos vazios, quando era nítido que o amor que sentia pela carreira
militar vibrava de seus poros. Se nem mesmo o que enfrentou no cativeiro a
fez desistir, não seria por conta de algumas palavras proferidas de um modo
errado, criando um mal-entendido do caralho, que ela abriria mão facilmente.
Depois de mais de uma hora consegui descobrir os dados para
rastrear o destino de Ailleen Anderson.
Ela ainda não havia conhecido meu lado fora da Base. Sempre
esteve abaixo do meu comando, sendo seu Major, seu superior. Sempre
deveu-me obediência e respeito como o Oficial que eu era.
Estava na hora de conquistar o mesmo, sendo apenas o homem. E
eu era Justin Bradshaw. Chamado de Ghost por uma razão. Porque eu faria o
reconhecimento da área para saber a hora exata que uma abordagem deveria
ser feita, sem ser notado. Como a porra de um fantasma.
Saí da Base de Camp Lejeune, na Carolina do Norte, às quatro
horas da tarde. O táxi me levaria ao terminal mais próximo para que eu
pudesse alugar um carro até chegar à minha cidade, Myrtle Beach, pouco
mais de duas horas de distância dali, na Carolina do Sul. A perspectiva de
encontrar meus pais não era nem um pouco empolgante, mas diante das
circunstâncias, eu precisaria ir em casa para buscar algumas coisas,
especialmente o documento que havia deixado escondido, e dar entrada no
fundo fiduciário que vovô Grant havia deixado para mim. Era assim que eu
poderia garantir meu sustento a partir dali.
Desde minha saída de casa, aos dezoito anos, nunca voltei ao lar. O
ditado “o bom filho à casa torna” perambulava pela minha mente. Lá estava
eu. Cinco anos depois. A boa filha. Retornando ao lar. Voltando para encarar
um passado que me assombrava de tal forma que eu tinha congelado a bunda
no banco do carro, mesmo que o motorista estivesse me encarando naquele
exato instante. Talvez ele estivesse chocado, também, com minha farda
militar. Ou com alguns hematomas ainda visíveis, mesmo com toda
maquiagem. Possivelmente.
— Desculpa. Quanto é a corrida? — perguntei já pegando a
carteira.
— Quinze dólares, moça.
— Fica com o troco.
— Obrigado. E obrigado por servir ao nosso país — agradeceu
antes de eu fechar a porta.
Sorri tristemente. É. Mal sabia ele o quanto eu havia servido ao
país. E agora estava me sentindo descartada como um pedaço de papel
amassado, depois de perceber que não tinha mais valia, ou capacidade, pois
podia corromper a imagem do Corpo Naval. Tudo bem, talvez eu estivesse
sendo um pouco mais dramática do que deveria. Possivelmente a surra que
levei tenha afetado meu juízo, desajustado alguns valores que me fizessem
analisar a situação de forma mais analítica e fria e não tão passional. Mas eu
estava à flor da pele. Como se estivesse com um fio desencapado ao redor do
corpo, tomando conta dos meus sentimentos mais frágeis.
Lá estava ela. A fragilidade tão temida. Exatamente o sentimento
odioso ao qual referi ao Major, o que me fazia sentir não tão capaz para
figurar as fileiras da Marinha. Para ostentar a farda que eu usava, era preciso
ser seguro de si. E eu estava no modo inverso. Não posso nem dizer que isso
tenha sido ocasionado pelos momentos que enfrentei naquele casebre do
pesadelo... passei a me sentir assim no momento exato em que a alternativa
de ter que voltar à terra desceu como um banho de água fria.
Entrei na loja de aluguéis de veículos e solicitei um compacto,
barato e ágil o suficiente para me fazer chegar e sair. Como se não estivesse
sendo vista. Sem estardalhaço.
Minhas mãos tremiam ao assinar o papel.
Merda.
Voltar não estava nos meus planos. Nunca.
Quando me sentei à frente do volante do Honda, senti as primeiras
lágrimas rolando pelo rosto.
Quão frágil eu era? Uma surra épica com tortura embutida, com
direito a banho gélido e quase estupro por dois animais jihadistas não
quebraram meu espírito. Voltar à casa onde meus sonhos de menina foram
destroçados? Sim. Nem espírito eu tinha mais.
Respirei fundo e engatei a marcha. Eu precisava resolver logo
aquela pendência para nunca mais voltar. Abri mão do meu elo familiar aos
dezoito anos. Voltar a rever meus pais doeria mais do que qualquer pessoa
poderia imaginar.
Deixei que a rádio propagasse músicas aleatórias que me tirassem o
foco da jornada infernal para onde eu me encaminhava. Eu era uma ovelha se
dirigindo para o matadouro. Novamente. O sentimento de déjà vu imperou
fortemente no meu peito.
Cerca de duas horas depois passei pela placa da entrada da cidade.
Mais dez minutos e avistei os portões dourados e reluzentes da casa que
abrigava meu pior pesadelo.
Digitei a antiga senha do portão, imaginando se ainda seria aquela.
Nenhuma novidade. Exatamente a mesma. Os portões se abriram como se as
portas do Inferno estivessem dando as boas-vindas.
Passei pelo jardim e lago rebuscado que ficava diante da imensa
mansão em estilo vitoriano, orgulho da minha mãe.
Expirei o ar que estava retendo nos pulmões e desci do carro. A
ideia era deixar o carro ainda ligado, para entrar e sair, mas eu sabia que não
tinha poderes como o personagem da DC Comics, The Flash, então abortei a
missão. Também não poderia correr o risco de torrar todo o combustível no
caso de precisar de uma fuga alucinada.
Bati a aldrava gigante da porta maciça de madeira branca. Ouvi os
passos e um sorriso torto preencheu minha boca. Provavelmente Emma
estava vindo, a governanta.
— Srta. Ailleen? — Sua pergunta assombrada mostrava o quanto o
choque era evidente com a minha aparição.
— Olá, Emma — cumprimentei. Eu ainda era educada o suficiente
para esperar que ela me convidasse a entrar. E, não. Antes que me perguntem.
Aquela não era a minha casa. Nunca mais seria. Então, eu não tinha a menor
liberdade de chegar e adentrar como se ainda pertencesse àquele lugar.
— Ah... entre. Entre... sua mãe...
— Não vim ver meus pais, Emma. Estou apenas de passagem. —
Senti seu olhar percorrer meu corpo coberto com o traje militar. Eu estava
sem a jaqueta, mas a calça cargo camuflada e a camiseta regata bege ainda
estavam dando as caras. Fora minhas dog tags que balançavam entre os seios,
com orgulho, como uma medalha de quem eu era. Sim. Ali estava minha
verdadeira identidade.
Naquelas placas singelas, com meus dados vitais para uma possível
identificação, eu sentia um elo muito mais forte do que poderia imaginar
sentir em qualquer outro lugar. E mesmo que por alguns instantes, no
cativeiro, eu tenha me agarrado a elas imaginando o pior, eu sabia que ali foi
o momento em que estabeleci a conexão que precisava para reafirmar a mim
mesma quem eu era.
Imediatamente agarrei o colar, como se estivesse pedindo forças.
— Não sei se o quarto que usei permaneceu o mesmo, e não me
interessa, mas gostaria de saber onde foram parar minhas coisas, se você
puder me informar — pedi com educação.
Eu me amaldiçoava internamente por não ter tido cabeça no dia em
que saí dali, tantos anos atrás, tendo levado ao menos o papel principal que
agora me fizera voltar.
— O quarto da senhorita permanece do mesmo jeito. Inalterado.
Estranho. Até mesmo assustador. O que era aquilo? Alguma
espécie de relíquia macabra de uma pessoa que já não existia mais? Uma
pessoa que foi uma até os dezoito anos, e havia se tornado outra depois?
— Posso subir e pegar algumas coisas?
Emma parecia em dúvida. Mordeu os lábios, receosa da decisão
que precisava tomar.
— Por favor, Emma.
— Claro, senhorita.
Subi atrás dela e entrei no quarto de princesa, todo adornado em
branco e cetim rosa bebê. As cortinas de seda brancas estavam fechadas e
Emma as abriu, dando uma claridade bem maior ao aposento.
— Muito obrigada, Emma. Eu prometo não me demorar.
Ali não havia quase nada que me fazia falta. Não fui para buscar
nenhuma das minhas roupas de um passado há muito esquecido. Não fui
buscar memórias de algo que deveria ser apagado. Fui buscar o que poderia
forjar o meu futuro em algo muito mais promissor.
Abri as gavetas secretas do armário do closet e apalpei o tampo, em
busca do envelope pardo que eu procurava. Quando meus dedos sentiram o
papel, um sorriso brotou em meus lábios. Agradeci rapidamente o fato de não
terem alterado ou mexido em nada ali.
Peguei mais alguns documentos que achava necessários e olhei ao
redor. Nada mais.
Evitei olhar a cama onde nunca mais fui a mesma pessoa. Onde
acordei sendo uma Ailleen e acabei me tornando outra.
Foi inevitável que as memórias daquele dia fatídico viessem à tona.

Kendrick Evans era o cara mais desejado da cidade. E ele havia


me escolhido. A mim. Ailleen Anderson. Quando ele se ofereceu para me
levar ao baile de formatura do ensino médio, mal pude acreditar. O garoto
popular, universitário, filho do dono da cidade, praticamente, queria me
levar ao baile?
Eu me arrumei com esmero e deixei que minha mãe, mesmo em seu
modo distante, me adornasse como uma pequena princesa. Até estranhei. Ela
mandou que eu tomasse um banho de espuma, com óleos perfumados, cuidou
pessoalmente para que eu estivesse devidamente depilada, o que me
constrangeu horrendamente, já que... qual era o interesse da minha mãe no
assunto?
Quando o “príncipe” moreno de olhos verdes e afiados como um
gato – como era conhecido pelas meninas – chegou para me buscar, eu
tremia de excitação. E um pouco de medo. Aquela sensação era
desconhecida até então para mim. Nunca havia saído com um carinha. Tinha
dado apenas um beijo, sem língua, em Clark Montgomery, há dois anos, em
uma festinha de aniversário de Josy Meadows.
Ele beijou minha mão e me conduziu ao seu galante carro.
Chegamos ao baile e posso dizer que todas as meninas do lugar suspiraram
por ele. Kendrick dançou comigo a noite inteira, sem permitir que eu saísse
do seu lado. Sua mão mantinha-se agarrada possessivamente ou à minha, ou
ao meu braço, ou à cintura. Em um dado momento, ele segurou um punhado
do meu cabelo em sua mão e o manteve assim por um bom tempo, me
impedindo de girar o pescoço. Eu estava achando estranho, mas o
constrangimento me impedia de abrir a boca para questioná-lo.
— Podemos ir agora, Ailleen? Acho que essa etapa já foi cumprida
na sua vida, não é? — perguntou com a voz sedutora.
Apenas acenei e saí sem me despedir de nenhuma das minhas
amigas. Eu falaria com elas depois.
Chegamos em casa e achei que Kendrick fosse me deixar apenas
na porta. Eu não tinha traçado planos de ir para nenhum hotel a fim de
perder a virgindade com ele. Nós nem éramos namorados, nem nada. Então,
eu esperava que ele não tivesse projetado aquilo em sua cabeça.
— Convide-me a entrar — ele disse. Soou como uma ordem.
— Você... quer entrar, Kendrick? — perguntei timidamente.
— Claro, querida. Temos alguns detalhes a serem acertados.
Não entendi a frase enigmática, mas abri a porta e o deixei entrar
logo atrás de mim, na mansão.
Meus pais estavam no escritório elegante, acompanhados do
Senhor Evans, que tomava uma taça de champanhe, como estivessem
comemorando alguma coisa. Que evento estranho.
— Oh, que maravilha. Os pombinhos chegaram — o pai de
Kendrick disse. — Como foi o baile, querida?
— Foi ótimo, Sr. Evans. Obrigada.
Meu pai evitava olhar para mim e minha mãe girava seu copo
nervosamente. Ali parecia estar havendo uma reunião importante.
— Bom, muito obrigada. Vou deixá-los. Obrigada mais uma vez,
Kendrick. Sua companhia foi...
Antes que eu pudesse terminar, um tapa ressoou na minha
bochecha. O próprio príncipe encantado, Kendrick Evans, havia sido o
agressor.
Meus olhos se arregalaram e o olhei aturdida. Olhei para os meus
pais. Que continuavam olhando para baixo.
— Não precisava disso, Ken — o pai dele disse resoluto. — Assim
você estraga a mercadoria antes mesmo de poder desfilar com ela.
Meu cérebro estava meio enevoado.
— Eu já tenho que ensinar de agora que uma esposa precisa
manter-se calada e só falar quando for solicitada. Chega de tentar me
despachar, entendeu? “Obrigada, Kendrick... você foi muito gentil”... — ele
tentou imitar minha voz. — Era isso o que você ia dizer?
O agarre no meu cabelo voltou com intensidade. Para machucar,
possuir, marcar um domínio que ele estava fazendo questão de demonstrar.
Eu ainda estava chocada com a bofetada que tinha recebido,
gratuitamente, e com a inércia dos meus pais. A passividade em não fazerem
absolutamente nada. Eu podia sentir meus olhos arregalados em puro terror.
— Eu... eu...
— Sssshhhh... Não quero ter que te bater de novo — ele disse e
apertou meu rosto com a outra mão. Possivelmente eu ficaria com a marca
dos seus dedos no dia seguinte.
— Bom, queridos Andersons. Acho que foi um prazer fazer negócio
com vocês. Meu filho agora vai tomar a dianteira dos negócios e decidir o
rumo dos acontecimentos. A conta de vocês já está mais do que recheada
com nossa transação.
Transação? Conta? Negócio? Sobre o quê o pai dele estava
falando?
— Seus olhos são tão lindos, sabia? Expressam as palavras sem
que você nem mesmo precise dizê-las. É quase como ler uma legenda do seu
desespero. Pobrezinha... não faz ideia de que minha obsessão por você fez
com que seus adoráveis pais a vendessem pra mim, não é? Para que seja
minha esposa adorada...
O quê? O... o quê?
Olhei para minha mãe que bebericava seu drinque, mas tinha a
mão trêmula. Meu pai sequer erguia o olhar. Apenas respirava pesadamente.
— Sabe o que é isso, amor? Dinheiro. Eu tenho. Muito. Mais do
que poderia gastar em mil anos. Seus pais também tinham. Alguns negócios
malfeitos acabaram colocando seu pobre pai na merda. E veja... ele quer
alcançar o sonho do Senado... como conquistar uma carreira política sem
dinheiro? Como? — Kendrick falava. Meu coração martelava no peito. —
Então, pedi ao meu pai que intervisse. Porque eu a quero pra mim. Desde
antes... anos já. Não faço ideia. Mas você nunca me notou. Nem todo o
dinheiro no mundo fez com que seus olhos se voltassem para mim. Mas o
dinheiro do meu pai e a ganância dos seus fez com que as cordas do destino
se atassem em um nó maravilhoso. Você agora é minha. Vendida por uma
bagatela de um milhão de dólares. Barato até. Se seu pai tivesse pedido dois,
três... Eu pagava. O preço de ser eu a tirar sua virgindade é impagável. Ah,
espera... não é impagável. Porque estou pagando — disse e riu. O filho da
puta riu. E o pai dele também.
Mas meu coração sangrava. Em uma hemorragia que nunca seria
estancada. Nunca.
Kendrick me arrastou porta afora, mesmo que eu estivesse lutando
contra o seu agarre em meu pulso.
— Não! Nããoooo! — gritei mais alto. Não esperava um soco na
barriga que fosse me tirar o fôlego. Senti as lágrimas descendo sem controle.
— Onde é o seu quarto? — perguntou exaltado e tentando me
conter.
Ele já me arrastava para as escadas. E mesmo alucinada de dor,
me debatia da forma como podia.
Olhei para trás e vi meu pai fechando a porta do escritório, com o
braço apoiado sobre o ombro da minha mãe. Gritar por eles era inútil, então
me calei em implorar por um pai e uma mãe que impedissem a loucura que
se desenrolava ali.
Kendrick agarrou meu corpo como se eu fosse uma bola de futebol
americano e subiu as escadas de dois em dois. Eu apenas gritava em
desespero.
Ele abriu duas portas até descobrir meu quarto todo decorado em
rosa.
Ouvi o clique da chave e me desesperei mais ainda. Eu estava
presa com um monstro. Ele me jogou na cama que eu adorava, com o dossel
lindo, que mais parecia à cama de uma princesa. Montou em cima do meu
corpo e dedicou mais dois tapas, com a intenção óbvia de me manter quieta.
Minhas lágrimas se misturavam ao sangue que eu podia sentir nos meus
lábios.
Senti o tecido do vestido sendo rasgado ao meio.
— Não faça isso, Kendrick! Por favor! — implorei.
Não conseguia lidar com o desespero, a angústia e o sentimento de
impotência por não conseguir me desvencilhar dele.
— Ssshhh... você vai gostar. Vai ser minha esposa e já tem que
entender de agora que eu gosto assim. Com violência. Essa é apenas a aula
inicial.
— Por... por favor...não...
— Nunca vai dizer não para mim, entendeu? Nunca!
Eu lutava contra suas mãos, mas era inútil. Ele era muito mais
forte do que eu. As peças de roupas que poderiam me proteger já não
estavam mais no meu corpo. Eu podia sentir suas unhas arranhando minha
pele. Os dedos dilacerando a carne intocada que fazia de mim ainda uma
pessoa inocente e pura. Ingênua às maldades da vida.
Quando Kendrick arremeteu seu corpo contra o meu, foi o
momento em que parei de chorar, porque estava em um estado catatônico. A
violência com que ele arrebatava minha virgindade era tão brutal que até
mesmo a dor me jogou em um limbo onde nem eu mesma saberia mais me
encontrar. Senti as mordidas que ele dava nos meus lábios machucados.
Pescoço, ombros. Seios. Era como se ele quisesse marcar cada pedaço do
meu corpo para mostrar ao mundo o que ele fez. Seus dedos apertavam todas
as partes em que ele podia manter o agarre firme, e eu sabia que teria as
impressões dele em minha pele.
Senti o pescoço estalar quando com raiva ele puxou um chumaço
do meu cabelo, expondo mais ainda o meu pescoço. Cravou os dentes ali,
como se fosse a porra de um vampiro. Eu apenas sentia... dor. Dor para não
acabar mais. Sempre tive medo de perder a virgindade, ao ler e ouvir relatos
de outras garotas. A narrativa da primeira vez era sempre floreada com o
momento agudo de ardência e incômodo, onde a pessoa chegava a pensar em
desistir do ato. Em minha mente fértil, projetei que se estivesse com alguém
que amasse, esse tormento não seria assim tão devastador. Poderia ser
apenas uma etapa. E se tivesse que doer, eu saberia que seria algo
passageiro.
Então, ao sentir as lágrimas correndo sem rumo certo, só o que eu
pensava era na agonia incrível que meu corpo estava enfrentando, como se
estivesse sendo rasgado ao meio. Ante a brutalidade de Kendrick, eu só
queria morrer.
Quando Kendrick chegou ao clímax, o urro dado foi como um grito
de guerra vitorioso. O sorriso em seus lábios era cruel. Vil. Perturbador.
— Você é minha, Ailleen. Vendida. Paga e possuída. Ninguém pode
te tirar de mim — disse e se retirou do meu corpo. — Quando eu disser que
você vai ser minha, é isso o que vai acontecer... entendeu?
A dor foi dilacerante.
— Amanhã voltarei para organizar os trâmites do nosso
casamento. Esteja pronta ao meio-dia. E que fique claro que não gosto de
esperar.
Sua sentença final foi dita como se fosse a coisa mais simples do
mundo e saiu. Como se não tivesse destruído o meu mundo. Minha vida.
Meus sonhos.
Não sei quanto tempo fiquei ali deitada. Talvez uma hora. Duas.
Três. Sei que era madrugada quando consegui levantar o corpo judiado e
prostituído. Porque era assim que eu me sentia. Uma prostituta barata.
Vendida pelo lance mais alto. Pelos próprios pais. Aqueles que juraram me
amar e proteger.
Entrei no banheiro e olhei meu estado. Encarei o espelho por
alguns minutos, sentindo os olhos embaçados pelas lágrimas que agora
corriam novamente. Meus lábios estavam partidos, com um filete de sangue
escorrido e seco, que havia, inclusive, pintado os dentes superiores. Uma
imensa mancha roxa começava a dar sinais no lado esquerdo do meu rosto,
próximo à mandíbula, enquanto outra enfeitava meu olho direito, sendo que
um pequeno corte de menos de meio centímetro ilustrava o canto. Creio que
possa ter sido brinde de algum anel que Kendrick usava. Ele usava um?
Cheguei perto do espelho e toquei no local, cerrando os dentes ao sentir a
ardência. Olhei para meu reflexo e desci as vistas para o restante do corpo.
Do pescoço para baixo eu estava marcada com chupões e mordidas. Não
aquelas de amor. Mas as que são feitas para castigar. Que são dadas em um
arroubo de ódio. Até mesmo meus seios apresentavam essas mesmas marcas.
Kendrick não se contentou em me estuprar, tirando minha virgindade tão
somente. Ele fez questão de me marcar como quem marca o gado.
Ao caminhar até a ducha, pensei se tomava um banho ao olhar
para o pequeno rastro de sangue que havia secado na parte interna da minha
coxa. Senti uma onda de desespero tão intensa, de revolta e constrangimento,
que decidi que se queria provar que algo me fora feito, não poderia apagar
as evidências. Então, coloquei uma calça de moletom velha, um casaco com
capuz, peguei uma mochila e enfiei algumas roupas ali dentro. Algumas joias
que minha avó havia me dado seriam úteis para fazer mais algum dinheiro,
até que eu pudesse usar o fundo fiduciário de vovô Grant. Eu tinha um
dinheiro guardado no cofre do closet, mas não achava que teria tempo ou a
calma necessária para abrir o compartimento secreto do armário. Deixei
para trás. Nada daquilo me importava naquele momento de angústia. Peguei
apenas a carteira que guardava no criado-mudo, retirei o documento e
algumas notas de dólares, deixando os cartões de crédito que meus pais
haviam me dado. Calcei os tênis e abri a porta silenciosamente. Eram mais
de quatro da manhã. Desci as escadas pé ante pé.
Quando estava abrindo a porta da frente, Emma apareceu às
minhas costas.
— Senhorita... Anderson?
— Diga aos meus pais que sua filha, Ailleen, morreu.
E saí.

Sacudi a cabeça para afastar as memórias daquele dia.


Enfiei os papéis embaixo do braço e desci as escadas
apressadamente.
Quando estava quase chegando à porta da frente, esta se abriu, e dei
de cara com minha mãe. Estava envelhecida. Acabada até.
— A-Ailleen? Filhinha?
O ódio que cultivei nos últimos cinco anos fervilhou em minhas
veias.
Saí dali, quase esbarrando em seu ombro e derrubando-a no
processo.
— Ailleen! Ailleen!
Entrei como um tufão no carro alugado e saí cantando os pneus. Os
portões ainda estavam abertos, provavelmente da recente chegada da
moradora que eu não queria encontrar.
Passei acelerando e fui me refugiar no único lugar onde eu sabia
que poderia dar vazão às minhas lágrimas.
Comigo mesma. Sozinha. Completamente sozinha.
Nem sei como consegui chegar ao pequeno hotel onde havia
alugado um quarto antes de chegar à casa dos meus pais. Entrei ofegante,
recostei-me à porta e deixei que meu corpo escorregasse por toda a superfície
de madeira, até que minha bunda chegasse ao chão.
Abracei as pernas e apoiei a cabeça nos braços, escondendo o rosto
e minha vergonha. Vergonha das minhas memórias e do passado nebuloso
que escondia a sujeira e podridão de uma família que nunca me amou. Chorei
copiosamente por horas.
Talvez aquilo fosse catártico. Talvez aquilo ali fosse toda a terapia
que o Major Bradshaw acreditasse que eu precisava. O choro livre fez com
que eu desafogasse toda a dor da impotência diante dos fatos que eu nunca
poderia mudar. Nunca.
O que vivi no cativeiro? Foi uma merda. Se aqueles animais
tivessem me estuprado, seria um revival de um trauma do passado que já vivi.
De uma forma tosca, seria até mais honroso. Sei lá. Porque eu era uma
prisioneira de guerra. Estava sendo usada como barganha num jogo de
poderes bélicos, onde a ira e rancor entre os dois países era o que mandava o
tom. Havia um fundo de razão.
O estupro da minha inocência? Aquilo foi doído. Porque fui
vendida como uma mercadoria. Pelos meus próprios pais. Como uma boneca,
princesa da sociedade, para ser um troféu adquirido por um boçal de merda
que achava que poderia ter a única pessoa que nunca o havia notado. Possuir
a única coisa que lhe havia sido negada. E o que garotos mimados fazem ante
isso? Eles tomam à força.
Os imbecis do estado islâmico foram parados. Feriram meu corpo
apenas. Não atingiram meu espírito. As lembranças de Kendrick e a traição
dos meus pais? Isso feria meu espírito. Minha alma. Feria minhas emoções de
tal forma que aprisionava uma parte minha que eu achava que já era livre. E
ali morava o verdadeiro terror para mim. Eu tinha medo de me afundar no
passado. De submergir em meio às sombras nebulosas. De nunca mais
conseguir me reerguer como fiz, quando saí daquela mansão tantos anos
atrás, no meio da madrugada e sumi no mundo. Como um fantasma na
escuridão.
Dali eu fui diretamente ao hospital e registrei a ocorrência do
estupro. Eu não era burra. A família Evans era a mais influente na cidade.
Nunca conseguiria provar nada publicamente. Não adiantaria prestar queixa
na polícia, mas quando expliquei para a médica para o quê eu precisava do
papel e documentação atestando o estupro, ela fez questão de registrar com
afinco. Tratou-me com carinho, aplicou o coquetel antirretroviral, bem como
me deu a pílula do dia seguinte. Mulheres se uniam muito nessa hora.
Corporativismo.
Saí dali munida com o único papel que me garantiria uma proteção
contra a família de Kendrick Evans. Se ele viesse atrás de mim, eu viria a
público e registraria as provas documentais do laudo médico. Fotos e mais
fotos do exame de corpo de delito. A médica tinha um irmão que era policial.
E esse policial fez questão de contribuir para que eu estivesse garantida no
futuro. Ele inclusive me ajudara a deixar a cidade sem ser notada.
Atestei que queria apenas sumir. A dica que recebi dele veio
através de um panfleto encontrado no console de sua viatura.
Segui o rumo da Base militar em Jacksonville e me alistei. Não sei
se o soldado do posto viu meu estado lastimoso e aceitou por pena, mas o
importante é que entrei. E Ailleen Anderson começou novamente ali.
Deixei de ser a princesinha da sociedade e passei a ser a guerreira
reconstruída. Porque eu me recusava a ser a garota quebrada e fodida. Eu me
recusava a carregar o peso daquela dor pelo resto da vida. A memória
prevaleceria? Provavelmente. Meu corpo demorou um pouco a se recuperar
daquele dia fatídico. Mas não permiti que eu fosse vencida pelo meu algoz.
Foda-se, Kendrick.
Que se virasse para pegar de volta o um milhão que havia feito
questão de pagar por mim.
A batida na porta me assustou de tal modo que quase pulei como
um gato assustado. Pensei até que tivesse dado um guincho, mas acho que foi
impressão. As lembranças ruins se desvaneceram como névoa seca numa
noite fria.
O hotel era tão fuleiro que não tinha aqueles olhos mágicos que me
garantissem conferir a identidade do visitante. Porcaria.
Abri o cantinho da porta e quase caí dura para trás.
O próprio Major Justin Bradshaw estava parado com as mãos nos
bolsos, a cabeça inclinada para um lado, me olhando interrogativamente.
— Vai me convidar a entrar ou não? — perguntou de maneira
arrogante.
Abri a porta e coloquei as mãos nos quadris em uma atitude
beligerante.
— Como me encontrou? Quero dizer? Virou um perseguidor
agora?
Ele deu um sorriso torto, o que desestabilizou um pouco minhas
pernas já bambas... Se bem que posso alegar que o estado de bambice dos
meus membros inferiores seja do tempo em que passei sentada no chão,
certo?
— Digamos que tenho um faro muito bom e não é à toa que tenho
inúmeras medalhas de mérito como antigo RECON dos fuzileiros. Só por aí
você já tira um pouco as minhas habilidades de busca.
Dei espaço para que ele entrasse.
O homem tomava quase que o espaço todo do pequeno quarto de
hotel. Que mais se assemelhava ao quarto do Hotel Bates, aquele do filme de
terror, sabe? Era medonho e meio assustador. Mas garantiria uma noite de
sono até o dia seguinte onde eu talvez precisasse ir ao escritório do advogado
e logo mais ao banco.
Por um momento fui tomada por um pânico súbito por me
encontrar confinada em um espaço contíguo com um homem, na verdade,
vamos reformular. Confinada dentro de um quarto, com a presença mais do
que óbvia de uma cama muito próxima. Aquele ambiente não era um onde eu
me sentia confortável para estar a sós com qualquer macho da espécie.
— Pois bem. E ao que devo esse seu trabalho tão fascinante de
busca? Está procurando alguém pelas redondezas, Major? — perguntei, me
afastando levemente, embora fosse quase impossível.
Ele me olhou atentamente.
— Sim. Estou. E já achei — falou simplesmente. — Você. E
vamos cortar as formalidades. Aqui eu não sou seu Major. Estamos ambos
fora do serviço.
Arregalei os olhos, espantada.
— Você está fora do serviço? Como assim?
— Pedi licença para acompanhar seu tempo de tratamento.
Revirei os olhos.
— Eu não vou fazer tratamento algum, Major — falei.
Ele chegou à minha frente em um piscar de olhos. Foi bem
parecido àquelas cenas de vampiros que eu tanto amava ler. Cheguei a piscar
assombrada.
O Major segurou meu rosto entre suas mãos e registrei o tato
quente. Minhas mãos se ergueram automaticamente para segurar seus pulsos,
numa tentativa débil de tentar afastá-lo de mim. Meu coração começou a
bater num ritmo acelerado, mas porque, por um instante ínfimo, a abordagem
brusca remeteu ao toque desagradável de um homem que eu queria manter no
passado. Precisei olhar firmemente nos profundos olhos azuis que me
encaravam com seriedade para que racionalizasse que não estava diante de
Kendrick Evans, meu pesadelo do passado. Eu estava diante do meu Superior
em comando, o Major que de alguma forma conseguiu, agora sim, fazer com
que um ritmo preocupante começasse a martelar no peito. Identifiquei como
um sentimento até então desconhecido. Desejo ao mais simples toque.
— Vai. Vai, sim. E não sou seu Major aqui. Serei apenas Justin.
Entendeu?
Não. Eu não tinha entendido. Provavelmente estava um pouco
lesada. A proximidade do homem estava fazendo aquilo com certas partes
femininas minhas que estavam adormecidas há muitos anos. Que abrigavam
teias de aranhas e que eu já havia decretado falência e colocado uma placa de
aposentadoria precoce. Por invalidez. Enfim.
— Nã-não.
Ele fez o que eu não esperava.
Recostou a testa à minha, fechou os olhos azuis lindos que tinha e
suspirou. Assim. Pesadamente. Como se estivesse recobrando forças para
dizer algo muito sigiloso ou importante.
Meu Deus. Que louco. Há alguns minutos eu estava afundada em
lágrimas de autopiedade e agora estava aqui, em um ponto de ebulição
completa. E o mais aterrador de tudo... onde estava o medo que eu deveria
sentir? O pavor de estar sendo manejada por um homem tão viril quanto
aquele?
— Vai ser uma merda dizer isso, mas vou ter que dizer do mesmo
jeito. Porque eu sou bruto, não sou romântico e não tenho um fino trato com
as mulheres.
Agora ele afastou o rosto e os olhos me queimavam. Quase que
literalmente. Estava difícil me concentrar no olhar faminto que o homem
estava dando.
— Eu quero você, entende?
Oh-oh.
— O-o q-quê?
— Não sei quando. Não sei onde, ou o porquê. Só sei que quero
você. Simples assim.
Comecei a rir.
— Nossa. Que romântico.
— Eu disse que não sou romântico.
— Ah, é mesmo. Desculpa. Você admitiu essa verdade absoluta. Só
por causa disso eu tenho que engolir e achar fofo? — caçoei.
As mãos dele nunca abandonaram meu rosto. Eu estava enjaulada.
Odiava aquela sensação. Estava lutando contra a vontade de me afastar.
— Como eu disse, não sei explicar. Eu me sinto responsável por
você...
— Pooorra! Eu não quero que se sinta responsável por mim! Eu
não quero ser um caso de caridade! Eu não preciso disso! — gritei
enfurecida.
Daí o Major bonitão fez o impensável.
Ele aproximou seu rosto do meu, deixando sua boca a centímetros
da minha e olhou bem no fundo dos meus olhos, antes de dizer:
— Eu poderia chegar aqui e simplesmente beijar você. Mostrar sem
lhe dar chance de escolha que a minha vontade é essa desde o momento em
que a vi. Desde o instante em que a tive em meus braços quando a resgatei
daquele inferno. Mas não é isso o que vou fazer...
Senti o tremor percorrer meu corpo, antes de responder, aos
tropeços:
— Nã-não?
— Não. Porque não quero que tenha a impressão de que não
respeito suas vontades. Então... vou expor meu desejo, mas vou deixar que
você decida o que fará com ele.
— Eu... eu... não sei o que quer dizer, Major.
— Eu quero te beijar, Ailleen. A resposta que você tem que me dar
é se você quer ser beijada ou não.
Honestamente, quem, em sã consciência consegue responder a algo
assim? Tão na lata? Com um par de olhos azuis e magnéticos te encarando
como se você fosse uma presa prestes a ser devorada?
Só me restou acenar afirmativamente com a cabeça. Porque se eu
tivesse que proferir alguma palavra, provavelmente algo torpe sairia da minha
boca. Isso era certeza. Mas eu queria experimentar as sensações que ele
despertara? Sim. Desde que suas mãos tocaram meu rosto, meu estômago
pareceu fazer um looping insano e sem controle algum. Aquele frisson de um
beijo esperado logo após um primeiro encontro... e minha mente estava tão
enevoada que eu sequer me atentei para o fato de que tudo era um turbilhão
de emoções com tudo o que estava acontecendo na minha vida no momento.
Do momento em que registrei que não era o medo quem me dominava,
porque nunca o deixaria ser mais forte que eu, tenho que confessar que sim.
Meu cérebro, corpo, mente... já tinham decidido pelo sim.
Então... eu só queria sentir. E esquecer por um instante apenas...
que eu era Ailleen Anderson, que tinha uma vida fodida e cheia de marcas,
como um disco de vinil arranhado, sempre tocando na mesma nota.
E ele me beijou.
Uma mão segurou minha nuca, sem grande pressão brutal, nem
nada. A outra angulou meu rosto, para fazer com sua abordagem linguística
fosse mais enfática. Por assim dizer.
E... uou. Vamos dizer que foi... épico.
O homem expressou com um beijo o que sua boca não conseguiu
proferir com palavras. Ele seduziu. Demonstrou. Cativou. Envolveu.
Perturbou o juízo. Possuiu. Justin Bradshaw arrebatou minha boca com uma
voracidade tão intensa que achei que fosse desfalecer no meio do quarto
cheirando a mofo e bolor.
Ele mesmo afastou os lábios, mas manteve meu rosto na mesma
posição, como se estivesse pronto a iniciar o jogo de sedução todo de novo.
— Entendeu agora? Parece algo como caridade pra você? Pena?
Ao dizer aquilo, esfregou o quadril e a evidência de sua excitação
contra mim. Daí aquilo foi o suficiente para meio que quebrar a magia do
momento. Foi como um despertar ou cair de uma nuvem fofa.
Dei um pigarro de leve e tentei empurrá-lo.
Ele se afastou imediatamente. Estava aí uma grande diferença que
registrei no mesmo instante. À menor menção de que eu não estava mais
cooperando com seu esquema de sedução, Justin simplesmente me deu o
espaço que necessitava no momento. Tão diferente de Kendrick, no passado,
que ignorou abertamente minhas negativas e sentiu-se mais estimulado ainda
pela recusa.
— Uau — eu disse. — Minha nossa... de onde veio isso?
— Não faço ideia. Sinceramente — admitiu e passou as mãos pelo
cabelo em corte militar. Ele estava com cara de cansaço. — Só sei que você
não sai da minha cabeça.
— Você se sente culpado por conta da missão? É isso? —
perguntei e cruzei os braços.
— Não é isso. Você já estava virando a minha cabeça antes disso.
Abri os olhos em choque.
— O quê?
— Ailleen, você não pode ser tão cega a ponto de não notar que
mexe com os homens da corporação, não é? — ele falou irritado.
— O quê? — Agora eu ri. — Está falando sério? Você não está
insinuando que... eu estou seduzindo ninguém, não é?
— Claro que não, porra! — retrucou puto. — Viu? Você é tão
ingênua que não percebe o fascínio que exerce ao redor. Isso é... fascinante.
— Você foi meio repetitivo nessa sua frase.
— Eu sei — ele disse e sorriu. Oh, meu Deus. Ele sorriu. Eu nunca
tinha visto aquele homem sorrir.
— Major...
— Eu não sou o Major aqui...
— Pra mim é...
— Aqui, agora, não. Ailleen... Eu vim em condição de homem.
Não de Oficial. Estou atrás de você com um interesse óbvio em outra área
que não a militar, embora tenha usado do subterfúgio de poder acompanhar a
evolução do seu tratamento para estar ao seu lado.
— Eu não...
— Shhh! — calou minha negativa. — Eu quero propor um acordo.
— Que acordo? — perguntei desconfiada.
— Passamos alguns dias juntos. Enquanto durar a licença. Se eu
perceber que você não vai evoluir para um estresse pós-traumático, eu atesto,
como seu superior, que você está apta a voltar.
Revirei os olhos diante da arrogância.
— Você pode atestar até mesmo para o Presidente da nação agora.
Eu não vou voltar de qualquer forma, Major. E não vou passar por estresse
pós-traumático. Garanto que já enfrentei algo tão ou bem pior... okay, em
categoria F5, se pudesse colocar em uma classe de desastre emocional, e não
evoluí para uma merda de estresse pós-traumático. Eu sobrevivi e estou
inteira. Vou sobreviver de novo — falei com teimosia.
Ele me olhou com desconfiança.
— O que aconteceu com você que pode se equiparar ao que viveu
na Síria, naquele casebre de merda, Ailleen? — perguntou desconfiado.
Virei as costas e cruzei os braços tentando me afastar. Era um
pouco difícil, já que o quarto era minúsculo.
— Algo que pertence ao passado e ali deve permanecer.
Senti sua presença às minhas costas. As mãos em meus ombros,
trazendo um calor que percorreu meu corpo inteiro. Ignorei o nó na garganta.
— Me deixe ficar ao seu lado por alguns dias. Deixe-me ser seu
amigo, então. Por favor.
Virei de frente para ele, encarando aqueles olhos tormentosos e
reveladores. Era como uma tempestade tropical. Notei que pareciam mais
cinza do que azuis, para dizer a verdade.
— Por que isso? Por que agora?
— Porque eu preciso.
— Por quê?
— Nem eu sei, Ailleen. Só sei que, nesse momento, você é a
presença que consegue me colocar no eixo.
Uau. Para quem não era romântico, aquela frase teve um efeito bem
engraçado no meu coração. Acelerou meus batimentos e tudo mais.
— E se eu disser que não vou voltar para a Marinha? — perguntei.
— Deixe-me avaliar e convencê-la de que ali é o seu lugar.
— E se não for mais?
— Então cada um segue o seu caminho — respondeu
simplesmente.
A resposta acabou fazendo com que uma tristeza inesperada se
instalasse no meu peito. Mas eu imaginava que valia a pena o risco.
— E se você perceber que sou muito mais complicada do que
imaginou... que sou apenas a ilusão de algo belo e fluido, mas na verdade sou
quebrada e destituída de sentimentos a serem compartilhados, porque algo
aqui dentro — coloquei a sua mão no meu peito — já não existe como
deveria existir?
— Então eu vou mostrar a você porque sou tão condecorado na
Marinha — ele disse e colocou a outra mão no meu rosto. O polegar
acariciando suavemente minha boca. — Porque chego de maneira silenciosa,
sem fazer alarde, faço a acareação dos danos e o controle dos mesmos e me
movo como um fantasma. Mas antes de tudo, Ailleen. Eu vejo aquilo que
ninguém mais pode ver.
Ele disse aquilo e me beijou de novo. Daquela vez de um jeito doce
e terno. Para selar uma promessa.
Para mostrar que mesmo alegando ser um bruto, sem um osso
romântico naquele corpo enxuto e cheio de músculos, ainda habitava um
homem que prezava pelo bem de uma mulher que lutava por existir... mesmo
que achasse que sentir doía muito mais que respirar.
Sim. Tenho que admitir que estava me sentindo um perseguidor de
merda. Mesmo não sendo a minha intenção, mesmo sabendo que eu deveria
dar o espaço que ela havia deixado claro querer, ainda assim, percorri as
estradas que me levavam à cidade de Myrtle Beach, na costa da Carolina do
Sul. Apreciei a cidade pitoresca e agradável quando por fim cheguei ao
destino.
Para ser um Oficial condecorado de uma força especial da Marinha,
era preciso sagacidade e perseverança. Não era à toa que nos nove anos que
servi como RECON, adquiri e calibrei as habilidades que me fizeram muito
bom, se não, o melhor da equipe tática. Então descobrir o paradeiro de
Ailleen Anderson era como cortar uma fatia de torta de limão num
piquenique. Foi tão fácil que nem ao menos impôs um desafio.
Na verdade, o desafio mesmo seria convencê-la das minhas
intenções. Como se chega em uma mulher que mal conhece, que teve contato
e poucas interações, e explica que sente algo tão desconhecido e perturbador
que nem mesmo você é capaz de explicar? Até mesmo eu sei que pareceria
conversa de maluco.
Eu havia colocado os olhos em Ailleen ainda em sua ficha militar.
Só a tinha visto na base náutica em algumas ocasiões e sempre com olhares
furtivos, e a primeira vez em que realmente estive em sua presença de
maneira evidente foi quando a requisitei ao meu gabinete para lhe imputar a
missão quase suicida.
Dali para a fatalidade que ocorreu foi apenas um pulo para disparar
o gatilho do que eu podia sentir. Alguma coisa que dizia lá no fundo havia
poucas oportunidades na vida, e que devíamos aproveitá-las enquanto ainda
estivéssemos vivos. Então, talvez aquele acontecimento maldito tenha
servido para me mostrar que eu poderia ficar parado, vendo a vida passar e
apenas admirar uma mulher pela qual estava interessado, de longe, podendo
correr o risco de perdê-la a qualquer momento; ou poderia arregaçar as
mangas e simplesmente mostrar que a queria, simples assim.
E era algo até mesmo estranho para mim, admitir na altura do
campeonato, naquele momento da minha vida, que estava interessado em
uma colega de serviço. Nunca me envolvi com mulher militar alguma. Nunca
sequer tive o interesse, para falar a verdade. Propostas nunca faltaram.
Embora a corporação não fosse dotada de tantas mulheres, ainda assim,
algumas conseguiram ocupar postos elevados, chegando à posição de oficiais,
trazendo certo brilho em um mundo dominado por testosterona.
A própria Segundo-tenente Hastings era um exemplo vivo. E eu
podia afirmar que era uma mulher agressiva, inclusive em sua demonstração
clara de interesse sexual, bem como de ganância de posto. Ela nunca havia
deixado às escondidas que se eu apenas estalasse os dedos, a teria reclinada
em minha mesa para fodê-la de mil maneiras possíveis, desde que o uniforme
que ela estivesse usando fosse fácil de arrancar.
Mas nunca me interessei. Sequer voltei o olhar ou devolvi os
olhares lânguidos e algumas frases de duplo sentido, tendo, inclusive,
chamado sua atenção em um determinado momento.
Afastá-la do porta-aviões foi uma decisão febril, regida pela raiva
do momento, por ela ter ousado estabelecer um comando que não tinha
direito, privando as fuzileiras ao direito de suas armas táticas. Porém também
fora uma excelente forma de me livrar do assédio insistente que a mulher
impunha apenas em estar no mesmo ambiente.
A caminho da cidade, apenas telefonei para o homem no qual me
espelhava.
— Para estar me ligando, só pode indicar que está em terra, acertei?
— ele disse, e eu tinha certeza de que havia um sorriso torto em seus lábios.
— Como sempre, sagaz, pai.
— Sou bastante conhecido por isso. Quando chegou?
— Há pouco mais de duas horas.
— Está vindo pra casa? — questionou.
— Primeiro estou indo à Carolina do Sul, depois a minha intenção
é ir pra casa, mas não faço ideia de quando.
— E posso perguntar, por acaso, o que está indo fazer no Estado
vizinho? — A pergunta era num tom jocoso.
— Você e Cole continuam mantendo um bolão de apostas para
saber quem é o mais curioso? — caçoei.
— Naan... eu ganho em disparado. Sou o pai. É meu dever saber da
vida dos meus filhos, ora essa.
Deixei que o silêncio me desse coragem.
— Estou indo em busca de uma mulher.
— Oooh... uau. Essa você me pegou de surpresa, filho. Até deixei o
peixe que eu estava limpando escapulir na pia.
Comecei a rir.
— Conte-me mais.
— Pai, ela... ela também serve as forças armadas...
— Oh, merda... — Ouvi o resmungo do outro lado. — De tantos
rabos de saias, você foi se engraçar por uma de farda, Justin? Só me diga,
pelo amor de Deus, que não é Ranger.
— Não. Ela é da Marinha.
— Graças a Deus. Uma alma criteriosa e de cabeça boa. Escolheu a
corporação certa.
A disputa entre as forças armadas era algo tão arraigado que fazia
com que um militar de um lado achasse que o outro era louco por não ter
escolhido o lado onde ele estava. Vá entender.
— Ela é linda. E corajosa.
— Certo... o que mais?
— E jovem. Muito mais do eu.
— E daí? Isso não é empecilho. Espera... quão jovem? Você não
está pegando uma recruta, não é, Justin? — Escutei o barulho da torneira
sendo ligada e as panelas sendo fechadas. — Pronto. Me sentei para ouvir
atentamente. Se me falar que está pegando uma recruta, vou caçar você e te
dar uma surra.
— Não, pai. Porra... também não sou louco, não é?
— Ótimo. Quão jovem? — repetiu.
— 23 anos.
— Tudo bem. Boa idade. Ótima para me dar netos.
Revirei os olhos ante as palavras do velho.
— Pelo amor de Deus, pai. Estou apenas falando que me interessei
pela moça e você já está vendo netos?
— Eu sou um homem velho. Posso sonhar, não posso?
— Tudo bem...
— Continue, Justin. Está melhor do que um seriado que estou
assistindo.
Comecei a rir.
— Desde que a vi na base naval meus olhos passaram a
acompanhá-la por onde ia, mas nunca passou pela minha cabeça me envolver
com alguém da corporação, principalmente alguém sob meu comando. Ela é
uma Oficial não comissionada.
— E daí? Muitos casais se formam nas forças armadas. Foda-se,
Justin. Se você gosta dela, não é o cargo que vai importar, desde que não seja
usado para galgar patentes.
— Isso nunca, pai.
— Então...
— Ela foi escalada para uma missão em terra...
— O quê? Porra... sou da velha guarda, Justin. Mulheres não
deveriam estar na frente de um combate. Pode me chamar de machista.
— Você é machista.
— Obrigado.
— Ela executou um serviço fantástico prestando assistência médica
ao Capitão Masterson. Mas foi ferida e acabou nas mãos inimigas.
— Espera... como assim?
— Pai, eu explico isso depois, okay? Em um detalhe da missão,
saiu algo errado, Ailleen ficou pra trás e acabou em cativeiro por algumas
horas até que a recuperássemos.
— Vocês deixaram um companheiro pra trás??? — ele gritou do
outro lado.
E aí estava... O lado de todo militar da Marinha americana. Nunca
abandonar um companheiro.
— Como eu te disse... explico isso depois. O importante é que a
resgatamos e nada de pior havia acontecido, mas lhe dei dois meses de
licença.
— Justo.
— E estou indo atrás dela.
— Hummm...
— Hummm, o quê?
— Entendi... o seu interesse se estendeu para fora das bases. E você
quer conferir se a licença será usufruída.
Eu dei um sorriso de lado, sacudi a cabeça segurando o riso, porque
meu pai, do outro lado da linha, em poucas palavras, havia descoberto meus
planos.
— Mais ou menos.
— Isso significa que a moça mexeu mesmo com você.
— É bem por aí.
— Tudo bem. Quando vier, me avise. Vou deixar a casa pronta.
— Certo.
— E Justin?
— Hum?
— Traga a moça com você. Ela vai ficar maravilhada com o peixe
no forno que eu faço.
Desliguei a ligação ainda rindo dos conselhos do meu pai.
Sim. Aileen havia despertado meu interesse muito antes. O que
aconteceu apenas fez com que movesse as peças no tabuleiro, porque sabe-se
lá quando eu o faria.
Agora, ali estava eu. Tomado por um sentimento doentio e
passional, dominado por tensão, desde o momento antes de bater à porta do
quarto de hotel onde Ailleen estava hospedada.
Vê-la foi como receber o sopro de uma brisa em um dia quente no
deserto. Era piegas pra caralho falar isso, mas o fato de tê-la encontrado,
mesmo que em apenas algumas horas de distância, fez com que meu coração
voltasse a bater em um ritmo normal, depois que teve a aceleração imediata
ao contemplar aqueles olhos assombrados.
E se o simples fato de vê-la foi o suficiente para me desequilibrar
daquela maneira, o momento em que meus lábios tocaram os dela... ah... aí,
sim... foi um momento em que senti meu corpo ser dominado por sensações
vertiginosas que assumiram o comando, fazendo com que minha boca a
possuísse em apenas um beijo.
Bom, sacudi a cabeça para afastar o momento torpe de puro
romantismo que estava tentando dominar minha mente. O único que me
interessava agora era o fato de Ailleen Anderson estar exatamente à minha
frente, enquanto fazíamos uma refeição na pequena lanchonete ao lado do
hotel onde estávamos.
Enquanto ela comia o sanduíche, olhando desconfiada para todos
os lados, usando um boné, ainda que fosse noite já, eu apenas observava suas
reações, tentando detectar o que ela poderia estar escondendo.
— Muito bem, quais são seus planos? — perguntei, antes de
morder o hambúrguer enorme que tinha solicitado. Somente naquele
momento é que me dei conta de que estava com fome.
Ailleen ergueu os olhos rapidamente e tomou um gole de sua
bebida antes de responder:
— Amanhã cedo vou resolver uma pendência no banco, depois
minha meta é sair daqui.
Havia algo naquela declaração e na forma como fora falada. Bem
como no jeito em que seus olhos se voltavam o tempo todo para a porta,
como se ela quisesse fugir dali a qualquer momento.
— Essa não é sua cidade natal? — Eu sabia que minhas perguntas
poderiam ser intrusivas. Sabia as respostas para muitas delas, já. Myrtle
Beach era, sim, a cidade onde ela nasceu e foi criada, tendo saído dali e
seguido, aos dezoito anos, para Jacksonville para se alistar. Depois fora
encaminhada para o Bootcamp em Pendleton, Parris Islands e, por fim, ao
campo Lejeune, onde começara seu treinamento.
— Sim.
— E você não tem uma casa aqui?
Ailleen suspirou e demonstrou certa irritação naquele som.
— Não, não tenho.
Mordi mais um bocado do meu lanche, que estava delicioso, diga-
se de passagem, e apenas a observei.
— Ailleen?
A garçonete a chamou e vi quando ela fechou os olhos com força.
Quando ergueu a cabeça, o olhar era assombrado, e havia um
sorriso brando nos lábios, mas que demonstravam que ela queria estar em
qualquer lugar, menos ali.
— Olá, Trisha.
— Você voltou! Poxa, há quanto tempo! — a mulher falou.
— Pois é, não?
— Por onde você andava?
Ailleen olhou rapidamente para mim, como se estivesse me dando
uma mensagem silenciosa.
— Por aí...
— Fazendo o quê?
— Ahhh...
— Ailleen trabalha com entregas marítimas — interferi e vi quando
Ailleen me olhou assustada. A mulher virou os olhos em minha direção,
agora que eu havia lhe chamado a atenção.
— Entregas marítimas?
— Sim. É uma excelente gerente operacional. Cuida da plataforma
oceânica que minha empresa tem.
— Nossa... que trabalho... incomum.
— Pois é — falei. — Mas ela é muito boa no que faz.
Olhei enfaticamente para Ailleen, esperando que ela entendesse que
meus elogios se estendiam a absolutamente tudo o que ela desempenhava.
— Você voltou pra ficar? Poxa... quando você sum...
— Então, Trisha! Você poderia nos trazer a conta? Por favor? —
Ailleen pediu desesperada.
— Ah, claro. É pra já.
Ela já tinha virado e estava se afastando quando olhou por cima do
ombro e disse baixinho:
— Eu sei o que aconteceu com você, sabe? E infelizmente... você
não foi a única.
Ailleen manteve os olhos baixos, mas senti que o corpo ficou
retesado, sem reação.
A mulher saiu em disparada, sumindo por trás do balcão.
Eu havia conseguido terminar meu lanche, mas Ailleen havia
deixado metade do dela inacabado. Limpei as mãos no guardanapo e coloquei
algumas notas de dinheiro na mesa, mais do que o suficiente para pagar a
conta, tomando a mão de Ailleen para puxá-la dali, antes que a garçonete
voltasse. Ela afastou-se do meu toque quase que imediatamente.
Saímos rapidamente da lanchonete e fizemos o caminho de volta
até o hotel ao lado.
Quando Ailleen abriu a porta de seu quarto e fez menção de me
deixar de fora, apenas disse:
— Me deixe entrar e me diga do que se trata tudo isso, Ailleen.
— Não há nada a ser dito.
— Há sim. Suas mãos estão geladas, seu pulso está acelerado e sua
respiração está fora do normal. Você passou o tempo inteiro olhando para a
entrada do estabelecimento, como se estivesse com medo de ser vista.
Quando a garçonete a identificou, isso ficou mais do que claro. E quando ela
revelou que você sumiu daqui há anos, foi cortada veementemente. Então...
sim, há uma história aí.
Ailleen bufou e entrou no quarto, sendo seguida por mim, que
fechei a porta.
— Eu apenas deixei a cidade pra trás, só isso.
— Por que razão?
— Por que isso te interessa? Meu Deus! É uma história pessoal,
Major!
Cheguei à sua frente rapidamente. Percebi o brilho assombrado
naqueles olhos tão reveladores.
— Já disse que aqui não há patentes para nos separar, Ailleen. Não
queira usá-las como uma forma de nos distanciar na cadeia hierárquica.
— Okay, então... Justin. É apenas uma história do passado.
— Um passado que te atormenta e que a faz ter medo de qualquer
pessoa que possa se aproximar?
— Não. Não é bem isso.
— E o que é?
— Será que eu poderia explicar em outra ocasião?
Vi que estava esgotada, realmente. Os olhos mostravam sombras
que denunciavam o trauma vivido. Ela ainda não tinha recuperado
plenamente o viço da pele. Se olhassem bem, os hematomas ainda podiam ser
percebidos. Ela apenas havia disfarçado bem com alguma camada de
maquiagem. Querendo ou não, havíamos partido na alvorada, do porta-
aviões, em um longo voo. Ambos havíamos pegado a estrada e cruzado a
fronteira dos Estados, em uma viagem de mais de duas horas. Então... sim.
Ela precisaria de um momento para descansar.
— Tudo bem, mas... me diga — olhei ao redor do quarto, tentando
ganhar tempo —, quais são os planos, verdadeiramente, pra amanhã?
Ailleen sentou-se na beirada da cama e suspirou audivelmente,
parecendo resignada com a situação.
— Vou ao banco, tentar acionar um seguro em meu nome, depois...
não programei absolutamente nada — falou, fechando os olhos em seguida.
Resolvi que era a hora de tentar mostrar minhas reais intenções, se
é que já não as havia deixado claras.
Puxei a cadeira de madeira desgastada que ficava no canto até sua
frente e sentei.
— Eu quero ajudá-la.
Vi quando ela passou a mão nervosamente pelo cabelo, para logo
em seguida esfregar as duas mãos no rosto. O cansaço podia ser divisado a
léguas de distância.
— Ailleen, quando eu disse a você que quero a chance de estar ao
seu lado, estava falando bem sério.
Ela abriu os olhos agora esverdeados e atormentados.
— Justin, eu não sou material para nenhuma espécie de
relacionamento nesse exato momento, entende? — falou e tentou se levantar.
Minhas mãos a contiveram no local.
— Tudo o que peço de você nesse momento é seu tempo. Quero
ver se você está bem, se vai evoluir pacificamente depois do trauma sofrido.
— Mas é isso o que estou tentando lhe dizer! Eu não vou
desencadear nenhuma espécie de psicose ou trauma, ou estresse que for...
como eu disse, já passei por algo pior e me reergui. E sou o que me tornei
hoje porque não aceitei ser derrubada por nenhum fantasma do passado.
Ela me deixava cada vez mais abismado com a força que
demonstrava, mas não me demoveria dali.
— O fato de não querer permanecer aqui ou ter medo da sua
própria sombra nessa cidade perdida por Deus, talvez seja uma forma de não
ter se livrado plenamente dos fantasmas que acha que nunca a perseguiram
em sonhos, Ailleen. Você apenas os enclausurou em algum compartimento
da sua mente e não permite que eles a assombrem. Mas estão aí.
Vi, pela primeira vez, uma lágrima deslizar pela face delicada e ao
mesmo tempo feroz.
— Eu só não quero ficar aqui — disse entredentes. — É muito
dolorido.
— Não vou insistir para que me diga agora o porquê. Talvez
quando você estiver preparada e aceite que quero ser seu amigo, possa
confiar em mim.
Passei os polegares pelo rosto dela para coletar a lágrima que
descia de maneira insistente. Sem nem me dar conta do que fazia, a coloquei
diretamente em minha boca. Observar os olhos assombrados se abrirem mais
ainda foi como um bálsamo. Talvez estivesse ali a forma como eu deveria
lidar com Ailleen Anderson. Conquistá-la devagar, até que ela confiasse seus
problemas a mim de tal maneira que não sentisse medo em abrir seu coração.
Levantei-me dali e saí do quarto sem mais nenhuma palavra.
Quando me recostei na porta do lado de fora, deixei a cabeça tombar e puxei
o ar com força. Nem eu mesmo conseguia compreender a intensidade dos
sentimentos que aquela mulher despertava em mim. Algo que estava
adormecido há muito tempo, simplesmente saltou à vida e estava sendo
difícil conter. Eu queria proteger aquela garota. Queria lhe mostrar a paixão
que podia sentir arder em seus olhos.
Fui para o meu quarto, mas não sem antes acionar o mecanismo
que me permitiria ter certeza de que Ailleen não sairia dali furtivamente.
Eu tinha falado sério quando disse que seria a sua sombra.
No dia seguinte, depois de uma noite maldormida, onde certo
Major perturbou meus sonhos de maneira insistente, acordei como se
estivesse saindo de uma ressaca aterradora. Odiava aquela sensação. Era mais
do que debilitante.
Saí da cama e escovei os dentes enquanto tomava uma ducha
rápida. Resolvi não lavar o cabelo, pois não daria tempo de secar, então
apenas os trancei a partir do rabo de cavalo no alto da cabeça.
Coloquei a calça jeans, a camiseta regata, meus tênis e guardei
alguns documentos na bolsa que levaria para o dia. Guardei todas as minhas
roupas na mochila, deixando tudo pronto para uma eventual fuga.
Coloquei o boné e os óculos escuros, e abri a porta do quarto. Olhei
primeiro para a esquerda, e quando olhei à direita, o suspiro saiu
imediatamente. Justin Bradshaw estava recostado displicentemente na parede,
com um pé apoiado e um cigarro na boca. Eu nem fazia ideia de que ele
fumava.
— Fazendo guarda, Major? — caçoei.
— Velhos hábitos não morrem jamais. Eu acordo muito cedo.
Costumo acordar no porta-aviões para ver o sol nascer.
Bom, eu nunca tinha compartilhado aquilo com ninguém, mas já
tinha feito o mesmo às escondidas, pelas escotilhas.
— Oh... entendi.
— Vai querer tomar o café da manhã no mesmo lugar ou prefere
arriscar outro?
Eu sabia que seu tom era cheio de sarcasmo e revirei os olhos por
trás das lentes escuras dos meus óculos, mas ele não pôde ver, obviamente.
Caminhei até o carro alugado e quando ia abrir a porta, ele segurou
meu cotovelo. Um flash do passado veio imediatamente e lutei para engolir a
náusea. Lembrei-me de que aquele ali era o Justin, o Major honrado da
Marinha, para quem sempre tive orgulho de servir.
— Vamos no meu — disse num tom mais gentil.
— Mas, por quê? Esse aqui serve para o mesmo propósito...
— Porque já que você quer passar por baixo do radar, nada melhor
do que disfarçamos e andarmos num veículo completamente desconhecido.
— Mas esse é desconhecido, Maj... — Parei quando vi o olhar que
ele me lançou. — Justin. O carro é alugado.
— Você chegou com ele ontem?
— Sim...
— Então já não é desconhecido, querida. Essa é uma cidade
pequena. Tenho certeza que um dos esportes aqui deve estar relacionado a
fofocas sobre carros diferentes nas redondezas ou cidadãos que retornaram ao
lar...
Quando ele disse aquilo, um arrepio de terror percorreu meu corpo.
Okay... vamos ser realistas. Eu era uma pessoa bem resolvida em
relação ao trauma que enfrentei quando abandonei Myrtle Beach. Resolvida
no sentido de, sei que fui vítima de um crime de abuso que nenhuma mulher
deveria enfrentar. Nunca. Tive minha privacidade, meu corpo e minha alma
violados. Mas nunca permiti que aquele acontecimento moldasse minhas
ações ou quem eu queria ser.
Ao invés de me esconder em um lugar e simplesmente rastejar nas
próprias lágrimas... Ao invés de querer dar cabo da minha vida, achando que
tudo estava perdido ali, simplesmente resolvi me reconstruir. De alguma
forma.
Posso não ter me tornado uma perita exímia na arte sexual após
aquilo, não me envolvi sexualmente com outros caras, mas não foi por falta
de um desejo que ardesse em mim, e sim, pela falta de oportunidade nos
momentos em que eu estava vivendo à época.
Quando saí da cidade, dediquei cada partícula do meu ser a me
tornar a melhor mulher militar das forças. Escolhi a Marinha pela
proximidade do Camp Lejeune no Estado circunvizinho. Se eu tivesse um
pouco mais de coragem, poderia ter tentado o treinamento para piloto de
caça, mesmo sabendo que mulheres aprovadas são mais raras do que achar
um chefe mulher na máfia japonesa.
Enfim... armei meu corpo de pura coragem e investi naquilo que eu
acreditava poder ajudar a forjar meu espírito. Cada exercício áspero que
fazia, cada madrugada que era obrigada a acordar às 4 da manhã para malhar,
correr, nadar, escalar ou rastejar por milhas de lamas e florestas brutais...
cada etapa do treinamento que fiz, apenas me levava para mais longe das
lembranças ruins daquela noite fria.
Não. Nunca foi fácil. Meu corpo fora marcado e sofrera os abusos
das mãos de um homem asqueroso? Sim. Minha alma havia sido esfacelada
ali, sim, mas o que mais custou a recuperar foi a ferida que ficou no coração,
pela traição sofrida por quem eu achava que deveria me amar acima de tudo.
Talvez a dúvida sobre o amor possa ter se entranhado naquele
instante.
Olhei de rabo de olho para o Major e quando ele passou à minha
frente, não pude deixar de apreciar sua figura imponente, nem mesmo o
traseiro fantástico que ele abrigava naquela calça jeans desgastada.
Droga. Eu estava olhando as formas físicas do homem?
Desejos sexuais ativados e normais? Checado.
Vontade de passar as mãos no cabelo dourado? Checado.
Ele olhou para trás e só não fui pega no flagra admirando suas
formas por causa dos óculos, mas o sorriso de lado e conhecedor que
apareceu nos lábios dele, provavelmente contavam outra história.
— Vamos ao iHop que fica na avenida próxima — falei assim que
sentei e comecei a colocar o cinto.
Olhei para o lado e ele estava com os braços apoiados no volante,
me olhando atentamente.
— O quê? — perguntei.
— Nada.
Seguimos em um silêncio confortável até a rede de lanchonetes e
Justin estacionou o Jeep SUV na lateral, de ré.
Apontei para frente.
— O banco fica logo ali à frente. Se tudo der certo, consigo
resolver o que tiver pra resolver hoje mesmo. Consegui me livrar de ter que
comparecer ao escritório do advogado antes — informei.
Saí sem esperar sua resposta.
Entramos no iHop e me encaminhei à mesa mais distante, mas
sentei-me de costas para a porta de entrada. Justin sentou-se à minha frente.
A atendente prontamente colocou os cardápios na mesa e
escolhemos o que queríamos comer.
Comecei a tamborilar os dedos nervosamente até que Justin
colocou a mão sobre a minha, no intuito de me fazer parar e olhar para ele.
— Eu não quero ser intrusivo, Ailleen — falou em um tom
resignado, mas quem o conhecia podia identificar o tom de comando —, mas
estou esperando que você compartilhe comigo seus planos para que eu possa
compartilhar os meus.
Arregalei os olhos, mas ele não podia notar aquele fato. Bem, até
aquele momento, quando ele retirou os óculos do meu rosto.
— Como assim, compartilhar os seus?
— Em uma troca de confiança, entende? Vou dizer a você o que
tenho pensado desde o momento em que saí do avião. Na verdade, desde o
momento em que entramos no avião rumo à base em terra.
Respirei fundo.
— Olha, Justin... eu gostaria de me desculpar.
— Pelo quê?
— Acho que fui uma cadela total com você. Vou culpar os
medicamentos que estavam me administrando no porta-aviões depois do meu
resgate, ou talvez as pancadas na cabeça que levei — naquele momento pude
ouvir o rosnado que ele emitiu do outro lado da mesa —, ou ainda posso
culpar o ciclo menstrual. Esse sempre pode levar a culpa por todas as agruras
e merdas que somos capazes de fazer ou dizer em alguns momentos.
Justin riu brandamente.
— Eu fui um pouco sensível demais quanto à sua ordem de me
retirar para um período de encubação de drama.
— Encubação de drama? — Justin quase engasgou com a água que
estava tomando.
— Sim, sabe? Quando guardamos um momento dramático e
fazemos dele nossa bandeira e tal. Enfim... você sinalizou um comando e eu
já fui no modo cadela achando que você estava falando outra coisa. Eu
entendo os preconceitos que as forças militares têm contra mulheres...
Justin Bradshaw ergueu a mão para interromper meu discurso.
— Em algum momento dei a entender que tenho preconceito por
ter fuzileiras ao meu comando?
— Não... mas também volto a repetir. Não quero ser uma marca
perpétua de um fracasso em uma missão sob suas ordens.
Ele segurou minhas mãos, pouco se importando que a garçonete
estava ao lado e tentava um espaço para colocar nossos pratos.
— Pode colocar os pratos aí, obrigado — ele disse sem nem ao
menos olhar para a mulher. — Ailleen, se eu não confiasse nas suas
habilidades, não a teria colocado na missão. E qualquer tarefa executada sob
o comando do melhor e mais graduado Oficial pode dar errado por forças que
não nos cabem agora averiguar. Fazemos de tudo para que não haja
intercorrências, mas quando os imprevistos acontecem, simplesmente vamos
lá e arrumamos o que deu errado. Torcendo sempre para que nenhuma
fatalidade tenha transcorrido.
Mantive a cabeça baixa.
— Você acha que o Capitão Masterson é menos gabaritado por ter
sido alvejado em uma missão?
Ergui o rosto e neguei imediatamente.
— Não, claro que não.
— Então. E ele é homem, Ailleen. E mesmo assim, munido de três
fuzileiros RECONs ao lado dele, ainda teve que ser resgatado, porque uma
eventualidade ocorreu durante a operação. Mas isso não o desmerece. Certo?
— Claro que não, Maj... Justin.
— O que aconteceu com você foi uma fatalidade, associada à
manobra evasiva do piloto e incompetência em não ter acionado os fuzis
dianteiros do helicóptero.
— Eu sei que tive minha parcela de culpa, Justin. Não tente me
eximir, por favor.
— Você se soltou do cinto? Foda-se. Estava tentando manter um
companheiro resguardado. Um companheiro ferido. O mesmo que você
costurou e fez questão de que saísse dali intacto. Então encaro como um
esforço mais efusivo da sua parte para mantê-lo seguro naquela hora, sem que
jogasse fora todo o seu esforço — ele disse e sorriu brandamente. Colocou o
prato de panquecas à minha frente e o dele diante de si. — Isso servirá para
que numa próxima missão você saiba qual é a primeira coisa que deve fazer e
em quê se segurar, não é mesmo?
Enquanto comíamos nossa refeição, eu pensava em suas palavras.
O peso da culpa ia aliviando gradualmente. A insegurança que abatia meus
esforços em todos aqueles anos na Marinha ia desvanecendo aos poucos.
— Ainda assim peço desculpas.
— Você não tem do que se desculpar.
— Acho que reagi mal.
— Possivelmente, mas acredite, já tive outros Oficiais sob meu
comando que também foram bem eloquentes quanto à revolta em uma ordem
de comando para licença pós-missão. — Comeu um bocado de sua comida e
custei a não acompanhar a mandíbula forte triturando a pobre panqueca. — O
próprio Capitão Masterson não ficou nem um pouco feliz em ter que voar da
Alemanha para casa.
— Ele terá que ficar de licença?
— Por três meses em terra. Até voltar ao porta-aviões, e se, estiver
liberado. Por sinal, os médicos na base alemã mandaram elogiar o seu
serviço. Mesmo feito em condições de extrema insalubridade, ainda assim
você conseguiu manter as feridas e lesões com o mínimo de intercorrências.
— Oh... obrigada — agradeci e senti o rosto esquentar em
embaraço.
Terminamos a refeição e Justin pediu para pagar a conta. Depois de
um duelo gentil de palavras, acabei cedendo.
— Agora que já estamos devidamente alimentados, qual é seu
próximo destino?
Estávamos saindo do iHop quando senti o arrepio na minha nuca.
Coloquei a mão imediatamente na garganta, tentando acalmar os nervos.
Olhei para os lados e não vi nada.
— Ailleen? — Justin chamou novamente.
— Hã? O quê?
— Para onde vamos?
— Banco. Logo em frente.
Atravessamos a rua e imediatamente entramos no único banco da
cidade. Cheguei até a recepcionista, que ergueu o rosto do romance picante
que estava lendo e me encarou.
— Ahn, eu preciso de um atendimento com o Sr. Joseph Lander,
por favor.
— Você tem hora marcada? — perguntou, ajeitando os óculos de
armação de tartaruga na ponta do nariz.
— Não, senhora. Cheguei à cidade ontem e não tive tempo hábil de
marcar — respondi com sarcasmo. Ouvi a risadinha de Justin atrás de mim.
— Vou ver se ele poderá atendê-la. Qual o seu nome?
— Ailleen Anderson.
Seria muito cômico se o homem não pudesse, já que o banco estava
vazio. Não havia uma única alma viva ali.
Dois minutos depois, ela disse:
— Aguarde um pouco ali naquelas cadeiras, por favor, querida.
Sentei-me onde fui orientada, com Justin sempre ao meu lado. Por
incrível que pudesse parecer, já estava começando a me acostumar. Seria ele
uma espécie de super-herói com poderes mágicos que tinha essa habilidade?
Eu havia assistido a um filme assim... ou será que tinha lido? O personagem
tinha um poder mágico de trazer calmaria ao redor, às pessoas que estivessem
ao seu lado, no mesmo ambiente. Algo como empatia imediata. Embora,
Justin Bradshaw e toda aquela aura máscula e viril me deixassem em alerta
máximo em outras regiões ao sul, ainda assim, o fato de ele ter estendido sua
“amizade” de maneira fugaz fazia com que eu me sentisse meio letárgica à
sua volta.
— Srta. Ailleen, o Sr. Lander já pode recebê-la.
Limpei as mãos suadas no jeans e me levantei. Justin manteve-se
sentado folheando a revista, impassível.
Olhei de rabo de olho para ele e apenas ganhei um aceno.
Entrei na sala do gerente do banco e me sentei à frente da enorme
mesa de mogno. A sala era tão abarrotada de miudezas que qualquer pessoa
com déficit de atenção ficaria louco ali dentro em poucos minutos. Minutos,
não. Segundos.
— Sr. Lander.
— Srta. Anderson. O seu avô Grant sempre me deixou claro que
algum dia você viria me procurar, e que eu deveria tratá-la com a maior
deferência do mundo.
Quando ele disse aquilo, seguido de um sorriso sincero, senti o
coração mais leve.
— Oh, que bom, Sr. Lander... fico muito feliz. Eu... eu... não tinha
planos de acionar o meu fundo fiduciário agora, mas me vejo em uma
situação em que é chegado o momento — falei, calmamente.
— Hummm, eu vejo... algum plano em andamento?
— Ainda nada muito decisivo, mas pretendo fazer uma aplicação e
possivelmente comprar uma casa.
— Aqui mesmo? — perguntou com um sorriso.
— Não, senhor. Fiz minha vida em outros mares. — Literalmente.
— Oh, pena. É realmente uma pena ver nossos jovens se
ausentando da cidade e indo trilhar seus caminhos por outros polos e cidades
cosmopolitas... mas quem pode culpar vocês, não é? Mas veja, Myrtle Beach
está crescendo. A família Evans tem investido cada vez mais no turismo e
nos hotéis de luxo. Há, até mesmo, um resort muito glamoroso nas
proximidades.
A menção do nome Evans trouxe calafrios à minha espinha. Eu
queria distância deles. Mas meu maior medo estava em seu filho, o herdeiro,
achar que ainda tinha algum direito sobre mim.
— Ah, que bom, não é mesmo? — Torci para que ele não
identificasse o sarcasmo escorrendo de minhas palavras.
— Pois bem, vamos dar entrada aos trâmites da documentação do
fundo que seu avô deixou para a senhorita. Você já sabe o montante?
— Não, senhor.
Ele mexeu na papelada de um armário-arquivo que ficava bem ao
lado de sua mesa, algo bem arcaico mesmo, já que tudo deveria ser
informatizado àquelas alturas, e retirou uma pasta marrom com um
amontoado de papéis.
Ajeitando os óculos sobre a ponte do nariz, o senhor Joseph Lander
pigarreou rapidamente e ergueu os olhos, antes de dizer:
— Seu avô deixou um fundo rentável para a senhorita. Aplicado,
como esteve, hoje, ele está no valor de 950 mil dólares.
Oh, uau. Aquilo era quase um milhão de dólares! Então era por isso
que vovô Grant fizera questão de me mandar esconder o documento no lugar
mais secreto possível e nunca deixar cair nas mãos dos meus pais.
— Poxa... uau.
— Exato... acho que isso vai dar um belo pontapé a qualquer
investimento que a senhorita queira fazer, não é mesmo? — ele assegurou.
— Com certeza.
— Eu só preciso que você assine aqui, nessa linha pontilhada e
amanhã passe aqui para pegar uma parte do dinheiro em espécie.
— Não pode ser depositado em uma conta? E não pode ser feito
hoje, por exemplo?
Eu não tinha planos de permanecer mais um dia naquela cidade.
— Podemos fazer uma transferência de um valor determinado, mas
uma parte terá que ser retirada no banco, mostrando que foi exatamente a
senhorita quem fez a transação em pessoa. Foi uma solicitação do seu avô.
Ele queria se assegurar de que você não seria coagida a simplesmente
transferir eletronicamente para qualquer lugar, entende? Além do mais,
mesmo a quantia estipulada pelo seu avô, para ser retirada em espécie, não é
uma quantia da qual dispomos em nosso banco. Teremos que ir até Socastee,
a cidade mais próxima onde nosso banco tem a sede, para que reabasteçamos
os cofres.
Assenti com a cabeça. Meu avô era muito inteligente. Mas aquilo
também não era nem um pouco esperto, já que me obrigava a fazer todo o
trâmite na cidade e no banco onde ele fez tudo. E se eu não morasse mais ali?
Bom, vovô Grant também não teria como imaginar o que
aconteceria na minha vida ou do que seu filho seria capaz por dinheiro e por
uma cadeira no senado, não é? Talvez ele tenha pensado que eu moraria em
Myrtle Beach até me casar e ter uma penca de filhos.
Apertei a mão do gerente depois de assinar os documentos e me
levantei para sair da sala.
Saí dali disposta a respirar ar puro e esperar apenas mais um dia
para me livrar daquele lugar para sempre. Com aquele dinheiro que meu avô
havia deixado, eu poderia começar uma nova vida em qualquer parte do país.
Justin se levantou assim que me viu, largando a revista na mesinha
em frente.
— Tudo resolvido? — questionou com a sobrancelha arqueada.
— Então... uma parte, sim. A outra somente amanhã.
Justin pegou minha mão, fazendo com que um calafrio percorresse
meu corpo imediatamente. Olhei para o local onde nossos dedos se
entrelaçavam e segui o olhar até chegar ao seu rosto, vendo que ele me
encarava, com um desafio explícito nos bonitos olhos azuis. Engoli o nó na
garganta, empurrando o medo e as lembranças para trás. Aquele não era
Kendrick me puxando contra a minha vontade para o meu quarto. Não era um
homem querendo me dominar a todo custo. Era apenas Justin tentando
mostrar que estava sendo sério em suas intenções, quando alegou um
interesse genuíno por mim, mostrando que queria estar ao meu lado.
Provavelmente ele estava tentando me fazer sentir confortável com seu toque
e presença... mesmo sem saber nada do meu passado. Será que ele podia
detectar que eu repudiava certos avanços, mesmo que instintivamente?
Sem falar nada, saímos juntos do banco em direção ao Jeep que ele
havia deixado estacionado próximo ao iHop.
Quando vi que não estávamos voltando para o hotel, me virei de
lado em uma pergunta silenciosa.
— Vamos dar uma volta na orla. A cidade é extremamente bonita
para algo tão pequeno assim no mapa — ele brincou e um sorriso genuíno
surgiu em seus lábios bonitos.
— Ei! Myrtle Beach está na rota de várias pessoas que buscam por
um local turístico acolhedor na Carolina do Sul!
— Então... me mostre do que sua cidade é capaz...
Embora eu não quisesse estar ali, Justin acabou fazendo com que
eu me esquecesse dos meus problemas com alguns cidadãos que ali
habitavam. E por mais que eu tentasse me conter, algumas risadas foram
impossíveis de ser contidas ao longo daquela manhã em que passeamos pelo
calçadão da orla. O vento e a maresia trouxeram lembranças de um tempo
onde achei que poderia ser feliz, mesmo que meus pais quisessem que eu
fosse um protótipo a ser moldado a seu bel-prazer. O dia foi passando sem
que eu me desse conta, fazendo com que me esquecesse das teias que temia
me enredarem ali.
Nasci na família Anderson para ser uma princesinha rica e cheia de
pose, apta a recepcionar, tão bem quanto minha mãe, em ocasiões onde a
sociedade precisasse ver que mesmo pessoas de uma cidade litorânea
poderiam ser abastadas e adornadas com tamanha cultura que chegava a ser
acintoso.
Das amigas que tive na escola, poucas realmente eram
verdadeiramente amigas por gostarem da minha pessoa. A maioria
interessava-se mais pelo status social que uma amizade com os Andersons
poderia trazer. E isso porque fui uma múmia ignorante sem saber da
derrocada do meu pai em suas finanças, até a noite fatídica.
Estávamos sentados em uma sorveteria agradável, tomando um
sorvete, quando mais uma vez tive a sensação do frio na espinha. Olhei ao
redor e não consegui ver nada ou ninguém.
Porra. Eu tinha treinamento militar. Não era de nenhuma força
tática especial, nem nada, mas era de se esperar que meus instintos fossem
aguçados, certo? E os meus estavam me mostrando que eu estava sendo
observada.
— O que foi, Ailleen? — Justin perguntou, olhando ao redor
quando me viu fazer o mesmo.
— Nada. — Tentei disfarçar. Joguei o restante da casquinha do
sorvete fora e me levantei rapidamente. Havíamos almoçado mais cedo e já
estávamos quase no final da tarde. — Eu gostaria de voltar para o hotel, se
possível.
Não sabia dizer, mas achava que ali, dentro daquelas paredes,
estaria muito mais segura do que ao léu.
Justin se ergueu em toda a sua altura, que subjugava imensamente a
minha e abaixou o rosto para que nossos olhares ficassem no mesmo nível.
— Você está assustada com algo.
— Não. Só gostaria de descansar mesmo.
— Okay.
Caminhamos dessa vez um pouco mais afastados, com meus olhos
loucos vasculhando todos os lados, mas pelo canto do olho eu podia ver que
Justin mantinha o foco em mim. E ao redor.
Somente quando me sentei no Jeep do Major foi que me senti
segura novamente.
Chegamos ao hotel e nos despedimos na porta do quarto, dessa vez
eu deixando claro que não o permitiria entrar. Estava cansada. Precisava de
um momento para colocar os pensamentos em ordem. Tranquilizar o coração.
Só não imaginava que aquela seria a pior decisão do dia.
Quando entrei no quarto, antes de sequer acender a luz, senti
apenas a enorme forma cobrindo minha boca e empurrando meu corpo contra
a parede ao lado da porta. A pancada da minha cabeça contra o concreto foi o
suficiente para fazer com que uma onda de tontura sobreviesse
imediatamente.
Puta merda. O bicho-papão havia saído de baixo da cama para me
pegar.
— Achou que poderia chegar à minha cidade, andar por aí, desfilar
como se nada estivesse acontecendo, sem que eu soubesse, noiva querida? —
Kendrick falou no meu ouvido e lambeu a lateral do meu pescoço.
O medo e o vômito que subiu pela minha garganta foram duas
coisas que registrei imediatamente. Logo em seguida veio a ira por estar
novamente à mercê daquele imbecil. Lutei contra seu agarre.
Eu era bem mais forte agora. O palhaço não me manusearia ou
subjugaria facilmente. Todo o treinamento militar que recebi deveria servir
para me defender. Embora ele também estivesse mais forte do que antes.
Sua mão continuava amordaçando minha boca, enquanto eu podia
sentir a ereção pressionando minhas costas.
— Ah, Ailleen... anos... anos de procura. Anos de solidão. Para vê-
la mais bela e exuberante que antes. Mas ainda tenho uma pergunta que
aguardo resposta... Quem era o idiota que a acompanhava hoje? Hein? Você
disse a ele que é minha? Que é propriedade de Kendrick Evans?
Ele continuava louco. Isso era certeza. Nem mesmo os anos
trouxeram algum juízo àquela alma perturbada.
Em meu desespero para me soltar de seu agarre, tive a cabeça
arremessada contra a parede outra vez. Os joelhos fraquejaram um pouco,
fazendo com que eu cedesse e sentisse o corpo flácido por um instante.
Kendrick mantinha a mão firmemente presa à minha boca, me impedindo de
fazer alarde, e enrolou o braço em um mata-leão. Tentei sair usando um golpe
aprendido no treinamento, mas ele apertou mais ainda a pressão.
Senti meu corpo sendo arrastado para a cama e a náusea me tomou.
Uma repetição de anos atrás passou como um filme pela minha cabeça.
Merda. Lá eu era uma adolescente. Aqui eu sou uma mulher. E não qualquer
mulher, porra. Vamos lá, Ailleen. Pense. O pânico não poderia sobrepujar
todo o treinamento militar que eu tinha.
No que pensei, fiz o que deu no momento. Mordi a mão que
obstruía minha respiração.
— Aaah! Sua puta! Você me mordeu!
Kendrick voltou com nossos corpos para a parede e no impacto bati
a testa no quadro pendurado, que teve o vidro estilhaçado, sentindo a tontura
imediatamente. Notei o fio de sangue escorrendo pela sobrancelha. Mesmo
grogue, estendi a mão e alcancei o imenso suporte de iluminação que ficava
no canto. Eu não poderia puxá-lo para acertá-lo na cabeça dele, mas poderia
derrubá-lo no chão. Esperava que aquilo fosse o suficiente para atrair
atenção. E esse é o erro das pessoas que subestimam outras. Ele sequer
cogitou a hipótese de que a arruaça atrairia atenção. Não estávamos no meu
quarto isolado, como há cinco anos. Onde meus pais fizeram-se de surdos
para o que acontecia sob o mesmo teto.
Kendrick me afastou da parede novamente e dessa vez me
arremessou na cama. Quase acertei a cabeça no criado-mudo, o que me fez
esticar a mão para alcançar o telefone, puxando-o novamente.
Pelo amor de Deus, meus vizinhos tinham que ser atentos e não
pensar que o que estava acontecendo ali era um sexo selvagem!
— Você é louco se pensa que vai repetir o mesmo que fez comigo
anos atrás, seu animal! — gritei entre os dentes.
Kendrick tinha sangue nos olhos.
Ele puxou meus pés, mesmo que eu tenha me arrastado para trás,
tentando sair do seu agarre. Chutei e acertei seu ombro, fazendo com que ele
soltasse um grito de dor.
— Puta! Vou acabar com você!
Nossa luta foi muito mais intensa. Eu tinha aprendido técnicas de
jiu-jitsu, então executei o que conhecia, mas ele era realmente muito mais
forte que eu. Fora as pancadas na cabeça, que estavam começando a nublar
minha mente. O sangue chegou a ocluir minha visão.
— Vou te levar pra minha casa e te fazer de escrava! Você seria
minha esposa adorada. Eu só lhe daria lições de surras esporádicas quando
você precisasse, mas agora vejo que o que precisa é de um dono, sua cadela!
Mordi o braço que ele colocou ao meu alcance e levei mais um
tapa.
— Não me morda!
Quando ele estava rasgando minha blusa, a porta do quarto se abriu
com uma pancada tão forte que saiu das dobradiças.
Kendrick só teve tempo de virar a cabeça para trás para ver o
motivo da interrupção antes de ter mais de 1,90 de macho enfurecido em
cima dele o arrancando de cima de mim. Justin o arremessou para o outro
lado do quarto. Registrei rapidamente o momento em que ele voou e
aterrissou contra a parede.
Eu me ergui devagar na cama, tentando ajeitar as partes puídas da
minha regata, e me arrastei para alcançar o telefone. Mas de que adiantaria?
— Chame a polícia, Ailleen! Agora! — Justin gritou, enquanto
distribuía uns bons socos em Kendrick Evans.
Eu queria dizer que não ia adiantar nada. A polícia era comprada
pela família Evans.
— Ailleen!
Peguei o telefone com as mãos trêmulas e liguei para o 911.
Enquanto relatava a chamada, podia sentir o sangue esvaindo do
meu corpo, então recostei-me à parede e fui deslizando devagar, mesmo que a
atendente ainda falasse comigo ao telefone.
Justin não conteve os socos e a surra, e os risos psicóticos de
Kendrick estavam chegando aos meus ouvidos apenas para me deixar mais
tensa do que antes.
— Você nunca vai se livrar de mim, Ailleen! Nem com esse cão de
guarda aqui! — ele gritava de maneira doentia.
Mais um soco e daquela vez parecia que ele tinha finalmente
apagado. Justin estava sem fôlego, mas o deixou no chão, vindo ao meu
socorro imediatamente. Ele se agachou à minha frente, pegando o telefone da
minha mão.
— Olá, sim. Estamos na pousada Holliday Inn Shores. Quarto 377.
O quarto da minha... da minha namorada foi invadido por um cara que a
agrediu. No momento ele está imobilizado.
Bem... se imobilizado ele quisesse dizer nocauteado e espancado...
era verdade.
O registro de ele me chamar de “namorada” só foi feito depois.
Meu cérebro estava com delay.
Com as sirenes da polícia, Justin desligou a chamada e se
concentrou em mim.
— Ailleen, fale comigo.
— Oi — respondi brandamente. Meu lábio estava começando a
inchar e minha cabeça doía. Acho que um galo estava querendo cantar. Passei
a mão trêmula no corte e vi que ainda voltava úmido de sangue.
Justin ergueu a ponta da própria camisa e limpou o sangue que
cobria meu olho direito.
— Me fale exatamente o que aconteceu — pediu e pude perceber,
mesmo em minha agonia, a angústia em sua voz. — Quem é esse cara?
— Eu-eu... entrei e ele já esta-tava aqui — gaguejei e senti o gosto
de sangue na língua. Esperava que ele não percebesse minha tentativa fugaz
de escapar do assunto.
— Quem é ele?
Seria benéfico para todos se eu deixasse Justin apenas pensar que
Kendrick era um meliante qualquer, que invadiu sem querer, talvez, um
quarto por engano e resolveu partir para uma brincadeira sem que a outra
parte colaborasse... mas eu sabia que o Major Justin Bradshaw não poderia
ser facilmente enganado, então, aquela parte feia da minha história teria que
ser revelada. Ou ao menos um pedaço dela.
Antes que eu pudesse falar alguma coisa a mais, um tumulto na
porta do quarto atraiu nossa atenção. Dois policiais uniformizados entraram,
seguidos de dois paramédicos.
Quando eles reconheceram quem estava deitado em uma poça
sangrenta produzida pelos punhos de Justin, olharam de um para o outro e
fizeram uma chamada no rádio que carregavam no ombro.
Um deles se aproximou de onde eu estava, agora sendo atendida
por um dos paramédicos que se agachara ao meu lado.
— A senhorita pode nos dar o relato do que ocorreu aqui?
O paramédico olhou para o policial, e de volta para mim, com um
olhar de comiseração. Eu já sabia o que era aquilo. O código mais do que
sigiloso para que tudo o que fosse falado naquele quarto ficasse retido
naquele aposento.
Kendrick Evans era o filho amado da cidade. Nada poderia atingi-
lo.
— Eu voltei de um passeio durante todo o dia e quanto entrei no
meu quarto, Kendrick estava aqui.
Senti o olhar aguçado de Justin sobre mim. Mantive os olhos
baixos. Provavelmente ele devia estar se perguntando a razão de eu saber a
identidade do meliante e não ter dito nada quando fui questionada.
— A senhora tem certeza disso? — o policial indagou.
Olhei para cima e com uma sobrancelha erguida, falei no tom mais
ríspido que pude:
— O que o senhor está insinuando, oficial? Que eu tive um
momento maravilhoso de ternura com esse filho da puta, é isso?
— A senhorita bem sabe que muitas brigas de namorados podem
sair de mão, às vezes... — argumentou. Nojento.
— Kendrick Evans não é meu namorado! Eu nunca abriria a porta
de bom grado para ele entrar em qualquer lugar que eu estivesse, então pode
cortar o papo de tentar me colocar como a mentirosa da história — falei
entredentes.
Justin apenas acompanhava o embate. Sua mão esteve o tempo
inteiro apoiada no meu joelho. Senti o breve apertão, numa tentativa sutil de
me dar apoio para reconquistar a calma.
— O que sabemos é que vocês dois tiveram, há alguns anos, um
relacionamento, então, acho válido investigarmos se não era uma tentativa da
senhorita de tentar reaver o romance agora que retornou à cidade.
Abri a boca em choque. Eu não podia acreditar naquilo. Eu estava
sendo colocada como a vilã daquela merda. Estava tão estupefata com a
alegação que não consegui responder a tempo.
— Senhor, nós teremos que levá-lo à delegacia — ele disse
olhando para Justin.
— Com que acusação? — ele perguntou.
— O senhor espancou um cidadão honrado da cidade, sem dar-lhe
chance de defesa.
O clima no quarto ficou tenso. O paramédico tinha até mesmo as
mãos trêmulas.
— Senhor... a senhorita apresenta lesões... — tentou interferir.
— Cale-se, Markus — o policial disse.
Justin ergueu-se em toda a sua altura, pegou o telefone e fez uma
chamada. Afastou-se de onde estávamos, logo, não pude ouvir com quem ou
o quê ele falava.
Quando voltou, estendeu a carteira de Major da Marinha
Americana para o policial, que o encarou com assombro total e mudou um
pouco a postura, deixando a arrogância de lado. Até mesmo uma sombra de
medo pôde ser divisada em seu semblante.
— Acho... — Justin inclinou-se para olhar a tarja de bronze com o
nome do policial que ficava fixada ao peito — policial Dalton, que sua
delegacia de merda vai receber a visita da equipe de advogados da Marinha,
com ordens diretas dos meus superiores para varrerem toda a podridão que
estão tentando acobertar em um caso de agressão, não meramente a uma civil,
como vocês estão deduzindo, mas a uma fuzileira naval.
O policial virou o rosto para mim e arregalou a boca, sem conseguir
falar absolutamente nada.
— Ahn... nós vamos levar o Sr. Kendrick ao hospital e colher seu
depoimento ali. — O homem estava mortalmente pálido.
— Faça isso, policial Dalton. E faça rápido, garantindo que
realmente aconteça. Seu superior vai ficar bastante feliz em saber que a
corporação não se agrada nem um pouco quando um dos nossos, recém-
chegados de uma missão, recebe um tratamento desigual nitidamente
caracterizado por política de poder aquisitivo. Não conheço o cidadão ao qual
dei uma lição com meus próprios punhos, mas posso alegar que faria pior, já
que ele estava agredindo a minha mulher. Então... apenas recolha o
depoimento do que ela está te relatando como sendo a verdade dos fatos, ou
arque com as consequências.
Céus. Eu estava me tremendo toda. E não... não era de choque ou
medo. Era de pura excitação. Ver Justin Bradshaw exercendo toda aquela
aura poderosa de Major, com aquele timbre de fuzileiro naval fodão, fez com
que minhas entranhas se agitassem e eu me esquecesse, por alguns segundos,
que tinha sido atacada por aquele que eu mais temia reencontrar ali na cidade.
Seria isso algum distúrbio hormonal?
O paramédico me ajudou a levantar do chão, onde eu ainda recebia
o atendimento, e perguntou se eu queria ir ao hospital, o que neguei
veementemente, e me encaminhou para a cadeira do canto do quarto.
— Mas, senhorita, precisamos averiguar se não há risco de
concussão — ele disse.
— Não há. Sério. Eu tenho formação em cuidados médicos. Se
estivesse vomitando as tripas agora, nesse exato momento, poderia dizer a
você que me preocuparia e correria para o hospital mais próximo, mas estou
bem. Apenas com dor de cabeça. Essa medicação que você aplicou aí deve
servir para alguma coisa — falei e tentei sorrir. Gemi em sequência, já que
meu lábio partido começara a incomodar.
Kendrick estava acordando naquele momento. Saiu amparado pelo
outro paramédico e o outro policial. Sem ser algemado, nada. Como se fosse
a vítima ali.
O policial que o acompanhava olhou para mim de uma forma
estranha, como se quisesse me dizer algo com o olhar, mas fosse impedido
por forças maiores. Bem, devia ser pelo demônio em pessoa que estava ao
lado dele. Por um instante pensei tê-lo reconhecido de algum lugar, mas
minha mente estava meio turva.
Kendrick virou o olhar aterrador para mim e velou uma promessa
com poucas palavras:
— Nós vamos nos encontrar novamente, meu amor. Mais cedo ou
mais tarde.
Depois que Justin acompanhou os policiais até a porta destruída,
voltou e colocou as mãos nos bolsos da calça, não sem antes andar pelo
quarto como um leão enjaulado.
Chutou uma almofada que estava no chão, sem ter feito nada para
ninguém.
Eu podia sentir as vibrações de sua raiva de onde estava sentada.
— Sei que prometi espaço. Eu disse a mim mesmo que não a
forçaria a absolutamente nada, que deixaria que se sentisse completamente à
vontade, até que confiasse plenamente para compartilhar comigo o que a
atormenta — ele disse me olhando atentamente. — Mas não consigo ficar
calado, ou incólume diante do que aconteceu aqui, Ailleen. E quero ajudá-la.
Por favor.
Eu sabia daquilo. Mas era uma parte da minha vida que nunca tinha
aberto para ninguém. Nem mesmo para Anastacia ou Carrie.
Ele ajoelhou-se à minha frente, o olhar implorando por uma
migalha de informação que fosse.
Fechei os olhos e suspirei audivelmente. Podia sentir a dor de
cabeça de leve ainda, mesmo que o paramédico tenha administrado aquele
analgésico na veia.
— Quem era esse homem, Ailleen?
— Não é uma parte bonita da minha história que gosto de dividir
com alguém, Justin. Você percebe que está tentando arrancar isso à força? —
falei ainda de olhos fechados.
Senti seus dedos passarem pelo meu rosto suavemente.
— Eu sei. E não me orgulho disso. Ou melhor, não posso sequer
me desculpar por estar sendo assim tão intrusivo em algo tão pessoal. Mas
você não faz ideia de como quero ajudá-la. De como estou com vontade de
sair daqui agora e ir matar aquele filho da puta por ter simplesmente colocado
a mão em você. — Abri os olhos ante a veemência de suas palavras. — Não
tem a menor noção de como queria tê-la protegido e mais uma vez não fui
capaz.
Agarrei os pulsos dele, sentindo os batimentos erráticos. Suas mãos
estavam frias contra o meu rosto.
— Mas você me protegeu, me salvou. Mais uma vez, Justin. Não
vê isso? Quando você e sua equipe me tiraram daquele inferno na Síria, vocês
me salvaram. Quando você arrebentou essa porta e tirou Kendrick de cima de
mim, também me salvou. Embora eu ache que poderia ter dado uma surra
nele...
Ele deu um sorriso de leve, mas não chegava aos olhos.
— Mas não sem antes você ter sofrido as consequências...
— Justin... você não é Deus. Não tem como impedir que certas
merdas aconteçam.
— Mas tenho meios para tentar minimizá-las — disse com
teimosia. Homens.
Antes que nosso papo se aprofundasse, a dona da pousada bateu no
que restava da porta, chamando nossa atenção.
— Olá... eu fui informada de que houve uma pequena ocorrência
aqui — ela disse com parcimônia. Parecia envergonhada.
Justin se levantou e tratou diretamente com ela.
— Sim, vou arcar com o prejuízo da porta — falou imediatamente.
— Não, tudo bem. Não há problema. — Ela sorriu brandamente,
mas era nítido que estava constrangida. — Sinto muito, moça. Acredito que
um dos meus recepcionistas forneceu a chave do seu quarto para o Sr. Evans,
achando que ele estava hospedado aqui, de acordo com as palavras dele —
ela informou. Oh, então fora assim que ele conseguiu entrar no quarto.
Esperto. E burrice da parte do hotel.
— Tudo bem — retruquei, mesmo que por dentro estivesse com
vontade de descer até a recepção e dar uma surra no rapaz que não fizera o
serviço direito.
— Infelizmente não temos ninguém para fazer a manutenção agora,
mas posso arranjar outro quarto e disponibilizar para a senhorita, por conta da
casa...
Antes que eu aceitasse, Justin disse:
— Ela vai ficar comigo, então não há necessidade, mas obrigado de
toda forma.
— Okay, então — a mulher respondeu e pareceu aliviada. Saiu dali
depois de pedir desculpas novamente, como se estivesse com o corpo em
chamas.
Minha boca ficou aberta como a de um peixe. Como assim? Eu
ficaria com ele?
Justin voltou para onde eu estava e me ajudou a levantar.
— Reúna seus pertences, Ailleen. Essa noite você fica comigo, e
não há argumentos, okay?
Uau. Bem... eu ainda estava com efeitos das pancadas na cabeça.
Minha mente estava um pouco nebulosa por conta do medicamento que
recebi na veia. Fora o fato da tensão de ter ficado abaixo do corpo de
Kendrick Evans, mais uma vez, sentindo-me indefesa, por um momento que
fosse.
Então... vou justificar minha passividade a todos aqueles fatores.
— Isso é uma ordem ou pedido, Major? — perguntei com
sarcasmo, mas deixei que um sorriso deslizasse pelos meus lábios.
Justin apenas cruzou os braços e arqueou a sobrancelha, me
desafiando a argumentar mais alguma coisa.
Apenas apontei a mochila que já estava pronta no canto e deixei
que Justin me ajudasse a me levantar da cadeira. Eu não estava necessitada de
ajuda, mas ele parecia pensar que sim.
Caminhamos pelo corredor, depois de passar pelos escombros da
porta destruída, e percebi que realmente, dois quartos adiante do meu, era
onde se situava o de Justin.
Ele abriu a porta e percebi que as luzes estavam acesas. Como se
tivesse deixado tudo o que estava fazendo para trás para correr em meu
socorro. O que foi realmente o que aconteceu.
Justin colocou minha mochila no sofá do canto, e virou-se para
mim.
— Você pode ir tomar um banho, se quiser relaxar. Enquanto isso,
vou providenciar alguma coisa para comermos, o que acha?
Apenas assenti. Estava tão cansada. O peso de todo o acontecido
parecia que estava começando a acometer meu corpo naquele momento. A
adrenalina começara a cair e estava cobrando seu preço.
— Tudo bem, obrigada.
— Fique à vontade. Eu vou apenas aqui ao lado e trancarei a porta
pelo lado de fora, tudo bem?
— Tudo bem.
Esperei que Justin saísse para simplesmente pegar a muda de roupa
que levaria para o banheiro. Não queria correr o risco de resolver colocar a
roupa no quarto e ele estar de volta bem na hora. Evitei totalmente o espelho
que mostraria meu real estado.
Quando liguei a água quente, deixei que meu corpo recebesse a
dose que somente o calor do vapor e das gotas milagrosas poderiam fazer por
mim naquele instante. E foi automático que em algum momento as gotas do
chuveiro acabassem se misturando às que desciam pelo meu rosto.
Foi mais automático ainda que meu corpo acabasse escorregando
pelo peso de tudo o que tinha acontecido comigo nos últimos dias, e
somatizasse àquele momento. Onde eu esperava que a água lavasse a sujeira
do ódio humano, da podridão e da maldade alheia.
Agachei na banheira encardida do hotel e abracei minhas pernas,
deixando que o pranto sentido assumisse o papel que os braços de uma mãe
poderiam fazer, estendendo o conforto que eu tanto ansiava. Não tinha mais a
única pessoa no mundo que havia me abraçado quando eu me machucava.
Vovô Grant fora aquele que, mesmo em sua sisudez, me pegara no colo
quando criança e me dera alento.
Agora, tudo o que eu mais queria era o consolo e o amparo para
que minhas lágrimas pudessem secar por si só.
Estava tão absorta em minha dor que nem reparei que os braços
confortadores que tanto ansiei acabaram me retirando do chuveiro, me
envolveram em uma toalha felpuda e me carregaram para a cama, sendo que
o tempo todo fui mantida em um colo perturbadoramente quente e com
cheiro de mar.
Ninguém prepara você para um momento de pânico súbito. Aquele
momento onde você para por um instante e duvida de suas próprias
habilidades por não fazer ideia do que fazer a seguir.
Quando soube da captura de Ailleen na missão, assumi o conjunto
de habilidades pelas quais fui tão condecorado e reconhecido na Marinha,
como fuzileiro. Era fácil dominar o pavor, sabendo que estaria com meus
homens sob meu comando, fazendo uma coisa que já havíamos feito antes,
então bastava apenas que eu torcesse para que ela aguentasse firme e que
nada de ruim tivesse acontecido no tempo em que levamos para desenrolar os
procedimentos para chegar ao seu cativeiro.
Quando voltamos do passeio durante todo aquele dia, onde pude ter
o vislumbre de um lado de sua personalidade, segui rumo ao meu quarto, mas
confesso que antes mesmo de me enfiar no chuveiro, senti a necessidade de
compartilhar algo pessoal da minha vida para que ela entendesse que aquele
dia havia sido de trocas entre nós dois. Eu havia recebido um presente por tê-
la tido tão solta e falante, então queria que ela soubesse algo meu que nunca
havia compartilhado com mais ninguém.
Algo em meu íntimo indicava que não poderia esperar para falar
depois e simplesmente saí do jeito em que estava e fui em direção ao seu
quarto. E no momento em que ouvi o som de coisas se quebrando, não tive
dúvidas de assumir, mais uma vez, o aspecto mais profissional que marcava
minha carreira e arrebentei a porta. Sem pensar duas vezes.
Confesso que a vontade de matar o infeliz que estava em cima de
Ailleen foi muito maior do que o meu bom-senso na hora, mas ao vê-la
gemendo de dor, acabei saindo do torpor induzido pelo ódio e,
repentinamente, já não me vi mais em um campo no meio do Afeganistão ou
na Síria, onde a resgatamos. Acabei apenas soltando os punhos até que meus
nódulos sangrassem.
Havia ali naquela cidade, em todo o silêncio de Ailleen, algo muito
mais profundo e arraigado do que apenas um segredo de um passado
qualquer.
Porém, nenhuma dessas situações foi capaz de me deixar com as
pernas bambas e momentaneamente sem saber o que fazer. Apenas uma
gerou o medo aterrador de não ser o suficiente, de não conseguir conduzir a
situação da maneira correta. Apenas uma me teve congelado por alguns
instantes.
E foi o momento exato em que detectei o choro sentido de Ailleen
por trás da porta do banheiro. Lá no fundo eu sabia que devia dar-lhe a
privacidade que havia lhe prometido. Sabia que se adentrasse naquele
banheiro, munido de todo o meu lado macho alfa e a pegasse no colo,
estendendo o meu consolo, poderia quebrar a confiança que estava
conquistando.
Mas foda-se. O choro de uma mulher era capaz de me deixar
petrificado. Em alguns episódios da minha vida, posso até mesmo dizer que
já cheguei a correr léguas de distância para longe de onde havia uma mulher
chorosa derramando as entranhas emocionais pelos ductos lacrimais. Mas,
porra... com Ailleen? Eu apenas queria colocá-la no colo e garantir que
nenhuma daquelas lágrimas seria mais necessária. Atestar que meus braços
estavam ali para dar-lhe o conforto que ela precisasse. Eu queria ser o maldito
lenço que ela necessitasse para secar as lágrimas.
Então, depois de sair do estado pétreo em que me encontrei à porta
do banheiro, entrei e simplesmente a peguei no colo, pouco me importando
com as roupas que ficariam molhadas dos respingos do chuveiro, agora
gelado. Enrolei o corpo que se sacudia convulsivamente em uma toalha
qualquer e a carreguei como uma carga preciosa para a cama, onde me sentei
com ela, aninhada contra mim, como se fosse uma criança precisando de
consolo.
Eu queria estar ali para ela.
Nunca poderia dizer a ninguém de onde surgiu essa necessidade
primal, porque nem eu mesmo sabia. Ela apenas estava lá. E era confusa.
Existia aquela espécie de sentimento singular espontâneo? Eu sabia das
formas de amor à primeira vista. Mas não era algo como aquilo. Era mais
como... um encontro de almas. Algo tão empático que sublimava toda e
qualquer classificação e categoria já antes especificada na história dos
romances.
Cheguei a cogitar a hipótese de estar ruminando em culpa por ter
sido o responsável em tê-la colocado na missão, como ela mesma havia
apontado, mas não era aquilo. Ailleen Anderson me atraíra em sua direção
desde o primeiro momento em que coloquei meus olhos nela. O que nem eu
mesmo podia ter certeza era da potência dos sentimentos que ela geraria em
mim. Eu me estranhava, porra. Havia momentos em que pensava que tinha
sido abduzido por alguma forma alienígena que tirara minha habilidade de
pensar racionalmente.
Porque tudo o que eu pensava era em estar com aquela mulher nos
braços. Da forma como ela estava naquele momento.
Quão louco era aquilo?
— Sssshhhh... — tentei acalmá-la.
Nem sei por quanto tempo o choro prosseguiu. Também parei de
contar os minutos no rádio-relógio que ficava acima da TV. Percebi que ela
estava mais calma quando sua mão delicada percorreu meu peito, deslizando
um dedo pelo tecido agora úmido. Não sabia se de suas lágrimas ou do corpo
molhado de antes.
— Acho que molhei suas roupas — ela disse com a voz rouca.
— Não tem problema — respondi depois de um pigarro para
resgatar minha habilidade de falar.
— Não sei se me sinto agradecida pelo consolo ou envergonhada
pela situação.
— Por quê? — perguntei e apoiei o queixo sobre sua cabeça.
— Ahn... porque eu meio que estava pelada no chuveiro? — falou
rindo e pude sentir, mesmo sem ver seu rosto, que ela devia estar corada de
embaraço.
— Juro que não olhei. — E o pior é que era verdade. Meus olhos
sequer se concentraram na quantidade de pele nua que estava à vista. Tudo o
que eu queria era tirá-la de sua miséria.
— Sério?
— Sério.
Bom, agora que ela havia me relembrado o fato, pode ser que
acabasse percebendo que meu corpo estava reagindo à proximidade muito
úmida de seu corpo lânguido contra o meu.
Alguns segundos de silêncio se passaram e um suspiro resignado
partiu de Ailleen, antes que ela falasse:
— Kendrick Evans me estuprou quando eu tinha dezoito anos, logo
depois de me levar de volta do baile de formatura do ensino médio.
Senti meu corpo enrijecer de forma brutal. Foi involuntário. Aquela
não era a informação que eu estava esperando. Um namorado do passado?
Tudo bem. Mas um estuprador?
Tentei afastá-la para olhar em seu rosto, mas ela agarrou minha
blusa com força.
— Não... sem olhar no seu rosto é melhor... assim consigo dizer o
que preciso.
Concordei depois de depositar um beijo suave no topo de sua
cabeça.
— Mas o que mais marcou o acontecimento todo, naquela noite,
não foi apenas o abuso do meu corpo, sabe? Não foi a violência brutal que
sofri... — Senti os dedos delicados agarrarem com mais veemência a gola da
minha camiseta. — Meus pais me venderam pra ele. Eu fui negociada como
um objeto, trocada como uma espécie de escrava. Não por traficantes de
escravos, que vemos tanto na TV, mas pelos meus próprios pais.
Puta que pariu! Agora podia sentir que meu corpo tremia de ódio.
— Fui vendida como gado, para quitar dívidas do meu pai e para
que ele pudesse galgar o sonho de uma cadeira no Senado.
Porra... o pai dela... o pai dela seria Jacob Anderson? Representante
da Carolina do Sul?
— Um milhão de dólares. Foi o preço que ele pagou por mim. Não
só pela minha virgindade. Kendrick estava me comprando para ser uma boa
esposa. Um troféu que ele pudesse exibir sempre que quisesse, e uma das
coisas que mais o instigou foi o fato de eu nunca ter lhe dado um minuto do
meu tempo.
Homens como aquele pulha do caralho mereciam morrer. Isso era
um fato. Eu estava arrependido por não ter cedido aos meus apelos e não ter
matado o merda. Talvez enfrentasse uma Corte Marcial? Não sei. Poderia
alegar legítima defesa, no caso.
— Hoje, quando ele esteve no meu quarto... ele veio cobrar seu
prêmio.
Afastei Ailleen do meu peito para olhar bem nos olhos dela.
— O quê?
— Ele veio dizer que pagou por mim, então nada mais justo que
cobrar o que lhe era de direito — falou com o rosto baixo. Ela estava
envergonhada.
— Ailleen...
— Tenho tanta vergonha disso, Justin. De ter sido uma moeda de
troca para os meus pais. De não ter tido valor algum, salvo para que quando
estivesse no período da “colheita” — enfatizou as aspas com um sorriso
irônico — eu lhes valesse um bom dinheiro. Um retorno por tudo o que
investiram em mim desde a infância.
O choro voltou com um sentimento muito mais profundo. Apenas
apertei meus braços ao redor de seu corpo delgado e deixei que ela
derramasse as palavras que a atormentavam.
— Tenho tanta vergonha de ter sido usada... de... de ter tido
Kendrick como o meu primeiro... pra poluir tudo aquilo que sempre sonhei
quando menina... com um príncipe encantado. E ele era lindo... o filho amado
da cidade. Desejado por todas as meninas de Myrtle Beach, adorado por onde
passasse. Quando me chamou para o baile de formatura, nem acreditei que eu
estivesse sequer em seu radar, pelo mesmo fato de nunca tê-lo tido sob o
meu.
Ailleen pegou a ponta da toalha e secou os olhos inchados, fazendo
com que um pedaço de seus seios ficasse à mostra. Ela sequer percebeu, mas
meu cérebro filho da puta registrou.
— Kendrick toma tudo o que quer. Como um menino mimado, e
como nunca tinha dedicado a atenção que ele queria, achou que, por birra, eu
devia aprender uma lição. Pediu para seu pai intervir junto ao meu. E virei
uma mercadoria. Carne de um açougue. Uma pessoa sem valia alguma. E
tenho nojo de mim...
— Ei! Ei... espera... por que você tem nojo de você? Como assim?
— perguntei exaltado.
— Porque não fui capaz de lutar com unhas e dentes naquela noite.
Fiquei tão chocada com a traição dos meus pais que simplesmente virei uma
boneca sem vida enquanto Kendrick arrancava de mim a minha inocência.
Segurei seu rosto entre as mãos, quase virando-a de frente a mim.
— Ailleen... não. Pelo amor de Deus! Ele é o animal, meu bem.
Não você. A única pessoa aqui que nunca poderá levar o peso de culpa
alguma é você... — Beijei os olhos úmidos de suas lágrimas salgadas. —
Seus pais? Culpados. Merecem a cadeia pelo que fizeram. Porra... por mim,
mereciam morrer. Mas nada melhor do que a justiça para conquistar um
pouco de moralidade em nossas consciências. Kendrick e o pai dele? Filhos
da puta... esses merecem morrer. O filho, especialmente. Estou arrependido
de não ter quebrado o pescoço do merda enquanto ele esteve em minhas mãos
hoje. — Beijei sua bochecha. — Você? Foi apenas vítima de uma sociedade
corrompida, sem regras ou moral alguma. Nenhuma mulher é responsável,
em qualquer situação, por ser estuprada por um homem. Eles não têm o
direito de tomar algo que não lhes pertence. Que não lhes foi entregue.
Beijei o queixo. Eu não entendia a razão da necessidade de
reafirmar daquela maneira, mas precisava que Ailleen sentisse que ela era
valiosa, sim. Que era amada e adorada por ser quem era. Independente das
merdas do seu passado.
— Eu me sinto suja...
— Você nunca poderia estar suja, Ailleen...
Com aquilo, simplesmente assaltei sua boca, com fome. Como se
minha sobrevivência dependesse daquilo. Como se seus lábios fossem a
última refeição de um homem. E o mais espantoso de tudo? Ela correspondeu
com a mesma voracidade.
— Então me prove que ainda sou capaz de me sentir uma mulher
inteira... — pediu.
Oh, porra. Ela não devia ter pedido aquilo.
Ou melhor, eu não devia dar ouvidos àquele pedido, supondo que
fosse em um momento de fragilidade emocional, certo?
Mas o que fiz? Simplesmente devastei sua boca. Cego totalmente
ao fato de que ela ainda levava um corte do golpe que recebera do imbecil.
Eu a deitei na cama, com meu corpo recobrindo o seu. A toalha já havia se
tornado apenas um emaranhado de tecido úmido entre nossos corpos.
Por um instante fugaz, recobrei a lucidez e falei, com a voz
enrouquecida de um desejo ardente:
— Não acho que seja o momento, Aileen. Você acabou de sofrer
um ataque bru... — Ela não deixou que eu completasse a frase, cobrindo
minha boca com sua mão delicada.
— Apague as memórias ruins com lembranças boas, Justin.
Substitua o toque dele pelo seu.
Minhas mãos percorreram seu corpo, deslizaram pela pele que
ainda guardava algumas marcas da tortura que sofrera no cativeiro e aquilo
fez com que eu refreasse meus ânimos um pouco. Não a paixão.
Beijei cada pedaço de pele que saltava à minha vista, estendendo a
cortesia à minha língua, que degustava do sabor único que Ailleen Anderson
tinha.
Meus dedos perambulavam por suas curvas, traçando suas
reentrâncias, apertando, acariciando, deslizando pela maciez e testando a
candura que somente uma mulher poderia fornecer.
Quando o gemido atormentado de Ailleen chegou aos meus
ouvidos, aquilo ecoou como música. Deliciei-me com seus lábios ansiosos,
sedentos em agradar. Admirei seus olhos turvos, admirados por estar sentindo
um prazer que não imaginava ser possível.
— Nunca esteve com outro homem depois do que aconteceu,
Ailleen? — perguntei, enquanto tentava conter meus impulsos primitivos de
simplesmente deslizar em seu canal aveludado e me regozijar ali.
Ela acenou negativamente com a cabeça.
— Eu tentei, saí com alguns caras, mas nunca senti a vontade de
seguir adiante — ela disse, mas a menção de outros homens não me agradou
no momento. Provavelmente não me agradaria em nenhum outro,
obviamente.
— E você tem certeza de que quer seguir em frente?
— Sim...
— Sabe que se seguirmos daqui, não haverá volta, não é?
Ela arqueou a sobrancelha, sem entender.
— Como assim?
Passei as mãos pelo seu corpo, espalmei seu traseiro e me encaixei
exatamente no meio de suas pernas.
— Estarei reivindicando você, Ailleen — informei simplesmente.
— E o que aconteceu com “irmos devagar”? — ela brincou.
— Isso voou pela janela no momento em que você soltou a toalha e
me pediu, em um voto de confiança, depois de derramar seus segredos, que
lhe devolva a habilidade de sentir-se mulher novamente...
Ailleen deu um sorriso tímido que trouxe um brilho único aos
olhos.
— E o que acontece depois “daqui”? — ela perguntou.
— Nós vamos construir algo sólido, vou acompanhar você em sua
licença, e se quiser voltar comigo ao porta-aviões, estaremos os dois, juntos.
— Senti quando ela se retraiu. — Se você não quiser, então vou seguir junto
contigo, me retirando da força.
Ela arregalou os olhos.
— Você não pode estar falando sério, Justin!
— Mais sério do que o orgasmo que vou te dar daqui a pouco.
Ailleen começou a rir, mas parou imediatamente, quando viu que
eu estava sendo muito enfático no meu propósito.
Continuei a atormentar seu corpo delgado e responsivo por mais
alguns minutos, até que nenhum dos dois aguentava mais. Eu precisava me
afundar no calor aconchegante dela. Senti-la por inteiro, vê-la derreter entre
meus braços, gritando meu nome apenas. Eu queria ser o último que seus
olhos contemplassem, antes que o êxtase a tomasse por completo.
Depois de colocar o preservativo, esperei pelo indício de que
poderia avançar. Ailleen enlaçou meu pescoço e estendeu os lábios para que
eu a beijasse.
Aquele foi o sinal para que eu simplesmente deslizasse em seu
interior e sentisse o Nirvana próximo à base da minha espinha dorsal. Fechei
os olhos por um momento e esperei que conseguisse resgatar o equilíbrio,
antes de passar vergonha e gozar, fazendo-a alcançar o orgasmo mais uma
vez, pelo menos.
Bastou que ela beijasse meu queixo para que atraísse minha
atenção. Abri os olhos e deparei com os dela, concentrados nos meus.
— Nunca imaginei que pudesse ser assim... a não ser nos livros de
romances — admitiu.
Dei um sorriso. Minha garota havia sido marcada por um trauma e
imaginava que o ato estivesse associado à dor. Eu mostraria que tínhamos a
porra de um caminho longo de prazer a percorrer juntos, dali em diante.
— Vou levá-la ao paraíso e trazê-la de volta, meu bem. Basta se
segurar em mim e se deixar soltar — falei e arremeti meu corpo contra o dela.
O ritmo que marquei foi o mesmo que impus com minha língua entre seus
lábios macios.
Nossos corpos suados exalavam o cheiro do sabonete que Ailleen
usara no banho, bem como o odor característico de sexo selvagem entre dois
amantes que haviam acabado de descobrir o prazer.
— Ooh... Justin...
— Isso, Ailleen... esse é o nome que vai dizer daqui por diante... é
o nome que vai sair da sua boca sempre que me sentir dentro de você — falei,
ofegando entre uma estocada e outra.
Alternei o estilo. Ela não precisava de uma transa animal e
desenfreada, embora fosse aquilo que nossos corpos necessitassem no
momento.
O que Ailleen Anderson precisava naquele momento era de um
homem que a marcasse como um bem precioso, como um ser adorado e
único. Exclusivo de afeto e que, principalmente, pudesse se sentir vital para
suprir os anseios desse homem. E esse homem... era eu.
Acordei no dia seguinte nos braços de Justin Bradshaw. O Major
Justin Bradshaw. E para mim, aquele feito era algo tão surreal quando escalar
a Muralha da China, então só daí você já pode colocar o nível de
acontecimento além da minha imaginação.
Depois do estupro que sofri nas mãos de Kendrick, posso dizer que
tinha tudo para ficar traumatizada para o resto da vida e nunca mais querer
saber das mãos de um homem tocando meu corpo novamente. Levei cerca de
um ano para internalizar que meus desejos sexuais continuavam vivos,
quando percebi que admirava os soldados fazendo treinamentos no campo,
com os corpos suados e másculos. No momento em que aceitei sair, pela
primeira vez, com um dos recrutas, e senti prazer com os beijos trocados,
percebi que não estava tão quebrada quanto imaginava. Só não tive ânimo
para seguir a etapa seguinte. Nem com ele e nem com o próximo que se
seguiu.
Mas vou justificar isso alegando que os meses e etapas dos meus
treinamentos foram intensos, depois vieram os momentos da implantação no
porta-aviões, então, as oportunidades passaram. Quando estive na base
náutica, alguns fuzileiros me paqueravam descaradamente, mas vou dizer que
homens quando estão muito tempo longe de mulher, acabam estendendo as
cortesias de suas doces palavras a qualquer coisa que circule ao redor. Logo,
eu podia ver que alguns trocavam de parceiras militares como trocavam de
meias. Então... não. Preferi me abster.
Espreguicei o corpo, sentindo as dores prazerosas nos lugares mais
impróprios e sorri, percebendo naquele instante que a rachadura no meu lábio
não estava tão desagradável e nem tão dolorida. Bem, eu também tinha
beijado pra caramba, logo, se tivesse que reclamar de alguma atividade que
fosse ocasionar dor, teria que ser no momento em que Justin mordiscava e se
empolgava com seu frenesi. Eu não era assim tão louca.
Senti a mão de Justin percorrer a lateral do meu corpo, bem como a
protuberância desperta logo atrás, cutucando minhas costas, então não tive
alternativa a não ser rir suavemente, já que estava sentindo o embaraço tomar
conta do meu rosto.
— Onde você acha que vai? — perguntou com a voz enrouquecida.
— Atender aos apelos do corpo.
— O meu corpo também tem um apelo bem evidente para ser
atendido — disse e se mexeu entre minhas coxas, me arrancando um gemido
que trouxe espanto até mesmo a mim. Quem era aquela mulher fogosa que
estava ali?
— Ahn... eu percebi, Major. Será que devo bater continência? —
brinquei.
O som de sua risada atrás do meu pescoço trouxe calafrios de
prazer à minha pele.
— Nããoo... mas seria até interessante ver você prestar esse tipo de
tratamento cortês a ele.
Revirei os olhos. Homens eram todos iguais.
— Sério que você está se referindo ao seu... ao seu... — porra... eu
não conseguia falar a palavra —... membro... como uma terceira pessoa?
— Meu pau? Ele é uma peça importante nessa equação, meu bem.
E está sedento por atenção, não percebe? Mas da mesma forma que qualquer
homem que se preze, não permito que esse grande filho da puta me comande,
então, vá... eu te liberto nesse instante enquanto consigo conter o monstro.
Mas volte. Não sei por quanto tempo serei capaz de aguentar as agruras que
ele vai infringir ao meu corpo — disse com uma voz dramática.
Saí da cama rindo, arrastando o lençol, lutando para me cobrir de
alguma forma. Justin riu, cedendo a muito custo, mas consegui seguir rumo
ao pequeno banheiro conjugado.
Quem diria que o Major tão sisudo fosse um homem cheio de
surpresas e tivesse uma faceta hilária guardada dentro dele? Eu nunca diria.
Depois de esvaziar a bexiga que ameaçava explodir, escovei os
dentes e me olhei no espelho, constatando que o episódio do dia anterior com
Kendrick só viera para somar mais alguns hematomas às equimoses que já
estavam se esvaindo do meu período naquele SPA nada de luxo com os
rebeldes sunitas. Um sorriso singelo assomou meus lábios, já que o
pensamento tosco ao olhar meu reflexo não pôde ser contido: era como se eu
tivesse passado uma maquiagem macabra, com uma aplicação brutal de
blush. Pena que apenas um lado ficava mais evidente. Cor? Roxo intenso.
Marca? Punhos de aço. Somente quando criei coragem saí do banheiro.
Justin estava recostado na cabeceira da cama, olhando para mim
como um predador olha para sua presa. Não havia outra palavra para
descrevê-lo naquele momento. Os olhos azuis estavam entrecerrados, o lábio
estava retorcido em um sorriso de lado, conhecedor, como quem diz: “sei do
que você precisa, então venha aqui...”. Suas mãos fortes, as mesmas que
fizeram
maravilhas ao meu corpo ontem, estavam cruzadas sobre o abdome bem
definido, enquanto o cobertor mostrava uma elevação nada singela, que
marcava o exato local onde o “monstro” estava.
Senti o rosto esquentar.
— Venha aqui, Ailleen — ele disse e estendeu a mão.
Okay. Eu estava me sentindo um pouco despachada depois de
provar a mim mesma que era uma mulher normal e sentia prazer como todas
as outras. Mais ainda... estava me sentindo uma mulher superpoderosa por ter
entrado no rol das que conseguem orgasmos múltiplos. Mas agora estava
começando a pensar que minha inexperiência poderia atrapalhar em alguma
coisa.
O que seria esperado naquele instante? Eu ir de maneira sedutora e
largar o lençol despretensiosamente? Eu deveria subir em cima dele, fazer
algum número ou malabarismo sexual que evidenciasse meu desejo?
Antes que pudesse decidir, Justin tomou a frente e puxou a ponta
do lençol que ainda me envolvia, fazendo com que eu caísse diretamente
sobre seu corpo rígido e duro como aço.
— Como você está se sentindo hoje?
— Em que sentido?
— Não está dolorida? — perguntou e distribuiu beijos na curva do
meu pescoço.
— Na-não...
— Ótimo.
Ao dizer aquilo, Justin me virou de uma vez, me posicionando
abaixo de si, o lençol sendo descartado como mágica, não sei como.
— Você tem noção do que faz comigo? — perguntou, me
encarando com aqueles olhos magnéticos.
— Humm... estou tendo uma ideia nesse instante.
Justin riu e me beijou em seguida. As mãos percorrendo minha
pele, trazendo arrepios de prazer.
— Acho que nunca vou me cansar de você, sabia? — disse
enquanto investia de maneira mais firme, fazendo com que meus olhos
revirassem, tamanha a sensação prazerosa.
Não tinha como responder. Só sabia sentir. Justin conseguiu, em
pouco tempo, fazer com que cada partícula do meu corpo ansiasse por algo
que nunca supus ser capaz de desejar: satisfação sexual.
Eu precisava de um orgasmo como quem precisava de água para
beber. Como quem precisava de ar para respirar. E embora estivesse
oscilando entre meu antigo eu, aquele ser pudico que passou anos
atormentado por um evento devastador, e o ser mais ousado, que perseguia
implacavelmente o êxtase nos braços daquele homem, um lado meu ainda
temia que, naquela equação toda, algo pudesse dar errado.
Meu corpo havia sido usado e abusado. Ferido e marcado. Mas meu
coração ficara inteiro, porque não existiram sentimentos envolvidos em
nenhum momento, vinculados ao homem que o possuiu. Agora, meu medo
era que meu coração ficasse destroçado, marcado e ferido... pelo homem que
me mostrara que havia, sim, uma forma de explorar meu corpo e extrair tanto
prazer que cheguei a pensar por um momento, um instante apenas, que estava
vendo a morte diante dos meus olhos.
Era cedo para dizer que poderia me apaixonar por Justin
Bradshaw? Provavelmente. Mas era algo que poderia acontecer com muita
facilidade.
Meus pensamentos foram interrompidos quando os quadris de
Justin moeram contra os meus. Quando me penetrou sem dar chance a
dúvidas. De maneira mais dura, selvagem.
— Ah, porra... — ele gemeu em meu ouvido.
O ritmo tão conhecido dos amantes, tão antigo quanto o tempo,
marcou o silêncio do quarto. Inclinei a cabeça para trás, dando total acesso à
boca voraz de Justin.
Acho que falei, gemi e rosnei palavras incoerentes. Nem eu mesma
conseguia me entender. Parecia ininteligível, fora de órbita.
— Goze comigo, Ailleen, agora — comandou em uma voz forte e
que não admitia contestação.
E a quem eu queria enganar? Eu queria voltar a voar nos braços de
Justin Bradshaw e esquecer por alguns instantes que ainda estava na cidade
do meu algoz.
Só algum tempo depois, quando voltamos a respirar normalmente,
com o rosto de Justin enfiado no vão do meu pescoço, ele disse:
— O que faremos hoje, coração?
Aquele pequeno lembrete de que a vida seguia lá fora, por trás
daquelas portas fez com meus batimentos se acelerassem, o que levou Justin
a erguer a cabeça de onde estava tão aninhado.
— Ei, calma... estou sentindo sua agitação daqui.
— Claro que você está sentindo, você está em cima de mim, né? —
Tentei brincar, mas estava nervosa, realmente.
— O que ficou combinado ontem era que você voltasse ao banco,
não é mesmo?
— Sim. E agora, mais do que nunca, quero dar o fora daqui. Justin
— segurei o rosto dele entre as mãos frias —, nada de bom pode sair dessa
cidade. Ainda mais se estiver relacionada à família Evans. Eu quero e preciso
desaparecer, entende?
— Perfeitamente, meu bem. Então levante essa bunda daí e vamos
resolver o que for preciso. Em seguida pegaremos a estrada.
Franzi as sobrancelhas e antes que pudesse falar algo, ele
interpelou:
— Você me deu um tempo juntos, lembra? E depois de ontem, não
há volta.
Justin deu um beijo áspero na minha boca e saiu de cima de mim,
deixando-me com a sensação do vento frio que bateu imediatamente. Seu
corpo quente era o que me mantinha aquecida.
Estendeu a mão e me ajudou a levantar da cama.
— Vá, tome uma ducha e depois eu vou. Se entrarmos os dois no
boxe, não vamos sair tão cedo. Uma coisa vai levar à outra... quando eu der
por mim, já vai ter passado a hora e o banco vai estar fechado — disse e riu.
Ainda completou a sentença com um tapa na minha bunda.
Okay. Mais uma vez. Onde estava o Major mandão e mal-
humorado de sempre? Será que apenas a farda fazia aquilo com ele?
Tomei banho mais rápido do que o The Flash e coloquei a roupa
que surgiu à frente. Uma calça jeans e uma camiseta regata verde musgo.
Calcei minhas Doctor Martens, guardei os tênis do dia anterior no
compartimento da mochila, bem como as roupas usadas. Eu precisaria
comprar mais algumas peças de vestuário em breve.
A vida militar me ensinou a ser extremamente seletiva e
minimalista com o que levar de importante em uma viagem. Depois que saí
da base náutica, vi que tinha poucos bens e teria que refazer todo o meu
guarda-roupa, assim que arranjasse um lugar para morar. Teria que
reconstruir minha vida fora dali. Aquilo era aterrador, mas de alguma forma,
era um passo que em algum momento eu precisaria dar quando saísse do
serviço militar.
Justin passou para o banheiro, não sem antes me dar um beijo na
cabeça.
Depois de quinze minutos estávamos prontos para deixar o quarto
de hotel, levando todos os nossos pertences.
Chegamos ao estacionamento, depois que Justin fez o check-out, e
ficamos em um impasse.
— O que vou fazer com o carro que aluguei?
— Vamos entregá-lo na locadora da cidade. Eles despacharão para
o lugar certo. Você segue viagem comigo — falou e jogou a mochila no
porta-malas. Pegou a minha também e sem cerimônia arremessou atrás. —
Vamos, Ailleen. Vamos dar o fora daqui antes que eu faça o que estou com
vontade de fazer.
O tom sombrio com que ele disse aquilo me mostrou que se referia
exatamente à vontade de perseguir Kendrick Evans e fazê-lo pagar pelo que
me fizera. Ou assim eu imaginava que era o que seus olhos diziam.
— O primeiro lugar que você precisa ir é ao banco, certo? —
confirmou.
Apenas assenti.
— Então vamos lá, depois voltamos aqui, pegamos o seu carro e
deixamos na locadora de veículos na saída da cidade. Há algo mais que a
prende nesta cidade?
Afivelei o cinto antes de responder:
— Não, Justin, absolutamente nada.
E era verdade. Meus pais não faziam parte da minha história agora.
O breve encontro com a minha mãe, no dia em que cheguei, foi mais do que
suficiente para provar que não restara vínculo afetivo algum. Também não
precisava dar de cara com meu pai para ter essa mesma certeza.
Quando estacionamos no mesmo local do dia anterior, ao lado do
iHop, decidimos seguir diretamente para o banco, antes mesmo de tomar o
café da manhã.
Minha vontade também era de sair da cidade o mais rápido
possível. Não sabia explicar, mas tinha a sensação de que Kendrick não
deixaria barato a surra que levara na noite passada. E a cidade era regida
pelas suas vontades. Também tinha certeza absoluta de que ele sequer fora
detido por invasão ao meu quarto e pelo meu ataque e agressão.
Entrei no banco com Justin sempre às minhas costas. Ele achava
que eu não tinha reparado, mas sabia que a arma que sempre levava consigo
estava posicionada no cós da calça, escondida pela blusa.
A recepcionista do dia anterior ergueu os olhos para mim e indicou
com o queixo que eu deveria me sentar.
Passados cinco minutos, o próprio senhor Lander veio ao nosso
encontro.
— Srta. Anderson... acredito que possivelmente tenhamos um
pequeno problema — ele disse e pude ver que estava suando frio.
Levantei de um pulo e o encarei de frente. Justin estava ao meu
lado.
— Um problema? Que tipo de problema, Sr. Lander?
— Venha até minha sala, senhorita — ele disse e fez menção de
dispensar Justin, mas o cortei na hora.
— Tudo o que precisar ser dito pode ser feito na frente do meu...
amigo.
Senti que Justin retesou mediante o termo que escolhi para
classificá-lo, mas não estava à vontade para me referir de outra forma. O que
eu deveria dizer?
Seguimos pelo corredor até a sala do gerente e me sentei, nervosa
com o que poderia ter dado errado.
— Diga logo, Sr. Lander. O que pode ter dado errado?
— Bem, chegou ao meu conhecimento que ontem uma ocorrência
foi registrada na delegacia.
Ótimo. Tinha dedo de Kendrick Evans ali.
— E o que isso tem a ver? Eu fui a pessoa agredida e sequer estive
na referida delegacia abrindo uma queixa formal.
— Seu pai foi chamado imediatamente pelos advogados da família
Evans, então, há um pequeno entrave...
— Não tem que haver entrave algum, senhor Lander! Eu não tenho
relacionamento com meu pai, esse dinheiro é meu, não dele! O que isso tem a
ver com o que houve ontem e com a presença do meu pai aqui?
— Parece que o Sr. Evans mandou que tudo fosse congelado para
que fosse esclarecido, já que há uma pendência entre as famílias que precisa
ser acertada — ele disse desconfortavelmente.
Puta que pariu. Aquela merda não tinha somente a ver com o
ocorrido de ontem. Tinha a ver com o dinheiro. Possivelmente o pai de
Kendrick, o desprezível Sr. Auburn Evans, estava entrando na jogada por
conta do dinheiro “investido” anos atrás. Seria aquela uma forma de
retaliação ou tentativa de reaver o que fora pago por mim na venda infame
orquestrada pelos meus pais?
— O Sr. Evans não tem poder algum para congelar nada
relacionado a mim! Muito menos meu pai! Esse dinheiro é do fundo
fiduciário deixado pelo meu avô, como o senhor bem sabe!
— Senhorita, eles só pedem que os aguardem para que tudo se
esclareça.
— Eu não vou esperar nada! — exclamei nervosa. Meus medos
estavam começando a assumir suas formas mais horrendas agora.
Senti a mão quente de Justin em minha coxa.
— Sr. Lander, o que Ailleen está querendo dizer é que, se os
documentos que ela trouxe ontem aqui estão corretos e tudo está nos
conformes, não há motivos para impedimentos. O que vocês estão tentando
fazer é coagi-la sendo que ela não deve satisfações a ninguém, sendo adulta e
dona de suas próprias decisões. Se esse dinheiro pertence a ela, nada mais
justo que apenas ela seja a responsável pelos seus atos e tenha o poder de ir e
vir à hora que quiser. Plenamente satisfeita, já que o dever foi cumprido e seu
direito foi exercido. O que não está acontecendo aqui.
— Senhor...
— Bradshaw. Major Bradshaw, da Marinha Americana — disse e
estendeu um documento de identificação. — Talvez seja bom informar que
ontem mesmo os advogados que cuidam de toda a corporação na base de
Camp Lejeune, na Carolina do Norte, já estavam a postos para se
encaminharem pra cá. Estive em contato com o próprio Departamento de
Defesa, requerendo os meios formais para que Ailleen seja atendida pela
melhor equipe de advogados. Ela não é civil. Entende que a ação pode virar
uma tremenda bagunça pra vocês?
— Mas... mas...
Olhei assombrada para Justin, à medida que ele ameaçava
sutilmente o gerente do banco.
— Ou ela sai daqui com o que lhe é devido por direito, ou a visita
será mais rápida do que vocês imaginam.
Joseph Lander pegou o telefone e fez uma chamada ao mesmo
tempo em que teclava algo em seu computador.
Cerca de dois minutos depois a senhora da recepção chegou
trazendo uma sacola preta.
— Aqui tem os trinta mil dólares que seu avô requereu que fossem
retirados no momento em que a senhorita acionasse o fundo fiduciário. O
dinheiro restante foi devidamente transferido para a conta que foi fornecida, e
deverá estar registrado no mais tardar até o fim do dia — ele disse, suando
frio. — Só preciso que a senhorita assine esses documentos aqui.
Assinei onde ele havia indicado, me levantando rapidamente,
desesperada para sair dali o mais rápido possível.
— Peço desculpas pelo inconveniente, senhorita Anderson. Não
sabia que estava resguardada pela Marinha Americana, nem que servia ao
nosso país.
Apenas assenti com a cabeça. Justin pegou a sacola pesada das
minhas mãos e passou o braço pelos meus ombros.
— Vamos, meu bem. Estou sentindo que há forças estranhas
querendo segurá-la a todo custo nesta cidadela.
Eu tinha que concordar com ele.
Os fantasmas do meu passado tinham voltado com força total para
me assombrar. Mal sabiam eles que eu parecia ter arranjado um guardião com
um poder de fogo superior ao deles e um espectro muito mais temível pela
simples ameaça de algo invisível.
Depois que saímos do banco, entramos no carro de Justin, como
dois fugitivos, e seguimos até o hotel, onde eu havia deixado o carro que
havia alugado. Entrei no pequeno Honda compacto e o segui até o caminho
indicado pelo GPS, que apontava o local exato onde a locadora de veículos
estava. Quando deixei a cidade, anos atrás, a tal loja sequer existia. Parece
que os Evans continuam investindo realmente na cidade, não?
Deixar o carro foi mais fácil do que pensei. Na verdade, Justin
tinha toda aquela aura alfa que assumia os comandos de tudo ao redor. Não
era à toa que ele comandava o porta-aviões tão bem e em uma idade tão
jovem.
Eu não sabia muita coisa da vida dele, mas uma coisa tinha certeza:
Justin tinha mania de controle. Aquilo irritava o ser independente que
habitava meu corpo, mas não era o suficiente para me fazer gerar intrigas ou
encrencar por pouca coisa. Eu era segura o suficiente para admitir que
gostava de um homem no comando, em alguns momentos. Achava
extremamente sexy observar a atitude imponente de Justin atando os nós para
que tudo ficasse resolvido e fosse deixado para trás.
Esperei dentro do Jeep enquanto ele acelerava os trâmites e deixava
as chaves e documentos dentro da agência. Quando olhei para o lado, senti
meu coração quase parar. Um carro preto, com as janelas todas escuras estava
parado na esquina, como se estivesse à espreita. Não dava para ver
absolutamente nada do interior, quem era o motorista, quantas pessoas havia
dentro do veículo. Nada. Nem mesmo podia afirmar que aquele carro estava
ali por nós. Mas sentia no meu âmago.
Justin saiu da loja e entrou no carro, dando partida imediatamente.
Nem bem tínhamos saído da avenida quando ele disse:
— Estamos sendo seguidos.
— Era o que eu temia.
Ele olhou para mim.
— Você tinha visto o carro preto atrás de nós?
— Quando você estava dentro da locadora, percebi que ele estava
parado distante de onde estávamos estacionados, mas parecia estar à espera
de algo. Apenas suspeitei que pudesse estar ali por algum motivo.
Olhei para trás e percebi que realmente o carro seguia em nossa
cola.
Aquilo era muito surreal para ser verdade. Muito “Identidade
Bourne” ou qualquer outra merda dessas de filmes de ação hollywoodianos.
— O que faremos?
Justin deu um sorriso de escárnio e disse, simplesmente:
— O que fomos treinados pra fazer, meu bem. Manobra evasiva e
fuga de território inóspito.
Com aquilo, Justin acelerou o Jeep e costurou entre os veículos que
transitavam na avenida, pegando um acesso para que entrássemos na
autoestrada. Eu olhava para trás o tempo inteiro e mantinha o coração
acelerado, com medo de passar mal a qualquer momento.
Aquela tensão estava sendo muito pior do que o pavor que passei
na missão. O medo do desconhecido. O pânico de estar colocando a vida
também de Justin em risco.
Será que Kendrick nunca pararia? Será que o preço de sua vingança
contra mim era algo tão valioso assim?
Passaram-se mais de dez minutos, com o Jeep rasgando as estradas
vicinais, até que Justin informou:
— Acredito que despistamos quem quer que fosse.
Assim eu esperava.
— Agora vamos encontrar um local tranquilo para comer e definir
nossos planos daqui por diante. Tenho a impressão de que você precisa de um
tempo nas montanhas, senhorita Anderson — ele disse com um sorriso
arrogante.
Aquela era alguma espécie de convite para que eu o acompanhasse
à sua casa, onde quer que seja?
— Acho que o ar das montanhas pode até me fazer bem —
respondi no mesmo tom e com um sorriso espontâneo.
— Então, aperte os cintos e apenas desfrute da viagem. Vai ser um
pouco longa. Daqui até West Virgínia temos uma viagem longa.
Arregalei os olhos diante da perspectiva de sairmos do Estado.
Seria uma aventura. Mais ainda, estando ao lado dele, confinada em um
ambiente apertado e que poderia se tornar claustrofóbico.
— Sua... casa é lá?
— Yeap.
Minha pergunta foi meio óbvia. Até mesmo me senti ridícula, mas
precisava confirmar, de alguma forma, que planos eram aqueles que Justin
estava traçando e que me incluíam.
Acho que meu cérebro devia estar soltando fumaça ou sinalizando,
de alguma forma, que a atividade estava em polvorosa, pois ele apenas
segurou minha mão e disse com a voz suave:
— Dois meses, Ailleen. Sem olhar para trás. Apenas vivendo o
presente. Vamos escrever as linhas da nossa história, uma de cada vez.
Com aquela frase tão singela e os dedos entrelaçados aos meus,
recostei a cabeça no encosto e deixei que meus olhos vagassem pela figura do
homem que agora era meu companheiro de viagem.
Quem poderia imaginar que minha vida daria uma reviravolta em
tão pouco tempo?
Saber de toda a merda que havia acontecido com Ailleen havia
mexido comigo de uma maneira inexplicável. Reivindicá-la como minha
havia sido o primeiro passo numa escala de progresso que eu mesmo
estabeleci. Aparentemente, ela estava mais à vontade na minha presença.
Sempre soube que eu podia deixar as pessoas receosas ou
constrangidas quando muito próximas ao meu convívio. Ser o dono de uma
personalidade dominante não era tão fácil, e em muitos momentos poderia ser
extremamente abrasivo, ainda mais se você deparasse com alguém com o
espírito livre como o de Ailleen Anderson.
Minha meta e intenção não era subjugá-la, nem mesmo tê-la
submissa a mim. Essa faceta de nosso relacionamento eu deixaria ao cargo do
âmbito profissional em que ambos estávamos inseridos e que eu esperava que
ela não abrisse mão tão facilmente. E entendam a expressão da palavra
submissão em seu conceito etimológico: Ailleen estava “abaixo” da missão à
qual fui designado, num sentido de auxiliadora para manter a ordem e
segurança da pátria, sendo uma oficial sob meu comando.
Quando disse a ela que se não retornasse ao serviço militar, como
previsto depois de sua licença, eu sairia das forças armadas, não estava
brincando. E nem poderia dizer que estava fazendo aquilo apenas por causa
de uma mulher. Quando muito, talvez por ter perdido o estímulo de estar
fazendo algo aprazível em um ambiente igualmente prazeroso.
Foram mais de nove anos como RECON da Marinha, sendo um
fuzileiro naval experiente e cheio de comendas honrosas. Quando decidi sair
do grupo de operações especiais, minha meta era até mesmo me afastar no
serviço militar, mas a oferta por uma posição com patente elevada acabou
fazendo com que eu aceitasse o trabalho como responsável pelo porta-aviões
transoceânico. De Capitão do grupo RECON passei a ser Major, encarregado
por uma das maiores bases náuticas da Marinha Americana.
As implantações em campo eram exaustivas. Comandar homens
que tinham que deixar suas famílias para se enfiar no campo de guerra ou
território hostil era perturbador. Quando uma missão ia por água abaixo,
recebíamos a descarga emocional do peso de ter que informar aos parentes de
algum Oficial que aquele bravo soldado morrera pela pátria.
Era honroso. Mas muitas vezes era inglório. Tantos estavam
morrendo por uma guerra sem sentido, embora em seus corações o que
prevalecia era que defendíamos a bandeira que tanto amávamos.
Eu estava por um fio, à beira da insanidade quando a brisa fresca na
forma de uma mulher voluptuosa chamada Ailleen Anderson aterrissou em
meu porta-aviões. De todas as tentativas de me manter afastado, ainda assim,
foi difícil evitar observá-la ao longe.
E ali estava eu. Tendo-a no exato lugar onde sempre a quis. Ao
meu lado. Sem contar no momento em que a tive abaixo do meu corpo.
Perceber que ela não era imune a mim foi o auge da minha história como
macho da espécie. Porra... eu sabia que exercia certa atração às mulheres.
Não era alheio aos comentários e cochichos das fuzileiras sempre que eu
passava, mas também não sou tão arrogante ao ponto de dizer que todas as
mulheres do mundo não seriam imunes a mim. E perceber que Ailleen sentia
um desejo saudável e arrebatador, talvez não no mesmo nível que o meu, mas
ainda assim intenso, acabou fazendo com que eu sentisse uma baita vontade
de bater os punhos no peito, tal qual um neandertal.
Meus pensamentos estavam confusos naquele instante, muito
porque o silêncio no carro era eloquente. Eu não sabia o que ela estava
pensando. Se tinha dúvidas, se tinha anseios. Eu queria ser aquele que os
satisfaria em algum momento. Queria ser seu protetor. Guardá-la de todas as
feiuras do mundo. Em minha mente machista e turbulenta, achava que ela já
tinha visto demais para uma mulher delicada.
Mas eu sabia que Ailleen era feita de aço. Fora forjada no fogo,
endurecida na dor e lapidada ante o sofrimento da traição daqueles que
deviam amá-la acima de tudo e de todos.
— Tenho 32 anos, mais dois irmãos e um pai aposentado do
serviço militar. General da reserva. Apenas eu segui carreira. Meus irmãos
odeiam armas e são mais empostados do que Bill Clinton quando passava gel
no cabelo e posava para fotos como um galã — eu disse em um dado
momento, rompendo o silêncio subitamente.
O som de sua risada foi como melodia para os meus ouvidos.
— Nenhum dos seus irmãos quis ser militar?
— Graças a Deus, não. Eu sou o mais velho, então praticamente
mando ali dentro.
— Hummm... então o comando já veio de cedo — ela disse
brincando.
Olhei de lado e lhe dei um sorriso.
— Yeap. Por cadeia hierárquica. Meu pai era o comandante geral
em casa. Eu assumi o posto de “general”, quando ele era implantado e
passava meses fora. Logo, foi muito fácil querer seguir os passos dele. Mas
meus irmãos odiavam com todas as forças. Talvez porque sempre os tratei
como subalternos e milicos insubordinados. Eu literalmente os colocava para
lavar o chão dos banheiros, simulando que estavam lavando o convés do
navio.
Ailleen riu com gosto.
— Então sempre teve a Marinha como primeira escolha?
— Sempre. Como nasci e fui criado longe do mar, qual o melhor
lugar para querer viver, conhecer e desbravar? O desconhecido e áspero
oceano. Então sempre foi a Marinha pra mim.
— Eu me encaminhei para Camp Lejeune apenas porque estava
mais perto. Talvez se tivesse outra base próxima, teria me alistado em
qualquer uma. Eu só queria sair dali — ela disse num tom sombrio.
— Que sorte a minha e a da corporação, não? Que Myrtle Beach é
tão perto da base da Carolina do Norte. Tão perto da costa.
— Sim. Você nunca quis fazer treinamento para ser um SEAL?
Comecei a rir de sua pergunta. Porra... aquela era complicada. Todo
aspirante a militar que entrava nas forças armadas sonhava com uma honrosa
entrada nas forças especiais táticas, mais ainda quando estávamos falando dos
Navy Seals. Porém nem sequer me recordo qual foi o critério de escolha na
época, para que acabasse me enfiando no treinamento RECON, antes de
sequer pensar nos Seals.
— Quando entrei como fuzileiro, imediatamente meu gradiente de
notas e habilidades me levou a uma categoria mais elevada. Digamos que fui
convidado gentilmente a integrar o Programa de Treinamento de
Reconhecimento, Reconnaissance, então ali acabei fincando meus ideais. As
técnicas usuais sugerem o uso da inteligência em combate, ao invés de força
bruta. Tanto que a meta de uma missão bem-sucedida é sair sem que um tiro
sequer seja disparado.
— E o fato de você estar me contando isso não vai caracterizar
aquele famoso jargão do cinema: se eu te contar, vou ter que te matar? —
perguntou com um sorriso no rosto.
Comecei a rir com gosto.
— Não, porque por incrível que pareça, embora nossa missão seja
de reconhecimento em linhas inimigas, não somos espiões nem nada disso.
Mas, claro, nossas missões não são em sua maioria secretas, longe das arestas
do Governo, seguindo ordens apenas do Presidente, do Secretário de Defesa
ou dos Comandos militares. Cada força tem seus grupos de operações
especiais, então...
— Os Seals são a elite da elite... — ela disse.
Bufei em desgosto.
— Você pode dizer isso, mas cada integrante de sua própria força
tática vai achar que está fazendo o seu melhor, logo, ele é o mais gabaritado.
No Exército, há os Green Berets, e são tão fodões em suas missões de campo
quanto nós. A diferença é que somos uma força mais voltada para invasão
anfíbia, com treinamento específico na água e resistência a esse meio. Mas
vou dar o crédito de que o treinamento intenso para se tornar um Seal é
altamente debilitante e capaz de forjar a mente de um fuzileiro naval.
— É. Pena que as mulheres são inaptas para ingressarem, não é? —
ela disse com ironia.
Olhei de lado e suspirei.
Eu tinha lidado com minha cota de preconceito em ter mulheres sob
meu comando. Eu mesmo fui extremamente ressabiado e era muito mais
voltado a tentar poupá-las de combates nas frentes inimigas do que o
contrário.
— Ailleen, o treinamento exige 30 meses de treinamento intenso e
desgastante, onde o esforço físico tem por meta subjugar o ser humano para
deixá-lo no pó. Por mais que hoje em dia homens e mulheres possam
desempenhar funções iguais, por mais que eu reconheça, assim como a Força
Aérea, por exemplo, além da Marinha Americana, que uma mulher está
plenamente apta a pilotar um caça F-22, ainda assim, há certas coisas que não
podem se equiparar.
— Como o quê? — interrogou curiosa.
— Vamos entrar em uma averiguação... veja bem. Pensemos em
aspecto físico, okay? Um homem não é capaz de dar à luz. Ele não pode
gerar.
— Porque não tem um útero, Justin.
— Exatamente. Mas também porque seu corpo é completamente
constituído de maneira diferente do da mulher, certo? Além da ausência do
órgão essencial onde a criança é gerada, há uma diferença circunstancial
fisiológica e anatômica, além de hormonal, que o torna inapto a ser aquele
que gera um bebê.
— Tudo bem. O que isso tem a ver?
— Alguns exercícios exigidos no treinamento são tão extremos que
exigem força física necessária a grupos musculares muito mais
desenvolvidos, bem como padrão de ossatura que somente os homens
apresentam — falei, e antes que ela argumentasse, ergui a mão. — E não...
não sou eu falando. São os estudos que comprovam. Eu poderia descrever
aqui quais são os testes executados e as performances exigidas e digo a você,
nem todos os homens conseguem cumprir o que o programa de treinamento
exige. Você me entende? O corpo masculino é diferente do feminino em sua
estrutura muscular e óssea, por mais que apresentem os mesmos grupos
musculares e conjuntos de ossatura iguais. Mas respondem de maneira
diferente.
— Uau. Você estudou isso para poder argumentar de maneira
eficiente?
— Não. Mas sei que muitas mulheres se frustram por acharem que
estão em pé de desigualdade nas forças.
— Mas se parar pra pensar, estamos.
— Em alguns casos, sim. A sociedade machista ainda teima em
tentar protegê-las como um bem precioso. Cabe a vocês o futuro da nossa
geração, não é?
Eu ri ao vê-la revirar os olhos.
— Esse comentário foi ultramachista.
— Possivelmente. Mas mesmo meu lado ultramachista foi
rebaixado pelo lado inteligente quando percebi que você era a pessoa mais
apta a prestar o devido socorro ao Capitão Masterson naquele momento —
admiti. — Infelizmente...
— Não comece, Major. Aquilo que aconteceu foi uma fatalidade.
Só pretendo esquecê-la.
Olhei atentamente para ela, antes de voltar a atenção para a estrada.
Já estávamos na I-77 N há horas.
— Como você pretende fazer isso?
Ela me olhou sem entender.
— Digo... como pretende esquecer? — reformulei a pergunta.
Ela deu um sorriso de lado e me olhou rapidamente, cruzando os
braços à frente. Aquilo ressaltou a curva de seus seios no decote da camiseta
regata que usava. Senti a boca salivar.
— Digamos que já estamos trabalhando nisso.
Um senso de puro orgulho brotou no meu peito por sentir que
talvez eu pudesse estar sendo de alguma ajuda.
— Agora, me diga... mudando totalmente de assunto... quando
deixou Myrtle Beach, você prestou queixa ou fez algo contra seus pais?
Ela se mexeu inquieta.
— Não. Apenas saí de casa, de madrugada, logo após ser deixada
por Kendrick. Dali segui para um hospital onde recebi o tratamento
adequado, registrei o estupro e coletei a documentação para uma
eventualidade, porque minha meta era que se eles viessem atrás de mim, eu
informaria à imprensa, faria um escândalo.
— E a polícia?
— Puft... você viu a atuação da polícia, Justin. Eles seguirão o que
a família Evans mandar. Agora que meu pai é senador, mais ainda. Ele é pau-
mandado do Sr. Evans. Nada mais do que isso. O sonho ganancioso de subir
nas fileiras políticas o fez vender sua alma ao diabo, ou algo assim. Além de
ter vendido a própria alma, ainda vendeu a filha de quebra. Ganhou um
trocado.
Porra. Eu não conseguia exprimir a vontade que estava sentindo.
Queria destruir o pai de Ailleen, honestamente.
— Não... eu cortei todo e qualquer laço com eles — ela disse por
fim. Para minha pergunta silenciosa.
— Bom, o importante é que o assunto esteja resolvido no seu
coração — eu disse com convicção. — Ele está?
Ailleen demorou um pouco a responder. Continuou contemplando a
paisagem que passava como um borrão do lado de fora da janela. Só depois
de alguns minutos ela respondeu:
— A cada dia que passa, a ferida dói menos. Restou apenas uma
cicatriz que teima em arder em certos momentos... Considero, algumas vezes,
essa mesma cicatriz como um sinal em braile... onde posso passar a mão e me
recordar, em uma leitura rápida, se por um instante me cegar para a
grandiosidade do que a vida é, que na verdade, eu estou viva — ela disse em
um suspiro. — Quando pedi que não fosse enviada de volta à base, era
porque temia que, de algum modo, as lembranças pudessem despertar aquilo
que já estava anestesiado e apagado da memória há muito tempo... e que a
cegueira me dominasse mais uma vez.
Suas palavras calaram fundo em meu peito. Eu podia ouvir o som
de sua respiração, mas não podia olhar para ela, ou poria tudo a perder.
Porque aquela mulher me tirava a atenção e o foco.
— Essa cidade guarda fantasmas que teimam em assombrar minha
alma, mas sou eu que tenho o poder para fechar as portas que permitem sua
entrada — falou em um tom baixo. — E me afastar de lá é exatamente a
maneira que encontrei de nunca mais ter que lidar com a dor que quase me
quebrou por dentro — concluiu.
Depois daquela troca de palavras, ficamos calados por muito
tempo. Ailleen recostou a cabeça no encosto do banco e adormeceu. Vez ou
outra eu olhava da estrada à frente para seu rosto cândido, ainda com as
marcas da agressão que sofrera.
Eu também queria que ela deixasse tudo para trás. Que o passado
fosse esquecido e que o presente começasse a ser delineado de maneira
plácida, para que um futuro promissor pudesse ser alcançado por nós dois.
Tomei sua mão na minha e entrelacei nossos dedos, trazendo-os até minha
boca, para que pudesse depositar um beijo suave, como uma espécie de
promessa. Mesmo que ela sequer se desse conta daquele gesto...
A única coisa que eu podia vislumbrar, além da longa linha
asfáltica à frente, era Ailleen Anderson na minha vida, dali por diante.
Depois de algumas paradas na estrada para que eu pudesse esticar
as pernas e alongar o corpo moído, além de comermos, finalmente
conseguimos chegar à casa de Justin Bradshaw, cerca de oito horas após
nossa saída da Carolina do Sul.
Meus olhos contemplaram a casa de madeira na região das
montanhas, que abrigava uma vista de tirar o fôlego, com uma imensa
floresta ao fundo, bem como os picos montanhosos. A casa era afastada das
outras na pequena cidade de Fayeteville e mais se assemelhava a um chalé
rústico, porém elegante, diferente de tudo o que já tinha visto. As imensas
toras de madeira de lei que formavam a base da varanda e davam um charme
mais do que especial, completada pelas escadas com flores silvestres em
vasos delicados. Aquilo me surpreendeu. Como ele mantinha a casa
organizada se passava tanto tempo longe?
Acredito que minha pergunta ficou estampada no rosto, já que
Justin deu um sorriso, antes de pegar as duas mochilas do porta-malas e
indicar com o queixo que eu seguisse à sua frente.
— Meu pai mora duas casas abaixo, cerca de uma milha daqui. Ele
mantém tudo organizado, coordena que uma vez a cada quinze dias venha
uma mulher fazer a limpeza, e sempre rega as plantas que, por incrível que
pareça, são sua paixão.
— Uau... ninguém nunca diria que nessa casa não mora alguém...
digo... que ela fica vazia por tanto tempo enquanto você está implantado.
Justin abriu a porta do chalé e me deu um leve empurrão para que
eu entrasse.
— Avisei no caminho de Myrtle Beach, logo depois que saí de
Camp Lejeune, para que ele abastecesse a geladeira e deixasse tudo pronto
para minha chegada.
— Mas você nem mesmo sabia se eu viria com você... — eu disse
ressabiada.
— Claro que não, mas não custava ter um pouco de esperança em
testar minha arte de convencimento — admitiu com um sorriso.
Justin depositou as mochilas em cima do sofá coberto por uma
manta charmosa, e me chamou para segui-lo até a cozinha.
Abracei meu corpo, agora um pouco constrangida por estar ali.
— Honestamente, não sei o que fazer...
Ele me olhou de canto de olho, enquanto fuçava a geladeira em
busca de algo para bebermos.
— Sobre o quê?
— Sobre... — apontei entre nós dois — isso. Eu... eu... não pensei
direito o que estava fazendo. Meu desespero em deixar Myrtle Beach era
tanto que simplesmente deixei que você tomasse as rédeas e o segui como um
cordeirinho — admiti.
Justin largou a jarra de limonada sobre o balcão e veio em minha
direção. Ele me puxou para o calor de seus braços e fez com que eu erguesse
a cabeça para olhá-lo diretamente nos olhos tempestuosos.
— Eu disse a você que podemos ir devagar, okay? Podemos ir
construindo uma espécie de relacionamento, da forma que você quiser —
disse seriamente. — Essa coisa de... estar junto... também é uma novidade pra
mim, já que nunca estabeleci vínculo algum com alguém, mas quero tentar
com você.
Aquela admissão fez com que eu ficasse espantada. Ele nunca tinha
tido um namoro ou relacionamento com outra mulher?
— Antes que você confunda as coisas... não. Nunca tive tempo para
me dedicar a uma mulher e o envolvimento que isso despende. Dediquei mais
de uma década às forças armadas.
Eu estava curiosa para saber mais detalhes da vida pessoal dele.
Isso era um fato. Justin era um homem vivido, viril, exalava masculinidade
por onde passava. As mulheres tinham que ter tentado, em algum momento,
agarrá-lo em suas teias.
— Mas...
Enjaulando meu corpo agora devidamente ajeitado na cadeira, ele
apenas disse:
— Mas não fui celibatário, porém também não fui promíscuo.
Escolha um meio-termo aí e você verá meu nome na legenda.
— Tudo bem...
Antes que eu pudesse falar mais alguma coisa, ele me deu um beijo
arrebatador e se afastou.
— O que quer comer? Não sou um bom cozinheiro, mas consigo
fazer uma macarronada decente.
— Eu posso ajudar... não sou uma boa cozinheira, mas faço uma
salada de tirar o chapéu — disse rindo.
Ele apenas olhou por cima do ombro e respondeu:
— Só a sua companhia já está valendo o dia.
Aquela frase tão simples aqueceu meu coração de maneira absurda.
Um sorriso queria escorregar pelo meu rosto, ao mesmo tempo em que podia
sentir o calor esquentando minha pele.
Era um sentimento tão desconhecido para mim, que estava sendo
difícil saber lidar.
Fui para o balcão ao lado de Justin e aceitei a faca que ele estendeu,
bem como os vegetais para serem devidamente preparados para a salada.
Trabalhamos em um silêncio confortável, preparando a refeição da
noite. O dia havia passado e nem tínhamos nos dado conta. Uma boa parte, na
estrada, entre idas e vindas a postos de gasolina e lojas de conveniência.
Embora eu tenha que confessar que evitei ao máximo descer ou me fazer ser
notada quando descíamos do carro, por conta ainda dos hematomas no meu
rosto. Mesmo a mais singela maquiagem não foi milagrosa o suficiente para
esconder o corte na testa. E os olhares enviesados eram dedicados ao meu
companheiro de viagem, porque as pessoas sempre pensavam o pior quando
viam uma mulher com o rosto roxo. Porém, a companhia de Justin fora tão
agradável que nem aquilo ou o cansaço que deveria estar assolando meu
corpo, normalmente, foram suficientes para me derrubar.
— Você me perguntou sobre os meus planos, Major... mas e os
seus? — perguntei, mantendo a cabeça baixa enquanto a faca cortava com
precisão os tomates.
Ele olhou rapidamente para mim, antes de jogar o alho na panela.
— Já disse... resolvi segui-la os dois meses de licença. Ser a sua
sombra. Uma espécie de acompanhante. Não um perseguidor, por favor.
Longe disso.
Revirei os olhos, com um sorriso, torcendo para que ele não tivesse
visto.
— Aposto que esse não é o procedimento padrão — falei com
certeza.
— Claro que não. Posso ter o interesse em saber que os fuzileiros
sob o meu comando estejam bem de saúde, plenamente recuperados e
recebendo o tratamento que lhes é devido, mas não é por eles que sinto um
puta desejo de estar perto — disse e se inclinou, para sussurrar no meu
ouvido: — Ou de estar dentro.
Arrepios insidiosos percorreram meu corpo de tal forma que por
um instante achei que pudesse cortar o dedo.
Parei a faca e respirei fundo.
— Uau.
O infame riu com meu desconforto.
— Vamos lá, Ailleen... já está mais do que na hora de você se
acostumar a sentir intensamente tudo o que vem guardando aí, por anos...
Fechei os olhos e suspirei.
— E não corte as verduras com os olhos fechados, meu bem. Não
queremos que um pedaço dos seus dedos entre na salada, não é mesmo? —
brincou.
Não me contive e o acompanhei nos risos.
Já era quase meia-noite quando terminei o banho relaxante que meu
corpo ansiava e saí do banheiro. Justin tinha insistido que eu usasse o
banheiro da suíte, mas precisava de um momento de privacidade para colocar
os pensamentos em ordem.
Será que eu não estava indo muito rápido? Será que não estava me
deixando guiar por algo efêmero e sem programação? Eu não era assim. O
único momento onde fiz algo por impulso foi quando fugi da minha casa
naquela noite fatídica e me enfiei em uma viagem de duas horas para a
Carolina do Norte, disposta a me alistar na Base de Jacksonville.
Eu era uma pessoa extremamente metódica. Não era à toa que era
tão nerd na escola e zoada por ser exatamente assim. Tudo meu era
sistematicamente programado para que obedecesse ao mais ínfimo
planejamento. Poderia até mesmo dizer que tinha TOC para determinadas
coisas.
Logo, o fato de ter me enfiado em uma espécie de relacionamento
com um homem que até então era meu superior, ter aceitado de bom grado
seu oferecimento para que estivesse sendo minha companhia constante
durante o tempo que propôs... era altamente improvável no meu caderninho
comportamental.
Mas eu podia dizer que estava me sentindo livre, como há muito
tempo não me sentia. Talvez, somente quando estava no porta-aviões, mas
sem a companhia constante e marcação cerrada da Segundo-tenente Hastings.
Podia dizer que sentia falta de Anya e Carrie. Sim, sentia e muita. Havíamos
estabelecido um vínculo de amizade estranho.
Aquilo me fez lembrar que eu deveria tirar um tempo para enviar
uma mensagem que fosse a elas. Valeria até mesmo um e-mail, que eu tanto
odiava, se precisasse. Não necessariamente informando em companhia de
quem eu estava, mas, sim, que minha estadia em terra estava sendo muito
proveitosa. Literalmente.
Segui até a sala e fui à janela que dava vista para o vale
montanhoso. Embora estivesse um breu total do lado de fora, ainda assim, a
lembrança da paisagem de quando era dia trouxe um sorriso ao meu rosto,
porque me lembrei de toda a beleza natural que havia ali.
Minha vida tinha tomado um rumo imprevisto.
Quando desci do avião e cheguei à base, estava desnorteada porque
não fazia ideia de para onde seguiria depois de resgatar o dinheiro que o vovô
Grant havia deixado para mim. Merda... eu nem fazia ideia da quantia, para
dizer a verdade. Minha vida estava em stand by. Eu era como a página em
branco de um livro, e me sentia como se estivesse com uma caneta na mão,
prestes a escrever uma nova história, mas sem fazer a menor ideia de por
onde começar as linhas que iniciariam minha trajetória dali por diante.
Então, Justin Bradshaw aconteceu.
E eu estava ali. Em um chalé aquecido, cercada de montanhas
belíssimas, em uma casa acolhedora como “lar” provisório e sentindo-me
mais livre do que poderia imaginar.
Senti os braços me enlaçando por trás e por um instante meu corpo
retesou, para logo em seguida relaxar em puro contentamento.
— Por que você não vem para a cama? — perguntou e depositou
um beijo no meu pescoço.
— Eu estava apenas admirando a paisagem — brinquei.
Ele me olhou com a sobrancelha erguida e olhou de volta para a
janela, contemplando a escuridão total.
— Hummm... a paisagem negra?
— A suposição de que a negritude da noite esconde uma beleza
simplesmente fantástica — falei e suspirei em puro deleite. — Achei aqui tão
bonito.
— Que bom. É bem pacato mesmo. Se você espera vida social, está
no lugar errado. — Sorriu.
— Está ótimo. Sério. Chegamos há o... quê? Poucas horas? E já me
sinto em casa. Ou como se conhecesse essa cidade há anos.
— Sinal de que você não é, definitivamente, uma pessoa
cosmopolita. Ou sua primeira decisão depois de sair de Myrtle Beach teria
sido ir para algum centro populoso.
— É verdade.
Justin me puxou para o quarto, guiando-me pela mão.
— Eu poderia ser um cavalheiro muito gentil e oferecer aquele
quarto ali, à direita, de hóspedes e tal. Mas como sou extremamente egoísta,
vou apenas lhe informar que você vai dormir comigo — falou
categoricamente.
— Oh, uau. Assim, dessa forma tão simples?
— Simples e direto. Não sou de fazer rodeios, já disse. Também
não sou de floreios românticos. Mas posso dizer que, pelo bem da sua saúde,
é melhor ficarmos juntos...
— Nossa... e por que isso? — perguntei sorrindo.
— A temperatura tende a cair muito aqui durante a madrugada. É
necessário que eu esteja perto pra te aquecer...
— Hummm... como você é prestativo, Major.
— Ah, Oficial Anderson... você não faz ideia de como eu posso ser
prestativo e colaborativo para suas funções vitais — disse enquanto me
empurrava para a cama.
Quando ele se deitou acima do meu corpo, senti o sangue rugir em
meus ouvidos.
— Você tem noção do quanto é linda, Ailleen? — perguntou à
medida que depositava beijos suaves pelo meu rosto e pescoço. Logo em
seguida, foi descendo pelo colo. Suas mãos iam desabotoando os botões da
camisa de flanela que ele mesmo havia me emprestado.
Não tinha fôlego para responder. Justin havia trazido em mim uma
chama que eu não acreditava ser capaz de ver acesa. Havia despertado um
furor sexual que nunca imaginei existir, dado meu passado.
Deixei que as mãos deslizassem por baixo de sua camisa,
dedilhando os músculos fortes de suas costas. Estava me sentindo destemida.
Os beijos foram se tornando frenéticos, intensos. A fome e sede
pela satisfação e prazer que eu já havia sentido nos braços dele corroeram
minhas entranhas.
As roupas foram sendo eliminadas uma a uma. Os ofegos podiam
ser ouvidos e apenas o som de nossas respirações quebrava o silêncio do
quarto.
Com a luz acesa, não passou despercebido aos olhos de Justin as
marcas ainda evidentes da tortura de tantos dias atrás. Meu Deus, em seus
braços e com as novas sensações que ele havia me despertado, era como se
houvesse se passado meses. Décadas. Não conseguia sequer me recordar dos
horrores daquelas horas no cativeiro.
Nas mãos de Justin, não conseguia me lembrar do pânico de ter um
homem sobre mim. Era como se ele fosse uma parte de mim.
— Justin...
— Isso, meu bem... eu amo ouvir o meu nome na sua boca — ele
disse à medida que avançava para o extremo sul do meu corpo.
Oh, céus. Aquilo seria embaraçoso. O que ele fizera ali já tinha me
deixado mais do que abismada pela resposta que meu corpo havia dado.
A repetição do orgasmo intenso e poderoso que rastejou pelos meus
músculos fez com que um gemido ganhasse vida em minha garganta.
— Solte-se, Ailleen.
E eu fiz. Deixei-me levar e voar nos braços daquele homem forte e
seguro que simplesmente me despedaçava e me reconstruía com o simples
toque de suas mãos e lábios.
Quando senti seu corpo preenchendo o meu, eu ainda estava
surfando nas ondas do êxtase surpreendente que havia alcançado.
Não foi difícil que Justin, com apenas alguns fortes e poderosos
golpes de seu corpo musculoso contra o meu, me levasse ao precipício
novamente. E eu pularia. Com gosto.
— Oh, minha nossa... é demais, Justin... não posso mais...
— Pode... e vai — disse entre gemidos roucos que pareciam mais
sexy do que tudo. — Goze mais uma vez.
Bastou que ele falasse aquilo e meu corpo prontamente o obedeceu.
Logo em seguida, depois de arremeter o corpo novamente contra o
meu, puxando uma perna o mais alto possível em um ângulo que o permitiu ir
mais fundo, Justin alcançou seu próprio gozo e rosnou no meu ouvido:
— Puta que pariu...
Comecei a rir. Porque não foi romântico ou delicado. Mas foi
eloquente. Significava que ele havia perdido as estribeiras. Tanto quanto eu.
Um homem tão centrado e seguro de si. Que nunca tinha se
permitido ser dominado pelos simples prazeres da carne, como ele mesmo
alegara, estava também rendido aos desejos mais intensos que nenhum de nós
dois supúnhamos ser alvos tão cedo.
Justin depositou um beijo no meu queixo, enfim na minha boca e
rolou para o lado, me levando junto.
— Me dê apenas alguns minutos...
— Meu Deus, Justin! Não me diga que vai ter fôlego para outra
rodada! — brinquei.
— Não... dê-me apenas alguns minutos e vou ter forças para
levantar daqui e cuidar da bagunça. Daí, podemos tomar banho. Porém, ali no
chuveiro eu já não posso garantir nada — respondeu com um sorriso.
Encostei o rosto em seu peito e senti um sorriso crescer nos meus
lábios.
Nunca imaginei que a felicidade pudesse chegar de forma
repentina.
Como também nunca imaginei que a tristeza e o desespero
pudessem fazer parte, alguma vez, de um cenário na minha vida em tão tenra
idade.
Mas eu estava aprendendo que a vida era feita de momentos
indeléveis. Momentos onde nossas escolhas nos levavam a encruzilhadas que
poderiam traçar nossos destinos.
Foi preciso que eu tivesse um momento de tristeza extrema e dor
atroz para que, aos dezoito anos, tomasse a decisão de sumir e partir rumo a
uma vida que nunca tinha sonhado para mim.
Foi preciso que eu experimentasse o desespero através das mãos
dos torturadores, para que o Major interferisse de forma eloquente e
intervisse me enviando de volta à base.
E foi preciso que tudo aquilo acontecesse, para que agora eu
estivesse nos braços dele. Vivendo de um momento único de segurança que
nunca supus ser capaz de sentir.
Tudo na minha vida parecia ser vivido em extremos. Nada parecia
ser fácil ou tranquilo. Nada parecia seguir um rumo adequado e singelo,
como a história do casal da casa ao lado, com dois filhos, um cachorro lindo e
a cerca branca à frente.
Porém eu estava feliz. Naquele exato momento, eu estava feliz.
Ela estava de volta. A vagabunda era minha e estava de volta ao
lugar de onde nunca deveria ter saído.
Cinco longos anos haviam se passado desde a última vez em que a
vi. Em que a toquei e possuí aquilo que foi destinado a ser meu. Apenas meu
e de mais ninguém. Quando a observei caminhando na orla ao lado do
homem desconhecido, senti ganas de sair de onde me mantinha à espreita
para matar o filho da puta e, finalmente, colocar a vadia em seu lugar.
Não esperava que ela lutasse contra mim naquele quarto de hotel.
Não esperava que fugisse dos meus avanços, sabendo que tudo o que eu mais
queria era acariciá-la e mostrar porque estávamos destinados a ficar juntos.
Nenhuma mulher mexeu comigo da forma como Ailleen Anderson
fazia. Nenhuma.
Desde o instante em que meus olhos pousaram sobre a garota, no
auge de seus quinze anos, soube que deveria fazer dela minha esposa.
Não contava, em momento algum, que ela fosse se fazer de difícil
por tantos anos, que ignoraria meu flerte, mesmo eu sendo o solteiro mais
cobiçado da cidade de merda em que meu pai resolvera se instalar.
Conseguir com que aceitasse meu convite para ser seu par no baile
de formaturas foi difícil. Precisei intervir com o auxílio do meu pai e da
ganância que os pais dela sentiam em subir um patamar social e político que
poderia favorecer a família Evans em muitos aspectos.
O dinheiro comprava muitas coisas, incluindo a filhinha amada dos
Anderson. E foi doce.
Meu Deus, como foi doce e suave o momento em que me apossei
de seu corpo virginal, sentindo o orgulho masculino por ser o primeiro e
único que desfrutaria daquilo. O único que acariciaria sua pele, que me
afundaria em seu calor e me derramaria em seu interior com minha semente.
E então, meus planos foram frustrados quando a maldita sumiu no
meio da noite. Não calculei que teria a coragem suficiente para sair de casa e
buscar ajuda. A polícia estava em nossas mãos, então não temi que pudesse
ter ido direto até eles.
No entanto, ela sumiu do mapa. Nem mesmo meus melhores
detetives de merda conseguiram detectar o paradeiro de Ailleen durante todos
aqueles anos.
Até que pôs os pés de novo em Myrtle Beach.
Olhei meu reflexo no espelho, observando as manchas roxas que
agora se espalhavam depois do ataque brutal sofrido pelas mãos do homem
que morreria em breve. O filho da puta não saberia o que o havia atingido até
ser tarde demais.
Saí do banheiro e peguei o celular em cima da mesa de cabeceira,
disposto a colocar meu plano em ação. Informação era poder, e agora eu tinha
a vantagem sobre Ailleen, logo, poderia usá-la em meu próprio benefício.
— Pai? — cumprimentei assim que ele atendeu a ligação. — Há
quanto tempo não fazemos uma visita aos Anderson?
Meu pai hesitou, como se tivesse estranhado o tom de minha
pergunta.
— O que quer dizer, Ken? — averiguou.
— Sei muito bem dos negócios escusos que os dois executam —
passei a mão no meu cabelo muito bem-cuidado —, e quero algo que me foi
negado nestes últimos anos.
— Você está se referindo à garota Anderson? Isso tem alguma
coisa a ver com o retorno dela à cidade?
Respirei fundo, contendo a irritação.
— É óbvio que sim, pai. Mas o mais importante... para que eu
possa colocar as mãos nela, da maneira como deveria ter acontecido anos
atrás e que cumpria nosso acordo com os Anderson, preciso de algo mais
substancial para exigir do Senador. Sei que os dois estão juntos em vários
negócios, então, nada mais justo que um parceiro faça uma visita sociável à
casa deles.
— Você parece ter algo mais em mente.
— E tenho — respondi, abrindo a pasta de arquivos e encarando a
peça-chave que usaria contra a piranha que achava que poderia me enganar.
— Kendrick...
— Pai, sabe que não preciso da sua permissão, não é mesmo? Mas
como sou um filho exemplar, gostaria que estivesse ciente de tudo o que
pretendo fazer.
— Chegarei em sua casa dentro de alguns minutos e discutiremos o
seu... plano — ele disse.
— Faça isso. — Desliguei em seguida, sem nem a cortesia de me
despedir.
Os olhos que agora me encaravam da fotografia me lembraram
muito os da garota que uma vez tive à minha mercê.
Ailleen Anderson seria minha novamente. E dessa vez, ela não
escaparia. Aceitaria de bom-grado tanto o castigo por conta de seu
desaparecimento e indisciplina, quanto aguentaria a ira e rancor que acumulei
ao longo desses anos.
Além disso, saberia, da pior maneira, que ninguém tocava o que é
meu.
Eu não seria passado para trás, não seria humilhado pela sua recusa
em aceitar o meu amor de forma intensa e violenta.
Faria questão de matar a todos que ousassem se interpor em meu
caminho, e minha vingança teria início com sua família.
Fui até o closet e acariciei o tecido que em breve estaria arrancando
do corpo suave e feminino.
Nada me impediria. E, se porventura, as coisas não saíssem
conforme o programado, eu a mataria. Porque se eu não poderia tê-la, então
ninguém mais, além de mim, teria.
Já estávamos há três semanas juntos, vivendo uma espécie de lua
de mel às avessas. Era estranho falar aquilo? Claro. Nós nos conhecíamos há
tão pouco tempo, mas a rotina que passamos a viver no chalé de Justin era
como a de qualquer casal recém-casado. Sem o papel passado e sem o
compromisso firmado.
Não havia nenhum rótulo entre nós, ainda menos as palavras que
definiam qualquer espécie de relacionamento fixo ou de sentimentos
definidos.
Eu podia afirmar que estava apaixonada por Justin Bradshaw. Meu
Deus... que mulher em sã consciência não se apaixonaria por ele?
O homem me trazia café da manhã na cama, todos os dias.
Cozinhava para mim, fazia massagens quando percebia que eu estava cansada
e algumas vezes até mesmo lia para mim, quando percebia que eu estava com
dor de cabeça e não conseguia ler.
Obviamente não deixei que ele tivesse acesso ao conteúdo adulto e
proibido para homens que eu tinha mania de ler. Conteúdo apresentado por
Anastacia e sua veia safada de romances eróticos. Mas eu não podia reclamar,
já que eram estes mesmos romances que me davam certo respaldo e auxílio
na concepção de alguns momentos a dois que acabaram arrancando suspiros
de admiração de Justin, bem como alguns gemidos eloquentes.
Então... eu podia até ser inexperiente... mas estava me tornando
muito versada na arte de seduzir meu Major.
As experiências que estava vivenciando ao lado dele eram tão
surreais e anormais para mim, que pareciam como um aprendizado. Nunca
havia tido um convívio familiar saudável. Jantares em família eram feitos
sempre em um silêncio sepulcral onde apenas os ruídos dos talheres podiam
ser ouvidos. Os sussurros baixos entre meus pais, sempre sobre algo
relacionado ao trabalho ou alguma festa beneficente que a mãe compareceria.
Nunca era questionada sobre como havia sido o meu dia na escola.
Eu não conhecia o conceito de família ou risos à mesa. Preferia
fazer minhas refeições, muitas vezes, ao lado de Emma, já que era a única
que parecia querer dedicar um pouco de seu tempo a mim, desde criança.
Então, quando depois de três dias, na casa de Justin, recebemos a
visita do pai dele e do irmão, cada um com um prato de comida diferente na
mão e um engradado de cerveja, custei a disfarçar o assombro. E eu ainda ria
da lembrança daquele dia. E por mais incrível que pudesse parecer, o sisudo
General da reserva, Simon, e um de seus irmãos, o que vivia na cidade,
tornaram as quintas-feiras os dias escolhidos para darem as caras por ali. Eu
adorei conhecê-los. Eram pessoas adoráveis. Simon tinha o mesmo porte de
Justin, não só pela manutenção do corte militar, mesmo sem estar na ativa há
décadas, mas também pela imponência, porém tinha um senso de humor
peculiar. O irmão Cole era outra história. Não tinha nada a ver com Justin.
Mas sentia um orgulho tão grande do irmão mais velho que era lindo
observar.
Eles faziam o verdadeiro sentido de família fazer valer a pena.

— Então é aqui que meu irmão tem se escondido e se recusado a


sair... — o irmão de Justin disse. — Olá, meu nome é Cole. E, sim. Eu sou o
mais bonito. Mas não deixe que os outros a ouçam concordar com essa
verdade. Sempre gera crise na família.
Disfarcei o sorriso, mas imediatamente me senti à vontade ao lado
dele.
— Muito prazer, eu sou o pai do cabeça-dura. A versão mais velha
de Justin — disse Simon.
Segurei sua mão, mas fui sugada para dentro de um abraço.
— Eu não sou cabeça-dura — Justin retrucou do outro lado.
— Tenho certeza de que seus subordinados dizem o contrário. Ou
então você não é meu filho.
Comecei a rir.
— Confesso que não tive muitos embates ou interação tão efetiva
sob o comando do seu filho para atestar se como Major ele é cabeça-dura,
mas como Justin — olhei para o homem que estava revirando minhas
entranhas com um simples olhar —, posso afirmar que tem sido, sim...
bastante teimoso e persistente.
— Ah... é meu filho. Que orgulho — o pai disse e bateu com força
no ombro de Justin, fazendo-o tossir a cerveja que bebia.
Cole começou a rir imediatamente.
— Olha, Ailleen... se você se cansar desse cara, saiba que moro
cerca de 5 milhas daqui.
— Cole, o que você vai dizer à sua namorada sobre essa proposta
à garota do seu irmão? — o pai dele perguntou com uma sobrancelha
erguida.
— Poxa, ela não precisa ficar sabendo... — disse e piscou.
— Idiota — Justin respondeu e colocou o braço sobre meus
ombros. — Então... o que trouxeram para jantar?
— Eu disse a você que traria um peixe maravilhoso, não disse? —
Simon Bradshaw perguntou e sorriu para mim. — Agora será o momento
onde sua garota vai perceber de onde o chef culinário — apontou com o
polegar para Cole — puxou toda a maestria na cozinha, além de saber de
onde o outro puxou toda a audácia militar. — Apontou o indicador em
gatilho para Justin.

A noite foi recheada de comida e risos. Algo completamente


distinto ao que eu estava acostumada. E se antes eu tinha dúvidas de que
poderia me ver adaptada a algo tão doméstico, agora era algo completamente
fora de propósito sentir esse medo. Minha alma necessitava de aconchego. E
percebi que os Bradshaw eram aqueles que supriam aquilo sem nem ao
menos dar-se conta.

Lá pelo final da terceira semana, Justin finalmente constatou que eu


não desenvolveria nenhuma espécie de EPT, ou seja, nada de Estresse Pós-
Traumático. Apenas um dia ou dois tive pesadelos, mas eles se misturavam
com o cativeiro e a presença de Kendrick em um deles. Então, foi uma
bagunça estranha no sonho que culminou num momento de suor e pânico
momentâneo. Apenas isso.
Eu estava em um daqueles dias onde apenas contemplava a
paisagem montanhosa, pensando no que fazer, quando meu celular apitou
uma mensagem.
Achando que fosse Anastacia ou Carrie, já abri o aplicativo com
um sorriso no rosto, que esmoreceu quase no mesmo instante.
Uma imagem em anexo veio logo em seguida. A imagem da minha
mãe amordaçada numa cadeira, com meu pai ao lado, na mesma condição,
quase fez meus batimentos cardíacos acelerarem. Quase.

Você acha que vai se livrar de mim com tanta


facilidade? Acha que pode continuar se escondendo por
mais alguns anos? Está tão enganada, Ailleen... estou
chegando para te buscar. Estou chegando para pegar o
que é meu. Então se prepare para pagar o preço pela sua
desobediência. Quem está prestes a pagar, neste instante,
são seus pais. Quer ver como?

A cena era chocante por si só. Afinal, eram meus pais, certo? Mas
eu não poderia dizer que nenhum dos dois não merecia estar ali. Eles fizeram
negócios com aquele homem dos infernos. O mais justo era que pagassem
pelos erros cometidos e sofressem as consequências, não é?
Mas havia um lado humano em mim ainda. O lado que foi blindado
e forjado no serviço militar. Aquele que jurava proteger a pátria e seus
compatriotas. Tudo bem que Kendrick não era um inimigo de outro país em
guerra, mas podia ser enquadrado como um terrorista filho da puta, já que
estava aterrorizando a vida dos Anderson, não é?
Ainda havia o lado humano que sentia pelas pessoas que estavam
passando por aquela situação porque eu já estive ali... amordaçada, destituída
de toda a minha moral, pudor e civilidade. Então, por essa razão eu me
compadecia. Apenas por isso.
E pelo fato daquilo fazer subir o ódio irascível que somente
Kendrick Evans era capaz de despertar em mim.
Estava quase quebrando o celular nas mãos, tamanha a angústia que
acometia meu espírito.
O que fazer? Meu pai era um senador dos Estados Unidos. Será que
não fora dado falta dele no Congresso?
E o que Kendrick queria dizer com “estou chegando para te
buscar”?
Aquela simples frase trouxe um arrepio à minha nuca porque eu
podia dizer que aquele homem era capaz de tudo, mas será que ele fora capaz
de rastrear o endereço de Justin? E sendo ele capaz disso, eu não estaria
colocando a vida de Justin e sua família em perigo?
Ao pensamento remoto daquilo, senti vontade de me estapear,
porque... pelo amor de Deus... Justin Bradshaw era um fuzileiro naval, ex-
RECON, então... se havia alguém fodão no mundo... era ele. Depois dos
Navy Seals, claro. Mas eu esperava que ele não soubesse que eu pensava
isso.
Saí da espreguiçadeira que ficava no fundo da casa de Justin e
entrei intempestivamente na cozinha. Eu precisava pensar no que fazer.

Justin havia saído aquela tarde e voltaria de noite, depois de passar


no mercado para fazer algumas compras. Eu estava exausta de ter dado voltas
na minha mente, tentando articular pensamentos coerentes com a nova
ameaça de Kendrick. Seria aquilo real ou um golpe orquestrado pelos meus
pais para me atrair até o covil dos Evans?
Até nisso eu pensei. Porque vejam bem... que pais vendem a
própria filha para um idiota qualquer por um milhão de dólares na noite de
formatura?
Então... para que eles simplesmente fingissem um teatro a fim de
me atraírem até lá, e que aquilo não passasse de uma estratégia funesta para
que Kendrick me tivesse no lugar onde ele queria, era um pulo.
Eu não era burra. Meu QI era bem elevado, obrigada.
Sabe as cenas de filmes de terror onde há um quarto escuro no final
do corredor, dali sai um grito aterrador, a mocinha sabe que tem algo errado
naquela merda, mesmo assim resolve entrar naquela porcaria de aposento
para conferir, somente para se dar mal? Pois bem... eu não sou esse tipo de
mocinha.
Eu vejo o quarto escuro no final do corredor. A porta está
semiaberta. Escuto a porra de um grito. Cara... eu simplesmente corro para a
saída mais próxima. Podem me chamar de bundona ou o que for, mas dou
valor à minha vida, porque só tenho uma, então, por favor... Vou fazer de
tudo para me assegurar e mantê-la neste corpo, neste plano terrestre. Posso ter
treinamento na Marinha, posso ter orgulho em ser fuzileira, mas não sou
Diana de Themyscira, ou em outras palavras, a Mulher-Maravilha, imortal e
tudo mais. Tenho carne que pode muito bem ser alvejada por objetos
perfurocortantes e afins.
Eu estava roendo as unhas no sofá quando outra mensagem chegou.

Vê-la depois de tanto tempo só me fez perceber que você


melhora como o vinho... senti-la embaixo de mim, como
da outra vez... só não foi melhor... porque fomos
interrompidos. Mas não seremos na próxima vez, meu
amor. Você e eu ficaremos juntos. Celebraremos um
casamento épico. Você estará radiante. Pode ser que
tenha que esperar alguns dias para que a cerimônia
aconteça, porque vai ter que receber uma lição pelo mau
comportamento, e não queremos que os hematomas que
vou deixar no seu rosto apareçam, não é? Mas não se
preocupe... vou amenizar pra você. Desde que me
garanta que vai me obedecer de agora em diante. Estou
ansioso para tê-la comigo outra vez.

Mais uma vez outra foto em anexo.


Dessa vez, o rosto da minha mãe mostrava um hematoma enorme
no olho. Ela chorava e sangue escorria do nariz.
Bem, aquilo não parecia armação. Ou minha mãe poderia se
inscrever para trabalhar em algum estúdio de cinema de Hollywood.
Eu já estava perdendo as estribeiras quando Justin chegou,
carregando milhões de sacolas.
Larguei o celular no sofá e o ajudei a transportar tudo para a
cozinha.
Em silêncio, guardamos os itens nos armários.
Podia sentir Justin me olhando, tentando descobrir o que eu tinha.
— O que houve, Ailleen? — perguntou finalmente.
Parei enquanto guardava uma caixa de leite na geladeira.
Suspirei audivelmente e me recostei ao balcão assim que fechei a
porta do refrigerador.
— Recebi uma mensagem interessante essa manhã e outra agora há
pouco.
Ele parou onde estava e me olhou com atenção.
— Mensagem de quem?
— Kendrick Evans.
Os olhos de Justin soltaram faísca imediatamente.
— Como ele conseguiu seu número de celular?
Dei de ombros.
— Não faço ideia, mas ele conseguiu. E resolveu que hoje era o dia
para me atormentar.
— Por que não me ligou imediatamente? — Cruzou os braços e
arqueou a sobrancelha loira.
— Hummm... porque eu estava esperando você chegar? —
respondi com um sorriso irônico. — De que adiantaria eu te ligar enquanto
estava fora para avisar sobre isso?
Ele pareceu ponderar sobre minha resposta.
— Você respondeu? — perguntou e chegou à minha frente,
puxando meu corpo para o calor dos seus braços.
— Claro que não. Mas, Justin... há algo que eu preciso te mostrar...
O tom sério com que empreguei essas palavras fez com que ele me
desse total atenção.
O puxei pela mão até a sala e nos sentamos no sofá. Ali estendi o
aparelho desbloqueado para ele, já nas mensagens que havia informado.
Enquanto ele lia, eu podia ver sua fisionomia se alterando
gradualmente.
— Puta que pariu! Que filho da puta!
Bem, Justin exprimiu em palavras o que eu estava sentindo.
Eu estava puto. Existe um momento na vida de um homem onde ele
sabe o limite de sua sanidade. A minha estava atingindo uma cota razoável,
com os acontecimentos recentes. Ver as mensagens ameaçadoras do filho da
puta, no celular de Ailleen me levou ao estopim.
— Eu vou matar esse cara, é isso — disse e levantei de um salto,
caindo de volta no sofá quando ela me puxou bruscamente pela manga.
— Matá-lo não vai resolver nada.
— Desde que ele deixe de existir no mundo e nunca mais te
perturbe, acredito que vá resolver, sim — respondi com irritação.
— Justin, eu acho que o que ele quer é exatamente isso. Me
desestabilizar, entende? E está usando as armas erradas, porque... eu não vou
cair na armadilha com o que ele está fazendo com meus pais — ela disse com
uma voz entristecida. — Chego a me sentir um monstro falando isso, mas...
— Não, Ailleen, você não tem que se sentir dessa forma. Seus pais
perderam o posto e o direito de receber seu amor quando fizeram de você
uma moeda de troca, entendeu?
— Mas ainda assim são sangue do meu sangue, não é?
— E daí? Isso nunca vai justificar os atos que cometeram contra
uma adolescente inocente e vulnerável, o que você era na época. Então
esqueça a culpa, porra. O que estou mais preocupado é até onde ele pode
chegar com as ameaças tecidas em suas palavras.
E aquilo era verdade. Porque eu tinha a impressão de que aquele
maníaco não ia parar somente por ali. O cara provavelmente era um psicopata
total, revestido de uma camada social que o deixava isento aos olhos da
comunidade onde vivia. Mas ele mostrava claramente que sua obsessão seria
suprida a todo custo.
E que custo seria esse? A segurança de Ailleen era essencial
naquele momento. Estávamos isolados na minha cidade, mas se aquele merda
conseguiu acesso aos dados celulares dela, qual seria a possibilidade de
rastreá-la até ali?
Uma coisa que aprendi na Marinha era que nunca devíamos dar por
garantido que estávamos completamente seguros. Em lugar nenhum. Sempre
devíamos manter nossos olhos abertos e a mente focada ao redor. Era isso
que salvava muitas vidas em uma operação. Era isso que garantia o retorno
seguro do corpo tático RECON de uma missão.
Não era porque uma mulher e uma criança estavam sentadas
calmamente em um banco de praça, como se nada de mais estivesse
acontecendo ao redor, que indicava que aquela cercania estava segura.
Provamos isso, certa vez, em Guadalajara, quando fomos fazer o
reconhecimento de uma operação militar que havia dado errado e o corpo de
fuzileiros foi enviado para checar o local. Dois fuzileiros navais estavam
sendo mantidos reféns por um cartel de drogas, quando foram à paisana e
cruzaram a fronteira.
Ao chegarmos ao lugar, o que vimos era apenas o que parecia uma
pequena vila simples e carente, com casas caindo aos pedaços e a população
mais esfomeada do que tudo. O Capitão Masterson tinha acabado de
ingressar no grupo tático, e apontou que tudo estava tranquilo, mas meus
olhos bateram exatamente nas figuras displicentemente assentadas no banco
decadente.
Quando a equipe estava se preparando para seguir pela lateral, meu
instinto mostrou que estava certo o tempo inteiro. A mulher que estava
sentada não era uma simples aldeã, passando o tempo com seu filho. Ela
estava mantendo a criança atada a ela, com um cinto de bombas-relógio, com
o objetivo claro de impedir a passagem de quem quer que fosse por ali. Os
traficantes usaram uma das mulheres e uma criança para guardar a entrada
principal da vila.
Não é preciso dizer que retrocedemos por outro caminho, buscando
uma alternativa diferente que pudesse poupar a vida daquele menino. Bem
como da mulher. Não sabíamos se ela era uma vítima no esquema ou se era
colaborativa por vontade própria, mas nossa meta era que nenhuma vida se
perdesse.
Conseguimos concluir a operação um dia depois, buscando outro
acesso. Entrando pela calada da noite, com a proteção da densa floresta
tropical à volta.
Mas aquilo nos mostrou que o que parecia ser inocente, que poderia
ilustrar um quadro qualquer, intitulado como uma dessas merdas vendidas em
leilões caríssimos, pintados por artistas reconhecidos pós-mortem, algo como
“mãe e filho na viela”, na verdade não passava de um embuste. Não havia
inocência alguma ali.
Então, eu precisava redobrar meus esforços e manter o foco e
atenção concentrados nos planos que poderiam estar sendo desenvolvidos por
aquele filho da puta que queria colocar suas mãos de volta em Ailleen.
E enquanto houvesse fôlego de vida em mim, eu faria de tudo para
impedir.
— Temos que redobrar sua segurança — afirmei.
— Eu me sinto segura aqui, Justin. Não tem como ele descobrir
essa localidade.
— Celulares constam com modo de rastreio através das operadoras
de telefonia — informei.
— Mas isso não é ilegal? Ele não precisaria de um FBI ou algo
assim para conseguir essa informação? O celular tem um GPS, mas não é
vinculado a nenhum aplicativo dele. Na verdade, nem sei como ele pode ter
tido acesso ao número.
— Faço uma ideia. Você preencheu dados para resgatar o fundo
fiduciário, não foi?
— Sim. O Sr. Lander me deu uma papelada imensa para preencher
e creio que coloquei o número, mas não informei endereço.
— Pense, Ailleen. Basta o número do seu telefone. E mais. O
número da conta para o qual o dinheiro foi enviado. Se Kendrick tiver sido
engenhoso, ele pode muito bem ter orquestrado algum esquema e ter tido
acesso a mais dados seus.
— Que dados, Justin? Não tenho mais nenhum!
— Carteira de identidade, motorista. Qualquer coisa que possa ser
um entrave em uma nova incursão na sua vida. Pense. Na compra de um
imóvel. Tudo ficaria vinculado à utilização desses documentos. Se ele dá um
jeito de bloquear ou ter acesso a qualquer dado, comprometendo isso, ele
passa a ter poder sobre você, porque vai detectar sua presença onde estiver.
E aquilo eu não podia permitir. Tinha que ter alguma serventia
poder usar do fato de Ailleen representar a pátria como integrante de umas
das corporações militares, sendo membro de um regimento respeitado e com
um cargo que requeria sigilo ou no mínimo um tratamento diferenciado.
Aquilo era uma forma de dizer que poderia se utilizar o poder de
maneira errada? Porra, sim. Mas tinha que haver uma forma de minar a
influência de Kendrick. E qual melhor arma para se usar contra o fogo, do
que o próprio fogo?
Influência por influência, que jogássemos a Marinha ou o próprio
Departamento de Defesa na jogada. Eu poderia acionar alguns dos meus
contatos... pode ser que meus miolos estivessem esquentando e soltando
fumaça, porque perdi o foco momentaneamente e tive a atenção resgatada
com um cutucão de Ailleen.
— Nem adianta colocar caraminholas na sua cabeça, entendeu? —
falou e quando olhei para ela, o cenho estava franzido.
— Como assim?
— Tentar usar de algum poderio que você tenha ou tentar fazer
algo contra a família Evans.
Eu a abracei, puxando-a para o meu colo. Ailleen resistiu em um
primeiro momento, mas logo o corpo ficou lânguido e aceitou o meu carinho.
— Prometo que tudo o que estou pensando é em tentar parar o que
quer que esteja em andamento. Esse homem não vai desistir, meu bem. O
tom que empregou em suas palavras mostra isso. A obsessão está escorrendo
por ali.
— Ele não tendo como me alcançar, suas ameaças ficam sendo
apenas isso: ameaças vazias.
— Mas quantas pessoas você acha que ele poderá usar até te
atingir?
— Não sei — ela respondeu com sinceridade. — E se avisássemos
ao FBI, e dessa forma eles assumissem o assunto? Talvez pudéssemos
encaminhar as mensagens e passar essa bomba, por assim dizer, pra que eles
resolvam...
— Não sei se essa é a alternativa correta, mas vou averiguar.
Eu esperava que Ailleen blindasse seu coração. Porque tinha a
impressão de que as ameaças daquele cara não parariam por ali, e precisava
me preparar para proteger o que já sentia como sendo meu. Exatamente nessa
intensidade. Pronome possessivo mesmo. Ailleen Anderson era minha.
E eu faria de tudo para mantê-la segura no exato lugar onde devia
estar. Ao meu lado.
Kendrick passou a agir sistematicamente. E daquela forma, meu
coração passou a bater erraticamente sempre que uma determinada hora do
dia chegava e meu celular mostrava uma mensagem recebida.
Já haviam se passado dois dias da primeira mensagem e as fotos
anexadas, mostrando o que ele estava fazendo com meus pais, ao que tudo
indicava, em sua própria casa, aumentavam de intensidade no tratamento
desumano que imprimia a eles.
Honestamente, passei pouco mais de cinco, seis horas, talvez, nem
bem me lembro, nas mãos dos meus torturadores. Sabia o que havia sofrido.
Embora naquelas poucas horas eu tenha apanhado muito mais do que
provavelmente o que minha mãe estava recebendo em doses homeopáticas,
ainda assim, era extremamente desgastante ver a situação em que ambos se
encontravam.

Não vou parar até que você volte e peça perdão... só


assim você terá seus amados pais de volta!
Era irônico ele realmente pensar que eu ainda nutria sentimentos
carinhosos pelos meus progenitores.

Ailleen! Não adianta se esconder! Eu vou te encontrar...


vai ser pior pra você manter esse joguinho de esconde-
esconde... venha por bem e libero seus pais...

Mais daquelas mensagens chegavam, mais fotos vinham em anexo,


mas somente ao final daquele dia é que as coisas começaram a tomar outro
rumo. Uma reviravolta inesperada.
Bastou um telefonema. Apenas um. Para que algo em mim se
acendesse como a chama de uma lamparina no meio da noite.
— Alô? — Atendi sem conseguir identificar o número, mas sem
reconhecer como sendo de Kendrick.
— Ailleen Anderson? — uma mulher perguntou. Sua voz débil
quase me fez perguntar novamente se ela estava procurando realmente por
mim.
— Sim?
— O-olá... eu acho que você não vai se lembrar de mim... mas não
poderia me esquecer de você. E... e preciso da sua ajuda — a mulher falou e
percebi que chorava.
— Em que posso ajudá-la? E de onde você me conhece?
— Eu fui a médica que a atendeu há cinco anos, no hospital em
Myrtle Beach — ela disse. — Naquela noite... você se lembra?
Meu coração trovejou de maneira intensa. As lembranças eram
turvas daquele evento, mas não poderia me esquecer da mulher que me
acolheu enquanto fazia o exame e registrava o estupro, preenchendo o papel
que eu necessitaria, caso Kendrick e a família dele me ameaçassem. Fora ela,
inclusive que administrara a dose da droga antiestupro que precisei tomar
para me precaver de uma possível gravidez ou doença sexualmente
transmissível.
— Ah... olá... doutora... me desculpe... eu não lembro seu nome.
— Doutora Brenda. Brenda Kowalski — ela disse. — Eu emiti o
laudo...
— Eu sei. Disso me recordo... doutora. Mas... por que a senhora
precisa da minha ajuda?
Aquilo era muito estranho. Se havia alguém que poderia necessitar
da ajuda de alguém ali seria eu, dela. Não o contrário.
— Ailleen... eu tenho uma irmã mais nova. Ela tem 20 anos. Na
época em que tudo aconteceu com você, ela tinha apenas 15 e morava com
meus pais, na Flórida. Mas quando se formou, resolveu viajar pelo país,
antes de ingressar na faculdade — começou a relatar.
Tudo beeem. O que aquela informação teria de tão importante?
— Ela... ela estava morando comigo há alguns meses. Aqui em
Myrtle Beach. Estava pensando em fazer faculdade em uma cidade próxima.
Chegou a arranjar um trabalho na biblioteca local.
— Okay...
— Minha irmã se parece um pouco com você. A compleição física.
Ela tem os cabelos escuros, ao contrário dos meus. Tem os olhos
esverdeados. A pele clara. Tem um sorriso doce.
Minha vontade era gritar para que a médica falasse logo qual era o
motivo de sua ligação.
— Doutora Brenda... eu não entendo o que isso tem a ver comigo...
— Kendrick Evans a sequestrou ontem e a está mantendo refém em
sua casa — ela soltou a informação de uma vez.
Abri a boca sem acreditar.
Não era possível que ele chegasse àquele nível... seria?
— Mas... espera... se bem me lembro, a senhora não tem um irmão
que é policial? O mesmo que foi chamado e chegou também a me orientar na
época?
— Sim. E meu irmão esteve no chamado em que você foi agredida
quando esteve na cidade, algumas semanas atrás.
Tentei forçar a memória porque mesmo em meu torpor daquela
noite, minha atenção estava concentrada no policial idiota que tentara reverter
a situação para o lado de Kendrick. O outro policial esteve o tempo todo do
outro lado do quarto, tentando auxiliar o paramédico no atendimento do meu
atacante. A memória do momento em que achei que poderia conhecê-lo de
algum lugar veio como um flash.
— Ele foi afastado do cargo. Por alguma razão. Greg começou a
cavar informações sobre o ocorrido naquela noite, e quando o policial
Dalton quis registrar a ocorrência contra a senhorita, meu irmão
automaticamente buscou sua ficha e fez a ligação. Ele percebeu que ali havia
alguma forma esquematizada para acobertar as ações de Kendrick
e da família Evans. A cidade vive em prol e função deles e somos um
território sem lei alguma, salvo a que eles ditam.
Isso era verdade. Eu bem sabia.
— Quando Virginia foi levada, ao sair do trabalho, Greg não
imaginou que pudesse ter algo a ver com seu caso, mas então começaram as
mensagens e envios de fotos — ela disse e começou a chorar.
Céus. Aquilo era a porra de um pesadelo.
— O que ele fez, então?
— Tentou ir atrás de Kendrick Evans para tirar satisfações. O
próximo que sei é que meu irmão foi afastado das funções. E estamos de
mãos amarradas, porque a polícia não entende e não vai agir para fazer
absolutamente nada.
Fechei os olhos sem acreditar no que estava vivendo naquele
momento. Droga. Eu sabia que pisar os pés em terra traria problemas, mas
não imaginei que fosse dar toda essa merda.
— O que Kendrick está exigindo de vocês, doutora Brenda? —
finalmente perguntei.
— Que eu entre em contato para que você veja em que situação ele
vai deixar minha irmã... — ela disse chorando. — Eu... eu... sei o que foi
feito a você. Como médica, através do juramento de Hipócrates, o que estou
fazendo é tão errado que sinto vontade de vomitar... mas quem está pedindo
ajuda é uma irmã desesperada, não a profissional que a atendeu anos atrás
quando você ainda era uma menina. Meus pais são idosos, Ailleen. Eles não
vão aguentar se algo acontecer com Virginia.
— Onde está seu irmão nesse exato momento?
— Tentando de alguma forma conseguir ajuda, mas estamos de
mãos atadas.
— Você pode encaminhar pra mim as mensagens que ele te
enviou? — pedi e engoli em seco.
— Sim.
Mesmo na linha com ela, ouvi o celular zumbir anunciando a
chegada das mensagens.
Abri a primeira.

Querida Sra. Kowalski. Estou enviando esta mensagem


para que a faça chegar às mãos de minha adorável noiva.
A mesma que a senhora cuidou tão prontamente cinco
anos atrás. Confiarei que preza pelo bem-estar de sua
irmãzinha, então fará isso com a maior presteza, não é
mesmo? Apenas encaminhe...

Ela se parece com você, não é? Não é tão bonita...


também não é tão apetitosa. Mas estou disposto a poupá-
la se você vier por livre e espontânea vontade... estou
disposto a até mesmo não usá-la, até mesmo porque
parece que não terá o mesmo sabor que você teve para
mim... Estou à sua espera. Não demore. A propósito...
seus pais passam bem... por maus bocados, mas assim
aprendem a não foder com parceiros de negócios. Um
beijo, meu amor.

— Você ainda está aí? — a médica perguntou do outro lado da


linha.
Coloquei o celular no ouvido imediatamente e respondi:
— Sim. Me desculpe. Eu vou ver o que posso fazer, doutora
Brenda. — Cocei a ruga entre as sobrancelhas, tentando desfazer a pontada
que começava a martelar aquele exato ponto.
— Obrigada, Ailleen. Muito obrigada.
Encerramos a ligação e apoiei os cotovelos no joelho, segurando a
cabeça, sentindo o peso de toda a merda em que tinha se transformado minha
vida.
Quando Justin chegou, me encontrou naquela exata posição.
— Ailleen? O que houve? — perguntou, largando as chaves na
mesa lateral e vindo em minha direção.
— Justin... quanto tempo de treinamento RECON é necessário para
se formar um fuzileiro especial? — perguntei e sorri ao ver seu cenho
franzido.
— Um ano, talvez. Depende da evolução do fuzileiro, por quê?
— Porque acho que você terá que me treinar em tempo recorde.
— O quê?
— Quando você se envolve em uma missão, vai e faz o
reconhecimento e executa os comandos que lhe foram passados, não é? —
confirmei e esperei sua resposta.
— Quando eu estava na força tática, sim. O que isso tem a ver,
Ailleen?
— Vou me enfiar no covil de Kendrick Evans e fazer o
reconhecimento do território inimigo — falei. — Exatamente como um
fantasma faria.
Justin arregalou os olhos e imediatamente se levantou do sofá.
— Não, você não vai! De forma alguma! O que está pensando? O
que conversamos?
— Justin... o assunto deixou de ser o acerto de contas que ele tinha
com meus pais, em uma tentativa débil de me atrair até ele. Como viu que
isso não deu certo, Kendrick passou para outra tática.
— E qual foi?
— Ele sequestrou uma garota muito parecida comigo, irmã da
médica e do policial que me atenderam cinco anos atrás. E está exigindo que
eu vá ao seu encontro, em troca não fará com ela o que fez comigo.
Justin passou as mãos na cabeça, andando de um lado ao outro na
sala. Ele estava sem palavras. Ou melhor. Dava para ver que ele estava com
os pensamentos em polvorosa, mas não sabia equilibrá-los para pensar no que
fazer.
— Okay. Vamos pensar por um instante — disse e passou as mãos
bruscamente pelo rosto. — Porra... que pesadelo. Isso parece coisa de filme.
Se eu não tivesse vivido boa parte da minha vida em meio a tanta violência,
diria que esse tipo de merda só acontece em ficção, mas estou convicto de
que pessoas más existem e estão no meio de nós. Esse Kendrick
provou ser uma delas.
— Yeap.
Justin sentou-se na mesa de centro bem à minha frente e pegou
minhas mãos.
— Conte-me tudo do início. Sem esconder absolutamente nenhum
detalhe. Vamos pensar no que fazer.
Fiz exatamente aquilo. Relatei a ele desde o momento da ligação de
Brenda Kowalski. Falei sobre as impressões do irmão dela, o policial que
esteve na cena do ataque em Myrtle Beach no mês anterior, bem como cinco
anos atrás.
Justin ouvia tudo atentamente, como o Oficial poderoso que era.
Ali não estava mais o homem simples e comum que convivia comigo durante
aquelas semanas. Ali estava o Major condecorado com honras militares. Seus
olhos astutos e sagazes estavam entrecerrados, a boca fechada em uma linha
rígida, uma carranca eternizada em uma feição de granito. O maxilar estava
tão tenso que cheguei a ouvir os rangidos, temendo que algum dente
quebrasse no processo.
— Agora você vai me ouvir. Não faremos isso de qualquer
maneira, entendeu? Você não vai simplesmente chegar lá e entrar, como se
fosse a coisa mais simples a fazer. Pois é exatamente o que ele está
esperando. Vamos preparar o elemento surpresa.
— Que seria?
— Preparar uma equipe mínima de reconhecimento, ataque e ação.
Porque se você acha que vai sozinha, está enganada. Qual é o nosso lema
principal? — perguntou.
— Semper Fi.
— Exatamente. Semper Fidelis. Um companheiro sempre é fiel ao
outro. Um nunca abandona o irmão. Em hipótese alguma. Este é o nosso
diferencial.
— Mas não estamos numa missão militar oficial, Major — falei
com um sorriso sutil.
— Não interessa. Uma vez fuzileiro, sempre fuzileiro. Você pode
tirar o fuzileiro do campo de combate, mas nunca pode tirar o campo de
combate do fuzileiro. Está no sangue, Ailleen.
Tudo bem. Eu daria aquilo a ele. Fomos forjados na Marinha,
afinal. Escutávamos aquilo desde que adentrávamos pelo portão da base.
Todos os dias. Jurando a bandeira. Jurando a pátria. O Hino. Mas havia algo
muito mais intrínseco na força. Ali havia o sentido real de Corporação. Um
defendia as costas do outro. Num sentido pleno de família.
— Somos dois — falei rindo. — Já podemos ser considerados uma
pequena equipe?
— Com certeza. Mas acredito que acionar alguns contatos não vai
fazer mal algum — ele disse, já pegando o celular.
Justin se levantou e discou para alguém que atendeu quase que
imediatamente.
— Como anda o seu processo de recuperação? — perguntou. —
Hummm... acredito que vou precisar de sua ajuda. Infelizmente sem seu
apoio físico, porque não posso colocar em risco o que foi feito com você —
disse e deu um sorriso sarcástico, olhando diretamente para mim. — Três
semanas não são suficientes para curar esse tipo de lesão, Frankeinstein,
você sabe bem disso...
Franzi o cenho sem entender com quem ele estava falando. Justin
se virou para mim e deu uma piscada marota.
— Quem dos seus RECONs recebeu ordem de licença para
descanso após a missão? — Justin pegou uma caneta e um papel. Começou a
anotar freneticamente, resmungando no telefone ao mesmo tempo. — Hum...
hum. Okay. Hum... hum-hum. Acho que só eles, está ótimo. Extraoficial.
Civil. Hum-hum.
Revirei os olhos porque eu odiava ardentemente estar sendo
deixada de fora da conversa, embora soubesse que Justin fosse me contar
assim que encerrasse a ligação. O difícil era conter a curiosidade.
— Melhoras, Masterson. Continue fazendo o repouso adequado...
Oh... então ele estava conversando com o Capitão Masterson? O
mesmo que eu havia costurado na missão? Dei um sorriso breve e recebi um
olhar enviesado de Justin. Apenas dei de ombros.
Acabei me levantando do sofá e indo para a cozinha, deixando
Justin encerrando o telefonema à vontade.
Estava pegando uma garrafa de água na geladeira quando o senti
atrás de mim. Suas mãos foram automaticamente para meus quadris, me
puxando contra seu corpo forte.
Comecei a rir, quase perdendo a garrafa no processo.
— Você se inclina assim, e espera que eu fique sem fazer nada? —
perguntou com a voz rouca.
— Desculpa, Major. Não foi intencional — caçoei. Virei-me em
seus braços e enlacei o pescoço forte, dando-lhe um beijo suave no queixo
com a barba por fazer.
Agora que estava fora da base, ele mantinha a aparência um pouco
mais desleixada. Como se estivesse de férias. Eu gostei bastante daquela nova
faceta do meu Major. Já estava me acostumando a chamá-lo de meu, assim
mesmo. Com essa possessividade.
— Está desculpada. Mas que isso não se repita. A não ser que você
queira ser rudemente agarrada como foi — retrucou e beijou a ponta do meu
nariz. — Teagan e Scott chegarão à base de Camp Lejeune o mais tardar
amanhã à noite.
Arregalei os olhos em puro assombro. Ele havia destacado os dois
para se enfiarem em uma missão não-oficial que poderia até mesmo custar
suas carreiras?
— Justin... isso pode trazer probl... — Colocou um dedo na minha
boca, me silenciando.
— São todos homens crescidos. Não estão fazendo absolutamente
nada obrigados. Eles têm três meses de licença por terem saído em missão, e
de uma forma ou de outra, precisam acatar um período de descanso
compulsório, vamos dizer assim... — Justin passou a mão no meu cabelo,
afastando-o do meu rosto. Em seguida, beijou a ponta do meu nariz. — Tanto
os dois, quanto Colin e John, que integravam o destacamento do Capitão
Masterson no reconhecimento da área no Iraque, são obrigados a dar uma
pausa de recuperação. Como houve aquela intercorrência, tivemos alguns
trâmites no meio do caminho, então são apenas papéis, ligações daqui e dali...
que resultam em uma liberação rápida para dois pobres fuzileiros navais que
estão há um tempo afastados da família e precisam se reconectar
— disse com ironia.
Ergui uma sobrancelha.
— É sério. Depois de tudo resolvido, eles poderão ir para o Caribe,
Maldivas, até para a Groenlândia, se quiserem. Haverá apenas um pequeno
desvio para tomarem um sol em Myrtle Beach.
— Huuummm.
— Agora... me diga... o que vamos comer?
— Você só pensa nisso? — perguntei e ganhei de cortesia um
belíssimo apertão no meu traseiro.
— Penso em outras coisas também. Com mais frequência do que
em comida...
— Sério?
— Sério. Comer, transar e dormir. Não necessariamente nessa
mesma ordem e sequência de ação. Às vezes o mesmo verbo pode se repetir
várias e várias vezes... consegue captar o que digo?
Ao falar aquilo, Justin esfregou a protuberância óbvia que mostrava
qual era o verbo que ele queria praticar naquele instante, e que havia deixado
relegado para outro momento o ato de comer algo... comestível mesmo.
Sem dificuldade alguma ele me ergueu no colo – fazendo com que
eu enlaçasse sua cintura com as pernas –, continuou distribuindo beijos
ardentes pela coluna da minha garganta, atestando que eu levasse algumas
marcas, com certeza, e seguiu rumo ao quarto.
Justin me depositou ali como se eu fosse um bem precioso. Embora
tudo tivesse começado como um arroubo apaixonado, ainda assim, no
momento em que nossos olhos se conectavam e a magia parecia acontecer,
tudo se transformava em algo muito maior, de proporção quase cósmica.
Eu me sentia ora devassa, ora pudica quando estávamos juntos, mas
sabia que com ele seria um constante aprendizado. A cada dia eu via um
pouco mais de suas cores, nuances e desejos.
Justin Bradshaw mostrava com seu corpo tudo aquilo que muitas
vezes se negava a dizer com palavras. Ele alegava não ser romântico, ser
bruto e áspero, mas a cada vez que me amava, que percorria os dedos pela
minha pele, demonstrava a candura com que me queria. Seu toque era como
uma chama acesa queimando a cera de uma vela. Eu me derretia por dentro.
— Basta apenas que eu encoste em você... e isso acontece — ele
disse com a voz rouca de desejo.
As mãos buscavam as curvas do meu corpo, percorrendo os
músculos magros das coxas. Suavemente ele ia retirando peça a peça, todas
as roupas que impediam que nossas peles se tocassem intimamente.
Deixei que meus dedos trilhassem as fibras de cada músculo forte
que podia distinguir em suas costas, passei pelos bíceps, tríceps, até fazer
com que nossas mãos se conectassem e os dedos se entrelaçassem.
Ele me beijou com tanta ânsia naquele instante, que achei que
pudesse sucumbir ao momento. Era tudo muito intenso.
— Justin... — sussurrei seu nome em um ofego contra sua boca.
Não foi preciso falar mais nada. Ele assumiu o comando e me levou
a navegar nas ondas revoltas de um êxtase que chegou como um tsunami
impiedoso, arremessando nós dois no mesmo lugar: no paraíso.
Naquele quarto, os problemas estavam esquecidos, porque tudo o
que eu sabia era sentir. As emoções que dominavam minha mente eram tão
intensas que por um instante apenas sonhei que nada de ruim poderia nos
atingir, desde que nos mantivéssemos juntos.
O dia seguinte chegou com a promessa de algo fugaz. Ailleen
adormeceu em meus braços logo depois que fizemos amor de maneira
apaixonada. Observando-a dormir, preferi buscar algo leve para que ela
comesse, antes de voltarmos para a cama outra vez para nos preparar para a
viagem que faríamos de volta à Carolina do Sul.
Liguei para o meu pai avisando-o do imprevisto, mas não quis
informá-lo do objetivo de nossa ida repentina. Sabia que meu velho ficaria
preocupado e não havia motivo para aquilo. Minha meta era usar meus anos
de Operações Táticas e aplicar na missão à qual estávamos engajados, além
de enfiar alguns golpes na cara do filho da puta, Kendrick Evans. Seria ótimo
se toda aquela merda reverberasse também para os pais de Ailleen. Dessa
forma ela poderia finalmente se ver livre do passado e seguir em frente sem
nenhuma amarra ou ameaça futura.
Entrei no quarto e a vi arrumando algumas mudas de roupa na
mochila.
— Basta levar o essencial. Não pense que vamos nos hospedar na
casa daquele imbecil e tomar um chá, certo?
Ela riu e revirou os olhos.
— Sim, senhor. Senhor.
Lembrei-me da primeira vez em que ela entrou na minha sala no
porta-aviões e manteve a atitude séria e formal. Agora vivíamos uma
realidade completamente diferente e aquilo provavelmente seria um choque
para Teagan e Scott. Ninguém sabia do meu envolvimento com Ailleen, mas
com certeza teriam conhecimento em breve. Eu não deixaria nada oculto e a
assumiria diante de qualquer batalhão, regimento, esquadrão, o que fosse.
Ela era minha. Eu ainda não havia externado meus sentimentos
abertamente, assim como ela. Mas achava que com o tempo ambos nos
sentiríamos à vontade para identificar o momento.
Por diversas vezes, enquanto a segurava contra meu peito, durante
o sono, sussurrei que achava que a amava. Achar é apenas um verbo sem
sentido que denota medo em admitir o real sentimento, porque a partir do
momento em que você assume a coisa toda, seu coração passa a estar sob o
controle de outra pessoa. É um poder que você simplesmente dá a outrem.
Na verdade, amar alguém é o maior risco que você pode correr.
Nunca vamos saber quando a vida vai levar aquela pessoa de nós e um evento
como esse pode impactar em toda a forma de amor que você dedica àquela
pessoa. Talvez por isso muitas pessoas se segurem e não se permitam
entregar totalmente. Por medo. Puramente.
Porque, amar... amar é perder o controle. Não somente transmiti-lo
a outro alguém. Mas perder o controle total.
E eu estava naquele nível. Como em um navio sem manche, ou
timão. Porra... era como estar na proa do meu porta-aviões, rumando contra
um Iceberg. Então, eu podia sentir que meu destino era uma possível
repetição do Titanic. Não havia volta. Eu era um náufrago, perdido de amor
por Ailleen.
Ou sendo um pouco mais bélico, era como estar à espera de um
torpedo captado pelo sonar. Você sabia que seria atingido e destruído a
qualquer instante. Então bastava apenas aguardar, porque não havia para
onde correr.
E puta merda... toda aquela litania e vibração melodiosa de um
homem apaixonado me acometeu durante noites e noites insones. Enquanto
eu a mantinha aquecida entre meus braços.
Então... foda-se. Sim, eu estava me sentindo um pouco piegas.
Mas a expectativa de uma missão onde a vida dela poderia estar em
risco havia me deixado daquele jeito.
Assim que tudo acabasse. Quando conseguíssemos resgatar a
garota que estava sendo mantida em cativeiro, quando conseguíssemos
descobrir o que realmente estava acontecendo com os pais dela e tivéssemos
uma resolução para todo aquele imbróglio, meu destino com Ailleen seria
selado de maneira definitiva.
— Por que você está me olhando assim? — ela perguntou ainda
segurando uma blusa na mão.
Cheguei perto e a abracei.
— Nada. Apenas pensando.
— Quando você pensa muito, sabia que seus fios loiros quase se
arrepiam?
— Sério? Que interessante...
Ela riu e conseguiu escapar do meu agarre. Em seguida ficou séria.
Inclinei a cabeça, olhando-a atentamente.
— O que houve? — perguntei.
Ailleen se sentou na cama, segurando a camisa contra o peito.
Suspirou como se estivesse cansada e afastou o cabelo do rosto.
— Eu só queria uma vida normal, entende? Estava feliz na base. A
vida militar me levava na inércia e eu ia seguindo. E pra mim, tudo estava
ótimo. Então, agora estou aqui e vislumbrei, pela primeira vez, um sentido de
algo comum — ela disse e ajoelhei à sua frente, passando as mãos em suas
coxas. — Agora tudo está uma bagunça.
— Vai ser resolvido, meu bem.
— Justin, eu estava começando a me equilibrar. Agir como uma
mulher simples, que levanta, faz comida, um exercício aqui, outro ali, ajeita a
casa, para nesse meio-tempo e liga para as amigas... — Suspirou e fechou os
olhos. — Estou com saudade delas, por sinal. E agora vamos nos enfiar em
uma missão que nem sei como vai terminar...
— Ei! Vai terminar com 100% de sucesso porque não vamos
permitir nada além disso, Ailleen. Não vá por esse caminho. Se você está
com saudade das suas amigas, por que não telefona para elas? — perguntei.
— E vou dizer o quê? Antes eu poderia dizer: Oi, meninas... estou
contemplando as montanhas e daqui a pouco vou tomar um ar. Agora o
discurso será outro... algo como: Então, garotas... estou dando uma ida rápida
à minha cidade natal para dar uma lição a um filho da puta, já até ajeitei as
armas que vamos levar...
Tive que rir de seu drama.
— Você não precisa ser tão verbal. Diga apenas que está bem.
— Não consigo mentir.
— Então apenas mande uma mensagem. Fale que está em uma
viagem... em busca de conhecimento.
— Conhecimento de quê? — perguntou rindo.
— Sei lá... não especifique. O conhecimento pode ser variado. Pode
ser das técnicas de abordagem militar das forças especiais, mas não precisa
dizer isso. Pode ser o conhecimento de onde o filho da puta escondeu a
refém, mas também não precisa revelar esse detalhe... — falei e beijei seu
queixo ao me inclinar para frente. — Ou você pode apenas dizer que é um
conhecimento profundo do cara com quem você está saindo...
Ela riu e enlaçou meu pescoço.
— Não disse que estamos juntos.
— Por quê?
— Não sei. Talvez esteja evitando a zoação ou os gritos de torcida
que serão ouvidos desde longe, lá do porta-aviões. Aquelas duas contarão
para a Marinha inteira.
Eu ri de seu embaraço.
— Deixe que saibam. Eu não me importo.
E não me importava mesmo. Nem um pouco.
— Vou pensar o que falar.
— Faça isso, coração.
Deixei-a finalizando sua tarefa e fui cuidar das minhas. Peguei tudo
o que seria necessário e coloquei em cima da bancada do armário.
Guardei meu traje negro dentro da mochila militar que levaria,
conferi o pente das armas, duas Colt M45A1, peguei mais munição e inseri
no suporte específico do traje que usaria para entrar na mansão dos Evans.
Atrás do closet, abri o compartimento secreto que revelava uma
parede oculta onde eu guardava meu equipamento de quando era um
RECON. Foda-se... uma vez RECON, sempre RECON. Podia não estar na
ativa como fuzileiro naval de Operações Especiais Táticas, mas recebi e
alcancei cada posto e medalha ao mérito por esforço e sangue derramado à
pátria. Nada mais justo que meus “companheiros” em cada missão
continuassem comigo. Porque eram meus, porra. Todas as armas e
equipamento usados eram designados especificamente ao Oficial que as
mereciam.
Fiquei na dúvida se pegava meu rifle MK11 ou o M14 e acabei
optando pelo segundo, por nenhuma razão especial, salvo a exceção de ter
sido o último que usei.
Peguei o cinto de munições, coloquei na mochila tática, bem como
dois pares de óculos de visão noturna.
Virei ao ouvir o assovio de Ailleen.
— Uaaau... se não é o sonho de consumo de todo amante de armas
— ela disse admirada, olhando ao redor.
Ela estava com as mãos nos quadris e fiz o mesmo. Olhei para
meus pertences que simbolizavam tudo aquilo que já fiz na força. Meu
passado estava impresso ali. Poucas vidas contabilizei sendo exterminadas
com um tiro disparado por um dos meus rifles, mas não hesitaria em usá-lo,
se necessário fosse, naquela ocasião.
Não vou dizer que não liquidei alguns elementos com as próprias
mãos porque estaria mentindo. A operação de resgate de Ailleen era prova
viva disso. Matei a sangue frio e faria novamente. E aquele mesmo espírito
vingativo estava coabitando meu corpo naquele exato instante.
— Não se pode tomar os bebês de um homem — zombei.
— Bem... não de um tão gabaritado quanto você, não é, Major? —
ela disse com orgulho na voz. Meu lado macho alfa estufou o peito com
galhardia porque era ótimo sentir-se mais do que admirado pelos seus feitos,
pela mulher que você amava.
— Nem entrei nesse mérito. Mas uma vez RECON, sempre
RECON. Vale para o Semper Fi elevado ao cubo — brinquei.
— Entendo. É ser um fuzileiro mais fodão de todos — ela disse e
me abraçou. — Menos do que os Seals. — Começou a rir.
— Outra vez isso, mulher? Você não tem medo de levar umas
palmadas no traseiro?
— Desculpa. Escapuliu.
Peguei a mochila e saí do closet, com um braço sobre os ombros
dela.
— Bem, estou pronto. E você?
— Também.
— Como suas armas viraram história, esta Colt M45 vai passar a
ser sua amiga do peito — entreguei a pistola bege em sua mão. — Eu sei que
você tinha uma Beretta, mas, por favor... esqueça isso. Agora você tem em
mãos uma pistola de verdade, dos RECON, então sinta-se privilegiada,
acaricie esta belezinha e faça amizade com ela — zombei. — Vale até você
imaginar que está acariciando outra coisa. Hummm... não. Melhor, não. Isso
vai me dar ideias. Que vai levar a outras coisas. E nunca sairemos daqui.
— Major... você é um tarado — ela respondeu bufando.
— Já disse quais verbos fazem parte da minha vida, meu bem.
— Percebi qual você conjuga de maneira constante, sinalizando
suas verdadeiras intenções.
— Sempre que você se aproxima. Então, por favor. Nada de fazer
carinho nessa pistola, ou agora eu posso acabar meio que ficando enciumado.
Ailleen revirou os olhos e me deu um beijo estalado na boca.
— Bobo.
— Já está com a trava de segurança, e o carregador de munição está
aqui, mas quero crer que não vamos precisar. Digamos que estamos apenas
sendo... precavidos.
— Certo. O velho lema de “melhor pecar pelo excesso, do que pela
falta” — ela disse e franziu o nariz.
— Exatamente, coração. — Dessa vez eu retribuí o beijo, puxando-
a pela trança que pendia do alto do rabo de cavalo. — Já disse o quanto fica
gostosa com essas roupas?
— Que roupas? Jeans e regata? — Ergueu a sobrancelha de
maneira cética.
— Você está muito sexy. Pra caralho. Bem Tomb Ryder. Angelina
Jolie perde de dez a zero pra você.
— Bom... já vi que você é tarado, bobo e exagerado. Major... você
me surpreende a cada dia — falou e me abraçou.
— Até eu estou surpreso, coração. Até eu.
E aquilo era verdade.
Nossos olhos ficaram conectados por um tempo imenso até que a
magia se quebrou com o toque do meu celular.
Peguei no bolso e atendi sem olhar.
— Teagan...
— Major... que agradável surpresa receber um convite de férias
ocasionais com um belo desvio pelas praias da Carolina do Sul — disse
ironicamente.
Ri baixinho antes de responder:
— Então... acho que você vai adorar o lugar, tenente. Vai poder
usar seus óculos, esticar os braços em longo alcance... deitar na grama.
Atividades muito interessantes que farão um bem imenso à sua alma.
A risada dele encheu o ambiente e tive que tirar o celular do
ouvido. Ailleen acenou a cabeça e sorriu também.
— Bem, eu e Scott vamos adorar desfrutar desse momento ioga.
— Nos encontramos em Jacksonville? — perguntei.
Não queria dizer o nome específico do Camp Lejeune, para não
caracterizar um encontro fortuito, o que efetivamente estávamos fazendo,
claro.
— Claro. Tem um pub irlandês por lá que estou doido pra
conhecer.
— Ótimo. Quando chegam?
— Estaremos na esquina da 12, no Pub Jeu, exatamente às 18h —
ele disse. — Leve o protetor solar. Estamos ansiosos pelo passeio.
— Com certeza. Só não espere que seja eu que passe nas suas
costas.
— Pena. Mas certeza que descolo uma mulher gostosa por lá pra
fazer isso por mim — completou.
Desliguei a ligação e franzi o cenho. Que não fosse minha mulher,
estava ótimo.

Saímos de Fayeteville ainda pela manhã e pegamos a estrada para


seguir num ritmo calmo e sem estresse. Embora estivéssemos com pressa de
solucionar o problema, ainda assim, sabíamos que não adiantava fazer as
coisas sem planejamento.
Quando encontrássemos com Teagan e Scott em Lejeune, assim
que eles chegassem do voo do porta-aviões, já seguiríamos direto para um
Motel 6 que ficava a cerca de trinta minutos de distância dali.
Faríamos nosso “quartel-general” onde explanaríamos toda a
situação aos dois, mesmo que Masterson tenha já deixado avisado que eles
estão se embrenhando em uma missão extraoficial e que poderia acabar
jogando merda no ventilador. Dependendo da repercussão, poderíamos até
mesmo enfrentar uma Corte Marcial, mas já havia acionado meu contato com
o General Stuart, então estava me resguardando.
O grande inconveniente da situação era o fato do pai de Ailleen ser
um representante da Carolina do Sul, na cadeira do Senado, o que o colocava
em um foco político evidente. Ali estava a grande complicação.
Fazer Kendrick Evans e o pai milionário sumirem como se nunca
tivessem existido era fácil? Fichinha. O Governo Americano era regado de
grupos de Operações Especiais, bem como Grupos de Operações Fantasmas,
que executavam serviços que deviam passar na surdina dos cidadãos de bem.
E o Governo precisava passar incólume.
Muitas missões orquestradas pelo Governo eram fechadas a sete
chaves, desenvolvidas e nunca questionadas e sequer chegavam ao
conhecimento do público. Exterminar um possível alvo que poderia colocar a
nação em perigo? Óbvio que aquilo era feito. Quem as pessoas achavam que
faziam isso? Os Grupos de Operações Especiais. Mais precisamente, os
Seals, os fodões que Ailleen tanto admirava, que respondiam diretamente ao
Presidente.
Algumas missões eram veiculadas, especialmente se o sucesso
fosse mais do que garantido. Depois do atentado de 11 de setembro, quem os
americanos achavam que se enfiaram em uma operação a mando do Governo
Americano para exterminar Osama Bin Laden? Os fuzileiros Navais,
membros da Marinha Americana dos Estados Unidos, integrantes do melhor
Grupo Tático de Operações Especiais do mundo: os Seals. E, sim. Eu tinha
que dar o braço a torcer e dizer que os caras eram realmente superiores em
muitas coisas, mas como falado antes... Cada grupo de Ops era constituído de
forças e habilidades específicas, e o que eu integrei por quase nove anos não
ficava tão aquém. Até mesmo porque fazíamos parte da mesma corporação,
porra. Éramos da Marinha. Nosso lema era o mesmo. Semper Fi até morrer.
Depois de parar em alguns postos de conveniência ao longo das
mais de sete horas de viagem, conseguimos achar o Motel 6 onde nos
instalaríamos antes de buscar Teagan e Scott em Camp Lejeune.
Isso era quase final da tarde. O celular de Ailleen já havia recebido
duas mensagens do filho da puta, com um amor obsessivo declarado,
ameaças veladas e tudo mais. Mas aquele telefonema parecia ser da tal
médica.
— Ailleen? — Ailleen colocou o celular no viva-voz de modo que
eu pudesse acompanhar a conversa.
— Doutora Brenda, como vai?
— Ai-ailleen... você pensou no que te pedi?
— A senhora diz sobre a ajuda que me solicitou?
— Sim?
— Estou a caminho de Myrtle Beach, doutora. Mas gostaria que
não informasse nada a Kendrick ou o deixasse saber. Nem mesmo seu irmão.
— Oh, meu Deus... muito obrigada... — Eu podia detectar o tom de
desespero e agradecimento na voz da mulher.
— Assim que puder, farei contato.
— Deus te abençoe.
— Amém.
Nós realmente esperávamos que Deus estendesse sua proteção
contra essa operação sigilosa que estávamos desenvolvendo para resgatar
alguém que nem mesmo conhecíamos.
Mas se a consciência de Ailleen dependia disso, e se sua vida
também estava atrelada a uma atitude drástica como essa para que se visse,
finalmente, livre... então era assim que teria que ser.
Encararíamos como uma operação militar cujo alvo deveria ser
neutralizado. Por mim, seria abatido por completo. Exterminado da face da
Terra.
Ser inserido no meio militar tinha vantagens interessantes. Uma
delas era a disciplina com os horários. E se havia uma coisa que Justin
Bradshaw podia ser chamado, era de disciplinado e pontual. Às 18 horas
estávamos no centro de distribuição do terminal de cargas do Camp Lejeune,
sentados confortavelmente em um sofá, tomando café, na companhia de dois
sargentos da Marinha.
Enquanto ele jogava conversa fora com os homens, entrei em uma
conversa à toa no grupo de WhatsApp que passei a compartilhar com Anya e
Carrie. Eu estava nervosa, não sabia o que fazer com as mãos e para evitar
roer as unhas que já eram curtas, resolvi passar o tempo apenas tentando
saber notícias.

Ei, garotas, como estão?


Anastacia: Tédio total aqui. Uma porcaria. O tenente
mais gato do porta-aviões deixou a base náutica, logo,
não pude dar uns pegas bem dados nele...

Carrie: Mesmo que você quisesse, não conseguiria, sua


imbecil. Onde faria isso? Atrás do armário de
suprimentos bélicos?

Anastacia: É uma ideia... você já esteve lá, Carrie... sua


safada...?

Carrie, Carrie... essa sua pergunta colocou você em maus


lençóis... rs.

Carrie: Oh...oh... foi mal. Mas, então. Como você está,


Ailleen? Já deu muito aí em terra?

Quase engasguei com a pergunta. Aquelas duas não tinham filtro


algum. Olhei ao redor para ver se Justin estava prestando atenção em mim.
Não. Continuava atento ao papo com os caras do hangar 12.

Minha nossa, Carrie. Que pergunta horrorosa!

Anastacia: Você tem sorte que ela foi sutil. Ela poderia
ter colocado algo que eu colocaria, tipo: já fodeu ou foi
fodida?

Hahahahahaha...
Carrie: Viu? Sou uma pessoa muito bem-educada.

Digamos que estou ótima.

Anastacia: Uuuuhhhh... sinto vibrações daqui! Deu até


uma marola que agitou o porta-aviões... você sentiu,
Carrie?

Carrie: Não. Estou, no momento, fazendo serviço


burocrático, enfiada dentro do escritório do Primeiro-
tenente. Droga. Ele voltou. Tenho que fingir que estou
trabalhando. Amo vocês, vacas!

Se cuida, Carrie. Saudades.

Anastacia: Conte-me, conte-me! Não... espera... não vou


ser egoísta e ficar fofocando sabendo que a Carrie vai se
roer de vontade de participar da conversa e não pode.
Okay... nos conte tudo depois, tá? Vou voltar para o que
estava fazendo.

E que era o quê?

Anastacia: Lendo, ora essa. Putaria, obviamente. A


saudade do tenente está sendo muito forte. Como tive
folga, estou aqui na companhia do meu kindle e fingindo
que o Gatorade de uva é um vinho gostoso.

Você não presta, Anya.


Anastacia: Presto sim... se cuida, mulher. Dê notícias e
volte para nos contar sobre esse estado “ótimo” em que
você se encontra... :)

Pode deixar. ;*

O avião de transporte havia acabado de pousar e estava abrindo as


portas traseiras no exato instante em que Justin olhava para fora. Alguns
fuzileiros desciam conversando com suas mochilas jogadas displicentemente
sobre os ombros.
Avistei Teagan e Scott ao longe, rindo de alguma coisa que outro
fuzileiro dizia. Justin se levantou do sofá, olhou para mim e despediu-se
rapidamente dos homens ao nosso lado.
Quando chegamos à frente de Teagan e Scott, ambos levaram
apenas dois segundos para me catalogarem ao lado do Major. Bem como a
mão que segurava firmemente meu cotovelo.
— Ora, ora... se não é a Oficial Anderson em pessoa... É uma
visão? Uma miragem? Desço do avião e já dou de cara com essa beldade
experiente com a arte do corte e costura? — Teagan perguntou sorrindo.
Antes que eu me desse conta, ele me puxou para um abraço, quase
esmagando minhas costelas no processo.
— Ei! Deixe um pouco pra mim! — Scott resmungou.
Mudei de braços como uma boneca e senti que meu rosto estava
vermelho de puro embaraço.
— Se os três já terminaram a demonstração de afeto, será que
podemos seguir? — Justin perguntou e o tom de sua voz indicava plenamente
a irritação contida.
Voltei o rosto para encará-lo, mas ele já havia se virado para ir
embora.
Teagan colocou um braço sobre meu ombro, me guiando para
sairmos do terminal de cargas. Scott seguia ao meu lado, falando coisas
aleatórias.
— Há quanto tempo está por aqui, Anderson? Já está pronta para
retornar ao porta-aviões? Sua licença não é de dois meses?
— Percebeu que fez três perguntas e nem ao menos me deu tempo
para responder a nenhuma delas? — respondi brincando.
— Deve ser a surpresa e a saudade desses seus belos olhos.
Bufei e comecei a rir, atraindo a atenção de Justin, que se virou
para trás, lançando um olhar enfurecido na minha direção. Percebi claramente
quando ele registrou o braço de Teagan pousado possessivamente sobre mim,
como se ali fosse seu lugar.
Tentei me afastar discretamente, mas a conversa entre os dois
fuzileiros seguia alheia à minha troca de olhares com um Justin ressentido e
possivelmente enciumado. Era aquilo que eu via em seus olhos? Ciúmes?
Embora fosse extremamente lisonjeiro, ainda assim eu achava que
não havia necessidade de tal reação, já que nunca dei corda ou demonstrei
outro comportamento permissivo em relação a nenhum fuzileiro sob seu
comando. Eu entendia que os dois que estavam me espremendo como se eu
fosse um recheio de sanduíche acabaram desenvolvendo alguma espécie de
carinho por conta dos eventos que sucederam ao meu resgate. Apenas isso.
Quando chegamos ao prédio onde Teagan e Scott assinariam o
documento confirmando o tempo de licença, Justin me puxou para um canto
enquanto ambos resolviam suas pendências.
— Você tem que ficar tão próxima deles?
Dei um sorriso apaziguador e passei a mão discretamente em seu
braço, olhando o tempo todo ao redor. Embora estivéssemos do lado de fora,
ainda assim estávamos nas cercanias de um prédio militar.
— E você tem que ficar com essa cara emburrada?
— Percebi que não gosto das liberdades que outros Oficiais
parecem ter com você — admitiu.
— Eles não têm liberdade comigo, Justin. Eles conquistaram minha
amizade, como conquistei a deles. Apenas isso — rebati.
— Teagan não hesitaria em mudar o perfil dessa suposta amizade,
Ailleen — afirmou em teimosia.
— E você está sendo bobo e ciumento por nada.
— Não é por nada, só não gosto de deixar margem para
possibilidades — disse de maneira enigmática.
Franzi o cenho sem entender o que ele estava falando, e só alguns
instantes depois é que fui compreender a veracidade e intensidade de suas
intenções.
Quando Teagan e Scott estavam chegando ao nosso lado, Justin
simplesmente me puxou para os seus braços e me deu um beijo de revirar os
dedos dos pés.
Assim. Sem mais nem menos.
Na. Frente. Da. Porra. Da. Base. Inteira.
E não foi apenas um beijinho singelo e sutil. Foi um beijo
envolvente, que não dava chance de dúvidas à mente das pessoas se o casal
ali com as línguas entrelaçadas estava envolvido ou não. A resposta era um
SIM bem gigante e em Caps Lock. Ou em Neon.
Ainda bem que ele teve a decência de continuar me segurando,
porque quando se afastou abruptamente, eu estava sem fôlego. E quase caí
para trás. O que me manteve de pé foram seus braços.
— Uaaaau... se essa não foi a demonstração mais empírica já vista
na história desse país. Nosso Major mostrando na prática que a teoria de um
beijo ardente nas dependências do Governo pode fazer arder labaredas nos
olhinhos dos pobres soldados americanos que acabam de chegar de longos
meses de implantação — Teagan disse com zombaria.
— Eu acho que foi mais uma afirmativa na sua cara pra deixar de
ser besta e parar de mexer no que já tem, aparentemente, dono — Scott
complementou.
Revirei os olhos, porque homens eram machistas ao extremo. Eu
não era um objeto para ter um dono. Não era um cachorrinho adestrado que
necessitasse de carinho e da mão ou da coleira de alguém para me guiar. Eu
era dona de mim mesma.
Mas é óbvio que vou ter que admitir que o beijo de Justin
Bradshaw tirava minha habilidade de pensar, então nem consegui articular as
palavras decentes para rebater os argumentos dos idiotas.
— Isso foi apenas para dizer que eu e Ailleen estamos juntos, então
é melhor que vocês mantenham as mãos bem longe. Já mataram saudade?
Ótimo. Mantenham-se a uma distância razoável, respeitando o espaço pessoal
da minha mulher, e está tudo resolvido — falou com um sorriso de escárnio.
— Acabou o concurso de cuspe?
Os três se viraram para mim com cara de assombro.
— Não seria concurso de mijo, meu bem? — Justin perguntou.
— Eu sou uma dama. Logo, vou abolir a prática onde vocês tenham
que tirar pra fora aquilo que carregam dentro da calça e evitem passar
vergonha tentando descobrir quem tem maior do que quem — falei e ganhei
um beliscão de Justin —, então vou optar pelo concurso de quem cospe mais
longe, okay? É bem mais delicado e sutil.
— Vocês, mulheres, conseguem estragar uma brincadeira com uma
frase apenas — Teagan disse balançando a cabeça. — Mas nunca brinquei de
quem cospe mais longe... É legal?
Revirei os olhos novamente e puxei Justin em direção ao carro.
— Argh... vamos embora. Temos uma missão pra organizar.
Justin deu de ombros para os caras e, dessa vez, assumiu o posto
que Teagan tinha usurpado momentos antes. Ele me abraçou de maneira
possessiva, aplicando um beijo na minha cabeça e virando-se com um sorriso
vitorioso para os dois fuzileiros que apenas riam atrás de nós.
Acho que nem preciso dizer que sorri consternada, logo depois de
bufar de forma nada elegante.

— Então... deixe-me ver se entendi... — Teagan falou enquanto


mastigava o sanduíche imenso do McDonalds. O segundo, na verdade.
Aparentemente, ele estava com bastante saudade da rede de lanchonetes... —
Ailleen precisa entrar no covil desse elemento, Kendrick, que domina essa
cidade praiana, Myrtle Beach, e tentar resgatar a moça, Virginia Kowalski,
que está sendo mantida refém, é isso?
Acenei afirmativamente.
— Mas o que o cara quer é que você se troque por ela, de acordo
com as mensagens que vem recebendo... Estou acompanhando? —
averiguou.
— Exatamente.
— O que não vai acontecer — Justin entrou na jogada. — Ailleen
quer chegar e bater à porta do idiota, alegando que está ali para ser trocada
pela moça. Mas não creio que essa seja a solução.
— Porra... eu também não. Esse cara está te atraindo para uma teia
de aranha — Scott emendou. — Se já não tiver feito algo pior com a moça, é
capaz de querer neutralizar você ali para mantê-la subjugada, Ailleen. Se ele
tem o poderio na cidade, por conta da família, como você afirma, não
sabemos se conta com homens de segurança ou qual o tipo de pessoas que
estão sob o seu serviço.
— Eu sei. E é por isso que Justin acha melhor que façamos tudo
como uma Operação de reconhecimento e resgate da vítima. A meta é
descobrir onde ela está sendo mantida e tentar retirá-la de lá.
— Se depararmos com o filho da puta no processo, fica abolida
nossa lei máxima de quanto menos tiros disparados, melhor — Justin disse de
modo sombrio. Olhei para ele imediatamente.
— Justin, eu já disse que não quero complicações nem pra você ou
para os caras.
— O Major deve saber o que está falando, boneca. E estamos
nessa, com certeza. O cara está com uma garota de 20 anos contra a vontade
dela? Foda-se. Vai comer terra. Se tiver feito algo mais? Então... não nos
responsabilizamos por um disparo acidental dos nossos rifles. Pode ter sido
um espasmo quando nossos dedos estavam posicionados no gatilho... nunca
se sabe — Teagan disse ao terminar de comer o sanduíche. Arremessou o
embrulho do mesmo, no cesto de lixo que ficava no outro canto do quarto.
— Quando iremos, Major? — Scott perguntou.
— Hoje mesmo podemos nos instalar em Myrtle Beach. Durante a
madrugada já faremos uma varredura de reconhecimento nas redondezas de
onde a mansão dos Evans está localizada — Justin disse. — E ainda há outra
coisa...
Abaixei a cabeça, pois sabia que aquela parte do meu passado teria
que ser revelada em algum momento. Ainda mais porque Teagan e Scott
estariam arriscando suas carreiras, se não suas vidas, por minha causa.
Aquele rolo épico era porque eu os envolvi mesmo sem que eles estivessem
sabendo.
— O pai de Ailleen é o Senador Jacob Anderson, e ao que parece,
teve sua cota de tortura recentemente pelas mãos, ou do próprio Kendrick, ou
de seus homens. O Senador e a esposa, a mãe de Ailleen — ele informou.
— Porra... — Scott disse, estendo-me a mão em um gesto de apoio.
— Mas não precisa sentir nenhuma espécie de empatia pelo casal
de filhos da puta, Scott. Os dois levaram, se não estiverem ainda levando, o
que mereceram. E receberão um castigo muito pior, porque a missão não se
estende somente aos Evans.
— O quê? — Aquela pergunta quem fez fui eu.
— Não se mata a cobra sem destruir o ninho. Kendrick pode ser
nosso alvo principal, mas tudo começou da residência dos Anderson — ele
disse olhando diretamente para mim, pedindo minha permissão. Tivemos um
embate silencioso apenas com o olhar antes que eu acenasse afirmativamente
com a cabeça. — Há cinco anos os pais de Ailleen alimentaram a obsessão da
pior forma que vocês podem imaginar.
— O que eles fizeram, Ailleen? — Teagan, sempre brincalhão,
perguntou agora com um tom sério.
— Os pais dela a venderam a Kendrick Evans.
— O quê? — Scott perguntou chocado.
— Você está de brincadeira? — Teagan questionou.
— Não. Por um milhão de dólares. O filho da puta abusou
fisicamente de Ailleen na noite de formatura, alegando que estava apenas
cobrando o prêmio que havia sido pago aos Anderson — Justin disse e me
abraçou. Eu estava tremendo agora. Olhava para baixo, com vergonha
daquele passado.
— Filhos da puta!
— Exatamente o meu pensamento — Scott emendou.
— Então, senhores... vejam lá. Há uma lição a ser dada aos Evans.
Tanto ao filho, quanto ao pai, Auburn Evans, que acobertou a doença do
psicopata e, além de custear, também esteve presente durante toda a transação
cinco anos atrás. Mas também faremos uma visita aos Anderson... porém —
Justin falou e levantou meu queixo para que eu o olhasse bem nos olhos —
vamos acertar as contas com o passado de Ailleen e vingá-la da forma que
somente os fodões de Operações Especiais podem fazer.
Quando ele disse aquilo, um sorriso sarcástico estava pairando em
seus lábios. No mínimo ele estava se referindo à minha sempre tão aclamada
idolatria aos Seals.
— Ooh-rah, Major — Teagan disse e bateu os punhos com Justin.
— Ooh-rah — Scott fez o mesmo e replicou o cumprimento.
Os três olharam para mim, como se estivessem à espera de algo.
— O quê?
— Estamos esperando você fazer o mesmo. É ou não companheira
de equipe? Fuzileira naval da Marinha Americana e que pode ostentar esse
título com orgulho? — Justin disse com um sorriso.
Senti meus lábios se esticando em um sorriso amplo e uma
sensação de profundo contentamento encheu meu peito.
— Ooh-rah! — gritei e bati as mãos com os caras.
Ali estava traçado o início de uma vingança que nunca almejei.
Mas que ante as circunstâncias, não poderia passar incólume porque agora
Kendrick não tentava afetar apenas a minha vida, mas de pessoas totalmente
inocentes que foram inseridas no meio da sua loucura.
Aprender a se misturar com a natureza era mais complexo do que
poderíamos imaginar. Enquanto aprendia tudo o que podia com Justin, desde
as técnicas mais sutis, eu apenas me deleitava em observá-lo em ação. Podia
entender a razão de o homem ser chamado de Ghost¸ quando serviu nas
forças especiais. E eu estava tentando aprender a me tornar um fantasma
perfeito como ele. A forma como se movia, sem fazer ruído algum era
simplesmente fabulosa.
Por duas vezes quando estávamos no hotel – não em Myrtle Beach,
mas em uma pequena cidade quinze minutos antes de chegar à cidade
litorânea –, Justin me surpreendeu por trás, quase fazendo com que eu
desmaiasse de susto. E ali estava uma das muitas razões pelas quais ele era
chamado pela alcunha que conquistou. Justin só não atravessava paredes, mas
sabia ser furtivo e silencioso. E tremendamente assustador.
Eu estava parada à sua frente naquele instante, com nossos olhos
conectados firmemente enquanto ele passava a tinta para recobrir meu rosto
de preto. Como estaríamos vestidos de preto, mas sem nossos uniformes
camuflados habituais, Justin achava importante que tentássemos esconder o
máximo possível de pele. Ainda mais por conta do brilho que a pele atraía
ante súbita claridade, por exemplo.
— Você fica sexy com o rosto camuflado, já disse isso? — falou
com a voz rouca.
— Não.
— Não sei porque no dia em que saiu para a missão na Síria, você
já não saiu do porta-aviões com a camuflagem no rosto — continuou dizendo
enquanto os dedos pichavam minhas bochechas em uma carícia discreta.
— Foi falha minha, Major. Eu estava nervosa. Seus fuzileiros me
fizeram corrigir no helicóptero.
— Por que você insiste em sempre classificar apenas os homens
como “meus fuzileiros” e nunca você? — perguntou com a cabeça inclinada.
Dei de ombros.
— Acho que me referi aos caras especiais — brinquei.
— Você é tão especial quanto eles — falou e encostou a testa
contra a minha. Já que ele também estava com a pele coberta de tinta, não
importava que eu fosse lhe transmitir um pouco mais.
— Mas não sou das forças especiais, Major. Isso o que quis dizer.
E nunca tinha saído a campo. Então, faltou-me experiência.
— Agora você a tem de sobra, certo? — disse aquilo e me abraçou,
enlaçando os dedos na parte baixa das minhas costas.
— Bom, estou sendo treinada pelo melhor dos melhores... posso
não levar o título oficial, mas vou poder guardar esse momento pra sempre —
falei com sinceridade.
— Bom. Mas quero que se lembre de uma coisa muito importante
— disse e me puxou mais firmemente contra seu corpo. — Não se coloque
em risco desnecessário. Sempre se mantenha ao lado ou atrás de um de nós e
pelo amor de Deus, não desobedeça às ordens que forem dadas.
— Isso é o Major falando ou o Justin? — perguntei com a
sobrancelha arqueada.
— No momento um pouco dos dois, mas o que domina
principalmente é o homem preocupado com a sua segurança.
Bati continência para o meu Major. Que por sinal, ficava
simplesmente devastador vestido todo de preto nos trajes militares dedicados
às forças especiais quando não estavam atuando em áreas militares.
Teagan e Scott bateram à porta do quarto conjugado e entraram
sem esperar pela permissão.
— Os pombinhos estão prontos? — Teagan perguntou. — São
exatamente 3 horas da manhã. Um horário mais do que perfeito para
entrarmos de maneira sorrateira na área ao redor da mansão dos Evans. Fora
que já estamos meio que... hum... paramentados. Logo, acho que chamaremos
pouca atenção se sairmos agora.
Justin me soltou e pegou o enorme agasalho de moletom.
— Vista e puxe o capuz sobre a cabeça.
Ele fez o mesmo com um moletom da Universidade da Carolina do
Sul. Com o capuz cobrindo nossos rostos, ninguém se atentaria para o fato de
que estávamos “cobertos” pelo piche negro para nos misturar na noite.
Teagan e Scott estavam vestidos de forma igual, sendo que ambos
carregavam uma mochila nas costas.
Justin colocou uma pistola no cós da calça, conferiu se a outra
estava devidamente posicionada no coldre na lateral da coxa e apertou os
cadarços dos coturnos.
Quando levantou, puxou as partes que separavam meu agasalho e
fechou o zíper.
— Sua pistola está preparada?
— Sim, senhor.
— Ótimo — disse e pegou a mochila em cima da cama. — Vamos
ver se acabamos com uma parte dessa merda logo.
Saiu segurando minha mão, enquanto Teagan e Scott nos seguiam,
todos de cabeças baixas.
Entramos na SUV que Justin alugou para que ficasse diferenciado
do Jeep.
Além de estarmos em uma cidade de interior, mesmo que litorânea,
que atraía muitos turistas, Myrtle Beach era pequena e seguia as regras das
cidades interioranas. Logo, às três da manhã, tudo estava deserto. Sair do
hotel em que estávamos foi fácil, pegar a estrada e chegar sem sermos
notados foi absolutamente tranquilo.
Quando chegamos à área privilegiada onde a mansão de Kendrick
Evans se situava, Justin desligou os faróis do SUV e encostou o carro na
beira da estrada, antes que ficasse à vista dos portões.
Escorou os braços sobre o volante, olhando para frente. Teagan e
Scott se inclinaram no espaço ínfimo entre os bancos dianteiros e os traseiros.
— A propriedade é cercada apenas por um muro de dois metros de
altura. Os portões são protegidos pela câmera de segurança, mas o perímetro
não é guardado — Justin falou, ainda olhando adiante.
— Parece que a fama de cidade pequena com baixo índice de
violência não o impediu de cercar tudo, mas ainda fez com que aliviasse com
a quantidade de guardas — Scott informou.
— Se contornarmos pela área do bosque, pode ser que consigamos
escalar o muro e ter uma visão mais ampla da casa — Teagan completou,
apontando. — Parece haver uma clareira naquela parte que é aberta para uma
praia particular.
— Isso mesmo. A família Evans cercou uma parte da praia pública
como se fosse deles — falei, lembrando-me da época em que todos na cidade
ficaram impedidos de frequentar determinado ponto da praia.
— Então é por lá que vamos chegar e averiguar os pontos de
entrada e abordagem. O ideal seria que soubéssemos a posição de cada
cômodo, mas nem tudo é perfeito nessa vida e não estamos em um filme de
Hollywood, logo... será como um tiro no escuro.
— Sou ótimo com tiros certeiros no escuro, no claro, de perto, de
longe. Basta que meu bebê esteja calibrado — Teagan disse rindo.
Olhei para trás e o vi já com sua mochila a postos.
— Então, senhores. A hora é agora. Todos estão com os fones de
ouvido? — Justin perguntou tirando o casaco de moletom e me olhando
dando a dica para que fizesse o mesmo. Teagan e Scott já tinham tirado o
deles.
Depois de arrancar o casaco, ajeitei o fone que usava no ouvido
direito e estranhei. Nunca tinha usado um daqueles antes. Senti meu coração
bater fortemente no peito e podia jurar que o ouvia no dispositivo pequenino
inserido na cavidade auricular.
Justin abriu a porta saindo do carro e todos nós fizemos o mesmo.
Ele apenas acenou com dois dedos acima da cabeça e um punho
erguido para que seguíssemos pela costa arborizada. Mais à frente, as árvores
se abriam em uma clareira que mostrava o muro ao redor da casa.
O que Kendrick não imaginou era que mesmo que a mansão
estivesse cercada por um lado, pela frente, a que dava vista à praia, daria para
entrar. Por mais que não estivéssemos entrando pelo mar, como uma maldita
operação anfíbia, eu estava cercada de homens poderosos que sabiam fazer
isso com a mesma facilidade que uma criança chupava um pirulito.
Então quando chegamos ao final do muro e descemos a encosta de
pedras, deparando-nos com a faixa de areia que provavelmente ficava para a
parte dos fundos da mansão, pude ver os sorrisos nos rostos dos três. Pra quê
pintaram os rostos se deixaram os dentes brancos à mostra ao luar? Pensei
com um sorriso.
Justin sinalizou para que agachássemos logo atrás de uma imensa
pedra, enquanto tirou a mochila das costas, puxando o rifle M14 e montando
o escopo, bem como averiguando a mira. Em seguida retirou os óculos de
visão noturna e entregou para Teagan.
— Você vai encontrar uma posição perfeita e ficar a postos com
sua habilidade sniper. Entendeu? — orientou.
Teagan já tinha montado, em tempo recorde, o rifle M39, uma
versão mais arrojada do M14 que usávamos como fuzil de escolha.
— Pare de olhar para o tamanho do meu rifle, querida. Seu homem
pode ficar enciumado — zombou, piscando.
— Cale a boca, Teagan — Justin brigou e seu tom não era de
brincadeira. Isso não impediu Teagan de rir.
— Perdão, Major. Foi mais forte que eu. Mas veja o olhar de
cobiça que sua garota está dando para o meu... rifle...
— Teag — Scott deu um tapa na cabeça do amigo —, você quer
morrer, porra?
Homens são criaturas impressionantes. Conseguiam extrair uma
brincadeira até mesmo num momento tenso como aquele. Mas foi o
suficiente para que eu risse. E sentisse meu coração desacelerar um pouco.
— Ailleen, o tempo todo atrás de mim e Scott, okay? — Justin
orientou.
— Sim, senhor.
Justin ainda passou os olhos, e não obstante, as mãos, pela estrutura
do meu Kevlar para ver se estava ajustado devidamente.
Quando estávamos prontos, nos levantamos e entramos na
propriedade de Kendrick Evans pela parte dos fundos. Passamos pela área
com palmeiras e coqueiros mesclados a distintos tipos de plantas que ficavam
de frente a uma piscina de fundo infinito. O ruído das ondas do mar se
quebrando atrás de nós tentava competir com o ribombar do meu coração no
peito.
— Teagan — Justin chamou baixinho —, consegue ver as duas
janelas do segundo piso?
— Sim.
— E o telhado da casa da piscina? Qual a distância?
— Distância suficiente para dar um tiro limpo e ainda conseguir
lixar as unhas, senhor — respondeu com um sorriso.
— Scott, fique na retaguarda da Ailleen — disse com o tom sério.
— Teag, se posicione.
Teagan se afastou da nossa formação naquele momento e apenas vi
sua sombra escalando o telhado da casa da piscina. Em menos de dois
minutos ele estava deitado de bruços.
— Há um homem na porta de trás. Segurança — Justin informou
pelo fone. — Teag. Consegue vê-lo?
— Sim, senhor.
— Tiro limpo. Agora.
Apenas um zumbido e ouvimos a voz de Teagan logo após:
— Abatido. Caminho livre.
Chegamos à área dos fundos e vi o corpo estendido agora em uma
piscina de sangue se formando logo abaixo.
— Não olhe — Justin disse apenas.
Forçando a maçaneta, ele percebeu que estava destrancada e abriu
para que entrássemos.
Estávamos em uma espécie de área de empregados da imensa
mansão.
Quando caminhamos para o interior da casa, fomos notando que
tudo estava mais do que silencioso. A maior parte da residência estava com
as luzes apagadas. Então entendi porque Justin conseguia se guiar com
tamanha precisão. Estava usando os mesmos óculos que tinha entregado para
Teagan.
A cada corredor que passávamos, Justin se recostava e eu espelhava
seus movimentos.
— Outro alvo abatido, senhor. Lateral esquerda da casa.
— Mais algum segurança noturno?
— Não.
— Okay.
Passamos por uma escada e entramos no que parecia ser a área
principal da mansão. Ali seria nosso grande problema. Onde mais
precisamente ele poderia estar mantendo a menina?
— Qual você acha que pode ser o quarto principal, Scott? — Justin
perguntou baixinho.
— Estou apostando que o das portas douradas, senhor — disse e
reparei no quarto ao final do corredor.
— Mas o aposento do pai ou o filho? — perguntou.
— Bom, se pegarmos um, acha que vamos atrair o outro?
— Possivelmente. Porque o ideal era que soubéssemos onde ele
mantém a garota, mas como vamos testar todas as portas? — Scott
perguntou.
— O problema não é esse. E se ele tiver alguma espécie de porão?
Aí estamos fodidos. Esta é a razão para que peguemos a cobra para extrair o
veneno. Depois cortamos a cabeça fora — disse.
Eu apenas observava atentamente o diálogo sussurrado dos dois.
— Justin? — chamei baixinho.
— O quê?
— E se antes de chegarmos até lá, fôssemos abrindo as portas pelo
caminho? Vai que por uma eventualidade ele a tenha mantido aqui em cima,
para disfarçar com os criados, como se ela fosse uma convidada e não uma
refém?
Embora eu tivesse me sentido meio estúpida por sugerir aquilo, e
soubesse que eles eram muito mais experientes, sabia que meus instintos
apontavam para tentar aquela alternativa.
— Okay. Até a porta ao final do corredor, temos três portas de cada
lado. Scott, você cobre a direita e eu Ailleen cobrimos as da esquerda.
Eu seguia Justin que estava muito mais paramentado do que eu.
Scott também usava os óculos que lhe permitiam enxergar mesmo no escuro.
A primeira porta dava para um pequeno escritório. Estava tudo
limpo ali.
A segunda porta era um quarto de hóspedes, também deserto.
— Major? — Scott chamou pelo fone de ouvido.
— Sim?
— Último quarto da direita.
Saímos silenciosamente do aposento em que estávamos e nos
encaminhamos para o que Scott indicara.
Em cima da cama havia um vestido de noiva disposto e alinhado
como se estivesse à espera de alguém para vesti-lo.
Um bilhete pairava ao lado.
Justin olhou para mim e sinalizou com a cabeça, ainda com o rifle
em punho, protegendo a retaguarda, para que eu me aproximasse e pegasse o
papel.
Estou te esperando em nosso ninho de amor. Você sabe muito bem o local.
— Filho da mãe — falei de uma vez. — Ele está no meu antigo
quarto, na casa dos meus pais.
O tempo que levamos na mansão dos Evans levou entre vinte a
vinte e cinco minutos. E agora tínhamos dois corpos dos seguranças nas
costas. Foram abatidos pela pontaria sniper de Teagan quando ele os
identificou como possíveis ameaças.
Justin disse que devíamos partir enquanto ainda era madrugada
para a casa dos meus pais. Já passava das quatro agora.
Ali estava o ninho das cobras todo reunido, já que conferimos que
nem mesmo o pai de Kendrick se encontrava na mansão. Das duas uma: ou
ele não se encontrava na cidade, ou estava protegendo as costas do filho. O
que eu acreditava piamente.
Saímos pelo mesmo lugar que entramos, voltamos ainda protegidos
pela madrugada densa, agora com a presença de uma garoa fina, e finalmente
chegamos ao carro.
Teagan desmontou o rifle dentro do carro, em um silêncio
incomum.
Scott checava alguma coisa no celular e eu acompanhava a
paisagem pela janela.
Senti a mão de Justin, bem como a aspereza da luva tática, mas os
dedos se entrelaçaram aos meus na medida em que foi possível.
— Pense pelo lado positivo — disse. — Se tudo der certo,
resolveremos as duas pendências de uma só vez.
— A parte boa é que agora temos como conhecer o perímetro e a
disposição dos cômodos, bem como por onde poderemos entrar sem sermos
detectados — Scott disse.
— Podemos usar a entrada de serviço, ligada à cozinha. Mas... a
única coisa que gostaria de pedir é que... não façam nada a Emma. Ali dentro
daquela casa ela foi a única pessoa com quem pude contar — falei de maneira
tímida.
— Mesmo quando tudo aconteceu? — Justin perguntou com
irritação na voz.
— Não. Quando tudo aconteceu, Emma estava recolhida nos seus
aposentos já. Ela me viu ir embora. Soube apenas naquele momento que algo
havia acontecido. Mas nunca expus a verdade. É a única coisa que peço.
Minhas lembranças de infância estão ligadas somente à presença
confortadora dela depois que perdi meu avô.
Os três homens assentiram brevemente e o silêncio dominou o
carro outra vez.
Era como se eu estivesse vivendo a mesma noite cinco anos atrás,
de forma reversa. Mas ao contrário de partir como fiz naquela madrugada
fria, agora eu estava voltando para casa, de forma furtiva e para trazer um
acerto de contas não intencional com o homem que pensei nunca mais
encontrar na vida.
Quando chegamos ao portão, mostrei para Justin a pequena estrada
de chão onde poderia entrar com o carro e deixá-lo camuflado.
Descemos e percorremos a estreita trilha que levava a uma parte
murada da minha antiga casa. A altura não chegava a dois metros.
— Teagan, faça o reconhecimento da área por cima — Justin
ordenou e imediatamente Teagan abriu a mochila e montou o rifle, passando
a corda pelo pescoço, subindo o muro como se fosse um maldito gato. Okay,
o cara devia fazer Parkour. Era a única explicação.
Como eu estava encarando, Teagan olhou por cima do ombro
quando já se encontrava agachado em cima da estrutura de tijolos e deu uma
piscada, dizendo:
— Tenho certeza que depois de hoje os Seals vão deixar de ilustrar
seus sonhos, boneca. Somos RECONs fodões — brincou.
Disfarcei uma risada e ganhei um olhar enviesado de Justin e um
tapinha no ombro de Scott.
Teagan pulou o muro e cinco minutos depois sua voz chegou até
nós pelo fone:
— Major, área limpa. Opsie... dois alvos abatidos sem querer. Ah,
não. Não foi sem querer, não. Um deles teve a audácia de sacar uma arma
na minha cara. Filho da puta — resmungou.
Escutamos mais um xingamento e um silvo. O que significava que
mais um tiro havia sido dado.
— Mais um segurança. Parece que agora, sim, estavam
protegendo o forte, senhor.
— Só não imaginavam do quê, não é mesmo? — Justin disse com
ironia.
Scott fez um apoio com as mãos e indicou que eu devia subir.
Escalei o muro e passei uma perna primeiro, em seguida a outra,
quisera eu ter a desenvoltura e o charme atlético de Teagan, mas saltei com
agilidade para o outro lado. Aterrissei como um gato e me mantive nessa
posição enquanto aguardava Justin e Scott.
Menos de trinta segundos depois, os dois me ladeavam no chão.
— Vamos — Justin ordenou, estendendo a mão.
Nesse momento, posicionei a minha pistola na mão. Mesmo
trêmula.
Indiquei com um dedo a entrada dos fundos.
A porta estava trancada, como eu sabia que Emma faria. Justin
testou a janela lateral e percebeu que a mesma abria facilmente.
— Eu posso passar pela janela e abrir a porta — ofereci.
Os dois acenaram e pulei rapidamente.
Abri a porta e entramos, nos escondendo na despensa.
— Teagan?
— Sim, senhor?
— Onde você está?
— Não há uma área alta onde eu possa me posicionar para focar
um alvo à distância, senhor. Estou tentando avistar um local no perímetro
que me dê acesso à casa com tiro limpo para uma possível fuga.
— Preciso que fique a postos. Onde é seu quarto, Ailleen? — Justin
perguntou.
— Segunda janela da frente à esquerda. Há uma varanda de acesso
— eu disse.
— Teagan, ouviu?
— Sim, senhor. Vou tentar achar uma posição e informo assim que
estiver de guarda. De qualquer forma, qualquer alvo móvel do lado externo
será devidamente abatido, bem como os que estiverem à vista pelas janelas
frontais.
— Ótimo.
Scott tinha saído da cozinha por um momento para averiguar a
área.
— Major, a luz do que parece ser um escritório à esquerda da
escadaria encontra-se acesa.
— Teag?
— Sim, senhor.
— Consegue ver a janela frontal do primeiro piso, à esquerda?
— Vagamente. Dá pra perceber que há duas silhuetas dentro,
senhor. A cortina está fechada.
— Será que são meus pais? — perguntei com o coração nas mãos.
— Seu pai, garanto. Mas o outro, aposto minhas bolas como é o pai
de Kendrick Evans — Justin falou.
Possivelmente, ele estava certo. Eu não tinha pensado naquilo. Mas
onde estaria minha mãe? E a pergunta mais estranha de todas, para a qual não
tínhamos uma resposta adequada: por que raios o Sr. Evans estava na casa
dos meus pais no meio da madrugada?
— Resta saber agora onde abordaremos primeiro... — Justin disse.
— Senhor, se me permite a opinião... eliminemos os filhos da puta
do piso inferior antes de tudo, depois podemos nos divertir com o filho da
puta-mor — Scott disse de maneira sombria.
— Ailleen, fique atrás e não faça nada impensado, entendeu? —
Justin olhou diretamente em meus olhos.
— Sim, senhor.
Seguimos em direção ao escritório do meu pai. O mesmo escritório
onde cinco anos atrás minha vida fora negociada de forma tão fria e o acerto
fora encerrado com um aperto de mãos.
Justin se posicionou de um lado da porta e Scott do outro. Eu fiquei
atrás do Major, recostada à parede. Naquele momento, Emma apareceu
completamente abatida. Quando nos viu, ela colocou a mão na boca, como se
fosse gritar, mas coloquei o dedo na boca, pedindo que ficasse em silêncio.
Não podia garantir que me reconhecesse nos trajes em que eu estava, muito
menos com o rosto coberto de tinta preta, mas esperava que ela entendesse
que estávamos ali para ajudar. Bem, ao menos quem merecia ser ajudado.
Não era possível que Emma estivesse em conluio com aquela corja.
O que só poderia significar que estava sendo mantida sob o mesmo cerco
vigilante e forçada a fazer o que eles mandavam.
Ela acenou afirmativamente e voltou para a cozinha.
Justin fez sinal com dois dedos e um punho cerrado para Scott. Os
dois entraram simultaneamente com as armas em mãos. Os homens dentro do
escritório nem ao menos tiveram tempo de reagir.
Meu pai estava tomando um copo de uísque na companhia do pai
de Kendrick. Seu rosto mostrava os sinais do abuso que sofrera nas mãos do
Evans mais jovem, e seus olhos mostravam claramente o quanto estava
assombrado com a intromissão.
Auburn Evans largou o copo no chão e tentou sacar a arma que
levava dentro do terno, mas Scott foi mais rápido e apenas disparou contra
seu ombro. Ops... Um tiro daquela distância com um M14, definitivamente, o
deixaria se esvaindo em sangue, se não tivesse arrancado a articulação do
lugar, pela posição do impacto.
O grito de dor encheu o ambiente.
— Aconselho-o a ficar calado se não quiser receber a mesma
cortesia, senador Anderson — Justin disse quando meu pai fez menção de se
levantar.
— Quem são vocês? — ele perguntou atemorizado.
— Oficial Anderson? Venha aqui, por favor — Justin chamou e saí
de trás de sua figura imponente.
Meu pai arregalou os olhos em choque e pavor. Se ele tinha
esperança de que fosse alguma operação do Governo para salvá-lo, como um
senador dos Estados Unidos, agora ele certamente perdeu as esperanças,
porque quando Kendrick começou a fazer suas ameaças com as torturas
infringidas a eles, fiz questão de dizer o que ele deveria fazer com elas. Ou
seja, deixei bem claro que se dependesse de mim, não seria eu que me
moveria para ajudá-lo da merda em que se enfiara.
— Fi-filhinha... vo-você... você?
— Sua filha? Sua filha é da porra da Marinha, Jacob? — Auburn
perguntou gemendo de dor. — O tempo todo tínhamos um gancho e nunca o
usamos porque você não nos informou?
— Cala a boca! — meu pai gritou. Franzi o cenho porque nem eu
estava entendendo agora a discussão em andamento.
— Talvez você queira falar para sua filha a merda em que está
enfiado até o pescoço, Senador? — Justin atiçou.
— Eu-eu... não sei do que está falando. — disse e tentou se
levantar.
— Oh-oh... melhor ficar sentadinho, bem quietinho aí. Ou sua
situação chegará a um nível insustentável. Sabe o que me enoja? Não
conseguir definir o que é pior... estar diante de um homem sem moral por ter
vendido a própria filha, ou de um homem que faz isso como meio de vida,
usando a bandeira dos Estados Unidos como cobertura para seus crimes.
Olhei chocada do meu pai para Justin.
— Auburn Evans e você fazem parte da pior estirpe de homens no
Planeta e vou dizer... não me dói em momento algum a consciência, ter a
chance de limpar a sociedade da presença de vocês...
— Você não pode fazer isso... eu sou um senador dos Estados
Unidos...
— E que está com uma lista de crimes tão longa que chego a ficar
assombrado por nunca ter sido detectado antes — Justin continuou dizendo.
— Mas confesso que não consigo escolher qual lado da justiça devo optar... a
das minhas próprias mãos, ou a da corte.
— Eu digo que ele merecia enfeitar os roxos que estão adornando o
rosto ainda — Scott disse.
— Não. Meu pai não vale isso, Justin — tentei intervir
rapidamente.
Justin virou-se para mim e chegou perto de Auburn Evans, parando
à sua frente. Colocou o rifle pendurado no ombro e o puxou para seus
próprios pés. O homem gemeu de dor.
— Criou um sociopata filho da puta porque você não passa de um,
não é mesmo? Não respeita as mulheres porque acha que elas são mercadoria
e devem ser comercializadas, é isso?
Eu podia ver o ódio irradiando de Justin e o medo vibrando do
Evans mais velho.
— Você não sabe de nada! Ou melhor, está cavando a própria cova,
com essa ação impensada! Acha que pode interferir em algo que até mesmo
alguns membros da sua corporação quiseram tomar parte?
Sem dar chance a qualquer coisa, Justin começou a bater no
homem com os próprios punhos, liberando a fúria reprimida que deixava
transparecer apenas quando tocava no assunto.
Com a ferida da bala de Scott no ombro e a surra épica que estava
levando de Justin, não levou muito tempo para que o homem ficasse rendido
no chão, como uma massa disforme e quase irreconhecível.
— Me perdoe, Ailleen — Justin disse agachado à frente do homem.
— Pe-pelo quê?
O som do “crack” mostrou exatamente qual havia sido o motivo do
pedido de perdão. Fechei os olhos.
Sim, eu podia ter treinamento militar. Sim, eu podia ter enfrentado
a merda aterradora que enfrentei e posso já ter visto muito mais feiuras pela
escolha de profissão que fiz, mas ainda assim, o ruído da morte era algo que
não descia bem em meu estômago.
Não era algo que eu poderia dizer que “tudo bem, Justin... agora
vamos ali tomar um suco”, ou “Nossa... esse ruído foi o pescoço dele se
quebrando? Achei que fosse minha unha?”.
Então mantive os olhos fechados e só os abri quando senti os lábios
quentes contra minha testa.
— Sinto muito, querida. Há pontas soltas que não posso deixar.
E com aquilo eu entendia que meu pai era uma delas.
Possivelmente.
— Scott, amarre bem o senador, amordace e deixe aqui pensando
um pouco na vida. Ah... — Justin disse e antes de se afastar pegou a pistola
no coldre lateral à coxa e posicionou contra o joelho do meu pai. — Só para
garantir que você sangre um pouco e não tenha condição alguma de sair de
onde vamos deixá-lo pensando na lista de crimes que cometeu — disse e
atirou.
O som fez com que eu pulasse e me virasse de costas. Saí do
escritório, sentindo náuseas, mas me recusando a me condoer por um homem
que havia me usado como moeda de troca em um de seus muitos negócios.
Senti a presença de Justin às minhas costas, bem como sua mão em
meu ombro.
— Guie-nos até o seu quarto — disse com a voz dura.
Scott seguiu logo atrás.
Subimos a escada em silêncio. Os dois com os rifles apontados.
Quando chegamos ao corredor, um homem que estava dormindo sentado à
porta do meu quarto, não teve tempo de reação. Talvez o fato de não estar
vigilante explicasse o porquê não percebeu a movimentação ou os som dos
disparos no piso inferior. O tiro na têmpora foi certeiro. Nem chegou a cair
da cadeira onde se encontrava. Scott realmente tinha a pontaria excelente.
— Entrada sutil ou brusca? — Justin perguntou olhando de mim
para Scott.
— Voto pela brusca com portas voando — a voz de Teagan se fez
ouvir nos fones de ouvido.
Senti vontade de rir, mas me contive.
— Posso? — perguntei.
— Claro que não — Justin respondeu irritado. — Não sabemos o
que esperar, Ailleen. E se ele alvejar você assim que entrar?
— Pelo tanto de esforço que ele empregou em me trazer até aqui,
Justin... você realmente acha que ele iria querer estragar a mercadoria? —
caçoei com consternação.
Antes que ele falasse algo mais, limpei a tinta que ainda sobrara no
meu rosto, agora que não estávamos em uma operação fantasma e sim
completamente aparentes. Nossa presença já tinha sido detectada.
Limpei as mãos na calça preta, sentindo um momento fútil de
imaginar que ainda bem que o tecido era escuro e não mostraria as manchas
negras do resquício da tinta.
Soltei o cabelo e passei as mãos pelos fios, arrumando tudo. Tentei
trazer à tona a imagem da garota feminina que Kendrick tanto queria, então
nada melhor do que confundi-lo com a ilusão do que ele achava que eu ainda
era, com o que realmente sou.
Justin praguejou por entre os dentes, mas me puxou para o calor de
seus braços. O abraço foi tão apertado que por um momento temi que meus
ossos fossem se partir ao meio.
— Eu... eu — ele começou a dizer, mas se interrompeu. — Porra...
Dei um beijo rápido em sua boca e abri a porta do meu quarto. O
mesmo que foi a origem dos meus pesadelos anos atrás e agora guardava o
desfecho de todo o meu tormento.

— Achei que nunca fosse chegar, querida — Kendrick disse de


onde estava sentado no canto do quarto.
Olhei ao redor e vi a garota deitada, adormecida, ou assim parecia,
com os pés e mãos amarrados nas colunas de ferro fundido da cama.
— Bom, bom... gosto de vê-la mais feminina, não nessas roupas
horrendas, mas podemos corrigir isso. Creio que viu o vestido de noiva
maravilhoso que deixei preparado pra você, não é? — perguntou com um
sorriso de escárnio.
Pelo canto do olho percebi que nem Justin, nem Scott tinham
entrado no quarto. Os dois estavam sondando a abordagem.
Ouvi um gemido e vi minha mãe no canto, recostada à porta de
entrada do closet, com a boca amordaçada e os membros amarrados. O rosto
mostrava os maus tratos que sofrera nos últimos dias.
— Precisava de tudo isso, Kendrick? — perguntei com nojo. — Por
quê?
— Porque ninguém me faz de besta. Absolutamente ninguém —
ele disse com ódio.
— Você estuprou essa moça? — inquiri. Estava com medo da
resposta.
— Não. Estava à sua espera, meu amor. Tive muitas mulheres ao
longo dos anos para suprir o vazio que você deixou, mas desde que a vi,
nenhuma mais foi capaz de apagar sua memória — disse. Seus olhos estavam
completamente vítreos. Como se ele estivesse chapado.
— Não foi capaz de arranjar outra mulher por conta própria,
Kendrick? Alguma que realmente te quisesse?
— Ailleen, pare de provocá-lo — ouvi a voz séria de Teagan no
fone de ouvido.
— Digamos que você compôs um desafio, querida. O proibido é
sempre mais gostoso. A partir do momento em que se colocou como
intocável pra mim, isso fez com que eu me tornasse obcecado em fazê-la
minha — Kendrick disse e se levantou naquele momento. — E vamos
combinar... conquistar algo com um pouco de luta é maravilhoso... Ainda
guardo nas minhas lembranças aquela noite inesquecível.
Não consegui disfarçar a cara de nojo. Ele era repulsivo.
Ergui a arma diretamente contra ele.
— Não se aproxime de mim, Kendrick. Se você acha que vai
conseguir me tocar outra vez, está muito enganado — eu disse com ódio no
olhar.
— Ailleen... você não quer salvar sua mamãe? — perguntou com
zombaria.
Olhei para onde minha chorosa mãe implorava com os olhos que eu
a ajudasse. Não senti nada. Salvo o sentimento de pena.
— Eu disse pra você não se aproximar — falei, novamente.
Quando ele estava chegando mais perto, Justin e Scott irromperam
no quarto, apontando seus rifles diretamente para sua cabeça.
Kendrick mostrou pavor pela primeira vez.
O que indicava que ele não imaginava que eu pudesse ir
acompanhada de mais alguém.
— Achou que ela viria sozinha, seu filho da puta? Se você não
sabe, o lema da Marinha é que um companheiro nunca abandona o outro. E
se Ailleen tinha isso pra resolver, então nós estaríamos aqui por ela — Justin
disse com orgulho.
— Você tem a alternativa de se entregar e esquecer tudo isso,
Kendrick — menti descaradamente. Eu sabia que Justin nunca deixaria que
ele saísse dali vivo.
— Você é minha! Minha! Eu paguei por você! — ele gritou
ensandecido. — É meu direito tomar o que é meu!
— Eu não sou sua! Você tomou à força! — gritei de volta com
lágrimas nos olhos.
— Mas eu paguei!
— Você é louco! Ninguém pode comprar ninguém, seu merda! —
Eu continuava apontando a arma e sentia minha mão tremendo de maneira
frenética. — Eu não sou a porra de um objeto que você possa adquirir e
colocar na sua coleção!
— Você é minha!!!
Kendrick continuava batendo o pé e insistindo no argumento, e
num ato de desespero, pegou uma arma e apontou não para mim, mas para a
garota apagada na cama.
A única que havia me feito ir até ali. Se ele a matasse, então tudo
seria em vão.
— Por favor, me digam que esse filho da puta está diante da janela
e que não há ninguém à frente dele no ângulo de 45 graus a 90, com risco de
a bala ricochetear se tiver algo de madeira atrás. Não vai ser um tiro limpo,
mas vai atingi-lo em alguma parte. Consigo ver a silhueta, mas preciso que
saiam da trajetória — Teagan disse no fone.
Justin pegou meu cotovelo e me puxou para seu lado,
discretamente, enquanto Scott se aproximou do outro lado, olhando ao redor.
— Limpo — foi a única palavra que Justin disse baixinho.
O som do vidro estilhaçando foi tão repentino que acredito que eu
mesma gritei. O corpo de Kendrick convulsionou para frente caindo na cama,
exatamente em cima do corpo desfalecido da garota.
O gemido nos mostrava que não estava morto, apenas ferido.
Scott correu para arrancar a arma de sua mão e o tirou de cima de
Virginia Kowalski, jogando-o para o outro lado, e cortando as cordas que
mantinham os membros amarrados à cama, para tirá-la dali sem mais
delongas.
— Sua puta! — Kendrick gritou. — Tudo o que eu queria era me
casar com você... — disse se lamuriando. — Você só tinha que me querer.
Era simples assim.
A colcha começava a manchar com o sangue que derramava da
ferida do projétil de Teagan.
Cheguei à frente de Kendrick e olhei bem em seus olhos, dizendo:
— Ninguém pode obrigar o outro a devolver um sentimento dessa
forma, Kendrick. Ninguém pode tomar o que não te pertence. Você violou
meu corpo. Tomou algo que não foi oferecido. Era meu corpo. Meu coração.
Nunca seria seu. Nunca.
— Eu tenho o que sempre quero. Nunca vou parar. Eu paguei por
você. Vou destruir sua carreira, a desses merdas que estão com você, e a do
seu pai, vou fazê-la rastejar. Você só vai viver através de mim — disse
cuspindo sangue. Provavelmente Teagan tenha atingido um pulmão. — Meu
pai vai fazê-la pagar. Vou estuprar você um milhão de vezes, pra cada dólar
que paguei até completar a porra da quantia que gastei naquela noite...
— Não, você não vai.
Com aquilo eu fiz o impensável. Ergui a pistola que Justin tinha me
dado e eu mesma encerrei o assunto ali. Apenas um tiro entre os olhos. O
olhar de assombro de Kendrick nunca sairia da minha memória,
provavelmente assombraria meus sonhos por muitos anos. Não sei.
Possivelmente, agora sim, eu desenvolvesse a porcaria do estresse
pós-traumático tão temido pelo Major.
Eu havia tirado a vida de um homem. Em prol da minha. Para
manter a sanidade, a minha segurança, porque eu sabia que ele nunca pararia.
O nível de loucura que o fizera chegar onde estava era simplesmente fora da
normalidade de qualquer pessoa que eu já tenha conhecido ou mesmo
estudado. Talvez Kendrick se igualasse a todos os outros psicopatas
espalhados pela sociedade.
Abaixei a arma e a cabeça olhando para os padrões do carpete caro.
Senti a primeira lágrima ao mesmo tempo em que senti a presença
de Justin às minhas costas e sua mão quente firmando a minha que ainda
retinha a pistola Colt M45.
Ele a retirou da minha mão e a guardou, colocando-a longe do meu
alcance. Virou-me imediatamente em seus braços para me dar o consolo que
eu precisava.
Sim. Eu havia acabado de tirar a vida de um ser humano.
Os soluços sacudiram meu corpo sem que eu me desse conta.
— Acabou, meu amor — Justin disse e beijou minha cabeça.
Uma de suas mãos segurava firmemente toda a parte de trás da
minha nuca, em um aperto aconchegante e confortador. A outra me mantinha
apertada contra seu corpo forte.
— A moça está dopada, mas os sinais vitais estão estáveis — Scott
disse ao longe. Ele a havia posicionado na long chaise ao canto. — O que
faremos com sua mãe, Ailleen?
Aquilo me tirou do torpor onde havia me enfiado. Sequei as
lágrimas com as costas das mãos, mas ainda mantive o rosto enfiado no vão
do pescoço de Justin.
— Eu vou dizer a você o que vamos fazer com seus pais, okay? —
Justin disse em meu ouvido. — Vamos reuni-los no escritório e ali dar o
desfecho necessário para os crimes que eles vêm cometendo, tudo bem?
Apenas acenei com a cabeça.
Saí do quarto sem nem mesmo olhar na direção da mulher que
continuava chorando e clamando por atenção. Meu coração estava quebrado.
Minha alma estava ferida.
Talvez eu nunca mais voltasse a ser a mulher que já fui um dia.
Dizem que aquilo que não te mata te fortalece. Eu acreditava
naquela máxima. Mas também podia atestar que o que não te mata pode te
transformar em uma versão mais sombria de si mesma. Uma que você nunca
esperou encontrar.
Forjei meu espírito na Marinha. Fortaleci minhas seguranças e
moral na corporação. Eu havia crescido em um lar constituído de dinheiro,
mas destituído de amor. Porém aquilo nunca havia me transformado em
alguém amarga e que praticasse atos estúpidos, justificando tudo pela falta de
carinho dos pais.
Disciplina, foco e força eu tive dentro do quartel. Em cada lição,
exercício, cada implantação, cada norma que tive que seguir. Mas nem aquilo
me fez ver o mundo sob a ótica escura da podridão humana.
Meu estupro não havia me quebrado como mulher. Pode ter me
deixado em stand by¸ adormecida por um tempo, mas não matara os desejos
saudáveis que meu corpo foi preparado para sentir. E provei aquilo através
das mãos de Justin Bradshaw.
Mas agora eu tinha medo que um único tiro certeiro, decidido e
sem hesitar, fosse o responsável por me colocar em um abismo profundo de
autorrepulsa.
Eu não queria que Ailleen tivesse resolvido a situação com o seu
algoz com as próprias mãos. A bem da verdade, eu queria ter tido um
momento com aquele filho da puta, queria ter descarregado um pouco das
minhas frustrações e todo o ódio que ardia no meu peito, queria ter desfeito
aquele sorriso de escárnio e tirado aquele olhar insano de sua cara. Com meus
punhos. Eu queria ter sugado a vida dele, para que aquilo recaísse sobre a
minha consciência, muito mais endurecida e embrutecida pela vida que
escolhi e por tudo o que já vivenciei e já vi, ao longo da minha carreira como
RECON. Não queria aquilo para Ailleen.
Enquanto descíamos as escadas, com Scott fazendo guarda no
quarto onde a garota, Virginia, ainda estava desacordada, olhei para Ailleen,
que evitava o meu olhar, bem como evitava a presença da mãe, que eu levava
quase sendo carregada, dado seu estado geral.
— Aai-lleen... — a mulher tentava falar com a filha. — Obri-
brigada.
Ela realmente pensava que Ailleen havia ido em seu auxílio.
Segurei a resposta ácida que eu mesmo queria dar, porque aquilo não me
cabia, e observei que minha garota acelerava o passo para se afastar da
presença indesejável da mãe.
Quando chegamos ao andar inferior, entramos no escritório. O
mesmo onde deixamos o Senador em um estado um tanto quanto avariado.
Quando a mulher viu o marido, começou a chorar e só não saiu do
meu agarre porque não tinha forças.
— Jacob! — ela gritou.
O senador nem ao menos se dignou a olhar para a mulher, já que
gemia de dor por conta do tiro que levara no joelho, cortesia minha.
Soltei a harpia, e deixei que se reunisse ao marido ensanguentado
na cadeira.
Parei ao lado de Ailleen e coloquei meu braço sobre seus ombros.
— Você está bem? — perguntei baixinho.
— Sim. Não. Sei lá — respondeu e deu um sorriso fraco. Olhou
para mim de lado. — Vou ficar. Prometo.
— Sei que vai.
Peguei o celular e fiz a ligação que definiria o destino do Senador e
esposa. Naqueles dias que antecederam a missão, chegou ao nosso
conhecimento que havia um esquema orquestrado pelos Evans, Auburn
encabeçando, e o Senador, com um grupo de criminosos que vinha sendo
investigado há um bom tempo.
Uma máfia ou quadrilha de homens engravatados, ricos
empresários que haviam se associados em uma espécie de seita criminosa
envolvida com tráfico humano e prostituição. E o senador era uma das
cabeças organizacionais de todo o esquema sujo.
Mas o mais chocante de tudo aquilo? Havia um Tenente-coronel da
Marinha e um Capitão do Exército na lista de homens favorecidos pelo
esquema sujo e pérfido daqueles dois.
A ordem que partiu do Secretário de Defesa era que agíssemos em
conjunto com o FBI. Mas do modo militar. Enquanto o FBI chegaria com a
investigação e prenderia os suspeitos, colocando-os em um longo julgamento,
os oficiais de operações militares simplesmente tomavam conta do serviço e
resolviam da maneira que devia ser resolvida.
Era um perigo para a sociedade? Colocava em risco a civilidade do
país e da nação? Havia ferido direitos constitucionais de cidadãos
americanos, interferindo em sua liberdade? Seus atos poderiam representar
risco vicioso e conluio com organizações terroristas?
Desfecho? A morte.
Então ali estávamos nós. E eu me sentia entre a cruz e a espada. O
homem era um senador do Governo Americano. A tendência era que em
breve receberia ordem de prisão. Mas eu havia recebido uma ordem do meu
General, que havia partido do próprio Secretário de Defesa. E sob aprovação
do presidente da nação. Porém... o homem era o pai de Ailleen.
Onde aquilo me deixava?
— Faça contato com a médica, irmã da garota, Ailleen — orientei
enquanto aguardava a ligação completar. — Chame-a aqui com uma equipe
de paramédicos, ou peça que traga o irmão policial, mas apenas ele. Sem
alarde.
Ela acenou.
— Bradshaw? — o General falou do outro lado.
— General Stuart — cumprimentei com seriedade. — Uma cabeça
de cobra foi devidamente cortada, sem chance de regeneração ao corpo. Falta
uma, associada com a presença da fêmea viperina — disse em código, me
referindo à mãe de Ailleen.
— A mulher tem associação com o esquema?
— Considerando que no passado comercializou a própria filha,
como se fosse um mero par de sapatos, acredito que não seja completamente
inocente — afirmei, falando baixinho.
— Extraia todas as informações possíveis. Os Federais vão chegar
com um mandado de prisão que poderá levar anos e ser acobertado, ainda
mais pela imunidade política que o senador vai solicitar, com toda certeza —
ele disse. — Você sabe o que fazer. Há todo um teatro muito bem
orquestrado que pode ser desenvolvido para que tudo pareça um acerto de
contas entre os próprios membros da seita. A sua operação é extraoficial,
está pautada em sigilo absoluto, como uma operação fantasma, da forma que
me solicitou, então, você tem autorização para dar cabo e tocar fogo no
ninho de cobras, Major. Extermine esse ninho. A ordem do Presidente já
partiu para que um grupo de Seals cuide dos que estão ferindo as fileiras das
forças armadas.
— Sim, senhor.
— Não se preocupe com repercussões. Apenas faça.
— Sim, senhor — repeti.
Voltei para a sala e olhei bem nos olhos assustados do casal de
maus-caracteres que tinham trazido à vida uma pessoa tão diferente deles.
— Vocês sabem que não há esquema que fique oculto aos olhos do
Governo, não é? Uma hora ou outra, as investigações levam exatamente à
cabeça da operação — eu disse e vi quando o pai engoliu em seco.
— Não sei do que está fa-falando — gaguejou, gemendo de dor. —
Eu sou um senador dos Estados Unidos... exijo meus direitos. Preciso de
assistência mé-médica. Vo-você não vai servir ne-nem mesmo para li-limpar
latrina na base militar. Vou acabar co-com você — ameaçou.
— Jacob... — a mãe tentou apaziguar. Ela entendia que não
estavam em uma situação favorável.
Ailleen voltou para a sala naquele instante.
— Ailleen... minha filha. — A mulher tentou outra vez. — Você...
você nos perdoou?
Ela olhou atentamente para o casal à frente, sentados e despojados
de vergonha alguma na cara, já que imaginavam que um pedido de desculpas
como aquele seria suficiente. Com a cabeça inclinada para o lado, ela apenas
disse:
— Perdão é uma palavra com significado amplo e ao mesmo tempo
tão libertador quando executado, não é? — Suspirou e continuou: — Para
muitos pode ser um ato, simplesmente, quando exige muito mais do que isso.
Exige uma decisão interior para que a mente se liberte, para que a alma seja
curada. Eu poderia apenas falar “claro, perdoo”, virar as costas e sair daqui,
mas guardar a mágoa e o ressentimento de maneira eterna, que continuaria
crescendo como um musgo, uma hera venenosa dentro de mim. E acho que
foi isso que permiti que acontecesse ao longo desses cinco anos.
A mãe de Ailleen derramava lágrimas que para mim pareciam
fajutas. O pai a olhava consternado, mas mais preocupado com o fluxo de
sangue de sua ferida do que tudo.
— Eu perdoo, sim. Perdoo porque vou esquecer vocês. Porque
considero que perdoar é esquecer. E nesses cinco anos, por mais que tenha
me dedicado à vida militar, sempre que vocês me vinham à memória, traziam
a enxurrada de sentimentos perniciosos que senti naquela noite. Mas agora
perdoo. Porque não vou pensar mais em vocês. O que fizeram é mais do que
nojento. Não foi somente vender a mim, a própria filha. Foi vender as filhas
de outras pessoas. Comercializá-las como se fossem gado. Se eu tivesse
sabido disso antes, juro que não teria ficado em silêncio por tantos anos —
disse com ódio. — Meu Deus, eu tenho nojo de vocês. Tenho vergonha de ter
sido concebida por pessoas assim, mas provei para mim mesma que não é o
berço que forma o caráter. Não é o sangue que forma a moralidade. Podemos
compartilhar o mesmo sangue, mas nunca serei igual a vocês.
Caralho! Eu sentia um orgulho absurdo daquela mulher. Onde ela
encontrava força para superar a dor de “perder os pais” psicologicamente?
Porque era aquilo o que estava acontecendo. Mais uma vez. Ela já os havia
perdido. Na verdade, nunca os tivera. De acordo com tudo o que ela havia me
contado, Ailleen nunca recebera um grama de carinho e atenção. Fora,
meramente, um investimento.
Agora ela estava se “despedindo” novamente da ideia de que teve
pais tão imorais ao ponto de cometerem crimes contra a humanidade como o
que fizeram.
— Você co-continua sendo no-nossa filha — o pai rilhou entre os
dentes.
— O sangue não é nada. Sou um conjunto do seu espermatozoide
com o óvulo dessa mulher. Cresci e virei um ser humano. Eu tenho alma.
Tenho coração. E vocês, têm o quê?
Resolvi interferir naquele momento:
— Senador, o senhor não passará incólume pelos seus crimes.
Assim como Evans não passou, compreende onde quero chegar? — perguntei
e vi o entendimento em seus olhos. Ele sabia que eu o mataria. Eu só não
queria fazer aquilo na frente de Ailleen.
— Você não pode fazer nada contra o meu marido! E contra mim!
Nós fomos torturados pelos Evans! Eles nos obrigaram a tudo! Até mesmo
cinco anos atrás, Kendrick ameaçou acabar com a campanha de Jacob se não
entrássemos no negócio e se não fizéssemos o acordo com o pagamento dado
pela nossa filha como moeda de troca! — a mulher falou.
— Cale-se, Laurel! — Jacob Anderson gritou.
— Não, Jacob! Temos que arrumar essa situação! Eu não posso ser
presa! Não posso!
— Você vai responder como cúmplice. Levará um bom tempo na
cadeia, Sra. Anderson — falei com sarcasmo. Ela provavelmente seria
poupada, e talvez o castigo pior para tal dama de tamanha estirpe fosse
ostentar o macacão laranja das presidiárias. Fora a vergonha social. Ela seria
uma pária a partir daquele momento.
Uma agitação à porta tirou minha atenção do casal. Ailleen foi até a
entrada e viu Emma dando passagem para a médica e o irmão, policial Greg
Kowalski.
— Oh, meu Deus! Ailleen! Onde está minha irmã? — perguntou
desesperada.
— No quarto do andar superior, à esquerda. Ela está desacordada.
Sem ferimentos, apenas dopada — ela informou à médica.
— Não trouxe uma equipe, mas meu kit médico — afirmou. Ela
olhou para dentro da sala e viu o pai de Ailleen gemendo de dor. — Ele
precisa de atendimento?
— Não. Pode subir — respondi por ela.
Caminhei até a janela e abri a cortina de cetim claro que cobria o
vidro.
— Teagan? — chamei a atenção do meu Tenente, o segundo em
comando.
— Yeah, Major?
— Como está o perímetro?
— Limpo. Nenhuma movimentação. O sol já está começando a
querer fritar os meus miolos porque está nascendo. É uma vista linda.
Queria ter trazido meu celular para tirar uma selfie.
Revirei os olhos. O idiota não levava nada a sério.
O policial, irmão de Brenda Kowalski estava agachado junto ao
corpo de Auburn Evans, conversando com Ailleen.
Olhei para trás em tempo de ver a mãe dela, covardemente
entregando uma arma para o pai, que agora erguia para as costas da filha.
Meu assombro não foi razão suficiente para que ficasse estático,
vendo a vida da minha mulher em perigo. Com um simples manejar da minha
pistola, mirei o pescoço de Jacob Anderson, imaginando que infelizmente,
pela posição em que a mulher estava, ela receberia de brinde a mesma bala
seguindo em uma trajetória linear. Seria como matar dois filhos da puta com
um projétil só.
E foi o que eu fiz. Infelizmente não a tempo suficiente do dedo no
gatilho do Senador não disparar contra Ailleen, pegando-a de surpresa.
— Nããooo! — gritei quando vi seu corpo ser arremessado para
frente, sendo amparado por Greg Kowalski.
Cheguei em tempo recorde, tirando-a dos braços do policial que
olhava tudo sem entender nada, e virando-a para mim.
— Ailleen... Ailleen...
— Ailleen! Meu amor! — Justin me chamava, mas eu apenas
gemia em resposta. — Fale comigo, por favor.
— Aaaah... essa porra dói pra caralho — resmunguei.
O som de sua risada chegou aos meus ouvidos como música. Okay.
Vamos retroceder a cena para que minha memória faça um flashback de tudo
o que havia acontecido.
Eu estava dando informações ao policial.
Ouvi um assovio e estampido indicando que uma arma havia sido
disparada.
Não tive tempo de reagir, acho que voei para os braços do policial
como uma coreografia medonha de um balé amador.
Justin me pegou em desespero e agora estava arrancando as minhas
roupas táticas. Não no bom sentido de arrancar as roupas para um momento
ardente. Mas ele estava conferindo o colete à prova de balas que eu usava.
Bem, éramos sagazes a esse ponto. Já que estávamos paramentados
para uma missão, então o mínimo que poderíamos imaginar era que, se
eventualmente alguma merda acontecesse, estaríamos protegidos nas zonas
mais vitais do corpo. Ainda bem que meu pai não escolheu a cabeça. Essa
área estava, definitivamente, desprotegida.
— Minha nossa... eu juro pra você que achava que esses coletes
seguravam a onda, Major. Mas parece que levei o coice de um cavalo — falei
quando recuperei o fôlego.
Quando o impacto da bala atingiu o centro das minhas costas,
pareceu como se eu tivesse levado um murro entre os pulmões. Do Hulk,
vamos assim dizer. Um murro nada singelo e camarada.
— E você já levou um coice de cavalo em algum momento da sua
vida pra saber qual é a sensação? — ele perguntou, passando a mão na minha
testa com carinho.
— Não. Mas não preciso enfiar a mão no fogo pra saber que
queima. Logo, a máxima serve para o cavalo. Ahhh... que merda. Isso dói —
gemi e fechei os olhos.
— E vai ficar um hematoma feio aí — ele completou.
— Ah. Que ótimo. Quando meu corpo começa a se livrar dos roxos
e ferimentos, aparece mais um pra enfeitar a estrutura — brinquei e abri os
olhos, encarando o homem que agora envolvia meu rosto entre as mãos.
— Perdi dez anos da minha vida agora. Ou envelheci quinze. Foda-
se. Escolha o que quiser — ele disse com as sobrancelhas franzidas.
— Bom, se você envelheceu quinze e continua bonitão assim, então
vai ficar ótimo — falei e ri.
— Ah, sério. Vocês são nojentos juntos. Estou descendo do posto,
Major. Ouvi tiros. Percebo que parece que nossa Oficial foi alvejada, mais
uma vez... alguém devia tirar o alvo dessa garota — Teagan falou em nossos
fones. Segurei o riso. — Estou chegando para salvá-la, querida!
Justin bufou e riu, mas fez o que talvez eu estivesse esperando ou
precisando. Não sei dizer qual era o mais necessário no momento.
Ele me beijou. Deitada como eu estava, meio apoiada no chão e em
seus braços, com a roupa tática largada ao lado e o colete aberto, Justin
simplesmente me puxou para si e pousou os lábios macios sobre os meus. E
me possuiu. Apenas a boca, que era o que dava para o momento.
O ambiente ao redor deixou de existir. A feiura dos eventos sumiu.
Não havia três corpos no escritório, sendo dois deles dos meus progenitores;
nem mesmo mais um no piso superior, sem contar os abatidos na área
externa.
Não registramos a saída do policial.
Tudo havia desaparecido e só existíamos os dois ali.
E meu mundo voltou ao normal, ou talvez tenha entrado no eixo,
pela primeira vez em muito tempo, quando ouvi as palavras que nunca
imaginei que ansiava tanto ouvir:
— Eu te amo, Ailleen. Porra... eu te amo.
Um sorriso tímido chegou aos meus lábios porque eu não era
versada nessa coisa de amor, assim como ele se dizia nada romântico. Mas eu
sabia que meu coração era totalmente dele. E sempre seria.
— Eu também te amo, Major — afirmei categoricamente.
Mais um beijo se seguiu, seguidos de outros tantos.
— É sério, gente. Eu vou vomitar desse jeito. Está na hora de
vocês interromperem toda essa demonstração de amor. Tenham dó de mim e
do Scott! — Teagan gritou e quase nos deixou surdos.
Ambos caímos na risada no momento. Justin recostou a testa à
minha e apenas inspirou o mesmo ar que eu respirava.
— Vamos embora, meu bem. Esse lugar aqui tem que queimar.
Assenti e aceitei sua ajuda para me levantar. Evitei olhar para o
local onde os corpos dos meus pais agora jaziam sem vida.
Saímos da mansão onde morei até aquela fatídica noite e não olhei
para trás.
A garota que resgatamos teria que reconstruir sua história,
provavelmente teria alguns traumas para curar, mas eu esperava que o pior
tivesse sido evitado.
Os Kowalski receberam a gratidão pelo que fizeram por mim cinco
anos atrás, então agora estávamos quites, embora nunca pudéssemos dizer
que em pé de igualdade. Não haveria comparativo para mostrar que
liquidamos com aquelas vidas em prol de uma.
Mas no final? Valeu a pena. O esquema da quadrilha de tráfico foi
todo desbaratado porque as cabeças da operação estavam eliminadas. A
notícia era que um incêndio misterioso havia destruído a mansão do senador
Anderson durante uma reunião de negócios.
O FBI conseguiu ser amansado pelo Departamento de Defesa, já
que entregou os nomes da pirâmide que seguia logo abaixo de Evans e
Anderson. E eram alguns empresários influentes. Até mesmo artistas
conhecidos do grande público. Os nomes dos Oficiais das forças armadas
foram mantidos em sigilo absoluto, até mesmo porque a ordem do Presidente,
até onde se sabia, era a de que “homens de farda morrem o tempo todo em
prol da nação”.
E eu? Agora estava de volta em West Virgínia. Em um chalé
acolhedor, com uma lareira acesa e uma taça de vinho em mãos, desfrutando
de uma pizza, enquanto Justin devorava seu sexto pedaço como se sua vida
dependesse daquilo.
Teagan e Scott ficaram conosco por mais dois dias depois da
missão, desfrutaram da simplicidade das montanhas e depois pediram arrego,
alegando que necessitavam dos agitos da cidade grande, a fim de que
pudessem encontrar mulheres dispostas a lhes dar algum consolo antes de
voltarem ao porta-aviões.
Justin Bradshaw pediu dispensa da Marinha. Com muito pesar da
minha parte, já que eu sentiria falta de vê-lo em todo aquele garbo e
sexualidade latente nos uniformes militares. Porém ele alegava que já havia
ficado tempo demais. Que o sonho de seguir carreira militar e se tornar um
Oficial de patente superior morrera no instante em que percebera que muitas
missões requeriam que tivesse que agir contra o que acreditava. E ele não
estava falando no caso de ter tirado a vida dos meus pais, ou dos Evans. De
missões onde a escória precisava ser exterminada da face da Terra, mas do
ato em si. Tirar uma vida mexia com a gente.
Eu bem sabia disso.
Levei mais de um mês, depois que tudo acabou, depois que nos
ajustamos a uma rotina pacata na casa de Justin, para voltar a ter sonhos mais
tranquilos, onde eu não empunhava uma arma e tirava a vida de Kendrick
Evans.
Todas as noites era Justin quem me confortava, quem me
acalentava em seus braços e assegurava que eu estava bem.
A decisão de ambos sairmos das forças armadas foi conjunta. A
operação fantasma talvez só tenha sido um catalisador para que
repensássemos no que queríamos fazer da nossa vida.
Eu sentiria falta do serviço militar. Com certeza. Da rotina,
disciplina, do foco e da segurança que o ambiente me deu, dentro das
instalações do Governo.
Mas honestamente? Não sentiria falta alguma de estar em constante
risco caso um anúncio de guerra iminente fosse declarado. Ou das
implantações em que tínhamos que nos concentrar.
Não sentiria falta disso.
E tendo Justin ao meu lado, eu estava me sentindo... renovada.
Pronta para uma aventura rumo a algo desconhecido. Porque é o que faríamos
dali pra frente.
Não estávamos em condição financeira ruim, porque graças ao meu
fundo fiduciário, teria dinheiro por muito tempo, se fosse parcimoniosa e se
aplicasse corretamente. E Justin também tinha as economias de anos, logo,
isso não nos preocupava em absolutamente nada.
Agora buscávamos o que fazer.
— Posso tentar um posto com o xerife — ele disse. — Meu pai deu
uma indireta nada sutil de que o homem está em vias de se aposentar e
precisa de um substituto. Que tal? — Mastigou mais um pedaço de pizza de
queijo. Pelo amor de Deus. Aquela era a sétima fatia?
— Acho que você daria um excelente xerife. Já te disse o quão bem
você fica de uniforme? — perguntei.
Justin limpou a mão no guardanapo, tomou seu último gole de
cerveja e arrancou a taça de vinho da minha mão. Em seguida, ele
simplesmente me puxou para o seu colo.
— Acho que você disse. Uma vez ou duas. Até dormindo você
falou.
— Mentira...
— Verdade... — disse e me deu um beijo na boca. Senti o gosto da
cerveja, que misturada ao vinho tinto que eu havia ingerido até deu uma
combinação interessante. — Mas será que eu também cheguei a te dizer o
quão sexy você fica de uniforme?
— Hummm... acho que não — respondi e passei as mãos em seu
cabelo, bagunçando o pouco que ainda era mantido num corte militar.
— Pois fica. Bastante. E sabe — Justin lambeu os lábios atraindo
minha atenção —, acho que o xerife poderia precisar de um auxiliar no posto
policial... pode ser uma cidade pequena, mas o perigo sempre ronda, não é?
Nunca se sabe... Um vizinho pode roubar uma galinha sem querer. O outro
pode acidentalmente derrubar a comida da tigela do cachorro alheio...
— A dona de casa pode perder o gatinho que subiu na árvore —
falei e ri.
— Ah, isso é serviço para os bombeiros. Nós fazemos o serviço
perigoso. A dona de casa pode se engalfinhar com a outra dona de casa em
uma luta insana de pregadores de roupas, por causa de... alguma contenda. E
precisaremos apartar — ele disse e beijou meu queixo. — E pode ser
perigoso ir sozinho em uma ocorrência como essa...
— Minha nossa... qual é o perigo nisso?
— Não sei... a dona de casa pode ser uma viúva tarada que
simplesmente fica possuída quando se depara com um homem de farda e
resolver usar os pregadores de roupa para deixá-lo preso em sua cama —
falou como se estivesse assustado.
— Céus... é verdade, Justin. Você precisa de ajuda. Que tipos de
cidadãos são esses? Onde me candidato? — perguntei.
— Iremos juntos, que tal? Um indica o outro.
— Isso não caracteriza nepotismo?
— Não.
— E vem cá... um xerife forte e poderoso como você seria
facilmente abatido por uma dona de casa armada com... pregadores de roupa?
— questionei com a sobrancelha erguida.
— Nunca se sabe, meu bem. Cidades pequenas carregam mistérios
ocultos e práticas muito perturbadoras e ilegais.
— Justin...
— Humm?
— Cala a boca e me beija — falei e enlacei seu pescoço.
— Seu desejo é uma ordem, Oficial — brincou.
Ele me beijou. E eu vi estrelas. Como sempre. Mesmo de olhos
fechados.
Justin Bradshaw sabia ser eloquente em ações, tanto quanto em
palavras.
— Eu te amo, meu bem.
— Eu também te amo, Major.
— E sabe de uma coisa? — perguntou quando se ergueu do sofá,
me levando no colo, como se eu fosse um maldito cinturão.
— Não...
— Vou te amar eternamente. Tal qual o lema da Marinha. Minha
dedicação agora é exclusiva pra você — falou e me colocou na cama com
gentileza. — Semper Fi. Sempre fiel. E quer saber uma coisa mais
interessante ainda?
Senti um nó na garganta, porque eu sabia que o que ele dizia tinha
um significado tão verdadeiro e profundo que gesto nenhum poderia externar
melhor.
— Não, Justin... O quê?
— Quero que seja pra sempre em todos os sentidos — disse e
pegou no criado-mudo ao lado de nossa cama as dog tags que costumávamos
usar. Fazia um tempo que já havíamos tirado do pescoço, mas sempre as
deixávamos ali, como um lembrete da vida que levávamos.
Justin colocou a dele no pescoço e passei a mão suavemente nas
placas que levavam seu nome e identificação de seu tipo sanguíneo. Logo em
seguida ele colocou a minha. Ergui a cabeça do travesseiro para facilitar.
Quando as plaquinhas estavam entre meus seios, senti a presença de algo
mais. Meus olhos foram imediatamente para baixo e voltaram para os de
Justin.
Justin pegou as placas entre os dedos, levou à boca e beijou cada
uma, mas dedicou uma atenção exclusiva à aliança de brilhante que segurava
entre o polegar e o indicador.
— Me dê sua mão, Ailleen — pediu em tom carinhoso, mas que
não admitia contestação. Um sorriso arrogante ilustrava seu rosto.
Levantei a mão esquerda, trêmula, devo admitir, e Justin estendeu a
cortesia de beijar o dedo onde depositaria o anel.
Abriu o fecho do cordão, retirou a joia dali e calmamente, como se
meu coração não estivesse retumbando no peito, fechou o colar outra vez,
para só então deslizar o anel em meu dedo.
— É Semper Fi pra mim, Ailleen. Está gravado por dentro. A
Marinha me deu você. Será minha melhor recordação, meu melhor presente,
melhor companheira, parceira. A mulher que escolhi para amar, honrar e ter
meus filhos — disse e beijou meu rosto, que só agora eu percebia estar
afogado em lágrimas. — A mulher que trouxe sentido à minha vida. Então...
é Semper Fi. Case-se comigo...
Meu Deus... Justin nem sequer precisava de uma resposta para
aquela pergunta. Mas bastava que eu lhe desse uma:
— Semper Fi, Justin.
Sem que eu estivesse preparada, Justin me virou de uma vez, para
cima de seu corpo, arrancando uma risada e um grito assustado, quando
bradou:
— Ooh-rah!
Aquela noite foi apenas de comemoração. De entrega. Promessas e
carícias. Justin Bradshaw havia dito que lhe dei sentido à vida, mas ele havia
me devolvido a vontade de viver. Eu era apenas uma casca de alguém que já
tinha sido. E nunca tinha me dado conta.
Justin trouxe a mulher que habitava dentro de mim, para fora. Fez-
me ver que eu valia mais do que achava que merecia. Uma coisa que dizem e
é muito certo é que nunca devemos procurar nossa outra metade para sermos
completos, porque na verdade, nós já devemos estar completos para que
sejamos alguém inteiro em um relacionamento. Não alguém partido.
Dividido em uma metade. Justin era íntegro. E me fez ver que eu também era.
Que não precisava achar a minha metade. Precisava apenas achar meu par
perfeito.
E ele estava exatamente ali. À minha frente.
E como o amor que brilhava em seus olhos, eu esperava que nosso
futuro fosse cintilante, tanto quanto a joia que agora ostentava em meu dedo.
E que as palavras gravadas no metal nobre, já forjadas em nossos corações,
firmadas em nossas almas, fossem a base mais do que absoluta de um amor
que nasceu do nada. Chegou sorrateiramente, como um fantasma.
Reconheceu a área onde deveria habitar, fez morada e declarou que ali era o
lugar perfeito para ficar.
E de um coração assombrado por um passado desolador, o amor
que ele trouxe à minha vida apenas mostrou que o futuro poderia ser algo
belo e verdadeiro.
Semper Fi.
FIM
Ao primeiro e Único, que sempre recebe o agradecimento principal
é Deus, porque é Ele quem me permite seguir em diante a cada dia, dando-me
forças quando muitas vezes acho que vou fraquejar.
Ao meu marido amado e meus filhos queridos, que aceitam dividir
a minha pessoa e compartilham com meus leitores.
À minha família que dá o suporte necessário para a carreira à qual
abracei com tanto empenho, mesmo que nem leiam ou compreendam a
necessidade que sinto de colocar as inúmeras histórias que habitam minha
mente, no papel.
Aos meus amigos. Esses são mais do que especiais. Continuam ali,
firmes e fortes, ainda que eu me distancie por conta da loucura dos prazos
que eu mesma me imponho. Andrea Beatriz, minha gêmea, te amo. Lili,
sempre no apoio, mesmo longe. Mi, Alê, Kiki, Sam, Paola, Nana, Joy, Dea,
Jojô... meu Deus. São muitas. Tenho medo de simplesmente me esquecer de
alguém imprescindível. Caso isso aconteça, me perdoem, por favor.
Um obrigada mais do que lindo àquelas que betaram e fizeram
parte desse projeto desde o momento da concepção, onde saí da minha zona
de conforto e tentei ousar em um campo minado e até então desconhecido
para mim - Cristiane, Nana, Jojô, Dea, Sam, Gladys, Bebel e Alê. Vocês
acreditaram em mim e no que essa história poderia virar. Thank ya’ll.
E um thanks lindo à Andy Collins... pela leitura final mesmo sem
fazer a mínima ideia do que estaria pegando pela frente. Acho que o mundo
literário é isso. É poder saber que tem amizades, saber que tem espaço pra
todo mundo e um poder apoiar o outro para que a jornada seja muito mais
leve e prazerosa. Obrigada pela parceria e amizade daqui em diante...
Obrigada de coração, Roberta, a você e à equipe da The Gift Box
por terem atendido ao desejo dos meus leitores para que pudessem ter esse
livro em mãos, além do meu sonho de poder colocar mais esse “bebê” na
minha estante. Vocês não fazem ideia de como isso me realizou. Isso foi mais
do que um GIFT pra mim.
Thanks para a diva das capas fodásticas, Dri K.K. Mais uma vez ela
pareceu entrar dentro da minha cabeça e extraiu a ideia que surgiu de um
sonho louco.
E, finalmente, um big thanks a vocês, bloggers e leitores lindos.
Aqueles a quem chamo de amigos, e não fãs. Tenho cada um de vocês no
meu coração e agradeço todos os dias por fazerem parte da minha vida, pois
sem a presença e o apoio de cada um, eu não estaria produzindo um livro
atrás do outro. Vocês são a força que me impulsiona.
E se você gostou do livro, mesmo sabendo que fui em um estilo
completamente diferente do que estou habituada a escrever, deixe o feedback
para mim, pois amo saber sua opinião. E se também não gostou, pode dividir
comigo suas angústias. Juro que saberei entender.
Love Ya’ll
Copyright © M. S. Fayes, 2020
Copyright © The Gift Box, 2020
Todos os direitos reservados.
Direção Editorial:
Anastacia Cabo
Gerente Editorial:
Solange Arten
Arte de capa:
Dri K. K. Design
Diagramação e revisão:
Carol Dias
Nenhuma parte do conteúdo desse livro poderá ser reproduzida em qualquer
meio ou forma – impresso, digital, áudio ou visual – sem a expressa
autorização da editora sob penas criminais e ações civis.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos
descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
nomes, datas ou acontecimentos reais é mera coincidência.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472
Embora façamos pesquisas para que os dados sejam os mais
verdadeiros possíveis, é importante lembrar que esta não passa de uma obra
de ficção, e que a licença poética permite que muitas situações sejam
narradas de maneira que possam fluir de acordo com a narrativa.
Nem sempre os acontecimentos realmente serão condizentes com a
realidade, seja por aspectos burocráticos ou organizacionais dentro da esfera
político-militar.
Que também fique claro que as situações expostas nada mais
refletem que a imaginação do autor para adequar o enredo, sem, em hipótese
alguma, se valer de preconceito cultural ou religioso.
A MODÉSTIA É PARA O MÉRITO O QUE AS SOMBRAS SÃO PARA UM QUADRO.
DÃO-LHE FORMA E RELEVO.
JEAN DE LA BRUYERE
21h42
O banco de areia onde estava de tocaia oferecia um apoio perfeito
para abater os alvos que começavam a se aproximar. Por mais que a praia
estivesse imersa em escuridão, as luzes dos jipes ofereciam iluminação
suficiente para detectá-los como formigas fugindo de um formigueiro.
Fechei um olho, focando com o outro pelo escopo do meu rifle,
mirando em direção ao primeiro homem que tentava se aproximar da rampa
do embarcadouro.
O zunido mal pôde ser ouvido assim que o projétil alcançou o alvo.
E aquilo foi o suficiente para dar início aos disparos dos criminosos, que
tentavam atingir uma sombra em meio ao breu da noite.
O restante dos Recons contra-atacou, enquanto eu mantinha meu
objetivo de eliminar aqueles que tentavam correr em direção ao cargueiro
ancorado à praia deserta.
Mais dois tiros certeiros e minha atenção se voltou para o que
acontecia no convés. Meu coração estava acelerado, batendo furiosamente
contra o peito, porque mesmo a pouca iluminação na embarcação foi o
suficiente para me mostrar a mulher que lutava com bravura contra os
homens que ainda se mantinham de pé.
E naquela noite, pela segunda vez em minha carreira, abandonei
meu posto como sniper para tentar chegar até ela, antes que fosse tarde
demais.
16h45
Teag. É assim que meus amigos me chamam quando querem
reduzir meu nome. O que muitos não sabem: esse é exatamente o som do
estampido que um tiro certeiro do meu rifle McMillan 50 faz.
Teag. O som que alguns não ouvirão quando a bala atingir o alvo.
Por quê? Porque já estarão mortos.
Sim, eu sei. Tenho uma ocupação que poderia parecer suspeita se
não pertencesse ao grupo de Operações Especiais Táticas, mais conhecido
como Recons, ou Esquadrão de Reconhecimento do Corpo de Fuzileiros
Navais da Marinha Americana. Éramos da turma dos fodões. Havia uma
disputa acirrada entre os Seals e nossos garotos, até mesmo porque
pertencíamos à mesma força militar, mas vamos lá... Que cara gostaria de ser
confundido inicialmente com uma foca, pelo amor de Deus? E vou dizer, essa
sempre era a primeira impressão que algumas pessoas tinham quando não se
inteiravam das paradas militares.
— Você tá brincando, Ryan... Jura que a garota perguntou se vocês
nadavam como focas quando estavam nas operações marítimas e usando
Neoprene? — Teagan começou a rir e quase cuspiu a cerveja na cara dos
companheiros da base.
— O pior nem foi isso, Teag. O mais aterrador foi a garota ter
perguntado se o nome Seal[2] era exatamente por conta do mamífero, porra.
As risadas explodiram na mesa. Ninguém aguentou. Imaginar o
gigante Ryan como uma enorme foca fazendo natação era demais para os
miolos de Teagan.

E era sempre assim. As histórias se agrupavam e se somavam às


outras com o mesmo enredo. Muitas pessoas não se atentavam que a sigla
para Seal[3] tinha tudo a ver com os elementos onde os bastardos agressivos
agiam. Mar, ar e terra.
Tenho que confessar que, de início, antes de me alistar, eu
realmente pensei em fazer parte dos Navys, mas a coisa mudou de figura
quando, no recrutamento, conheci Scott Bromsfield, que veio a se tornar um
dos meus melhores amigos. Irmão, na verdade.
Uma das qualidades entre os fuzileiros – acredito que até mesmo
entre todas as forças armadas – é o fato de que ali dentro você faz parte de
uma irmandade. Cada oficial alistado passa a ser parte integrante de uma
mesma família, e é claro, como em todo grupo social, existiam aqueles que se
adequavam melhor ao seu estilo e personalidade.
Scott era o meu oposto, e talvez tenha sido um dos poucos a quem
eu devo minha vida. Digo isso porque como minha função sempre foi a de
sniper, um atirador de elite que estava ali para proteger a retaguarda em uma
missão, então, quase sempre era eu quem “salvava” a pele deles.
Resolvi me alistar no corpo de fuzileiros navais porque, aos dezoito
anos, era tudo o que me restava de esperança. Vindo de uma família de
fazendeiros, do interior do Oregon, eu sempre havia sonhado em crescer na
vida. Não queria acabar como meu pai, completamente desgastado pela rotina
diária para produzir laticínios para nossa cidadezinha. Tillamook era um
condado reconhecido exatamente pela enorme quantidade de fazendas
produtoras, o que tornava a cidade um centro bastante visitado por conta dos
famosos queijos produzidos.
No entanto, nunca fui um apreciador de leite, assim como não era
fã da vida campestre. Meu destino usual, quando adolescente, era pegar a
estrada para Tillamook Bay, a fim de me enfiar dentro da mata litorânea,
encerrando com nado livre no Oceano Pacífico.
E dali veio a paixão pela Marinha. Com toda a certeza, meus pais
não ficaram nem um pouco satisfeitos quando decidi me alistar, mas uma das
minhas maiores características – e que poderia até mesmo ser considerada um
defeito –, era que quando me decidia em fazer algo, nada poderia me impedir.
Ser um fuzileiro se tornou o meu maior objetivo àquela altura do
campeonato.
De tempos em tempos, eu recebia um telefonema da minha mãe, e
as queixas eram sempre as mesmas: que eu deveria voltar para tocar a
fazenda, no lugar do meu pai. Embora sentisse certo peso na consciência,
imaginando meu velho cada dia mais esgotado, ainda assim, seria errado e
injusto dizer que estava arrependido pelas escolhas que fiz na vida.
Foi ali dentro do Corpo de Fuzileiros Navais que me encontrei
como pessoa. Descobri meu propósito ao me tornar um marine e fiz de tudo
para superar todo o empenho desperdiçado quando estava na escola. Assim
que ingressei na Academia, e no instante em que fui recrutado para o curso de
formação de oficiais elite, senti que minha vida ganhara o rumo certo. Estaria
defendendo meu país, honrando minha bandeira. Mais do que tudo: sentiria
orgulho dos meus feitos por ter sido eu mesmo a trilhar. Não estaria seguindo
os passos de alguém, e, sim, criando os meus próprios.
Cada incursão, no início, era vista como uma chance de crescer
ainda mais. Passei por diversos comandos, mas o que me trouxe mais
realização foi quando acabei sendo convocado para a base marítima no porta-
aviões comandado pelo Major Bradshaw. Sempre que estávamos na base
naval, minha esquipe de ação era comandada pelo também experiente
Capitão Masterson, que nos ensinou o real sentido de companheirismo em
missão.
Tão logo alcancei a patente de tenente, decidi que minha carreira
militar seria extensa. Muitos jovens se alistavam, cumpriam o tempo de
serviço requerido e se afastavam das forças armadas. Chegamos a calcular
que o tempo médio que um militar levava era em torno de três, quatro anos,
até que a guerra começasse a foder seus miolos. Aqueles que chegavam às
Forças Táticas, acabavam ficando um tempo mais longo, mas os horrores
vividos também chegavam, em algum momento, e cobravam seu preço.
Eu era fuzileiro há doze anos, sendo que nos últimos nove fazia
parte dos Recons. O Major Bradshaw, ou Justin, para aqueles que
conquistavam o direito de chamá-lo de amigo, havia sido um ícone na época
em que atuava como soldado de elite. O codinome que levava até hoje
reverberava no meio da corporação: Ghost. Ninguém nunca conseguira
atingir o nível do cara. Poderíamos chegar perto, mas não nos igualávamos à
maestria dele em ação. Lutei muito para conquistar o direito ao meu próprio
codinome: Shadow.

[2] Foca em inglês.


[3] Seal: Sea, Air and Land.
17h57
Depois da missão confidencial junto ao Major Bradshaw, eu e Scott
tiramos alguns dias de descanso, onde acabamos na cidade natal de Justin,
para, somente em seguida, pegarmos o rumo de alguma metrópole.
Naquele meio-tempo, não entrei em contato com meus pais, porque
para mim não fazia o menor sentido. Uma viagem até o Oregon consumiria
boa parte daqueles dias de folga, então optei em manter o sigilo sobre a
minha presença no continente.
Pensando naquilo, senti remorso por não ter feito o mínimo esforço
em tentar visitá-los antes de ir à base. Nós nunca sabíamos se aquela poderia
ser a última vez que partiríamos do país. Não sabíamos se nossos parentes
receberiam de volta apenas a dog tag, uma bandeira americana
cuidadosamente dobrada e o caixão. Às vezes, nem esse último era possível.
— Teag — Scott chamou minha atenção. Estávamos já
embarcando na aeronave que nos deixaria no porta-aviões que em breve
mudaria o curso à beira do Golfo Pérsico.
— O quê? — Retirei os óculos de sol, modelo aviador, que me
deixava quase a cara do Tom Cruise, só que loiro, e o encarei.
— Por que você nem sequer ligou pra sua mãe? — questionou.
Nos dias em que passamos juntos, Scott fez questão de falar com a
irmã mais velha quase todos os dias. Ele não tinha pais, mas a irmã era a que
lhe dava o alento de ainda ter uma família. Ela e os oitocentos sobrinhos que
possuía. Quando o questionei sobre visitar sua cidade natal, ele apenas disse
que não era o momento. Embora tenha imaginado que meu amigo estivesse
guardando segredos, não o pressionei por mais informações.
— Cara... nós viemos para ficar por pouco tempo, certo? Quero
dizer, teríamos que cumprir os dois meses de folga, mas nem pudemos
comprar as passagens para alguma ilha paradisíaca recheada de mulheres
gostosas. E isso se deu em quantos dias? Nove? — Ele assentiu,
confirmando. — Então... para que ligar para os meus pais e falar “oi e
tchau”?
Eu precisava confessar que estava evitando o estresse. Por mais que
já fosse um homem adulto, dono da minha própria vida, não estava isento de
receber as constantes queixas e reprimendas dos meus pais, que não
aceitavam a carreira que escolhi seguir. Na última vez em que estive na
fazenda, meu pai e eu nos envolvemos em uma discussão acalorada que não
nos levou a lugar nenhum, apenas ao mesmo ponto de desgaste
desnecessário.
Um ambiente onde as brigas e discussões superam os momentos de
amor e saudosismo não era legal para ninguém. Eu via a angústia da minha
mãe em tentar agradar ao marido e, ainda assim, tentar deixar feliz o filho
adulto, então resolvi poupá-la disso. Eu simplesmente não aparecia.
Embora parecesse algo cruel de se dizer, era mais fácil lidar com a
distância e o sentimento de realização do que com as cobranças incessantes
que tendiam a nos fazer sentir vergonha de nossas decisões.
Eu havia prometido dar um jeito de visitá-los no Natal ou Ano
Novo, mas sem garantia alguma de que conseguiria cumprir. Além do mais,
não tinha mais idade para me esforçar em atender expectativas familiares.
Escolhi meu próprio caminho e estou trilhando sem amargura. Não busco
reconhecimentos dos meus pais, tampouco vivo procurando aceitação.
— Isso não é desculpa, mas entendo — disse e afivelou o cinto de
segurança.
— Falou o cara que nem foi babar o ovo dos sobrinhos — zombei.
— Tive meus motivos para não ir até Richmond dessa vez —
respondeu, enigmático.
— Ah, qual é, Scott? Não vai contar os seus segredos? — Parei por
um momento e o encarei. — Sabe que agora que estou pensando nisso...
percebi que você estava muito calado...
— Eu sou o contrário de você, esqueceu? Você fala mais do que
deveria. Eu mantenho a discrição.
Cumprimentamos outros oficiais e recrutas que teriam o mesmo
destino e resolvi que já que o assunto não renderia com o Sr. Discreto, então
bem que poderia cochilar um pouco. Seria um voo longo o suficiente para
fazer isso de sobra.
O porta-aviões U.S.S Marula já não seria comandado pelo Major
Bradshaw. Aquele filho da puta resolveu aposentar os coturnos, ficando na
cidade em que nasceu para viver uma história de amor com Ailleen
Anderson.
Tenho que admitir que senti uma inveja saudável do meu superior.
Ele estava pegando a fuzileira mais gostosa do porta-aviões. Embora eu só a
tenha conhecido quando foi enviada na missão de socorro e resgate da nossa
equipe em terra, ainda assim era inegável sua beleza estonteante.
E eu precisava confessar que passei a respeitar muito mais o
poderio feminino nas forças armadas. Nós, homens, tendíamos ainda a pensar
que as mulheres eram seres frágeis e que precisavam de cuidados. Que não
deviam estar empunhando armas pesadas e em meio a conflitos de guerra.
Ledo engano ao perceber que o vigor e a coragem das mulheres que
ingressavam nas forças podiam superar até mesmo os de um homem mais
brutal. Eu sabia que podia confiar em qualquer uma que fosse designada para
lutar lado a lado, eventualmente.
Embora não fizesse parte das operações padrões, exatamente
porque nosso esquadrão era designado para missões de reconhecimento tático
e com a necessidade de estratégia prévia, eu sabia que todos os homens e
mulheres a bordo daquele porta-aviões exerciam uma função imprescindível
para o nosso país.
Estávamos pagando um alto preço a cada dia, fruto e esforço de
nosso suor. Mas ao final, quando voltávamos cansados, sabendo que nossa
missão estava sendo cumprida, lutando para evitar que países menores
fossem dominados por potências que acreditavam ter a hegemonia sobre
eles... então, sim, valia a pena.
17h52
O suor constante colocava em risco minha missão naquele exato
momento. Eu sabia que devia manter a concentração na cena que ocorria à
frente, pouco mais de 500 metros, vista de cima do prédio em que eu me
encontrava deitada no chão.
Para minha sorte, os óculos protegiam contra o sol e o suor salgado,
que poderia deslizar diretamente nos meus olhos. Fechei um deles e firmei o
foco na mira do meu rifle M-200, averiguando a distância através do escopo.
Dois rebeldes do grupo terrorista mantinham a guarda da porta
desgastada de madeira. Eles não faziam ideia de que receberiam uma visita
inesperada pelos flancos esquerdo e direito – em menos de um minuto – dos
meus companheiros de missão.
Estávamos em uma operação secreta para o Governo de Israel, com
o objetivo claro de abater um dos parceiros de Kumar Al’Mayoun, um
político influente e aliado do regime ditatorial sírio. De acordo com os dados
colhidos, Omar Hassun era um dos líderes do grupo e braço direito do
homem, agindo, inclusive em um esquema com a intenção clara de dar início
a uma onda de terror contra a Síria e, possivelmente, contra Israel.
Embora Israel não se envolvesse em conflitos diretos contra o país,
quando algo poderia respingar sobre a segurança de seu povo, o governo
decidia enviar as equipes que agiam por baixo dos panos.
— Zilah, na escuta? — Ibrahim Miller perguntou, em um sussurro
que indicava que estava cada vez mais próximo dos alvos.
— Sim, Ibo, onde mais eu estaria? — respondi com ironia.
— Em cima de uma árvore, tirando um cochilo? — Jacob
completou.
Meus olhos reviraram em puro desgosto. Jacob Berns não
concordava que eu integrasse o time da operação que havia sido repassada ao
Mossad. Eu fazia parte da IDF, mais precisamente, as Forças de Defesa de
Israel, e integrava o Exército com atuação em terra havia mais de cinco anos,
e naquela missão em específico, meu comandante solicitara que atuasse ao
lado da equipe designada a se infiltrar em Syraz, um pequeno vilarejo ao
norte do Chipre.
Jacob fazia questão de deixar às claras que era contrário à minha
presença no grupo de agentes do Mossad, mas também não tinha nenhum
poder de decisão para ir contra as ordens do Departamento de Defesa de
Israel.
Quando meu comandante, o General Cohen, me chamou em sua
sala cerca de sete meses atrás, pediu sigilo mais do que absoluto por conta da
razão de sua solicitação para a minha incursão junto ao pequeno grupo de
espiões do Serviço Secreto de Israel.
Até então eu não sabia que compartilhávamos a mesma dor pela
perda de uma pessoa amada. O General Cohen era tio de Aaron, meu noivo
que havia sido morto em uma operação secreta dois anos atrás.
Nunca cultivei o desejo de vingança pela morte precoce de Aaron.
Eu sabia dos riscos que nossas carreiras impunham, assim como ele conhecia
o potencial risco de adentrar um covil de ódio extremo.
No entanto, eu não soube, naquele momento, qual era a natureza da
operação em que ele havia se envolvido. Aaron deixou o cargo de Capitão no
Exército e foi recrutado para integrar uma equipe tática do Mossad seis meses
antes de morrer. Ele havia passado no principal teste para averiguar se estaria
apto ao serviço, quando ficara infiltrado durante dez dias em uma
comunidade do Islã. A regra dizia que se um agente conseguisse passar
despercebido por sete dias, já estava mais do que apto a executar qualquer
atividade ou operação designada.
Nós havíamos nos conhecido nas forças armadas, e chegamos a nos
encontrar em diversas bases antes de trabalharmos juntos pela primeira vez
durante as rondas que nosso batalhão exaustivamente efetuava nas cercanias
da cidade de Ramalah. Burlar o sistema e a política de “nenhum
relacionamento” por ali fora difícil, e só agora eu entendia a razão de nunca
termos sido chamados à atenção do quartel ao qual fazíamos parte.
Aaron provavelmente usara da influência de seu tio, o grande
comandante, para que passássemos ilesos pelos testes de averiguação que nos
submetiam.
Lidar com sua morte foi uma das coisas mais difíceis que já tive
que fazer. Embora não pudesse dar uma total certeza se o amava além do
limite da razão, o carinho e companheirismo que encontrei nele foram
cruciais para que eu sobrevivesse ao período mais tenebroso da minha vida.
Meus pais tinham acabado de se separar, e meu pai se mudou de Israel,
seguindo uma nova namorada que havia arranjado na Itália. O peso daquela
decisão acabou sendo um golpe fatal para a fragilidade de minha mãe, que
morreu um mês depois, em decorrência do agravamento de uma pneumonia.
Eu não tinha irmãos a quem recorrer, e meu pai nunca fora uma
escolha, afinal, a decisão de abandonar a família havia sido dele. Na época,
estava com pouco mais de dezoito anos e, ao contrário de muitos países, em
Israel, as mulheres aptas também eram designadas ao serviço militar
obrigatório. Depois de dois anos, poderíamos deixar as forças, tendo que nos
alistar ao menos uma vez por ano, por um período de trinta ou sessenta dias,
até que completássemos vinte quatro.
Não foi preciso muito esforço para que eu optasse em seguir
carreira. Fazer parte da Tzahal, como era conhecida as Forças de Defesa de
Israel, acabara trazendo um propósito de vida para mim. Por mais incrível
que pareça, no início eu amava os treinamentos intensivos e desgastantes, que
me faziam chegar ao quarto com os ossos e músculos derretidos, sonhando
em apenas dormir. Dessa forma, não tinha tempo para me condoer por ter
perdido a única família que possuía.
Aos vinte e um anos, acabei sendo selecionada pelo comandante do
meu esquadrão na época para me inscrever no Gibbush, campo de
recrutamento da equipe dos Sayeret Matkal, as forças especiais. Por serem
uma Unidade de Reconhecimento e Extração de Reféns, os soldados que
conseguiam vencer os treinamentos mortais se tornavam o grande trunfo do
Tzahal.
Foram necessários quase dois anos para que eu finalmente
conseguisse a almejada condecoração por excelente desempenho na
formação. Numa força militar de operações táticas onde 95% eram homens,
ser uma mulher condecorada com honras era um grande feito.
Infelizmente, não pude usufruir daquela felicidade ao lado de
Aaron, pois cerca de semanas depois da graduação, ele morreu em serviço.
O ruído do comunicador auricular me trouxe de volta ao presente.
— Você está em posição, não é? — Ibrahim confirmou.
— Pelo amor de Deus, Ibo. Estou aqui há muito mais tempo do que
vocês desde que vestiram suas roupas táticas — respondi. — Precisa que eu
sinalize com o laser do meu rifle na sua testa?
— Não. Desculpa. — O som de sua risada preencheu o silêncio no
dispositivo auditivo. — Mahidy já fez contato?
— Ainda não.
— Qual é a posição?
— Dois homens à frente, provavelmente mais dois logo atrás da
porta, se eles obedecerem ao protocolo de segurança do figurão que estão
protegendo.
O sinal do comunicador indicou que Mahidy Baum estava na
escuta.
— Zilah, pelo detector de calor, ainda há mais três homens no
andar superior, sendo que dois deles estão na janela do lado esquerdo do
prédio. Logo à sua frente você poderá ver a janela frontal. Confere? — o
chefe da operação informou.
Mahidy era o que poderíamos dizer de um “chefe justo”. Em
nenhum momento ele me diferenciou pelo fato de ser mulher e estar inserida
na equipe seleta. Sendo de família mista, com pai israelense e mãe palestina,
ele era a epítome do que uma aliança não gerida pelo ódio poderia fazer. Ele
era o que havia no melhor dos dois mundos.
Na última missão em que estive com meu pelotão, no meio de uma
vila em Haysa, pude ver o quanto o ódio racial impera em qualquer situação.
A casa onde fizemos a checagem de um suspeito de organizar um
ataque a uma das bases militares na Faixa de Gaza estava cheia de crianças.
Nossas ordens sempre foram as de nunca ferir mulheres ou crianças que não
oferecessem riscos.
No entanto, quando entramos na casa subterrânea, tivemos que
desviar da onda de ódio e palavras rudes, acompanhadas de cusparadas dos
pequeninos que estavam ali. Enquanto a mãe e a avó se mantinham quietas,
as crianças não deixaram margem de dúvidas de que possivelmente estavam
sendo doutrinadas desde cedo a proliferar a rivalidade a qualquer israelense
que pisasse território árabe.
O olhar que podíamos detectar naqueles rostos aparentemente
inocentes, era um que eu não esqueceria tão cedo. Na disputa interna por
territórios, desde os tempos mais remotos, ficava claro que os sentimentos
tomavam proporções inacreditáveis.
Fomos ensinados a nos odiar desde cedo. Crescemos ouvindo que
precisávamos salvaguardar os nossos direitos que há muito tempo estavam
tentando ser usurpados. Israel enfrentava o ódio irascível de muitos outros
povos. Poderíamos até mesmo nos considerar uma nação forjada no fogo. O
povo hebreu sobreviveu desde os relatos bíblicos à forma mais atroz de
escravidão, mas fomos libertos.
A guerra político-social e religiosa ultrapassava muitas vezes as
questões territoriais que estavam ainda bastante arraigadas ao passado
histórico de cada povo.
— Zilah, você conseguiu uma boa visão de onde está? — Mahidy
perguntou.
— Sim, senhor. Ao seu comando, as duas sentinelas da frente
poderão ser neutralizadas. Seguido dos homens no piso superior que estão na
mira.
— Ótimo. Ibrahim e Jacob, tudo pronto?
— Sim, senhor.
— Vão.
A movimentação dos dois agentes foi furtiva, mas eficaz. Antes
que chegassem ao perímetro, dois tiros certeiros foram disparados contra os
homens à frente do prédio.
O primeiro caiu contra a amurada, e o tempo que o segundo homem
levou para perceber que algo havia acontecido foi o suficiente para que fosse
neutralizado em seguida.
Conferi o escopo do rifle para dar cabo dos homens que foram
detectados à janela do segundo andar. Com o ruído dos corpos sendo
abatidos, um dos homens se aproximou da abertura frontal, por entre as
cortinas. Nem bem chegou a colocar a cabeça para fora, quando meu dedo
pressionou o gatilho.
O zunido do disparo enviou o segundo homem para o mesmo
destino.
— O terceiro elemento informado não se encontra no alvo —
informei ao chefe.
Nesse meio-tempo, os dois agentes do Mossad já haviam entrado
na casa e, em questão de três minutos, saíram acompanhados do suspeito que
vieram buscar.
Esperei por mais um minuto para ver se haveria alguma
movimentação que delatasse nossa presença por ali.
Enquanto a van branca parava e resgatava os agentes e o agora
refém, reuni meus pertences com uma agilidade que impressionaria qualquer
outro sniper, e ouvi as instruções pelo comunicador.
— Zilah, uma van cinza está te aguardando na esquina a dois
quarteirões. Dê o fora daí.
Desmontei o rifle e guardei tudo na bolsa de mercado que levei
como disfarce. Ajeitei o niqab em meu rosto, tendo certeza de que cobria
todos os meus traços, deixando apenas os olhos de fora.
As escadas do pavimento onde me encontrava eram íngremes, mas
consegui percorrer o trajeto com agilidade, mesmo que estivesse usando um
vestido longo e negro, como as moradoras da pequena vila perdida no mapa.
Somente quando cheguei à rua foi que passei a agir como uma
mulher comum das redondezas, como se tivesse acabado de voltar do
mercado mais próximo.
As duas ruas abarrotadas de mercadores poderia ser um excelente
refúgio para me camuflar mais ainda, caso alguém supusesse que uma mulher
estivera na operação sigilosa a alguns metros dali.
Quando cheguei à esquina indicada, a porta lateral da van cinza se
abriu, e entrei sem mais delongas.
— Belos tiros — Mahidy disse, com um sorriso no rosto barbado.
— Como sabe, se não viu? — brinquei.
— Não preciso ver para ter certeza, querida. Você supera qualquer
atirador que já tive em minha equipe.
— Obrigada.
Mantive o niqab até que estivéssemos longe da área. As ruas do
vilarejo foram ficando para trás, e só assim pude respirar com tranquilidade.
Eu já havia me enfiado em missões difíceis e perigosas no exército.
Isso não era novidade. No entanto, operações onde envolvia outra equipe à
qual não estava habituada eram as que me deixavam tensa, até que pudesse
finalmente ter certeza de que fora bem-sucedida.
Qualquer imprevisto poderia acontecer, e mesmo que os índices de
fracasso das atuações dos grupos do Mossad fossem baixíssimos, ainda
assim, eu preferia me precaver de todas as formas.
Eu não tinha um desejo suicida de entrar em uma missão e não sair
viva dela.
Já bastava as pessoas que eu precisava – em defesa de uma
operação – deixar mortas para trás. As sombras de suas almas me
atormentariam logo mais, assim que fechasse os olhos na hora de dormir.
Mesmo já tendo participado de inúmeras incursões onde minhas
habilidades de sniper eram requeridas, nunca havia me acostumado a deixar
um rastro de sangue e morte para trás.
Nem uma única vez.
22h23
Acordar com um sobressalto não era agradável, em hipótese
alguma. Ainda mais se você estivesse esgotado depois de horas de treino
exaustivo com os companheiros.
Scott não tinha a delicadeza de apenas chamar pelo nome, o que
seria eficaz, já que meu sono era leve. Não. Ele precisava jogar a sacola com
as armas que cada fuzileiro precisava manter próximo a si, exatamente em
cima dos meus países baixos.
— Pooorra, Scott! Que merda é essa? — gemi em agonia.
O som da risada escrachada me fez abrir os olhos, e a vontade
súbita de espancá-lo até a morte quase se tornou grande demais para resistir.
— Levante-se. Temos uma operação dentro de algumas horas.
— Desde quando?
— Desde que o Capitão Masterson acabou de informar.
Massageando minha virilha e conferindo se minhas bolas ainda
estavam por ali, levantei-me da cama de um pulo.
— Caralho, Scott. Pretendo ter filhos algum dia, sabia?
— Sério? — caçoou. — Sempre achei que você levaria a vida de
solteiro para o resto da vida.
— Vai demorar, tá bem? Até eu me assentar com uma felizarda que
me terá a noite inteira, vai demorar. — Esfreguei o rosto, tentando mandar o
sono embora.
— Imagino... e enquanto isso...
— Eu me divirto com as solteiras que não exigem mais do que duas
horas ou quatro, dependendo da performance.
Scott revirou os olhos e bufou.
— Cara, você ao menos se escuta quando está falando?
— Claro que não, imbecil. Deixo isso para vocês, com quem tenho
que compartilhar minhas pérolas de sabedoria. — Retirando a farda da sacola
ao pé da cama, comecei a me vestir. — Mas diga aí... algum adiantamento do
que se trata? — Nem ao menos esperei pela resposta. Fui até o banheiro
minúsculo que mal comportava meu corpo para escovar os dentes e passar
uma água no rosto.
Estávamos no Mar Mediterrâneo há mais de três meses e fazíamos
operações de reconhecimento tático de tempos em tempos. Ainda não havia
nenhum sinal de risco evidente que justificasse uma incursão mais a fundo
nos territórios hostis às forças americanas. Basicamente estávamos vivendo à
base de treinamentos físicos e condicionamento.
— O capitão apenas convocou a equipe Delta para encontrá-lo na
sala de reuniões.
Olhando de soslaio, percebi que Scott já estava a postos, tendo
organizado com precisão sua mochila tática em cima da cama.
— Quanto tempo eu tenho? — perguntei, enquanto calçava os
coturnos.
Olhei para cima para ver Scott mexendo em seu celular.
— Scott!
Erguendo o rosto concentrado, ele apenas respondeu:
— Seis minutos e quarenta e dois segundos.
— Caramba, por que ser tão rigoroso assim no cronômetro?
Scott guardou o celular no bolso da calça cargo e deu um sorriso
sarcástico.
— Porque é o meu rabo que fica na reta se você não cumprir a
ordem imediata.
Em menos de três minutos eu estava de pé, caminhando ao lado de
Scott, e levando minha mochila tática pendurada em um dos ombros.
Ao subirmos para a plataforma, seguindo rumo à sala de operações,
fomos saudados por vários oficiais pelo caminho.
Todas as vezes que um grupo de operações especiais saía em ação,
os outros fuzileiros da base comemoravam como se o sucesso já fosse
garantido.
Tudo bem, éramos fodões e tudo mais, mas sempre havia um risco,
mesmo que mínimo, que alguma coisa pudesse dar errado. Todos os riscos
eram calculados mediante as possibilidades.
Batemos à porta e entramos sem esperar resposta. O Capitão Joseph
Masterson já nos aguardava com mais quatro oficiais Recons.
— Tenente Collins e Tenente Bromsfield, sejam bem-vindos — o
capitão disse, com um sorrisinho irônico no rosto. — Espero que não tenham
deixado coisas importantes demais a fazer, para justificar o atraso.
— Nah, Cap. Está tudo tranquilo. O que não fazemos pelo senhor
com um sorriso feliz, não é? — respondi, recebendo um cumprimento do
meu superior. Um belo tapa no ombro.
Vendo que Jensen, Dylan, Tyler e Dougal já estavam ali, restou a
mim e Scott pegar os assentos restantes na mesa de reuniões. Aquilo ali era
sempre um indicativo de que ele pretendia traçar alguma missão estratégica,
já que quase nunca éramos chamados à sala de reunião para um bate-papo
informal.
— Pois bem, o Comandante Richardson nos passou uma ordem
imediata de operação. Teremos que nos infiltrar em um vilarejo na ilha de
Chipre, para que possamos acompanhar uma transação que tem início no
campo de refugiados da Síria e fechamento em Key West, Flórida — disse,
em poucas palavras.
— Uau, meio longe, não? Não sou muito bom em geografia, mapas
e essas merdas, mas até eu sei que existe um oceano de distância de um ponto
ao outro — comentei.
— Não só um oceano. Há uma rota muito bem-executada que tem
servido para despistar qualquer investigação — o capitão emendou. — Um
esquema muito mais sombrio do que podemos imaginar, embora em nosso
ramo já tenhamos visto de tudo.
— Certo, e o que seria? — Dougal deu voz à pergunta que ressoava
na cabeça de todos nós.
Capitão Masterson sentou-se à beira da mesa e fincou a ponta do
dedo sobre o mapa.
— Tudo começa aqui: na Síria. Mulheres jovens, incluindo
crianças, estão sendo sequestradas nos campos de refugiados no Líbano —
seu dedo ia acompanhando o trajeto lentamente —, em seguida, elas são
colocadas em um navio cargueiro de pequeno porte que parte em direção ao
extremo norte da ilha do Chipre, próximo à província de Famagusta.
Estávamos acompanhando com atenção as informações que nosso
capitão nos passava.
— Elas chegam a ficar cerca de três dias ancoradas em um pequeno
vilarejo na costa de Protaras e, até onde minha fonte informou, são mantidas
em uma espécie de armazém no cais do porto. Antes disso, no entanto, ocorre
a transação entre os sequestradores e os receptadores.
— E depois disso? — Scott perguntou.
Masterson se levantou e deu a volta na mesa, pegando um alfinete
vermelho para posicionar no imenso mapa mundi que estava fixado na
parede.
— Depois disso, elas são embarcadas em outro navio de carga, e
chegam a ficar até cerca de vinte dias em alto-mar, rumo à América do Norte.
Mais precisamente, Flórida. Algumas delas nem chegam vivas ao destino.
— Por que Flórida? Melhor, por que Key West? — perguntei, sem
entender.
Todo mundo sabia que uma das rotas de tráfico de mulheres tinha
como destino Nevada, já que muitos cassinos de prostituição se encontram
em Las Vegas.
O capitão posicionou outro alfinete, com uma linha atravessada
entre o extremo de Key West e a ilha de Cuba.
— Porra, elas são encaminhadas para Cuba?
Olhando para nós, ele disse com seriedade:
— Não é o objetivo final, mas o principal financiador de toda essa
troca é um milionário que reside na ilha, Pablo Montez.
— E estamos falando apenas de tráfico humano? — Dylan
questionou.
— Um dos objetos de troca são as mulheres. O outro é um extenso
carregamento de armas.
— Eles estão trocando vidas inocentes e totalmente fodidas de um
país esfacelado pela guerra... por armas? Do outro lado do oceano? O ditador
sírio não é aliado da Rússia? — comentei. Se estivesse interessado em armas,
não seria bem mais fácil consegui-las através de seus contatos?
— As armas estão sendo destinadas para fins terroristas. Há todo
um esquema orquestrado por trás, um pano de fundo que cria o disfarce
perfeito. Dentre o governo, há um grupo separatista, comandado por um
político de alto-escalão, que mantém os cofres cada vez mais cheios por estar
fazendo acordos com grupos terroristas espalhados pelo Oriente Médio e
Europa.
— Bom, isso vai meio que contra a própria causa, não? Ele está
agindo em meio a uma guerra civil, com o objetivo de armar outros
guerrilheiros por quê? — Scott quis saber.
— Por alianças improváveis. E, principalmente, por muito dinheiro.
Um carregamento com cerca de trinta mulheres chega a valer cerca de três
milhões de dólares em fuzis de vários calibres, bem como bombas de
tecnologia cubana, que tem se mostrado quase superior em seu poder letal.
Para piorar, até mesmo ogivas nucleares estão sendo comercializadas.
Masterson voltou à mesa, encarando a todos nós.
— O tráfico humano, por si só, já é um crime absurdo contra a
humanidade. São pessoas que estão sendo negociadas como se fossem
animais. As garotas mais novas são escravizadas em casas de prostituição e
são mantidas drogadas, de forma que nunca consigam fugir — ele disse. —
São levadas para bem longe de seus familiares. É o esquema perfeito: as que
estão ali não têm um lar para voltar. Mas há algo por trás que nos move
também em direção ao objetivo principal dessa organização.
— Produzir ataques terroristas fora dos grupos usuais, o que
dificulta o nosso governo a saber a fonte — afirmei.
— Exatamente. E nisso, há também o interesse do Governo de
Israel para que tudo seja desbaratado. Os terroristas têm como objetivo
destruir a nação. Por isso, o governo dedica seu ódio não somente a eles,
como ao povo americano também. Mas ele se vale de outros grupos, além dos
já conhecidos pela Segurança Nacional dos Estados Unidos, para que os
ataques se espalhem de alguma forma.
Cocei a cabeça, compreendendo toda a complexidade daquela rota
criminosa.
— E de onde vem a fonte que você citou pouco antes? — Scott
sondou.
O capitão se sentou e cruzou as mãos à nuca, inclinando-se na
cadeira.
— Estamos contando com a colaboração de um oficial do exército
israelense que tem agido como uma espécie de agente infiltrado no Mossad, e
é exatamente ele quem nos transmite as ações em tempo real. — Olhou para
o relógio militar em seu pulso esquerdo. — Nesse instante, eles estão
seguindo um dos percursos executados pela organização. E somente quando
pegaram um dos comparsas é que souberam que o destino da rota era os
Estados Unidos.
— Aí, nosso general deve ter recebido um telefonema amigável do
outro comandante do Ministério de Defesa israelense... — concluí.
— Exatamente. Com a diferença que a unidade de Direção de
Inteligência Militar assumiu a tarefa. Há uma razão para que o Mossad esteja
envolvido na história, mas isso ainda não chegou até mim. Nossa missão é
fazer o reconhecimento exato da origem do próximo carregamento,
interceptando da maneira mais limpa possível.
— E quanto a Key West? Há um local específico onde as outras
mulheres que já foram traficadas estão? — perguntei.
— Muitas estão sendo mantidas em um cassino que está sob
investigação dos Federais. No entanto, como sempre, o Governo exige uma
ação da nossa parte quando precisa assumir as rédeas da situação.
— O que queremos saber é se nossa operação será simultânea à
extração das vítimas — Scott sondou, balançando a perna em um tique
nervoso.
— Duas equipes de Seals já estão a postos apenas aguardando o
momento certo para fazerem a extração — ele informou.
— Mas, porra, por que já não tiram as garotas de lá antes? —
Dylan indagou, revoltado.
— Porque, se agirem agora, os cabeças da operação saberão e se
recolherão para que não sejam pegos — eu mesmo informei. — E para se
aniquilar um ninho de cobras...
— É preciso cortar a cabeça que dá cria aos filhotes — Masterson
completou.
— Certo. E partimos quando? — perguntei, já ansioso pela ação.
— Em cerca de três horas. O H-Hawk vai deixá-los no meio da
madrugada próximo à costa de Protaras. É de lá que vocês farão contato com
o agente destacado e assumirão a missão de interceptar o carregamento.
— Certo, mas... ainda não destruiremos o ninho, verdade? Se elas
são capturadas no campo de refugiados no Líbano... — conjecturei.
O capitão caminhou ao redor, colocando o dedo indicador sobre o
país.
— Por mais incrível que possa parecer, Israel está mais do que
preparada para aniquilar os mandantes da organização criminosa, ainda que
não seja aliada do Líbano.
— Há algum interesse por trás de tudo isso? — Scott perguntou,
com uma sobrancelha arqueada.
— Sim. Mas não sabemos qual. Cabe a vocês, durante a operação,
“reconhecerem” — gesticulou as aspas — as informações que não estão
sendo transmitidas com total transparência.
Eu e Scott nos entreolhamos, entendendo o grau de seriedade do
assunto tratado.
Em meio ao caos instalado na Síria, por conta da guerra entre o
governo ditatorial e os rebeldes, a população se viu alvo de bombas e ataques
de armas biológicas.
Todos os telejornais retratavam histórias sem-fim de refugiados que
buscavam deixar o país destruído, colocando suas vidas em risco em
travessias arriscadas pelo Mar Mediterrâneo, rumo a países que poderiam
recebê-los.
Eu podia sentir a revolta fervilhando meu sangue, já que não
conseguia acreditar que além de se tornarem alvos de uma guerra acidental,
inocentes também não se viam livres da maldade e corrupção humana.
O Capitão Masterson mostrou diversas fotos tiradas por satélites
que mostravam o momento exato em que um grupo de refugiadas era
violentamente conduzido até os cargueiros com destino ao Chipre.
Minha vontade era sair dali já munido do meu armamento, para
poder explodir os cérebros de alguns filhos da puta que se achavam no direito
de negociar vidas humanas.
Se eu bem me lembrava, o caso em que tivemos o privilégio de
ajudar Ailleen e o Major Justin, nos Estados Unidos, também estava ligado
ao tráfico humano. Os pais dela, assim como um poderoso senador, agiam em
conluio com um esquema de corrupção que tinha até mesmo algumas cabeças
poderosas no governo americano.
Nossa ordem foi abater e arrancar o joio do meio do trigo,
inclusive, das forças militares. E foi o que fizemos. Em uma operação
fantasma e confidencial, extraímos do sistema alguns malditos criminosos.
— É doentio ver que a escória humana se aproveita das mazelas de
um povo para ganhar dinheiro, porra — falei, entredentes.
— Sim. E ver que tudo se resume a dinheiro e poder é mais
estúpido ainda. Só que a coisa muda de figura quando nosso Governo vê uma
real ameaça terrorista e nuclear sendo arquitetada quase debaixo de seus
narizes — Scott comentou.
— Ainda bem que vivemos em um esquema de colaboração com
Israel, já que é um aliado poderoso.
Tudo bem que os caras do Exército de Israel eram bons, mas tanto
assim que valia o risco de um incidente diplomático com alguns países do
Oriente e América Latina?
— O Comandante de Segurança Pública e do Escritório de Guerras
está em um combate franco com um esquema armado entre um possível
cartel e uma organização criminosa com base na Europa. Dentre suas
operações de desmantelamento, acabaram descobrindo esta rota de tráfico e
solicitaram aos países aliados da Aliança Internacional que agissem de
alguma forma para que o esquema pudesse ser desbaratado.
— E a partir do momento que a sua fonte revelou que essa merda
toda saía do Mediterrâneo e estava se dirigindo aos Estados Unidos, fomos
acionados — comentei.
— São forças que estão se unindo para evitar que haja guerra
declarada com armamento bélico de nível nuclear, é isso? — Scott confirmou
minhas suspeitas.
O silêncio se fez na sala de reuniões, enquanto o capitão continuava
os argumentos.
— Exatamente. Não podemos nos esquecer das relações
estremecidas que os Estados Unidos têm com alguns países, além do combate
direto e efetivo contra o Estado Islâmico.
Eu não sabia dizer o porquê, mas achava que estava faltando
alguma informação ali. Era um sentimento que realmente provinha dos meus
instintos.
Como sniper, um dos fatores que sempre precisei contar, além do
fato da precisão, era com o instinto. O senso apurado de estar consciente de
tudo ao meu redor era excelente para uma missão bem-sucedida, mas ainda
havia aquela vibração mística, cósmica, sei lá que porra era aquela, que nos
fazia agir baseados em puro instinto.
E era exatamente aquilo que eu sentia naquele momento. Era como
se um quebra-cabeça de cinco mil peças estivesse praticamente montado, mas
uma pequena pecinha, no meio, e que finalizava a imagem em si, estivesse
faltando.
— Teag, você está em qual planeta, irmão? — Scott cobriu a boca
para sussurrar enquanto se inclinava para o meu lado. Estávamos parecendo
alunos do jardim planejando uma fuga para um recreio antecipado. Bom, não
sabia se Scott já havia chegado a cometer aquele delito, mas eu, sim.
— Em planeta nenhum. Estava apenas pensando merda — caçoei.
— Como sempre.
Ele deu um sorriso enviesado e sacudiu a cabeça, antes de
responder:
— Como sempre.
O telefone do capitão tocou e, com um pedido de desculpas
qualquer, ele saiu da sala. Todos nós começamos a falar ao mesmo tempo,
tentando traçar uma melhor estratégia para a entrada no ponto indicado.
Cerca de dez minutos depois, o capitão retornou, com o cenho
franzido.
— Vamos lá — começou, cruzando os braços à frente —, até onde
sei, essa operação está sendo considerada confidencial e está fora da demanda
que os fuzileiros têm recebido — disse, olhando para cada um de nós.
Ergui a mão, sem querer perder a oportunidade de perguntar o que
se passava na minha cabeça naquele instante.
— Cap, deixe-me ver se entendi — apoiei as mãos cruzadas sobre a
mesa —, estamos partindo para uma operação sigilosa, e em outro segmento
que não o usual ao qual sempre somos destacados. E digo usual no sentido de
guerra às portas, conflitos armados, ameaças terroristas imediatas, essas
coisas simples — ironizei e ouvi as risadas dos meus companheiros.
O Capitão Masterson assentiu, acenando para que eu continuasse
em minha explanação.
— É como se fosse uma espécie de desvio de atenção ao foco
central? Ou existe algo mais que não estamos sendo informados?
Todo mundo concordou em um aceno com aquele questionamento.
— Serei muito sincero — Cap sentou-se na quina da mesa —, as
ordens partiram diretamente do presidente. De acordo com o documento
“não-oficial” recebido e encaminhado pelo General Sanders, aliado às ordens
do Coronel Richardson, “o Governo dos Estados Unidos está contribuindo
com o de Israel em um assunto que conta com o interesse dos dois”.
— Mas a impressão é que estamos saindo no escuro — Scott
completou meu pensamento.
— Não é muito diferente das missões às quais já fomos designados
— o capitão emendou.
— Sim, mas parece estar faltando alguma coisa. Uma peça
importante que poderia ser decisiva na tomada de decisões — argumentei.
Nosso superior se levantou e andou ao redor da mesa, dando a volta
na sala.
— Vou dizer a vocês o que fui ensinado anos atrás, inclusive um
dos lemas do Major Bradshaw quando estivemos sob seu comando. — Fez
uma pausa antes de continuar: — Nesse momento, não cabe a nenhum de nós
contestarmos as ordens que foram dadas.
Assenti e resignei-me àquela sensação perturbadora, bem como à
expectativa de uma nova missão. A adrenalina que corria pelas veias era
sempre como a descida enfurecida das lavas de um vulcão em erupção.
Scott bateu no meu ombro e percebi que todos já estavam de pé,
com seus planos de ação em mãos.
Eu não sabia dizer o porquê, mas tinha a impressão de que aquela
peça que faltava era fundamental para o sucesso da operação.
E mais, até.
Eu sentia que aquela missão poderia ser decisiva na minha carreira
militar.

Entrei na cabine, com Scott em meu encalço. Desabei sobre a cama


e me recostei à parede, vendo-o se movimentar pelo espaço apertado.
— O que achou dessa missão? — perguntei em um tom sério e
pouco usual.
Scott olhou para mim por cima do ombro e abriu sua mochila tática
para pegar o colete Kevlar. Aquele era o momento em que tínhamos que
organizar cada pequeno item dentro dos inúmeros bolsos que, curiosamente,
possuíam uma função específica.
— Honestamente?
— Sim.
Observando os movimentos precisos de meu parceiro de equipe,
aguardei por suas palavras, pois sabia que ele, sendo o mais tranquilo e
pensativo da turma, sempre tinha alguma opinião pertinente a oferecer.
— Como outra qualquer. Das inúmeras que já fizemos vestindo a
farda. Mas talvez você esteja estranhando a diferença do posicionamento do
comando. — Sentou-se de frente e passou a mão pelo cabelo curto. — O
Major Bradshaw já entregava as coordenadas ao Capitão Masterson, com
todas as linhas de raciocínio e alternativas de andamento da operação.
— O que já nos fazia ir preparados para qualquer eventualidade —
acrescentei.
— Exato. Parece que o comando, dessa vez, só passou uma ordem
para o Cap e pronto.
— Certo. E resta a nós adivinharmos que merda pode dar —
declarei.
Suspirei fundo, cruzando os braços à frente do corpo.
— Então vamos nessa, não é? Mas acredito que tenha algo grande
por trás de toda essa operação — completei.
— Algo maior do que o prenúncio de uma Terceira Guerra
Mundial? — Scott indagou, incrédulo.
— Não sei, irmão. Só sei que meus instintos estão gritando como
duas velhas loucas.
Peguei a case onde guardava um dos meus maiores tesouros, meu
rifle sniper, ignorando a risada de Scott. Sem dar mais nem uma palavra,
comecei a conferir o equipamento e separar meus itens táticos, vendo que
meu parceiro voltou a fazer o mesmo.
De acordo com o capitão, nosso helicóptero decolaria da base naval
às 4:30 da manhã, rumo a alguma cidade na costa do Chipre.
Averiguei meu armamento, bem como o rifle de precisão para
qualquer eventualidade. Eu não entrava em uma operação sem ele, de forma
alguma. Aquele bebê já havia salvado a vida dos meus companheiros, assim
como a minha, em diversas ocasiões ao longo de todos esses anos a serviço
da Marinha Americana.
Para mostrar todo o meu amor e gratidão pelo meu M16, dei um
beijo no escopo sagrado que me permitia enxergar além do alcance de
qualquer mortal. Por ser compacto quando desmontado, estava sempre
comigo, mesmo que escolhesse levar um rifle de alta precisão de acordo com
a operação.
Scott bufou uma risada e sacudiu a cabeça.
— Você é um idiota — afirmou.
— Eu sei — respondi com um sorriso sacana.
— Vai levar o McMillan? — perguntou, ao se referir ao meu fuzil
de alta precisão e com capacidade de abater alvos blindados. Não sabia
explicar a razão, mas decidi que seria ele o escolhido. Meu precioso.
— Sim. Vamos dizer que essa belezinha está querendo sair para
passear — caçoei.
Levou apenas dez minutos para que nosso material estivesse todo
preparado. Anos de prática em partir em missões de reconhecimento, de uma
hora para outra, faziam isso.
Estávamos mais calibrados do que as miras de nossas armas; mais
afiados do que as lâminas de nossas navalhas; e mais calejados que as mãos
que seguravam os rifles e fuzis militares.
A vida no serviço militar não era fácil. Em momento algum. Não
aliviava os sentimentos de urgência e antecipação que poderiam culminar a
qualquer instante, ante uma missão que poderia ser a última.
No entanto, eu não a trocaria por nada nesse mundo. E sabia que
era por essa razão que nunca estaria à altura do respeito do meu pai. Para ele,
um homem de valor era aquele que enfiava a enxada na terra e criava o gado
que daria o sustento do lar.
Era o homem que ficava de sol a sol, sobre o lombo de um cavalo,
guiando um rancho produtor e bem-sucedido. O cara arriado que chegaria em
casa, daria um beijo simples na mulher, comeria sua refeição e dormiria às
oito da noite, preparando-se para acordar às quatro no dia seguinte.
Eu sabia o que era a vida na fazenda. Foi a que vivi até os dezoito,
quando criei coragem e resolvi caçar meu destino em outro rumo.
Em sã consciência, eu sabia que o que fazia pelo país era digno e
nem todos estariam dispostos a fazer. Eu daria a vida pela bandeira que
aceitei honrar em meus votos militares.
O risco de viver o inesperado, a cada novo despertar, era o que me
motivava a seguir em frente.
23h13
O som de um grito me acordou de repente.
Sentei-me, em alerta, tentando me situar e orientar. O balanço do
barco agitou meu estômago, e foi preciso conter a onda de náusea que
subitamente me atingiu.
Colocando as pernas para fora da rede onde estava deitada,
desajeitadamente procurei no bolso da calça cargo a faca alemã que havia
ganhado de presente de Aaron, pouco antes de sua morte.
Outro grito encheu o silêncio da noite e percebi que se tratava de
algum pássaro noturno, uma coruja, talvez.
— Vá dormir, Zilah — Ibrahim resmungou do canto.
— Perdi o sono — retruquei.
— Não tem essa de perder o sono. Amanhã será um longo dia.
Você precisa descansar esse cérebro para a operação — admoestou.
Estávamos já na segunda semana desde que extraímos o comparsa
de Kumar Al’Mayoun.
Não foi preciso muito esforço dos agentes do Mossad para
conseguirem arrancar algumas informações importantes sobre a missão à qual
fomos designados. O infeliz acabou abrindo a boca quando percebeu que os
métodos de extração de informações usados pela agência nem sempre
condiziam com uma interrogação limpa.
Não fiz questão de me inteirar a respeito de quem havia submetido
o refém à tortura, mas soube que cerca de um dia depois, ele entregou o
trajeto que agora seguíamos, bem como a operação toda. Foi aí que o
Comandante Cohen informou a colaboração da Marinha americana.

Duas semanas em que eu não comia ou dormia direito, e ainda


precisava lidar com a resistência e babaquice sem tamanho de Jacob Berns, o
imbecil.
Por mais que os outros dois agentes fossem gentis e educados
comigo, a energia negativa do peso das críticas e reclamações de Jacob me
colocavam em alerta o tempo todo.
Algum sensor nos meus instintos apurados dizia para não baixar a
guarda em momento algum com ele. Para me manter sempre em alerta
máximo.
Cheguei até a popa da embarcação modesta e inspirei o ar
abafadiço da travessia pela costa ao norte do Chipre.
Mahidy parou do meu lado e acendeu um cigarro. O homem sabia
ser furtivo quando queria.
— Nossa operação começa a ficar mais impactante a partir de agora
— declarou.
Sem olhar para ele, continuei encarando o vazio do braço do mar à
frente.
— Mais do que já tem sido? — perguntei com ironia.
Eu podia sentir seu olhar.
— Sei que tem sido difícil para você, Zilah. Jacob não tem te dado
trégua em momento algum, e isso vem afetando...
— Afetando meu desempenho? — cortei e virei-me para encará-lo.
Os olhos escuros do meu superior estavam concentrados em mim. — Se
disser que não tenho me saído melhor do que o esperado, por conta das birras
de um de seus agentes, sabe que estará sendo injusto, não é mesmo?
— Calma, estava apenas dizendo que sei que a “encheção de saco”
de Jacob pode ser perturbadora.
— É perturbadora, mas não é o suficiente para me tirar o foco. O
único aviso que vou dar, com todo o meu respeito ao posto que o senhor
exerce, é que se ele chegar perto de mim, como fez dois dias atrás, não
hesitarei em abatê-lo, entendeu?
Minha ameaça era mais real do que ele poderia crer. Jacob havia
me emboscado em uma das embarcações, logo depois de nossa partida, e me
pressionou contra a parede, ousando colocar as mãos em mim.
As ofensas de que eu era uma mulher inútil, porém bonita, e que só
servia para distraí-lo quando mais precisava estar focado, não atingiram o
objetivo. Não me fizeram desistir ou sair correndo dali, chorando, como ele
bem havia imaginado.
Apenas dei-lhe uma joelhada no saco, desfrutando imensamente do
momento em que se dobrou e quase vomitou no chão imundo do barco. Sem
dizer mais nenhuma palavra, deixei-o agonizando e relatei o ocorrido ao meu
comandante. Não como uma atitude de afronta, e sim porque poderia
comprometer a missão à qual ele me designou.
No entanto, aquele havia sido o meu limite. Em uma próxima,
Berns receberia muito mais do que apenas a dor de ter as bolas esmagadas
sob o peso do meu joelho.
Com um aceno, despedi-me de Mahidy sem dizer mais nada. Ele
devia conhecer o agente que tinha, já que sequer contestou as acusações que
fiz.
Saí dali e resolvi conferir os materiais que havia deixado guardados
sob as tábuas soltas logo abaixo da rede onde dormia. Depois de ver que tudo
estava organizado, sentei-me no material oscilante, outra vez, e deixei minha
mente vagar por memórias confortáveis.

Mal fechei os olhos, quando os primeiros raios da manhã se


infiltraram pelas frestas da parede. Em questão de segundos, estava desperta
o bastante e pronta para deixar aquela merda de barco e pisar em terra firme.
O apito informando que atracaríamos em dez minutos soou e, sem
mais demora, peguei a mochila do chão. Conferi se meu cabelo ainda estava
firmemente preso na trança no alto da cabeça, e encaixei o boné, colocando
os óculos de sol em seguida.
Para todos os efeitos, eu poderia facilmente ser confundida com
alguma turista em busca de aventuras pelas trilhas distintas que existiam na
ilha. Mahidy e Ibrahim se postaram ao meu lado, como se fizéssemos parte
de uma mesma excursão de biólogos.
Quando Jacob estendeu a mão para me ajudar a sair do barco,
ignorei e pulei para o cais sozinha. Eu não precisava de um homem para me
colocar de pé. Fazia aquilo muito bem sozinha, obrigada.
Caminhamos por cerca de dez minutos, em um silêncio confortável,
até acharmos a pousada onde fingiríamos nos hospedar. Nossos traços
deveriam estar cobertos em todas as frontes, e nisso os agentes do Mossad
eram experts.
Se alguém me perguntasse naquele momento o que eu mais
desejava fazer, precisaria confessar que minha vontade era tomar um banho
longo, para tirar a nojeira da embarcação e a sujeira na pele por conta das
inúmeras camadas de repelente, mas não ousaria fazer tal pedido.
— Poderíamos entrar nos quartos e trocar as roupas, o que acha,
Mahidy? Deixar uma parte do material e sair em busca de informações como
se estivéssemos apenas à toa... — Ibo perguntou. Quase dei um beijo em sua
bochecha pela iniciativa.
O líder da operação pareceu refletir sobre o assunto por um tempo,
até que afirmou com a cabeça.
Nós nos registramos no pequeno hotel e, logo depois de
combinarmos o encontro na taverna do outro lado da rua, cada um se dirigiu
ao próprio quarto para se acomodar. Graças a Deus, definiram que eu não
precisaria compartilhar o aposento com ninguém.
Retirei as roupas pegajosas e joguei tudo no chão da banheira,
disposta a lavá-las e colocar para secar em algum lugar. Como aquela ilha era
quente, possivelmente tudo estaria seco em pouco tempo.
Soltei o cabelo e revirei a mochila em busca do frasquinho de
condicionador para desembaraçar os fios. Perto da torneira do chuveiro havia
um pote de shampoo, o que cairia bem para me livrar da sensação de
imundice no couro cabeludo.
Eu não era dada a vaidades, mas também não gostava do incômodo
que as camadas de sujeira poderiam trazer, especialmente quando alguém se
aproximava muito. Sabia que poderia cortar os fios curtos, mas não queria me
livrar de algo que sempre fazia Aaron sorrir, quando ele passava os dedos e
penteava meu cabelo com carinho.
Deixei que a água tépida lavasse meu corpo, e fechei os olhos ante
a sensação fugaz de tranquilidade. Minha mente voou para outra época, outro
quarto de hotel, quando Aaron ainda fazia parte da minha vida. Quando seus
olhos escuros se conectavam aos meus com amor e ternura.
Sem me dar conta, uma lágrima solitária se misturou às gotas que
caíam da ducha fraca. Ao perceber, limpei o rosto e afastei os pensamentos
de que talvez nunca mais fosse capaz de ver aquela ternura nos olhos de
alguém.
Encerrei o banho rapidamente, me recusando a me dar ao luxo de
dispersar minha mente em autopiedade. Além do mais, o tempo estava
contado e em questão de minutos sairíamos a campo outra vez.
Porém, meu problema residia em algo mais complexo. Minha
participação dentro da equipe do Mossad ia um pouco além da função de
sniper e especialista em manobras de reconhecimento e evasão.
O Comandante Cohen havia me designado um papel muito mais
arriscado, e minha presença ali não passava de um disfarce para chegar ao
cerne real da questão: para onde as informações obtidas pela equipe estavam
sendo repassadas.
Até onde se sabia, o Departamento de Defesa havia direcionado a
operação para desbaratar um esquema de tráfico humano, mas com conexões
que poderiam estar sendo financiadas para fins terroristas e com ataques a
Israel.
No entanto, o mais complexo da missão era a estranha parceria que
havia se estabelecido com o governo americano, mais especificamente com
uma unidade de reconhecimento da Marinha. Eu entendia que o destino das
mulheres traficadas era os Estados Unidos, mas por que razão o
Departamento de Defesa de Israel não desbaratava tudo por aqui, sem
desenvolver um possível acidente diplomático, era um mistério.
Depois de vestir a roupa, conferi a mensagem criptografada em
meu celular:

Se lembra daquele evento em que comparecemos na


Base64? VGVuZW50ZSBDb2xsaW5z... maldito
corretor ortográfico... havia um livro interessante por lá.

O General havia enviado um código criptografado em Base64 que


informava o nome do contato.
Tenente Collins.
Esse era o contato operacional da equipe destacada para atuar em
conjunto. O que havia sido confuso desde o início se devia ao fato de Mahidy
não ter alertado esse encontro. Ou seja, era como se ele não fizesse a menor
ideia de que uma equipe de operações especiais se juntaria em breve àquela
missão.
Sem hesitar, digitei de volta:

Ainda não encontrei um livro como aquele... mas farei o


possível para encontrar.

Prendi o cabelo e vesti a regata preta e bermuda cargo bege,


calçando as botas de escalada. Eu tinha intenção de perambular pela área
assim que conseguisse despistar meus companheiros de equipe, de forma que
pudesse fazer contato com o general sem correr risco de ser apanhada em
flagrante.
Já bastava ter Jacob na minha cola sem que eu desse motivo para
desconfianças. Se ele suspeitasse de qualquer coisa, certamente me veria em
maus lençóis.
Chequei o carregador da pistola que sempre carregava comigo e a
enfiei no cós da bermuda, cobrindo em seguida com a camisa de algodão leve
que coloquei por cima da regata. Parei em frente ao espelho e ajeitei o boné,
trançando o rabo de cavalo. Para arrematar o visual de turista, coloquei os
óculos escuros e não me esqueci de pendurar a máquina fotográfica no
pescoço.
Ninguém precisava saber, mas dentro da mochila colorida e
comprada em uma feira artesanal de uma das cidades pelas quais passamos,
havia um rifle, um Galil ACE. Era pequeno, se comparado ao que usava em
missões como sniper, mas também possuía um alcance razoável.
Dei uma última olhada ao redor para conferir o quarto e saí,
trancando a porta em seguida.
Mahidy e Ibrahim já me aguardavam no pequeno saguão, faltando
apenas Jacob para completar a equipe.
— Shalom — o chefe cumprimentou assim que me viu. — Espero
que tenha dado tempo para um descanso — caçoou.
Apenas curvei o canto dos lábios em um sorriso irônico, desejando
por dentro que tivesse conseguido pelo menos dormir decentemente por vinte
minutos.
— Acho que quando essa missão acabar, vou dormir pelo menos
uma semana — Ibrahim emendou. — E você, Zi?
Dei de ombros, sem querer me alongar num bate-papo que não
levaria a nada. Eu sabia que os dois tentavam puxar assunto sempre que
podiam para diminuir o desconforto que minha presença trazia. No entanto,
quanto menos eu dissesse, menos motivos daria para que usassem qualquer
informação contra mim no futuro.
— Qual é a direção que tomaremos primeiro? — perguntei.
— Há um elegante mercado na região norte, e é lá que
encontraremos alguns itens interessantes — Mahidy respondeu em código.
Aquele era o sinal para indicar que sairíamos em busca de
informações a respeito de alguma movimentação estranha na cidade. As vilas
por onde havíamos passado acompanhando o carregamento mostravam
claramente que o trajeto nada mais era do uma forma de o grupo despistar as
atividades suspeitas.
O que diferia nossa localização atual com as vielas por onde nos
embrenhamos na última semana, era exatamente porque Protaras era uma
bela cidade turística, com praias paradisíacas e resorts de luxo. Destoava em
completo do circuito informado por um dos comparsas da organização
criminosa. Aquilo me levou a acreditar que algumas negociações deviam
acontecer por ali. Era o destino perfeito para compradores ricos.
Todo o esquema ainda era muito sombrio, um emaranhado de nós
que configurava um misto de engenhosidade e malícia, orquestrados por
mentes doentias que lucravam com a miséria humana.
— Muito bem, o esquema é o seguinte: sigo na frente com Zilah,
enquanto Jacob e Ibo se mantêm um pouco mais atrás. Somos um grupo de
pesquisadores da Bulgária.
— Bulgária? Eu não falo búlgaro, porra — Jacob reclamou,
chegando por trás de mim naquele momento. Afastei-me o mais longe
possível, irritada pela proximidade ofensiva.
— Então, pelo jeito, Zilah te supera em mais um quesito, porque
ela fala quase todos os dialetos cirílicos e mais alguns idiomas — Ibrahim
zombou, fazendo com que o idiota soltasse um rosnado e eu revirasse os
olhos.
Não gostava de me vangloriar das minhas habilidades, tanto que a
maioria das pessoas não fazia ideia de diversos fatos ao meu respeito. Eu
permitia que soubessem apenas o essencial.
— Jacob, isso vai ser ótimo para que você mantenha essa boca
fechada — Mahidy disse, em tom de deboche, mas com um fundo de verdade
por trás de suas palavras. — Nossa meta é chegar até a praça central do
mercado.
Saí do pequeno hotel em que estávamos hospedados, sem parar
para ouvir qualquer comentário desnecessário. Uma das coisas que mais
sentia falta era do convívio fácil e cheio de companheirismo que tinha no
exército. Embora quando estava em alguma operação, nos mantínhamos o
mais quietos possível.
Na minha área de atuação, o silêncio era uma benção necessária,
pois me privar dele poderia custar a vida de alguém. Acabei me acostumando
a me manter de tocaia e em posição por horas, sem trocar uma palavra com
qualquer pessoa, salvo para ouvir as recomendações do comandante da
equipe.
Sabia que muita gente pensava que eu agia com descortesia em
diversas ocasiões por me manter sempre em silêncio, mas não era capaz de
evitar essa característica da minha personalidade. Depois da morte de Aaron,
acredito que me fechei mais ainda.
Tinha ciência de que não tinha amigos chegados e que levava a
vida em uma rotina solitária. Aquilo fez com que me tornasse mais quieta do
que o normal, falando apenas quando necessário.
A cidade era de maioria turca, já que a parte norte da ilha era
separada do restante, recebendo o título de República Turca de Chipre do
Norte. Era uma pena que não estivéssemos no lado grego, onde os riscos de
um conflito direto com um país não-aliado eram mínimos.
Caminhamos por cerca de dez minutos, fingindo olhar tudo ao
redor. Eu fotografava algumas paisagens exuberantes, alguns mercadores
interessantes e comidas típicas que não atiçaram meu paladar em hipótese
alguma. Porém, para manter o disfarce com perfeição, fazia questão de me
mostrar admirada pela culinária que alguns feirantes colocavam em
exposição.
Em um determinado momento, separei-me de Mahidy e me
embrenhei em um banheiro público. Aleguei que precisava cuidar de assuntos
femininos, e rapidamente ganhei a liberdade que precisava para fazer contato
com o Comandante.

Será que poderia me enviar o nome da biblioteca onde


acharei o livro?

Em questão de segundos, recebi uma mensagem:

35° 06’ 39’’ N, 33° 57’ 13’’ L. Não consegui anexar o


localizador. É uma biblioteca deserta e rústica.

Coordenadas. E pelo restante da mensagem, era uma área militar e


isolada. Quando pesquisei a localização exata, vi que era uma vila a alguns
quilômetros de onde estávamos.
Varosha.
Deletei a mensagem criptografada e saí do banheiro, quase
esbarrando em Jacob, que parecia me aguardar.
— Por que demorou tanto? — indagou com uma sobrancelha
arqueada.
— E desde quando isso é da sua conta? — retruquei, virando as
costas para me afastar.
Quando sua mão agarrou meu cotovelo, virei de uma vez e com
uma manobra evasiva de Krav-Magá, coloquei-o de joelhos no chão. Os
transeuntes que passavam por ali nos olharam na mesma hora, assustados,
mas apenas disse em turco:
— Estou colocando o ombro dele no lugar. O pobrezinho sofre com
essa articulação há anos. — Dei um sorriso encorajador.
Alguns riram e desejaram melhoras, o que quase me fez revirar os
olhos.
— Coloque sua mão em mim mais uma vez e você vai realmente
saber o que é um ombro se deslocar da articulação — disse, entredentes.
— Porra, sua vadia, eu só perguntei por que demorou... agora me
solta, caralho.
Soltei seu braço e recuei um passo, para me defender caso ele
tentasse mais alguma coisa. Jacob se levantou do chão massageando o ombro,
com uma careta de desagrado.
— Tenho certeza de que você deve saber o que as mulheres fazem
num banheiro, já que é a mesma função fisiológica dos homens.
— Vadia — repetiu.
— Suas ofensas não me atingem, Berns. Você faz questão de me
desmerecer exatamente por saber que pode ser subjugado por mim. —
Cheguei perto o suficiente para que só ele ouvisse: — Na próxima, eu te
mato. Entendeu?
Saí dali mais uma vez revoltada por não ter cumprido minha
ameaça de acabar com ele quando me tocasse outra vez. Talvez por temer
alguma confusão, e para evitar atrair mais atenção do que já fizemos, dignei-
me a apenas deixá-lo de joelhos.
No entanto, esses agentes do Mossad estavam muito enganados se
acreditavam que por eu ser mulher seria um alvo fácil.
Talvez eles não tenham tido tanto contato com a ala feminina dos
soldados israelenses. Nós não éramos flores frágeis e quebradiças, e não
ficávamos isoladas em serviços burocráticos dentro das forças armadas.
Éramos guerreiras que lutavam pela nação, e recebíamos o mesmo
treinamento que os homens.
As poucas que ingressavam na Sayeret Matkal eram forjadas no
aço, submetendo-se aos testes físicos mais desgastantes possíveis. Em termos
de poderio, para que nos formássemos na Unidade de Forças Especiais,
estávamos quase quites com os requisitos para que um Navy Seal da Marinha
americana também fosse formado.
E eu não tinha medo de ninguém. Não estava ocupando aquele
posto, ostentando minha patente à toa.
A maioria das pessoas tendia a subestimar as militares mulheres,
especialmente quando eram jovens, mas esse poderia ser um trunfo que
poderia facilmente usar ao meu favor.
Contanto que ele entendesse que eu não estava brincando, quando
afirmei que o mataria em uma próxima oportunidade, não colocaria em risco
a confiança que meu comandante havia depositado em mim.
10h21
A chegada à cidade costeira de Protaras fora bem-sucedida. Depois
de mais de duas horas camuflados nas matas litorâneas, conseguimos entrar
sem sermos detectados, abrigando-nos agora em um hostel lotado de turistas
esporádicos.
Scott, Dylan, eu, Tyler, Jensen e Dougal nos dividimos em trios,
sendo que os três últimos estavam hospedados na pousada no final da rua.
Filhos da puta sortudos, já que poderiam desfrutar de banhos demorados,
mais quentes e privados do que o que estava usufruindo nesse momento.
Levei cerca de dois minutos para terminar a ducha rápida antes de
voltar ao quarto que dividia com Scott e Dylan. Quando entrei, ambos já
estavam praticamente prontos para sair. Vestidos em preto dos pés à cabeça,
nossa meta era nos infiltrar pela mata até o ponto de encontro de onde
havíamos recebido coordenadas específicas no início da noite.
35° 06’ 39’’ N, 33° 57’ 13’’ L. Mais precisamente, Varosha. A
porra de uma cidade fantasma cuja entrada só era permitida às forças
militares turcas.
Caralho. Isso significava que teríamos que nos infiltrar, porque a
ação estava acontecendo exatamente ali dentro.
O capitão Masterson havia nos informado que nosso contato com a
equipe do Mossad estava já em posição, o que significava que a operação
estava em pleno andamento.
Passava de um pouco mais de dez da manhã e sabíamos que o
trajeto seria longo. A meta era chegar até um antigo embarcadouro que ficava
no final do cais comercial. Para isso, teríamos que nos embrenhar pelas matas
mais uma vez. A embarcação nos levaria até os limites da cidade, onde
entraríamos por mar. O que eu precisava confessar que odiava. Essa coisa de
entrar a nado era para os Seals. Não era à toa que levavam a porra desse
nome.
Ninguém fazia ideia da dificuldade que era levar um equipamento
militar de quinze quilos e com o uniforme molhado. Mesmo que fosse o traje
tático, ainda assim, não aliviava em nada o desconforto.
— Vamos. Já estou preparado para ser chupado por milhares de
insetos repugnantes — brinquei.
— Nem me fale. Acho que naquela última missão, em que
passamos dois dias na mata, tomei tantas ferroadas que já devo estar imune à
maioria dos bichos peçonhentos — Scott comentou.
Enquanto me vestia, conferi se meu equipamento estava pronto,
checando os itens essenciais e necessários. Barras de cereal, tiras de carne
seca, o cantil de água abastecido, medicamentos e kit de primeiros socorros.
Binóculos, munição, armamento e meu amado rifle McMillan.
— Cara, se era para estarmos infiltrados nessa missão, não teria
sido melhor sair com essas roupas chamativas dos turistas? Tenho certeza de
que eu passaria despercebido como um asiático curioso pelas belezas naturais
da ilha — Dylan resmungou.
— Ah, claro. E eu seria o vocalista de uma banda de K-pop, com
esse cabelo loiro e barba, certo? — debochei.
Os dois começaram a rir e pararam quando o celular por satélite
soltou o alerta indicando que era hora de sair.
Abri a janela e conferi a distância do salto. Nada muito absurdo, já
que estávamos hospedados no segundo andar. Em menos de dois minutos,
nós três já havíamos nos enfiado pelos arbustos na parte dos fundos do
prédio. Teria sido preferível usar a porta, óbvio, mas três caras grandes e
armados até os dentes, em uniforme militar não passariam despercebidos,
com certeza.
Mais dez minutos e encontramos Jensen, Tyler e Dougal na clareira
mais distante da trilha turística.
— Certo, o Comandante Richardson passou mais algumas
atualizações ao Cap — falei e puxei o dispositivo que indicava os pontos
onde precisaríamos fazer o reconhecimento e colocar os marcadores para
outra equipe, caso fosse necessário. — De acordo com as coordenadas, um
grupo de agentes israelenses vem acompanhando o percurso do grupo
criminoso desde Syraz... Eles os seguiram por diversas vilas costeiras. Os
filhos da puta acham que podem enganar um bando de caras fodões do
Mossad.
— E não houve nenhuma interceptação? — Scott perguntou.
— Um informante foi identificado na vila. O grupo de agentes
reteve um dos elementos que participaria das trocas e checou a trajetória
desde antes. Parece que o cara era comparsa de um dos mandachuvas. Nós
estamos com sorte, já que eles estão nessa há duas semanas e têm feito o
serviço sujo ao longo do caminho.
— O que significa que estão deixando um rastro sangrento para trás
— Dougal comentou.
— Bom, o Mossad age na surdina, mas sabemos que os filhos da
puta são implacáveis — Scott emendou. — Além de serem bem-providos
quando precisam ser acobertados.
— Bom, o Cap informou que há um oficial da Sayeret Matkal entre
eles. Tenente Stein, segundo consta do código transcrito. Está atuando como
agente operacional, integra as forças especiais e é especialista em tiros de
longa distância. Ou seja, um sniper a quem devo cumprimentar — brinquei.
— É melhor que não precisemos nos enfiar em nenhum conflito, ou o pobre
coitado pode acabar ficando deprimido ao se deparar com a minha
magnitude.
— Com certeza — Scott concordou, mas bufou uma risada de
deboche. — Certo. Pontos destacados até agora: reconhecer o percurso,
identificar os agentes e simplesmente chegar lá e... nos apresentar?
— Algo assim.
— Nada de ação? — Jensen, o mais novinho, perguntou. Ele havia
integrado a equipe de Recons há pouco mais de seis meses. Era bom no que
fazia e me lembrava muito a minha versão mais jovem.
— Até que se prove o contrário, não. O Capitão quer que façamos o
menor alarde possível de nossa presença — Scott retrucou.
— O que não significa que tudo vai passar sem intercorrências,
então, para isso, vamos evitar o máximo possível nos desviar do foco. A meta
é seguir no mesmo modus operandi que faz de nós os fodões em operações
de reconhecimento — informei. — Scott guiará o grupo pelo perímetro,
enquanto me manterei a postos e pronto a neutralizar qualquer ameaça
invisível.
Depois de acertados os detalhes, seguimos pela mata fechada
munidos de nossos equipamentos e armas em punho. Por mais que
soubéssemos que estávamos sozinhos ali, nunca era demais se prevenir.
Mesmo que serpentes e animais peçonhentos fossem as únicas criaturas a nos
oferecer perigo imediato.
— Não teria sido mais prudente fazer a incursão durante a noite?
— Jensen perguntou.
Olhei para trás e lancei um sorriso compreensivo.
— Acredite em mim, garoto. Sua aventura noturna vai chegar. Só
não agora. A maioria das trocas está sendo feita à luz do dia — comentei. —
Por mais incrível que pareça, os traficantes são destemidos e só têm
executado operações no meio da tarde.
— Algum critério para isso? — Scott perguntou.
Dei de ombros antes de responder:
— Não faço ideia. Talvez seja alguma coisa religiosa deles? —
caçoei.
Meu comentário foi seguido de risadas, e em um determinado
momento ergui a mão em punho para que o esquadrão se imobilizasse.
— O que houve? — Scott cochichou e varreu a área com seu rifle.
— Estão ouvindo o ruído da embarcação? — perguntei.
— Sim — todos responderam em uníssono.
Conferi o relógio e marquei a bússola que indicava a direção exata.
— A cerca de 400 metros a noroeste — informei.
— Porra, como você sabe? — Tyler, que quase nunca se
pronunciava, perguntou, abismado.
— O cara é um sniper, imbecil. Consegue calcular a distância dos
tiros só com a velocidade do vento — Dylan retrucou.
— Crianças, não briguem por causa das minhas habilidades —
debochei. — Vamos apenas dizer que sou uma pessoa bastante atenta para os
ruídos à minha volta. Inclusive, Dougal, se eu fosse você, me afastaria
devagar da cobra à sua esquerda.
Dougal deu um pulo tão longe que fez com que todos caíssemos na
risada.
— Babaca — resmungou.
— Foi só pra ver se você ainda continuava sendo bom no reflexo...
— brinquei.
Voltamos a caminhar por mais alguns minutos até que a
embarcação entrou em nosso campo de visão.
Agachando logo atrás de algumas pedras imensas, sinalizei com
dois dedos para cima, indicando que devíamos seguir em duplas. Soltei um
assobio longo que informou nossa aproximação ao contato que nos levaria até
Varosha.
Em questão de segundos, a portinhola dos fundos da cabine do
barco se abriu.
— Vão, vão, vão! — ordenei.
Depois que os quatro primeiros saíram em disparada, eu e Scott
avançamos, conferindo se as cercanias ainda se encontravam livres de
qualquer perigo.
Entramos no barco e deparamo-nos com o maior filho da puta do
mediterrâneo. O cara devia ter uns dois metros, no mínimo, e a compleição
física superava a do Dwayne “The Rock” Johnson. A barba quilométrica não
devia ter visto um hidratante há um bom tempo, toda emaranhada. O cara
parecia um pirata. Dos mais sujos, diga-se de passagem.
Quando o homem nos cumprimentou em grego, deduzi que devia
trabalhar clandestinamente desse lado da ilha.
— Acredito que aqui nenhum de nós fale grego, senhor — falei e o
cumprimentei.
— Tudo bem. Só em terem identificado o idioma já valeu o dia —
respondeu e mostrou os dentes amarelados em um sorriso.
Nosso trajeto até o ponto levou mais de quatro horas, já que
chegamos a pegar o mar agitado por conta de uma tempestade tropical.
Quando estávamos a uma distância aproximada de cinco quilômetros da
costa, avistamos as cercas que rodeavam a cidade fantasma. Pelos binóculos,
pude ver que toda a extensão estava sinalizada com placas de área militar
fixadas ao arame farpado.
O barco navegou por mais alguns quilômetros até parar a uma
distância segura e que não classificasse qualquer suspeita para sabe-se lá
quem fazia a proteção do perímetro.
Vestidos agora com os trajes táticos e impermeáveis, conferimos a
quantidade suficiente de Oxigênio para a manobra de infiltração, além de
averiguar as metralhadoras subaquáticas. Eu ainda levaria um peso adicional,
já que minha mochila continha meu equipamento para a montagem do rifle
sniper.
Em menos de quinze minutos, todos estávamos mergulhando em
direção ao ponto mais distante da ilha, onde a vegetação rasteira que
margeava a praia poderia nos encobrir assim que saíssemos no mar. Pelo
ponto demarcado, ficava longe da vista do mirante onde devia haver um
soldado turco de prontidão.
Seguíamos como uma unidade coesa aproximadamente sete metros
abaixo da superfície, quando avistamos o ponto exato onde o banco de areia
começava a sinalizar a praia mais próxima. Liberamos os tanques de
oxigênio, seguindo apenas com as mochilas táticas às costas e os rifles em
mãos.
Em silêncio absoluto, nos esgueiramos para dentro da vegetação e
mais adiante para um casebre abandonado que alguma vez chegou a ser uma
casa de veraneio.
Varosha havia sido, até os anos 70, um ponto turístico onde muitas
celebridades de Hollywood chegaram a se hospedar. Agora, não passava de
um monte de escombros e construções depredadas, como uma cidade pós-
apocalíptica.
Sem hesitar, conferi as coordenadas para onde deveríamos seguir e
sinalizei aos outros da equipe que se alinhassem em duplas. Precisávamos
nos misturar ao ambiente para não corrermos o risco de detecção.
— Detesto andar com essa sensação de estar meio molhado —
Dougal comentou.
— Deixe de frescura — ralhei, confirmando nossa posição pelo
GPS. — Todos prontos? Não podemos nos descuidar. Embora pareça não
haver uma alma viva nesta cidade, não se esqueçam de que está debaixo da
proteção do exército turco, okay?
Com a confirmação de todos, empunhamos nossas armas e nos
infiltramos por dentre os prédios abandonados.
A cena era de deixar qualquer pessoa boquiaberta. Carros da época
ainda se encontravam estacionados nas garagens, cobertos por camadas
espessas de poeira; lojas ainda mantinham roupas penduradas em araras e
vitrines, tudo revestido pelas marcas do tempo.
Em um hotel, ainda era possível ver as mesas dos restaurantes com
talheres e pratos alinhados, tudo perfeitamente arrumado. Era como se as
pessoas tivessem estado ali naqueles locais e, no momento seguinte,
simplesmente houvessem desaparecido.
Sinalizando com o punho erguido e mais dois dedos acima,
indiquei que deveriam se espalhar pela cercania, em duplas. Quando conferi
as coordenadas no relógio, indiquei que o prédio onde ocorreria a primeira
transação entre os criminosos estava a apenas um quarteirão.
Eu e Scott seguimos alinhados às paredes esburacadas dos edifícios
até que chegamos a um ponto que nos dava uma visão adequada para
posicionamento. À esquerda, Dylan e Dougal se infiltraram por uma
construção inacabada, enquanto Tyler e Jensen seguiam mais à frente e à
direita.
— Estão vendo o prédio de seis andares às 15 horas? — perguntei.
— Sim — Dylan respondeu pelo comunicador auricular.
— Estarei posicionado exatamente ali para que possam entrar no
depósito que está marcado nas coordenadas como o ponto principal da
operação — informei. — Aguardem meu comando até que possam invadir,
okay?
Aguardei que todos confirmassem e, com a cobertura de Scott para
que eu chegasse em segurança ao prédio, corri pelas escadas depredadas até
alcançar o teto onde faria tocaia.
Somente depois de montar todo o equipamento do rifle McMillan é
que informei à equipe de chão que agora seria comandada por Scott.
— Em posição — alertei e conferi as redondezas pelo escopo do
rifle. Mirando em direção ao ponto de ação, avistei apenas um homem
fazendo guarda no topo de um prédio. Com um único tiro, neutralizei-o. —
Essa é pra você, amigo, que mal sabe o que vai te alcançar... Where do you go
now? Where do you go...Where do you go... Sweet child... — Acompanhei a
melodia do rock pesado. Fechei um olho e puxei o gatilho. — Alvo abatido.
— Cara, nossas missões têm trilha sonora... mas só você curte, né?
— Dylan resmungou, rindo baixinho.
— Não me desconcentrem, seus palhaços. É a guitarra do Slash que
faz com que meus tiros saiam perfeitos — debochei.
— Shadow, consegue ver o que estou vendo às 21 horas? — Scott
comentou.
Quando varri a área com o olhar, avistei o cano de um rifle de
longo alcance em meio a duas caixas d’água no topo de um antigo hotel.
— Que porra é essa? — comentei, entrecerrando os olhos.
— Será que constitui a equipe Mess? — Usou o código que
adotamos para não falar Mossad em nossa comunicação.
— Não tenho como confirmar. A visão de onde estou não me
favorece para abater como possível ameaça. Mas pela mira, o alvo certo está
localizado na mesma direção de onde toda a ação vai ocorrer. — Girei o
escopo e ajustei o foco para marcar a distância caso fosse necessário um tiro.
Somente quando olhei para um dos prédios que ficava a cerca de
um quarteirão de distância é que identifiquei outro atirador de elite.
— Porra, temos dois snipers em posição. Três, contando comigo. E
um deles, certamente, está com o segundo atirador na mira — informei e
foquei o escopo do rifle. — De onde estou, consigo identificar facilmente, e,
na boa... o alvo é inimigo.
— Qual critério? — Scott perguntou em código.
— O mesmo de sempre — respondi com a mesma abordagem,
indicando que o terceiro atirador era classificado como ameaça. — O objetivo
dele é o sniper que suponho seja integrante da Mess. Assuma o solo, Scott.
Vou ver o risco imediato que esse cara oferece. Em posição.
— D, T, Doug e J, sigam pelo flanco esquerdo e direito,
respectivamente — Scott orientou. — Teag, manda ver.
Algo naquela operação me incomodava. Era óbvio que havia um
conflito ali, já que um atirador de elite fora enviado para abater o possível
backup dos agentes israelenses. Mas por que razão?
Pelos dados passados pelo Cap, nosso contato seria exatamente o
sniper israelense de sobrenome Stein, então, se algo o estava ameaçando, era
hora de agir para impedir que fosse abatido sem que tivéssemos a chance de o
interceptar e colher as informações necessárias.
O som de dois tiros limpos atraiu minha atenção, e percebi que o
segundo atirador, possivelmente Stein, havia neutralizado inimigos no
interior do enorme prédio que mais se parecia a um depósito antigo. Tiro
longo e preciso. Impressionante.
Quando vi de relance o brilho da arma do terceiro atirador, agi por
instinto. Mirei em sua direção e, em um ínfimo segundo, apertei o gatilho.
A distância de onde eu estava mal chegava a um quilômetro, o que
seria facilmente simples de cobrir. O que não contava era que o atirador
também disparasse simultaneamente, na direção do alvo inicial.
Vi minha equipe invadir o prédio, mais sons de disparos e gritos
ecoando no silêncio da rua deserta. Em segundos, abati três comparsas que
seguiam em direção ao meu esquadrão, cobrindo suas retaguardas.
— Vai, vai, vai! — Scott gritou.
— Scott, atirador no telhado neutralizado. Creio que o segundo
também tenha sido, e acredito que era a fonte. Como estão em campo?
— T, desça daí e suba lá, cara. Por aqui parece estar tudo sob
controle. Estamos em busca das mulheres.
Desmontei o rifle com agilidade adquirida em anos de prática e o
enfiei na mochila tática, pegando o fuzil de assalto. Em menos de dois
minutos já descia a escada e disparava pela rua lateral ao prédio. Enfiei-me
por entre as carcaças de veículos abandonados e corri em direção à
construção do antigo hotel onde avistei o segundo atirador.
Era uma pena que os elevadores não funcionassem mais, então tive
que optar em subir as escadas pelos quase dez andares. Com o M16 em
punho, ia me assegurando de que a área estivesse livre para que pudesse
chegar ao telhado.
Graças a anos de treinamento e um condicionamento excelente, não
cheguei tão ofegante e, quando me enfiei por entre as caixas d’água, avistei o
sniper caído e gemendo no chão.
Além de estar xingando em seu idioma. Hebraico, com certeza.
— Laazazel! Bem-zonah![4]
Quando parei ao seu lado, o sniper reagiu por instinto e puxou a
pistola 9mm Jericho 941, também conhecida como “Baby Desert Eagle”. Se
o idioma estranho não delatasse a origem do soldado ferido, então a arma,
certamente, entregaria, já que era de fabricação exclusiva da indústria militar
de Israel.
Ergui as mãos em rendição e apontei para o emblema do meu traje
tático, indicando que era aliado.
— Opa. Calma... Estamos do mesmo lado.
Não sabia identificar qual choque havia sido maior: estar com uma
arma apontada no meio da minha testa, ou perceber que o sniper na verdade
era uma mulher.
— Quem é você? — ela perguntou com um forte sotaque.
— Tenente Collins — informei. — Achei que o atirador de elite,
Stein, do Mossad fosse nosso contato.
A garota arqueou a sobrancelha e apontou para o nome bordado
acima do emblema da sua unidade militar.

Devolvi o cumprimento, arqueando eu mesmo a minha para


demonstrar que não conseguia ler o alfabeto em hebraico.
— Eu sou a Tenente Stein — disse, gemendo enquanto comprimia
o ferimento no ombro.
— Deixe-me ver a gravidade — pedi, já tentando afastar sua mão,
mas encontrando resistência.
— Não precisa — resmungou.
— Acho que precisa, sim. Seu kit de primeiros socorros está aí? —
perguntei, focando no comunicador ao dizer: — Scott, estou com a
andorinha.
A mulher arqueou a sobrancelha mais uma vez, com um sorriso
desdenhoso nos lábios.
— Teag, vaza daí, porra. Tem alguma coisa errada nessa merda.
Um tiro passou de raspão por cima do meu ombro, atingindo a
amurada de cimento onde a mulher estava recostada.
— Caralho! — gritei na mesma hora, jogando-me por cima dela e
ouvindo o gemido de dor. — Perdão, querida, mas se não sairmos da reta
nesse instante, nós dois vamos fritar.
Engatinhando, conseguimos nos esconder por trás de uma coluna
que servia como ducto de ar. Outro tiro soou, dessa vez passando a
milímetros da minha cabeça.
— Scott, recuar! Recuar! — gritei, vendo a tenente tentar passar a
alça do rifle por sobre o ombro não ferido. Não dava tempo de desmontar e
contar histórias divertidas naquele instante. Alguma coisa realmente estava
muito errada por ali. — Siga com os outros para o ponto de encontro.
— Mas e você, cara? — perguntou Dylan.
— Eu vou levar o kebab avariado comigo — disse, referindo-me à
oficial israelense.
— Ben-zonah...
O resmungo que ela deu em seguida só poderia estar se referindo à
minha santa mãe. Palavrão era palavrão em qualquer idioma do mundo, e não
precisava ser expert para detectar quando era o alvo de algum xingamento.
No caso, eu estava servindo de cobaia naquele exato instante para a garota
irritada.
— Teag, não acho que seja uma boa ideia, cara — Scott alardeou.
— Scott, tira a equipe daqui. Tem um prédio logo atrás desse
antigo hotel, é por lá que vou tentar sair. Desde que consiga sair da mira do
atirador filho da puta — resmunguei. — Abati um, mas havia outro já a
postos. Isso está me cheirando a treta das grandes.
— D, J! 15:45! Agora! — Scott orientou a posição para onde
deviam ir. — Doug e Ty, venham comigo!
Ao som de mais disparos, puxei a oficial e corremos em direção ao
canto oposto do telhado, sempre buscando o refúgio das sombras e colunas de
cimento. O edifício vizinho era tão próximo que ficava a cerca de um metro e
meio de distância, e quando parei para pensar na alternativa de sugerir um
salto, surpreendi-me ao sentir o movimento súbito à minha esquerda.
Ela pulou sem hesitar por nenhum instante. Agachada do outro
lado, gesticulou para que eu arremessasse minha mochila tática. Sem mais
demora, joguei por cima do prédio e saltei em seguida.
— Sabia que a gente costuma contar até três para executar uma
ação de grande impacto? — caçoei. Tudo bem que a hora não era apropriada,
mas meu choque causou um estalo no meu cérebro.
— Sério? Situações extremas exigem medidas extremas — disse,
gemendo em seguida. Seu rosto estava pálido e era nítido o desconforto. Eu
precisava conferir se o tiro fora apenas de raspão. Seu uniforme estava
empapado de sangue.
— Precisamos nos abrigar em algum lugar para que eu possa cuidar
do seu ferimento — comentei.
— Está tudo bem. Foi de raspão — respondeu à minha dúvida
anterior. — Perdi contato com a minha equipe assim que fui alvejada.
Aquela informação não passou despercebido. Como assim, os
agentes que a tinham como cobertura, simplesmente bloquearam contato? Eu
não fazia ideia se entre o grupo de espiões havia alguma espécie de código
para situações como essa, mas o nosso lema e grande trunfo dos Fuzileiros
Navais era que nunca abandonávamos um companheiro. E isso explicava
exatamente a razão da hesitação de Scott em atender minhas ordens para que
recuasse ao ponto de encontro onde poderiam dar um jeito de voltar à cidade.
Recoloquei a mochila nas costas e vi que ela empunhava o pesado
rifle, fazendo uma varredura pela área. Em uma pose de guerreira ultrajada e
ferida, foi naquele instante que percebi como era bonita.
Sacudi a cabeça para afastar a mente de pensamentos que não nos
levariam a lugar algum. Precisávamos sair dali imediatamente. Eu não sabia
onde o outro atirador estava, mas como os tiros cessaram, deduzi que agora
ele não tinha nenhuma visão privilegiada de nossa posição.
— Vamos — eu disse e liderei o caminho até a beirada do teto. —
Ia sugerir que descêssemos pelas escadas internas do prédio, mas como
estamos meio no escuro aqui, seria bom evitarmos, já que não sabemos
quantos comparsas o atirador tem em terra.
Ela assentiu e espiou por cima da calha onde eu calculava se seria o
ideal para descermos. Percebi que a garota não era favorável a receber
ordens, especialmente de alguém que integrava outro exército, ainda que
fôssemos aliados e estivéssemos na mesma situação.
Apesar do ombro ferido, ela começou a descer pelas amuradas e
beirais das janelas estilhaçadas. Fiz o mesmo, sempre me assegurando de que
não seríamos um alvo fácil naquela posição.
Quando chegamos a uma altura razoável, pulei, sentindo o efeito
imediato do peso da mochila às costas. Sem demora, sinalizei que ela fizesse
o mesmo, porém me mantive a postos para segurá-la. Sem hesitação, a
Tenente Stein primeiro lançou a arma que levava ao redor do ombro para que
a pegasse, e em seguida se soltou da janela onde mantinha o agarre firme e
caiu... em meus braços.
Ela rapidamente se desvencilhou, segurando o ombro e se
agachando por um instante antes de pegar seu rifle que eu havia deixado no
chão. Segurando-a pelo braço bom, ajudei-a a desmontar o equipamento e
enfiei na minha mochila, para logo mais sairmos dali em direção à rua
deserta.
Corremos por cerca de quinze minutos até alcançar um limite da
cidade abandonada que terminava em uma densa mata à beira de uma
montanha. Eu seguia à frente, rompendo os galhos imensos para dar
passagem à garota que vinha logo atrás.
O único ruído audível era o som de nossas respirações pesadas e
passadas apressadas. A estática no meu comunicador auricular mostrava que
estávamos a raios de distância do restante da minha equipe. Eu o arranquei e
enfiei no bolso da calça, conferindo às minhas costas se a oficial israelense
estava em dificuldades.
Quando a vi recostada em uma árvore, percebi que era hora de
parar e cuidar do ferimento que a estava debilitando pela perda de sangue.
Mais à frente, vi uma clareira encoberta pelas árvores e arbustos, e sem dar
chance de a garota reclamar, peguei-a no colo e corri na direção do refúgio
onde poderia prestar o cuidado necessário.
— O que acha que está fazendo? — ela gritou, assustada. Com o
ritmo acelerado da minha corrida, não me dignei a lhe dar uma resposta
sarcástica. — Me coloque no chão!
— Cala a boca, porra. Você mal consegue ficar em pé —
resmunguei.
Escolhi o local mais distante possível e depositei-a no chão,
retirando a mochila dos ombros e alongando um pouco os músculos
doloridos. Vasculhei os inúmeros bolsos atrás do kit de primeiros socorros.
— Arranque a blusa — ordenei.
— O quê? — perguntou ainda boquiaberta.
— Boneca, não dá tempo de te oferecer um jantar ou flores,
entendeu? Tire a blusa. Prometo não olhar para os seus atributos — debochei.
Ela lentamente começou a desabotoar a farda, gemendo com o
movimento brusco para afastar a manga do ombro. Realmente havia sido um
tiro de raspão, o que facilitava um pouco a recuperação, mas o corte era
imenso e sangrava profusamente.
Com o pacote de gaze estéril preso entre meus dentes, abri a
embalagem de solução de clorexidina e despejei sobre o ferimento, vendo-a
morder o lábio inferior para conter o gemido de dor.
— Vai precisar de pontos — informei.
— Não precisa nada. É só colocar a bandagem e pronto — disse
com teimosia.
— Escuta, você quer perder mais sangue, é isso? A bandagem só
vai servir para estancar por um tempo, até encharcar de novo — argumentei.
— Não temos tempo para um jantar, flores e toques gentis, não é
mesmo? — contra-argumentou, e aquilo me fez sorrir. Meu tipo de mulher.
Sempre com uma resposta afiada e usando minhas próprias palavras.
— Quem disse que meu toque será gentil? — brinquei, jogando a
solução fisiológica em seguida. — Segure o curativo assim, comprimindo —
orientei.
— Eu já me costurei antes, tenente — respondeu com um sorriso
sutil. O primeiro desde que a conheci, minutos atrás.
— Bom, para conseguir fazer o mesmo com esse, teria que
desenvolver um baita torcicolo, moça — brinquei, já pegando os adesivos
que serviriam como pontos de sutura. Esperava que aquilo fosse o suficiente.
— A propósito, qual é o seu nome?
Meu foco estava na ferida, então não observei seu rosto, mas o
silêncio prolongado indicou que não queria revelar aquele detalhe. Ergui a
cabeça e a questionei, com a sobrancelha arqueada.
— Zilah — respondeu a contragosto. — E o seu, tenente?
— Teagan. — Abaixei a cabeça e dei início à tarefa que me propus.
— Somos companheiros de patentes, não é mesmo? Inclusive, de forças.
— Isso se você não contar que somos de países diferentes —
brincou e aquilo me fez erguer a cabeça.
Seu rosto estava mais pálido do que antes, mas ela ainda se sentia
bem o suficiente para fazer uma piada.
— Pelo menos somos aliados, certo? — repliquei com uma
piscadinha.
— Acabou? — perguntou, impaciente.
— Ainda não, boneca.
— Não me chame de boneca. Você acabou de perguntar meu nome.
Use-o — resmungou e bufou quando passei a pomada antibiótica. Essas
merdas realmente ardiam.
— Zilah. Bonito nome, por sinal.
Ela não se dignou a responder, mas o sorriso que curvou um canto
de sua boca foi o suficiente para me dizer que havia apreciado o elogio.
Passamos mais alguns minutos em silêncio enquanto eu aplicava o
curativo com cuidado.
— Bom, a manga do seu blusão está com um rasgo charmoso —
brinquei. — Primeiro tiro?
Ela mordeu o lábio quando vestiu a parte de cima da farda mesmo
assim.
— De raspão, sim.
Aquilo atraiu minha atenção na mesma hora.
— Então você já foi baleada antes?
— Sim. Em uma operação militar na Faixa de Gaza. Na coxa
esquerda. Tiro limpo, entrou e saiu sem fraturar o fêmur, mas me deixou com
uma bela cicatriz. — Deu de ombros. — E você?
— Bom, não dá pra esperar que alguém de operações especiais
nunca tenha levado uma bala. Já tomei dois tiros e sei que os filhos da puta
doem pra caralho — comentei. — Flanco esquerdo, quase me arrancou o
baço, e outro no ombro. Mas foi um deslize.
Na mesma hora ela retesou o corpo.
— Eu não me descuidei para levar esse tiro. O atirador estava
oculto no interior do prédio. Se estivesse no telhado, com certeza eu o teria
identificado — disse na defensiva.
— Ei, calma, tigresa. — Levantei as mãos. — Estou apenas
dizendo que a gente nunca espera uma bala, porque achamos que estamos
protegidos com todo o aparato militar que usamos em operações de risco.
Mas basta um deslize e pronto.
— A propósito... como você o viu? — perguntou, curiosa.
— Meu companheiro no solo identificou o brilho da arma. O cara
usou uma AMW.50 prateada. Pediu para ser identificado, não é? — Guardei
o restante dos materiais do kit dentro da mochila e puxei o cantil de água e
duas barras de energético, entregando uma a ela.
— Coma. Vamos ter uma caminhada longa por essa mata ainda,
talvez tenhamos que nos refugiar nas montanhas por esta noite — informei.
Ela conferiu o GPS do relógio tático e franziu o cenho, mas aceitou
a barrinha. Em seguida tomou um longo gole de água. Foi preciso desviar a
atenção da gota que deslizou pelo queixo e pescoço. Merda. Minha mente já
estava viajando para outro cenário...
— Laazazel... minha mochila ficou no telhado — disse,
recriminando-se.
— Primeiro, vamos esclarecer alguns pontos em nossa parceria:
você diz um palavrão na sua língua, mas na mesma hora traduz para que eu
possa entender, beleza? Tenho certeza de que xingou minha mãe alguns
minutos atrás, mas não posso assegurar.
O som de seu riso baixinho diminuiu um pouco a tensão da nossa
fuga.
— Certo. Esse que acabei de dizer nada mais é do que o seu porra
ou as variáveis criativas que sempre passam na nossa cabeça num momento
de raiva. E peço desculpas por ter xingado sua mãe — disse, corando um
pouco.
Ainda agachado à frente dela, tomei um gole no cantil e o guardei.
Nem sei porque fiz aquilo, já que poderia usar o canudo do cantil acoplado na
mochila às costas. Com o telefone por satélite em mãos, tentei nos localizar
mais precisamente antes de enviar a mensagem criptografada para o Capitão
Masterson.
Era necessário informar que a equipe seguiria incompleta até a
embarcação. O H-Hawk poderia pegá-los em um ponto da costa, enquanto eu
nos levava para o extremo oposto.
— Você fez contato com seus superiores? — perguntei, vendo-a
hesitar antes de responder:
— Não. Mahidy perdeu contato no transmissor pouco antes de eu
levar o tiro. Consegui apenas informar que havia abatido dois alvos no
interior do prédio — ela disse.
— Certo. Vamos esclarecer outro ponto antes de seguirmos. —
Encarei-a com seriedade. — Você é nosso contato dentro do Mossad, e
esteve atualizando os passos da operação que estavam cobrindo. Por quê?
Ela respirou profundamente antes de revelar:
— Meu comandante teme que haja um agente duplo dentro da
equipe do Mossad que foi destacada para desbaratar essa operação. Há mais
de três anos está sendo feita uma tentativa para interromper o tráfico humano
com financiamento de suprimento bélico para forças inimigas. Mais
precisamente, para alianças terroristas — ela disse. — Em algum momento,
as informações são filtradas e nunca chegam a tempo de neutralizar os
criminosos.
— Quantos agentes estão seguindo com você? — averiguei.
— Três. Mahidy, o líder, Ibrahim e Jacob.
— Não é uma equipe reduzida para uma operação desse porte?
Ela deu de ombros e se arrependeu quase que na mesma hora
quando repuxou o curativo.
— Os agentes do Mossad agem em esquadra, e ao invés das
operações das forças especiais, que sempre atuam em seis ou oito, eles optam
por equipe de campo reduzida e equipe de suporte remoto.
— Entendi. — Levantei e a ajudei a fazer o mesmo. — Bom, há
algo aí que definitivamente não está me cheirando bem.
— Bom, disso eu já sabia desde quando conheci Jacob Berns —
disse com sarcasmo. — Além de ter um fedor de queijo podre, ele não me
inspira nenhuma confiança.
— Você acredita que ele possa ser um traidor?
— Talvez, mas também me pergunto onde estavam Mahidy e Ibo
no instante em que estive sob a mira de um sniper. Os dados que foram
colhidos de um dos suspeitos de atuar em parceria com os sequestradores não
informaram que haveria equipe de apoio no depósito.
— Além do mais... há um detalhe interessante — comentei e
comecei a nos guiar pela mata —, não havia mercadoria alguma a ser
comercializada no depósito. Acredito que talvez vocês tenham sido atraídos
em uma emboscada. — Olhei para trás para ver se ela estava acompanhando
meu raciocínio. — Eles só não contavam que nos encaminhamos para o
mesmo lugar.
Aquela havia sido uma armadilha friamente orquestrada. E quem
estava por trás disso agora acabara de ganhar um poderoso inimigo: o corpo
de fuzileiros da Marinha Americana.
Olhei para ela, dei uma piscada e instiguei que continuasse a seguir
nossa rota.
— Seja lá quem pretendia te matar, acabou metendo os pés pelas
mãos. Precisamos apenas nos reorganizar para descobrir exatamente quem
foi.

[4] Respectivamente: Merda/Porra e Filho da Puta em hebraico.


20h54
O americano e eu já estávamos caminhando há cerca de três horas.
O breu da noite dificultava um pouco o percurso, mas como o loiro falador
seguia à frente, eu me apoiava em seus passos certeiros.
Ele era alto, mais de 1,90m de altura. Suas costas largas pareciam
uma muralha. Em momento algum se queixou do peso da mochila às costas, e
eu só poderia deduzir que devia estar com cerca de 40 quilos em
equipamento, a contar com meu rifle de 14 que estava ali dentro.
Ainda estava me recriminando por ter deixado minha própria bolsa
naquele lugar. Que merda. Eu nunca me descuidava a ponto de servir de alvo
fácil para um possível atirador de elite, tendo que sair às pressas para não ser
abatida.
Sendo uma sniper, sabia muito bem que bastava um instante de
distração para perder a vida. Um ínfimo segundo... e a próxima coisa que
você veria era as portas do paraíso... Se é que esse fosse o seu destino.
— Você ouviu o que falei? — o homem perguntou, arrancando-me
dos pensamentos recriminatórios.
— Ahn... o quê?
— Está precisando de uma pausa? — repetiu, agora parado à minha
frente e um pouco inclinado para que nossos olhares ficassem nivelados. Eu
era alta, mas este homem... me superava em mais de vinte centímetros.
— Tem alguma dimensão de quanto falta para chegarmos a seja lá
em que lugar esteja nos levando? — Passei o antebraço pela testa suada.
Ele conferiu o relógio e em seguida o telefone por satélite. O cenho
franzido indicava que não gostou da informação contida ali.
— Porra...
— O que houve? — Cheguei mais perto, quase invadindo seu
espaço pessoal. Ambos estávamos cansados e precisando de uma pausa.
— Vamos ter que encontrar algum lugar para nos abrigar pela noite
— ele disse olhando ao redor e mais uma vez conferindo o GPS.
— Por quê? — insisti.
— Estamos sendo cercados. Seja lá quem for a pessoa que está por
trás dessa merda, definitivamente está querendo a sua cabeça a prêmio. —
Olhou para mim, esperando que eu respondesse algo mais. Meu silêncio disse
tudo. Eu não fazia ideia do que havia por trás daquela operação além do fato
de sentir que um traidor poderia estar entre nós, confirmando as suspeitas. —
Vamos seguir para o norte por mais algum tempo, até pararmos para
pernoitar.
— Está muito escuro, e quanto mais nos enfiarmos nas matas, mais
difícil será identificar o melhor caminho — falei o óbvio.
— E é para isso que os óculos de visão noturna servem — brincou.
— E isso também — disse e puxou um gancho de elástico do cós da calça,
afivelando a extremidade no meu cinto. Quando senti seus dedos roçando
sobre a pele da minha barriga, um calafrio tomou conta do meu corpo.
Esfreguei os braços para disfarçar. — Você vai andar na linha, garota. Ou
corremos o risco de cair juntinhos e emaranhados. — Piscou.
Revirei os olhos diante de sua arrogância, embora um sorriso
teimoso estivesse querendo se manifestar em meu rosto.
Mesmo que eu não tivesse pedido, ele desacelerou as passadas de
forma que eu conseguisse acompanhá-lo sem dificuldade. Por mais que nosso
treinamento como forças especiais fosse um dos mais brutais do mundo,
ainda assim, quando nos víamos em meio à ação, sem que fosse exercício de
prática, a coisa mudava de figura.
Por vários momentos precisei me apoiar no corpo forte do
americano. Ele não mostrou reação em nenhum instante. Não como o meu
estava reagindo à sua proximidade. Quando parou por alguns minutos, sem
perceber segurei-me à sua cintura e recostei em seu ombro. Somente aí o
senti retesar os músculos.
Olhando por cima do ombro, ele perguntou:
— Hora de dar uma parada, hein? Como está o ombro?
— Latejando e doendo como um filho da puta, mas tudo bem.
— Precisamos nos alimentar e hidratar. De acordo com a leitura
pelo satélite, estamos a uma distância de mais de cinco quilômetros de quem
está no nosso encalço. Fora o fato de que parecem ter desistido por um
momento. — Mostrou a tela e indicou os pontos agora imóveis. — Você
retirou o GPS da sua farda? — perguntou.
— Pouco antes de saltar do prédio — informei.
— Ótimo. Dessa forma seus companheiros não terão como rastreá-
la.
Concordei com um aceno de cabeça e afastei-me dele. Antes que
conseguisse soltar o elástico que nos prendia, ele segurou meu pulso.
— Vamos seguir até aquela encosta. Há uma gruta por ali,
possivelmente até mesmo água corrente.
— Como sabe?
— Há uma cachoeira que era muito usada como trilha de passeios
outdoor no passado. — Mais uma vez mostrou o dispositivo que servia como
um mapa da região.
Em silêncio, seguimos por mais dez minutos. Meu corpo estava
dolorido, o estômago retorcia em um nó ante a fome; a garganta estava seca e
precisando de um litro de água. Eu podia sentir minha temperatura aumentar,
e suspeitava que talvez estivesse com febre.
Como se tivesse lido meus pensamentos, o Tenente Collins disse:
— Vamos trocar esse curativo e renovar a dose de pomada
antibiótica.
Meu cansaço era tão intenso que mal conseguia responder. Então,
quando a gruta da qual ele falara surgiu à vista, não consegui conter o suspiro
de alívio.
Assim que conseguimos nos enfiar pela passagem estreita,
escalando as pedras pontiagudas, Teagan acionou a luz química que fazia
parte de seu kit militar. O ruído das gotas soou como um bálsamo para meus
ouvidos. Logo mais à frente, um filete de água escorria de uma das fendas da
rocha. Virei para ir em direção, mas esqueci que ainda estava conectada a
Teagan, então acabei puxando-o de encontro ao meu corpo. Nós dois
tropeçamos e, de repente, me vi sendo pressionada pelo corpo maciço contra
a parede de pedra.
— Ai — gemi quando meu ombro ferido se chocou contra a
superfície rígida.
Era como se eu estivesse imprensada entre duas imensas paredes.
Às costas e à frente. A diferença era que o que estava diante de mim, de
repente, ofegou e respirou com dificuldade. E, quando ergui a cabeça, deparei
com o mais belo par de olhos azuis que já havia visto. Olhos que me
incendiaram da cabeça aos pés.
— Desculpa — sussurrei, ainda sem me mover para afastá-lo. Eu
não entendia o que estava acontecendo... talvez a febre estivesse realmente
afetando meu juízo. — Esqueci da armadilha que você colocou em mim —
brinquei, tentando aliviar a tensão sexual repentina.
— Eu disse que você precisava andar na linha ou acabaríamos
enroscados um no outro, não é? — retrucou em um tom de brincadeira, mas
seu olhar ardente me dizia que possivelmente estava sentindo a mesma coisa
que eu.
Apoiei as mãos em seu peito forte e o empurrei de leve. Ele cedeu o
peso e enfiou a mão entre nossos corpos ainda muito próximos, demorando-
se um tempo longo demais para desafivelar o fecho que se prendia ao meu
cinto.
Talvez tenha sido apenas impressão minha, mas, por um instante,
pensei que estivesse fazendo uma carícia suave com os nódulos dos dedos.
Em um segundo, assim que me vi livre, afastei-me dele e caminhei para o
canto oposto, esquecendo até mesmo que nossa colisão se deu porque eu
tentava alcançar a fonte de água.
— Venha, boneca, deixe-me ver esse ferimento — disse, já abrindo
a mochila para alcançar o kit.
Tentei me recompor antes de me virar outra vez para encará-lo.
— Acho que estou com mais fome do que com dor — aleguei. — E
estou me odiando profundamente por ter deixado todas as minhas guarnições
para trás.
— Relaxa. Aqui tem o suficiente para esta noite e para amanhã.
Caso precisemos alongar nossa estadia nessa reserva florestal maravilhosa e
sob domínio das forças inimigas, sempre dá para caçar alguma coisa por aí —
brincou.
Sentei-me um pouco mais distante à sua esquerda e aceitei a barra
de carne seca que me ofereceu como aperitivo. Em questão de minutos, ele
havia armado uma pequena fogueira no centro, de forma que pudesse aquecer
a lata de feijão recém-aberta.
— Vamos lá... já que vamos dormir juntos — brincou —, melhor
nos conhecermos melhor antes, que tal? — E lá estava mais uma vez, a
piscada que sempre acompanhava suas palavras.
— O que quer saber, tenente? — perguntei, mastigando lentamente
e vendo-o fazer o mesmo.
— Sua idade já seria um bom começo. Você não é muito jovem
para ser tenente? — perguntou.
Comecei a rir e respondi:
— Idade é meramente um fator quando se identifica uma
habilidade militar, não acha? E, respondendo à sua pergunta, tenho 23.
Alistei-me no exército aos 18.
— E há quanto tempo faz parte dos Sayeret? — Sua pergunta me
surpreendeu.
— Como sabe que pertenço à Matkal?
— Vamos dizer que tentamos não nos enfiar em uma missão no
escuro — comentou. — A única coisa que não sabia era que o Tenente Stein,
que mantinha o contato com nosso comando, era uma mulher. Isso foi uma
surpresa.
Revirei os olhos, ciente de que a maioria dos homens se sentia
daquela forma.
— Bom, no Exército de Israel não diferenciamos nossos soldados
pelo sexo, e sim pelo empenho. Entrei nas forças armadas por opção, não
somente por obrigação em ter que cumprir o serviço militar — expliquei.
— Não fazemos isso também... — Arqueei a sobrancelha. —
Fazemos? Okay, me desculpa. — Ele ergueu as mãos. Sempre fazia isso
quando queria se desculpar por alguma coisa. — Isso é coisa de homem
babaca. Não que eu seja um o tempo todo, mas de vez em quando acontece...
Vamos começar de novo, senhorita Zilah Stein. — Estendeu a mão,
esperando que a aceitasse. — Eu sou o Tenente Teagan Kieran Collins, mas
pode me chamar de Teag, já que vamos dormir juntos.
— Nós não vamos dormir juntos — resmunguei.
— Ah, mas o que é isso, boneca... Estou preparando esse cantinho
do amor com tanto carinho — brincou.
— Engraçadinho — respondi, sem sorrir. Não queria que ele
percebesse que meu coração estava acelerado. — O que mais quer saber?
— Certo, você tem 23 anos, é uma Matkal, sniper e opera um rifle
CheyTac M-200 que está se esfregando no meu McMillan — caçoou. — Viu
como estamos destinados a ficar juntos? — Riu de sua própria piada.
Um sorriso começou a querer surgir nos meus lábios, mas o
contive. Eu não podia entrar naquela brincadeira, para que as coisas não se
confundissem. Estávamos no meio de uma operação fodida, totalmente no
escuro como ele mesmo alegara que não deveríamos entrar em missão
alguma.
No entanto, naquele instante, era dessa forma que me sentia. Como
um cego perdido em meio a um tiroteio.
Quando Teagan estendeu a latinha de feijão e uma colher, nossos
dedos se tocaram, trazendo aquela sensação nem um pouco familiar a mim.
Não era possível que estava me sentindo atraída por um cara desconhecido,
no meio de um conflito e ainda ferida.
— Diga-me, Zilah — começou, mastigando sua porção devagar —,
como era seu relacionamento com os agentes do Mossad? Melhor... como
você foi parar na agência de espionagem?
Respirei fundo e disse:
— Para a segunda pergunta, é uma longa história...
— Temos todo o tempo do mundo. Já que não temos nenhuma TV
para nos atrapalhar, dá pra conversar até o dia amanhecer — brincou.
— Bom, isso se o analgésico que vou tomar daqui a pouco não me
apagar antes.
O som de seu riso encheu a pequena gruta onde estávamos.
— Certo. Mas voltaremos a este assunto em algum momento.
Agora, e quanto à primeira pergunta?
Pensei um pouco antes para saber o que deveria revelar ou não. Eu
estava em dívida com ele, ainda sem saber ao certo por que correra em meu
socorro.
— O líder da operação, Mahidy, é uma pessoa ótima. Fácil de
conviver, é justo e competente. Ibo, Ibrahim, também. Embora não possa
dizer que fiz amizade com qualquer um deles, pelo menos me sinto
confortável em poder fazer o meu trabalho em paz. — Parei e abaixei a
cabeça.
— E o tal Jacob? — ele perguntou, percebendo que eu hesitava.
— É o típico babaca arrogante e misógino. Não aceitou bem que
uma mulher integrasse a equipe, ainda mais porque estou sendo cedida pelo
Exército. Para ele, agentes do Mossad devem ser exclusivos e estar na ativa
há anos antes de participar de uma operação de grande porte.
Ele me encarou por um longo momento e meu olhar caiu sobre o
movimento de sua boca ao mastigar o alimento. Mas que merda era essa? Eu
estava atraída pelos lábios dele?
— Bom, meu instinto me diz que esse agente irritou seus poros
muito mais por outra razão.
Arqueei a sobrancelha, surpresa com sua dedução.
— Por que diz isso?
— Ah, qual é, boneca... O mundo está cheio de homens escrotos
como ele, que pensam igual. Mas você é uma mulher bonita, competente...
isso já é o suficiente para ativar o instinto dominante de macho alfa. É uma
forma de querer exercer a supremacia masculina sobre as mulheres.
— Bom, a supremacia masculina dele teve um contato direto com
meu joelho. Confesso que a sensação foi ótima ao vê-lo se contorcer no chão.
A risada alta e bem-humorada ressoou pelo ambiente. Sem
perceber, acabei rindo junto. O movimento fez com as pontadas em meu
ombro ampliassem. Gemi de dor e aquilo atraiu a atenção do gigante loiro.
— Vamos lá, está na hora de arrancar as roupas para mim outra vez
— disse, dando um tapinha no meu joelho. — Mas vamos manter esse
coleguinha aqui bem calmo, beleza?
Coloquei a lata quase vazia no chão e comecei a abrir a jaqueta do
meu uniforme tático. Desta vez a retirei por completo e joguei ao lado. A
regata preta que eu usava estava imunda, e a sensação pegajosa do suor na
minha pele chegou a me incomodar. Eu devia estar fedendo, mas não queria
conferir para não dar a impressão de que estava preocupada com aquilo.
Teagan ofereceu um comprimido e o cantil de água, acenando com
o queixo para que tomasse sem contestar. O que eu não pretendia fazer, já
que estava sentindo meu corpo combalido. Eu precisava recuperar minhas
forças e agir menos como um bebê chorão, por mais que quisesse me deitar
em posição fetal e ficar ali para sempre.
Decidi observá-lo enquanto manuseava os itens básicos para fazer a
troca do curativo, mesmo que achasse desnecessário. Isso poderia ser feito no
dia seguinte, mas preferi me abster em dizer algo mais.
Ele era minucioso no que fazia, focado e mostrava habilidade, mas
um fator marcante era que sempre tinha um sorriso no rosto. Além de
cantarolar ou assobiar a todo instante.
Fechei os olhos quando senti os dedos ágeis trabalhando no meu
ombro. Em um determinado momento, uma singela carícia me tirou da névoa
em que havia me enfiado.
— Não deve ficar uma cicatriz extensa — ele disse com a voz
rouca.
Engoli em seco, sentindo um calor súbito me aquecer por dentro.
— Samti al ze zayin — disse e só depois percebi que falei em
hebraico. Ele estava me desconcentrando. — Quis dizer que não ligo pra isso.
Qualquer cicatriz do lado de fora ainda é melhor do que as que carregamos
por dentro.
Ele parou por um instante e me encarou com o olhar entrecerrado.
— E você tem muitas?
Não respondi, preferindo fechar os olhos para não enfrentar o tom
condescendente que permeava suas palavras.
Por mais que ele inspirasse confiança, e meu instinto me dissesse
que era um homem melhor do que muitos que já havia conhecido na vida,
ainda assim, não era hora ou lugar para compartilhar as dores que meu
coração carregava e que me tornaram a mulher amarga que muitos
acreditavam que eu fosse.
21h42
Não me passou despercebido que ela não havia respondido minha
pergunta, mas era nítido que devia esconder a sete-chaves os segredos de seu
coração.
Eu não era um cara muito dado a conversas profundas, talvez por
nunca ter me interessado em passar mais do que algumas horas com as damas
que me davam o privilégio de suas companhias. No entanto, a mulher durona
à minha frente havia despertado meu interesse em saber muito mais.
— Por que me salvou? — ela perguntou, interrompendo o fluxo
dos meus pensamentos.
— Eu não te salvei... lembra? Você levou um tiro.
— De raspão — respondeu, com um sorriso irônico.
— Ainda assim, um tiro. Por milímetros não perfurou a carne. Para
ganhar esse posto de salvador, eu teria que ter matado o babaca antes disso.
— Mas você o matou de qualquer forma. Não dá para controlar
tudo o que acontece no universo. Foda-se se ele apertou o gatilho segundos
antes de você — argumentou.
Dei de ombros, tentando não dar importância ao fato de que ela
queria me colocar como um herói que eu tinha consciência de não ser.
— É sério. Por mais que sejamos aliados, não dava pra você saber
isso realmente. Então... por que foi até mim? Você poderia ter abatido o alvo
e continuado dando a cobertura à sua equipe.
— Sim, poderia. E não deixei de proteger a retaguarda deles, mas
eu sabia que precisava chegar ao sniper que tinha o ponto focal da ação na
mira. Não fazia sentido algum você estar com os alvos prontos a serem
abatidos se não estivesse do lado dos mocinhos.
— E nessa história, há um dos caras maus que sabia que eu estaria
me assegurando de que os neutralizaria num piscar de olhos se estivessem no
lugar certo.
— Exato. — Sem ver, passei a mão em seu rosto para limpar a
sujeira residual que ainda impregnava sua pele. Ela não afastou o rosto e
manteve o olhar fixo ao meu. — Você parece uma amazona.
O som de sua risada trouxe um sentimento desconhecido ao meu
peito.
— Uma amazona sem nem um pingo de glamour, já que estou me
sentindo imunda.
Seu olhar varreu a gruta onde estávamos abrigados, voltando em
seguida para se focar ao meu.
— Tem noção de que horas pretende sair daqui? — perguntou,
tentando mudar o assunto e a energia vibrante que estalava ao nosso redor.
Era quase palpável. Algo como se uma corrente elétrica estivesse
gerando uma energia ao nosso redor.
— Talvez por volta das cinco da manhã — informei, conferindo o
horário em meu relógio. — Não passa das dez, então você terá tempo
suficiente para se recuperar.
Ela suspirou, cansada, e agradeceu com um aceno de cabeça.
— Somos treinados para resistir a todas as intempéries, não é? —
murmurou, com os olhos fechados. — Mas quando elas surgem, é como se
todo o preparo evaporasse. De repente, tudo ganha uma dimensão distinta, e
seu futuro se passa diante dos seus olhos. O que não acontece nos campos de
treinamento. Mas quando a gente treina, sempre pensa em tudo dando certo.
As variantes de uma missão fracassada quase nunca são avaliadas.
Refleti em suas palavras, sabendo exatamente ao que ela se referia.
Treinar para uma missão, em situações hipotéticas, era uma coisa. Estar no
olho do furacão era outra, completamente diferente. Eu já estava acostumado,
há anos tendo sido destacado para os mais variados tipos de cenários de
guerra. Por mais que ela alegasse estar nas forças armadas há cinco anos, e
por mais que integrasse um Exército que sempre estava imerso em conflitos
territoriais, eu podia imaginar que não estava acostumada a se ver em uma
situação que mais se parecia a uma incógnita.
Ela estava deitada no chão imundo, a cabeça recostada contra um
tronco de árvore ressecado. Um braço segurava o ferido, como se estivesse
tentando protegê-lo em caso de movimento súbito.
— Espere um pouco que vou preparar um lugar mais adequado
para que possa se deitar.
— Não tenho frescura com isso. Aqui está ótimo. — Seus olhos
ainda estavam fechados.
— Mulher, deixe de rebater minhas ofertas de luxo gratuito —
brinquei, vendo o sorriso de leve curvar seus lábios cheios.
Mesmo sem querer me afastar, levantei-me e voltei à mochila para
pegar o poncho camuflado que compunha os itens básicos da mochila.
Também peguei uma das meias que levava de reserva e uma camiseta.
— Vista a camiseta e coloque o agasalho. Vai esfriar à noite e você
precisa se aquecer. — Eu havia percebido que ela tremia, talvez até mesmo
por conta da febre branda que tentava disfarçar.
Ferimentos à bala podiam provocar os mais variados tipos de
reações e, dependendo do calibre da arma, ou se havia sido injetada com
alguma substância química e aderida ao metal, podia causar febre e
alucinações; mesmo com um tiro de raspão, como fora o caso. Junte a tudo
isso o fato de estar em um ambiente inóspito e sem os cuidados adequados.
— É sério, Teagan. Não prec...
— Boneca, não destrua a imagem de cavalheiro que levei anos para
cultivar. Além do mais, você sabe que evita o risco de piorar o seu estado,
então, apenas aceite.
— Obrigada — agradeceu e segurou minha mão por um instante.
O ruído de estática de repente soou pela caverna. Olhei para o meu
equipamento, percebendo que não provinha dos meus dispositivos. Zilah,
então, pegou um pequeno aparelho de dentro do bolso da calça preta que
usava e olhou para mim.
— Alguém da equipe está tentando fazer contato — informou.
Pensando rápido, agachei-me ao seu lado e gesticulei para que
respondesse ao chamado.
— Tsél — ela disse, olhando de relance para mim. — Sim,
General.
Não dava para saber o que estava sendo dito do outro lado, mas
pelo cenho franzido e os resmungos de Zilah, devia ser algo que não a
agradava. Ela falou mais algumas palavras em seu idioma e encerrou o
contato.
— Ele disse que os agentes reportaram que tiveram que evacuar a
área assim que perceberam que era uma emboscada, e que não conseguiram
fazer contato comigo — informou.
— E o que você acha disso? — perguntei, mas já sabendo que
aquilo ali era uma desculpa de merda.
— Que não passa de uma mentira deslavada — disse, categórica.
— Não sei a quem pretendem enganar, mas algo nessa operação está sendo
compatível com todas as suspeitas do meu comandante.
— E que suspeitas seriam essas? — perguntei, mas ela hesitou. —
Vamos lá... somos companheiros de fuga. Salvei sua vida...
— Você mesmo disse que não fez isso — retrucou, com um sorriso
debochado.
— Retiro minhas palavras. Salvei sua vida. Mereço um pouco mais
de consideração.
Quase engoli a língua quando ela retirou a regata que usava,
revelando o sutiã esportivo e que compunha uma espécie de proteção de
Kevlar sobre o tórax. Tentei desviar o olhar, mas registrei muito bem o
abdômen sarado e a cintura estreita. Além dos seios na medida certa.
Ela se levantou e foi até o filete de água que escorria na rocha,
molhando a regata que havia acabado de retirar. Em seguida, esfregou o
tecido pela nuca, rosto e colo dos seios. Limpou o sangue seco ao redor da
ferida e no braço, dando vida ao sonho molhado de todo adolescente que já
fantasiou alguma vez na vida com a vizinha lavando o carro e se molhando
toda com a mangueira.
Meu silêncio deve tê-la deixado desconfortável já que olhou para
mim por cima do ombro, com uma sobrancelha erguida.
— O que foi? — perguntou, confusa.
— Ahn, nada — respondi sem jeito.
— Nunca viu uma mulher sem roupa, tenente? — debochou.
— Claro que sim, boneca. Só nunca vi um sutiã... Kevlar — menti
descaradamente.
— Coisas que a tecnologia do Departamento de Defesa de Israel
faz por nós — respondeu e deu de ombros, gemendo em seguida. — Porra...
— Ahh, até que enfim um palavrão decente na língua universal —
brinquei.
— Acredite em mim... saiu sem querer. Quando estou estressada,
desato a falar no meu idioma, pouco me importando com quem está do lado.
— Fico feliz que tenha tido a consideração com este pobre fuzileiro
que não é poliglota.
Ela pendurou a regata úmida em uma rocha e pegou a camiseta que
lhe emprestei, olhando de relance para mim.
— Obrigada mais uma vez.
— Tudo bem. Troque a meia. Você não vai querer bolhas nesses
pés, e amanhã será uma longa caminhada até o cume.
— Vamos escalar a montanha? — perguntou, tentando retirar os
coturnos sem demonstrar o desconforto por causa do movimento do braço.
— Deixe-me fazer isso. — Afastei sua mão e assumi a tarefa de
desamarrar os cadarços. — Não discuta, mulher.
Um silêncio tenso se prolongou entre nós, até que voltei a falar:
— Se tudo der certo, amanhã conseguiremos o resgate enviado
diretamente do meu porta-aviões. — Retirei suas meias e coloquei as novas,
que ficaram enormes em seus pés delicados. — Mas não ache que me engana.
— Ergui uma sobrancelha, vendo-a me encarar em confusão. — Você não
me respondeu quais eram as suspeitas do seu comandante.
Depois que acabei minha tarefa, ela recolheu as pernas e abraçou os
joelhos, recostando o queixo nos braços.
— Que meu noivo foi morto exatamente por ter chegado a fundo
em algum esquema de corrupção entre os agentes do Mossad e essa operação
intitulada Zarpia.
A informação de que havia um noivo na equação não me passou
despercebido.
— Aaron e eu éramos da mesma unidade especial no Exército.
Quando concluí o curso de formação na Sayret Matkal, ele foi recrutado para
ingressar junto ao Mossad, acreditando que sua carreira poderia mudar de
rumo. Há algum tempo ele queria deixar as forças armadas, ou ao menos, o
fronte de guerra.
Gesticulei com o queixo para indicar que estava ouvindo e
aguardando por mais informações.
— Alguns meses depois de se infiltrar em uma operação já como
agente, ele foi morto.
— E qual era a ligação dele com as suspeitas do comandante?
— Aaron era sobrinho do meu superior — ela disse. Vi quando
fechou os olhos e suspirou, cansada. — Só soube desse parentesco quando o
meu comandante, o General Cohen, me imbuiu dessa missão. Minha função
era detectar onde as informações estavam sendo filtradas quando deveriam
ser reportadas ao Departamento de Defesa.
— E a equipe de espiões era a mesma em que seu noivo estava
trabalhando? — perguntei.
— Até onde sei, apenas Mahidy chegou a trabalhar com ele. O
Mossad opera com várias equipes simultâneas. A equipe de campo e a
unidade tática e de informação. Nenhum nome dos que estavam à época
conferem com aqueles que conheci agora.
— Certo. Então o esquema do “rato” continua desde sempre —
comentei, pensativo. Alguém estava saindo ganhando, e não devia ser pouco,
para interferir na justiça.
— Minhas suspeitas sempre recaíram em Jacob Berns. Mas talvez
minha raiva e repulsa por ele possam estar interferindo em meu julgamento
— admitiu.
— O que seu instinto lhe diz? — perguntei, vendo-a se aquecer por
baixo do poncho.
— Que ele e talvez mais alguém sejam responsáveis e estejam de
conluio com os criminosos. Há algo de muito estranho em tudo isso.
— Bom, todos os filmes do Jason Borne apontam para isso. — Ela
pareceu não entender. — Qual é... vai me dizer que não assiste Hollywood?
O sorriso curvando o canto de seus lábios atraiu meu olhar por um
longo momento. Não podia mentir: estava atraído pela mulher forte e
destemida à minha frente. Porra... além do mais... ela sabia operar um rifle
com perfeição e maestria... Então passei a pensar merda, imaginando o que
poderia fazer com o meu... rifle.
Sacudi a cabeça para afastar os pensamentos pecaminosos. Aquela
não era a hora ou o lugar. Eu precisava dar um jeito de que fôssemos
resgatados, e só então, meu capitão reestruturaria toda a missão Recon.
No entanto, se contasse nosso desempenho no ato de realmente
reconhecer um esquema criminoso por trás, sendo executado em uma ilha no
meio do Mediterrâneo, um destino que possivelmente não levantaria
suspeitas dos órgãos internacionais, ficava mais do que claro que poderíamos
intervir, já que houve uma troca de tiros entre os envolvidos.
Ao pensar naquilo, percebi o padrão óbvio: a organização
criminosa, associada a terroristas de plantão, havia escolhido pontos pouco
usuais no mapa. Tudo para que ficassem longe do radar.
Eles só não contavam que duas forças reconhecidamente poderosas
no âmbito militar se envolveriam. Nada de FBI, Interpol do caralho, ou seja
lá que outra agência governamental havia sido solicitada. Era Mossad e
Marinha Americana. Embora os escrotos do Mess não soubessem o que os
aguardava agora.
Zilah Stein estava sob meus cuidados, embora tivesse certeza de
que ela não precisaria de nenhum protetor para destruir seus próprios
dragões.
Cortando o fluxo dos meus pensamentos, disse, ao vê-la bocejar e
piscar para tentar se manter acordada:
— O remédio deve estar assumindo o comando no seu sistema.
Está na hora de um cochilo de cinco horas, pelo menos. Vou ficar de guarda
para qualquer eventualidade.
Ela pensou em discutir, mas ergui a mão e segurei a sua que estava
apoiada em seu joelho.
— Você precisa de toda a sua energia para o dia seguinte. Isso vai
evitar que eu tenha que carregá-la no meu ombro — pisquei e dei um tapinha
em sua mão —, o que não seria nem um pouco divertido ou produtivo para
nossa fuga — brinquei.
Ajeitei o lado mais macio da mochila para que apoiasse a cabeça.
— Deite-se e durma, Zilah. Vou reavivar o fogo e mantê-la
aquecida... A não ser que queira que me deite de conchinha para fazer esse
serviço — provoquei, mas nem eu mesmo sabia se era apenas uma
brincadeira. Se ela concordasse, tinha certeza de que aceitaria sem hesitar.
Droga.
— Obrigada. O fogo vai ser suficiente — retrucou, com um sorriso.
Observei enquanto ela se ajeitava e me surpreendi ao vê-la cair no
sono em questão de segundos. Cobri seu corpo com a jaqueta de seu traje
tático, para reforçar que se mantivesse aquecida.
Logo depois, recolhi possíveis traços de nossa presença ali, já
deixando a mochila preparada para nossa evacuação nas primeiras horas da
manhã. Com apenas meu fuzil de assalto e o telefone por satélite, sentei-me
perto o suficiente dela para servir de escudo caso necessário, e longe o
bastante para não me sentir tentado em me juntar ao sono reparador.
O sinal da luz piscante no telefone indicava uma mensagem
codificada. Não havia sinal para que pudesse efetuar uma ligação, mas ao
menos poderia me atualizar sobre os planos de resgate.
Porque de uma coisa eu tinha certeza: minha equipe não sossegaria
enquanto eu não estivesse desfrutando de uma cerveja no deck do U.S.S
Marula o mais rápido possível.
Semper Fidelis.
04h20
Quando minha mente enevoada despertou ao leve som do farfalhar
de roupas, abri um olho e deparei com o Tenente Collins já a postos e se
equipando com o colete Kevlar que havia retirado ontem à noite.
Ele percebeu minha movimentação e olhou de relance para mim,
indicando com o queixo algo no chão.
— Deixei algo para você comer e também um café instantâneo que
mais parece xixi de vaca, mas pelo menos vai te sustentar pelo dia.
Conferi o horário em meu relógio de pulso e contive o bocejo.
— Você chegou a descansar um pouco? — perguntei, sentando-me
e espreguiçando o corpo moído. Movimentei o ombro, sentindo a
musculatura rígida pela posição desconfortável no chão duro.
— Não preciso de sono, boneca. Meu corpo é capaz de se manter
acordado por mais de 36 horas, até que eu desabe como um tronco de sequoia
— brincou.
Peguei a caneca e a barra nutritiva, devorando tudo em segundos.
Levantei-me e retirei o poncho militar emprestado e lancei para ele,
informando que iria do lado de fora para atender aos apelos da natureza e ele
acenou.
— Não se afaste muito. O GPS indica que nossos inimigos
recuaram, mas nunca é demais se precaver com mais cautela.
Depois de esvaziar a bexiga, esfreguei os dentes com uma folha de
hortelã que encontrei pelo caminho. Não era o suficiente para tirar a sensação
de gambá morto na boca, mas por agora teria que bastar.
Quando entrei na gruta, Teagan já estava com a mochila às costas e
o rifle de assalto em mãos.
— Quando estiver pronta, estarei do lado de fora. — Saiu, dando-
me privacidade para trocar a camiseta enorme pela regata que havia usado
para me limpar na noite anterior.
A sensação do tecido imundo deixou minha pele pegajosa, mas eu
não poderia reclamar, pois pelo menos estava seca. No entanto, decidi manter
a camiseta militar que Teagan me emprestara, dobrando as mangas enormes e
amarrando a barra com um nó na altura da cintura. Calcei as botas, sentindo o
desconforto na ferida, mas quando a observei, vi que o curativo se mantinha
limpo.
Arrumei o cabelo o melhor que pude e saí, vendo a figura
imponente parada a cerca de três metros da entrada. Quando me postei ao seu
lado, ele me entregou minha pistola.
— Eu deveria me oferecer para carregar a mochila um pouco.
O som de seu riso preencheu a mata onde estávamos enfiados.
— Moça, se minha mãe descobrir que deixei uma garota levar a
bagagem, terei minhas orelhas arrancadas sem dó nem piedade.
— É muito cavalheiresco isso, mas não se esqueça de que já tive
minhas doses de carregar meu próprio fardo — rebati.
— Sim, mas vamos combinar que a mochila é minha, então...
Dei de ombros e o segui quando começou a andar a passos largos,
usando o cano da arma para afastar a vegetação que se tornava cada vez mais
cerrada.
Em um determinado ponto, nós dois tivemos que romper vários
galhos para que pudéssemos prosseguir rumo ao cume da montanha.
Meus músculos gritavam em protesto cerca de uma hora depois.
Teagan parou em uma encosta e estendeu a mão para que fosse até ele. Sem
cerimônias, ofereceu-me o canudo do seu cantil para que pudesse me
hidratar. A água reposta no cantil, extraída do pequeno filete na rocha, já
havia acabado há minutos.
Aceitei seu oferecimento e tomei alguns goles, surpresa por sentir o
frescor do líquido.
Teagan olhou para o relógio e apontou para o norte.
— De acordo com o mapa, estaremos no cume em cerca de seis
horas. Se chegarmos em menos tempo, melhor, já que poderemos nos
preparar para o salto — disse, encarando-me por trás das lentes escuras dos
óculos.
— Salto? — indaguei, confusa.
— O Little Bird não terá um galho para pousar. — Sorriu,
mostrando a covinha por trás da barba dourada. — Nós vamos saltar para
suas asas.
— Ah... uau.
— Isso aí. Uau. Vai ser uma experiência inesquecível — afirmou e
voltou a caminhar.
Sem que parássemos em momento algum, ele apenas estendia a
mão para trás para oferecer barras energéticas, sem que trocássemos palavras
para que nossa energia não fosse desperdiçada.
Em parte, eu estava grata pelo tratamento dispensado. Teagan em
momento algum me fez sentir como um fardo ou uma boneca de vidro por ser
mulher. Ele não me poupou, achando que não daria conta do recado. E talvez
aquele fosse um entendimento tácito entre nós, já que mesmo que
pertencêssemos a forças armadas de países diferentes, ainda assim, tínhamos
um treinamento distinto do restante como oficiais de elite.
E era daquele jeito que ele me travava: como um companheiro, de
igual para igual. O sentimento era enternecedor.
Por mais incrível que pudesse parecer, mesmo quase caindo de
exaustão, ferida e ultrajada por todo o esquema de corrupção que havia nos
colocado ali em primeiro lugar, também estava atraída pelo militar
americano.
Seria aquela uma espécie de Síndrome de Estocolmo diferente? Eu
não era sua prisioneira, nem nada, mas ao estarmos enfrentando as
adversidades juntos... aquilo pode ter criado um elo que só quem se via na
mesma situação compartilhava.
A estática do meu aparelho de comunicação se fez ouvir no silêncio
da mata.
Teagan parou e sinalizou para que não atendesse. Sem hesitar,
quebrei o dispositivo com o coturno, vendo que ele me encarava,
assombrado.
— Se foram capazes de cortar o contato durante a operação, nada
mais justo que eu faça o mesmo enquanto tentamos sobreviver no meio de
tudo isso.
Ele estendeu a mão e esperou que eu lhe devolvesse um
cumprimento. Arqueei a sobrancelha quando ele pegou minha mão e fez com
que tocasse a dele, já que eu não havia me prontificado.
Não éramos muito dados a manifestações efusivas em nosso
exército. Talvez pelo fato de vivermos em constante estado de tensão pela
região em que operávamos em Israel. Nunca dava para saber se, em meio a
um cumprimento, uma bomba poderia acabar explodindo na nossa cara.
— Bom, já estamos com um avanço de quatro horas. Em pouco
mais de uma hora estaremos lá no alto. — Apontou. — Quer fazer uma
pausa?
Eu não queria parecer muito desesperada por um descanso, mesmo
que fosse rápido.
— Porque não sei por você, mas eu preciso muito alongar meu
trapézio e encontrar um mato para aguar — brincou, fazendo-me suspirar de
alívio. — E seu ferimento?
— Está tranquilo. A dor é mínima, apenas um incômodo — menti.
— Ótimo. Você é uma péssima mentirosa — disse, rindo.
— Por que diz isso?
— Moça, se eu me excitasse com gemidos agonizantes, posso dizer
que teria uma ereção do tamanho dessa montanha que estamos subindo. —
Piscou.
Senti meu rosto queimando de embaraço pela admissão.
— Ahn...
— Não precisa gaguejar para se explicar, querida. Já levei um tiro
de raspão de um Shaher, então sei que dói pra caralho.
Não me estendi em perguntar em que conflito armado se deparara
com um rifle de uso específico no Irã. Ainda estava tentando me refazer da
vergonha por conta de seu comentário de cunho sexual. Por mais louco que
pudesse parecer, as imagens de nós dois nus, gemendo – dessa vez do jeito
bom –, infiltrou-se em minha mente, fazendo-me ficar mais vermelha.
— Não precisa ficar com vergonha, Zils — disse, usando um
apelido para o meu nome. O americano era do tipo abusado e que lidava com
as pessoas como se as conhecesse há anos, apesar de estarmos na companhia
um do outro há pouco mais de vinte horas. — Vamos descansar por uns
quinze minutos, tudo bem? Não podemos correr o risco de o corpo esfriar
muito, ou nunca mais vamos nos levantar daqui e acabaremos sendo o
almoço apetitoso de algum inseto maldito. Ou algum animal da floresta.
Porra... será que aqui tem ursos? — perguntou, mais para si mesmo.
Concordei e me sentei, recostando contra o tronco de uma árvore.
Cerca de dois minutos depois, ele voltou alongando o corpo atlético e
musculoso. Contive a vontade de me abanar. Céus. Eu devia estar ovulando.
Só aquilo poderia explicar minhas reações.
— Puta que pariu — ele xingou ao parar à minha frente. Por um
instante temi que tivesse falado em voz alta os pensamentos impuros que se
passavam em minha mente. — Não se mexa nem um só milímetro, okay?
Aquilo foi o suficiente para acelerar meu coração a ponto de quase
saltar pela boca. Só poderia representar uma coisa: algum animal oferecendo
risco imediato à minha pessoa. E se o arrepio em minha nuca fosse um
indicativo, eu poderia apostar minha patente como era uma cobra.
Sem hesitar, Teagan se lançou para frente como um relâmpago e
pegou a cobra negra que estava prestes a dar o bote no meu rosto. Senti
apenas o movimento passando, e em segundos, o americano segurava a
serpente pela cabeça, encarando-a com curiosidade.
— Não faço a menor ideia da espécie dessa víbora sorrateira, mas
posso dizer que não vamos parar e perguntar se a picada é venenosa, não é?
Levantei-me de um salto e cheguei perto de onde ele a mantinha
cativa. Sem demonstrar o medo que ardia em meu peito, fingi desinteresse e
dei de ombros antes de dizer:
— Não vejo razão em matá-la, já que não houve dano algum.
Ele começou a rir.
— Acho tão bonitinho quando você fala impostado.
— Eu não falo impostado! — gritei, ultrajada. Só depois é que
percebi que ele estava me distraindo do meu próprio terror. Percebi porque
quando ergui as mãos para apoiar sobre os quadris, estavam trêmulas.
Teagan se afastou e arremessou a serpente encosta abaixo.
— Espero que ela sobreviva. Mas pelo menos não estourei a cabeça
dela com a minha pistola.
— Que bom por isso. Afinal, minha cabeça estava a centímetros da
dela, não? — eu disse, com sarcasmo. Sua risada aliviou o momento de
tensão.
— Tenho a mira excelente, boneca. Em todos os sentidos —
disparou, e piscou maliciosamente.
Revirei os olhos e saí à sua frente, ouvindo a risada solta enquanto
colocava a mochila novamente às costas.
— Mamzer[5] — sussurrei. No entanto, não foi o suficiente baixo
para que ele deixasse de ouvir.
— Isso significa sensacional na sua língua? — perguntou e passou
por mim, tomando a dianteira.
— Hum-hum — desconversei, porém incapaz de disfarçar o sorriso
teimoso em meus lábios.
Mesmo enfrentando aquela adversidade, a companhia de Teagan
Collins era agradável. Mais do que pensei que poderia achar de fuzileiro
americano.
Por mais que ansiasse que aquele dia tivesse fim, que pudesse me
recostar e dormir por uma semana seguida, temia que sentiria a falta daquele
homem que em pouco tempo se mostrou muito mais atencioso comigo do que
tantos outros com quem convivia.
Tentei ignorar a voz interior que me dizia que estava atraída pelo
homem com o espírito brincalhão, mas que parecia esconder seus reais
sentimentos por trás do comportamento despojado.
Há muito tempo não me interessava por um homem, e com toda a
certeza do mundo... aquele ali não era o momento para isso.

[5] Desgraçado/babaca em hebraico


10h05
Quando eu e Zilah chegamos ao cume, faltava cerca de vinte e
cinco minutos até que o helicóptero despontasse no horizonte. Com os
binóculos, conferi do alto a floresta mais abaixo, checando também pelo
sistema do GPS e informes enviados pelo capitão que monitorava a
movimentação na região.
Pertencer ao Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha Americana
tinha muitas vantagens em comparação a outras organizações. Os sistemas de
tecnologia de ponta não perdiam em nada para os usados pelas melhores
agências de espionagem do mundo, incluindo o próprio Mossad, um dos
causadores de nossos infortúnios naquele momento.
Por mais que não quisesse admitir, meu corpo pedia por descanso
merecido, além de litros de cerveja gelada ou um bom e velho uísque.
Minhas impressões a respeito da minha companheira só se
tornavam melhores a cada minuto passado. Não a vi se queixar em momento
algum, mesmo quando percebi que em um dado momento ela havia
começado a mancar. Sem que percebesse, também segurava o braço e franzia
o cenho em desconforto.
Meus ombros estavam me matando, assim como a coluna, mas em
nada se comparava com o incômodo que comecei a sentir em minha área
mais ao sul, sempre que observava o corpo longilíneo se alongando.
Debaixo de toda a sujeira, suor e sangue, a mulher era um
espetáculo. Diferente das que costumava pegar, já que preferia as sem
conteúdo e com um corpo mais cheio de curvas para acolher o meu muito
maior.
Ela tinha a estrutura física forte, porém delgada. Os olhos ora
pareciam castanhos, ora pareciam dourados. Sempre que eu dizia algo
espirituoso, um sorriso de canto de boca se formava e o lado direito se
elevava um pouco mais em comparação ao outro.
Havia um jeito único com que arqueava a sobrancelha escura. Não
a vi com o cabelo solto, mas imaginava que devia ser cheio dada a espessura
de sua trança grudada à cabeça.
Quando ela me flagrou a observando, apenas sorri e ofereci um
pouco mais da água que levava às costas.
Sem hesitar, ela se aproximou e nossos corpos se esbarraram por
um instante. Cheguei a cogitar que o tom vermelho em suas bochechas fosse
resultado de uma timidez, mas, quando observei seu peito subindo e
descendo, como se respirasse com dificuldade, percebi que ela também havia
sentido a mesma faísca que irradiava como ondas entre nós.
Não tive pudores em continuar minha avaliação minuciosa
enquanto ela bebia a água que agora começava a escassear. Como se
aceitasse o desafio, Zilah devolveu o meu olhar com a mesma intensidade, e
quando seus olhos percorreram meu corpo, quase perdi o controle e a puxei
contra mim.
Ooaaa, cowboy. Segura essa onda, porque o momento não é
propício.
Mesmo que minha voz interior gritasse, era difícil controlar os
hormônios que teimavam em mostrar seu efeito por dentro da minha calça.
Porra.
Virei-me bruscamente para disfarçar e afastar-me da atração
magnética que a sniper israelense exercia sobre mim. Talvez, quando essa
merda toda fosse solucionada... quem sabe...
O ruído das hélices do helicóptero indicou que nosso resgate estava
próximo. Graças a Deus. Por mais que apreciasse a companhia da garota
gostosa ao lado, tudo o que eu mais queria agora era um chuveiro quente,
para em seguida resolver o maldito quebra-cabeça onde haviam nos enfiado.
— Escuta, nem preciso perguntar se você tem experiência com
voos turbulentos, então vou supor que sim — perguntei, olhando por cima do
ombro. — Esse será um deles.
— Embora nunca tenha “saltado”, como você se referiu à manobra
que teremos que executar, sim, tive treinamento aéreo e formação em
paraquedismo — retrucou e se postou ao meu lado.
Observei-a colocar a mão para cobrir os olhos da intensa claridade
do dia. O calor abafadiço estava nos matando, mas sendo do Oregon, devia
estar mais do que habituado. Mais até... já que nossas incursões no
Afeganistão ou Síria nunca vinham acompanhadas de um ar-condicionado
embutido em nosso corpo.
— Quisera eu poder oferecer um tapete vermelho para que sua
manobra evasiva fosse em grande estilo, mas dessa vez teremos que deixar
essas formalidades de lado. — Coloquei o comunicador no ouvido e busquei
o canal de comunicação. — Nosso helicóptero está entrando em domínio
aéreo turco, então não seremos bem-vindos por aqui. Isso se já não nos
detectaram.
Ela colocou as mãos em seus quadris, observando a aeronave se
aproximar ao longe.
— Apenas diga o que terei de fazer e não haverá problemas,
tenente — respondeu, sem me olhar.
— Uhh... quando você me chama de tenente assim, nesse tom de
voz, chego a sentir arrepios pelo corpo todo, boneca — provoquei, tentando
afastar o ar preocupado de sua fisionomia.
Sua risada baixa foi mais do que o suficiente para me aquecer por
dentro.
Concentre-se, Teagan.
— Teag — chamou a voz pelo intercomunicador.
— Já não era sem tempo, cara.
— Certo. Estávamos em um jogo de pôquer importante na base —
Scott caçoou. — Conhece o voo do pássaro?
— Estou mais para águia, babaca. Olha a imponência da minha
pessoa.
— Tanto faz. O importante é você preparar as asas pra voar. A
Andorinha já sabe que terá que pousar no ninho em pleno ar? — perguntou.
— Sim. Basta chegar.
— Certo. Faremos assim: Grieg se aproximará da encosta o
suficiente para que os dois saltem um de cada vez. Se o vento não for
favorável, então sobrevoaremos a uma altura razoável e lançaremos o cabo.
Aquela não era a melhor opção, já que para aquele tipo de manobra
evasiva, a aeronave teria que ficar mais tempo sobrevoando espaço aéreo
inimigo.
O brilho da lataria e o barulho ensurdecedor trouxeram aquela paz
que só sentia quando uma missão estava prestes a encerrar. E eu esperava que
de um jeito favorável para todos.
Não desejava que nosso salto fosse mais mortal do que parecia,
mas a força dos ventos já mostrou que não seria tão fácil quanto pensávamos.
Assim que a aeronave alinhou a cerca de dois metros da encosta,
acenei, indicando que arremessaria a mochila pesada primeiro. Dylan e
Dougal estavam sentados com as metralhadoras a postos, caso um ataque
repentino acontecesse. Depois do que ocorreu com Ailleen naquela missão,
não descuidávamos mais de nossas retaguardas.
— Zilah, lembra-se do salto que fez de um prédio ao outro ontem?
— perguntei e vi quando acenou a cabeça confirmando. — Dessa vez,
preciso que não aja no impulso, okay? Espere minha contagem.
— Okay.
— No três, você salta para dentro do helicóptero. Não olhe para
baixo e não pense em mais nada, apenas em pousar naquele ninho macio —
brinquei apontando a cabine ampla do H-Hawk.
Gesticulei para que Grieg tentasse chegar mais perto, mas as
folhagens e as rochas pontiagudas ao redor não permitiam.
Parei por trás de Zilah e apoiei a mão em seu corpo para lhe dar um
melhor equilíbrio antes do salto.
— Um... dois... três!
Ela disparou e percorreu a pequena distância, saltando no vazio
entre o cume e a aeronave. Suspirei aliviado quando os braços de Scott a
firmaram lá dentro.
Dando apenas o tempo necessário para que liberassem o espaço,
saltei... na mesma hora que uma corrente de ar agitou o helicóptero. Consegui
me agarrar nas barras de esqui de pouso, ouvindo os gritos acima de mim.
Caralho...
— Teag! — Scott bradou de cima.
Acho que calculei mal também que meus músculos exauridos não
cooperariam na hora de ganhar uma impulsão maior. Paciência.
— Vai, vai, vai! — gritei para que ele se afastasse da montanha ou
corríamos o risco de ser jogados contra as rochas.
— Teagan! — Ouvi a voz desesperada de Zilah.
O cabo de aço foi lançado no mesmo instante; soltei-me da barra
metálica e prendi o fecho ao suporte do cinto, subindo em seguida antes de
esperar que içassem meu corpo. À medida que ia sendo puxado, podia sentir
o empuxo do vento que tentava me sugar para a queda livre.
Subi alto o suficiente e meus braços foram agarrados pelas mãos
dos meus companheiros. O que me surpreendeu é que uma dessas mãos era
de ninguém mais, ninguém menos que Zilah Stein. Mesmo ferida, a mulher
não hesitou em me ajudar a subir, fugindo de uma morte certa.
Quando consegui me sentar, estava sem fôlego.
— Caralho! Seu burro, por que não esperou que lhe desse o sinal
positivo para saltar? — Scott bradou, revoltado.
— Cara, eu não estava a fim de tomar um chá antes que você
autorizasse meu voo rasante. Agora, vamos combinar... foi bonito, hein? —
Pisquei para uma trêmula Zilah, que me encarava boquiaberta.
— Mais para o voo de um pombo indo direto para as turbinas de
um avião, mas tudo bem — Dylan gritou e todos riram.
Torci a boca diante da piadinha que tinha como objetivo acabar
com a minha reputação, mas dei graças a Deus por termos conseguido sair
sem mais intercorrências.
Cerca de dez minutos depois, observei um filete de sangue escorrer
do braço da tenente. Sem hesitar, soltei-me do cinto de segurança e mandei
que Dougal trocasse de lugar comigo. Ela não havia trocado uma palavra
entre meus companheiros, parecendo estar sendo vencida pelo cansaço.
— Você está sangrando outra vez — falei, e apontei para o braço.
— Resultado do seu esforço em me ajudar. O que você tinha na cabeça? —
perguntei, por cima do ruído estridente da máquina.
— Só não queria ver a águia despencando e se esborrachando no
chão, tenente — respondeu com a voz débil.
Coloquei a mão em seu joelho, sentindo-a tremer sob meu toque e
disse, gentilmente:
— Durma, boneca. Vou te avisar assim que estivermos próximos
da aterrissagem para que possa fazer uma descida triunfal.
Um sorriso frágil curvou um canto de seus lábios.
— Com direito a tapete vermelho? — provocou.
— Pode ser que o tapete tenha a cor de asfalto e umas listras
amarelas alinhadas na pista, mas quem está reclamando? — caçoei.
— Ninguém, Teagan. Ninguém — respondeu, e fechou os olhos,
cedendo à exaustão. As olheiras marcadas de repente me mostraram que ela
estava bem mais desgastada do que demonstrou naquelas últimas horas.
Um pigarro atraiu minha atenção e, quando me virei, deparei-me
com Scott, Doug e Dylan me encarando com expressões variadas: assombro,
sorriso de merda e curiosidade.
Com um gesto teatral, mostrei meu dedo médio que serviu para
calar a boca de cada um deles, antes que tivessem a chance de dizer algo
mais.
Três horas e vinte minutos depois, avistei o U.S.S Marula, e só
então respirei aliviado. Foram poucas horas fora dali, mas vividas tão
intensamente que mais parecia que havia saído para uma longa jornada.
Antes que tivesse a chance de despertar Zilah, ela abriu os olhos e
se ajeitou no assento, observando tudo ao redor.
— Acredita que nunca estive em uma base marítima antes? —
disse, admirada.
— Sério? Mas o Departamento de Defesa de Israel investe bilhões
em suas forças armadas e não possui um único porta-aviões?
— Se você parar para pensar que a maioria dos conflitos bélicos em
que nosso exército se vê envolvido está situada na região do Oriente Médio,
exatamente onde estamos inseridos, não faz muito sentido manter uma base
aérea móvel, não é? — ela conjecturou. — No entanto, temos fragatas
espalhadas por toda a costa.
Nunca havia pensado assim. Para nós, americanos e portadores do
maior número de porta-aviões no mundo inteiro, aquele tipo de base era
normal. Além deles, nossas fragatas estavam espalhadas quase que
literalmente pelos sete mares.
— É verdade — atestei.
— Então... você é uma Matkal? — Dylan perguntou, e não me
passou despercebido o tom malicioso com que a encarava.
Percebi que ela havia ficado desconfortável, mas antes que pudesse
interferir, ela apenas disse:
— Não falo sobre meu treinamento, sargento. Tenho certeza que
sendo de uma unidade de elite da Marinha Americana, também deva guardar
certo sigilo a respeito de suas habilidades militares, não?
— Ahn, não. Eu gosto mesmo de me gabar — ele respondeu, e
todos nós reviramos os olhos. — O que foi? Duvido que se o Teagan fosse
um Seal manteria sigilo!
Zilah se mexeu no assento antes de continuar:
— Vamos apenas dizer que é preferível que um inimigo me
identifique como um soldado comum do Exército Israelense. Dessa forma,
ele me subestima e acaba sendo surpreendido quando, por fim, meu
treinamento militar vem à tona.
— Bom, na certa ele vai achar que você é uma mulher indefesa —
Doug comentou.
Ela torceu os lábios diante da dedução óbvia da maioria dos
homens.
— E é aí que os homens, só porque acham que seus paus indicam
sua verdadeira força, se enganam. É preciso bem mais do que isso para se
tornar um Sayeret Matkal. — Olhou diretamente para Dougal. — Ah, por um
instante me esqueci que suas forças de elite não admitem mulheres em suas
unidades, verdade?
O sarcasmo praticamente escorria pelo helicóptero. Minha risada
encheu o ambiente, coincidindo com o momento em que o orientador de
pouso sinalizou o local onde deveríamos aterrissar. Uma fileira de
helicópteros e caças militares se alinhava até se perder de vista.
— Qual é a capacidade dessa base? — perguntou, curiosa.
— Esta aqui, especificamente, comporta mais de vinte e dois caças,
dez helicópteros e cerca de 1.700 tripulantes — Scott respondeu.
— Uau — murmurou.
Esperei que todos descessem, vendo o Capitão Masterson
atravessando o convés a passos largos na nossa direção. Eu não queria
admitir para ninguém – culpem meu lado orgulhoso e prepotente –, mas havia
ferido minhas costelas mais do que imaginei durante o salto. Definitivamente,
minha águia interior enfrentava um sério problema em uma de suas asas.
Scott estendeu a mão para ajudar Zilah a descer da aeronave, e, por
um instante louco, senti ciúmes de meu melhor amigo. Que merda era
aquela?
— Tenente Stein — o capitão cumprimentou, estendendo uma mão.
— Capitão Masterson. Estou no comando deste porta-aviões, e fui o contato
imediato que seu comandante lhe indicou.
— Certo. Você usava o codinome Seagul, certo?
— Exato. E você é a Tsél.
Mais uma vez aquela palavra. Eu a havia escutado dizer quando
aceitou a comunicação com seu superior, o tal general.
O capitão olhou para mim com um ar zombeteiro e disse:
— Coincidências que duas sombras se encontrem, não é mesmo?
Minha sobrancelha erguida deve ter sido um indicativo de que não
havia entendido sua piada, e ele logo tratou de explicar:
— Tsél significa sombra em hebraico, Teag.
Aquilo fez com que Zilah virasse a cabeça de uma vez na minha
direção, surpresa.
— Você é o Shadow? — perguntou com um tom de voz admirado.
— Eu mesmo, ao seu dispor, madame. — Floreei um cumprimento
galante, mesmo que nosso estado e roupas não indicassem nada de luxo.
— Por que não disse nada? — indagou, acompanhando lentamente
meus passos trôpegos.
— Hum, talvez pela mesma razão que você não disse nada a seu
respeito? — respondi, retoricamente.
Sem perceber, apoiei minha mão na parte inferior de suas costas,
sentindo seu corpo retesar ao meu toque. Quando pensei que ela fosse se
afastar, Zilah relaxou e se aproximou um pouco mais.
Estávamos sendo flanqueados pelo capitão, Scott, Dylan e Dougal.
— Tenente, você foi ferida, de acordo com o relatório de Teagan
— o capitão disse.
— Apenas um tiro de raspão, capitão — ela respondeu. — Agora,
acho melhor conferir o estado de saúde de seu próprio tenente, já que ele não
quer dar o braço a torcer de que pode ter sofrido algumas injúrias.
Comecei a rir na mesma hora, tentando disfarçar o suor frio que se
formava em minha testa. Porra, minhas costelas estavam me matando.
— Injúrias? Que palavra chique, Zils.
— Vamos levá-los ao serviço médico para que possam ser
examinados. — Virando-se para mim, Masterson perguntou: — Em uma
escala de 1 a 10, qual é o nível dos seus ferimentos? Preciso escalar a equipe
que vai seguir em terra novamente.
— Não me deixe de fora, Cap — respondi rapidamente. — Devo
ter esfolado uma costela ou duas. — Ou quatro, mas quem estava contando?
— Isso já é mais do que o suficiente para ser afastado, Teag —
Scott se intrometeu.
— Nada disso. Já estive em operações muito mais arriscadas com
uma bala alojada na coxa. Isso aqui é fichinha. Nada que alguns analgésicos e
uma bandagem não resolvam — afirmei e dei o assunto por encerrado. —
Nada comparado com as tripas quase pulando pra fora que o Cap teve
naquela missão do caralho.
— Isso é o que vamos ver — Scott murmurou.
Antes de nos afastarmos totalmente, gritei para Grieg, o piloto:
— Ei, G! Cuide bem da minha mochila, hein? Se puder pedir para
alguém entregar na minha cabine, ficarei grato.
— Sem problemas, Teag!
Meu bebê cuspidor de fogo estava ali dentro. Além do mais, a arma
de Zilah também se encontrava sob minha responsabilidade. Longe de mim
querer que algo acontecesse ao seu rifle. Eu sabia o quanto podíamos ser
sentimentais com nossas coisas.
As vidas de nossos companheiros dependiam daquilo. E a vida de
nossos inimigos eram ceifadas com a mesma precisão com que protegíamos
uns aos outros.
16h02
Aceitei os cuidados da equipe médica, sem querer demonstrar
minha preocupação com o estado de saúde de Teagan Collins.
Por mais que ele tenha tentado desmerecer as lesões que pode ter
sofrido, eu sabia muito bem que costelas fraturadas podiam causar danos
maiores do que se queria deixar transparecer.
— Os curativos de sutura funcionaram bem por um tempo, mas
com o esforço na manobra de evasão, o tecido se abriu e será necessário
pontos reais, tudo bem? — a enfermeira disse, já preparando os kits. — Vou
colocar um patch à prova d’água para que possa tomar um banho, o que
imagino que deva ser um dos seus maiores desejos, certo? — Seu tom
compassivo atraiu minha atenção.
Eu não era muito dada a aceitar cuidados de terceiros, quanto mais
de pessoas a quem não conhecia, mas a mulher inspirava confiança naquilo
que fazia.
— Tudo bem. E... sim... não vejo a hora de me livrar de toda essa
sujeira.
Quando se passava dias sem poder desfrutar de um bom banho, a
perspectiva desse luxo era colocada em outro patamar.
Fiquei em silêncio enquanto ela suturava o talho de mais de oito
centímetros resultado do tiro de raspão. Até agora eu me recriminava pela
minha desatenção. Por mais que tenha afirmado para Teagan que ninguém
pode controlar o universo, eu sabia que uma parte minha sempre se frustraria
por aquela falha.
Cerca de vinte minutos depois, o Capitão Masterson entrou na baia
de atendimento onde eu me encontrava. Antes que eu tivesse chance de
perguntar sobre o estado de saúde do tenente, ele se adiantou.
— Teagan está revoltado porque atestamos a fratura de três
costelas, mas insistiu que gostaria que você também recebesse o melhor
atendimento dentre as unidades militares do mundo. Palavras dele, não
minhas — ele disse, com um sorriso. — Como você está?
— Ótima. Seu tenente fez um bom trabalho para evitar que eu me
esvaísse em sangue com uma ferida não tão grave — comentei, com um
sorriso sarcástico. Eu precisava admitir que ele foi fofo ao extremo.
— Um tiro é sempre um tiro, querida — a enfermeira interrompeu.
— Capitão, ela só precisa tomar os antibióticos e analgésicos, mas está
liberada. Não há necessidade de permanecer em nossas acomodações por
mais tempo, de acordo com o Dr. Gunzer.
— Perfeito — eu disse, e desci rapidamente da maca. — Posso
solicitar a extensão desse atendimento cinco estrelas para um banho longo e
demorado? — pedi, sentindo-me um pouco envergonhada.
— Com toda a certeza, tenente.
— Não há necessidade de me tratar pela patente, capitão. Pode me
chamar apenas de Zilah — informei, vendo o sorriso gentil em seu rosto.
Ele era um pouco mais velho, mas ainda assim um homem bonito e
imponente. Não fez minhas entranhas revirarem da mesma forma que seu
belíssimo tenente havia feito; no entanto, era um colírio para os olhos.
Eu o segui pelo longo corredor, indo em direção aos alojamentos
femininos. Paramos na primeira porta e ele a abriu, gesticulando para que
entrasse primeiro. Além de bonito, era cavalheiro.
— Reservei esse quarto apenas para você. Acredito que não será do
seu agrado ser alvo de inúmeras perguntas por parte das fuzileiras —
informou, e deu uma piscadinha. — Tenha um bom descanso. Quando estiver
preparada, nos reuniremos para traçar as estratégias de nossa missão em
conjunto.
Apenas dei um aceno de cabeça e recostei-me à porta quando ele
mesmo a fechou. Era bom poder respirar aliviada e ter aquela breve sensação
de segurança.
O quarto era pequeno, com uma cama de solteiro do lado direito e
uma mesa no canto oposto. A escotilha do navio mostrava o mar ao nível da
superfície do casco, e imaginei que aquele poderia ser considerado até mesmo
uma acomodação de luxo.
Por um momento, contemplei a imensidão do mar pelo vidro,
sentindo-me pequena diante de tudo aquilo.
Em cima da cama havia uma regata preta e uma calça cargo da
mesma cor, além de roupas íntimas limpas e uma escova de cabelo. Peguei a
toalha dobrada sobre a mesinha e me encaminhei ao pequeno banheiro
contíguo, mas decidi me livrar da farda imunda do lado de fora, já que não
teria muito espaço para me movimentar ali dentro.
Quando, por fim, pude sentir a água se derramando sobre o meu
corpo, suspirei em total descrença por conta de todo o ocorrido e fechei os
olhos, tentando me concentrar para decifrar a peça faltante do quebra-cabeça
onde me via naquele momento.
Dei-me ao luxo de ficar quinze minutos no banho lavando o cabelo
com dificuldade por causa do ferimento e do curativo que cobria os pontos.
Meus músculos estavam doloridos, mas eu sabia que era apenas questão de
tempo para que os medicamentos que havia ingerido há pouco fizessem
efeito.
Sem hesitar, peguei meu traje militar e tentei lavar o máximo que
conseguia naquele espaço ínfimo sem muito sucesso, mas era o melhor que
podia fazer. Eu não queria incomodar ninguém daquela tripulação. Por mais
que integrasse um exército aliado, e nossas operações tivessem colidido,
ainda assim, eu era uma intrusa no meio de um navio de guerra americano.
Depois de me vestir com as roupas emprestadas, tratei de limpar
minha pistola e facas que estavam embutidas em meu uniforme. Encarei as
meias brancas e enormes que Teagan me ofereceu pela manhã, sem entender
o motivo de aquilo fazer meu coração bater em um ritmo irregular.
Passei a escova lentamente pelo cabelo, deliciando-me com o
simples prazer de sentir as cerdas suaves acariciando o couro cabeludo.
Aquilo me fez ver que já estava mais do que na hora de espancar alguma
coisa... dessa forma eu esquecia o sentimentalismo dos pequenos gestos.
O som da batida me arrancou de meus devaneios e, ainda secando o
cabelo com a toalha, fui conferir quem estava à porta.
O sorriso aberto de Teagan Collins me aguardava do outro lado e,
meio sem-jeito por ter me demorado mais do que o previsto, apenas acenei
para que entrasse.
— Está na hora de colocar comida de verdade dentro dessa sua
barriga aí — ele disse, olhando ao redor da pequena cabine.
— Agora que você comentou, realmente senti meu estômago se
manifestar. — E era verdade. Os eventos anteriores haviam bloqueado do
meu corpo as necessidades mais vitais.
— Bom, como você demorou a dar sinal de vida, vim conferir se
não estava apagada nessa cama mais do que confortável — brincou, mas
havia uma pitada de sarcasmo em suas palavras.
— A privação do sono faz parte da nossa profissão, tenente —
devolvi, com um sorriso.
— É verdade, mas tirar algumas horas de um cochilo pode ser
reparador para o corpo.
— Com isso eu tenho que concordar. — Sentei-me na cama e mais
uma vez passei a escova pelos fios agora não tão úmidos.
Sem a menor cerimônia, Teagan fez o mesmo e se sentou ao meu
lado. A proximidade me permitiu sentir o cheiro limpo de sabonete. Ele agora
usava o uniforme militar de combate, ao invés do tático, mas seu charme
exalava da mesma forma. A camisa bege se apegava ao tórax forte, marcando
cada um de seus músculos. A calça camuflada não deixava muito à
imaginação ao moldar as coxas musculosas e a bunda rígida.
Céus. Esse cara é o pecado em forma de homem.
Pigarreei, tentando disfarçar o nervosismo que sua presença agora
me trazia, além de tentar ocultar as reações do meu corpo.
— O Capitão fará uma videoconferência com seu comandante, o tal
General Cohen — informou, olhando-me atentamente. — Há ordens
imediatas vindas do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, então
estamos tentando alinhar nossas ações.
— Realmente preciso averiguar a posição da equipe do Mossad.
Saber se eles contataram seus superiores.
Teagan se recostou à parede, totalmente à vontade.
— Se há um esquema de traição ali dentro, duvido que façam
contato imediato. Provavelmente darão a impressão de que a operação está
fluindo da maneira que deveria — ele disse.
— Sim, mas eu informava o comandante a cada etapa, e Mahidy
sempre tinha que lhe enviar relatórios. Era através disso que ele averiguava se
minhas infos batiam com o que estava sendo relatado.
— E em algum momento elas foram incompatíveis? — perguntou.
— Em apenas uma etapa da operação. Nosso comando não recebeu
a informação de que o criminoso que extraímos em Syraz foi eliminado por
Jacob.
— Humm... então tudo aponta para o tal Jacob... — deduziu.
— É a aposta mais óbvia, mas, na atual conjuntura, não estou
descartando nem mesmo Ibrahim e Mahidy — afirmei, com um tom de voz
pesaroso.
— Bem, o importante é que cheguemos ao ninho de cobras e
cortemos as cabeças das serpentes, certo? — afirmou, e encarou-me por um
longo momento.
O silêncio praticamente podia ser ouvido. Se é que era possível.
Porém, mais do que isso... Havia uma faísca que teimava em crepitar sempre
que estávamos muito perto.
E naquele espaço apertado da cabine era como se estivéssemos
mais uma vez naquela gruta na floresta.
Engoli em seco, sentindo uma dificuldade absurda em disfarçar as
batidas aceleradas do meu coração. Temia que ele pudesse ouvir o sangue
latejante pulsando por cada veia em meu corpo.
— O Cap acha que não teremos tempo hábil para descanso. Para
que possamos seguir no rastro dos criminosos... — fez uma pausa antes de
acrescentar: — e da sua equipe do Mossad. Devemos partir o mais rápido
possível.
— Tudo bem — respondi rapidamente.
Teagan me encarou por um longo instante, em seguida exalou um
suspiro e fez menção de se levantar da cama. No entanto, o movimento nos
aproximou ainda mais.
— Eu não deveria estar aqui — ele disse, baixinho. — Corro o
risco até mesmo de uma suspensão. — Seu olhar estava focado em minha
boca.
Umedeci os lábios ressecados, sentindo o coração quase saltar pela
garganta.
— Ahn... e-eu... — gaguejei, sem saber o que mais dizer.
— Eu só precisava ver se você realmente estava bem, ou se estava
mais debilitada do que gostaria de admitir.
Dei um sorriso sutil e sarcástico.
— Eu deveria pensar o mesmo ao seu respeito, tenente. Afinal, não
fui eu quem tentou disfarçar que havia fraturado alguns ossos no trajeto.
Teagan riu e seus olhos se estreitaram. As rugas suaves nos cantos
lhe davam um charme todo especial.
— Bom, já vimos que tiros...
— De raspão — interrompi.
— Okay, tiros de raspão e costelas “trincadas” — fez questão de
enfatizar as aspas — não são o suficiente para nos impedir de continuar,
certo?
— Concordo.
— Só vamos nos ater a essas pequenas lesões na próxima, beleza?
Uma vez já é o bastante.
— Tentarei não cometer o mesmo erro outra vez — eu disse, e
abaixei a cabeça.
Teagan ergueu meu rosto com a ponta do dedo sob o queixo.
— Ei... você não tem que se envergonhar... Não somos infalíveis,
Zilah. Ninguém é. Bem, talvez eu, mas... — brincou, para aliviar o clima. —
Espero que consigamos deter os criminosos e reaver sua confiança quando
seu Governo fixar uma medalha de honra bem aqui. — Sem que se desse
conta, ele colocou a ponta do indicador logo acima do meu coração. Muito,
muito próximo do meu seio.
Quando percebeu o que fez, Teagan se afastou rapidamente e se
levantou, gemendo de dor no processo.
— Pooorra... essa merda dói. — Apoiou a mão sobre o lado
esquerdo. — Okay, uma oficial vai te levar até o refeitório dentro de quinze
minutos. Em seguida, você será encaminhada para a sala de comando. —
Começou a se afastar, ainda com a mão protegendo sua lesão.
Era provável que eu só teria aquele momento roubado entre nós.
Depois, mais uma vez, nos enfiaríamos de volta na missão, e sabe-se lá o que
o futuro poderia nos reservar.
E mesmo que o que estava prestes a fazer me colocasse em uma
saia justa, meu cérebro se desligou de qualquer consequente complicação e
tumultuou mais ainda a minha vida conturbada.
Se meus agradecimentos não tiverem sido o suficiente, esperava
que o próximo gesto o fizesse.
16h41
— Teagan — Zilah me chamou, mas não me virei para encará-la.
— Muito obrigada. Mais uma vez.
Senti sua presença às minhas costas e o toque gentil de sua mão em
meu ombro. Girei o corpo para ficar de frente a ela e, sem nem ao menos
pensar duas vezes, ela se ergueu na ponta dos pés e tocou meus lábios com os
seus.
Um beijo suave, talvez até mesmo de agradecimento.
No entanto, fui pego de surpresa e suspirei profundamente. Mais
para tentar resgatar meu autocontrole do que qualquer outra coisa. O que se
passou depois foi mais como um borrão.
Em menos de um centésimo de um segundo, pressionei o corpo
suave contra a parede ao lado do banheiro e devorei sua boca sem piedade.
A química evidente que havia se desenvolvido entre nós naquele
curto espaço de tempo foi mais do que o suficiente para quase fazer meu
corpo entrar em combustão.
Com um gemido suave, ela enlaçou meu pescoço e aprofundou
mais ainda o beijo faminto que compartilhávamos.
Minhas mãos ganharam vida própria e percorreram suas curvas
com ânsia e moderação ao mesmo tempo. Eu não queria assustá-la, mas seu
beijo mais suave do que o toque de uma pluma foi o bastante para que
estourasse o barril de pólvora do meu desejo reprimido.
Era óbvio que ficar um tempo sem degustar da suavidade de uma
mulher causava esse efeito, mas eu sentia que havia algo muito maior por trás
do arroubo que estávamos vivenciando.
Nossos ofegos se misturaram aos gemidos, e em um determinado
momento fiquei sem saber se eram apenas de prazer ou havia dor envolvida.
Minhas costelas estavam me matando, e eu sabia que ela havia recebido
pontos em seu ferimento, mas já nem me importava mais com nada.
— Ah, meu Deus — ela disse, assombrada. Achei que fosse se
afastar por um segundo, mas me enganei totalmente quando ela me beijou
outra vez.
O embate entre nossas línguas marcava o mesmo ritmo de nossos
corações. Meu sangue estava latejando e meu pau havia ganhado vida
própria, assumindo o comando ao pressionar minha virilha contra a dela.
— Espera... ai, meu Deus... nós não podemos — ela disse, entre os
beijos que nunca cessavam.
— Eu sei... Mas, foda-se — praguejei, e enfiei as mãos por baixo
de sua camiseta preta.
Quando estava prestes a abarcar seus seios com minhas mãos, uma
batida à porta nos interrompeu.
Recostei minha testa à dela, respirando com dificuldade, e
sussurrei:
— Caralho, salva pelo gongo.
Ela riu baixinho e pressionou a boca contra o meu pescoço, quase
me fazendo gemer alto o bastante para que nosso “empata foda” escutasse.
Mais três batidas soaram e Zilah apenas respondeu:
— Sim?
— Sou a Sargento Joyce Fields e vim buscá-la para o horário da
refeição. Está tudo bem?
— S-sim... Eu já estou saindo — disse e ouvimos os passos se
afastando. — E agora? — sussurrou.
— Agora... eu vou ficar por mais alguns instantes aqui na sua
cabine enquanto espero minha barraca desarmar — caçoei, e pressionei meu
quadril outra vez contra o dela. Ainda não havíamos nos soltado de nosso
abraço. — Depois, vou aproveitar o horário do jantar para sair sem ser
detectado.
— Meu Deus, Teagan... O que fizemos? — murmurou.
— Na minha concepção, nós demos um puta beijaço como dois
adultos com tesão. Pronto.
Sua risada suave aqueceu algo que nem sabia que estava congelado
por dentro.
— Simples, direto e grosseiro.
— Como todo fuzileiro deve ser — completei.
— Algo do tipo... Bom... — Afastou-se de mim e ajeitou a regata,
colocando-a para dentro do cós da calça. Em seguida, passou as mãos no
cabelo e suspirou antes de dizer: — Foi um prazer...
— Incomensurável — interrompi, e fiz uma reverência. — Sempre
ao seu dispor, madame.
— Você é tão engraçadinho — ela zombou.
— Sempre me dizem isso.
Ela indicou para que eu me escondesse no banheiro e abriu a porta.
Antes, porém, olhou por cima do ombro e piscou.
Fui deixado ali dentro, ainda atordoado pelo beijo intenso trocado.
Porra, pelo amasso trocado. Um amasso mais quente do que o que troquei
com Sandi Lee, no ensino médio, entre as estantes de livros clássicos na
biblioteca da escola.
Meu nível de frustração sexual havia acabado de alcançar a escala
máxima, e só o que eu poderia fazer era rezar para que minha ereção
monstruosa finalmente cedesse.
Porém, só em pensar que minhas mãos estiveram cheias com o
corpo gostoso de Zilah Stein, o monstro ganhava vida outra vez e latejava,
tentando me dizer que ainda não havia se saciado.
Eu temia que levaria muito tempo para conseguir suprir aquele
desejo e me saciar por completo com aquela mulher.

Não foi tão difícil assim deixar a cabine de Zilah sem que minha
presença fosse detectada. Por ser a primeira acomodação do corredor, a
câmera de segurança não a englobava, então nem ao menos precisei usar de
minhas táticas furtivas para dar o fora dali como uma sombra.
Andando a passos largos, entrei no refeitório e contive a vontade
louca de procurá-la por ali. Avistei Scott e Jensen no mesmo canto onde
sempre nos sentávamos, ao lado de outros companheiros.
Peguei a bandeja próxima à ilha de comidas variadas, mas me servi
apenas com um sanduíche e uma lata de Coca-Cola.
Não sabia explicar, mas havia perdido a fome, e agora todas as
minhas energias estavam concentradas nas reações químicas desencadeadas
em meu corpo por conta daquele nosso breve momento.
Caramba... não me lembrava de já ter sentido tanto desejo
reprimido assim por uma mulher. Nem mesmo em minha adolescência,
quando bastava ver Pamela Anderson correndo com aquele maiô vermelho
em uma praia em Malibu para que meu pau ganhasse vida.
Malditos hormônios.
— E aí, cara? Como estão as costelas? — Scott perguntou.
— Doendo, mas contidas em uma bandagem mais apertada do que
cueca tamanho P — respondi, e ouvi a explosão de risadas.
— Já se reencontrou outra vez com a sniper gostosa? — Jensen
sondou.
Um: quase me entalei com o pedaço de sanduíche que havia
acabado de abocanhar.
Dois: quase pulei por sobre a mesa e o agarrei pelo pescoço por
conta do comentário nem um pouco engraçado.
Não que Zilah não fosse uma sniper gostosa, mas eu não queria que
outros caras se referissem a ela assim. Ela era a minha sniper gostosa. Droga.
Meu lado possessivo estava aflorado.
— Espero que ela aplique algum golpe sinistro em você, só por
causa dessa sua língua grande. Você sabe muito bem que a ordem aqui dentro
é tratar as mulheres com respeito. E isso não está limitado somente às nossas
fuzileiras, idiota — Scott interveio, antes que eu pudesse arremessar minha
lata de Coca na cara de Jensen.
— Foi mal. Mas vocês têm que admitir que ela é bonita pra caralho.
Minha nossa, quando a vi na enfermaria, quase precisei que o Dr. Gunzer
usasse o desfibrilador em mim — o garoto se desculpou. — Não vai me dizer
que você não notou, Teag?!
— Claro que notei — respondi, com a boca cheia e tentando
disfarçar meu desconforto com a pergunta. Notei e comprovei com minha
própria boca e mãos o quanto ela era gostosa.
Scott me olhou com atenção e entrecerrou os olhos, e eu apenas o
encarei e arqueei as sobrancelhas.
— Humm — murmurou.
Depois de quinze minutos, estávamos já nos dirigindo para a sala
de comando quando a Sargento Fields veio em nossa direção na companhia
de ninguém mais, ninguém menos que a mulher que estava povoando minhas
fantasias.
— Tenente Collins, Tenente Bromsfield — cumprimentou,
respeitosamente —, a Tenente Stein solicitou que pudesse ir à sala de
comando na companhia de vocês.
Dei um sorriso de lado, tentando não encarar Zilah bem à frente.
— É claro que sim. Como está o braço? — Scott perguntou,
educadamente.
— Não vou dizer que estou pronta pra outra, porque estaria
mentindo — ela respondeu, sucinta.
Nós três caminhamos em silêncio até a sala onde o capitão já nos
aguardava. Sem perceber, acabei me sentando ao lado de Zilah, enquanto
Scott se postou à nossa frente na imensa mesa oval.
Dougal, Tyler, Jensen e Dylan chegaram logo em seguida e
tomaram seus assentos.
— Bom, vamos direto ao ponto, porque estamos ficando sem
tempo — o Capitão Masterson deu início. — A Força de Defesa de Israel nos
enviou um relatório breve que aponta os locais exatos para onde a
organização criminosa está transportando a carga.
Mais uma vez ele abriu o imenso mapa à nossa frente e foi
indicando por etapas.
— Varosha serviu como emboscada, já que as mulheres traficadas
não chegaram a pisar o pé ali. Segundo nossas fontes, elas ficaram em um
depósito no Cais de Protaras.
Parou de frente a Zilah e cruzou os braços, a cabeça inclinada de
leve.
— O General Cohen acredita que armaram pra você ali. Quem quer
que seja o rato dentro do grupo de agentes onde estava cedida, tomou uma
atitude pensada na hora de tentar se livrar da sua presença. Precisamos saber
o porquê.
— No mínimo, porque ele sabe que estou ali dentro para entregar o
esquema corrupto que pelo jeito teve início há anos. Meu comandante perdeu
um ente querido em uma operação, mais de dois anos atrás, e, por incrível
que pareça, a vertente da investigação que transcorria na época abordava o
mesmo teor. Armas financiadas para terroristas a troco de mulheres traficadas
do Oriente Médio — ela disse.
— Aniquilar essa organização criminosa é de interesse de nossos
países — ele disse —, mas parece que sua cabeça agora está a prêmio.
Ela assentiu e pareceu engolir em seco.
— Não tenho medo do combate, Capitão. Fui treinada para isso, e
se há um traidor entre o grupo do Mossad, ou se toda a equipe está de conluio
com esta organização, então nada me fará mais feliz do que poder matá-los
um a um.
Uau. Aquela mulher era dinamite pura. Tive que apoiar a base da
minha mão em minha virilha para conter o mastro que queria se erguer em
homenagem a ela.
Dei um pigarro de leve para tentar disfarçar meu total estado de
excitação somente em escutar sua voz com aquele sotaque sexy.
— Bom, já que estamos de acordo nisso, vamos prosseguir com o
plano — o Cap disse. — Nossa intenção é tentar fazer o reconhecimento de
onde será a próxima negociação. Podemos fazer a extração das reféns —
olhou para todos —, tentando o mínimo de baixas e efeitos colaterais...
Ele deixou algo no ar, e não sei por que razão, aquela pausa me
trouxe um arrepio indesejável.
— Se não formos bem-sucedidos, então outra opção é que outra
especialista nisso use outra abordagem.
— Que abordagem? — perguntei.
— Infiltração.
— Espera, nenhum de nós poderia se infiltrar no meio dos
criminosos, porque não fazemos o perfil — Scott conjecturou.
— Nós, não. — Olhou para Zilah que prestava atenção a tudo. —
Mas ela pode.
— O quê? — perguntei, e levantei-me de uma vez. — O senhor
quer que ela seja uma agente infiltrada entre as mulheres traficadas?
O silêncio reinou na sala por meros segundos, antes de Zilah dizer:
— Eu topo.
— O quê? — Olhei para ela. — Não! Você não pode. É arriscado
demais.
Ela se levantou e parou em frente ao mapa, sem olhar para mim em
momento algum.
— Se pude atuar em meio aos agentes do Mossad, conhecendo de
todas as suas técnicas, com toda a certeza poderei fazer o mesmo, caso seja
necessário.
— Tenente, você não passará despercebida no meio daquelas
mulheres — tentei argumentar.
— Meu biotipo ajuda, Tenente Collins. Posso me misturar com
facilidade.
Fui até ela e parei à sua frente, pouco me importando que todos ali
estivessem acompanhando nossa discussão.
— Olha, você é uma sniper treinada, seu foco de atuação é dar
cobertura em meio à ação, não agir diretamente ali dentro.
— Antes de me tornar atiradora de elite das forças especiais, já era
do Exército, Collins. Já estive em combates fronteiriços. Na verdade, isso
sempre foi rotineiro para nós, das Forças de Defesa de Israel. Vivemos em
território hostil, cercados por ataques terroristas a qualquer instante, seja dia
ou noite. Além do mais, minha unidade de elite é especialista em extração de
reféns.
Ela se afastou de mim e parou perto do capitão, estendendo a mão
para ele. Aquilo me irritou pra caralho.
— Temos um acordo, capitão. Se nossa abordagem não for
frutífera, eu me infiltrarei em meio às mulheres com um GPS aderido ao
corpo. Tenho certeza de que a Marinha Americana também possui o mesmo
sistema de tecnologia avançada com relação ao rastreio indetectável.
— Sim. Temos um GPS intradérmico. Ele não pode ser detectado
por sensor, e marca em tempo real a sua localização — o capitão respondeu.
— Mas, veja, Stein, essa não é nossa prioridade aqui. Será o último recurso,
caso não consigamos intervir ainda em Chipre.
A reunião prosseguiu por mais vinte minutos, mas eu já não ouvia
mais nada. Um zumbido incômodo perturbava minha cabeça, imagens de
Zilah desaparecendo das minhas vistas me atormentando.
Eu não deveria estar tão conectado assim a ela. Aquele era o nosso
trabalho, e ela não deveria ser desmerecida em suas habilidades de tática
militar em momento algum.
Não era por ser mulher. Caramba, eu já havia conhecido inúmeras
que não deixavam a desejar para homem algum. Mas era por ser... ela.
Eu não sabia explicar, mas Zilah Stein havia se entranhado em
meus pensamentos, por baixo da minha pele... E tudo o que eu mais queria
era garantir que estivesse segura, mesmo que nossos caminhos tenham
colidido em meio ao fogo cruzado.
Quando o capitão deu a reunião por encerrado, aguardei um tempo
até que pudesse ir atrás dela mais uma vez.
— Não pense em fazer isso — Scott me advertiu, ainda sentado em
sua cadeira.
— Fazer o quê? — perguntei, o encarando.
— Vamos lá, Teag. Eu te conheço há anos, cara. Sei que essa
mulher está mexendo com você.
— O quê? — perguntei, olhando para os lados para ver se havia
mais alguém na sala.
— Você está emitindo sinais, irmão. Sinais altos e claros de que se
importa com essa garota mais do que quer admitir — disse, e recostou os
cotovelos sobre a mesa. — Olha, talvez vocês tenham criado um laço, um
elo, sei lá... por conta da operação. Mas não se esqueça de que estamos
falando da segurança dos Estados Unidos.
— E desde quando me esqueci disso, Scott? — Estava irritado com
meu amigo agora.
— Não estou te julgando, Teagan. Mas essa garota tem habilidades
que podem nos ajudar a acabar com essa porra de esquema criminoso.
Garantiremos que essas mulheres, jovens e crianças não sejam vendidas
como gado e ainda evitaremos que um bastardo imundo financie terroristas
espalhados ao redor do globo.
— Eu entendi muito bem a missão, Scott — resmunguei.
— Ei, não precisa ficar puto. — Ergueu as mãos em rendição. —
Estou apenas te aconselhando a não deixar que suas emoções interfiram num
bem maior.
— Não é questão de emoções... — Bem, meio que era, mas eu não
precisava entrar em detalhes.
— Você mesmo já presenciou e sobreviveu a missões
malsucedidas, Teag. Porra, o Cap já passou por isso não muito tempo atrás. O
que poderá dar errado em uma operação detalhada e cujas variáveis serão
cobertas por nós?
— Talvez o mesmo que tenha acontecido em tantas outras, onde o
infiltrado acaba sendo descoberto e se transforma em um trunfo nas mãos dos
inimigos — afirmei, levantando-me.
Scott fez o mesmo e colocou a mão sobre o meu ombro.
— Nós vamos nos assegurar de que tudo saia como o planejado,
Teag.
Ele saiu e me deixou ali na sala de comando sozinho. Sem pressa
alguma, conferi cada detalhe da operação programada para o dia seguinte.
Desisti de procurá-la em sua cabine, porque não me
responsabilizaria pelos meus atos ou pela proximidade de nossos corpos.
Além do mais, não poderia garantir que não acabaria falando merda
e deixando-a transtornada. Precisávamos entrar com a cabeça limpa naquela
missão. A minha, mais ainda.
06h01
Às seis horas da manhã do dia seguinte, estávamos todos reunidos
no convés do porta-aviões. Mais uma vez sairíamos em missão, e eu não
queria pensar nas possíveis consequências caso nossa abordagem falhasse.
Depois da reunião com o Capitão Masterson na noite anterior,
voltei à cabine e uma parte minha esperava receber a visita de Teagan. Ele
não apareceu, no entanto, e eu não sabia se minha frustração era a causadora
da ansiedade que tomava conta de mim naquele momento.
Duas fuzileiras da corporação foram até minha cabine cerca de duas
horas depois da reunião e conferiram minhas medidas para que pudessem
providenciar os trajes que usaria naquela operação.
Meu lado patriótico se remoía em desconforto pelo fato de não
estar usando minhas insígnias, mas eu sabia que precisava me misturar aos
elementos da mesma forma que os seis oficiais de elite que seguiriam junto.
Depois de me alimentar com uma refeição frugal, fui ao encontro
dos homens que já trajavam seus Marpats, usando eu mesma um traje similar.
O camuflado verde e bege nos deixaria parcialmente encobertos em meio ao
terreno escolhido para o embarque das mulheres sequestradas.
Quando Teagan me viu chegando, veio na minha direção com o
meu rifle que fora enviado para a seção de manutenção. Ele estava limpo
como novo e, de acordo com as informações do tenente, os carregadores
estavam devidamente abastecidos.
— Aqui — ele disse, e percebi que seu semblante estava sério. O
homem brincalhão dera lugar a outro que não disfarçava a irritação. —
Conferiu todos os aparatos de seu traje tático? — perguntou.
— Sim.
— Coloque isso aqui — orientou, e ajudou-me a vestir o colete
militar revestido em Kevlar. Eu estava usando o meu bustiê, mas não cobria
outros tecidos moles que caso fossem atingidos poderiam ser fatais.
— Tenente... — falei, baixinho, sem querer atrair a atenção de mais
alguém. Toquei seu braço e o senti retesar. — Não entendo o motivo desse
humor ácido logo tão cedo.
Um sorriso curvou o canto esquerdo de seu lábio, mas não chegou
aos seus olhos claros.
— Estou puto por não termos outra opção caso nossa abordagem
não seja bem-sucedida. Nossa meta é neutralizar os criminosos, resgatar as
mulheres e, se possível, trancafiar os agentes filhos da puta que não te deram
cobertura e que podem estar envolvidos nessa merda toda — admitiu. — Não
colocá-la em um covil.
Foi a minha vez de tentar lhe dar um sorriso tranquilizador.
— Esse não será meu primeiro baile, Teagan — brinquei.
— Eu sei. Mas se lembra do lema dos fuzileiros navais da Marinha
Americana? — perguntou.
— Semper Fidelis? — soltei, vendo-o assentir brevemente.
— Exatamente. É difícil sair em uma missão e voltar sem o
esquadrão completo. Nossa meta é entrar e sair dessa, juntos. Entende?
— E você sabe qual é o lema das unidades de forças especiais
israelenses, Teagan? — foi a minha vez de perguntar.
— Não — admitiu.
— Inspirados na força aérea britânica, nós usamos o bordão Qui
audet adipiscitur. Quem ousa, vence.
Ele suspirou e passou a mão pelo cabelo.
— Se ousarmos de uma maneira que eles não esperam, sairemos
vitoriosos; e então, eu e você poderemos ostentar aquela medalha da qual
falou — tentei brincar para aliviar o clima.
Eu também não queria me infiltrar num ambiente hostil onde sabia
dos riscos somente por ser mulher. Preferia estar na ação, onde teria muito
mais controle sobre as adversidades.
Mas se fosse preciso, iria a fundo para descobrir a raiz operacional
dessa organização criminosa, e nada me faria mais feliz do que entregar de
bandeja para o meu comandante as cabeças daqueles que ousaram nos trair.
— Certo. Você implantou o chip? — Teagan perguntou, ainda com
o semblante sisudo.
— Você quer dizer, o outro chip, certo? — Toquei a nuca, local
exato onde eu já possuía um rastreador inserido pela minha unidade de elite.
— Você já possui um? — perguntou, arqueando a sobrancelha.
— Sim. Mas é codificado com os Sayeret. Não abre rastreio para
nenhum sistema operacional de fora. Enfim, agora tenho dois. — Mostrei a
parte interior do pulso, onde o microchip havia sido implantado com uma
agulha hipodérmica. — Nem que eu quisesse agora conseguiria me esconder.
Consegui o que queria quando o vi rindo baixinho.
O ruído das hélices sendo acionadas ressoou pelo deck de partida.
O capitão veio até nós com um dispositivo e entregou um para Teagan e
outro para Scott.
— Os planos de ação estão aqui. Há um navio cargueiro saindo de
Famagusta esta noite. Vocês levarão cerca de seis horas até chegarem ao
local de desembarque. Ponto de descida será uma fragata que está disfarçada
como barco pesqueiro. Ela os levará até uma cidade vizinha que faz fronteira
com a vila onde o cais está localizado. A área onde ele está situado é bastante
remota e distante da civilização — o capitão informou. — A infiltração no
território não poderá ser feita com o H-Hawk por conta do espaço aéreo
restrito e fortemente vigiado.
Estávamos todos prestando atenção às orientações passadas. Em
um determinado momento, ele se virou para mim e disse:
— Tenente Stein, o General Cohen enviou uma mensagem
criptografada ao nosso comando informando que os agentes do Mossad
reportaram sua baixa em serviço.
— O quê? — Aqueles idiotas informaram minha morte?
— Em contrapartida, nós o informamos que você segue agora
infiltrada dentro do esquadrão Recon dos fuzileiros navais. Eles não saberão
que você está entre nós, a menos que se revele abertamente. — Chegando
perto, ele estendeu uma tarja com a identificação Tn. Z. — Será uma honra
integrá-la em nossa equipe.
Teagan me deu uma cotovelada de leve e, quando o encarei, vi o
sorriso curvando o canto de seus lábios cheios.
Oh, céus... Bastou olhar para aquela boca que havia consumido a
minha na noite anterior para sentir o desejo formigando por todo o meu corpo
outra vez.
— Quer que eu coloque pra você? –— ele sussurrou no meu
ouvido. Foi preciso um grande esforço para disfarçar a onda de excitação que
suas palavras causaram.
— Não, mas obrigada — respondi no mesmo tom, colando a faixa
com o velcro no campo acima do seio. Não olhei para cima, mesmo me
dando conta da risada sutil de Teagan.
A energia ao redor mudou, indicando que todos estavam prontos
para partir em missão.
— Primeiro as damas — Jensen disse de um modo galante, e
estendeu a mão para mim.
Subi no helicóptero e acomodei-me em meu assento, afivelando
imediatamente o arnês de quatro pontas. Teagan sentou-se à minha esquerda,
enquanto Scott se postou à direita. Os outros quatro fuzileiros se acomodaram
à frente.
Quando a aeronave levantou voo, tive apenas um minuto para
apreciar toda aquela imensidão azul do oceano antes que o Sargento Jensen
dissesse aos gritos:
— Se estamos indo em sete, não dá azar? — caçoou.
— Cala a boca, imbecil — Teagan ralhou.
Eu podia sentir seu corpo vibrando ao meu lado. Nossas coxas
estavam pressionadas uma à outra, os braços colados como uma unidade.
Incrível pensar assim, mas mesmo que o Tenente Bromsfield
também fosse um homem bonito, nossa proximidade não causava aquele
turbilhão que eu podia sentir por dentro.
— Scott, pelo mapa, qual é a distância onde nos posicionaremos?
— Teagan perguntou.
— A cerca de 900 metros há um prédio que serve como armazém
da guarda costeira. Está abandonado, já que eles não fazem averiguações
pelas cercanias do Cais. Parece que o esquema de corrupção tem as teias bem
largas.
— É o que parece.
— A carga está prevista para zarpar do porto às 22:45. Um horário
excelente, já que a troca de plantões noturnos acontece sempre às 22:30 —
continuou. — Dê aí quinze minutos de folga entre chegada e saída dos
estivadores, e a transição das mulheres pode ser feita sem problemas.
— Então nossa meta é ficar no telhado desse armazém e abater os
alvos? — perguntei.
— Sim. Mas o capitão precisa que façamos um reconhecimento dos
integrantes da organização. Por isso, ao menos um deles tem que sair vivo
para contar a história.
— E as mulheres? O que será feito delas? — Dylan indagou.
— Acionaremos a polícia portuária, e, por mais que o cais ainda
esteja em domínio turco, eles não vão querer que o governo da Turquia seja
associado a este esquema contra os direitos humanos. Isso geraria um
incidente diplomático de enormes proporções.
— Tudo bem — murmurei. — O Tenente Collins ficará de
prontidão sobre o telhado do armazém, e eu? — sondei.
Scott olhou para Teagan e depois de volta para mim.
— Você cobrirá a área ao lado dele — ele disse.
— O quê? Mas isso não faz o menor sentido. Somos dois snipers
que podem operar em posições diferentes, abordando ângulos distintos para
cobri-los enquanto avançam por terra.
— Zilah, nós não sabemos se haverá tempo hábil para um
posicionamento estratégico. A operação está sendo feita às pressas. Assim
que chegarmos ao ponto de desembarque, teremos que avançar pela mata
circundante — Teagan esclareceu.
— Okay, eu entendi isso. Mas podemos fazer uma abordagem
pelos flancos direito e esquerdo. Você monta seu equipamento de um lado, e
eu, do outro. Assim nós triangularemos o ataque — argumentei.
— O capitão não quer que você se coloque em um risco maior do
que o necessário — Scott contra-argumentou. — Caso seja preciso que se
infiltre entre as mulheres traficadas.
Agora eu entendia onde eles queriam chegar. Se caso algo desse
errado, se não conseguíssemos eliminar todos os criminosos – exatamente por
não sabermos quantos estariam ali –, eu precisava estar de sobreaviso para
agir.
Fazia todo o sentido. Não é que eles estivessem tentando me
poupar, como pensei a princípio, e sim, me colocando como uma peça móvel.
— Tudo bem, e os caras de Israel? — Dylan perguntou, e afastou
meus devaneios.
— Se os agentes do Mossad estiverem lá, nossa meta é levá-los a
interrogatório — Teagan respondeu. — Ao menos um deles.
Abaixei a cabeça, sem saber identificar o sentimento que se
infiltrou em meu peito. Nojo, por saber que alguém da minha nação havia
aceitado participar de um esquema tão hediondo; arrependimento, por conta
da incerteza a respeito do caráter de Mahidy e Ibo. Eu poderia estar julgando
Jacob Berns erroneamente, embora meus instintos alertassem que não era o
caso. Mas será que meu juízo de caráter foi tão falho a ponto de não perceber
que os outros dois poderiam estar envolvidos?
— Difícil será saber qual deles deverá ter a vida poupada — falei,
baixinho.
Teagan colocou a mão em meu joelho e apertou de leve.
— Confie em seus instintos, Zilah. No fim das contas, são eles que
sempre regem nossas ações.
Dei um sorriso tímido e concentrei meu olhar na janela do
helicóptero. A conversa dos homens se tornou apenas um burburinho em
meio ao caos que agora dominava minha mente.
Eu não sabia explicar a razão, mas sentia que algo muito maior
estava para mudar na minha vida.
16h34
A descida do H-Hawk sobre a pequena fragata a cerca de cinco
quilômetros da costa foi tranquila. Fizemos uma pausa para aliviar as
necessidades fisiológicas antes de dar início ao próximo percurso.
Depois do nosso desembarque na fronteira entre duas pequenas
cidades litorâneas do distrito de Famagustra, nos enfiamos na mata tropical
que margeava a encosta.
O trajeto não era difícil, e se comparássemos com outros cenários
bem mais ásperos que já havíamos enfrentado, era como passear no parque.
Desde que você contasse que o passeio seria com uma mochila tática mais
pesada que a maioria das crianças.
Eu seguia à frente, com Zilah logo atrás e Scott na retaguarda.
Dylan, Jensen, Dougal e Tyler vinham logo atrás. Apenas o som de nossos
passos em meio às folhagens podia ser ouvido. De vez em quando, gaivotas
circundavam a área, indicando que o mar logo abaixo estava repleto de
peixes.
— Puta merda... esse mar azul mais parece coisa de filme de
Hollywood — Dylan comentou.
— Cara... reparou nos iates luxuosos que ficam margeando a costa?
— Dougal emendou.
— Vocês viram o meu lá? — brinquei. — Era o maior. Aquele
brilhante com um casco dourado.
As risadas foram contidas, mas o suficiente para acalmar um pouco
os nervos. Eu podia sentir a tensão vibrando do corpo de Zilah logo atrás de
mim. Ela não dera mais nenhuma palavra desde que saiu do helicóptero,
cerca de cinco horas atrás, nem mesmo quando paramos para nos alimentar,
limitando-se a apenas agradecer com um aceno de cabeça.
Minha vontade era puxá-la para um canto e perguntar o que havia
de errado, mas evitei dar muito na cara o meu interesse, ainda mais porque
não queria ser motivo de zoação entre os caras. Quer dizer, eles podiam
debochar de mim o quanto quisessem, mas quando imaginava o
constrangimento de Zilah, sentia meu sangue ferver.
Em um dado momento, ergui a mão em punho e o esquadrão parou
na mesma hora. Estávamos em uma divisa de um pequeno vilarejo, e seria
impossível avançar por ali sem sermos notados.
— Área aberta e com civis. Vai ser difícil trafegar por aqui —
sussurrei.
Olhei ao redor e percebi que para que pudéssemos passar para a
área mais segura e oculta, teríamos que percorrer um descampado com
algumas casas à vista. Embora não fosse um local movimentado, ainda assim,
era perceptível que havia pessoas que poderiam facilmente informar atividade
suspeita.
Não era todo dia que seis caras fortemente armados –
acompanhados de uma mulher também fortemente armada – passeavam pela
pacata vila costeira.
Antes que eu pudesse dizer algo mais, Zilah parou ao meu lado e
retirou a mochila das costas, abrindo-a para pegar um traje todo preto ali
dentro. Em seguida, se livrou do colete Kevlar.
— O que está fazendo? — perguntei em um tom de voz tenso.
— Vou fazer um reconhecimento da área e criar uma distração
enquanto vocês tentam chegar ao ponto onde poderão alcançar a praia.
Aquele penhasco ali serve como trilha para aventureiros, e pode ser a
alternativa para cruzar essa área. Depois, basta seguir pela faixa de areia. Não
sei se repararam, mas esta região não é propícia a turismo.
— Como sabe disso? — Scott perguntou, admirado.
Zilah indicou uma placa escrita em um dialeto que deduzi ser
árabe. Como se tivesse lido meus pensamentos, ela disse:
— É turco. Na verdade, persa antigo, mas informa que a cidade é
muçulmana e considerada proibida para banhistas. Ao longo da mata havia
outras placas indicativas para turistas desavisados.
Ela vestiu um imenso vestido negro por cima da roupa tática, e com
agilidade enrolou um lenço da mesma cor sobre a cabeça.
— Vocês levam minha mochila. — Olhou direto para mim antes de
dizer: — E, Teagan... cuide bem da minha arma — falou, com um sorrisinho.
— Tem sua pistola aí? — conferi.
— Sempre.
Sem mais um minuto de hesitação, ela se afastou de nós e entrou na
vila pela floresta. Como se não estivesse fazendo nada. Vimos quando se
abaixou e pegou um cesto no chão, ao lado de um poço artesanal.
Parou ao lado de duas senhoras que estavam sentadas em frente a
uma casa simples e começou a conversar. Em questão de segundos,
aparentemente as duas mulheres a convidaram para entrar. Por mais que eu
achasse que aquilo ali poderia ser um risco, já que ela desconhecia se havia
mais alguém na casa, entendi que Zilah se valia da hospitalidade dos turcos
para criar a distração que precisávamos.
Quando estava entrando no casebre, ela estendeu a mão para trás e
acenou para que descêssemos.
Com cautela, caminhamos pela área descampada até alcançar a
trilha do qual falara. Quando chegamos ao limite, nos enfiamos por entre as
rochas do penhasco, tentando alcançar a estreita faixa de areia límpida. A
água do mar chegava até as pedras, dificultando um pouco o percurso, mas
nada que não pudéssemos driblar.
— A garota é esperta — Tyler, que quase nunca falava nada,
comentou.
— Ela é um soldado de elite, seu tapado. É claro que é esperta pra
cacete — Dylan respondeu por mim.
Cerca de quinze minutos depois, vimos uma figura solitária vindo
em nossa direção. Ergui a mão para que a formação parasse às minhas costas,
somente para conferir se realmente era a Tenente Stein que vinha ao longe.
Ela acenou, confirmando sua identidade e seguimos pela areia até
alcançá-la.
— Cerca de dois quilômetros daqui a faixa de areia acaba, então
vocês precisam subir outra vez. A vila já terá ficado para trás, mas o terreno é
baldio, sem vegetação. Será preciso acelerar os passos — disse, e puxou o
vestido por cima da cabeça.
Porra... eu queria que ela fizesse aquilo em um ambiente propício,
sem nada por baixo, apenas com a intenção de desnudar seu corpo para mim.
Por mais que soubesse que minha mente estava viajando, não fui capaz de
conter as imagens de seu corpo nu sob o meu.
Rapidamente ela guardou a indumentária e colocou o colete outra
vez, estendendo a mão para pegar a mochila. Era Jensen quem a estava
levando, já que era o mais novo e ainda o tratávamos como recruta.
— Obrigada. Espero que não tenha sido muito incômodo — ela
disse a ele e sorriu. Não sabia o porquê, mas senti uma fisgada de um ciúme
inoportuno.
— Não há de quê, dona — respondeu, com o sotaque texano.
Babaca.
Assumimos nossa posição outra vez e subimos pelas rochas
pontiagudas.
— Por onde você desceu? — Dougal perguntou. Revirei os olhos.
Será que eles ainda não haviam entendido que a mulher era cheia de
habilidades?
— Pelo mesmo lugar por onde estamos subindo — ela disse,
simplesmente.
— Mas você fez isso de vestido? — insistiu.
— Não é vestido, espertinho. É uma burca — Dylan interferiu.
Ela deu uma risadinha antes de responder:
— Aquilo não é um vestido, e nem mesmo uma burca. O nome da
vestimenta é Abaya, e o lenço é um hijab.
Olhei para a mulher que respondia com tranquilidade, como se não
estivesse se agarrando às pedras pontiagudas do rochedo para não cair.
— Uau. É vivendo e aprendendo — Jensen se juntou à conversa
sobre moda.
— E como você sabia que nos encontraria por aqui? — Dylan
insistiu.
— As mulheres turcas são conhecidas pela hospitalidade e por
falarem bastante quando são estimuladas. Bastou perguntar a elas qual era o
ponto por onde os jovens gostavam de se enfiar em uma aventura para
alcançar a praia — ela respondeu.
— E assim, do nada, elas disseram a você? A uma total
desconhecida? Em um vilarejo onde todos devem se conhecer? — perguntei,
assombrado.
— Sou a prima de Ömer, e estou de passagem. Meu destino é
chegar a Rayul, que fica a cerca de cinquenta quilômetros daqui — informou,
com um sorriso sagaz.
— Não. Para... e elas acreditaram? — Tyler riu. — E quem é
Ömer?
— Existe uma probabilidade de cerca de 97% de existir um homem
com esse nome por aqui. Eu só não me estendi em mais detalhes, alegando
que precisava apenas de um copo de chai antes de encontrá-lo no mercado.
— Como você sabia de tudo isso? — Dougal estava assombrado.
— Um Google Maps é mais do que o suficiente para averiguar
todas as localidades e cercanias. Depois da reunião de ontem, compilei todos
os dados possíveis. É sempre bom saber exatamente em que terreno estamos
pisando. — Olhei para trás e vi que todos a encaravam com ares de
assombro.
— Fiquem quietos — ralhei. — Estamos chegando à beira.
Ergui a cabeça por cima da rocha e espiei fazendo uma varredura
pela área. Realmente parecia um terreno abandonado, onde havia apenas uma
carcaça de uma antiga caminhonete e dois vira-latas repousando debaixo de
uma árvore.
Não havia nenhuma casa por perto, ninguém.
Gesticulei que eu sairia primeiro e que todos viessem em seguida.
Com meu fuzil de assalto em mãos, guiei-nos pelo local até que pudéssemos
chegar em segurança sob a proteção das árvores.
Parei em uma clareira e sinalizei para que nos hidratássemos um
pouco. Aproveitei o momento para conferir o mapa no GPS, ao lado de Scott.
— Em vinte minutos chegaremos à região onde o cais está situado.
São cerca de dois quilômetros até as docas — informei.
Na mesma hora, senti a presença de Zilah ao meu lado. Era como
se uma faísca estalasse ao nosso redor.
— De acordo com seu mapa, aqui está o prédio onde faremos a
cobertura e aqui está o ponto de partida. Mas onde estarão as mulheres?
— Em um container — falei, sentindo o choque imediato de todos.
— Essas mulheres são transportadas em containers? Como se
fossem mercadorias? — Jensen perguntou, revoltado.
— É exatamente assim que elas são tratadas — Zilah emendou. —
Como objetos descartáveis. E não ache que essa realidade é algo raro. O
tráfico humano, especialmente de mulheres e crianças, tem crescido a cada
dia. Espalhadas pelo globo, há inúmeras organizações que lucram com a
miséria alheia.
— Porra... então vamos detonar essa. Se a gente não pode acabar
com todas de uma vez, vamos pelo menos destruir esses desgraçados —
Dylan acrescentou.
— Nossa meta é fazer isso, mas não podemos esquecer o que há
por trás de toda essa operação — Scott interrompeu, sério. — Oficialmente,
estamos em uma missão Recon. Extraoficialmente, vamos acabar com esses
filhos da puta.
— Ooh-rah! — gritaram todos em uníssono.
Olhei para Zilah e percebi que havia um sorrisinho curvando o
canto de seu lábio. Como se estivesse admirada ou algo assim.
Caminhamos por mais alguns metros até um ponto onde havia uma
sombra abundante no calor miserável da ilha mediterrânea. Em um dia
normal, seria um local paradisíaco, com águas cristalinas e areias brancas. A
vegetação abundante em um tom verde vivo contrastava com o céu de um
azul límpido e com poucas nuvens.
— Preciso que todos comam alguma coisa agora, hidratem-se o
suficiente e cubram seus rostos — orientei, já abrindo a mochila para pegar
uma lata de sardinha.
Se a operação saísse conforme estávamos esperando, não seria até
mais de meia-noite até que pudéssemos finalmente baixar a guarda e
descansar, apenas esperando para retornar ao nosso ponto de resgate.
Agora, se tudo fosse pelos ares, a noite terminaria de uma forma
catastrófica.
E era aquilo que eu estava tentando evitar a todo custo.
Às 21 horas, estávamos todos a postos. Eu podia sentir a presença
de Zilah ao meu lado, deitada no telhado do antigo depósito de barcos do
cais. Olhei de relance e a vi focada na mira de seu rifle, calibrando a distância
de um tiro certeiro e limpo.
— Mil duzentos e dois metros — informou em um dado momento.
— Desse ângulo. E do seu?
Comecei a rir.
— Está querendo comparar o tamanho de nossos rifles, boneca?
Garanto que o meu é bem maior — caçoei, maliciosamente.
— Você é um idiota — resmungou, mas com um sorriso.
— É para descontrair o clima. O que você faz quando precisa ficar
de tocaia por muito tempo? Tipo... para não ficar entediada? — perguntei.
Eu realmente queria saber muito mais sobre a vida dela. Estava
interessado além da conta, além da atração pelo corpo sexy e delgado. Pela
boca carnuda e bem-definida. Ou pelos olhos enigmáticos que pareciam
esconder segredos sem fim.
— Honestamente? Nada. Fui treinada para manter a mente em
branco em uma operação — ela disse, e sentou-se de pernas cruzadas. — E
você?
— Escuto Guns N’Roses no máximo volume. O som pesado da
guitarra do Slash me acalma.
— O quê? Um som de rock pesado te acalma? Meu Deus... — ela
exclamou, e começou a rir.
— É sério. Cresci na fazenda dos meus pais. O que se ouvia ali o
dia inteiro era música country melosa e cheia de sentimentalismo. Quer algo
mais poético do que um solo de guitarra que simplesmente está ali para
acelerar seu coração?
— Não sei se conseguiria me concentrar com esse tipo de música
— admitiu.
Foi a minha vez de me sentar. Dobrei um joelho e apoiei o braço,
encarando-a com atenção.
— Qual é a sua história, garota?
— O quê? Como assim?
— Contei que fui criado na fazenda. Saí de lá aos dezoito, para
nunca mais voltar. Quer dizer, nunca se sabe, não é? Minha meta sempre foi
conhecer o mundo. Consegui isso como um marine.
— Você escolheu um jeito bem arriscado de conhecer o mundo,
soldado. Não seria melhor simplesmente colocar uma mochila nas costas e
viajar de hostel em hostel, como os americanos gostam de fazer? — Ela
sorriu, passando a mão no cabelo para conferir se estava no lugar.
— Eu queria um propósito. Não conseguia enxergar isso criando
vacas leiteiras, como meu pai fez a vida inteira. Sempre quis algo maior. As
forças armadas trouxeram isso para mim.
Ela abaixou o olhar, mordendo os lábios por um instante.
— Você em algum momento... pensa nas pessoas às quais tirou a
vida? — perguntou, timidamente. — Porque... eu penso o tempo todo. Anos
podem ter se passado, mas nunca fica mais fácil.
— Nossas vidas e a de nossos companheiros, além das de milhares
de cidadãos dependem disso, Zilah — falei e toquei sua mão.
— Eu sei... mas... achei que a vida militar me deixaria mais bruta e
insensível. Porém, mesmo que não hesite em puxar o gatilho em uma missão,
ainda assim, não consigo deixar de imaginar seus rostos em meus sonhos, ou
sempre que fecho meus olhos...
— Passei por isso no início. — Não queria dizer a ela que já havia
participado de muitas operações extraoficiais, onde nosso único objetivo era
eliminar vidas que deveriam ser varridas do mapa. — Depois a gente caleja...
começa a criar barreiras para afastar os fantasmas daqueles que se tornaram
nossos alvos por alguma razão.
Ela desviou o olhar, encarando o vazio escuro à nossa frente.
Apenas as luzes de algumas embarcações podiam ser vistas daqui, bem como
a parca iluminação dos postes que rodeavam o ancoradouro. Um imenso
navio cargueiro estava mais adiante, e as empilhadeiras de contêineres já
haviam cessado seu trabalho há muito tempo.
— É uma coincidência que nós dois sejamos sombras em nossas
atividades, não é mesmo? — comentei, tentando atrair sua atenção outra vez.
— Às vezes confesso que me sinto apenas como uma...
Seu tom de voz abatido não me passou despercebido, e sem
perceber, sentei-me ao seu lado e puxei-a contra o meu peito.
— Volte seja lá de onde estiver, Zilah. Suas lembranças sombrias
não podem te vencer nesse momento — falei.
Ela tentou se afastar, mas mantive o abraço firme. Eu queria
confortá-la, sem nem ao menos entender que era eu quem precisava de
conforto.
Nunca fui apegado a sentimentalismos e essas coisas. Contato
físico para mim representava apenas sexo ardente e suado. Depois de
algumas horas, um beijo de despedida cumpria o serviço de transmitir que
havia passado um bom momento.
Nunca fiz promessas às quais não poderia cumprir, assim como
também não tratava mal as mulheres que passaram pela minha vida. Pelo
contrário, quando estavam em minha companhia, recebiam o melhor de mim.
Não tudo, mas o que eu podia oferecer de melhor no momento.
— O que é isso? Alguma espécie de abraço pré-operação? — ela
perguntou, ainda sem-graça. Sua mão, no entanto, pousou no meu peito. Senti
o coração acelerar na mesma hora.
— Acho que nunca abracei nenhum dos meus companheiros antes
de uma missão... então... isso pra mim também é novo. — Minha frase tinha
um significado muito mais profundo do que eu mesmo queria admitir.
Talvez tenhamos ficado naquela posição – dois snipers solitários
abraçados e sentados no telhado de um armazém caindo aos pedaços – por
não sei quantos minutos.
Até que o som da estática de nossos comunicadores auriculares
estalou à nossa volta.
— Merda — murmurei.
— Tudo bem, tenente. Vamos acabar com esses filhos da puta —
ela disse, saindo do meu abraço e deitando-se outra vez de bruços no chão.
Repeti seu movimento, acionando o canal de comunicação com a
equipe em terra.
— As duas águias estão no ninho — brinquei, embora soubesse que
o momento agora requeria minha total concentração.
— T, estamos cercando às 15 e 21 horas. Dylan vai chegar em 18
horas.
— Certo. — Olhei pelo binóculo infravermelho, detectando os
movimentos nas posições informadas. — Há uma van branca estacionada ao
lado de um Volkwagen velho no canto oposto do cais.
— É bem capaz que seja a equipe de agentes do Mossad — Zilah
comentou.
Vi de relance que ela também conferia o perímetro com seu
binóculo.
— Scott, há uma movimentação mais adiante, perto do contêiner
laranja de código XR56G78. A carga está listada como se fosse de produtos
perecíveis. Zyon Seed. Três homens na lateral. Dois acima e quatro próximos
ao navio. Sem contar os estivadores. Há um na empilhadeira.
Posicionei a mira do rifle, conferindo a distância do primeiro tiro.
— Quando o primeiro for disparado, vai ser como a porra de um
barril — Scott comentou.
— Senhores, está na hora da ação.
Disparei a primeira bala vendo-a atingir o alvo mais distante e
acima, ao mesmo tempo que Zilah neutralizava o segundo.
Uma movimentação na lateral indicou que uma equipe havia
alcançado os outros três. Olhei para o lado e vi que Zilah agora tinha a mira
de seu fuzil apontado para a van branca. Não dava tempo de conferir sua
linha de ação porque eu precisava assegurar a retaguarda dos homens que
estavam em terra.
— Laazazel! — ela xingou ao meu lado. — Eles vão fugir outra
vez.
Ela disparou dois tiros certeiros nos pneus da van, mas fez o
impensável. Saiu de sua posição e começou a descer pela lateral do prédio,
pulando como a porra de um gato de rua.
— Zilah! Caralho!
— T, o que houve? — Scott perguntou.
— Ela deve estar indo atrás dos babacas do Mess. Veja se consegue
enviar um dos caras para protegê-la! — gritei, mirando em mais um dos
criminosos. O tiro o atingiu no meio da testa.
— Saraivada, saraivada! — Dylan gritou, e devolveu com fogo-
cruzado.
— Zilah! Responda à porra do comunicador! — gritei.
— Eu vou pegá-los de surpresa. Jacob está fugindo para o navio.
Não sei quem ficou na van — gritou, enquanto corria.
Sem hesitar, abati mais dois homens que seguiam na direção de
onde ela corria, mas de onde estava não conseguiria garantir que sua chegada
ao veículo onde acreditava que os espiões estavam seria segura.
— T! Um Hammer com mais cinco capangas. A leste!
Girei o rifle e identifiquei o veículo, atirando no homem que se
equilibrava no teto solar. O Hammer derrapou, mas seguiu em frente.
— Merda, merda! São dois containers! Um já está prestes a
zarpar! — Tyler gritou.
Caralho.
— Vai, vai, vai! — Scott gritou para um dos nossos.
— Scott, mais dois abatidos. Não tenho mais ângulo de onde estou.
Vou descer!
Joguei uma lona por cima do meu rifle e o de Zilah montados, e
peguei meu M16 para me juntar à equipe de solo.
Meu coração estava na boca. Aquele cenário era um dos tantos que
já havíamos vivenciado, mas nunca senti um medo tão irracional antes.
Minha mente girava enlouquecida, tentando não pensar no pior.
A mulher era imprevisível, e seu senso de dever parecia ser maior
do que a porra dessa ilha.
Avistei a van branca mais ao longe e corri em sua direção. Quando
cheguei à porta lateral aberta, um dos agentes estava morto, enquanto o outro
arquejava com uma ferida no pescoço.
Não dava para saber ser havia sido Zilah que fizera aquilo, e eu
também não podia perder tempo averiguando.
— Ty! Guarde a van. Temos um agente ferido que pode nos dar
mais informações dessa merda.
Uma troca de tiros próxima ao deck atraiu minha atenção. Em um
lampejo, Zilah saltou para dentro da embarcação, atrás do traidor.
— Merda! — gritei.
Um movimento à minha esquerda me fez erguer a arma, mas bem a
tempo vi que se tratava de Tyler.
— O navio está saindo — Scott disse o óbvio.
Mesmo que eu corresse o máximo que pudesse, nunca o alcançaria.
E agora, lá estava a mulher que revirou meu mundo de ponta-cabeça em
questão de dias.
Parei na beirada do cais, colocando as mãos sobre a cabeça.
— O container que ficou está repleto de mulheres e crianças, Teag.
Todos os criminosos foram mortos, mas onde está Zilah?
Não respondi nada. Meu olhar ao longe devia ser mais do que o
bastante para indicar que a mulher que eu queria ali, sã e salva, já se afastava
rumo ao desconhecido.
Eu só esperava que ela soubesse exatamente o que estava fazendo
quando se jogou sem nem ao menos pensar duas vezes.
22h11
Quando cheguei à van onde supus que os agentes do Mossad
estavam, fui surpreendida por uma cena atroz.
Mahidy estava morto, com um tiro na cabeça, e Ibrahim
gorgolejava sangue com uma ferida à faca na garganta.
Jacob não estava em nenhum lugar à vista, e pelo que pude deduzir,
ele havia sido o autor da carnificina.
— Zi-Zilah... — Ibo tentou se comunicar, segurando o ferimento
mortal. — O-o n-navio... há o-outro... J-Jacob...
— Entendi... vou tentar detê-lo — falei.
— N-não... A-a... — tossiu, agonizando de dor.
Não lhe dei chance de falar mais nada e disparei para a beirada do
cais, correndo o mais rápido que podia para tentar alcançar o navio cargueiro.
Ao contrário de outras embarcações, aquela apresentava uma parte
reclinada e, à medida que eu corria, calculava mentalmente se seria viável
saltar. Eu já havia saltado de um penhasco para um helicóptero, certo?
Aquele seria apenas mais um salto para o meu currículo.
Desviei de uma saraivada de tiros provenientes do destino onde
pretendia entrar – embora parecessem disparos a esmo –, e me lancei contra o
vento, caindo em um rolamento no convés. Minhas costas se chocaram contra
o container de metal, e com a pistola em punho, preparei-me para que Jacob
houvesse detectado minha presença.
Engatinhando pela lateral, olhei ao longe para o cais, esperando que
os fuzileiros estivessem bem e dessem cabo dos criminosos. Agachei-me e
espiei pelos lados, observando o movimento dos estivadores e marinheiros
que, certamente, trabalhavam em conluio com a organização de tráfico
internacional de mulheres.
Os xingamentos em hebraico me alertaram para a presença de
Jacob, e quando me enfiei por entre as cordas espessas, pude vê-lo
conversando com alguém ao telefone.
— Deu merda! Alguém vazou o esquema e ficamos com a porra da
Marinha Americana nas nossas costas! Matei Mahidy e Ibrahim, quando
percebi que eles dariam para trás. Porra! — berrou. — E eu lá vou saber
como essa informação chegou até eles, merda? Zilah foi dada como morta,
mas tenho certeza de que estava infiltrada entre a minha equipe para passar
informações ao Ministério de Defesa.
Tentei chegar mais perto.
— Eu não sei, caralho! Na operação de Varosha, chegou até nós
que o sniper do grupo terrorista conseguiu acertar no alvo. Informamos ao
comandante que ela havia sido morta em combate. Até então, nossas ordens
eram para monitorar a carga, mas daí deu merda porque esses americanos
filhos da puta invadiram o porto — gritou. — Zarcon, eu não sei que merda
foi essa, porra!
Zarcon? Aquele nome não me era estranho, mas eu não conseguia
me lembrar de onde já havia ouvido. A adrenalina estava fluindo com força
total.
Eu não poderia matar Jacob ali, sendo que não fazia ideia de
quantos homens mais havia no navio. Além do mais, se o matasse, não
conseguiria descobrir as informações para transmitir a localização ao governo
de Israel e o dos Estados Unidos.
Droga. Agi por impulso e larguei meu posto sem nem pensar duas
vezes. Sem nem ao menos dizer a Teagan que confiava que ele e sua
corporação poderiam nos resgatar caso fosse preciso.
Agora eu só tinha que me esconder e tentar ir rumo ao destino que
aquele navio estava seguindo.
Esperei que Jacob desaparecesse para dentro do navio e fui
agachada até as portas do imenso container.
Espiando para todos os lados, abri as travas, sentindo um pouco de
dificuldade no processo e, sem mais esperar, enfiei-me por entre a pequena
abertura. O som de metal rangendo me fez parar por um instante, temendo
que os homens tivessem ouvido alguma coisa.
Recostei-me na lateral, com a pistola preparada caso algum deles
abrisse as portas para conferir. O som de passos do lado de fora indicou que
alguém estava conferindo a carga.
Eu podia sentir o suor frio escorrendo por entre as costas e o vão
dos meus seios. O colete tático pareceu pesar um chumbo contra o meu
corpo.
— Não há nada aqui. Está tudo fechado — uma voz exaltada disse,
em árabe.
— E as mulheres? — outro homem perguntou.
— Vão sair como? A nado? E elas não têm como abrir as portas
por dentro, imbecil.
A discussão desvaneceu à medida que seus passos se afastavam
pelo convés.
Olhei ao redor, vendo inúmeras caixas empilhadas. Ao dar a volta,
passei pelas fileiras de mercadorias que serviam apenas como um disfarce
para a verdadeira natureza daquela operação.
O som de ofegos e lamúrias, além de murmurações em árabe, me
saudou assim que adentrei mais ainda o container.
Ergui a mão, pedindo silêncio quando vi que algumas estavam
prestes a dizer algo.
Cerca de quarenta mulheres, dentre elas crianças, estavam sentadas
no chão imundo, em condições deploráveis e de total devastação.
— Estou aqui para tentar ajudá-las — disse, em seu idioma. — Não
vou lhes fazer mal.
Algumas me olharam com desconfiança, mas a maioria apresentava
apenas aquela expressão de total descrença e desesperança.
Suas roupas estavam em farrapos, o aspecto de suas peles em um
tom opaco e sem vida. Os olhos vidrados e lábios rachados indicavam
desidratação e desnutrição evidentes.
Aquelas mulheres estavam sendo tratadas como animais. Na
verdade, até mesmo estes recebiam tratamento melhor.
Fui até uma delas e agachei-me, evitando tocá-la quando a vi
vacilar e recuar como se temesse que eu a golpeasse.
— Oi... meu nome é Zilah — disse, baixinho. — E o seu?
A garota abaixou a cabeça, escondendo o rosto entre os braços
apoiados nos joelhos dobrados.
— Ela não fala há dias — outra mulher interferiu. — Desde que foi
estuprada por um dos bandidos.
Olhei para a jovem outra vez, que não devia ter mais de dezoito
anos, antes de me concentrar na mulher de meia-idade.
— Eu me chamo Nadia.
— Há quanto tempo não são alimentadas direito? — perguntei.
— Eles nos dão apenas uma refeição. A maioria de nós poupa o
que tem para as crianças. — Indicou com a cabeça um lado onde algumas
mulheres cuidavam de crianças pequenas.
Meu Deus. Uma garotinha parecia ter no máximo oito ou nove
anos. Seu rostinho sujo mostrava a trilha de lágrimas que derramou em algum
momento.
— Você tem noção de quantas mulheres foram sequestradas?
Ela arqueou a sobrancelha, sem entender bem a pergunta.
— Um container foi apreendido antes de ser colocado no navio.
A mulher começou a entoar uma prece e chorar baixinho.
— Alá, minha Fatimah está a salvo — esclareceu, secando as
lágrimas. — Eles separaram as mulheres da mesma família. Até mesmo as
crianças estão afastadas de suas mães. Só nos víamos de vez em quando, mas
sempre ficávamos alojadas em locais diferentes.
Interessante. Possivelmente assim eles enfraqueciam as alianças ou
poderiam usar os laços de parentesco como moeda de barganha.
— Os... estupros... são frequentes? — perguntei, em um sussurro.
— Eles preferem as mais jovens. Avaliam as moças e fazem o que
querem. Não é tão diferente assim dos acampamentos de refugiados onde
algumas estiveram.
Meu Deus. Que traumas essas mulheres carregariam para o resto de
suas vidas caso conseguíssemos livrá-las daquele destino?
Não. Eu não poderia pensar de forma negativa. Precisava acreditar
que acabaríamos com essa organização criminosa, que liquidaríamos aqueles
que usavam vidas humanas para financiar o terrorismo que se alastrava pelo
mundo afora.
Que submetiam mulheres a um regime de escravidão sexual, como
se elas não fossem nada.
Precisava confiar não somente em meu governo enviando uma
força armada para o meu resgate, como também na eficiência dos militares
americanos, especialmente... de Teagan Collins.
— Vou me infiltrar entre vocês, tentar passar despercebida. Mas
saibam que tudo está sendo organizado para que voltem sãs e salvas — falei,
sem pensar.
— Voltar sãs e salvas para onde? Para nosso país destruído pela
guerra? Para os acampamentos onde vivemos em condições de extrema
pobreza? — uma mulher ao lado se manifestou.
— Soraia! Não fale assim — Nadia ralhou, silenciando-a. — É
melhor do que o destino que esses homens traçaram para nós.
— Acreditem em mim quando digo que nossa intenção é libertá-las
das mãos desses criminosos. O importante é que todas saiam com vida, que
possam voltar para os entes queridos que deixaram para trás — falei para
todas, olhando ao redor. — Sei que muitas aqui perderam suas famílias, mas
o que não podem perder, nesse momento, é a esperança. Preciso da ajuda de
vocês, para que possa fazer o mesmo por cada uma. O que estiver ao meu
alcance.
Uma senhora do fundo do galpão metálico veio em minha direção e
estendeu um vestido marrom, típico da indumentária muçulmana.
— Para se misturar, você precisa se parecer a nós — ela disse.
Peguei a roupa, e logo em seguida, uma jovem me ofereceu um
niqab. Daquela forma, eu teria como cobrir todo o meu rosto, deixando
apenas os olhos de fora. Não seria reconhecida caso Jacob aparecesse por ali.
Agradeci a cada uma delas, fazendo questão de vestir tudo aquilo
por cima do meu traje tático e do colete. Não poderia deixar evidências para
trás, ainda mais material que pertencia às forças armadas americanas.
— É melhor que você finja ser uma mulher mais velha. Dessa
forma será poupada dos homens quando vêm em busca de diversão — Nadia
comentou.
Passei as mãos no chão e esfreguei a sujeira em meu rosto antes de
posicionar o niqab. Talvez morresse de hipertermia por baixo de toda aquela
roupa, mas precisava confiar que Teagan seguiria o GPS hipodérmico e
conseguiria me alcançar.
Teagan.
Eu nem pensava mais em ser salva pelas Forças de Defesa de
Israel, pelo meu comandante ou pelos Sayeret Matkal. Nem mesmo pela
Marinha dos Estados Unidos.
Tudo o que esperava era que fosse resgatada pelo Tenente Collins.
Pensar no beijo trocado foi o que me restou quando me sentei ao
lado daquelas mulheres sofridas e marcadas pela violência humana.
Senti-me fútil e egoísta por permitir que minha mente vagasse para
um território longe daquela realidade, onde eu poderia voltar a sentir o que há
muito estava adormecido em mim.
Desde a morte de Aaron, nunca mais havia me deixado levar por
sentimentos de desejo e paixão. Fechei meu coração de tal forma que já nem
me lembrava de há quanto tempo havia saído em um encontro com um
homem.
Recostei-me à parede e fechei os olhos, dividida entre o desejo
oculto por Teagan Collins e o que deveria fazer para que conseguíssemos
completar aquela missão.
Nunca me senti mais arrependida por não ter usufruído da
companhia daquele homem, pensando que talvez não teria mais a chance de
apreciar o toque de suas mãos e o sabor de seu beijo.
Comecei a rezar para que houvesse um futuro à frente. Para que
aquelas mulheres tivessem suas vidas poupadas.
E para que tivesse a chance de viver o que imaginei ser impossível:
uma nova paixão.
11h16
O trajeto de volta ao ponto onde embarcaríamos no helicóptero
rumo ao porta-aviões foi feito em total e absoluto silêncio. Durante as mais
de sete horas necessárias para o retorno, trocamos pouquíssimas palavras,
apenas apressados em reestabelecer mais uma vez uma operação para o
resgate das mulheres e de Zilah Stein.
Quando cheguei ao convés, contive a vontade de arremessar meu
capacete no chão, ou destruir a primeira coisa que estivesse à minha frente.
Por mais que o plano de uma infiltração fosse uma variável possível para que
a missão fosse completada, ainda era difícil lidar com a possibilidade de que
agora ela se encontrava no meio de um vespeiro.
Depois que confirmamos as baixas de todos os criminosos, bem
como de um dos agentes do Mossad, tratamos de reportar às autoridades de
Famagusta o que havia acontecido.
Conseguimos fazer um atendimento inicial ao outro espião do
serviço secreto israelense, e o trouxemos sob custódia para o porta-aviões. Só
então informaríamos ao Ministério de Defesa e ao comandante Cohen, para
que ele fosse realocado. No entanto, antes disso, ele teria que responder a
algumas de nossas perguntas.
Quarenta e sete mulheres e cinco crianças foram resgatadas dentro
do container que não foi embarcado. Algumas estavam em condições sub-
humanas, sendo que duas delas não acreditávamos que seriam capazes de
sobreviver.
Os maus-tratos sofridos eram mais do que evidentes, mostrando a
brutalidade à qual foram submetidas por semanas.
As autoridades firmaram um compromisso de que não deixariam as
informações vazarem a respeito da apreensão desse “carregamento”, para que
não alertassem mais ainda a rede criminosa que parecia possuir tentáculos em
todo lugar.
Voltando ao presente momento, acompanhei os padioleiros levando
Ibrahim Iansenberg para o serviço médico.
— Tenente — o capitão me cumprimentou, assim que parou ao
meu lado. — Vejo que a alternativa que mais temíamos foi a escolhida pela
oficial de Israel.
— Zilah, Cap. O nome dela é Zilah — corrigi, sentindo-me
revoltado com toda a reviravolta.
— Sim, eu sei. Acalme-se. Ou vou começar a achar que há muito
mais aí nesse seu comportamento do que cogitou em me contar — deu-me
uma reprimenda.
— Peço perdão, Capitão Masterson. Os eventos da noite não estão
sendo fáceis de digerir. Aqueles filhos da puta estão traficando meninas com
menos de dez anos, caralho. Se já não fosse ruim o bastante estarem fazendo
isso com mulheres arrasadas por conta de uma maldita guerra, tudo fica pior
quando vemos que os escrúpulos desapareceram de vez.
— Eu sei. Mas preciso que mantenha a cabeça fria. Seu comentário
foi bem mais pessoal do que deveria ter sido.
Parei e olhei ao redor, vendo que estávamos um pouco distantes
dos outros que ainda desciam do helicóptero. Scott estava com os operadores
conferindo os dados de relatório de voo.
— Eu... pode ser que tenha me interessado pela Tenente Stein, Cap.
Mas nada disso interferiu em nosso trabalho.
— Nunca duvidei disso, Teag — falou, em um tom de voz mais
compassivo. — Confesso que estou surpreso. Nunca o vi assim antes.
Dei um sorriso cansado, querendo nada mais do que descansar
antes de ir atrás da garota, mas sabia que era impossível. Não teríamos como
proceder da mesma forma que fizemos no resgate de Ailleen Anderson, tanto
tempo atrás.
— Nem eu mesmo sei explicar. Estou mais confuso do que o
senhor, pode acreditar — admiti. — Não tivemos nada mais além de um
beijo, mas foi o suficiente para... bem... o senhor sabe.
— Sei. É exatamente o que sinto pela minha noiva, Cristina, toda
vez que volto de uma incursão. Só Deus sabe como é difícil lidar com a
distância, ou com o turbilhão de sentimentos que uma mulher pode causar.
Scott nos alcançou a caminho da sala de operações, interrompendo
aquele momento de troca de confidências.
— O que faremos com o agente, Cap? — ele perguntou.
— Vamos esperar o relatório médico para interrogá-lo. Precisamos
saber exatamente dos detalhes que talvez supram as lacunas nessa merda.
Nós nos sentamos à mesa e, mesmo com o corpo exaurido, tudo o
que eu mais queria era traçar as estratégias para o resgate de Zilah e das
outras mulheres.
— Bem, vamos lá — o capitão disse, acionando o dispositivo de
rastreamento por satélite. Em menos de segundos, o painel mostrou a
localização exata da tenente. — Supondo que o cargueiro não era dos
maiores, a contar das imagens obtidas, vamos estimar que a velocidade será
maior na travessia até o destino.
Tamborilei os dedos na superfície da mesa de mogno, tentando
conter a vontade de pedir que se apressasse.
— O GPS marca agora, em tempo real, que o navio ainda está
passando por águas territoriais turcas. O mar mediterrâneo vai nos oferecer
um funil em relação à ação que podemos tomar, já que teremos que aguardar
que o cargueiro esteja em águas internacionais.
— Cap, não dá pra esperar até que possamos agir. De acordo com a
previsão, a travessia pode levar até 25 dias, dependendo do número de
paradas e da velocidade para cobrir as milhas náuticas — falei. — Não
sabemos se Zilah... digo, a Tenente Stein estará em segurança.
— Ela é uma oficial treinada, Teagan. Não seria das forças de elite
se não fosse gabaritada para isso, ainda mais se contarmos com a equipe que
ela integra. O General Cohen está enviando um esquadrão de Sayerets, e o
Secretário de Defesa dos Estados Unidos já destacou uma equipe de Seals
que deverá chegar nas próximas horas.
— Por que não podemos tratar a embarcação como ação de
pirataria? — Scott perguntou. — Dessa forma não seria necessário aguardar
que o navio estivesse em águas internacionais.
— Scott tem razão. Se nos valermos do Direito do Mar, podemos
romper as soberanias marítimas e abordar o navio antes que se distancie mais
ainda — interpelei.
— Isso é viável — Masterson disse. — Posso fazer contato com o
General Rockwell para que autorize a equipe de Seals que aguardava nosso
posicionamento aqui para agir em Key West, e, simultaneamente,
interceptamos o cargueiro em alto-mar. Uma das cargas já foi resgatada de
certa forma.
— Mas isso será o suficiente para desbaratar o esquema dessa
organização de tráfico humano? — Scott conferiu.
— É para isso que temos o espião em nosso poder — comentei.
— Israel está enviando um comissário responsável pelo agente,
mas nos deu carta-branca para que possamos obter o maior número de
informações possível — o capitão acrescentou.
— Então, de acordo com o mapa náutico territorial, teremos que
aguardar até que o navio esteja próximo...
— À Grécia — Masterson me interrompeu. — Vamos nos valer da
rivalidade entre os gregos e turcos para que possamos agir.
Era questão de tempo até que pudéssemos abordar aquela merda de
navio e resgatar os reféns.
Zilah ainda estava viva. Ou o rastreador intradérmico já teria
parado de funcionar.
Eu precisava confiar nas habilidades que aquela mulher tinha,
deixando de lado o macho-alfa que queria ganhar vida e garantir que sua
mulher ficasse em segurança.
Sua mulher? Espera... minha mulher? Desde quando passei a
pensar nela como algo mais do que uma companheira de fardas?
Minha mente estava confusa, o cansaço provavelmente nublava
meus pensamentos coerentes.
— Teagan, descanse o tanto que puder. Não há nada que possamos
fazer agora nesse exato momento. Esfrie a cabeça, organize seus
equipamentos, malhe... faça qualquer coisa para ocupar sua mente. —
Levantou-se e colocou a mão sobre o meu ombro. — E isso é uma ordem.
Depois da última sentença, saiu da sala, deixando-me a sós com
Scott.
— Olha, como sou um cara extremamente observador, e como
conheço meu parceiro e melhor amigo, vou deduzir que as palavras do
capitão foram específicas para acalmar seus ânimos em relação à garota que
está dominando sua cabeça.
— Como você sabe? — perguntei, sentindo-me estúpido. Scott me
conhecia há anos. Era óbvio que meu interesse não passaria despercebido.
— Pelos inúmeros flertes entre os dois, pelo brilho nesses seus
olhinhos azuis... são tantos os sinais, Teag, que mal dá para enumerá-los —
falou, e riu.
Passei a mão no cabelo, puxando os fios curtos para tentar aplacar a
crescente irritação por me sentir impotente.
— Nunca fui de me enrolar com uma mulher, Scott. Sempre fui lá,
consegui o que queria e pronto. Nada de sentimentos. Nada de apego. Não
consigo explicar o que está acontecendo comigo, porra.
— Cara, você está apaixonado.
— O quê?
— É isso aí. Finalmente, encontrou uma versão feminina que
reflete aquilo que você mais admira e honra. Ela é durona, espirituosa e
sarcástica. É gata e treinada como uma guerreira amazona. Ela é a sua própria
Mulher-Maravilha na versão Gal Gadot.
Começamos a rir até que falei:
— Ei, a Gal Gadot não é israelense?
— Viu? Mais um ponto que liga o destino dessa garota ao seu. Vai
dar tudo certo, irmão. Vamos poder contar essa aventura depois na mesa de
bar.
Eu esperava que ele estivesse certo. Por um ínfimo segundo,
desejei que pudesse ser um cidadão pacato e comum, um civil que teria a
chance de conhecer a sua garota da maneira mais banal do mundo. A rainha
do baile, o cara da fazenda... um namoro que levaria a um provável enlace...
Mas eu não era esse cara. Assim como a minha garota também não
se encaixava naquele perfil.

O capitão nos chamou para conversar com o agente do Mossad que


ainda se recuperava do ferimento have que quase tirou sua vida. Ele
embarcaria em poucas horas com o encarregado pela agência de espionagem,
onde poderia receber o tratamento adequado.
Entrei na enfermaria e cumprimentei o Dr. Gunzer, que não tardou
em nos advertir:
— Nada de pressão. A lesão que ele tem na garganta, por si só, já é
bem debilitante. Além do mais, o homem já vai ter que lidar com as
responsabilidades assim que chegar em seu país. É melhor que ele saia daqui
em condições excelentes para não deixar margens de dúvidas de que os
Estados Unidos não terão nada a ver caso seu estado de saúde se complique...
eventualmente.
Com um toque no meu ombro, ele saiu do quarto e ficamos apenas
eu, Scott e o Capitão Masterson.
— Então, Sr. Ibrahim — o capitão começou —, se puder nos relatar
o que ocorreu desde o início, ficaremos gratos.
Achei o tom muito educado. Minha vontade era sacudir o homem e
exigir saber porque abandonaram Zilah em Varosha.
— Não tenho permissão para expor detalhes da operação — ele
desconversou, a voz rouca pela gravidade da lesão.
Eu me aproximei, encarando-o com um ar ameaçador.
— Acho que você não está entendendo, cara. Até que se prove o
contrário, você é um traidor em sua própria terra. Embora não tenhamos
direito de intervir na forma como será julgado, por estarmos envolvidos na
mesma missão, podemos considerá-lo, em nossos relatórios, como
prisioneiro. O que obrigaria o seu Governo a negociar com o nosso — falei.
— Eu... eu não sei do que você está f-falando — gaguejou, e arfou
de dor.
Quando ia me aproximar mais um pouco, o capitão me segurou
pelo ombro.
— Tenente, vamos esclarecer de uma melhor forma aqui — disse,
em um tom ameno, mas que exalava autoridade. — A Tenente Stein está sob
a proteção das Forças Armadas americana, mais especificamente do corpo de
Fuzileiros. Mas estamos em uma missão compartilhada com Israel, já que o
esquema de tráfico de seres humanos e armamento afeta aos nossos interesses
em conjunto.
O homem começou a suar frio.
— A Tenente Stein vinha seguindo ordens do General Cohen, que
já suspeitava de ação criminosa entre o grupo de agentes destacados do
Mossad. Resta saber até onde vai o seu envolvimento — ele completou.
— Olha, eu sei que devo minha vida a vocês, já que não fui
deixado lá para morrer, mas... preciso que entendam a minha posição.
— Não há o que entender aqui, salvo a verdade, Sr. Ibrahim. Você
é um agente de uma força aliada, mas parece não estar enxergando em nós
exatamente isso. Não somos seus inimigos, mas se suas ações resultaram no
fracasso da missão, tanto da sua equipe, quanto da nossa, então seria bom
colaborar. Não queremos extrair informações de um inimigo. Queremos saber
onde nos metemos. Apenas isso — o capitão emendou.
O homem engoliu em seco e passou a mão trêmula pelo cabelo
ralo.
— Nem eu sei bem ao certo o que aconteceu. Mas nem eu ou
Mahidy tínhamos noção do envolvimento de Jacob com atividades ilegais.
Foi apenas quando a Tenente entrou para a equipe que notamos uma
mudança no comportamento dele. Até onde entendi, ele pretendia nos
convencer a fazer parte do esquema de corrupção onde está atolado até o
pescoço, mas só soubemos disso quando sua pistola estava apontada para nós
dois.
Cruzei os braços, ainda sem saber se ele estava de fato falando a
verdade ou se estava envolvido.
— Nosso erro foi não ter reportado essas alterações de
comportamento que pudemos observar ao longo do último mês. Quando nos
baleou, sem o mínimo de remorso, Jacob afirmou que vinha atuando e
retardando toda e qualquer missão que visava desbaratar esse esquema de
tráfico. Mahidy morreu por algo que acreditava. Ele realmente queria
acabar com essa organização criminosa, assim como eu — admitiu. — Meu
Deus, acreditei realmente que havíamos perdido Zilah, e tentamos fazer
contato assim que possível. E quando percebemos que Jacob havia enviado
um relatório informando a morte da tenente ao diretor e ao comandante,
entendemos que algo estava errado.
— Certo. E o que ele disse antes de tentar matá-lo? — perguntei.
— Que seria impossível impedir que a organização viesse abaixo.
Afirmou que esse esquema de colaboração havia começado há mais de dois
anos, e que um ex-agente do Mossad integrava a organização, e que era ele o
responsável por filtrar as informações que chegavam aos superiores.
— E decidiu que bastava falar e te matar, já que ninguém saberia.
Mas de que vale isso? — perguntei. — Se o que ele queria era se gabar, por
que fazer isso com um homem que considerou que estaria morto pela sua
própria mão?
— Jacob sempre gostou de se mostrar superior. Essa foi a forma
que encontrou de dizer que fez tudo aquilo por dinheiro, e que fomos apenas
uma pedra de tropeço no meio do caminho. Ainda alegou que deveríamos ter
entrado no esquema muito antes — ele disse. — E Zilah? Onde está?
— Ela foi atrás de Jacob — informei. — Entrou como infiltrada no
navio quando percebeu que o cargueiro estava zarpando.
— Meu Deus, se ele a encontrar...
— Nossa meta é que isso não aconteça. Você tem os mapas de
percurso? — o capitão perguntou, querendo saber se ele revelaria o que já
sabíamos.
O homem passou todas as informações possíveis, conferindo com o
que havíamos obtido de Zilah Stein.
Quando o comissário da agência chegou ao porta-aviões, levou o
agente sob custódia, já que um inquérito seria instaurado.
Eu e Scott voltamos à nossa cabine depois que havíamos
preenchido os relatórios da missão.
— Bom, confirmamos então que não havia outro traidor dentro do
grupo, a não ser o que levantou as suspeitas da Tenente Stein desde o início
— conjecturei. — Mas quem é o homem por trás da organização e que
consegue impedir a ação de um dos grupos de agentes mais competentes do
mundo?
— Esse é o tipo de informação que o Governo de Israel tem que
perseguir a fundo — Scott disse, baixinho.
— Você se lembra que disse que parecia estar faltando uma peça
no quebra-cabeça da missão à qual fomos designados? — comentei e vi o
sorriso sagaz no rosto do meu melhor amigo.
Ele também concordava com aquilo desde o princípio, mas a
confirmação de que o esquema era muito mais intrincado do que prevíamos
apenas nos deu a certeza de que nossos instintos ainda se mantinham afiados.
Bastava agora que o ímpeto que levou Zilah a saltar para dentro
daquele navio também cumprisse o mesmo propósito.
Eu não queria pensar que aquela missão daria errado. Precisava
acreditar que fora apenas uma intercorrência até que alcançássemos o sucesso
que ambos buscávamos desde o princípio.
Foi somente depois de tomar um banho e me deitar para descansar
o corpo exaurido que me permiti pensar e rezar para que ela se mantivesse
firme e fora de perigo, mesmo que estivesse dentro de um dos ninhos de
cobra.
Eu só precisava acreditar e esperar que ela tivesse me levado a sério
quando disse que nunca deixávamos um companheiro para trás.
Nem mesmo se ele pertencesse a outro exército.
Entendi o lema de seu exército, já que ousou ao se arriscar daquela
forma. Era hora de ela compreender a fundo o que significava um Semper
Fidelis.
14h29
Já estava ali há exatamente seis dias.
Seis dias de sofrimento, fome, privação do sono e angústia por
sentir-me com as mãos amarradas.
Eu não podia sair para investigar algo mais, sob o risco de ser
apanhada e levada à presença de Jacob Berns e do encarregado pelo tráfico
humano. Dentre os homens, muitos eram do grupo terrorista, mas havia
outros quatro capangas latinos.
Havia conseguido proteger duas jovens que seriam levadas e
estupradas, já que quando entravam no container, eu simulava alguma
espécie de comoção, levando a um pequeno tumulto.
Quando fizeram menção de me punir, as mulheres mais velhas
entraram na frente, gritando em árabe que eu não valia a pena. Alegaram que
era a única que conseguia controlar o choro interminável das crianças
assustadas.
Minha vontade era enfiar a faca na garganta de cada um deles. No
entanto, como me livraria do corpo quando outro criminoso fosse em busca
do comparsa? Mais do que isso... como conseguiríamos lidar com um corpo
em decomposição dentro daquele lugar abafado e que chegava a ferver
durante as tardes?
O container fétido estava se tornando inviável para que ficássemos
dentro. Com as tempestades se tornando mais intensas à medida que
cruzávamos os oceanos, aumentava e muito as taxas de mal-estares e vômitos
causados pelas náuseas intermináveis. O odor acre empesteava o ambiente,
gerando a nítida sensação de que não passávamos de animais sendo
transportados.
Eu mesma quase não conseguia comer. Apenas mantinha no
estômago o suficiente para não perder as forças por completo, mas sentia
minha saúde se debilitando a cada dia.
Sentia-me como uma fera enjaulada. Acuada e prestes a perder o
controle.
Arriscando-me a chegar mais perto da porta, procurei pelas frestas
que descobri em minhas andanças no espaço confinado. Subi em algumas
caixas e agucei os ouvidos quando reconheci a voz de Jacob do lado de fora.
— São mais de onze dias até chegarmos ao porto de Key West. Já
não aguento mais essa merda. O combinado era que eu voaria até você, não
que me enfiaria nesse navio dos infernos.
Ele andava de um lado ao outro, conversando nervosamente com
alguém ao telefone. Ao seu lado havia dois capangas, sendo que um deles eu
já havia visto rondar as garotas mais jovens no galpão.
— Cara, não fiz a contagem desse carregamento. Mas até onde sei,
não houve baixas. Porra, homem! Estou com o meu na reta, entendeu? Você
vai precisar me arranjar outra identidade quando chegar aí, porque com
certeza o Mossad não vai deixar barato o fato de eu ter matado dois de seus
agentes.
Babaca arrogante. Não demonstrava nem mesmo um pingo de
remorsos pelos seus feitos, por ter traído o país, sua equipe.
Desci das caixas e esgueirei-me outra vez para o canto onde as
mulheres se amontoavam.
Cerca de vinte minutos depois, as imensas portas foram abertas
com um baque. Cinco homens entraram, e sem falar absolutamente nada
passaram pelas mulheres mais velhas que se postavam à frente, para que
pudessem alcançar três jovens logo atrás.
Uma delas era a garota silenciosa que vi assim que cheguei. Hana.
Seu rosto abatido e tomado de lágrimas, aliado à postura de total
desesperança, simplesmente acenderam algo dentro de mim.
Sem pensar nas consequências, avancei em direção ao homem e em
uma manobra eficaz, consegui imobilizá-lo pelo pescoço. Tomado de
surpresa, ele soltou a garota e tentou se livrar do meu agarre, mas em questão
de segundos passei a faca em sua garganta.
Os outros homens soltaram as jovens que tentavam arrastar e
vieram na minha direção.
Puxei minha pistola e disparei contra os dois. O quarto atirou
contra mim, mas me desviei a tempo. O outro homem apontou uma arma para
minha testa, mas em um movimento ágil consegui tomar a arma de sua mão,
invertendo as posições.
Com a base da mão acertei o nariz de um ao mesmo tempo que
chutava o saco, vendo-o contorcer-se no chão. Sem piedade, atirei contra o
outro no meio da testa. O corpo imenso tombou em cima de algumas
mulheres que gritaram apavoradas.
Agachei perto do cara que xingava enraivecido, e quando vi que ele
já se preparava para pegar a arma, adiantei-me e dei um golpe com a lateral
da mão direto em seu Pomo-de-Adão. O som da fratura de sua traqueia veio
acompanhado do desespero do homem em busca de ar.
— Apodreça no inferno, filho da puta.
A maioria das prisioneiras estava em um canto, tentando silenciar o
choro agudo das crianças, mas o tumulto atraiu a atenção de outros capangas
que entraram às pressas no container.
Com a pistola roubada de um deles e a minha própria, disparei
contra os dois primeiros. Algumas mulheres tentaram me ajudar, lançando o
que podiam alcançar na direção dos bandidos, mas eles nos superavam em
número.
Subi em uma das caixas e me lancei contra outro cara, enfiando
meu punho em seu plexo braquial. Muitos não sabiam, mas algumas artes
marciais consistiam apenas em eliminar agressores com o uso de pontos
vitais no corpo.
Krav-magá, Caratê, Sambo – uma arte marcial russa –, Jiu-Jitsu...
todas eram pré-requisitos para um soldado de elite, e embora eu não
dominasse todas com maestria, sabia me virar bem na hora de aplicar os
golpes mais mortais.
Quando alguém me segurou por trás, consegui me desvencilhar
rapidamente, no entanto, mais dois vieram em meu encalço.
Somente depois de ter abatido seis deles é que fui contida com um
soco que me deixou desnorteada. Cambaleei e fui agarrada por trás e
colocada de joelhos.
— Que merda é essa que está acontecendo aqui? — a voz de Jacob
me trouxe de volta ao presente.
— Essa piranha matou vários dos nossos! — o babaca que
apontava uma arma contra a minha têmpora disse.
— Tire a porra do véu, idiota!
Quando o niqab foi arrancado da minha cabeça, encontrei o olhar
enfurecido de Jacob Berns.
— Eu sabia. Nenhuma outra mulher poderia dar conta de tantos
agressores, a não ser que fosse alguém treinada exatamente para isso. —
Agachou-se para ficar ao nível do meu rosto. — Então nos encontramos mais
uma vez, não é mesmo? Que grande reviravolta temos aqui em nossas mãos,
senhores...
Os criminosos se entreolhavam, confusos, sem entender ao que ele
se referia.
— Você fica bem de joelhos, Zilah. Talvez eu encontre uma nova
profissão para você, zonah[6].
Cuspi em seu rosto nojento e desprezível, levando um soco na
mesma hora. No entanto, não me rendi e virei a cabeça para encará-lo outra
vez.
— Aproveite o tanto que puder dessa sua vida miserável, Berns.
Em breve, você será apenas a memória do que acontece com traidores.
Segurando-me pelo cabelo, ele fez com que eu ficasse de pé e
praticamente colou o nariz com o meu.
— Você sem suas armas não é páreo para ninguém, tenente. Acha
que com palavras será capaz de me amedrontar? A única memória que vai
restar daqui a um tempo será a sua. E sabe por quê? Porque em pouco tempo
é você quem estará implorando por uma morte misericordiosa — disse,
entredentes.
Como se precisasse deixar suas palavras registradas, ele me deu um
soco no estômago, fazendo com que eu perdesse o fôlego por completo.
— Amarrem essa vadia e joguem no porão do navio.
— E quanto às outras? — um deles perguntou.
— Acabou a diversão de vocês, imbecis. Essa merda aconteceu
porque não conseguem segurar seus paus dentro das calças. — Jacob veio até
mim outra vez. — Joguem os corpos desses idiotas no mar.
Dois homens me arrastaram do container abafado. O som do choro
das mulheres ficou para trás à medida que eu era levada até o porão do
cargueiro. Os caras me empurraram por uma escada estreita, e quando dei por
mim, meu corpo rolou até chegar ao piso de madeira imundo e infestado de
insetos e sabe-se Deus o que mais.
Um deles acorrentou minhas mãos, usando algemas interligadas
com os tornozelos. Seria difícil conseguir acessar qualquer uma das minhas
facas ocultas no uniforme que usava por baixo do vestido em farrapos.
Não sei quanto tempo se passou até que a porta acima se abrisse e o
som de passos pudesse ser ouvido.
Jacob chegou com mais dois homens e parou com as mãos nos
bolsos, encarando-me.
— Não consegue vir sozinho, ben-elef[7]? — zombei. — Nem
mesmo se garante no treinamento recebido para se tornar um agente do
Mossad, não é mesmo?
Ele avançou e me deu um chute doloroso contra os joelhos antes de
se agachar, mas não tão perto. Ele sabia que assim que eu tivesse a chance, o
atacaria com o que estivesse ao meu alcance. Mesmo que morresse no
processo.
— Eu só não te mato agora, sua vadia, porque há alguém ansioso
em te ver — disse com um sorriso sinistro. — Do contrário, eu a esfolaria
viva e jogaria a carcaça para os peixes.
Quem seria tal pessoa de quem ele falava? O mandachuva de toda a
operação?
Havia muitas lacunas que precisavam ser preenchidas.
— Por que você entrou nessa, Jacob? Achei que sua reputação no
Mossad valesse mais do que qualquer coisa — debochei.
— O dinheiro vale muito mais a pena. São milhões que entram no
meu bolso a cada transação.
— Há quanto tempo você está nisso? — insisti.
— Anos. Um, dois, quem se importa... já perdi as contas. Só sei
que meu futuro está garantido com tudo o que tenho direito — disse, com um
ar arrogante.
— Seu futuro já está desenhado, Berns — retruquei e dei um
sorriso de escárnio. — Nenhuma prisão será suficiente para você, então pode
contar com o fato de que os ponteiros do relógio estão marcando os minutos
exatos que ainda tem de vida.
Por um instante, pensei tê-lo visto vacilar, mas em seguida ele
decidiu calar a minha boca com um soco na mandíbula. Meu pescoço
ricocheteou para trás, o gosto metálico do sangue se infiltrando entre os
dentes.
— Depois que meu chefe se livrar de você, sharmouta[8], farei
questão de te foder de todas as maneiras mais brutas que alguma vez já
chegou a imaginar. E se você sobreviver — deu de ombros, com indiferença
—, posso passar o que restou do seu corpo para o restante da tripulação.
Jacob se levantou e saiu, deixando-me a sós em meio à escuridão
do porão.
Eu não temia o escuro. Temia muito mais o fato de o meu coração
acelerar o ritmo por conta do destino incerto que me aguardava.

[6] Puta, em hebraico.


[7] Filho de todas as putas, em hebraico.
[8] Piranha em hebraico.
15h39
Eu não estava contando com aquilo. A Tenente Zilah Stein não
deveria ter entrado no circuito, ainda mais sendo a combatente ousada que
era. Jacob, o filho da puta, deveria ter dado um jeito de evitar que ela
ingressasse na equipe de agentes destacados para aquela operação.
Teria sido fácil lidar com Mahidy e Ibrahim, talvez até mesmo
convencendo-os a aderir ao esquema que nos rendia um bom dinheiro a cada
transação.
No entanto, tudo virou de ponta-cabeça. O que vinha dando certo
há cerca de três anos agora corria o risco de ser encerrado pela ação das
Forças de Defesa de Israel e pela merda da Marinha Americana.
— Prepare o jato para Creta e o H155 assim que chegarmos lá.
Vamos visitar um cruzeiro — desliguei, e encarei a rua pacata pela janela do
Cassino Zarcon, em Key West.
Era hora de acertar as contas com o passado e eliminar de uma vez
por todas qualquer elo fraco que ainda pudesse ter.
18h41
— Muito bem — o capitão chamou nossa atenção no deck de
embarque —, as rotas já estão estabelecidas e cada um tem seu plano de ação
em mãos. Não vamos esperar que o cargueiro atraque no porto de Algeciras,
na Espanha. É lá que ele reabastece o tanque para cruzar o Atlântico de
acordo com as logísticas portuárias.
Cruzei os braços, à espera de mais informações.
— Com sua licença, Capitão Masterson — o Major Spielman, da
equipe de forças especiais de Israel, pediu a palavra. — De acordo com os
cálculos, sabemos que o cargueiro é de pequeno porte e, pela imagem do
satélite, está transportando apenas três contêineres, sendo que dois deles
servem como disfarce.
— Certo — ele disse.
— Houve uma mudança de rota, no entanto. Nossas fontes
acreditam que talvez estejam se preparando para atracar em uma enseada
abaixo de qualquer suspeita ao norte de Creta, mais precisamente em Plaka
— o homem prosseguiu.
— Vocês acreditam que estão despistando o trajeto? — perguntei.
— Ou talvez tenham detectado a presença da Tenente a bordo —
informou, em um tom sombrio.
Aquilo não era bom. De forma alguma. Ela estava nas mãos de uma
organização criminosa reconhecidamente inimiga de Israel. Acrescente aí o
fato de um dos agentes do Mossad – exatamente o que ela mais odiava – estar
no mesmo lugar. As suspeitas dela estavam certas desde o início. Ela tinha
mais do que motivos para desconfiar do traidor.
— A hipótese de que ela pode estar morta já foi ventilada? — o
Tenente Casters, da equipe de Seals, perguntou em um tom frio.
— Ela não está morta — eu e o major israelense respondemos ao
mesmo tempo. O homem me olhou, sem entender o porquê fui tão enfático.
— Inserimos um GPS intradérmico em sua pele. Se seu corpo
estivesse sem vida, o sinal seria perdido — Cap respondeu antes de mim.
— Todo oficial Matkal recebe um implante na nuca que funciona
como um rastreador. É assim que acompanhamos suas atividades,
especialmente quando estão por trás de linhas inimigas — Spielman
completou.
Eu não teria o que acrescentar. Não podia alegar que, além dos
fatos tecnológicos que indicavam que ainda estava viva, havia dentro de mim
a certeza de que Zilah lutaria com todas as forças para não sucumbir nas
mãos daqueles homens.
Por mais que soubesse que não somos imortais, era mais do que
óbvio que os soldados de elite possuíam treinamento diferenciado para
sobreviver nas situações mais adversas.
— Há duas alternativas para nossa entrada — o líder dos Seals
disse, apontando para o mapa em seu dispositivo —, pode ser com o navio
em alto-mar, ou quando chegar à enseada. Se contarmos com a segunda
opção, dá para fazer uma abordagem por terra, com um ataque ofensivo em
massa.
— O H-Hawk pode deixar os Recons em terra. Ainda contaremos
com o suporte da Base Naval da Marinha em Souda Bay, localizada mais ao
noroeste da ilha.
— Capitão, sugiro uma entrada furtiva, sem grande alarde —
Spielman interferiu, olhando para os dois responsáveis pelas equipes distintas
à dele.
— O único fator de furtividade que eles vão contar é com a morte
certa, Major Spielman.
— A Tenente Stein pertence às nossas forças, então acredito que a
decisão deveria ser nossa na escolha de abordagem — ele rebateu.
— E onde vocês estavam quando ela estava em meio ao fogo-
cruzado? — perguntei, atraindo sua atenção. — Nossos governos foram
chamados a colaborar um ao outro. Não estamos fazendo distinção se ela é de
Israel ou dos Estados Unidos. É companheira de armas, merece que a
tratemos como igual. Então, não acredito que tenha essa de “eu decido,
porque ela é uma Sayeret” — falei, entredentes.
Scott me puxou para um canto.
— Teag, você está louco, cara?
— Sim, sabe por quê? Porque estão decidindo quem deve entrar
para salvar a tenente, como se isso fosse contar como um ponto em suas
carreiras. Foda-se, no primeiro momento que a operação com o Mossad deu
errado, eles já deviam ter dado um jeito de intervir. Mas fizeram isso? Não.
— Não sabemos como eles atuam, Teagan.
— E daí? Scott, se um de nós estivesse em perigo, sendo mantido
em cativeiro, o caralho a quatro, quando um resgate chegasse, você pararia
para perguntar?
— Acho que não.
— Exato. Seja fuzileiro, Recon, Seal, Beretta... foda-se. O que
importa é tirá-la de lá.
— Mas você não pode se esquecer de que tudo isso leva a uma
operação muito maior — argumentou.
— Você já se perguntou por que a CIA não está no comando? Por
que o FBI não foi citado em momento algum? Esse tipo de investigação é da
alcunha deles, Scott. Se colocaram a Marinha em ação, é porque querem que
a operação seja resolvida de forma confidencial. O que é feito em territórios
bélicos, se passa como conflitos bélicos. Não é uma coincidência que nosso
porta-aviões estivesse próximo o suficiente para isso?
— Faz todo sentido.
— Exatamente.
— Tenentes — o Capitão nos chamou.
Quando voltei até onde os grupos discutiam, cruzei os braços.
— Três dos nossos entrarão furtivamente, mas apenas para eliminar
qualquer ameaça no convés. É nessa hora que os Matkal descerão de rapel do
helicóptero que vai sobrevoar o navio quando os elementos à vista já
estiverem neutralizados. Simultaneamente, uma equipe de terra fará o
controle da costa, enquanto os Recons também manterão a guarda.
Eu queria contestar. Queria dizer que minha intenção era subir
naquela porra de navio cargueiro e matar cada um daqueles filhos da puta
com as minhas próprias mãos, mas não poderíamos retirar a autoridade do
Seal.
— Se esse navio está sendo desviado da rota, significa que eles
também mudaram a abordagem de ataque. Então vamos nos assegurar de que
daremos conta do recado sem que uma guerra seja declarada.
Depois que todos os detalhes foram acertados, fui em direção ao H-
Hawk para tomar o meu assento. Eu não estava a fim de papo, então preferi
me isolar dos companheiros que conversavam animados sobre a ação que em
breve se desenrolaria.
— Teagan — o Capitão Masterson me chamou. — Não se esqueça
de que, antes de tudo, você é o líder dos Rec, então aja conforme o seu
instinto. Seu papel em terra será imprescindível para a segurança de seus
companheiros, entendeu?
— Sim, senhor.
— Ótimo. Tenho certeza de que tudo isso se resolverá o mais breve
possível.
Eu também esperava.

Nosso voo já durava mais de cinco horas. Estávamos sobrevoando


o mar de Creta, avistando a costa a pouco mais de cinquenta quilômetros. O
céu estava escuro como breu, e as poucas luzes que podíamos ver naquela
imensidão escura abaixo eram as luzes de alguns navios esparsos.
Cerca de dez quilômetros próximo ao ponto de partida, os três
Seals saltaram em seus trajes táticos e impermeáveis assim que o helicóptero
desceu a uma altura segura o bastante. Os mergulhadores seguiriam até o
cargueiro por baixo da superfície, enquanto nós seríamos deixados a uma
distância considerável em terra.
Quando chegou nosso momento de descer pelos cabos, apenas
acenei para Scott, Dylan e Jensen. Dougal e Tyler não vieram à missão,
reduzindo o contingente.
Na surdina, nós quatro deslizamos por rapel e pousamos sobre as
areias fofas da praia da ilha de Kalydon. Ergui o punho, sinalizando que os
oficiais de Israel poderiam fazer o mesmo. Os outros dois desceriam sobre o
convés. Mais uma equipe israelense desceria na costa de Plaka.
Começamos a correr pela praia, com nossas armas em punho, e
mesmo que estivéssemos imersos em total escuridão, munidos de nossos
óculos de visão noturna, nos guiamos com atenção a qualquer ruído diferente
de nossos passos.
— Aquelas são as luzes do navio? — Scott perguntou.
— Pela localização do satélite, sim — respondi. A urgência em
chegar até lá fazia meu coração bater cada vez mais acelerado. — Eles estão
atracados e com a rampa de embarque conectada à costa.
— O que significa que alguém entrou ou saiu da embarcação —
Scott emendou.
Seria complexo identificar um melhor ponto para me posicionar,
mas pelo mapa, havia uma pequena encosta que talvez servisse como base de
apoio para montar o meu rifle.
Levamos cerca de vinte minutos para chegar ao ponto mais
próximo. O cargueiro estava a cerca de cinco quilômetros de distância, e até
onde podíamos perceber, sem qualquer movimentação.
Somente alguns minutos depois é que a sinalização de um dos Seals
cintilou no escuro. Eles já estavam a bordo, e entrariam em posição naquele
momento.
Eu só esperava que aquela missão se encerrasse por ali, de uma vez
por todas.
Um lado queria apenas trazer alívio às mulheres que estavam sendo
tratadas como mercadoria. O outro, aquele mais egoísta, queria apenas se
assegurar de que teria tempo hábil para explorar a química que explodiu em
milhares de fagulhas com Zilah Stein.
20h53
Eu já devia estar ali naquele porão há mais de um dia, sobrevivendo
à base de água e o pão macilento que me levaram apenas duas vezes.
Meu corpo inteiro doía por conta da posição em que me
encontrava, e os punhos e tornozelos estavam em carne viva. Por mais que
tivesse tentado me livrar das algemas, aparentemente nada servia para
desbloquear os cadeados enferrujados que ligavam os elos das correntes.
Jacob não aparecera de novo, deixando-me em paz, mas algo me
dizia que tramava alguma coisa e só estava esperando o momento certo para
contra-atacar.
Eu já havia perdido a noção das horas, mas imaginava que
estávamos na noite seguinte à minha prisão naquele buraco de merda.
Durante o tempo em que estive ali, meus pensamentos se voltavam a todo
instante para o fuzileiro americano.
Minha mente repetia o beijo que trocamos em um looping
interminável. Havia uma sensação incômoda de que talvez nunca mais
pudesse sentir aqueles lábios contra os meus outra vez, que não poderíamos
explorar um ao outro da forma como eu desejava. Teagan Collins despertou
no meu corpo uma chama que se recusava a ser adormecida.
Recostei a cabeça contra a estrutura de madeira e fechei os olhos,
sentindo o corpo aquecer diante das lembranças. Um beijo apenas. Nada
mais... Porém a ausência de Teagan era quase tão palpável quanto as dores
que sentia em cada centímetro do meu corpo.
Desde Aaron, nunca mais havia me permitido entregar a qualquer
forma de desejo carnal. E, naquele momento, sentada em um porão nojento e
decrépito, rumo a uma morte certa, tudo o que eu mais queria era poder
vivenciar o que o beijo de Teagan prometia.
Abri os olhos na mesma hora quando percebi que o navio já não se
movia. Tentei apurar os ouvidos para detectar os passos acima, mas o ruído
das máquinas me impossibilitava. Sentei-me ereta, olhando para todos os
lados. Havia, certamente, alguma movimentação acontecendo.
A porta se abriu de uma vez, e dois criminosos desceram com suas
armas em punho. Um deles me puxou para cima, esquecendo-se de que eu
estava algemada às correntes. O outro se ajoelhou para soltar os grilhões dos
tornozelos e, quando pensei em agir, acertando-lhe um chute, o cano da arma
na minha têmpora indicou que não seria uma ideia genial. Fiquei tonta por
um instante, tentando recobrar o equilíbrio.
— Faça um movimento em falso, e esse chão vai ficar manchado
com o seu cérebro — o homem fétido disse.
Fui levada pelas escadas acima, sendo quase arrastada pelo
corredor apertado que levava a diversas cabines. Mesmo sob ameaça, debati-
me em suas mãos. Eu me recusava a entregar os pontos sem uma boa luta.
Depois de mais alguns instantes, eles abriram uma porta e me
arremessaram no chão. Bati a cabeça na estrutura da cadeira e gemi em
agonia. Ainda estava no chão quando a porta se abriu. Por estar zonza, não
abri os olhos imediatamente, temendo vomitar.
Um par de botas polidas entrou em meu campo de visão pouco
depois, à medida que eu tentava inspirar lentamente pelo nariz.
— Shalom, Zilah — disse a voz que julguei nunca mais ouvir na
minha vida.
Devagar, ergui a cabeça e deparei-me com o par de olhos castanhos
que aprendi a amar e respeitar. Ainda estava em choque quando sussurrei
quase que para mim mesma:
— A-Aaron?
A cabeça inclinada para o lado, associada ao sorriso
condescendente e ao mesmo tempo cruel, fez com que minha mente entrasse
em curto-circuito.
A escuridão assumiu comando a partir dali e, de repente, tudo o que
fui capaz de perceber era o silêncio.

Instantes depois, senti o toque de um tecido frio sobre minha testa.


Minhas pálpebras tremularam até se abrirem por completo, dando de frente
ao meu noivo falecido em serviço há mais de dois anos.
— Posso entender que minha presença tenha sido um choque para
você — ele disse, enquanto continuava a limpar meu rosto.
Continuei em silêncio, sem saber como reagir. Temia estar
realmente em choque, mal sendo capaz de processar as informações,
perguntas, dúvidas e mágoa que brigavam por um lugar dentro da minha
mente.
— Você não vai dizer nada? Não vai agradecer o milagre de me ver
vivo à sua frente? Não vai alegar saudade? — Seu tom exprimia ironia e certa
insegurança em igual medida.
Tentei me sentar, querendo afastar suas mãos de mim. Não
entendia a situação, mas sentia que Aaron já não era mais aquele a quem
amei. Não exalava mais a aura de impecabilidade que me atraiu em primeiro
lugar. Havia em seus olhos um ar de maldade que nunca estivera ali.
— C-como... — Minha boca se recusava a dar voz às palavras que
saltavam em minha cabeça.
Aaron não se afastou, mas deu espaço suficiente para que eu
pudesse me sentar no sofá puído de couro.
— Eu sei o que você deve estar pens...
— Você não sabe coisa nenhuma! — gritei, interrompendo seu
discurso. — Seja lá que porra de desculpas você vai dar, tenho certeza de que
não vou gostar de ouvi-las!
— Zilah... — Tentou me tocar, mas ergui as duas mãos e girei seu
braço em um golpe defensivo, ficando agora nariz a nariz.
— Seu cretino! Você faz parte de toda essa merda, não é? Desde o
início! E usou sua morte como um disfarce para encobrir suas verdadeiras
atividades — deduzi, vendo-o vacilar.
— Eu queria o melhor para nós, Zi — disse, em um tom
apologético. — Precisava de uma forma de sustento...
— Sustento? Aaron, sustento se consegue com trabalho duro e
digno. Você jurou honrar nossa bandeira, nossa nação, nossa corporação.
Isso... isso aqui é sórdido! Você está colaborando em um esquema de tráfico
internacional e que financia os mesmos terroristas que juramos combater,
porra!
— Quando entrei para a equipe do Mossad, não imaginei que seria
esse o desfecho, Zilah. Minhas intenções eram as melhores...
— O que mudou? Meu Deus... eu não acredito... Achei que o
conhecesse — sussurrei, chocada. Um choro incontido me dominou, mesmo
que eu detestasse cada uma das lágrimas que teimavam em cair. — E-eu te
amava...
— Nós podemos ficar juntos, Zi — ele disse, de forma apaixonada.
— Podemos desaparecer para algum lugar... Só agora percebo que minha
vida era vazia sem você. Estive vivendo apenas como uma carcaça... senti sua
falta todos os malditos dias.
— Mentira! Eu chorei sobre o seu caixão! Guardei o luto por muito
tempo, chegando a temer que nunca mais seria capaz de encontrar o amor
outra vez. O homem a quem eu amava era justo, leal, companheiro... ele era
bom. Tinha princípios... mas agora vejo que amei apenas a ilusão de alguém
que nunca existiu — eu disse, limpando violentamente as lágrimas.
— Não! Ainda estou aqui... Foi preciso, Zi! Eu juro...
— Saia de perto de mim! É melhor que me mate agora, porque se
eu conseguir me soltar dessas amarras, juro que vou matá-lo com as minhas
próprias mãos!
Ele me deu um tapa doloroso e me empurrou no chão. No mesmo
instante, caiu acima do meu corpo, imprensando o meu muito menor. Aaron
era alto, forte e continuava com o mesmo físico invejável de quando o
conheci. As linhas de seu rosto, no entanto, mostravam os sinais do tempo e
da vida que provavelmente levava no crime.
— Saia de cima de mim, ben-zonah!
— Zilah! Não me obrigue a te machucar! — gritou, e ergueu meus
braços acima da minha cabeça. Sua mão quase tão áspera quanto o aço que
me cercava. — At haahavah sheli... — Afundou o rosto na curva do meu
pescoço.
— O quê? Não sou o amor da sua vida! O amor da sua vida é o
dinheiro sujo de sangue que vem ganhando nesses últimos anos.
Comecei a me debater abaixo de seu corpo, girando o quadril para
sair de seu agarre. Porém ele era muito mais forte que eu, e já previa o que
estava prestes a fazer, já que se acomodou ainda mais entre minhas pernas.
Senti sua excitação contra o meu centro e a náusea subiu na mesma hora.
— Zi... por favor...
— Lekh lehizdayen! Vá se foder, seu merda! O único jeito que você
vai conseguir colocar suas mãos em mim outra vez será para lançar meu
corpo no mar.
Ele respirou profundamente e sua expressão se transformou.
— Eu preciso que você me entenda! Fiz isso por nós dois! Para que
pudéssemos ter uma família, longe de Israel, do Exército, de toda e qualquer
violência. Eu queria te dar um lar com conforto, luxo... tudo o que você
merece...
— Você conta isso para si mesmo para tentar lidar com a culpa?
Me diga... o que aconteceu quando entrou naquela operação do Mossad
tantos anos atrás?
Ele me encarou, a ira cintilando em seus olhos escuros.
— Entrei acreditando que estava fazendo o certo. Depois fui
confrontado com a verdade.
— Que verdade? Que mulheres refugiadas não valem
absolutamente nada para você e que homens doentes as veem como objetos?
Que vidas humanas não significam nada, já que você está favorecendo que
milhares continuem a ser ceifadas por ataques terroristas? Você é um
monstro!
— Não, não sou! Muitas dessas mulheres terão uma vida muito
melhor fora dos campos de refugiados! — gritou na minha cara. O pior é que
ele parecia realmente acreditar naquela insanidade.
— Você é louco! Um criminoso exatamente igual àqueles com
quem se aliou!
Sua mão agarrou meu queixo com brutalidade. Com ódio no olhar,
ele arreganhou os dentes, rosnando:
— Você não sabe de nada pelo que passei! Não sabe de nada!
— Eu preferia morrer a trair minha nação, Aaron. E lembro-me que
você era assim... Ou fingia ser... Não use a minha pessoa para justificar sua
falta de caráter e moral — falei, perdendo por completo minhas forças. Fui
capaz de lidar com a “morte” dele, mas aquilo... era demais. Era como se
todos os meus sonhos, sentimentos, tudo... houvesse se afogado em um mar
de escuridão completa. Era como se eu nem mesma me conhecesse mais... já
que não fui capaz de julgar ou sequer desconfiar de qualquer falha que ele
pudesse ter. — Me mate... por favor.
— Não, Zi... Não precisa ser assim... Nós sempre nos demos muito
bem, lembra? — Tentou me beijar, mas virei o rosto para evitar o contato de
sua boca asquerosa. Se eu ia morrer naquele instante, então queria levar para
o túmulo a memória do beijo de Teagan, não a dele. — Podemos fugir
juntos... só eu e você.
— Nunca.
Com força renovada, consegui lançar seu corpo para longe do meu
enquanto eu rolava no chão para me colocar de pé. No entanto, Aaron
aterrissou o peso de seu corpo às minhas costas, e com um puxão, rasgou o
vestido velho que eu ainda usava. Ele só não contava que eu estivesse
completamente vestida por baixo de todo aquele tecido.
— Saia de cima de mim, mamzer!
Sua mão forçou meu rosto no chão, enquanto ele grunhia de
irritação tentando rasgar minha calça. Fiz o que fui treinada para fazer: apoiei
os antebraços no chão e elevei meu corpo, conseguindo deslocar seu peso.
Quando ele perdeu o equilíbrio, liberando o aperto em minha cabeça,
consegui incliná-la para trás com toda a força, acertando seu nariz. O som do
osso se partindo foi um alento para os meus ouvidos.
— Sua cadela! — xingou, tentando controlar o sangramento
intenso.
Foi o tempo necessário para me colocar de pé. Sem perder tempo,
chutei a cadeira à frente e arranquei uma de suas pernas para usar como arma
improvisada.
— Você acha que consegue me vencer, Zi? — perguntou, com um
sorriso de zombaria. — Vai ser divertido domar você.
— Vamos ver quem vai se divertir mais, babaca. Se você não
entrou naquele túmulo de verdade, vamos corrigir isso, não é mesmo? Está na
hora de você honrar o dinheiro gasto no seu funeral! — Acertei sua coxa com
um golpe que o fez se dobrar o suficiente para que eu pudesse girar o pedaço
de madeira mais uma vez.
Não tive tempo hábil. A porta se abriu e Jacob entrou às pressas,
gritando:
— Estamos sendo atacados!
Aaron olhou para mim e fez uma careta. Sem hesitar, ele me deu
um soco e arremessou meu corpo contra a parede atrás da mesa. Aquilo me
deixou totalmente desnorteada por alguns segundos. Apenas tive tempo de
ouvi-lo gritar para Jacob:
— Tranque a porra dessa porta e não a deixe sair por nada,
entendeu?
Esperei ouvir os passos se distanciando para poder me levantar,
esfregando o ombro que ainda estava dolorido pelo tiro de tantos dias atrás.
Com pressa, abri todas gavetas e armários em busca de uma arma ou algo que
me ajudasse a sair dali.
Meu olhar pousou na escotilha imunda um pouco mais ao fundo.
Fui até lá e fiz uma averiguação da estrutura. Sem hesitar, usei a mesma peça
de madeira da cadeira para tentar quebrar o vidro. Nada. Aquela merda devia
ser temperada e ser de uma espessura considerável.
Olhei ao redor, agora sendo capaz de ouvir o som dos tiros e gritos
acima no convés. Vi o que se parecia com uma porta embutida por trás de um
gaveteiro. Corri até lá e empurrei-a para o lado, gemendo em agonia por
conta da dor. Quando o caminho estava livre, chutei a estrutura que cedeu
somente na terceira tentativa. Era uma porta de ligação entre duas cabines.
Fui até a saída e espiei pelo corredor, sem ver sinal de qualquer pessoa.
Atravessei o corredor apertado às pressas, subindo as escadas de
dois em dois degraus para me situar. Coloquei a cabeça pela passagem e vi
vários homens mortos no deck de madeira. Saí dali e peguei a primeira arma
disponível do cadáver mais próximo. Uma Ak-47. Procurei no corpo do
homem por mais carregadores e enfiei nos bolsos da calça cargo. Tive que
me desfazer do colete tático alguns dias atrás quando desmaiei por conta do
calor.
Seguindo agachada pelo convés, escondi-me por trás das cordas
usadas para fixação dos contêineres, fazendo uma varredura pelo local.
Mesmo que a claridade não fosse lá das melhores, reconheci os uniformes
dos Sayeret Matkal e mais alguns militares em trajes táticos pretos. Seals.
Então a Marinha Americana havia destacado sua força mais letal de elite para
aquela missão... pelos planos do Capitão Masterson, aquilo significava que
outra equipe agiria no lugar de destino desse navio.
Vi um dos criminosos furtivamente tentar atingir um dos militares
e, sem hesitar, disparei uma rajada de tiros na direção do homem.
Aquilo atraiu a atenção dos militares.
— Stein! — Virei-me e deparei-me com o Major Spielman, da
equipe Alpha G. Nunca havíamos combatido juntos, mas minha equipe fora
treinada por ele.
Ele veio correndo na minha direção e segurou meu rosto para
conferir os danos. Afastei a cabeça rapidamente, querendo me livrar do toque
indesejado.
— Você está bem? — perguntou. — Abaixe-se!
Nós dois nos jogamos no chão do convés quando uma saraivada de
tiros veio em nossa direção.
— Atiradores na praia! — um dos americanos gritou.
Quando levantamos a cabeça, vimos dois sendo abatidos por tiros à
longa distância.
— Aquele filho da puta é bom — um dos militares disse, surpreso.
Meu coração acelerou de tal forma que temi perdê-lo pela boca.
Teagan. Só podia ser ele... tinha que ser ele.
— Vou atrás de Aaron — informei, tentando me afastar. Spielman
segurou meu cotovelo.
— Que Aaron?
— Cohen. O filho da puta está vivo — disse, e saí correndo.
O convés havia se tornado um cenário de batalha. Uma forma
moderna das retratadas em filmes, com piratas e duelos de espadas. Ali, nos
valíamos da força bruta que as munições podiam causar no corpo de outra
pessoa.
Atire primeiro, pergunte depois. Ou melhor, nem pergunte. Parta
logo para outra.
Corri em direção aos contêineres, temendo que o tiroteio tenha
alcançado o local onde as refugiadas estavam abrigadas.
Aaron e Jacob estavam no canto mais distante, atirando contra
outros homens na costa, e não viram minha aproximação. Sem parar para
pensar, simplesmente atirei contra a nuca de Jacob, que caiu para frente, no
mar.
Meu ex-noivo se virou, assustado, e me encarou.
— Zilah...
Ele estava na minha mira. Bastava que eu apertasse o gatilho com a
mesma facilidade com que fiz com Jacob.
— Sabe que acho que seu melhor castigo seria encarar um longo
julgamento pelos crimes que cometeu, mas... situações desesperadas exigem
medidas extremas.
— Você não vai ter coragem de me matar... — ele disse, com toda
a certeza do mundo.
Dei um sorriso de escárnio, apontando a AK-47 para o seu peito.
— E o que me impede, Aaron?
— O amor que compartilhamos um pelo outro — respondeu,
convicto.
— Achei que aquilo fosse amor. No entanto, me enganei
redondamente.
Os gritos das mulheres atraíram minha atenção, tirando meu foco
naquele instante. Foi o bastante para que Aaron se jogasse na minha direção e
lançasse a arma longe.
Merda!
Nós dois nos engalfinhamos em uma briga no chão, mas, de
repente, o cano de sua pistola estava apontado para a minha têmpora.
— Será triste ver toda essa beleza e garra se desfazendo em nada...
Você ainda pode decidir ir comigo...
— Você é lunático, se acha que vai sair vivo desse navio, Aaron.
Posso morrer hoje, mas você irá junto. — Sem esperar por mais, retirei a faca
que ele levava na coxa e afundei na lateral de seu corpo.
Seu grito de dor encheu meus ouvidos. Ergui a cabeça e vi dois
homens usando duas senhoras como escudo humano e decidi deixar que
Aaron sangrasse até a morte.
Eu me levantei de um pulo e comecei a correr na direção dos
criminosos. Puxei o rifle de outro cadáver e mirei na cabeça do primeiro. O
outro foi contido por um militar americano que o abordou por trás. Estava me
aproximando das mulheres quando um grito alto reverberou pelo convés:
— Zilah!!! — Olhei para o lado, vendo Teagan correr na minha
direção. Como ele havia conseguido subir ao navio com tanta rapidez? Só se
ele estivesse na praia da enseada, onde o cargueiro estava ancorado.
O tempo que levei para pensar em correr em sua direção foi o
suficiente para que Aaron se levantasse e apontasse a arma para mim, sem
hesitar em disparar.
Dizem que a vida passa diante de nossos olhos como uma película
de cinema. O meu passou rapidamente, mas as imagens estavam entremeadas
com cenas de um futuro ao qual provavelmente não estava destinada a viver o
que quer que poderia ter vivido ao lado de Teagan Collins.
Esperei pelo impacto da bala que não veio. Eu estava pronta para
ter minha vida ceifada. Quando abri os olhos, vi Teagan deitado no chão, à
minha frente.
Seu amigo, Scott, havia atingido Aaron que agora jazia morto no
convés.
— Teag! — o outro oficial gritou.
Só então saí do transe em que havia me enfiado, vendo-o ali
imóvel. Imóvel demais... Não... não.
Ajoelhei-me em busca do ferimento, vendo que sangrava
profusamente de seu pescoço. Nãooo! Aquele só poderia ser um pesadelo.
Um pesadelo do qual eu queria acordar o mais rápido possível.
Desesperada, usei minhas mãos para cobrir o buraco por onde seu
sangue jorrava, em uma tentativa vã de estancar o sangramento.
— Seu louco! O que você foi fez? — gritei, sentindo as lágrimas
quentes deslizando.
Scott chegou ao meu lado e gritou para ninguém em particular:
— Traga aquela porra de helicóptero aqui! — Ele arrancou o colete
e retirou a camiseta, entregando para mim. — Continue pressionando.
Teagan, seu filho da puta! Você não vai morrer, entendeu? Merda, merda!
Não vi o tempo passar. Não vi a movimentação ao redor. Tudo
perdeu o sentido. Tudo desvaneceu. Eu enxergava Teagan por trás das
lágrimas que salgavam minha boca.
— Teagan... — sussurrei. — Não...
— Temos que deslocá-lo para a aeronave, Zilah — Scott falou
minutos depois, atraindo minha atenção. Olhei para cima e vi o helicóptero
militar da Marinha pairando acima do convés.
— Eu não posso soltar.... não posso parar de comprimir... —
respondi em desespero e trêmula. Scott era nada mais do que um borrão ante
meus olhos.
— Ei, ei... vai ficar tudo bem — ele disse, mas parecia tão incerto
quanto eu.
Como se estivesse em câmera lenta, vi os militares descendo do
helicóptero e correndo em nossa direção. As hélices agitavam tudo ao redor,
soltando meu cabelo que chicoteava furiosamente contra o meu rosto.
Encarei minhas mãos ensanguentadas. Meu corpo inteiro tremendo
como uma folha ao vento. Senti a presença de alguém do meu lado à medida
que observava, como se estivesse em uma bolha, sem ouvir os ruídos ao
redor, como se estivesse assistindo a alguma cena enquanto os companheiros
de Teagan o erguiam cuidadosamente. Scott e eu havíamos providenciado
para que a camiseta servisse como um curativo até que ele pudesse receber
cuidados médicos. Mas o ferimento... havia sido muito perto da jugular... e
havia sangue demais...
— Tenente Stein? — Eu podia ver a boca de um homem se
movendo à minha frente. Seu rosto estava próximo ao meu, mas tudo o que
eu conseguia fazer era encarar minhas mãos cobertas do líquido carmesim
que se esvaía do corpo de Teagan.
— Ela está em choque — alguém comentou.
Sentindo que alguém havia segurado meu cotovelo, percebi
vagamente que me aproximava das portas abertas do helicóptero. Olhei para
trás, repentinamente consciente de que deixávamos um cenário de batalha.
Avistei o corpo de Aaron em meio ao caos e escombros do que
havia sobrado do cargueiro. Meu coração parecia congelado. Era como se eu
não fosse mais capaz de sentir nada.
Apenas um imenso vazio.
— Venha — o Major Spielman disse. — A equipe vai continuar
aqui para dar andamento aos trâmites com as refugiadas, porém você precisa
de cuidados.
Ele conversava comigo, mas era como se eu estivesse caminhando
pela inércia. Como se minhas pernas estivessem se movendo sem o meu
comando.
No meio do caminho, vi uma mulher correndo em minha direção.
Ela se lançou em meus braços, chorando convulsivamente.
Nádia. Levei alguns segundos para reconhecer a voz.
— Obrigada, obrigada! Que Alá possa te abençoar pelo resto de
seus dias...
Em estado de choque, não consegui responder nada, salvo retribuir
o abraço. Outras mulheres vieram buscá-la, agradecendo-me efusivamente,
mas tudo em que eu conseguia pensar era no corpo sem vida de Aaron, a
quem pranteei e vivenciei o luto há tantos anos e que agora, sim, estava
morto. E pensei no corpo inerte de Teagan. Em seu sangue tão vivo que
manchava minhas mãos.
Como se saísse do transe, soltei-me do agarre do Major que já fora
meu instrutor e corri em direção ao H-Hawk, puxando Scott pela mão.
— Deixe-me ir com ele. P-por favor — supliquei.
— Se eu a deixasse para trás, seria o meu couro que ele arrancaria.
Suba. Você também precisa de cuidados — repetiu o que Spielman falara
pouco antes.
— Eu estou bem... — tentei argumentar, enquanto me afivelava ao
assento. Os amigos de Teagan o haviam prendido a uma padiola, e um dos
oficiais mantinha a pressão em seu pescoço, enquanto outro fazia uma
bandagem de contenção compressiva.
O Major Spielman sentou-se ao meu lado, angulando o rosto para
que o encarasse.
— Quando estiver disposta, vou colher seu depoimento para que o
relatório seja enviado o mais rápido possível para o Comandante Cohen —
disse em um tom sombrio. — Acredito que ele mesmo nem tenha suspeitado
das ações de seu sobrinho, não é?
Apenas neguei com um aceno, incapaz de falar qualquer coisa. Eu
já havia perdido o rumo com o confronto inesperado com meu passado.
Agora me via completamente sem chão com alguém que cheguei
até mesmo em pensar em um futuro.
Olhei para a escuridão da noite que se mesclava ao mar em que
agora sobrevoávamos. Desviei o olhar para minhas mãos, movendo-as,
hipnotizada pelo sangue que recobria minha pele.
Era como se a vida de Teagan estivesse escorrendo por entre meus
dedos, como a areia fina de uma ampulheta.
23h59
Teagan estava na sala de cirurgia há mais de quarenta e cinco
minutos. O helicóptero militar havia tomado outro rumo quando perceberam
que a hemorragia era muito intensa e que possivelmente ele necessitaria de
uma transfusão sanguínea. O tempo de voo seria longo demais até o hospital
naval americano que ficava na Alemanha. A opção que restava era levá-lo a
um hospital militar em Atenas.
Recusei-me terminantemente a ser atendida, mas fui vencida pelos
argumentos de Scott, que afirmou que não sairia da sala de espera até que
recebesse notícias sobre o quadro de seu amigo.
Depois de ser medicada, fiz contato com meu comandante, tendo
consciência de que aquela ligação seria dolorosa para ambos.
— Tenente, já soube que seu resgate foi bem-sucedido e que os dois
carregamentos com as mulheres sequestradas foram interceptados. O
Secretário de Defesa dos Estados Unidos está recebendo reforços de nossas
equipes táticas e parece ter contido também a operação que se desenrolava
em Key West.
— Obrigada pelas informações, senhor — agradeci, sem jeito. — O
senhor recebeu o relatório enviado pelo Major Spielman?
— Sim, mas esperei que me desse o retorno.
— Aaron Cohen... encabeçava o esquema inteiro. Desde o
momento em que ingressou no Mossad, ele foi recrutado e cedeu à ganância
ao se juntar à organização criminosa.
O silêncio se prolongou por mais do que deveria, tornando-se
desconfortável.
— Sempre imaginei que Aaron houvesse sido envolvido em uma
teia de corrupção, mas não por vontade própria... Quando... quando soube
de sua morte naquela época... — ele pigarreou — pensei que havia sido
queima de arquivo. Muitas lacunas foram preenchidas apenas agora e... É
duro admitir que estive enganado o tempo inteiro.
— Não somente o senhor, Comandante. Sinto-me enganada desde o
princípio, porque nunca imaginei que Aaron fosse capaz de algo tão vil.
— O amor cega as pessoas, jovem Zilah. Você só o via através das
lentes amorosas de uma mulher apaixonada, e eu... eu o enxergava como a
um filho, e fui incapaz de detectar sua falha de caráter.
Não respondi nada. O que eu teria para dizer? Que também me
sentia uma idiota por todo aquele tempo? Que o que Aaron fizera havia
manchado as memórias mais doces dos momentos que tivemos juntos?
— Espero que você se recupere. Tanto física, quanto
emocionalmente. Você é jovem, tem garra e perseverança. Provou-se digna
de todas as honras militares...
— Não preciso de medalhas, senhor — respondi, rápido.
— Não precisa, mas vai recebê-las da mesma forma. Você
receberá o período obrigatório de dispensa, para que possa se recuperar.
Nesse meio-tempo, trataremos da sua promoção.
Não era aquilo o que eu queria. O que desejava naquele instante era
ver o sorriso aberto do americano outra vez.
— E quanto à honraria ao apoio da Marinha Americana? —
perguntei. Se eu receberia uma medalha, esperava que Teagan saísse daquela
para receber aquilo também.
— Também serão devidamente condecorados. Spielman me disse
que você não quis embarcar para a base.
— Se não for problema, senhor, peço permissão para me estender
até ter certeza de que o oficial americano ferido esteja fora de perigo.
— Basta dizer quando quer voltar e a colocarei no primeiro jato
para casa. Fique bem, Tenente. Shalom.
E desligou.
Fiquei por cerca de dois minutos apenas olhando para o chão estéril
daquele hospital. A cortina do boxe onde estava sendo atendida se abriu e
Scott entrou.
— Vamos, o médico está chamando.
Meu coração bateu acelerado, em pura e total agonia. Senti as mãos
trêmulas e quase saltei quando Scott segurou uma delas e me puxou em
direção à sala de visitas.
— Você é o responsável pelo Tenente Teagan Collins? — o médico
grisalho perguntou.
— Sim. Estou no comando até que nosso Capitão chegue do porta-
aviões — ele respondeu. — A Tenente Stein, das Forças de Defesa de Israel,
também estava na operação e envolvida no conflito.
— Bem, a bala, embora tenha passado de raspão, dilacerou e muito
a artéria cervical superficial, e lesionou uma boa parte da jugular externa. Sua
hemorragia foi considerável, dada a gravidade das lesões e da área atingida.
Conseguimos fazer uma reconstrução, mas temos que aguardar até amanhã
para averiguar se não há risco de trombos. No entanto, ele teve uma parada
cardiorrespiratória e precisou ser reanimado durante a cirurgia — o médico
disse em todo aquele jargão médico. — No momento, seu estado de saúde
está sendo considerado estável, mas ele será mantido em sedação por algum
tempo.
Olhei para Scott, aflita, tentando ver se ele havia compreendido
tudo.
— Ele está em coma induzido, é isso? — perguntei, sentindo meu
coração bater acelerado.
— Sim. Está intubado, mas estamos prevendo que ficará somente
três dias, que é o padrão para casos como o dele — informou.
— Ele corre algum risco de morte? — Scott perguntou. Eu podia
sentir sua mão trêmula contra a minha.
— Estamos confiantes de que ele se recuperará sem maiores
intercorrências. O importante é que a cirurgia foi um sucesso, mas todo pós-
operatório oferece riscos — alegou. — Isso significa que não há previsão de
alta.
— Nem mesmo uma possível transferência para outro hospital
militar?
— Creio que teremos que aguardar nas próximas horas, Tenente
Bromsfield — disse ao ler o sobrenome e patente de Scott na tarja de seu
uniforme. — Tenha confiança de que estamos fazendo todo o possível para
que seu amigo saia daqui completamente recuperado e levando apenas uma
cicatriz.
— Podemos vê-lo? — perguntei.
— Ele tem permissão para uma visita, e por apenas cinco minutos,
já que se encontra agora na Unidade de Tratamento Intensivo.
Eu e Scott nos entreolhamos, duelando em silêncio pelo direito de
ver com nossos próprios olhos que Teagan ainda estava vivo. Eu não poderia
usurpar essa preferência em prol da minha sanidade. Scott era seu amigo há
anos, enquanto eu havia entrado na equação há muito pouco tempo.
— Posso solicitar que dividamos esses cinco minutos em dois?
Dessa forma, ambos poderemos vê-lo — Scott disse e apertou minha mão.
O médico olhou de mim para o fuzileiro, pensativo.
— Façamos assim... já que a moça também esteve vivendo um
tempo difícil, não me custa nada dar autorização para que ambos o vejam
simultaneamente. Fica bom para vocês? — perguntou.
— Sim, claro — apressei-me em afirmar.
— Por aqui, então — ele disse em um inglês carregado e nos guiou
pelo longo corredor da ala cirúrgica. Depois de passarmos pelas portas de
vidro fosco, fomos encaminhados para a UTI.
O médico prestativo parou diante de um quarto isolado e disse:
— Cinco minutos. Ele está sedado, então não responderá a nenhum
estímulo verbal. — Abriu a porta do quarto e nos deu passagem.
O sempre tão vivaz fuzileiro experiente da Marinha estava deitado
em meio aos lençóis de um tom azul claro. A palidez de sua pele
contrastando fortemente contra as tatuagens em seus braços. O imenso
curativo na lateral de seu pescoço dava mostras claras da gravidade da
situação, bem como o tubo do respirador que o ligava a uma máquina ao
lado.
O fato de ele ainda estar vivo era um milagre. Dificilmente alguém
resistiria àquele tipo de lesão.
Scott pigarreou e apoiou a mão em meu ombro, como se estivesse
me dando forças para seguir adiante. Ou talvez o gesto tenha sido de
encorajamento para ele mesmo.
Fiquei de um lado do leito, enquanto seu amigo assumiu o outro.
Sem hesitar, toquei sua mão pálida que repousava ao lado de seu quadril.
Senti uma lágrima sorrateira deslizando pelo meu rosto.
Eu sabia que o tiro que ele levou havia sido endereçado a mim.
Mas o maluco simplesmente saltou à minha frente.
Por quê? Eu não conseguia entender aquele estranho vínculo que
parecia haver se formado entre nós. Era como se não fosse apenas algo
baseado em atração sexual... e sim, algo muito mais além e intenso do que
isso.
— Porra, Teag — Scott sussurrou.
— Eu sinto tanto — falei, baixinho.
— Pelo quê? — o fuzileiro perguntou.
— Por ele estar nessa situação apenas por minha causa... — Outra
lágrima teimosa desceu sem rumo. Eu estava me contendo há tantos dias que
temia que se abrisse a represa, nunca mais pararia de chorar.
Scott estendeu a mão por cima do corpo inerte de Teagan e tocou
meu braço.
— Ei... Se há um culpado nessa história, é aquele filho da puta que
pretendia matar você. O mesmo que agia em todo esse esquema sórdido que
conseguimos desmantelar. Não se esqueça de que você pulou para dentro
daquele navio, facilitando que pudéssemos rastreá-la e, consequentemente, ao
cargueiro.
— Obrigada — disse, secando as lágrimas. — Mas não entendo por
que esse maluco se jogou na minha frente.
O olhar de Scott era enigmático quando disse com um sorriso:
— Tenho certeza de que você vai descobrir assim que ele acordar e
sair dessa.
Eu esperava que sim.
— Vou fazer assim... Vou sair ali para telefonar ao Cap e informar
sobre o estado de saúde do Teag — Scott disse, virando-se de costas. Antes
de sair, no entanto, ele disse por cima do ombro: — Você ainda tem três
minutos com ele.
Quando Scott saiu do quarto, segurei a mão de Teagan entre as
minhas e depositei um beijo no dorso. Meus olhos percorreram toda a
extensão da pele coberta de desenhos dos mais variados tipos. Imagens
ultrarrealistas que retratavam o mundo em que vivia. Deslizei os dedos
trêmulos por cada um deles, subindo lentamente até alcançar seu rosto
coberto pela barba dourada.
Com a ponta do indicador desenhei os traços perfeitos de seu nariz,
acariciando em seguida a linha de suas sobrancelhas. Antes de me inclinar
sobre ele, olhei para a porta para conferir se ainda se encontrava fechada.
Hesitante, toquei o canto de seus lábios com os meus. Eu queria apenas que
ele soubesse de alguma forma que eu estava ali. Ou que estive.
Fechei meus olhos, desejando que estivéssemos em outro tempo,
outro lugar. Longe de tudo e de todos. Alheios à violência que nos cercava
desde que ingressados em nossas respectivas forças.
Delicadamente recostei minha testa à dele e rezei baixinho para que
se recuperasse por completo. Com o canto do olho, vi a dog tag que o
identificava dentro de um saco plástico na mesa ao lado. Aquilo fez com que
meu coração saltasse em pura agonia, porque uma placa só deixava seu dono
quando ele estava morto.
Sem pensar em mais nada, retirei a corrente do plástico e usei o
álcool para esterilizar o material mesmo que superficialmente. Abri o fecho e
passei o fio da corrente pelo seu pulso livre, dando algumas voltas para
conseguir prendê-la. Eu queria devolver sua medalha ao lugar onde pertencia,
em seu peito, mas não podia me arriscar a causar alguma possível lesão ou
risco de infecção por conta do tubo respiratório.
Uma enfermeira abriu a porta lentamente e entrou em silêncio.
— Olá, querida — disse em grego. — Já passou o horário de visita.
Acenei com a cabeça e, uma vez mais, toquei a testa de Teagan
com os meus lábios.
— Nunca serei capaz de te esquecer, Teagan.
Talvez ele nunca soubesse que estive ali, mas o mais importante eu
sabia: as lembranças daquele homem nunca seriam esquecidas.
De alguma forma, em meio a tudo aquilo que vivemos, ele
conseguiu se alojar em meu coração há muito anestesiado.
13h46
Eu já estava naquela porra de hospital há nove longos dias. Por
mim, teria ido embora no dia seguinte depois de toda a ação. Assim que
acordei, conferi que estava mais vivo do que nunca, então não havia motivo
algum para continuar ali.
Já haviam me costurado, certo? Não corria mais risco de me esvair
em sangue e ir morar a sete palmos do chão. É claro que isso só me passou
pela cabeça depois que soube que havia ficado apagado por três dias, que tive
que ser reanimado na mesa de cirurgia e que agora ostentava uma cicatriz de
pelo menos dez centímetros na lateral do pescoço.
Quando fui acordado do coma induzido, Scott tentou acalmar meus
ânimos, alegando que eu deveria dar o tempo necessário para me recuperar.
Eu precisava de repouso, mas o que me intrigava além da conta era que meu
corpo ansiava pela presença de Zilah Stein. E em momento algum, naqueles
dias, ela apareceu por ali.
Tudo bem, eu não jogaria na cara dela que levei um tiro para salvar
sua vida... mas... Porra, eu levei um tiro para salvar aquela mulher! Achava
que merecia ao menos um toque gentil e suave de sua pele contra a minha....
Sei lá.
Naqueles dias logo após acordar da sedação, oscilei bastante entre o
estado consciente e o nebuloso, como se estivesse imerso em uma névoa
irritante. Porém, sempre que eu fechava os olhos, sonhava com um beijo
cálido e tão leve quanto uma pluma. Imaginava Zilah inclinada sobre meu
corpo, dando-me o mais carinhoso dos beijos. Palavras se atropelavam e não
ganhavam vida em minha consciência, mas eu podia jurar que as havia
ouvido.
Aquilo era tão nítido e se repetia constantemente, que chegava a
parecer real.
Scott evitou todas as minhas perguntas sobre ela e seu paradeiro,
alegando apenas que depois que ela recebeu tratamento médico, teve que
voltar à sua unidade para cuidar das tratativas burocráticas de toda aquela
operação.
Soube que a organização criminosa foi quase que inteiramente
dizimada, e os poucos que restaram, em Key West, delataram os nomes dos
comparsas, incluindo o nome do chefão cubano do tráfico que financiava
todas as armas no esquema engenhoso e quase indetectável.
O Capitão Masterson disse estar puto por eu ter subido ao navio,
quando deveria ter ficado no meu posto na costa. Foda-se. Depois de abater
cada um dos filhos da puta que brotavam como formigas naquela praia, quis
me assegurar que Zilah estivesse bem.
A situação em terra estava contornada, então por que não poderia
ajudar a quem quer fosse no convés? Atravessei a faixa de água o mais rápido
possível e escalei as correntes que me levariam até o barco. E foi o exato
momento em que vi que Zilah estava sob a mira de uma pistola, sem fazer a
menor ideia.
Honestamente, não sabia até agora porque motivo não ergui minha
própria arma e o matei em primeiro lugar. Talvez, no fundo da minha mente,
eu temesse que poderia acontecer o mesmo ocorrido em Varosha. Eu poderia
abater o atirador, mas não em tempo hábil de conter o seu próprio disparo.
Na hora pareceu uma boa ideia simplesmente correr e me lançar na
frente dela. Eu contava com o bom-uso do colete Kevlar, mas esqueci que
certas áreas ficavam descobertas. Quase um erro de amador. Esperava aquilo
de Jensen, o Recon novato, não de um cara experiente como eu.
No entanto, se perguntassem se me arrependia, minha resposta seria
sempre a mesma: eu pularia na frente daquela mulher de olhos fechados. Era
meu dever proteger e dizer que faria aquilo por qualquer outra pessoa, mas no
momento só o que consegui pensar era que não podia perdê-la.
Scott interrompeu meus pensamentos assim que entrou no quarto
para onde eu havia sido transferido.
— O médico te deu alta. O Capitão já está nos aguardando na
recepção.
— E qual será nossa rota? — perguntei, irritado.
— Bom, um avião militar está vindo para te levar até LeJeune.
— E se eu não quiser ir?
Scott suspirou e passou a mão pelo cabelo.
— Teag, cara... eu sou seu amigo há anos. Pelo menos uma vez na
vida, aceite um conselho de um irmão. — Colocou a mão no meu ombro
antes de prosseguir: — Vá se recuperar primeiro antes de procurar pela
garota.
Merda. Ele realmente me conhecia como ninguém. Eu não queria
dar voz àquela vontade louca de ir atrás de Zilah, porque era quase que o
mesmo que dar voz ao sentimento perturbador que parecia espremer o meu
peito.
— Scott, eu só quero saber se ela está bem. Não. Mentira... eu
quero só dizer que ela poderia ter, no mínimo, vindo atrás de notícias e...
— E quem disse que ela não veio?
— Ela telefonou?
— Ela esteve aqui o tempo inteiro durante as primeiras horas da
sua recuperação. Você também não pode esquecer que ela precisava de
cuidados médicos, mas foi difícil convencê-la a ir embora do hospital.
— Mas... por que então ela não me esperou? Porra, por que você
não falou isso antes e evitou todas as vezes em que perguntei sobre ela? —
Agora eu estava puto com meu amigo.
Sério. Eu estava me sentindo como um adolescente com o coração
partido pela sua primeira paixonite. Aquele estilo não combinava nem um
pouco comigo.
— Olha, irmão, peço desculpas por ter fingido não saber de nada,
mas pelo que entendi, o comandante dela, aquele que sempre estava em
contato com o Cap, solicitou seu retorno. Parece que eles têm um protocolo
específico por lá. Assim como nós, mas por lá a coisa é um pouco mais
rígida.
Tentei me levantar da cama com um pouco mais de estabilidade,
mas dias naquele hospital acabaram me deixando mais fraco. Na mesma hora,
Scott me ajudou a ficar de pé.
— Você tomou um balaço no pescoço, cara...
— De raspão. — Sorri, lembrando-me que aquele havia sido o
mesmo argumento que a Tenente Stein deu.
— Que seja... mesmo assim você teve que passar por uma cirurgia.
Sua vida ficou por um fio, irmão. Acreditamos que nem daria tempo de
chegar a um hospital assim que saímos do cargueiro. Você teve que ser
reanimado enquanto estava sendo operado. Dê um tempo para o seu corpo se
recuperar — insistiu.
— Scott... deixa eu te perguntar uma coisa — sussurrei, enquanto
atravessávamos o longo corredor. Eu havia me recusado terminantemente a
sair dali numa cadeira de rodas, então acabei me esgueirando e fugindo da
equipe de enfermagem. — O que você faria no meu lugar?
Não me passou despercebido que o tempo todo em que estive
consciente, as enfermeiras sorriam e coravam como garotas diante de seus
ídolos. Em outros tempos, eu teria retribuído com um sorriso aberto, uma
piscada maliciosa, e se um quarto vazio estivesse dando sopa por ali, passaria
alguns momentos prazerosos antes de sumir. O estalo que disparou na minha
mente acabou dando início a um ataque de pânico interno. Que porra era
aquela? Por que eu não estava nem ao menos querendo agir no meu Modus
Operandi?
Sim. Eu sabia o porquê. Aquela resposta era composta por nome e
sobrenome. Tinha mais de 1,75 de altura e um sorriso sarcástico que curvava
um pouco mais o canto esquerdo de sua boca. Possuía olhos enigmáticos e
que pareciam guardar segredos.
— Sim, Teag. Eu daria um jeito de ir atrás dela. Olha, eu sei que
você deve estar meio alheio, mas acho que já te contei que sempre tive um
amor de infância.
Olhei para ele, assombrado.
— Você já contou?
Scott revirou os olhos antes de dizer:
— Várias vezes.
— Não é aquela... como é o nome? Sei que era diferente... Hailey?
— Hayllee, idiota.
— Olha aí! Viu, diferente. Sim, eu me lembro de uma vez que você
encheu a cara e ficou falando sobre o cabelo lindo, os olhos espetaculares, o
corpo deslumbrante... Você estava bem poético. Era sua paixonite de
décadas, Scott? — Comecei a rir. O pior é que segundos antes eu mesmo
estava pensando naqueles atributos...
— Nunca deixou de ser. Viu como você não presta atenção em
nada do que falo?
— Não é questão de eu não prestar atenção, mano. É questão de
que nunca me liguei nessas coisas de sentimentos, então eu não processava a
informação direito.
— Vou pedi-la em casamento. Assim que voltar dessa incursão.
Parei de repente, encarando-o com a boca escancarada.
— Está falando sério?
— Muito sério. Só não fui a Richmond, quando estivemos lá,
porque Hayllee estava viajando com os pais, no Havaí. Mas foi essa
impossibilidade de nos encontrar que fez com que a decisão se firmasse aqui.
— Ele bateu o indicador na têmpora. — Para completar a que já estava aqui.
— Tocou o peito. — O que quero dizer é que, muitas vezes, precisamos
deixar que o tempo atue como um bálsamo. Acho que se tivesse feito meu
pedido antes, talvez ela tenha recusado. Entende?
— Não. Não entendo de jeito nenhum. Não preciso de tempo para
saber que quero aquela mulher na minha vida. Pelo tempo que nos for
permitido. Prefiro viver o hoje e me entregar aos impulsos do que remoer as
incertezas.
Scott sacudiu a cabeça, rindo baixinho.
Assim que pisamos o pé na recepção, o Capitão Masterson se
levantou e veio ao nosso encontro.
— E então? Pronto para outra? — brincou.
— De jeito nenhum — repliquei. — Como diz o Scott, meu corpo
precisa se recuperar, então acho que uma estadia nas Maldivas será uma
ótima pedida. O senhor acha que a Marinha pagaria por isso? — debochei,
acompanhando o riso dos dois.
Saímos do hospital e fomos até uma caminhonete estacionada na
calçada. Sem pressa, Scott me ajudou a sentar. Com algum esforço, tentei
afivelar o cinto, vendo que ele estava parado ao lado da porta apenas me
observando com a sobrancelha arqueada e um sorriso irônico.
— Se você nem consegue colocar o cinto por conta própria, como
vai conseguir ir atrás da garota que você quer, Teag? — debochou.
Ele estava um pouco certo. Não de todo... Porque eu poderia muito
bem me virar, mas não seria nada estiloso ou essas merdas. Eu realmente
queria ir atrás de Zilah para que pudesse explorar a química que pareceu
surgir entre nós.
— Tudo bem. Entendo isso... eu só não queria ir para o outro lado
do mundo.
O capitão já havia se sentado atrás do volante e acionava o GPS
para que pudéssemos sair naquele trânsito confuso de Atenas. Scott sentou-se
no banco traseiro, mantendo o silêncio.
Durante todo o trajeto, tudo em que conseguia pensar era em Zilah
Stein. Sua presença estava impregnada em mim, como um perfume que
nunca se esvaía.
Depois de alguns minutos em total silêncio, Capitão Masterson
disse:
— Há uma pequena vila a cerca de vinte minutos daqui que talvez
seja do seu agrado.
Como eu não podia virar o pescoço para encará-lo, restou-me
apenas abrir a boca em choque.
— O quê?
Pelo canto do olho, percebi que ele intercalava os olhares entre
mim e a pista à frente. Através do espelho retrovisor, vi que Scott mantinha
um sorrisinho como se soubesse de algo que eu desconhecia.
— Sabe... uma vila com vista para o mar. Um lugar pacato que será
ótimo para a sua recuperação. Melhor do que enfrentar um longo voo até os
Estados Unidos, por enquanto.
— O que vocês não estão me contando? — perguntei, desconfiado.
Scott se enfiou entre os dois bancos e disse:
— Descobrimos que Zilah na verdade não voltou para Israel. Seu
comandante, o General Cohen, a dispensou por um período para que também
pudesse descansar da missão em que estava destacada.
Senti meu coração acelerar no mesmo instante.
— E qual não foi nossa surpresa quando percebemos que ela não
havia sequer deixado a Grécia... — o Capitão emendou.
— E... como...?
— O rastreador intradérmico.
Ah, então estava explicado.
— Ela não fez alarde sobre sua estadia, mas Scott percebeu que ela
sempre dava um jeito de visitá-lo no meio da noite. Pelo que entendemos,
Zilah conseguiu dobrar uma enfermeira que sempre a alertava quando você
estava dormindo.
— Não quero dizer nada, irmão... mas parece que ela está caidinha
do mesmo jeito que você está por ela — meu amigo acrescentou.
— Então vou simplesmente chegar lá do nada e...
— Você sabe muito bem como surpreender uma mulher, Teag.
Basta ser você mesmo, cara. Nossa parte aqui já fizemos, agora é contigo —
o Cap disse e acelerou pela longa rodovia que interligava Atenas às outras
cidadezinhas costeiras.
Bom, eu tinha certeza de que qualquer stalker ficaria orgulhoso do
trabalho impecável dos meus amigos, mas quem era eu para reclamar?
Estava mais do que na hora de explorar outros territórios... aprender
uma nova língua...
Quem poderia saber?
15h28
Sentada debaixo do alpendre da casinha à beira da praia, encarei o
mar de um belíssimo tom azul-esverdeado à frente, observando um grupo de
crianças construindo um castelo de areia. Ao longe, um pesqueiro contrastava
com um iate de luxo à deriva.
Eu já deveria ter voltado à base em Tel Aviv, mas algo ainda me
prendia àquela cidade.
A quem eu queria enganar? Eu sabia muito bem que não havia
conseguido ir embora por causa de Teagan Collins.
Durante todos os dias em que esteve internado, fiz questão de
visitá-lo sempre no período da noite, logo depois de convencer uma
enfermeira a me dar esse privilégio e prometer guardar sigilo a respeito da
minha presença ali enquanto ele dormia.
Nos três primeiros dias, quando permaneceu sedado, era doloroso
vê-lo intubado, tão quieto e pálido contra os lençóis brancos e sem graça. O
cheiro pungente dos produtos hospitalares inibia as lembranças dos bons
momentos ao lado dele.
Mesmo que tivéssemos passado apenas aqueles dias juntos, era
inexplicável para mim conseguir entender o porquê um vínculo tão palpável
foi criado entre nós.
Quando resolvi alugar a pequena casa naquele pacato bairro à
beira-mar, esperava colocar em ordem meus pensamentos e analisar os
sentimentos conturbados que me invadiam sempre que as imagens do
confronto com Aaron vinham à mente.
Eu me sentia traída. Usada. Como se fosse alguém tão descartável,
ao ponto de ele simplesmente desistir de tudo o que havíamos sonhado em
construir juntos, em prol de uma ganância que nunca enxerguei.
Ou talvez eu estivesse cega e não tenha me esforçado para ver os
sinais que deviam estar lá o tempo todo.
Aaron era ambicioso e apaixonado por tudo. Ou ao menos ele se
mostrava assim. E a compreensão de que essa paixão se estendia pelo
dinheiro – dinheiro sujo –, trouxe uma angústia imensa ao meu coração,
porque fui incapaz de perceber as facetas sombrias de sua personalidade.

Deitados na cama bagunçada, os dois amantes se mantinham de


frente um ao outro, saciados com os momentos íntimos compartilhados.
Aaron acariciava suavemente o rosto de Zilah, sentindo a
ansiedade pelo que estava prestes a fazer.
— Quer se casar comigo? — perguntou, causando um sobressalto
na mulher que o havia feito rever o conceito de solteirice.
— O quê?
Ele segurou a mão delicada que repousava contra o travesseiro e
beijou o dorso, estendendo a carícia aos outros dedos.
— Sei que deveria ter pensado em uma proposta muito mais
romântica e elaborada, mas não consegui evitar. Você é tão linda, Zilah. —
Sorriu ao ver o rosto mostrar seu embaraço. — Quero construir uma família
ao seu lado.
— Aaron... eu... não sei... Somos tão jovens e...
Ele se posicionou acima do corpo de Zilah, enjaulando seu rosto
com os braços ao lado.
— Não há desculpa para o amor quando o sentimos com
intensidade. Você me ama, não é mesmo? — perguntou, mostrando um pouco
de sua insegurança.
Ela sorriu de leve e acenou afirmativamente com a cabeça.
— Mas nossas carreiras...
— O que importa isso? Você sabe que muitos de nossos amigos são
casados.
— Falo por conta dos riscos que corremos e...
— Zilah, você me ama ou não? — insistiu, já começando a ficar
irritado.
— Sim, Aaron... — admitiu, porém com certa relutância. Ela não
gostava da abordagem de seu namorado. — Só estou tentando dizer que acho
que poderíamos esperar um pouco.
— Olha, eu quero que todo mundo saiba que você é minha noiva,
que vai se casar comigo e com ninguém mais.
Ela o enlaçou pelo pescoço e beijou a boca franzida.
— Não precisamos provar isso para ninguém, Aaron.
— Há um monte de caras em outras unidades que fazem questão de
dizer o quanto gostariam de ter uma chance com você. Quero garantir que
eles saibam que você me pertence.
— Eu não sou uma coisa para pertencer a alguém — resmungou,
tentando se soltar do abraço apertado.
— Não quis dizer nesse sentido, meu amor. Quero apenas que
avancemos mais um passo no nosso relacionamento. Você não sonha em se
casar, ter filhos?
— Filhos? Aaron, estou prestes a ingressar no curso de
treinamento de elite.
— Eu sei, mas não precisa ser agora. Se você passar no
treinamento...
— Se? Você duvida da minha capacidade? — ela perguntou,
chateada.
— Não. Claro que não. Você tem mais do que as habilidades
necessárias para se tornar uma Matkal, meu amor. Mas, vamos pensar em
alternativas.
— Não quero pensar em alternativas. Estou estudando e vou dar o
meu máximo para conseguir me formar e me tornar um soldado de elite,
Aaron. É assim que quero defender minha nação.
— Eu também, querida. No entanto, também vejo um futuro ao seu
lado. À medida que eu for subindo de patente, e você chegar aos 25, quando
não será mais obrigada a cumprir o serviço militar, então...
Ela o afastou com um empurrão e se sentou na cama, enquanto
Aaron se ajoelhava sem entender o ar confuso e irritado no rosto de Zilah.
— Eu não sou militar por obrigação. É uma escolha de vida. Eu
quis assim. E por que você acha que pode alcançar um patamar mais alto e
eu não? Só porque sou mulher? É isso?
— Meu amor, vai chegar o momento em que você desejará uma
casa aconchegante, filhos, uma família feliz.
— Aaron, quando esse momento chegar, será porque eu realmente
o desejei, não porque é algo que você quer que eu anseie. Não tenho planos
de constituir uma família, até mesmo porque nem sei bem o conceito do que
uma família feliz poderia ser.
Ele a abraçou, mesmo que Zilah ainda se mantivesse irritada e em
uma postura defensiva.
— Tudo bem, desculpa. Vamos fazer assim... que tal ficarmos
noivos e a gente se casa quando acharmos que é o momento certo? Uma
decisão em conjunto, que tal?
Ela o olhou, desconfiada, mas por fim cedeu aos apelos e aos
beijos brandos que ele depositava em seu pescoço.
— Vamos, querida... me dê a honra de se tornar minha mulher.
— Tudo bem, mas sem pressão, entendeu?
— Entendido, amor da minha vida.
Os dois selaram o compromisso com um beijo apaixonado e Aaron
a fez esquecer todas as preocupações quando possuiu seu corpo.
Uma aliança simples, composta apenas de um pequeno aro
dourado, foi o máximo que Zilah se permitiu usar.
Voltando ao presente, percebi que o tempo inteiro, o que Aaron
realmente queria era assumir o controle sobre a minha vida, mostrando aos
outros que havia vencido uma disputa ilusória que ele acreditava existir para
que alguém, por fim, me conquistasse.
O que antes cheguei a ver como um amor intenso não passava de
uma obsessão em manter funcionando tudo ao seu redor. Exatamente como
uma criança com um brinquedo que não deseja compartilhar com mais
ninguém.
E aquele pensamento alimentou mais ainda a raiva que sentia.
O vento sacudia meu cabelo e, mesmo sob o sol forte, tudo o que
eu mais queria era me perder nas memórias breves e singelas que mal cheguei
a construir com Teagan.
O cuidado para que eu me aquecesse na gruta quando passamos a
noite. O carinho com que falou sobre nossas profissões. O entendimento de
que honrávamos nossas bandeiras com aquilo que sabíamos fazer de melhor.
O beijo apaixonado e carregado de paixão que trocamos naquela
cabine do porta-aviões.
A confiança depositada em mim e em minha missão.
Em momento algum senti que ele tentava me podar ou proteger
como se eu fosse um ser frágil e que precisava de cuidados.
A não ser quando se jogou na frente daquela bala para salvar a
minha vida.
Eu queria tanto saber o porquê ele tomou aquela atitude
impulsiva... E o pior é que, refletindo comigo mesma, percebi que talvez eu
fizesse o mesmo por ele.
Como algo tão súbito como nosso encontro poderia ter gerado
tantos sentimentos tumultuados assim?
Fechei os olhos e ergui a cabeça, sentindo a brisa fresca tocar
minha pele enquanto o sol aquecia tudo ao redor.
Uma sombra se projetou acima de mim, fazendo-me franzir o
cenho. Abri os olhos, devagar, e senti meu coração martelar no peito quando
vi Teagan Collins à minha frente, como se o tivesse evocado.
Levantei-me de um pulo, quase chocando minha cabeça ao seu
queixo. Ele não se afastou nem um milímetro, deixando nossos corpos
colados e imersos em uma atração magnética que nos impedia de executar
qualquer movimento.
— O-o que está fazendo aqui?
15h41
— Eu poderia te fazer a mesma pergunta — respondi, encarando a
mulher que assombrava meus sonhos enevoados e vinha causando um
turbilhão de sentimentos em meu peito. — Nunca te disseram que é falta de
educação sair sem se despedir? — brinquei, percebendo que seus lábios
tremiam um pouco.
— E-eu... ai, meu Deus... eu... eu... não sei o que dizer — admitiu e
passou as mãos pelo cabelo, tentando conter as ondas que teimavam em
cobrir seu rosto.
Era a primeira vez que eu a via sem os trajes militares. Ela usava
um short jeans que não deixava margem para dúvidas sobre a beleza de suas
pernas torneadas e uma camiseta com o nome Atenas escrito em letras
gregas.
E, sim, eu sabia identificar o nome da cidade no alfabeto louco
porque era a mesma grafia que se espalhava pelas ruas dos bairros pitorescos.
— Nunca imaginei que a deixaria sem saber o que falar —
comentei, e passei os dedos suavemente pelo seu rosto, sentindo a pele
sedosa e vermelha por conta do sol. Meus olhos varriam cada pedacinho dela,
querendo se certificar de que era a mesma fisionomia que ilustrava minhas
fantasias.
— Você não deveria estar no hospital? — ela disse, e afastou-se um
pouco, cruzando os braços. — Quer dizer, você já deveria estar saindo por aí,
passeando?
— Não vim passear, embora essa vista faça jus a qualquer resort de
luxo — falei, e olhei ao redor, voltando a me concentrar nela. — Vim atrás
de você.
— P-por quê?
Segurei seu rosto entre minhas mãos, dando mais um passo para
perto. Zilah subiu o degrau do alpendre onde estava sentada antes e ficamos
praticamente na mesma altura.
— Porque quero retomar de onde paramos quando estávamos
naquela cabine tanto tempo atrás...
Um brilho cintilou em seus olhos lindos, indicando que ela talvez
estivesse na mesma página.
— Acho que te devo uma explicação — ela disse, e fechou os olhos
por um instante. — Só não sei por onde começar...
— Comece me dizendo por que fez questão de ir me visitar no
hospital sempre que eu estava impossibilitado de te ver. Esperei sua presença
quando acordei do sonho psicodélico onde me enfiaram, mas você não
apareceu. Por um momento pensei ter apenas imaginado que nós dois
havíamos nos sentido atraídos um pelo outro — confessei.
— Você não imaginou... mas... eu precisava colocar algumas coisas
no lugar — ela disse, e bateu o dedo na lateral da cabeça. — Fiquei confusa e
chocada com tudo o que aconteceu.
— Eu sei, boneca. Você passou tempo demais naquele inferno até
que pudéssemos agir para resgatá-las.
— Não, Teagan. Não estou me referindo a isso. Estou falando
sobre a pessoa que estava por trás de tudo o tempo inteiro... — Ela abaixou o
olhar e segurou meus pulsos que ainda mantinham seu rosto cativo. — O
homem por trás de tudo... um dos traidores do Mossad... era meu noivo, ex-
noivo, ai, meu Deus... nem sei mais.
— O quê? Achei que ele tivesse morrido anos atrás.
— Eu também. — Ela suspirou e se lançou em meus braços,
evitando o lado onde eu ainda ostentava o curativo que cobria minha mais
recente cicatriz.
— Venha, boneca.
Abracei seu corpo que vibrava e tremia ao mesmo tempo e abri a
porta pintada em um tom vivo de azul, tendo que me abaixar para passar pelo
portal.
Guiei-nos até o sofá enfeitado por almofadas coloridas que davam
um toque aconchegante à sala. Tudo muito diferente do mundo sombrio onde
estávamos dias atrás.
Sentei-me o melhor que pude e puxei-a para o meu colo. Deixei
que Zilah comandasse o momento em que decidiria se abrir. Era palpável a
raiva que exalava dela em ondas.
Okay. Ela havia admitido o que eu nem ao menos imaginei.
Embora Scott tenha me falado bastante sobre os trâmites no final da
operação, aquele detalhe me passou despercebido ou ele esqueceu de
mencionar.
O noivo?
— Ssshh... — acalentei, passando as mãos suavemente pelas suas
costas, ajudando-a a recobrar a calma.
— E-eu o enterrei, Teagan... Em uma c-cerimônia militar. Nunca
imaginei que o caixão fechado significasse uma farsa onde meu ex-noivo
havia traído o país, me traído, e se aliado a criminosos em algo tão sórdido
quanto essa operação de tráfico humano a troco de armas.
Ela bufou, os olhos incendiados com a ira.
— E quando dei por mim... estava na frente dele. Era como se eu
estivesse vendo um fantasma... mas um que havia assombrado não meus
sonhos, e sim meu pesadelo. Aaron enlouqueceu, mas o que mais me irrita é
que não consegui enxergar nada disso.
— Você o amava, Zi — sussurrei. — É natural que não consigamos
enxergar as verdadeiras facetas de alguém quando estamos muito envolvidos.
Ela descansou a cabeça no meu ombro, passando a mão
suavemente sobre o meu peito.
— Isso já aconteceu com você?
— O quê? Ter uma noiva fantasma aparecendo do nada? — tentei
brincar para aliviar o clima. — Graças a Deus, não.
— Não. — Um sorriso suave curvou seus lábios. — Se apaixonou a
ponto de ficar cego e não conseguir enxergar nada ao redor...
Bom, se aquela não era uma excelente pergunta para ser feita
naquele momento, não é mesmo? No passado? Não. Nunca havia me
apaixonado desse jeito enlouquecedor. Mas agora? Eu podia jurar que meus
batimentos estavam reverberando na minha cabeça. Era como se um zumbido
estivesse obstruindo todo o ruído ao redor, conectando meus pensamentos e
sentimentos somente a ela.
Então... talvez eu estivesse apaixonado e cego a tudo o que havia à
nossa volta, menos em relação ao caráter dela.
— Não, boneca. Nunca me apaixonei dessa forma antes...
Passei a mão pelo seu rosto, recolhendo uma lágrima que ainda
insistia em deslizar até seu queixo.
— Não acho que seja o amor que cega as pessoas, Zilah. Acho que
na verdade, quando gostamos de alguém, nos recusamos a ver os defeitos, por
mais evidentes que eles sejam. Até que chega um ponto de ruptura e as
máscaras caem. — Seus olhos estavam fixos aos meus. — É por isso que
muita gente vive dentro de relacionamentos com o mais leve abuso, e não
conseguem perceber até quase ser tarde demais...
— É difícil pensar que o Aaron que amei não passa de uma ilusão
de alguém que julguei conhecer.
— E posso perguntar como você está se sentindo agora, sabendo
que ele realmente está morto? — perguntei, temendo a resposta.
— Não sinto nada. O luto que vivenciei mais de dois anos atrás já
havia curado minhas feridas. O luto de agora simplesmente sepultou toda e
qualquer memória boa.
Ficamos alguns segundos em silêncio, apenas nos encarando.
— E você está pronta para construir novas memórias agora? —
sondei.
Zilah se acomodou em meu colo, o que acabou despertando minha
ereção reprimida pela sua bunda mais do que aconchegante. Estava difícil
manter o controle das reações do meu corpo em contato com o dela, mas o
anseio ardente que eu sentia somente em pensar naquela mulher
simplesmente era demais para suportar.
— Estou pronta pra você, Teagan.
— Você tem certeza disso? — confirmei, só para me assegurar de
que estávamos na mesma página, capítulo, parágrafo e frase.
— Sim.
Eu a beijei com a paixão e a voracidade que mantinha contidas
dentro de mim desde aquele dia em que nos tocamos. Com as mãos
espalmadas em seus quadris, fiz com que se sentasse montada em meu colo,
as coxas me ladeando.
Nossas bocas se uniram e se devoraram, provando e memorizando
o calor que nos consumia.
Deslizei minhas mãos pelas suas costas, não deixando de perceber
o arrepio e tremor que a dominou. Sem hesitar, ela mesma puxou a camiseta
para cima, expondo o sutiã esportivo que usava por baixo.
Eu não precisava de seda, renda ou qualquer merda. Aquela mulher
era linda, mesmo se estivesse vestida em trapos. Zilah passou os dedos na
barra da minha camiseta e foi a minha vez de assumir o controle, ajudando-a
a me livrar do tecido incômodo e que nos impedia de um contato mais íntimo.
Quando ela se inclinou e recostou os seios ainda cobertos pelo sutiã
contra o meu peito, rosnei em sua boca. Eu não queria nada entre nós. Queria
provar de seu gosto e me afundar em seu corpo, deixando meu desejo se
libertar das amarras.
— Tire isso — rosnei outra vez contra seus lábios, irritado por não
ter encontrado um fecho que facilitasse o meu acesso aos seios perfeitos e
que se encaixavam em minhas mãos.
Nós nos afastamos apenas para que ela pudesse atender à minha
demanda urgente, e retirou a peça, desnudando o corpo maravilhoso para os
meus olhos sedentos.
Minha vontade era devorar aquela mulher, saciar minha fome e me
perder nos sentidos que ela me despertava.
No entanto, toquei seu corpo com certa reverência, apreciando o
contato entre nossas peles, gemendo quando roçou os mamilos contra os
pelos do meu peito.
Meus dedos trilhavam um caminho pelas costas delicadas e fortes
ao mesmo tempo, fazendo o percurso do cós do short até alcançar o fecho à
frente.
O tempo inteiro nos mantivemos em um beijo ardente que
transparecia o que as palavras não seriam suficientes para expressar: o desejo
que nos consumia.
Quando consegui abrir seu short, deslizei a mão devagar por
dentro, percebendo o quanto ela correspondia ao meu toque. Ela ofegou e
recostou a testa à minha, mordendo o lábio inferior enquanto eu a provocava.
Desesperada, Zilah se contorcia em meu colo e, num rompante, se
levantou e retirou as duas peças de roupa que interferiam em meus avanços.
Ela fez o mesmo por mim, ajudando-me a me livrar da calça cargo
preta. Meu desejo era mais do que evidente e, embora não tivesse ido ali com
essa intenção assim tão escancarada em mente, nada me daria mais prazer –
literalmente –, do que saciar minha fome de Zilah Stein.
Eu temia que não poderia me esforçar o tanto que gostaria, já que
ainda me recuperava da cirurgia, mas o médico não precisava saber que eu
estava burlando o repouso, certo?
— Você fica aí quietinho e me deixa fazer tudo — ela disse, com
um sorriso malicioso, como se tivesse lido minha mente. — Não queremos
que sua recuperação seja prejudicada por atividade extrema, não é?
Cruzei os braços à nuca e retribuí com um sorriso safado.
— Estou ao seu dispor. Faça o que quiser comigo, tenente.
Ela se sentou novamente, gemendo e se afundando lentamente
contra mim. Seu calor me envolveu e tomou conta de tudo. O aperto ao meu
redor quase me fez revirar os olhos.
Inclinei o pescoço para trás, arrependendo-me em seguida já que o
movimento ainda incomodava. Senti os dedos de Zilah deslizando pelo meu
peito como se estivesse pincelando cada detalhe exposto.
— Poorra... — gemi em agonia, quando ela começou a se balançar
levemente a princípio.
O ritmo aumentou na mesma proporção que a explosão que me
queimava por dentro.
— Acho que não vou conseguir me conter por muito tempo —
admiti, em derrota.
Eu já estava há um tempo sem sentir o corpo de uma mulher contra
o meu. Fora o fato de que o contato com o dela potencializava meu desejo em
um nível absurdo.
— Não se segure, Teagan. Eu também não vou durar muito
tempo... — confessou, entre os ofegos. — Aaah, minha nossa...
— Goze para mim, Zilah. — Espalmei seu quadril e ajudei-a no
movimento, fazendo com que subisse e descesse contra o meu, que se
encontrava no meio do caminho. — Goze para mim, boneca.
— Aaah... Teagan. — Ouvir meu nome em sua boca fez com que o
meu próprio orgasmo ganhasse vida e se juntasse ao dela em um rompante,
culminando em um clímax poderoso.
Ainda bem que eu estava sentado, ou teria desabado já que sentia
minhas pernas tremendo.
Zilah desabou sobre meu peito, nossos corpos ainda conectados.
Seu hálito quente em meu pescoço era a única coisa que me impedia de
dormir e apagar tamanho o esgotamento que sentia naquele momento.
Passaram-se alguns minutos onde ficamos apenas ali, naquela exata
posição. Até que senti a contração de seus lábios contra minha garganta.
— Essa é uma definição de rapidinha intensa — ela disse e riu
baixinho. — Já fazia um bom tempo para mim também... Ai, meu Deus!
Ela levantou a cabeça em um rompante e me encarou com os olhos
arregalados e uma mão cobrindo a boca.
— Teagan! Não usamos... nada... quero dizer, para nos proteger —
sussurrou.
Oh, uau. O que a pressa e o desespero não fazem com uma pessoa,
não é mesmo? Eu teria que confessar que em momento nenhum o
preservativo veio trazer aquele lembrete de que precisava entrar na equação.
— Cacete... peço desculpas... a falha foi minha... — Pigarreei. —
Mas estou com meus exames em dia, então... não há nada com o que se
preocupar.
Em minha mente nem mesmo se passou a dúvida se ela também
poderia dizer o mesmo. Éramos testados regularmente nas forças armadas, até
mesmo porque nossa profissão oferecia riscos, já que muitas vezes estávamos
em contato direto com sangue sendo espalhado para todo lado. A ferida no
meu pescoço era um indicativo.
— Você não foi o único que se esqueceu. Além do mais... fui eu
que te ataquei. Você poderia alegar que abusei do seu corpo — ela brincou, e
passou os braços pelos meus ombros. — Se eu disser que não estou com a
menor vontade de sair daqui, você acreditaria?
— Bom, isso reflete os meus desejos, boneca.
— Mas sabe o quê, Teagan? Acho que seria muito bom dormir um
pouco. O que acha? Você pode ter recebido alta do hospital, mas ainda
precisa se recuperar... — disse, e beijou meu rosto, acariciando a barba que
agora precisava ser aparada. — A propósito... como me encontrou aqui?
Toquei seu pulso, no local onde o microchip ainda estava inserido.
— A tecnologia fazendo o meu serviço de perseguidor muito mais
fácil — debochei. — Scott e o Cap me largaram aqui assim que recebi alta.
— Aah... bom, se você parar pra pensar que nenhum dos dois
chegou sequer a trocar os números de telefone... então só posso agradecer
pela brilhante ideia de descobrir meu paradeiro dessa forma. Mas eu... eu
pretendia entrar em contato com você... em algum momento.
Abracei-a contra mim antes de ajudá-la a se levantar. Meus olhos
deslizaram pela extensão de seu corpo longilíneo e forte, mal escondendo a
resposta quase imediata ante a visão.
Zilah estendeu a mão que se encaixou com perfeição na minha,
muito maior, e fez com que eu ficasse de pé. Ambos confortáveis em nossa
nudez, nos encaminhamos para o pequeno banheiro que ficava de frente ao
único quarto.
Ela ligou o chuveiro e me fez entrar no boxe, empurrando meu
corpo para que me recostasse contra os azulejos frios. Com uma toalhinha,
ela assumiu a tarefa de me limpar com carinho e atenção. Nós apenas
trocávamos olhares apaixonados, sem a necessidade de palavras.
Quando sua mão começou a descer para o sul, segurei seu pulso
com delicadeza.
— Acho melhor eu mesmo cuidar dessa parte, ou corremos o risco
de um pequeno acidente aqui, já que não consigo fazer um esforço maior... E
pode acreditar, Zi, tudo o que mais quero agora é poder te imprensar contra
essa parede e te foder do jeito que eu gostaria.
O sorriso que curvou um canto de seus lábios indicou que a ideia
também havia passado por sua cabeça.
Ótimo. Eu precisava somente me recuperar do jeito certo. Para que
pudesse explorar tudo o que desejava ao lado dela.
Mas a pergunta que teimava em circular minha cabeça era: será que
teríamos tempo antes que nossas vidas seguissem caminhos diferentes?
00h18
Observei a forma enorme e adormecida de Teagan Collins naquela
cama minúscula, apreciando os músculos parcialmente cobertos pelo lençol.
A luz da lua incidia sobre seu rosto, dando-lhe um ar angelical ao mesmo
tempo que criava uma aura misteriosa em seu semblante.
Ele foi tudo o que eu havia imaginado. Não deixou absolutamente
nada a desejar, mesmo que alegasse que não estava em sua melhor forma. Se
ainda debilitado ele era capaz de me levar às alturas, eu só poderia imaginar o
que faria com as forças renovadas.
Sabia que nossos caminhos se separariam em breve. Eu precisava
voltar a Tel Aviv e me apresentar na base. Ele havia recebido a dispensa
temporária dos Fuzileiros para que pudesse se recuperar em casa. Estaríamos
em lados opostos no mundo.
Seu embarque para os Estados Unidos deveria ter ocorrido ontem,
mas seu capitão conseguiu adiar sua partida por mais três dias.
Três dias em que ele prometeu que passaríamos juntos, descobrindo
tudo aquilo que nos fizera ceder àquela irresistível atração desde o início.
Eu precisava admitir que ansiava em mergulhar em seus braços,
querendo substituir as memórias de um amor que julguei puro, por outras
lembranças de uma paixão que se mostrava verdadeira e aberta.
Teagan não me cercava de palavras românticas vãs. Ele era direto e
cru. Áspero em seus desejos e mais real do que o que já havia vivido com
Aaron. Ao lado dele, percebi que vivi uma mentira completa, onde era
coberta de cuidados em excesso com o intuito claro de me minar e manter
sob controle.
Meu coração estava dividido. Pelas incertezas do que sentia.
O que podia afirmar era que Teagan foi o único que conseguiu
romper meu bloqueio em me entregar novamente a outro homem.
Saí da cama e fui em direção à cozinha, decidida a fazer um chá
para acalmar meus nervos.
Senti as mãos calejadas circundando meu corpo segundos depois.
Um sorriso se formou em meus lábios quando a barba roçou contra o meu
pescoço.
— Perdeu o sono? — perguntou, com a voz rouca e profunda.
— Sim.
— Tenho um remédio pra isso — disse, e mordeu a curva entre
meu pescoço e ombro.
— Você já me deu umas duas doses, lembra? — caçoei. Era óbvio
que não recusaria outra rodada, mas não tinha certeza de que aquilo seria o
suficiente para aplacar minha angústia.
— O que está te perturbando?
— Nada.
Teagan virou meu corpo de frente ao dele.
— Vamos lá, querida. Eu sei que quando uma mulher diz “nada”,
ela quer dizer “tudo”. Abra seu coração pra mim...
Ele me puxou e fez com que me sentasse em seu colo depois de ter
se acomodado na cadeira amarela à mesa.
— Já sei — disse, dando um sorrisinho sagaz. — Você está sem
saber o que fazer com toda essa minha masculinidade latente, preocupada se
vai dar conta do recado ou sobreviver a estes próximos dias...
Comecei a rir e apoiei uma mão em seu rosto barbado.
— Sua modéstia me deixa emocionada — brinquei. — E acredite...
acho que consigo dar conta do recado com você. Resta saber se você vai
conseguir lidar comigo, já que não pode se esforçar tanto...
— Ah, quanto a isso não tenho a menor dúvida, boneca. Acho que
somos feitos na mesma medida. Você se encaixa em mim perfeitamente. Eu
não poderia desejar nada mais.
Nós nos encaramos por um tempo, até que suspirei.
— Ainda não consigo lidar com a mentira que vivi ao lado de
Aaron. Estou me sentindo... não sei dizer ao certo. É difícil bloquear os
momentos em que achei que fôssemos felizes. Eles estão sendo substituídos
pelas dúvidas... pelas incertezas.
— Incertezas do quê? Zilah, você não pode se sentir responsável
pela falta de caráter e humanidade de outra pessoa.
— Mas nós fomos noivos, Teag. Por quase dois anos. Quando
comecei a namorar com ele, mal tinha completado dezenove. Esteve ao meu
lado no meu pior momento.
— E talvez aí esteja o problema. Você se sente em dívida por ele
ter sido seu apoio em um momento quando você precisou, e ele pode
realmente ter sido isso. Mas em alguma etapa do caminho, ele abriu mão dos
princípios que os uniram em primeiro lugar. — Ele segurou meu rosto,
quando tentei desviar o olhar. — E acho que você está se esquecendo do mais
importante aqui.
— Que seria?
— Você era muito jovem. Ainda é. Principalmente se comparado
comigo, que já tenho 30 anos. Mas aos dezenove? Caramba, Zilah... essa é a
idade das aventuras, das conquistas, das incertezas. E além de você ter
ingressado no serviço militar, que já engessa um pouco toda a efusividade da
idade, onde você poderia ter vivido mil e uma coisas em uma faculdade, por
exemplo, também se envolveu em um relacionamento sério quando deveria
estar conhecendo outras pessoas.
Suas palavras fizeram sentido, trazendo um pouco de paz ao meu
coração.
— As pessoas devem ser responsáveis pelas suas próprias decisões
e erros. E devem arcar com as consequências. Seu ex-noivo forjou a própria
morte porque preferiu ceder aos apelos da ganância, e foi egoísta em vários
sentidos, mas mais ainda com os seus sentimentos. Enterre esse cara logo de
vez.
— Eu já fiz isso — sussurrei, sentindo-me drenada.
— Não, não fez. Se tivesse feito, não estaria tentando levar a culpa
do mundo em seus ombros. — Ele beijou meus lábios de leve. — Zilah, eu
vou mostrar pra você que sou um cara culto e cheio de surpresas... — Seu
sorriso mostrou uma covinha oculta pela barba.
— É mesmo? — Foi a minha vez de sorrir.
— William Shakespeare era um cara muito sábio... Tirando o fato
de ter escrito aquele final trágico em Romeu e Julieta, que eu,
particularmente, acho que poderia ter sido diferente... — Comecei a rir de
suas palavras. — Mas ele disse algo que agora faz todo o sentido para mim.
Seu olhar penetrante me hipnotizava a ponto de eu esperar pelo que
viria como se o que estava prestes a dizer fosse um grande segredo do
universo.
— “O amor não prospera em corações que se amedrontam com as
sombras”. Sabe o que isso quer dizer? Você sempre foi muito mais do que
ele poderia esperar. Sua força, garra, coragem... suas habilidades como uma
sombra guiada para proteger os seus...
Meu coração batia acelerado, mas ele parecia não ter terminado.
— E com o tempo você aprende algo mais, segundo o próprio
Shakespeare, e estou totalmente de acordo com ele — beijou a ponta do meu
nariz, minhas bochechas, testa, até chegar à boca em um beijo delicado —,
“um dia você aprende a diferença, a sutil diferença, entre dar a mão e
acorrentar uma alma”. Entendeu?
Meu Deus... eu não sabia o que dizer. O homem que não tinha um
pingo de timidez no corpo, que exalava masculinidade por todos os poros e
que aparentemente não sabia a definição de romantismo havia acabado de
citar Shakespeare, usando das palavras seculares para reafirmar o que queria
me dizer antes.
— Como você...
— Como sei disso? Sou um cara esperto. Posso ter sido um sem-
vergonha na escola, mas amava a disciplina de Literatura. Pode ser porque eu
tinha uma paixonite pela professora Stanford...
Com cuidado para não atingir seu curativo, abracei e beijei-o com
ardor, não poupando fôlego em demonstrar o que suas palavras haviam
significado para mim.
— Você e eu somos sombras, Zilah. Somos variáveis e mudamos
nossas posições conforme a incidência da luz. Me deixe ser a luz que vai
atrair a sua sombra para mim. E seja a minha Tsél... espero que tenha falado a
palavra do jeito certo.
— Nem sempre as sombras devem ser deixadas para trás, não é?
— Não. E é por isso que vim atrás da minha sombra
correspondente. Desde que você me queira também.
— Eu quero... mas não sei como faríamos isso dar certo — admiti,
recostando minha testa à dele.
— Faremos do melhor jeito que conseguirmos. Deixando as
dúvidas traiçoeiras para trás, no lugar onde pertencem. Só não podemos
permitir que o medo se torne nosso maior obstáculo.
— Deixe-me adivinhar — afastei um pouco a cabeça para encará-
lo, vendo o sorriso lindo em seu rosto —, William outra vez, certo?
— Não, senhora. — Belisquei a ponta de seu nariz. — Esse
pensamento foi totalmente meu, Teagan Kieran Collins.
Eu me permiti olhar para aquele homem, realmente olhar,
contemplando o que poderíamos viver no presente.
Talvez pudéssemos construir um relacionamento, mesmo que à
distância, ou talvez tenhamos sido destinados a nos encontrar naquele
momento para que as feridas emocionais que pudéssemos ter, mais
precisamente eu pudesse ter, fossem curadas de alguma forma.
Eu deixaria o tempo me ensinar, mas não perderia nem mais um
segundo daquela oportunidade que me foi oferecida para poder ser feliz
enquanto nosso breve retiro idílico durasse.
17h00
Foram três dias de intensas sessões de sexo suado e ardente, mas
mais do que isso: de troca, risos e companheirismo.
As afinidades que acreditei ter com Zilah superavam as
dificuldades que agora contemplávamos enquanto nos despedíamos na Base
Aérea Helênica. Em um acordo de cooperação militar, a pista de pouso foi
cedida para que um avião fretado pudesse me levar para os Estados Unidos,
enquanto Zilah voltaria a Tel Aviv em outro voo enviado pelas Forças de
Defesa de Israel.
Havíamos feito passeios pela região como se fôssemos um casal
apaixonado e em lua de mel, nos valendo da paisagem paradisíaca e da folga
momentânea – embora eu teria mais três meses pela frente para avaliar se não
desencadearia um possível EPT, Estresse Pós-Traumático, como era
protocolo nas forças armadas.
Eu precisava admitir que, se pudesse, seguiria Zilah até sua terra
santa. Faria uma espécie de peregrinação, daria um pulo em Jerusalém,
colocaria uma oração no Muro das Lamentações se aquilo me garantisse
poder ficar ao seu lado, mas precisava dar tempo ao tempo.
Estava seguro de que o que sentia por ela era algo além do que
jamais imaginei sentir por alguém. Mas precisava que ela chegasse à mesma
conclusão. Que decidisse se arriscar por nós dois e pelo que poderíamos viver
juntos.
Ela havia se envolvido em um relacionamento sério ainda muito
nova, não teve tempo de viver as desventuras da vida de solteira. E eu? Eu
não era parâmetro algum, já que nunca havia me relacionado com nenhuma
mulher por mais do que dois encontros, mas já tive minha cota de affairs, e
estava mais do que disposto a deixar a vida de bon-vivant para trás.
Por ela.
Pela minha parte igual. A sombra que se encaixava à minha com
perfeição.
Ela se mantinha agarrada a mim, incapaz de se despedir e
embarcar. O piloto do jato onde seguiria para o seu destino parecia
impaciente, mas eu estava pouco me lixando.
— Não quero dizer adeus — ela sussurrou, e fui capaz de sentir
meu pescoço úmido.
— Não precisa ser um adeus, boneca. Você sabe disso — afirmei.
— Mas quem garante que quando você chegar ao seu país, não será
mimado por todas as mulheres de lá, loucas para brindar o herói que foi
ferido no cumprimento do dever...
Comecei a rir.
— E quem garante que minha garota não vai voltar para Israel e
não se verá cercada por um monte de kebabs e falafels querendo colocar uma
medalha nos seus peitos?
Foi a vez de o riso dela fazer vibrar o meu corpo.
— Okay, você destruiu o romantismo da nossa despedida. — Ela se
afastou e me deu mais um beijo longo e demorado, antes de suspirar e dar um
passo para trás. — Promete que manterá contato?
Coloquei a mão sobre o peito e respondi solene:
— Juro com todo o meu coração e a pureza da minha alma, a
potência do meu corpo e a certeza da minha mente brilhante.
Ela sorriu de lado, inclinando a cabeça enquanto entrecerrava os
olhos.
— Não é nenhum Guns N’Roses, mas acho que vai servir para o
que quero dizer. Enviei uma música pra você. Ouça quando decolar — ela
disse, e me beijou uma última vez.
Em seguida, foi se afastando devagar, andando de costas, sem
desviar o olhar do meu.
Minha vontade era correr até ela e propor para que fugíssemos
juntos, para que nos escondêssemos ali em Atenas, em qualquer ilha ao redor
– só não em Creta, claro –, mas eu sabia que não poderia interromper o ciclo
de nossas vidas.
Teria que a deixar ir.
Acenei um “até logo”, vendo-a desaparecer pela porta da aeronave.
Meu voo seria dali a quinze minutos, então dava tempo de ver sua
decolagem.
Pude enxergá-la através da janela minúscula, tendo a certeza de que
estava chorando, mais uma vez.
Eu queria ser forte e engolir minhas próprias lágrimas. Porra, toda
aquela coisa de Shakespeare havia me deixado mais mole do que um pote de
manteiga exposto ao sol.
Acenei mais uma vez quando a vi fazer o mesmo pelo vidro. O jato
começou a taxiar e foi se distanciando na pista. Em questão de segundos,
havia decolado, levando um pedaço do meu coração com ele.
Quando o piloto do meu voo veio ao meu encontro, eu já havia me
recomposto um pouco mais. Talvez meus olhos marejados nem delatassem
que eu me sentia como um adolescente apaixonado que acabara de se
despedir de seu amor de verão.
Sentei-me na cabine da aeronave e me acomodei no assento,
afivelando o cinto. Uma comissária de bordo perguntou se eu desejava algo
para beber, mas recusei, querendo ouvir a música que ela havia enviado para
mim.
Posicionei os fones e quando a balada pop começou a tocar,
recostei a cabeça contra o assento, rindo baixinho. Definitivamente não era
um rock do meu estilo, mas a letra não poderia ter trazido mais alento ao meu
coração do que aquela.
Ela dizia que me esperaria, mesmo que estivéssemos a milhares de
quilômetros de distância, porque aquilo ali nada mais era do uma formalidade
e seria temporário.
A música dizia que ela se se deitaria em sua cama, no dia 16 de
setembro, apenas esperando. Mesmo que precisasse fazer aquilo para sempre.
Ela se deitaria naquela mesma noite, e faria o mesmo que eu.
Porque eu tinha mais do que certeza de que a esperaria para sempre
se fosse preciso.
16h01
Eu estava nervosa. Sentia minhas mãos trêmulas e suadas, o
coração batendo acelerado e em um ritmo preocupante. Tudo porque a
cerimônia começaria em menos de uma hora.
A comitiva das Forças de Defesa de Israel havia decidido viajar
para os Estados Unidos dois dias antes, e decidi que queria surpreender
Teagan, tanto com a minha presença ali, quanto com a proposta que havia
recebido do Comandante Cohen.
Assim que voltei a Tel Aviv e reportei todo o ocorrido
pessoalmente, ganhei o respeito e consideração do tio de Aaron.
— Estarei sempre em débito com você, Zilah. Por mais que não
fosse o desfecho que esperava, já que meu sobrinho estava envolvido em todo
esse esquema, só posso imaginar o quanto deve ter sido difícil para você
lidar com um fantasma pelo qual derramou tantas lágrimas — ele disse.
Zilah mantinha-se em uma pose estoica, dividida entre o alívio e o
desprezo que sentia por tudo aquilo.
— Eu a coloquei em uma posição horrível e mesmo assim você
cumpriu seu dever com maestria — continuou. — Quero que tire um período
de folga pelo tempo que desejar. E saiba que atenderei a qualquer pedido
seu. Seja ele qual for. Também já dei entrada ao protocolo para que seja
devidamente condecorada pelo seu ato de bravura.
— Não fiz mais do que minha obrigação, senhor. — Conteve o
ímpeto de perguntar se os americanos receberiam o mesmo reconhecimento.
— Porém fico grata por termos conseguido destruir a organização criminosa
que operava todo esse esquema sujo.
— Não se esqueça — disse, levantando-se para cumprimentar sua
oficial. O que já era algo fora do usual. Normalmente, os generais não
tratavam subalternos de maneira tão informal —, o Ministério da Defesa
estará disposto a atender qualquer solicitação que porventura possa ter.
— Agradeço, senhor. — Zilah bateu continência e se retirou de seu
escritório.
Ela saiu de lá se sentindo menos culpada por todos os eventos que
sucederam aquela missão. Esperançosa de que encontraria paz em seu
futuro.
Já havia se passado mais de um mês desde o dia em que me despedi
de Teagan Collins. Embora tenhamos nos falado todos os dias, trocando
mensagens e juras de amor, não tínhamos conseguido organizar nossas
agendas para nos vermos pessoalmente, mesmo que aquele fosse o nosso
desejo desde o início.
Até que a oportunidade apareceu com a chegada do memorando
que solicitava minha presença na Casa Branca para receber a Medalha Estrela
de Bronze, concedida pelo próprio presidente dos Estados Unidos, em uma
cerimônia onde os soldados eram agraciados com essa honraria. Era a
primeira vez que uma mulher estrangeira, integrante das forças armadas de
outro país, receberia tal homenagem.
Decidi, então, não falar nada a Teagan. Pretendia surpreendê-lo,
inclusive ao dizer qual fora o meu pedido ao meu comandante na semana
passada.
Conversei com Teagan na noite anterior, como fazíamos todos os
dias, sem dizer que estava com o coração acelerado porque em breve
poderíamos nos ver pessoalmente.
— Você está bem? — a Tenente Tamara Barkin, relações públicas
do Exército nas Forças de Defesa de Israel, perguntou.
— Sim. Só estou nervosa — admiti.
— Não tem nada a ver com o oficial bonitão, não é mesmo? —
sondou, com um sorriso de lado.
Tamara e eu éramos amigas, mas enquanto eu havia preferido me
enfiar no combate direto dentro das forças, ela preferiu os trabalhos mais
burocráticos, tornando-se a porta-voz em muitos eventos onde precisava
acompanhar os oficiais quando solicitados.
— Nem sei do que está falando — brinquei, sacudindo a cabeça.
— Hum-hum. Por falar nele, será que terei o prazer de conhecer o
homem que fez você sair do jejum de não sair com ninguém depois do seu
noivo idiota? — caçoou. Ela nunca havia gostado de Aaron e, depois de saber
o que ele fez, agora sentia muito mais liberdade para expor sua opinião.
— Talvez. Não sei se ele sabe dessa cerimônia hoje. A dele ocorreu
duas semanas atrás.
Teagan havia me enviado as fotos em tempo real no dia.
Desnecessário dizer o quanto estava lindo usando seu traje de gala dos
Fuzileiros Navais. Agora era a minha vez de estar vestida com toda a pompa
e circunstância, com o traje formal: uma saia azul-escuro fazia jogo com a
blusa social branca, sendo completada pela boina em um tom distinto de
verde. A insígnia do Departamento de Inteligência, que representava todas as
Unidades de Elite, estava fixa ao peito: uma estrela de Davi metade verde,
metade branca. As luvas acima dos ombros ostentavam as duas barras
transversais que indicavam minha patente como Primeiro Tenente do
Exército.
Eu me sentia estranha, já que quase nunca usávamos aquela
vestimenta. Mesmo em condecorações normais ou cerimônias da IDF,
usávamos a farda em tom verde-oliva, composta de calça e camisa. Ela
diferia do nosso uniforme de combate apenas por alguns detalhes, como
número de bolsos e a presença de galardões representados na roupa.
Meu cabelo, que normalmente usava preso em uma trança apertada,
optei por deixar em uma trança solta e lateral, embora tenha preferido usá-lo
solto. No entanto, Tamara disse que não deveríamos chocar os americanos,
que não estavam habituados ao estilo mais despojado das militares
israelenses.
O salto baixo causava estranheza, já que estava acostumada aos
coturnos, além do mais, eu não era muito dada a expor minhas pernas daquela
forma, a não ser que estivesse fora de serviço e no conforto do meu lar.
— Respire fundo, Zilah. Você está começando a hiperventilar.
Por mim, eu nem estaria ali. Não precisava de algo tão formal.
Merda. Não precisava de medalha alguma. O reconhecimento de que fiz um
bom trabalho já era suficiente.
Eu estava muito mais ansiosa pela expectativa de surpreender
Teagan de alguma forma.
— Tamara, estou com medo de chegar à cidade dele, do nada, e
não ser o que esperávamos — admiti em voz baixa.
Ela me encarou, com um ar de assombro.
— A grande Zilah Stein, com medo de uma coisa tão simples?
Vocês conversaram por todo esse tempo, chegando até mesmo a fazer planos,
e agora está preocupada? Quem é você e o que fez com minha amiga? — ela
caçoou, sacudindo-me de leve.
Aquilo acabou arrancando uma risada, trazendo um pouco de alívio
ao meu coração.
Uma mulher loira veio ao nosso encontro com um sorriso fácil no
rosto que lhe chegava aos olhos.
— Tenente Stein? — confirmou. — Meu nome é Jane Harvey e sou
eu que vou conduzi-la até o local onde daremos início ao protocolo de
segurança para que a cerimônia possa se realizar em dez minutos.
Nós a seguimos e entramos em uma sala que contava com alguns
oficiais de alta patente e que me cumprimentaram assim que passei.
Os Estados Unidos, bem como Israel, eram severos em relação à
segurança no tocante de uma cerimônia onde seu máximo representante
estaria presente. Muito por conta da política do terror que sofreram nos
últimos anos.
Pisei na estrutura metálica que faria uma varredura pelo meu corpo,
averiguando se não escondia nenhum artefato. Um sorriso irônico curvou
minha boca naquele instante, porque qual era o sentido de me condecorar,
mas ao mesmo tempo suspeitar que eu poderia oferecer algum risco?
Depois disso, fomos encaminhadas à antessala próxima ao
auditório onde logo mais os representantes do Governo e das Forças
Armadas, bem como o Almirante James Hollister, mais alto cargo dentro da
Marinha americana.
A mesma loira, Jane, que nos buscou na sala anterior, nos levou até
nossas acomodações na primeira fileira.
O tempo em que fiquei aguardando que meu nome fosse chamado,
apenas deixei minha mente vagar. Mal prestei atenção às palavras proferidas,
querendo sair dali o mais rápido possível para que pudesse pegar um voo até
o Oregon.
— Os Estados Unidos, munidos de seu poder conferido gostariam
de oferecer nossa Medalha ao Mérito, Estrela de Bronze, à oficial das
Forças de Defesa de Israel, integrada ao Exército, Tenente Zilah Stein, pelos
serviços prestados em parceria ao Corpo de Fuzileiros Navais, onde
mostrou-se de tamanha valentia para que uma das maiores organizações de
tráfico humano fosse aniquilada, minando assim, os planos sórdidos de
oferecer o terror a diversas nações — o presidente disse. — Não apenas no
tocante da ação antiterrorismo em si, o que nos move em oferecer esta
homenagem é o fato de que vidas humanas foram poupadas...
O discurso se alongou, mas não sei se seria capaz de dizer o que
estava sendo dito. Tamara colocou a mão discretamente em meu joelho,
tentando me alertar para interromper o movimento constante da perna
cruzada acima da outra.
— Tenente — uma voz me chamou, mas demorei a perceber que
era comigo. Um oficial fardado da USMC estendeu a mão educadamente e
me ajudou a subir a pequena escada até o púlpito.
Cumprimentei a maior autoridade do país, em seguida aceitando os
cumprimentos dos outros líderes militares.
Estava mais do que grata de que não precisaria fazer discurso
algum, pois não achava que seria capaz. Quando uma Major dos Fuzileiros
chegou à minha frente para fixar a pequena placa metálica ao meu uniforme,
ergui a cabeça para sorrir em agradecimento.
E foi naquele momento que o vi. Vestido exatamente como todos
os outros ali, Teagan Collins se postava ao fundo do auditório com um
sorriso orgulhoso no rosto.
Disfarcei a surpresa e sorri, agradecendo à oficial que me
condecorava. Eu queria sair correndo dali e ir ao encontro dele.
Despedi-me das pessoas sem nem ao menos ver nada.
Tudo o que eu conseguia enxergar era o homem que fez meu
coração bater outra vez.
17h41
Ela continuava linda. Mais até do que eu era capaz de me lembrar,
mesmo que todo dia contemplasse seu rosto pela tela do celular.
No entanto, aquilo não fazia jus à mulher que dominava meus
pensamentos, aquecia meus desejos e agitava meus sentimentos.
Mais uma vez Scott me informou a respeito da comitiva que vinha
de Israel para a ocasião, embora ele tenha achado que eu sabia do fato. Se eu
não o conhecesse direito, pensaria que havia assumido o cargo de Cupido dos
Fuzileiros.

— E então? Ansioso para reencontrar seu... como você a chamou


mesmo? — perguntou, rindo.
— Meu Kebab. Mas esse apelido só eu posso usar — afirmou. —
Ainda estamos trabalhando para conciliar nossas agendas. Acabei
aproveitando esse período de ócio para visitar meus pais.
— Bom, fico feliz que as coisas estejam dando certo para você e
que tenha decidido dar as caras na fazenda. Embora eu tenha certeza de que
Zilah vai te roubar daí rapidinho — brincou.
— Bem que eu queria. Acho que já esgotei minha cota de paciência
como rancheiro — Teagan rebateu.
— Pense que será só até amanhã. O Cap já entrou em contato com
você para informar do voo?
Coçando a cabeça, encarou o celular para ter certeza de que
estava realmente falando com Scott, já que, por um segundo, ficou mais
confuso do que nunca.
— Que voo?
— Para D.C — disse. — O quê? Você não está sabendo?
— Sabendo de quê?
— Caralho... se a intenção dela era te fazer uma surpresa, acho
que fodi tudo — admitiu.
— Scott, seja mais claro, por favor.
— Amanhã sua Zilah estará em uma cerimônia para receber uma
medalha, na Casa Branca.
— O quê? — Seu tom foi mais estridente do que pretendia. — Por
que ela não me falou nada?
— Hummm... talvez ela quisesse surpreendê-lo...? — ventilou.
— Como assim? Eu falei que queria estar presente.
Teagan não sabia se estava ultrajado ou magoado. Ele estava
enlouquecendo nos últimos dias, querendo rever a mulher que roubou seu
coração. Chegou até mesmo a pesquisar passagens aéreas para Tel Aviv,
mas alguns impedimentos surgiram e atrapalharam seus planos.
— Qual é, Teag? Mulheres gostam dessas merdas. E, pelo que
entendi, Zilah não é dada a esses protocolos e nem curte essas coisas. Talvez
ela tenha ficado sem graça ou tenha sido algo repentino.
Fazia sentido. Quando compartilhou com ela a cerimônia em que
ele mesmo havia sido condecorado, semanas atrás, ela disse que odiava
eventos assim onde teria que ser o centro das atenções, por mais que o
reconhecimento fosse agradável.
— Tudo bem. Vou matar o Cap por não ter falado nada antes.
— Você já checou sua caixa de mensagens? Porque, se não me
engano, o serviço de telefonia aí na sua área é uma porcaria — ele disse.
Aquilo era um fato. Várias, das inúmeras vídeochamadas com
Zilah foram feitas do lado de fora de casa. Ele havia descoberto um ponto
onde o sinal da operadora apresentava melhor funcionalidade, e aquele foi
um dos fatores que mostrou que precisava dar um jeito de comprar sua
própria casa.
Por mais que passasse mais tempo no porta-aviões, Teagan
percebeu que já era hora de amadurecer a ideia de ter seu espaço para,
quem sabe, poder construir um futuro com Zilah.
— Tudo bem, Scott. Você e o Masterson estão empenhados em
manter o sigilo quando o assunto é a minha vida amorosa. Não pense que
esqueci Atenas, okay? Mas vou entrar em contato com ele para saber
detalhes do meu voo. — Teagan sentiu a energia renovada. — Dessa vez, não
vou perder tempo em um leito de hospital.

Meus pensamentos retornaram ao presente momento assim que ela


desceu do palco e burlou o protocolo ao não se sentar no lugar designado
outra vez, preferindo vir em minha direção pelo meio do corredor.
Meu coração começou a bater acelerado, e tudo o que eu mais
queria era correr ao seu encontro, puxá-la para os meus braços e matar toda a
saudade armazenada por todo o tempo em que ficamos afastados.
O burburinho da pequena audiência ficou para trás, e quando Zilah
parou à minha frente, presenteou-me com o mais belo sorriso do qual poderia
me lembrar.
— Oi — sussurrou e olhou para trás, percebendo que havíamos
atraído a atenção. — Será que pega mal se sairmos daqui?
— Não acho que vão se importar. Podemos sempre alegar que você
teve uma emergência, precisava ir ao banheiro, algo assim — brinquei, no
mesmo tom.
— Então vamos... — Ela aceitou minha mão estendida e guiei-a
para que saíssemos da sala de conferências.
Saudei algumas pessoas no caminho, puxando-a pelo longo
corredor enquanto seguíamos para a saída. Nós precisávamos deixar as
dependências do prédio do Governo, para que eu não corresse o risco de
sofrer um processo disciplinar.
Acionei o alarme do carro que havia alugado assim que cheguei à
cidade e abri a porta do passageiro para que ela entrasse.
Minha vontade era agarrá-la ali mesmo, diminuir o espaço entre
nossos corpos e provar do sabor de sua boca outra vez.
— Vamos — apressei, já sentindo o desespero.
— Meu Deus, deixei Tamara lá dentro! — ela murmurou, enquanto
afivelava o cinto.
— Quem é Tamara, pelo amor de Deus? — perguntei, já dando
marcha ré e seguindo em direção aos portões onde alguns agentes do Serviço
Secreto mantinham o controle restrito de entrada.
— Minha amiga e RP do Exército israelense — disse, olhando para
trás. — Minha nossa, Teagan! Nem ao menos trouxe minha bolsa, meu
celular... nada!
— Não se preocupe. Não vou te sequestrar para longe daqui —
brinquei. — Só preciso que estejamos longe dos olhos curiosos e onde eu não
corra risco de ser preso por atentado ao pudor.
Somente quando saí do prédio e entrei na Executive Avenue, é que
respirei aliviado. Sem hesitar, estacionei o carro na calçada alguns metros à
frente e desliguei a ignição.
Virei-me para o seu lado, soltando o meu cinto e segurei seu rosto
entre as mãos, encarando-a por quase um minuto inteiro antes de roçar sua
boca com a minha.
Ela correspondeu ao meu beijo, soltando seu cinto de segurança e
se lançando na minha direção. Em algum momento sua boina e o meu quepe
voaram pelo carro, nossas mãos tocando em todos os lugares enquanto os
gemidos exprimiam o anseio que nos consumia.
— Não tive nem tempo de dizer que você fica lindo com essa roupa
— ela disse, entre os ofegos.
— Nem eu — sussurrei, contra os seus lábios. — Você está mais
linda do que eu me lembrava.
Ela sorriu e me encarou, passando as mãos pelo meu rosto
barbeado.
— Onde está sua barba?
— Tive que me livrar dela para poder vestir o traje de gala —
admiti. — Mas em breve ela cresce outra vez.
— Gosto de você de qualquer jeito, Teag — admitiu. — Gosto
muito de você.
— Espero que sim, porque pretendo te sequestrar pelo tempo que
ainda tenho de licença.
— Vim preparada para isso.
— Okay, tudo bem. Não tenho mais idade para trocar uns amassos
dentro do carro. Onde você está hospedada?
— No Hyatt Regency. Fica a pouco mais de dez minutos daqui.
— Então vamos até lá.
— Estou dividindo o quarto com minha amiga. A que falei.
— Vou reservar um para nós dois. Sua amiga não vai se importar
em ser abandonada. Será por uma boa causa — sussurrei, e mordisquei seu
lábio inferior.
— Então está esperando o quê?
Fiz o percurso em tempo recorde, chegando ao hotel em nove
minutos. O processo de check-in foi mais rápido ainda, e culpe meu traje
formal por conta disso, já que as recepcionistas fizeram questão de agilizar
uma suíte para a “lua de mel” que aleguei ter com Zilah.
Às pressas, chegamos à área dos elevadores e, infelizmente,
tivemos que entrar no panorâmico, o que impossibilitava o amasso que queria
lhe dar.
Assim que as portas se abriram, arrastei-a pelo imenso corredor em
direção ao quarto 1134. A porta nem bem se fechou quando começamos a
nos livrar das roupas, jogando tudo pelo chão sem o maior cuidado.
Quando estávamos em nossas roupas íntimas e ela fez menção de
se livrar do sutiã, segurei seu pulso, puxando-a para mim.
— Eu mesmo quero fazer isso. E por mais que esteja louco para me
afundar em você agora mesmo, quero desfrutar do seu corpo, do jeito que não
pude fazer quando ainda estava me recuperando.
— Não tenho objeção nenhuma a isso — ela respondeu, e enlaçou
meu pescoço.
E dali dediquei um bom tempo apreciando suas curvas suaves;
deliciando-me com a pele acetinada; devorando sua boca macia e carnuda;
explorando cada pedacinho de seu corpo para memorizar o que eu já sabia ser
minha companheira de alma.
Naqueles dias em que ficamos afastados, mas mantendo o contato
diário, deixei claro meus sentimentos, mas nem eu nem ela dissemos as
palavras que selariam o que já sabíamos: que nos amávamos e estávamos
destinados a ficar juntos. De alguma forma.
Declarei meu amor por ela com meus beijos, com minhas mãos,
meu corpo.
Mas só quando estava acima dela, com os cotovelos apoiados ao
lado de seu rosto e com meus lábios pairando a centímetros dos dela, eu
disse:
— Não sou muito bom nisso, mas... lá vai. Pensei em uma música,
mas achei que poderia ser meio cafona, então... — Respirei fundo, antes de
dizer logo de uma vez: — Eu te amo, Zils. Talvez não tenha dito com todas
as letras, mas, enfim... é isso. Acho que...
Vi o sorriso se ampliar e os olhos se tornarem turvos e brilhantes.
— Eu também te amo, Teagan — ela disparou e enlaçou meu
pescoço, puxando-me para um beijo ardente. — Ani ohevet otcha mikol
baolam.
— Meu Deus, espero que isso tenha sido uma declaração
contundente do seu amor por mim.
Ela riu e respondeu:
— Eu apenas fiz questão de frisar que te amo mais do que tudo.
Mais do que poderia imaginar que amaria alguém.
— Bom, porque me sinto da mesma forma. E não sei quanto a
você, mas estou disposto a fazer de tudo para que fiquemos juntos.
— Eu também, Teag. Eu também. — Sorriu, enigmática.
Naquela noite nos amamos com calma, focados em buscar e
oferecer prazer, externar todos os sentimentos que haviam nos unido de uma
forma explosiva e única.
E eu não fazia ideia de como seria o futuro, mas tinha plena certeza
de que meu destino estava traçado ao dela.
E quando o amor nos movia em prol de um mesmo propósito, não
haveria obstáculos que pudessem nos impedir.
Éramos duas sombras em busca da luz que havíamos acabado de
encontrar em cada um.
16h12
A reunião marcada às pressas tinha apenas um propósito: oferecer a
oportunidade ao Capitão Masterson de, mais uma vez, firmar seu posto como
o oficial superior que sempre pensava em seus soldados.
Eu mantinha o sorriso perspicaz no rosto porque sabia exatamente
o que ele informaria dali a poucos minutos. Claro que Scott também não
poderia ter ficado de fora, já que ele e o Cap haviam adquirido o estranho
hábito de orquestrar situações inusitadas pelo bem de seus companheiros.
— Senhores, como muitos sabem, nossa missão de alguns meses
atrás acabou ganhando uma repercussão muito favorável em relação à
atuação dos Recons, e isso fez com que o Departamento de Defesa, sob
ordens diretas do presidente dos Estados Unidos, elaborasse uma parceria em
definitivo com o Governo de Israel, aliando algumas de nossas forças para
fins de combate ao terrorismo — ele disse, andando ao redor da mesa
redonda. — Para isso, cada segmento militar criará protocolos desenvolvidos
para forças-tarefas com cooperação intercontinental.
— O que significa... — Dylan tentou apressá-lo.
Todos começaram a rir, já que, por mais que o discurso de nosso
superior fosse sério, o clima ainda se mantinha de total descontração.
— O que significa que a primeira força-tarefa organizada se intitula
DuskShot, onde iremos contar com dois integrantes da Tzahal para integrar
nossa equipe composta por Teagan, Scott, Dylan, Tyler.
Tentei evitar batucar os dedos sobre a mesa, para não demonstrar
meu nervosismo e excitação.
— Sendo assim, vamos dar as boas-vindas aos companheiros que
farão parte dessa imensa família a bordo do Marula — foi até a porta e a
abriu, dando passagem a um oficial da marinha israelense e... minha Zilah.
Um amplo sorriso se espalhou pelo meu rosto quando vi meus
amigos se levantando para cumprimentá-la, adorando ver o leve tom rosado
em suas bochechas perante a atenção recebida.
Eu me aproximei, cumprimentei o homem, que se chamava Ezra, e
coloquei meu braço sobre os ombros da minha mulher.
— Para que fique claro desde o início, esta sniper aqui agora é
minha esposa, portanto, vocês terão que se acostumar em ver corações
explodindo de nossas cabeças sempre que a ocasião permitir.
Os risos encheram a sala, dando lugar às felicitações e aos abraços.
Havíamos nos casado há menos de um mês, em uma cerimônia
simples em Tillamook. Eu a levei para conhecer meus pais, e para agradar
minha mãe, decidi dar entrada nos papéis no pequeno cartório da cidade.
Zilah havia usado a carta na manga que lhe fora oferecida pelo seu
comandante, o General Cohen, quando solicitou uma participação como
consultora de treinamento Matkal para tropas da USMC. Mais
especificamente, em nosso porta-aviões.
O contato foi feito com o General Sanders, que acionou o Capitão
Masterson para que uma solicitação fosse aberta.
Como o bom estrategista que era, Masterson ventilou a ideia de
montar a força-tarefa entre as duas forças, facilitando assim o trabalho árduo
contra toda e qualquer ameaça às duas nações.
Zilah foi para os Estados Unidos, quando na época da
condecoração, já sabendo que os trâmites estavam sendo feitos, e assim que
me informou a respeito de seus planos, não perdi tempo em pedi-la em
casamento. Eu queria o pacote completo. Casamento e filhos em um futuro
não tão próximo assim...
Agora estávamos, inclusive, aptos a compartilhar uma cabine
especial destinada aos militares casados que serviam na mesma base.
Deus abençoe a América.
— Sem querer ofender ao colega aí — Dougal murmurou
apontando o queixo na direção do israelense que conversava animadamente
com o capitão —, mas não dava para ter sido enviada outra oficial assim... no
estilo da Zilah?
Começamos a rir, mas não perdi a oportunidade na hora de
responder:
— Essa aqui é única, rapaz. Não tem cópias. — Olhei para ela,
beijando sua testa com carinho. — E eu fui o sortudo que conseguiu sua
atenção. Agora, se me dão licença, tenho que comemorar com a minha
esposa...
As ovações e aplausos ficaram para trás, à medida que eu deixava a
sala, com um braço sobre os ombros de Zilah, fazendo questão de mostrar o
dedo médio para os caras, sem que ela percebesse.
Velhos hábitos não morriam tão cedo.
Eu estava feliz. Não achei que encontraria minha igual – em tantos
sentidos –, em meio à violência que fazia parte de nossas vidas profissionais.
Mas agora... ao sair no deck iluminado com o fim de tarde, rumo à
ala das cabines, tudo o que meus companheiros poderiam ver eram duas
sombras caminhando lado a lado, projetadas pelos nossos corpos.
FIM.
Em primeiro lugar, agradeço a Deus, por sempre estar presente ao
meu lado e nos meus momentos mais conturbados.
Em seguida, um obrigada ao meu marido, Érico, e meus filhos,
Annelise e Christian, que me compartilham sempre que podem. Amo vocês.
Às minhas amigas de longe e de perto, que aceitam meu
distanciamento, mas me apoiam de maneira incondicional: Andréa Beatriz,
Lisa Lili, Dea, Nana, Jojô, Maroka, Alê, Mimi, Mercia.
Às minhas betas, Anastacia, Dea e Jojô, que aturam meus surtos,
pânicos, arroubos... São elas que me ajudam a lapidar o melhor trabalho
possível que tento trazer a vocês.
Não poderia deixar de agradecer à equipe de consultores
maravilhosos que arranjei: Mel Portela, pela ajuda linguística com o
hebraico; Joyce, Tamara e Libby (direto de Israel), pelas informações sobre
as soldados israelenses; Fernando Uzuelli, pela consultoria em assuntos
médicos; meu marido e cunhado pelas aulas sobre armamentos e operações
do Mossad; Lucas Emmanuel, pelo help com o sistema codificado; Andréa,
pelas horas intermináveis em pesquisas pelo Google Maps. Vocês são o
máximo.
Um huge thanks às duas autoras sombrias, Andy Collins e Helena
Stein, homenageadas da vez. And, I have to send a kiss to my beloved friend,
my british wild sister, Jane Harvey-Berrick, for all love and support. I got a
character for you, honey.
Obrigada, Roberta e The Gift Box, por mais uma vez colocarem
seus esforços em produzir esse livro.
Obrigada à Dri K.K, pela capa magistral (como sempre). Você
arrasa e sabe dar vida aos meus livros.
À Carol Dias, pela diagramação caprichada.
Agradeço a todos os leitores que confiaram em mim para trazer
Teagan “Shadow” Collins à vida, sonhando mais uma vez em se jogarem no
mundo militar dos Marines.
Por fim, só tenho a dizer que chegar a fim nesse livro, já foi uma
vitória sem igual. Foi preciso enfrentar turbulências e intempéries ao longo
do caminho, mas consegui superar minhas barreiras e, finalmente, digitar a
tão temida palavrinha “Fim”, temendo agora que a história de Teagan e Zilah
possa conquistar seus corações, da mesma forma que conquistou o meu.
Nunca o lema “Who Dares, wins” – Quem ousa, vence –, fez tanto
sentido para mim.
Love Ya’ll,
M.S Fayes
ESSE POEMA DE SHAKESPEARE ESTEVE PRESENTE DURANTE UMA FASE ÁRDUA QUE
ENFRENTEI, E SUAS PALAVRAS FORAM UM ALENTO NECESSÁRIO.
Depois de algum tempo, você aprende a diferença, a sutil diferença
entre dar a mão e acorrentar uma alma.
E você aprende que amar não significa apoiar-se. E que companhia
nem sempre significa segurança. Começa a aprender que beijos não são
contratos e que presentes não são promessas.
Começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida e olhos
adiante, com a graça de um adulto e não com a tristeza de uma criança.
Aprende a construir todas as suas estradas no hoje, porque o terreno
do amanhã é incerto demais para os planos, e o futuro tem o costume de cair
em meio ao vão.
Depois de um tempo você aprende que o sol queima se ficar
exposto por muito tempo.
E aprende que, não importa o quanto você se importe, algumas
pessoas simplesmente não se importam… E aceita que não importa quão boa
seja uma pessoa, ela vai feri-lo de vez em quando e você precisa perdoá-la
por isso. Aprende que falar pode aliviar dores emocionais.
Descobre que se leva anos para construir confiança e apenas
segundos para destruí-la…
E que você pode fazer coisas em um instante das quais se
arrependerá pelo resto da vida. Aprende que verdadeiras amizades continuam
a crescer mesmo a longas distâncias.
E o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você tem
na vida.
E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher.
Aprende que não temos de mudar de amigos se compreendemos
que os amigos mudam…
Percebe que seu melhor amigo e você podem fazer qualquer coisa,
ou nada, e terem bons momentos juntos. Descobre que as pessoas com quem
você mais se importa na vida são tomadas de você muito depressa… por isso
sempre devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas; pode
ser a última vez que as vejamos.
Aprende que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre
nós, mas nós somos responsáveis por nós mesmos. Começa a aprender que
não se deve comparar com os outros, mas com o melhor que pode ser.
Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que quer
ser, e que o tempo é curto.
Aprende que não importa onde já chegou, mas para onde está
indo… mas, se você não sabe para onde está indo, qualquer caminho serve.
Aprende que, ou você controla seus atos, ou eles o controlarão… e
que ser flexível não significa ser fraco, ou não ter personalidade, pois não
importa quão delicada e frágil seja uma situação, sempre existem, pelo
menos, dois lados.
Aprende que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário
fazer, enfrentando as consequências. Aprende que paciência requer muita
prática.
Descobre que algumas vezes a pessoa que você espera que o chute
quando você cai é uma das poucas que o ajudam a levantar-se. Aprende que
maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência que se teve e o que
você aprendeu com elas do que com quantos aniversários você celebrou.
Aprende que há mais dos seus pais em você do que você supunha.
Aprende que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são
bobagens…
Poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia se ela
acreditasse nisso.
Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com
raiva, mas isso não te dá o direito de ser cruel. Descobre que só porque
alguém não o ama do jeito que você quer que ame não significa que esse
alguém não o ama com tudo o que pode, pois existem pessoas que nos amam,
mas simplesmente não sabem como demonstrar ou viver isso.
Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém…
Algumas vezes você tem de aprender a perdoar a si mesmo.
Aprende que com a mesma severidade com que julga, você será em
algum momento condenado.
Aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi
partido, o mundo não para, para que você o conserte. Aprende que o tempo
não é algo que possa voltar.
Portanto, plante seu jardim e decore sua alma, em vez de esperar
que alguém lhe traga flores.
E você aprende que realmente pode suportar… que realmente é
forte, e que pode ir muito mais longe depois de pensar que não se pode mais.
E que realmente a vida tem valor e que você tem valor diante da vida! Nossas
dúvidas são traidoras e nos fazem perder o bem que poderíamos conquistar se
não fosse o medo de tentar.
(WILLIAM SHAKESPEARE)
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autores nacionais e estrangeiros, que surgiu no mercado em janeiro de 2018.
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literatura de romance e queremos incentivar cada vez mais a leitura e o
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