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Conceitualização

A Concepção de Corpo no Mundo da Para compreendermos o significado de


corporeidade faz necessário nos deixar conduzir pelo
Saúde conselho de Heidgger de ouvir as palavras, elas falam
[The body’s conception in the world of por nós, pois são falantes e exigem uma escuta. O ser se
health] mostra na palavra e a palavra faz do homem o seu
intérprete ela fala no homem, revelando o campo do
visível e do invisível, do ordinário e do extraordinário, do
Ymiracy. N. de Souza. Polak*
efémero e do permanente. A palavra é o instrumento de
expressão da linguagem e esta, por sua vez, não se
Resumo: Este estudo é caracterizado reduz a um conjunto de signos. A linguagem é aquilo que
como um artigo de revisão, que tem como objetivo refletir caracteriza o homem, um comportamento que revela,
sobre os significados do corpo no mundo da saúde. A que se anuncia para o mundo.
autora pontua algumas concepções de saúde e doença, Para compreender o que seja corporeidade
do sagrado e do profano, presentes na história do devemos assumir a atitude de Foucault, ao proferir uma
homem, relacionados com o estudo. aula inaugural quando expressou o desejo de se deixar
Palavras-Chave: Corpo; saúde; doença; envolver pela palavra, de ser conduzido no e pelo
sagrado e profano. discurso, mais do que falar. Associando o conselho de
Heidgger ao desejo de Foucault, é possível retomar a teia
Introduzindo o Tema de significações que a palavra corpo e corporeidade
adquiriu através da história. O termo corporeidade
A compreensão do significado do corpo no contém em si um discurso anunciado há milhões de anos
contexto da saúde, exige o conhecimento das diferentes em diferentes línguas, diferentes culturas e sociedades,
c onc epç ões do c or po existentes no mundo.. A estando incorporado a um discurso falante que precisa
importância deste conhecimento resulta do fato de que ser escutado a partir do momento em que foi criado o
estas concepções evidenciam que as questões logos. (Santin, 1994)
referentes ao homem no mundo da saúde, sempre Como enfermeira, acredito que o
oscilaram entre os dois pólos: o do corpo e o do espírito, conhecimento das diversas concepções de corpo é de
o do corpo e o da mente, denotando uma visão grande relevância para o nosso fazer, pois o corpo é o
fragmentada e dicotomizada do homem. Esta dicotomia marco para toda e qualquer abordagem sobre o homem,
é resultante de um pensar reducionista que se faz ele é o lugar onde tudo permanece,...do fazer ver... e
presente desde a Grécia Antiga, retomado intensamente onde tudo se mostra ( Merleau Ponty, 1971, p-208;
na idade moderna por Descartes, com o pensamento 194:207)
racionalista, no qual a razão reina absoluta e o corpo Considerando esta importância pretendo
assume a função secundária de guardião da mente. com este trabalho, desenvolver uma reflexão sobre o
Apesar do corpo ser um tema milenar, o conhecimento corpo no mundo da saúde.
do corpo existente no mundo cultural é pequeno, não
claro, mesclado pelos interesses da ciência e da
A concepção de corpo e
tecnologia, interesses estes legitimados pela cultura
vigente. corporeidade
Ressalto a importância de considerarmos
os aspectos referentes à cultura, à natureza e ao sujeito, Compreender o corpo no mundo da saúde,
e atentar para os risco das posturas reducionistas que implica em estabelecer relações, entre os pólos do
vêem o homem de forma dicotomizada como sendo só sujeito, da natureza e da cultura, pois o homem é fruto
natureza, ou cultura ou apenas sujeito, ele precisa ser destes três pólos, sofrendo assim, influência do mundo
visto na confluência destas três dimensões, em sua dos valores das crenç as, do mundo polític o, e
totalidade. Esta visão do todo possibilita uma melhor econômico, ou seja do mundo sócio - cultural. A
compreensão da teia que se formou em volta do conceito compreensão dos significados do corpo na área em foco,
de corpo através dos tempos. Refletir sobre corporeidade exige uma viagem no tempo para entendermos a história
implica em viajarmos no tempo, ao encontro de grandes do homem e, com esta, todas as interpretações
temas filosóficos; falar de corpo, corporeidade, significa pertinentes ao corpo. Deste modo a compreensão dos
repensar o projeto antropológico construído pelos conceitos saúde e doença, do sagrado e do profano são
gregos, c onsagrado pelos teólogos medievais, de vital importância para apreensão destes significados.
confirmado pelos filósofos modernos e aceito pelos Observa-se em todas as sociedades a ideia
pensadores contemporâneos. da doença ligada a um Deus que pune, relacionada ao
*Proefessora Adjunto do Departamento de Enfermagem da UFPR; Doutoranda em pecado, à ação de um anjo exterminador, à ação de
Filosofia de Enfermagem na UFCS, e Coordenadora do Grupo Multiprofissional demónios, ou à necessidade para a nossa purificação
em Saúde do Adulto (GEMSA) - ** Material Extraído de um capítulo da tese. espiritual e cumprimento “karmático” (Berlinguer,1988).

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Esta visão denota a saúde como algo sagrado e a e os procedimentos preventivos e os diagnósticos,
doença como algo pecaminoso, que afeta um corpo geralmente associados com a alta tecnologia.
profano, merecedor de punição e de sacrifícios para que As práticas primitivas de cuidar do corpo
possa ser digno das graças das forças superiores. Este doente tornaram-se conhecidas por meio dos papiros,
pensar fez-se presente, em trabalho realizado por nas gravações nas ruínas, nas paredes das grutas, dos
POLAK (1995) junto à população adulta de uma cidade aquedutos, nos livros religiosos, políticos e nos tratados
da região sul. as pessoas descrevem a doença como: médicos (Paixão. 1993). De acordo com a autora, os
livros sagrados continham descrições de doenças, de
Um castigo de Deus. algo ruim que só nos prejudica’’ técnicas cirúrgicas e de drogas medicamentosas. O
(V.K). manuscrito de Imhotep, segundo Paixão (1993), é um dos
“É necessária para crescermos espiritualmente” (P.N). mais antigos e o primeiro a tecer comentários acerca do
“É a vontade de Deus”( B. G) controle do cérebro sobre o organismo.
“É algo que está escrito, você tem que passar, é Ele O budismo na índia ajudou no fomento das
quem sabe e determina o quanto mereço sofrer” (J. S) práticas médicas, introduzindo os ensinamentos de
solidariedade e bondade com o corpo doente. Na
Essas representações reiteram a visão do sociedade indiana, desenvolveu-se o conhecimento
hospital e das instituições de saúde como locais de músculo-esquelético, e a concepção do coração como o
purificação, onde se restabelece, é o templo sagrado da centro da vida. O corpo doente era tratado com banhos
saúde nos quais os prof issionais de saúde são e sangrias, com dietas e plantas medicinais; a religião
sacerdotes, ou sacerdotisas, filhos de Asclépio, o deus determinava todos os procedimentos.
da cura. irmãos de Panakéia. (“panaceia”), deusa das Na antigüidade, a preocupação com o
plantas e das ervas, dos derivados da terra, ou de confinamento dos corpos adoecidos teve grande
Hygieia. deusa que zela pela manutenção da saúde, aceitação na índia; nesse país, a construção de hospitais
deusa da sabedoria, que apregoava ser pessoa saudável conheceu notável incremento. Os aspectos de promoção
aquela que vive sabiamente (Capra, 1982) e prevenção da saúde eram muito considerados entre os
A saúde e a doença não estão presentes indianos, o que é constatado pela presença de músicos
de forma igual em todas as culturas, entre os corpos e contadores de histórias para o lazer dos doentes; as
viventes e as classes sociais. Observa-se que alguns recomendações de banho ao levantar-se, da limpeza dos
corpos contêm em si desde o nascimento como uma dentes, dos olhos, o uso de roupas limpas e a adoração
enciclopédia viva de doenças, que reclama estudo não aos deuses se faziam presente nos livros sagrados
apenas do ponto de vista “páthos ”. ou seja, do (Paixão, 1993).
sofrimento, da patologia, como do ponto de vista histórico No Antigo Testamento, há registros da
e social. preocupação do povo hebreu com cuidados profiláticos
Berlinguer (1988) salienta que a c o m a c ur a d o s m a l e s qu e af li g i a m o c o r p o,
c ompreensão da doenç a depende da ótic a do principalmente a lepra, para a qual se recomendava
observador: os familiares, o corpo doente, e seus drástico isolamento. Moisés foi considerado grande
amigos, pois cada um percebe a doença de uma forma. sanitarista, por transmitir à seu povo não apenas
O mesmo ocorre em relação à finalidade do processo ensinamentos religiosos mas também profiláticos,
avaliativo vivido por ele. quer para a admissão em um principalmente os referentes às doenças de pele.
novo emprego, quer para aposentadoria por invalidez ou O Código de Hamurabi, na Babilónia, o livro
para um simples controle de saúde. médico do Imperador chinês Kwang-Ti, dentre outros
De acordo com este autor existem três registos antigos, abordam o uso das plantas medicinais,
componentes interligados ao fenômeno doença: um de aplicações frias nos traumatismos músculo -
objetivo que é o corpo, o outro, expresso pelo pouco esqueléticos, o uso do ferro para anemias e do ópio para
conhecimento da doença e um terceiro relacionado com alívio das dores.(Paixão,1993).
o conhecimento das repercussões da doença na vida da A concepção antiga do corpo, como objeto,
pessoa, o que guarda estreita relação com os interesses algo nocivo, veículo e instrumento da alma do qual esta
da época. (Berlinguer, 1988. p.20) precisa libertar-se, coteja com a concepção da doença-
Vê-se que é difícil assegurar quando o corpo castigo. produto da “ira” ou “alerta” dos deuses por causa
está sadio ou doente, pois há toda uma rede de conexões de determinado comportamento. A doença considera-se
que perpassa o processo avaliativo da doença. A relação punição, motivo de confinamento do corpo mesmo contra a
do corpo com a doença pode ser observada em quatro sua vontade, como ocorre com corpos portadores de
fases distintas: a divinização da doença; a observação das doenças psiquiátricas e doenças infectocontagiosas;
relações existentes entre doença e a natureza; pela algumas estigmatizam o corpo que habitam, como o
realização de exames anátomo patológicos e laboratoriais, câncer, a síndrome de imunodeficiência adquirida e outras.

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Na Grécia Antiga, Alemeão, no século VI principalmente os aspectos que se repor tam às


a.C, concebia a doença como desarmonia entre as condições climáticas, tais como frio, calor, chuva e seca.,
forças da natureza, considerando a doença como a influência dos astros sobre o corpo, que podem
resultante do desequilíbrio dos elementos naturais acarretar sem excluir doenças.(Boltanski, 1989)
expressos pelos conceitos úmido-seco, quente-frio, No século XVII houve um grande progresso
amargo-doce. Hipócrates aprofundou a outra questão no conhecimento do que seja saudável ou doente,
afirmando que: o estudo das doenças está relacionado devendo ser registrado que vários fatores contribuíram
com tudo o que existe de comum e individual na natureza para isto. Entre eles destac am - se os avanç os
humana: na doença, no doente, na dieta e em quem a tecnológicos no ramo das ciências biológicas, como a
prescreve...nos costumes de um povo, nos fenômenos criação da anatomia patológica. A correspondência entre
celestiais, nas profissões, na idade de cada um, no os sintomas e as lesões dos órgãos, descoberto por
silêncio e nas falas (Berlinguer, 1988. p-12) Giambattista; o advento da fisiopatologia, com Claude
Conforme pode ser verificado na teoria Bernard, mostrando que o conjunto das funções
hipocrática, o bom funcionamento do corpo está fisiológicas não depende apenas das leis físicas, ou
associado à natureza, e o corpo é visto como composto químicas, mas de suas próprias leis. No final do século
por quatro líquidos ou humores: a bile amarela, a bile XIX, o aperfeiçoamento dos instrumentos de diagnóstico,
preta, o sangue e a fleuma sendo a doença resultante de como o laboratório, ajudaram na explicação dos
alteração no nível humoral mecanismo de transmissão, e nas medidas preventivas
Segundo Heiman (1994). a teoria humoral de certas doenças; no século XX, surge o conceito de
é aceita na América Latina como a teoria das doenças hemostasia, que corrobora a concepção da necessidade
“quentes e frias: o frio e o quente são termos usados de equilíbrio do meio interno com o ambiente externo
simbolicamente, correspondendo ao poder contido na (Berlinguer, 1988).
alimentação, nas er vas e nos remédios e não à Na atualidade. verifica-se a tendência em
temperatura do corpo. A menstruação, nessa cultura, é simplificar a relação entre o normal e o patológico e,
considerada doença “quente”; algumas frutas são ainda, a utopia no que se refere à crença de que todas
as doenças podem ser conhecidas mediante a tecnologia
proibidas para as mulheres nesse estado, porque são
de ponta e tratadas pela farmacodinâmica.
frias e podem coagular o sangue menstrual. O excesso
A observação da doença no corpo é o ponto
da fleuma está associado às doenças frias;enquanto a
de ligação da história deste, sofrer, desta dor com o olhar
bile amarela é responsável pelo temperamento colérico,
do outro corpo, que o esta percebendo; não pode ser
enquanto a bile preta pela melancolia.
sentida apenas segundo o aspecto biológico do körper
Verifica-se que a preocupação com a
reduz-se o corpo à matéria orgânica nem compreendida
compreensão do corpo doente e da doença se faz segundo parâmetros preestabelecidos, conforme o
presente desde o homem primitivo. Nesta época, as modelo vigente, que compreende as alterações de saúde
doenças eram vistas como resultantes da ausência de como decorrentes de alterações anátomofisiológicas que
alguns princípios vitais; em outros momentos como algo podem ser demonstradas objetivamente. mensuradas e
nefasto, resultante de algo impuro, profano e perverso devidamente explicadas. Tal modelo é centrado na doença
(Berlinguer, 1988). Hoje, na pós modernidade, a doença e não no corpo doente, pois considera pouco expressivos
é c o ns i d e r ada c o m o r e sult a nte d e p r o c e s s o s os aspectos relacionados com as crenças, com a
autodestrutivos, de estilos de vida insalubres, causadas condição sócio econômica do cliente no diagnóstico e
por agentes externos ao organismo, como tristeza e tratamento das doenças.
dependência; ou sendo vista também, como algo sujo, O corpo, no setor saúde, é cuidado
discriminador, que aterroriza, ou como uma praga, como conforme o modelo médico; é alvo de interesse da religião,
um sinal do final dos tempos, (Polak, 1995). da família e do Estado; é foco de atenção e de crenças
Capra (1982) apresenta uma concepção de que regulam o seu comportamento e a sua forma de
saúde como resultante de um equilíbrio harmónico entre existir no mundo. É no contexto sóciocultural que
os dois elementos cósmicos yang - quente-seco e aprendemos a diferenciar, a classificar o corpo como,
masculino, e o yin considerado como escuro, úmido e “jovem” ou “idoso”, o corpo “saudável” ou “doente”, e a
feminino. Esta visão considera a doença como resultante perceber que o nosso corpo é dividido pela cultura em
do desequilíbrio entre esses dois elementos. partes “públicas” e outras “privadas”, a ver que temos um
Como pode ser visto, estas concepções corpo individual e outro social, que é disciplinado pelo
ressaltam o corpo-natureza; estão presentes também nas Estado, ou seja pelo “corpo político” que determina o como
terminologias usadas no setor saúde, com referência às vestir-se, alimentar-se e determina o seu comportamento
descrições das dietas, da temperatura do tipo de dor e das face às questões de saúde, doença e outras.
eliminações como: frio, quente, úmido, seco, viscoso, O corpo, por outra, é vítima de “mau
fresco, em queimação, ou ardente e outras. Os aspectos olhado,de bruxarias, que são responsáveis por alterações
naturais estão relacionados com o meio ambiente, de saúde, o que justifica a presença do feiticeiro e da

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benzedeira, mesmo na sociedade atual. Eles possuem o humanos; eles contêm em si as questões morais,
poder de manipular e modificar as ocorrências naturais e políticas e sociais do momento. Mesmo as terapias
sobrenaturais (Heiman, 1994) preventivas, como a prescrição de exercícios, de dietas
A concepção antiga do corpo como objeto. ricas em fibras ou vitaminas, isentas de lípides não visam
algo nocivo, veiculo e instrumento da alma do qual esta apenas à longevidade, à saúde, mas do corpo produtivo
precisa libertar-se. coteja com a concepção da doença- e à estabilidade do corpo político. Todas essas práticas
castigo. produto da “ira” ou “alerta” dos deuses, por institucionalizadas são vetores do poder. A tecnologia do
causa de determinado comportamento. poder sobre o corpo é chamada por Foucault (1987)
Registra-se, ainda, outro olhar, uma tecnologia da alma, da qual médicos, enfermeiras e
tendência a ver um corpo “interior” e um corpo “exterior”, nutricionistas constituem instrumentos.
compartimentalizando em dois invólucros, um externo e O sistema de saúde vigente transforma o
outro interno; é o externo o protetor das partes nobres e cliente em ser passivo, em paciente que se entrega à
vitais. O invólucro interno contém em si certa magia, tecnologia farmacodinâmica. cirúrgica e laboratorial.
certo mistério, é alvo das dissecações, das punções e
Assumindo, muitas vezes uma identidade de maior
das inter pretaç ões da enfer meira e de demais
conformidade com o contexto, o que pode ser código: por
componentes da equipe de saúde. O corpo externo ç o
que visto, é o evidente, o concreto. exemplo o número 5 (cinco) da ala azul. ou o paciente do
A dicotomia corpo-mente e corpo-espírito. seguro; ou passa ser conhecido, segundo o diagnóstico,
reiterada pelo pensamento racionalista, determina a como canceroso, o gotoso, ou o comatoso. A questão da
visão e o como o corpo é tratado na modernidade e na disciplina e do controle são constituintes da política do
idade contemporânea no contexto da saúde:: o corpo é detalhe presente na instituição.
visto como máquina que deve ser revisada, ter as suas Como enfermeira vivencio o poder desta
p e ç as t r o c adas, par a qu e s e r e st aure o b o m disciplina o poder do controle em nosso processo,
funcionamento, ou o retorno eficaz ao mundo de mediante toda uma teia coercitiva, existente no contexto
produção e consumo. da saúde e expressa pelas questões referentes à
O cuidado da mente, dissociado do corpo frequência, assiduidade, pontualidade, a forma como as
também merece registro. A mente humana passa com ações de enfermagem são desenvolvidas, aém disso, há
Freud a ser objeto de estudo: o corpo nessa concepção, o controle, da postura adotada pela enfermeira no
é secundário, considerado como o guardião da mente.; desenvolvimento dessas ações e dos seus gestos
ela, por sua vez, é considerada superior ao corpo. Há corporais. A política do detalhe é observada nas
visão de um corpo passivo, do corpo objeto, que deve ser reprovações sutis, como as relacionadas à forma de
domesticado, para que possa ser útil e obediente ao vestir, de sentar, o modo como às enfermeiras se
sistema. O corpo é reduzido a campo de energia na aproximam do cliente ou da equipe. Há exigência de
forma de desejo, movido por impulsos por necessidades aparência saudável, alegre, desconsiderando-se que a
e instintos. O pensamento freudiano reitera o dualismo enfermeira é também pessoa e não máquina programada
cartesiano na filosofia contemporânea (Schilder, 1994) para estar feliz; não que o mau-humor e agressividade
No contexto hospitalar, convive-se com sejam justificáveis.
corpos portadores de algumas enfermidades e afecções A questão do poder e da disciplina leva-nos
que foram ou encontram-se submetidos a terapias, a perceber o quanto o corpo se submete às regras do
corpos que expressam em si os dilemas dos controles saber científico e tecnológico, condicionando-se a
sociais, a regulação institucional sobre as suas obedecer a esse tipo de saber e de fazer. A obediência
c or poreidades. onde as afec ç ões são sempre
é expressa quando o cliente se entrega aparentemente
metafóricas, simbolizando algum tipo de desordem social
com simplicidade aos cuidados e aceitar o que lhe é
e esta. por sua vez. uma desordem pessoal.
A principal estrutura científica de saúde no imposto, adaptando-se aos modelos oficializados por
modelo vigente é representada pelo hospital que possui considerá-los verdadeiros (Foucault,1987)
a sua própria cultura, onde os clientes formam Devo enfatizar que é em nome dessas
c o muni dade s temp o r ár ias de s of r im ento e de verdades que a enfermeira, possuidora de saber e de
solidariedade. Ele é instituição de vigilância e inspeção. poder, presta cuidados aos corpos viventes, que se
exigência da sociedade que não deseja cuidar, manipular submetem a tratamentos dentro de cenário frio e
secreções, conviver com odores e dores dos corpos dos totalmente diferente do seu ambiente anterio; ambiente
seus familiares; delega esta responsabilidade a onde a luz, os cheiros, as cores, as faces que os cercam
profissionais que detêm saber e poder sobre a doença, são totalmente estranhos. Para reiterar todo este clima
legitimado pela cultura. angustiante, até a terminologia difere e o faz sentir-se
No cenário hospitalar, os procedimentos e cada vez mais estranho: no entanto, ironicamente, aceita
os rituais presentes no processo de trabalho, quer seja sem resistência aparente a nova situação, pois é isto que
na esfera assistencial, educativa, administrativa ou na a sociedade e o sistema lhe oferece, e o sistam reitera
pesquisa não são neutros, como não o são os atos que é bom.

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Ao desenvolver os procedimentos técnicos, profissionais de saúde, que desconhecem o quanto vale


ao prestar cuidados conforme a concepção vigente, a a sua força de trabalho e desenvolvem mecanicamente
enfermeira impede a criatividade, cerceia as suas ações profissionais.
inconscientemente o desejo de o cliente participar no Sublinhe-se que, no contexto da saúde
cuidado, não o considera enquanto corporeidade. tanto o corpo da enfermeira como o do cliente e o da
Ao se pensar a questão da corporeidade, equipe de saúde estão sujeitos à política do poder que
deve-se atentar para todos os aspectos que envolvem o cerceia subliminarmente o seu agir. o seu pensar, e os
cliente durante a hospitalização, pela própria pessoa do leva aceitar sem refletir e sem criticar tudo o que o social,
cliente, pelos móveis existentes nas enfermarias, ou nos da cultura, impõe-lhes, fazendo crescer, juntamente com
quartos individuais, pelo número dado ao cliente ao ser a docilidade, a utilidade em ambos (Foucault,1987)
hospitalizado, pela retirada dos seus pertences, pelo leito O fazer da enfermagem neste modelo é
que lhe é destinado, pelo direito de escolha que lhe é fazer justaposto e não interativo. A equipe de
agressivamente negado. O cliente perde todo o controle enfermagem desconhece a teia de poder que permeia
sobre os seu atos como também sobre o uso do seu todas as dimensões das suas práticas que interfere no
tempo. A hospitalização acarreta também para o cliente seu planejamento e na qualidade da assistência
uma perda da sua privacidade; o convívio com pessoas prestada. O poder político leva a enfermeira ao
estranhas; e passa a conviver distante de seus desenvolvimento de ações de dependência, ou seja, para
significantes, submete-se ás regras da instituição, que o outro e não com o outro. Este fazer acarrreta um
dizem visar unicamente ao seu bem estar. Os controles distanciamento da enfermeira e do cliente; não lhe
e, as ações disciplinadoras controlam, diferenciam, permiti perceber ou escutar as suas reais necessidades,
homogeinizam, excluem e normatizam (Foucault 1987) obriga-se a prescrever conforme as determinações de
A questão do controle permeia todo o outros profissionais, desenvolvendo, assim, ações
processo de cuidado e de cura, classificando o corpo complementares e fracionadas.
doente segundo uma escala hierárquica de doenças, A concepção de corpo vigente no setor
conforme um código de seguro saúde e de avaliações ( saúde reitera a dicotomia corpo mente, corpo-alma leva
médica.de assistência-social, ou de auditores). O corpo a enfermeira a desenvolver uma prática norteada apenas
vive no império dos controles e das avaliações, em nome pela ciência e pela tecnologia; não valorizando o corpo
do bem-estar-econômico e social. do cliente nem dos profissionais de saúde, como corpos
Esse corpo doente e desarmonizado, viventes com a sua história, com os seus direitos e
submete-se aos ritos, como foco e motivo da existência deveres; não considerando o humano nas relações com
dos mesmos. Na medicina da pós modernidade, o corpo o outro com o mundo e consigo próprio.
é visto e tratado aos pedaç os em vir tude das Conforme o exposto acredito que nós,
especializações: é o lugar para onde convergem todas enfermeiras, os demais profissionais da saúde e o cliente
as forças do poder e o local de aplicação de todos os não se percebem como sendo um corpo mas, sim, como
procedimentos tecnológicos. tendo um corpo, um corpo que age conforme os
Os procedimentos cruentos do hospital interesses instituicionais, que desconhece o seu poder
fazem parte do ritual litúrgico da recuperação; o corpo é de organização, que se encontra perdido nesta teia
submetido a trações. os ossos fixados com pinos, as coercetiva que permeia o mundo da saúde,
vísceras, os músculos, os tendões suturados com fios de normatizando, controlando e disciplinando. Ésta
diferentes tipos de absorção. O corpo é privado de realidade faz sentir ser necessária a inserção de outras
alimentos e de água, privado do paladar, nutrido por vias abordagens, de novas concepções que modifiquem este
artificiais, com nutrientes oriundos da alta tecnologia, que cenário, que permitam o emergir do corpo expressão,
promovem crescimento e desenvolvimento. Vê-se o fala, linguagem, sensação e percepção. Um corpo
corpo submetido a observações a mensurações em vista inovador, emotivo, um corpo simbólico, prenhe de
do controle das suas funções, da correção de distúrbios significados, pois ele é o marco para toda e qualquer
que possam dificultar o processo de recuperação; corpo abordagem sobre o homem, o lugar onde tudo se dá,
vestido ou desnudo, mobiliz ado, massageado, onde tudo permanece, fala e se mostra (Merleau-
oxigenado, com orifícios lubrificados; corpo sujeito às Ponty,1971).
regras do poder e do saber aceito, pela maioria sem Esta percepç ão de c orpo permite à
contestação. enfermeira ver seu corpo e o corpo do outro como uma
Observa-se a luta silenciosa contra a realidade que se expõe a diferentes percepções,
política de saúde injusta, cujos programas são feitos para mediante inúmeras possibilidades expressivas
beneficiar os que os financiam, o que é facilmente instauradas pela dinâmica da corporeirdade.
constatado pelo alto preço dos procedimentos e das A corporeirade evidencia a possibilidade de
unidades sofisticadas de internação faltam leitos e ser corpo, a apropriação de uma infinidade de atos
equipamentos para os corpos menos privilegiados descontínuos, núcleos significativos que superam e
economicamente; há os baixos salários a alienação dos transformam a forma natural do corpo. É o corpo

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expressão, sensação, que possibilita à enfermeira e ao 3 CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo :
cliente tomarem consciência de seu poder ou de sua Cultriz, 1982.
submissão, descobrir a sua capacidade de tomada de
decisão, sua autonomia mediante diálogo existencial, 4 FOUCAULT, Michel, vigiar e punir: nascimento da
contínuo, no qual o corpo falante obrigatoriamente está prisão ; Ponde Vassalo. Petrópolis : Vozes, 1987.
envolvido.
Com esta visão de corpo sensação, de 5 HELMAN, Cecil. G Cultura, saúde e doença. 2. ed.
corpo expressão, as ações de cuidado e de cura, têm Porto Alegre : Artes Médicas, 1994.
como foco o corpo vivente, ou seja, o sujeito deflagrador
destas práticas. Vale ressaltar que esta concepção de 6 MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção.
corpo, exige compreensão do corpo em sua totalidade, São Paulo : Freitas Bastos, 1971.
percepção da teia de relações existentes entre o corpo,
o mundo e o outro. 7 POLAK, Ymiracy N. de Souza.et al A concepção de
saúde da população adulta da Grandeclientela
Abstract This study is characterized as an em foco Curitiba. Digitado, 1995.
article of revision. which the purpose to reflect about the
meanings of body in the health world. The author points 8 PAIXÃO, Waleska Páginas de enfermagem. 3. ed.
out some conceptions regarding health and disease and Rio de Janeiro : Bruno Buccini, 1993.
sacred and profane, present in the history of man, related
9 SCHLILDER, Paul. A imagem do corpo. São Paulo :
to the concept which was studied.
Martins Fonte, 1994
Key Words: body; health; disease: 10 SANTIN, Silvino. Educação física : da alegria do lúdico
profane; sacred à opressão do rendimento. Porto Alegre : ESTESEF,
UFRGS, 1994.
Referências bibliográficas

1 BERLINGUER, Giovanni A doença. São Paulo : Ymiiracy. N. de Souza Polak


Hucitec. 1988. Av. Paraná, 998. Apt°1301 Cabral
Tel 041-2528801
2 BOLTANSKI, LUC As classes sociais e o corpo. 3. C.E.P 80035-130 Curitiba PR
ed. Rio de Janeiro : Graal. 1989.

Cogitare Enfer., Curitiba, v. 1, n. 1, p. 9-9, jan./jul. 1996

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