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Percepção de saúde na etnia Guarani Mbyá e a atenção à saúde

ARTIGO ARTICLE
Perception of health among the Guarany Mbyá ethnic group
and health care

Almir de Amorim Von Held 1


Marianna Soares Chaves Lopes 1
Sônia Maria Neves Bittencourt de Sá 1
Dora de Oliveira e Silva Porto 1

Abstract The article results from a qualitative Resumo O artigo resulta de pesquisa qualitativa
research on the perception of health of the Guara- sobre a percepção de saúde da etnia Guarani Mbyá,
ny Mbyá ethnic group held in 3 villages in the realizada em três aldeias no Rio Grande do Sul e
South of Brazil. The cultural characteristics of the uma em Santa Catarina. As características cultu-
group were surveyed in the literature, observed in rais da etnia foram pesquisadas na literatura, ob-
fieldwork and confirmed in the 20 open interviews servadas no trabalho de campo e confirmadas nas
conducted with community members and health vinte entrevistas abertas realizadas com membros
professionals from the National Health Founda- das comunidades e profissionais de saúde da Fun-
tion (FUNASA), responsible for the basic assis- dação Nacional de Saúde (Funasa) que responde
tance to the villages. The results show that the pela assistência básica às aldeias. Os resultados
Mbyá consider the cultural shock with the sur- mostram que os Mbyá consideram o choque cul-
rounding society the main factor of illness, em- tural com a sociedade envolvente o principal fator
phasizing the importance of preserving and en- de adoecimento, enfatizando a importância de pre-
hancing their traditional way of living for main- servar e valorizar seu modo de vida tradicional
taining the health of individuals and communi- para a manutenção da saúde de indivíduos e cole-
ties. The data allow to associate their health rep- tividades. Os dados permitem associar suas repre-
resentations to the land and social justice prob- sentações sobre saúde aos problemas fundiários e
lems experienced by the groups. They point to the de justiça social vivenciados pelos grupos. Apon-
importance of improving the training of the tech- tam a importância de aprimorar a formação dos
nical health staff, specifically related to the under- quadros técnicos de saúde, especificamente no que
standing of the inter-ethnic differences between diz respeito à compreensão das diferenças interét-
the Mbyá and Western culture to ensure the effec- nicas entre a cultura Mbyá e ocidental para ga-
tiveness of treatments and programs. The analyses rantir a efetividade de tratamentos e programas. A
also highlights positive and negative aspects of the análise ressalta ainda aspectos positivos e negati-
operationalization of health care in the villages vos na operacionalização da assistência à saúde
and in the final considerations are given sugges- nas aldeias e, nas considerações finais, são apre-
1
Cátedra UNESCO de
Bioética, Faculdade de tions aiming its improvement. sentadas sugestões para seu aprimoramento.
Ciências da Saúde, Key words Health, Bioethics, Moral strangers, Palavras-chave Saúde, Bioética, Estranhos mo-
Universidade de Brasília.
Inter-ethnic contact, Guarany Mbyá ethnic group rais, Contato interétnico, etnia Guarani Mbyá
Caixa Postal 04451.
70904-970 Brasília DF.
bioetica@unb.br
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Von Held AA et al.

Quem são os Guarani Mbyá A primeira condição para consubstanciar essa


cosmogonia fundante dos Mbyá é a de que os
A população indígena brasileira é estimada em tekoa estejam localizados em áreas com recursos
mais de quinhentas mil pessoas, pertencentes a naturais preservados, permitindo a privacidade
230 povos com 180 línguas. Dentre estes, acredi- da comunidade e o manejo de espécies tradicio-
ta-se que os Guarani Mbyá sejam entre seis mil e nais destinadas a garantir a subsistência1. Essa
nove mil indivíduos, que falam a língua Guarani, proximidade da mata, fundamental para a ma-
do tronco Tupi. nutenção da dinâmica social, religiosa e econô-
A nação Guarani habita áreas do Paraguai e mica do tekoa, condiciona a sobrevivência da
Nordeste da Argentina. Diferenças dialetais e cul- comunidade, tanto efetivamente quanto na di-
turais estabeleceram três denominações para a mensão simbólica: Esses lugares, procurados ain-
etnia: Kaiowá, Nhandeva e Mbyá. No Brasil, os da hoje pelos Mbyá, apresentam elementos da flora
Nhandeva e os Mbyá vivem em aldeias no litoral, e da fauna típicos da Mata Atlântica, formações
concentrando-se nos estados do Sul e Sudeste, e rochosas e mesmo ruínas de edificações antigas,
os Kaiowá, em áreas do Mato Grosso do Sul. indícios que confirmam a tradição. Formar aldei-
Apesar de não se verem como nômades nem as nesses lugares “eleitos” significa estar mais perto
seminômades, seus movimentos migratórios vêm do mundo celestial, pois, para muitos, é a partir
sendo registrados ao longo da história. A mobi- desses locais que o acesso a Yvy Marãey , “Terra
lidade espacial reflete sua concepção de mundo, sem Mal”, é facilitado - objetivo histórico perpetu-
na qual a noção de território está baseada nas ado pelos Mbyá através de seus mitos1.
dinâmicas sociais, econômicas, políticas entre as Essa relação entre a dimensão sagrada e o
aldeias (tekoa), englobando ainda as relações com mundo, manifesta na importância das matas, flo-
outros grupos étnicos1. Esse processo de contato restas, rios e das espécies da flora e fauna, esten-
constante entre pessoas de tekoa diferentes é o de-se também às terras destinadas ao cultivo, às
que delimita a noção de território, entendido quais também são presente de Nhanderu (Deus),
como espaço onde se dão as relações da comuni- fazendo parte da cosmogonia que orienta as no-
dade. As razões para o deslocamento entre os ções estruturais e as relações com o mundo. Disse
tekoa incluem visitas a parentes, encontros para um entrevistado, indígena residente na Terra In-
realizações de rituais, bem como trocas de maté- dígena Lomba do Pinheiro (RS): “O que os Gua-
rias-primas para artesanato e cultivo. Dada essa rani não podem perder para manter a saúde? A
dinâmica, é difícil definir com precisão a quanti- terra”. Dentre as espécies cultivadas, destaca-se o
dade de pessoas em cada tekoa, que pode variar milho indígena, avati, base da alimentação tradi-
entre quarenta e poucas a centenas de indivídu- cional, considerado sagrado por ter sido presente
os. Quanto à localização, os grupos menores ten- de Nhanderu. Compõe também sua agricultura
dem a estar perto dos centros urbanos e ao lon- de subsistência o cultivo da mandioca (mandió
go de rodovias e os maiores, no interior, prefe- eté), batata-doce (jety), frutas, chá-mate (ka`á),
rencialmente junto à mata. melancia, abóbora, cana, amendoim (manduvi).
Esse constante deslocamento ou caminhadas Dadas as características desse modo de pro-
(guata) obedece muitas vezes a razões de ordem dução, sua dieta é baseada na coleta, na pesca e
prática, mas tem também importante função ri- caça, bem como no consumo de cereais, raízes e
tual, reconstruindo no cotidiano a cosmogonia e leguminosas cultivados. Segundo eles, esses ali-
renovando a memória do mito da fundação do mentos mantêm a pessoa saudável e equilibram
mundo e de seus heróis, personificados pelos lí- o corpo. Almeida menciona ainda que “as casas
deres xamânicos: A caminhada da comunidade, Guarani têm sempre ao redor do pátio verdadei-
unida pela solidariedade e as alianças familiares, ras farmácias de pohã ñana (ervas)” 4. As pesso-
institui o mundo Mbyá, nomeando-o. O caminhar as que possuem o conhecimento sobre o uso des-
simboliza a trajetória da existência coletiva e in- ses remédios são chamadas mba’y e kua’a.
dividual na construção do mundo terreno, o pro- A organização espacial dos tekoa também re-
cesso contínuo de realização do destino do indiví- produz as crenças Mbyá, sendo essencial à cons-
duo e da sociedade2. Guimarães ressalta que a vida trução das identidades e à reprodução de modos
social em uma aldeia Mbyá está totalmente entre- de vida e comportamento que instauram a no-
laçada com os diversos planos e regiões do Cosmo. ção de pertencimento. Pela tradição, a casa de
Talvez fosse melhor dizer que a vida desta etnia oração, opy, deve ser o centro de referência do
neste mundo depende das rotas que ligam às di- tekoa. Todas as aldeias possuem opy, na qual os
mensões do Cosmo3. karaí (rezadores) identificam o tipo de doença
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do indivíduo: as práticas religiosas dos Mbyá são rada na convicção de não aderir às práticas e va-
frequentes e se estendem por muitas horas. Orien- lores que se contraponham às noções comunitá-
tadas pelo dirigente espiritual as “rezas” - realiza- rias. O sentido de liberdade e autonomia mani-
das através de cantos, danças e discursos - também festa-se na defesa de modos de vida que reafir-
se voltam às situações e necessidades corriqueiras mam a nhande rekó. Algumas comunidades re-
(colheita, ausência ou excesso de chuva, proble- jeitam a educação juruá e afirmam que já possu-
mas familiares, acontecimentos importantes, im- em a sua, sistematizada na aprendizagem da di-
previstos)1. nâmica coletiva cotidiana da própria nhande rekó,
Quanto à organização social, as famílias são, e que a prática da primeira, muitas vezes, preju-
em geral, extensas, compostas pelo casal, filhas, dica a segunda: “a nossa escola é o joguinho, a
genros e netos, constituindo uma unidade de oração, o chimarrão as histórias, dentro da nossa
produção e consumo: a “propriedade” das roças e experiência vivida. A gente sabe dentro do nosso
o consumo dos produtos é da família elementar, opy quando plantar o milho sagrado”, segundo um
depois do nascimento dos filhos do casal [...] o que indígena entrevistado, também residente na Terra
não exclui os serviços nas roças do sogro e a reali- Indígena Lomba do Pinheiro (RS).
zação de mutirões entre as famílias1. São avessos Com relação à saúde, exercem sua autono-
ao conceito de posse como propriedade indivi- mia frente à moralidade juruá, mantendo suas
dual e as decisões são tomadas na coletividade, opiniões e visões de mundo. Se lhes são impos-
pela consulta a parentes (vivos e mortos). tos valores ou razões que não compartilham,
Normalmente os idosos, tamõi (classificação simplesmente não aderem às políticas, progra-
genérica próxima ao sentido de avô), são consi- mas ou tratamentos de saúde. Quando se mani-
derados conselheiros. Sendo os que mais conhe- festa a condição que identificam como doença,
cem o mundo espiritual, tornam-se guias dos procuram o karaí na opy; só buscam a medicina
jovens: “os idosos são as raízes, pois eles têm a juruá se comprovado que se trata de doença de
sabedoria”, segundo mencionou o indigenista branco. Adotam a terapêutica tradicional, base-
Witt5. A importância da sabedoria desses tamõi ada em regime alimentar e interdições, no uso de
para a dinâmica social pode ser inferida na for- leite materno, gordura e cinzas de animais ou
ma como percebem e agem no cotidiano: Para os plantas, preparados como chás e unguentos, apli-
Mbyá o cotidiano está impregnado de relações mí- cados em fricções4.
ticas, advindas da comunicação com as divinda- A maneira como concebem e vivenciam a re-
des. Assim, as tradições são postas em prática secu- lação saúde/doença também está associada à es-
larmente, segundo os princípios dos mitos que fun- piritualidade e à cosmologia. Para eles, a doença
damentam o pensamento e ações dos Mbyá1. pode surgir na pessoa porque a sociedade está
A organização temporal também reflete a di- doente. Então, para falar da doença, é preciso
nâmica coletiva. Diferente dos juruá (brancos), o deslocar o problema do indivíduo para o coleti-
tempo não é função da produtividade ou orde- vo, nos tipos de relações que se estabelecem na
nado por padrões fixos de organização do tra- sociedade, na natureza e no sobrenatural. Na
balho. Tudo ocorre conforme a necessidade, já anamnese, o karaí pergunta sobre eventuais trau-
que não há na tradição a ideia de progresso a mas, sonhos, pesadelos e sustos do paciente (e
perseguir, nem de acumulação exaustiva de bens de seus parentes) para, enfim, prescrever o trata-
materiais. mento. Assim, transcende a dimensão física do
Os Mbyá buscam fortemente manter seu paciente para produzir o diagnóstico.
ethos, construído em torno de quatro princípios: Por serem historicamente ágrafos e seguirem a
obedecer a Nhanderu; serem guardiões das flo- tradição oral, valorizam bastante as palavras. As
restas; serem seres em liberdade e buscarem a boas palavras e os cantos são extremamente im-
“Terra sem Mal”, Yvy Marãey. Esses princípios portantes para viver de acordo com a nhande rekó,
condicionam a nhande rekó (algo como “nossa pois, inspiradas espiritualmente, têm poder de ori-
forma de ser Guarani”). Assim, o bom Guarani entar. Para os Mbyá, falar se confunde com o pró-
é aquele que vive de acordo com a tradição, por prio ser: o nome é a pessoa, reconhecida pela ento-
meio da qual pode atingir o aguyje, um estado de nação da voz e pela cadência da fala. Nesse contex-
elevação espiritual que ajuda a deixar a “terra to, somente os que falam o idioma são considera-
imperfeita” e alcançar a Yvy Marãey. dos membros da tribo, sinalizando que o pertenci-
Como acreditam que são seres em liberdade, mento é definido pelo domínio da palavra.
buscam evitar o confronto; exercem sua auto- Essa breve descrição da vida social e visão de
nomia por uma aparente não resistência, anco- mundo dos Mbyá mostra que a nhande rekó pode
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ser associada à vida boa ou felicidade, segundo a também quatro pessoas na Aldeia Araçaí, em San-
definição grega, ou à qualidade de vida, na classi- ta Catarina. Em todas as localidades, foram entre-
ficação atual. Nesse contexto, a saúde deriva da vistados o cacique, profissionais da Fundação Na-
manutenção do modo de vida tradicional, asso- cional de Saúde – Funasa (enfermeiros, técnicos e
ciada aos fatores objetivos, do ambiente natural auxiliares) e os agentes de saúde indígenas (AIS),
e social, e condicionada àqueles relacionados à membros da aldeia, capacitados para assistência.
dinâmica da comunidade, à obediência à nhande Também foram feitas mais três entrevistas com
rekó. Para esse povo, viver segundo “o nosso jei- enfermeira do Pólo Base da Funasa em Chapecó
to de ser Guarani”, ou seja, garantir este ethos, é a (SC), com antropóloga da Fundação Nacional do
razão de sua resistência à aculturação, o que im- Índio (Funai) em Brasília e com indigenista da
plicitamente se traduz em saúde. Funai/RS, totalizando vinte depoimentos.
A técnica foi a entrevista aberta, a partir de
roteiro semi-estruturado focado na representa-
Método ção de saúde da etnia Mbyá. Procurou-se levan-
tar como se dá a relação entre a Funasa e os Mbyá
De cunho qualitativo, o trabalho de campo contou e se consideram que há respeito a suas tradições
com dezessete entrevistas em três comunidades in- no que concerne ao tratamento.
dígenas do Rio Grande do Sul (RS) e uma em San- Foram feitas duas visitas a cada aldeia, inter-
ta Catarina (SC) em novembro de 2007 (Figura 1). mediadas pelo indigenista Witt, que acompanhou
No primeiro estado, foram visitadas a Aldeia Lomba a equipe no Rio Grande do Sul; a primeira para
do Pinheiro, na periferia da capital, onde foram apresentação e explicação da pesquisa e do ter-
feitas três entrevistas; a Aldeia de Inhakapetum, no mo de consentimento livre e esclarecido (TCLE)
Município de São Miguel das Missões; e a Aldeia e a segunda para as entrevistas, tomadas coleti-
Pacheca, Município de Camaquã, nas quais foram vamente. Devido à vulnerabilidade dos entrevis-
feitas cinco entrevistas cada. Foram entrevistadas tados, neste artigo, as falas não foram identifica-

T. I. Guarany de Araçaí

T. I. Inhakapetum

Comunidade da Lomba do
Pinheiro (Área urbana no
município de Porto Alegre)

T. I. Pacheca

TERRAS INDÍGENAS REFERIDAS

Figura 1. Localização das Terras Indígenas Inhakapetum, Pacheca e Lomba do Pinheiro (RS) e Araçaí (SC).
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das para garantir o anonimato, já que o material (normalmente por processos biométricos), pri-
foi tomado em um número restrito de localida- meiros socorros e diferentes tipos de atenção aos
des. Os depoimentos foram escritos e lidos para idosos. São os AIS que intermedeiam o atendi-
que os entrevistados validassem-nos. A pesquisa mento entre a aldeia e os centros de atendimen-
foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universi- to. Outra forma de assistir os índios idosos é
dade de Brasília. incluí-los nos programas de bolsa-família ou
aposentadoria.

Resultados Terra Indígena Inhakapetum

Terra Indígena Guarani da Pacheca Próxima a São Miguel das Missões, a qui-
nhentos quilômetros de Porto Alegre, a aldeia
Localizada a 160 quilômetros de Porto Ale- conta com 204 indígenas, uma das maiores da
gre, em Camaquã, a aldeia situa-se em área afas- região Sul. Distante mais de trinta quilômetros
tada três quilômetros da vila mais próxima. Con- de São Miguel, possui mata ciliar, rio, açude e
ta com aproximadamente oitenta indígenas. Está vasta área para plantação.
cercada de matas nativas e pelo Rio Camaquã, o A alimentação é composta por frutas silves-
que favorece a preservação da cultura e da forma tres, peixe, milho, batata-doce, além de produ-
de ser Guarani. tos industrializados. A roça segue o modelo de
No roçado de subsistência, cultivam os ali- subsistência. Um dos problemas observados pelo
mentos que consideram básicos, inclusive o ava- técnico da Funasa é que a época da colheita coin-
ti sagrado. As casas, feitas por eles, localizam-se cide com o período de maior presença de turistas
em posições que resguardam as famílias. Não há na região, que leva os jovens a deixar o campo
luz por decisão comunitária, com o que alguns para vender artesanato na cidade.
não concordam. Também não há água tratada. Há na aldeia um posto de saúde afastado do
A água é retirada do rio, a trezentos metros da centro, respeitando a opy. Também há campo de
aldeia. A maioria domina a farmacologia natu- futebol e escola juruá. As casas se mesclam entre
ral e cultivam pohã ñana (ervas medicinais) e as as típicas dos Mbyá e as construídas pelo gover-
mulheres fazem seus partos. no do estado. Possuem poço artesiano, água tra-
Foi possível observar forte coesão da comu- tada e rio. Segundo a técnica da Funasa, o pro-
nidade. Os mais velhos continuam a ser os guar- grama de saneamento e tratamento da água eli-
diões da sabedoria e da tradição de cura. O AIS minou 80% do problema de verminose e de diar-
respeita a hierarquia tribal bem como a tradição réia, diminuindo a mortalidade infantil.
da opy, sempre consultada em primeiro lugar no As doenças mais comuns relatadas pelo AIS e
atendimento. Foi relatado bom entrosamento técnicos da Funasa são problemas respiratórios,
entre Funasa e Funai. dermatológicos e dores de cabeça. Atuam de for-
A crença na “Terra sem Mal” é vista pelo gru- ma a esclarecer questões de saúde relacionadas a
po como fundamental para manter o ethos Gua- doenças sexualmente transmissíveis e acompa-
rani e o constante aperfeiçoamento espiritual. O nhar o desenvolvimento infantil. Com pelo me-
conceito de saúde envolve a harmonia entre cor- nos três visitas por semana, em seis anos de tra-
po, alimento e relação social. A alegria favorece a balho, os técnicos da Funasa criaram vínculo
saúde e esta pode ser obtida pelo cultivo de uma consistente com a comunidade.
boa terra e a presença da mata, que permite a Em suas falas, afirmam que, quando os Mbyá
obediência à vontade de Nhanderu. Para esta co- são respeitados em suas tradições, inclusive em
munidade, a guata é forma de aperfeiçoar a espi- relação à opy e à língua, participam efetivamente
ritualidade, promover a saúde e garantir o bem- dos tratamentos: “com o mínimo domínio do vo-
estar coletivo. Para eles, a doença pode ser pro- cábulo Guarani [pelo técnico de saúde], eles se tor-
vocada pela poluição, trazida pelo ar e pela falta naram mais confiantes”. Exemplifica isso a coleta
de harmonia no grupo. de escarro para o controle da tuberculose, à qual
Embora na aldeia não exista posto da Funa- a comunidade aderiu sem resistência, e a diluição
sa, a comunidade é atendida pelo menos uma de medicamentos em chás, selecionados confor-
vez por semana por enfermeiros na casa da cul- me a tradição, para promover sua aceitação. O
tura do índio. O AIS confirmou que a Funasa convencimento torna-se efetivo pela explicação
promove cursos de formação em vacinação, repetida e pela busca gradativa do envolvimento
acompanhamento do desenvolvimento infantil coletivo para conquistar a confiança.
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Com relação ao tratamento, respeitam a con- genista foi procurado para auxiliar sete mulhe-
sulta à opy como primeira etapa para identificar se res a resolverem problemas de identificação: cer-
a doença é de índio ou não. Contudo, na fala da tidão de nascimento, carteira de identidade, etc.
auxiliar de enfermagem da Funasa, sente-se o con- Apesar da tensão constante, os Mbyá dizem que
flito cultural: “A gente respeita, mas às vezes, nos dói. estão satisfeitos por estarem ali, ainda que en-
Muitas vezes, fico dividida entre a cultura e o agir. frentando adversidades. A ocupação da área per-
Tenho que agir. Há casos que são difíceis. O paciente mite certa autonomia, identificada como liber-
está ruim e tem que ir antes para a casa de reza, opy. dade e apontada nas entrevistas como um valor
Só que, algumas vezes, o tempo é fundamental. En- maior.
tão, rezo para que o karaí possa identificar o mais Entretanto, a proximidade dos juruás dificulta
rápido se a doença é de índio ou de branco”. manter tradições. Os mais velhos relatam que
Há bom vínculo entre os técnicos da Funasa, ainda conseguem influenciar os jovens na pro-
Funai e os Mbyá. O AIS estava satisfeito por ser cura à opy, para identificar doenças e tratamen-
representante da comunidade e pelo seu vínculo tos; contudo, isto se torna cada vez mais difícil
com os técnicos da Funasa. Estes deixaram claro dada a influência da sociedade envolvente. Ainda
que o atendimento e o respeito à cultura sofrem assim, afirmam que a visão de saúde Mbyá per-
com a rotatividade e a terceirização dos técnicos, manece relacionada à prática da oração, obedi-
que dificultam implementar programas oficiais ência a Nhanderu e aos conselhos dos karaí.
de promoção à saúde. Umas das críticas mais Exemplos citados são casos de alcoolismo, laten-
graves é que o governo federal deslocou a assis- tes na comunidade, e outros transtornos de saú-
tência à saúde da Funai para a Funasa, sem con- de, tratados (e curados) pelos karaí.
siderar o quadro de pessoal. Também se referem Os entrevistados salientaram que há uma
à desvalorização profissional, particularmente na barreira cultural entre os médicos e a visão de
contratação de terceirizados. Outra dificuldade saúde e higiene dos Mbyá, principalmente no tra-
para a assistência é a falta de transporte, pois to das crianças e na sua forma de educá-las quanto
dependem de veículo do Programa Saúde da Fa- à higiene pessoal: “O médico quer saber mais que
mília (PSF). o índio. O médico vem e diz que as crianças Gua-
rani não podem ficar peladas, pois podem pegar
Aldeia Lomba do Pinheiro doença. Só que criança Guarani pode se acostu-
mar com a terra e o tempo e isto não significa não
Localizada na periferia de Porto Alegre, a al- gostar da criança e não cuidá-la”.
deia tem 65 pessoas. Sua localização vulnerabili- Além do estranhamento dos médicos quan-
za o modo de vida Mbyá em vários aspectos. A to aos valores e concepções da comunidade, foi
construção do posto de saúde não levou em con- apontada a inexistência de atendimento da Fu-
ta a cosmologia Guarani, o que desgostou a co- nasa. Quanto à assistência nos hospitais ou cen-
munidade. Além de ter sido construído de ma- tros de saúde, mencionaram que, apesar de não
neira inadequada, o posto não está funcionan- se sentirem discriminados por serem indígenas,
do, tornando preocupante também a situação enfrentavam as mesmas dificuldades da popula-
de saúde do grupo. ção, como exemplifica o problema odontológico
A área física do aldeamento, encravada na da comunidade. Em geral, as mulheres fazem os
periferia urbana e com todos os problemas de próprios partos.
saneamento e organização social costumeiramen- Apesar de conseguirem manter seus rituais,
te observados nesses locais, não propicia a vida sua cultura parece muito afetada pela localização
comunitária segundo a nhande rekó. Há uma geográfica da aldeia e a forma como se estabelece
pequena mata que atende de maneira limitada às o contato interétnico. Em uma das falas mais
necessidades. A organização espacial na aldeia marcantes nessa localidade, identificou-se a des-
também é precária devido ao pouco espaço para crença na “Terra sem Mal”, tida como concepção
plantação. Apesar da construção de casas pelo ideológica para evitar que a etnia reivindique ter-
governo, a maioria optou por construir a sua ras. Os jovens se sentem duplamente excluídos,
própria, alegando que a dos brancos não permi- como se estivessem num “limbo” entre as duas
tia práticas como o “fazer o foguinho”. culturas. Um deles, que cursou até a oitava série,
A tensão cotidiana dessa situação é minimi- disse que gostaria de continuar estudando e se
zada pela relação com agentes do Ministério Pú- formar em Direito, mas o programa que favore-
blico e da Funai, pontes para o contato com a cia seus estudos terminou e ele não sabia se con-
sociedade juruá. Durante as entrevistas, o indi- seguiria prosseguir. Frente à falta de perspectivas,
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se dedicam à fabricação e venda de “bichinhos de aqui sem pressa e quando ficam conversando com
madeira”, que também é parte da tradição. a gente”.
Com relação ao controle social, foi relatado Foi ressaltado, em todas as entrevistas, a cons-
que falta espaço institucional para efetivamente tante angústia decorrente do problema fundiá-
serem ouvidos na questão da saúde, particular- rio, da necessidade de terra boa para viver e para
mente na relação com a Funasa. o roçado. Essa situação impede que se vivencie
plenamente a nhande rekó, repercutindo na qua-
Aldeia Araçaí lidade de vida e saúde da comunidade, tanto in-
dividual quanto coletivamente.
Localizada em Chapecó (SC), com 120 habi-
tantes, essa aldeia enfrenta grave problema fun-
diário, pois os Mbyá não possuem terras, mo- Discussão
rando de favor em área Kaingang. Tendo sido
expulsos de suas terras de forma violenta duran- O Decreto Lei no 3.156/99 dispõe sobre as condi-
te a madrugada, continuam a enfrentar cons- ções para prestação de assistência à saúde dos
tantes mudanças, na maioria das vezes ocasio- povos indígenas no âmbito do Sistema Único de
nadas por medidas judiciais, impetradas por fa- Saúde (SUS), reiterando o cumprimento da Lei
zendeiros, para retirá-los de “suas” terras. Ape- no 8.080/90, cujos objetivos são a universalidade,
sar de na área ocupada existir alguma mata nati- integralidade e equanimidade dos serviços. Atu-
va e o Rio Irani, a agricultura é rudimentar, devi- almente, a assistência é prestada pela Funasa, que
do à instabilidade fundiária. Pela mesma razão, aloca profissionais para trabalhar na assistência
moram em casa de madeira ou barraco de lona básica nas aldeias, sendo responsável também
plástica: “Ficamos na terras de Nonoai, agora es- por assegurar a prestação nos demais níveis,
tamos aqui na terra Chimbangue, morando de fa- mediante o encaminhamento a hospitais e ou-
vor. Tem até mato e água, mas não é a nossa terra”. tras unidades de saúde.
Sobre a visão de saúde, pode-se dizer que, de Dentre os nove incisos do parágrafo 2o da-
modo geral, associam-na à educação, religião, ter- quele decreto, voltados a regulamentar aspectos
ra e alimentos. Segundo relatado, esses aspectos específicos da assistência básica à saúde indíge-
da vida não podem ser separados sob pena de na, destacam-se dois nessa análise, que se refe-
trazer tristeza e doença: “Não se pode separar saúde. rem à dimensão social das comunidades e apon-
É uma corrente. Muitas vezes vem a doença porque tam a importância de reconhecer suas especifici-
a gente perde uma coisa, pode ser a terra, o mato, dades culturais e contribuir para seu equilíbrio5.
então vem a tristeza e a doença”. Outro entrevista- Quanto a essas determinações de cunho social, é
do assegura: “Muita doença vem da comida. Quan- importante apontar a grande diferença no que
do a gente come o milho, e as coisas da terra, não concerne à localização e recursos naturais dispo-
vem doença. As crianças sempre têm que ir tratar na níveis entre as aldeias visitadas, que parecem guar-
cidade. Acho que é comida errada, come muita bes- dar estreita relação tanto com a percepção, quan-
teira, bala, doce. Adulto também come, mas o verda- to com as condições de saúde da comunidade em
deiro Guarani deve comer somente o que a terra cada uma delas. As entrevistas permitiram iden-
produz”. Também remete a isso a fala que relacio- tificar que, mesmo em contato contínuo com os
na saúde e espaço físico: “Os remédios a gente tira juruá, nas aldeias em que os Mbyá conseguem
do mato, ou planta perto da casa. Se a gente não tem viver de acordo com o nhande rekó, Pacheca,
mato e nem tem casa, aí fica difícil. Muitas vezes o Inhakapetum e, até certo ponto Araçaí, tal repre-
branco não entende isso e nos dão os comprimidos, sentação espelha a noção de qualidade de vida e
que também serve, mas o remédio melhor é a terra funde-se à ideia de saúde.
com tudo nela. Hoje a terra está nua, tiraram a Nessas três comunidades, a presença das
roupa dela, não tem árvores. Isso traz doenças”. matas e da água, a possibilidade de cultivar a
Quanto à relação com a Funasa e Funai, os terra no plantio do avati e das espécies destina-
relatos mostram que, em alguma medida, o es- das a tratamento, assim como a manutenção das
tranhamento foi minimizado e estabelecido o dinâmicas sociais tradicionais, como a opy, o res-
diálogo: “Tem branco bom, que sabe como vive- peito aos karaí para identificação das doenças e a
mos e não fala mal de nós, vem da Funasa e Funai cura, bem como a guata para o aprimoramento
de Chapecó, traz remédio, nos visita, a gente fica espiritual, podem ser relacionados àquilo que a
um pouco feliz. Alguns entendem que temos nossa sociedade juruá convencionou chamar de pro-
medicina e respeitam. Eu gosto quando chegam moção à saúde, como prevê o artigo 196 da Cons-
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Von Held AA et al.

tituição6. Segundo a observação e as entrevistas, ni, bem como respeitar suas crenças e rituais, são
a promoção à saúde por meio da garantia às condições essenciais para o sucesso na relação
condições objetivas para a manutenção do nhande terapêutica. Nota-se, entretanto, que as iniciati-
rekó tende não somente a aumentar a autono- vas da Funasa para capacitar seus técnicos para
mia e emancipação das comunidades, mas tam- o contato ainda não são suficientes, seja no co-
bém a diminuir a necessidade de assistência dos nhecimento das peculiaridades culturais, da lín-
juruá para recuperar a saúde. Como a promo- gua ou mesmo quanto ao respeito à diversidade
ção da saúde pode ser relacionada a essas práti- que precisa pautar as relações interétnicas. Como
cas autóctones, pode-se inferir a importância de consequência, as comunidades são vistas de for-
permitir e fomentar o modo de ser Guarani para ma assimétrica, pelo olhar da ideologia juruá,
garantir a saúde e a qualidade de vida das comu- que intensifica o estranhamento moral. Esse olhar
nidades, como previsto no Decreto no 3.156/997. assimétrico, por parte da sociedade não indígena,
Em contrapartida, em Lomba do Pinheiro, a pode ser observado na última coluna do Quadro
falta de espaço e recursos para viver de acordo 1, onde se encontra a comparação da visão de
com o nhande rekó faz com que a representação mundo, tanto da etnia Guarani Mbyá, como dos
da “Terra sem Mal” comece a ser vista como ideo- não indígenas (Juruá).
logia de dominação. Essa ruptura na dimensão O conceito de estranhos morais, de En-
simbólica parece ser consequência lógica da im- gelhardt, diz respeito às diferenças reais entre as
possibilidade de vivenciar o cotidiano de acordo visões morais de pessoas ou grupos, às quais po-
com a tradição, já que a cosmogonia Mbyá e a dem impedir (e frequentemente impedem) que
vida cotidiana do grupo não são percebidas como os participantes de uma controvérsia cheguem à
dimensões distintas1-3, como acontece na socie- resolução do conflito por meio do debate susten-
dade dos brancos, mas constituem um único tado por sadios argumentos racionais ou pelo re-
todo que orienta as práticas sociais e o compor- curso a uma autoridade moral comumente reco-
tamento. A situação observada nessa aldeia é nhecida, como menciona Engelhardt8, uma vez
preocupante, pois embora se admita que a cul- que não partilham de perspectiva cultural ou
tura não é estática e sim um processo social em moral a partir da qual possa ser estabelecido diá-
constante transformação4, tal ruptura com os logo. Pode-se delinear a complexidade do proble-
valores e crenças tradicionais pode vulnerabili- ma entre a sociedade juruá e os Mbyá, na compa-
zar ainda mais a comunidade caso a luta pela ração das categorias que sistematizam suas con-
terra, implicada nesses novos valores, não alcan- cepções de saúde e modo de vida.
ce o resultado esperado. Nesse caso, a equidade Apesar de não contarem com efetivo suporte
para a promoção da saúde é inviável. institucional para desempenhar suas atividades
Se viver de acordo com o modo de ser Gua- nas comunidades, as necessidades objetivas da
rani parece influenciar diretamente as condições comunicação com os indígenas motiva os técni-
de saúde, é inegável que a assistência também cos da Funasa a aprenderem sua língua e costu-
produz impacto. Nas aldeias onde a Funasa está mes. Este compromisso espontâneo tende a fa-
presente, garantindo em maior ou menor grau o vorecer o diálogo e se traduz em bioética, como
acesso aos serviços, constata-se que os proble- respeito, tolerância e compreensão das diferen-
mas de saúde tendem a ser resolvidos tecnica- ças morais e culturais. Porém, mesmo nesses ca-
mente, diminuindo a ocorrência de quadros crô- sos, em que buscam superar a lacuna do estra-
nicos. Foi observado nos depoimentos das al- nhamento cultural e moral, a dificuldade no con-
deias de Camacuã, Inhakapetum e Araçaí que tato interétnico subjaz, já que a assistência é ba-
quando há respeito às diferenças, é possível cons- seada na valorização da medicina e da cultura
truir boa relação entre as equipes da Funasa, brancas e desqualificação das práticas e concep-
Funai e os Mbyá. Apesar da Funai não mais atu- ções nativas. Isso tende a agravar a assimetria,
ar com a saúde indígena, na prática, colabora perpetuar o estranhamento e o choque cultural,
com a Funasa, facilitando a inter-relação entre dificultando ou inviabilizando a adesão ao trata-
os técnicos de saúde e as comunidades. mento e criando obstáculos ou impedindo que
A efetividade da assistência prestada por es- as lideranças sejam tomadas como interlocuto-
sas instituições relaciona-se diretamente com a res legítimos de controle social na definição de
cultura nativa, aproximando-se do princípio da políticas públicas.
beneficência proposto por Engelhardt: “Faça aos A assimetria faz com que a tolerância, estra-
outros o bem deles”8. Especialmente em relação tégia apontada por Engelhardt8 para superar o
à Funasa, o fato do técnico falar a língua Guara- estranhamento moral, deixe de produzir o resul-
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tado esperado: o consentimento. Quando uns social é visto pelos grupos indígenas como ativi-
têm poder para impor sua perspectiva e a outros dade política, exercida junto às instituições ges-
falta poder para recusá-la, a tolerância deixa de toras das políticas sanitárias, que podem facul-
ser instrumento para o diálogo e passa a refletir tar espaços de poder não apenas na luta pelo
dominação e subserviência9. direito à saúde, mas também no contexto geral
Tal é o caso dos povos indígenas brasileiros das relações interétnicas.
que, segundo o Estatuto do Índio (Lei no 6.001/ A legitimidade do poder político da liderança
73)10, não têm autonomia decisória, sendo tutela- é dada pela filiação ao grupo e o exercício de so-
dos pelo Estado. Se tal condição foi imposta sob lidariedade é direcionado pelas regras; caracte-
o argumento da proteção, é importante ressaltar rísticas da forma de organização com importan-
que não deixa de limitar a cidadania dos indiví- te reflexo no desenvolvimento do controle social.
duos e a autonomia dos grupos, diminuindo sua Mas, ouvir, entender e debater, peculiares ao ethos
autodeterminação como povo: sua capacidade de Mbyá, não são suficientes para garantir suas de-
definir os rumos de sua própria história. Exem- mandas frente à sociedade juruá. Como parte da
plifica isso o fato de nenhuma das 180 línguas resistência constante pela integridade de seu ethos,
indígenas serem reconhecidas como idioma ofici- os Mbyá buscam assegurar o exercício do con-
al brasileiro. A falta de autonomia e a assimetria trole social sobre as políticas públicas que lhes
em relação à sociedade e cultura juruá parecem se asseguram a assistência, participando dos fóruns
acentuar quando as aldeias localizam-se em áreas de discussões oficiais, como a Conferência dos
urbanas, circunstância na qual os Mbyá se sen- Povos Indígenas.
tem duplamente excluídos, por serem indígenas e Para minimizar a assimetria econômica das
por serem tratados como pobres. comunidades, políticas públicas assistencialistas
Os entrevistados apontam a posse da terra acabam por colaborar, direta ou indiretamente,
como um avanço na conquista das liberdades na assistência, com três tipos de ações: a cesta
fundamentais, facultadas aos demais cidadãos básica, a aposentadoria e a bolsa-família. A res-
do país. Relatam que as comunidades que pos- peito, Witt5 assevera que essas ações propiciam,
suem tal garantia têm um mínimo de autono- de forma positiva, a permanência nas aldeias,
mia, inclusive para decidir pela adesão ou não diminuem a mendicância, melhoram aspectos de
aos programas governamentais, seja em relação saúde; porém, geram acomodamento, dependên-
à moradia, educação ou saúde. De modo geral, cia e exploração, principalmente dos idosos. Res-
no entanto, a percepção dessa autonomia e par- salte-se que, ao longo da história indígena, o as-
ticipação nos mecanismos de controle social é sistencialismo foi crucial para a sobrevivência de
bastante restrita e que, como grupo, ainda estão algumas etnias, por isso o assunto necessita maior
longe de integrar as instâncias deliberativas do reflexão, que não cabe aqui. O assistencialismo
poder, para fazer valer suas escolhas na definição deve ser visto sempre como etapa passageira, para
dos programas a eles destinados, inclusive os de impulsionar a efetiva mudança da dependência
saúde. Garnelo et al.11,12 apontam que controle para a corresponsabilidade.

Quadro 1. Comparação da visão de mundo.


Categorias Paradigma de saúde Mbyá Paradigma de saúde juruá
Modo de produção Produção em pequena escala/Subsistência Produção em grande escala/consumo
Característica da dinâmica social Deslocamento/movimento Permanência/estabilidade
Parâmetro de sociabilidade Solidariedade Competição
Característica da propriedade Coletiva Privada
Parâmetro relacional Grupo Indivíduo
Característica da doença Psicossomática e espiritual Biológica
Percepção da causalidade Sociedade doente Indivíduo doente
Forma de tratamento Xamânica, fitoterápica, alimentar Alopática
Ideia de saúde Espiritualidade/corpo (integral) Saúde biomedicina (fragmentada)
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Von Held AA et al.

Valorizar o nhandé rekó e a liberdade, valor diretamente as comunidades (Funasa e Funai).


constituinte do ethos dessa etnia, é essencial para Além destas medidas pontuais, faz-se necessário
que os “vulnerados”13 possam se tornar sujeitos que a questão fundiária seja considerada a partir
autônomos, interagindo em condição de igual- da visão do próprio grupo, tomada como um
dade com os juruá: “quando falo de felicidade e dos pilares para a promoção de sua saúde.
tranquilidade não estou dizendo de afastar do bran- Em relação ao segundo aspecto, é preciso
co, mas deixar índio tranquilo, não chegar man- modificar a visão tecnicista que pauta o modelo
dando o que tem que ser feito. Aqui a família está de assistência à saúde nas aldeias, para fomentar
tranquila. Não queremos compromisso antes de vínculos estreitos com as comunidades aprimo-
avaliar o que é melhor para a aldeia. Qual o proje- rar a qualidade da capacitação dos profissionais
to que vai aplicar? As mulheres Guarani precisam que lidam com os Mbyá, particularmente quanto
de tranquilidade. Elas já sabem plantar no tempo à cultura e moralidade do grupo; valorizar os pro-
certo e com a natureza. Não precisa chegar nin- fissionais, diminuindo a rotatividade e a terceiri-
guém e dizer como plantar. Quanto mais tranqui- zação, e ampliar a inserção dos AIS bem como
lo, mais quieto, e isso é a felicidade”. dos representantes das aldeias (chefes), na defini-
ção das prioridades em políticas públicas. O res-
peito no contato interétnico pode resultar em pro-
Considerações finais cessos permanentes de reconstrução de saberes,
tanto para os Mbyá quanto para a sociedade en-
Esta análise apontou alguns aspectos da assis- volvente, promovendo a saúde por políticas am-
tência à saúde aos Mbyá que precisam ser me- bientais e de saneamento adequadas e efetivas.
lhorados para garantir efetividade na atenção: No que diz respeito à justiça, a pesquisa mos-
(1) melhoria no gerenciamento e operacionali- trou que se as racionalidades ocidental e indíge-
zação das políticas públicas; (2) simetria no con- na baseiam-se em sistemas de conhecimento e
tato interétnico e (3) justiça na distribuição dos paradigmas distintos; estes podem interagir e,
recursos para as comunidades indígenas, tal talvez, até se complementar, como observado em
como preconiza a bioética. Pacheca e Inhakapetum. Quando há respeito à
Quanto ao primeiro ponto, destacam-se: alteridade, o contato interétnico é menos assi-
melhorar a infraestrutura, inclusive de comuni- métrico. Assim, os grupos minoritários, como
cação e transporte; diminuir a burocracia institu- os Mbyá, tornam sua cultura visível, respeitada e
cional, pulverizada em onze instâncias federais legítima para não índios. Essa valorização da di-
(ministérios) e várias outras nos governos locais ferença e da diversidade é essencial para a digna
(estaduais e municipais); aprofundar o relacio- inserção dos Mbyá na sociedade brasileira, de
namento interinstitucional e melhorar a integra- acordo com o seu verdadeiro modo de ser.
ção entre os órgãos governamentais que assistem
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Colaboradores Referências

AA Von Held e SMNB Sá trabalharam igualmen- 1. Ladeira MI. Guarani Mbyá. Organização social,
te em todas as fases do artigo, desde a coleta de política e religiosa. Enciclopédia dos povos indígenas
no Brasil. Instituto Sócio Ambiental. [site da Inter-
dados no trabalho de campo até a elaboração e
net] [acessado 2008 mar 10] Disponível em: http://
redação final do artigo. DOS Porto participou do www.socioambiental.org/pib/epi/guaranimbya/soc.
delineamento da metodologia, análise dos dados, shtm
concepção teórica, orientação, revisão e redação 2. Cicarrone C. Drama e sensibilidade. Migração, xa-
final do artigo. MSC Lopes participou da elabo- manismo e mulheres guarani Mby’á. Revista das
Índias 2004; LXIV(230):81-96.
ração do artigo nas fases de concepção, delinea-
3. Guimarães SMF. A marcha cerimonial guarani-
mento e interpretação dos dados coletados. mbyá: anuário antropológico. Rio de Janeiro: Tem-
po Brasileiro; 2004. p. 151-192.
4. Almeida, RT. Breve comentário sobre a saúde e
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5. Witt F. Depoimentos e comentários do indigenista
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NAI no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. sil. Brasília: Senado Federal; 1988. p. 133.
7. Brasil. Decreto no 3.156, de 27 de agosto de 1999.
Dispõe sobre as condições para a prestação de as-
sistência à saúde dos povos indígenas e dá outras
providências. Diário Oficial da União 1999; 28 ago.
8. Engelhardt Jr. HT. As bases da bioética. In: En-
gelhardt Jr. HT. Fundamentos da bioética. São Pau-
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9. Garrafa V, Porto D. Bioética, poder e injustiça. São
Paulo: Loyola; 2003.
10. Brasil. Lei n o 6.001, de 19 de dezembro de 1973.
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11. Garnelo L, Sampaio S. Bases sócio-culturais do
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questões na região norte do Brasil. Cad Saude Pu-
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Artigo apresentado em 20/05/2008


Aprovado em 28/11/2008
Versão final apresentada em 26/12/2008

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