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borges, luiz c. Imaginário - usp, n° 9, pág.

69-98, 2003

para uma ontologia do tempo


em um recorte guarani mbyá

Luiz C. Borges*

"O que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas quando


alguém me pede uma explicação a respeito, já não sei mais..."
Santo Agostinho - Confissões

"Creio que é por preguiça que o mundo parece


ser o mesmo de um dia para outro"
Jean-Paul Sartre - A náusea

1. tempo e devir

A finalidade deste trabalho é problennatizar e compreender, a partir


da perspectiva da Análise de Discurso, a temporalidade como um
dos elementos constitutivos dos sistemas de representação dos
guarani mbyá. Dessa forma, não se tratará aqui nem de uma etno-
grafia do tempo guarani, nem tampouco de uma (possível) ontolo-
gia guarani do tempo. Buscar-se-á, antes, estabelecer as diretrizes
e margeamentos teóricos para a determinação ontológica e episte-
mológica da temporalidade guarani mbyá, tal qual esta pode ser
depreendida dos dados disponíveis, especialmente aqueles extra-
ídos das narrativas míticas.

Essa reflexão acerca do ser do tempo, ou do tempo enquanto ser, foi cladfdt J^uTetS
sugerida por uma leitura de Castoriadis (1992) e leva em considera- mia e Ciências Afins/MAST.

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ção três perguntas: a) existe um tempo instituinte guarani mbyá?; b)


se existe, como ele se representa no imaginário e no discurso gua-
rani?; c) há um pensamento guarani sobre o tempo? De fato, o que
se procura responder aqui concerne a compreender em que medida
o saber e o fazer do tempo mbyá se fazem discurso e, de outro lado,
como o discurso mbyá se insere nessa temporalidade.

Algumas razões de ordem prática e metodológica, contudo, delimi-


tam o escopo e a abordagem. Em primeiro lugar, no atual estágio
das pesquisas junto ao guarani, ainda não é possível afirmar se eles
desenvolveram, ou não, uma ontologia do tempo; conquanto possa-
mos, certamente, registrar a existência de uma temporalidade
mbyá. E é isso que podemos assegurar: existe uma experiência
vivencial desses guarani concernente ao tempo, a qual se manifesta
em seu cotidiano, em rituais e em sua mitologia. Em segundo lu-
gar, se não podemos, ainda, estabelecer um discurso ontológico
mbyá sobre o tempo, já constatamos que a sua discursividade, em
sua totalidade, incorpora e se incorpora (n)o tempo, bem como os
múltiplos sentidos e esferas ou recortes temporais nos quais eles
constroem seu existir. Essa incorporação se apresenta na forma de
dêiticos e outras marcações temporais como ciclos, calendários,
ritos etc., dado que a língua reflete as diferentes experiências locais
referentes à temporalidade.

Embora a presente discussão se circunscreva à discursividade do


tempo, não resta dúvida de que o bom equacionamento dessa ques-
tão deve levar em consideração os demais componentes da forma-
ção imaginária e ideológica da sociedade guarani mbyá, tais como
a cosmovisão e as relações céu/terra, os mitos, bem como os tem-
pos sócio-econômicos.

Neste sentido, impõe-se, um limite quanto à abrangência da discus-


são, que se restringirá a um questionamento acerca do tempo como
categoria operativa e representacional no contexto sócio-histórico
e discursivo desse grupo indígena, na tentativa de esboçar uma
ontologia mbyá do tempo, considerando com Sartre (2001:158) que
"a temporalidade é evidentemente uma estrutura organizada; (...),
uma totalidade que domina suas estruturas secundárias e que lhes
confere significação" e na qual categorias operativas como "presen-

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te", "passado" e "futuro" devem ser entendidas na condição de ins-


tantes estruturados de uma síntese, para a qual contribuem signi-
ficativamente o imaginário e a memória sociais.

A hipótese central de minha abordagem considera que o tempo se


nos impõe como elemento constitutivo, instituinte e inextrincável da
formação, do funcionamento e do modo de ser {eidos e etos) de toda
e qualquer sociedade. De forma que, conforme assegura Castoria-
dis {op. cit), cada sociedade cria, para si mesma e consubstanciai
ao seu modo próprio de ser, um tempo que lhe é próprio e que lhe
confere a sua especificidade no conjunto das demais sociedades.
Ora, é exatamente este o mote que dirige a atenção ao questiona-
mento acerca da existência do tempo e de seu estatuto discursivo
e ontológico na sociedade guarani mbyá.

Podemos, então, dizer que se há uma dimensão temporal nas


coisas e se há uma dimensão temporal socialmente instituída; há,
ainda, uma dimensão temporal no corpo, uma vez que este é simul-
tânea e complexamente atravessado por aquelas duas instâncias.
O conjunto da totalidade dos fenômenos sociais e psíquicos rela-
cionados ao tempo forma uma dêixis temporal que indica, em cada
caso, o momento propício para a realização das atividades individuais
ou coletivas, sejam elas produtivas ou de lazer. Concordando com
Heller (2000), diria que é na cotidianidade de todo ser social que a
temporalidade se faz presença e se representa nas várias instân-
cias da existência. A temporalidade, em sua dimensão ontológica
e imaginária se representa, portanto, como homogênea e hierárqui-
ca. Obviamente, tanto sua homogeneidade quanto sua hierarquia se
estruturam de acordo com as diferentes organizações sócio-histó-
ricas de cada sociedade.

Outro aspecto importante a considerar na formulação onto-social da


temporalidade é o fato de que toda sociedade manifesta uma dada
concepção de mundo. Mais do que isso, toda sociedade constrói
para si mesma uma cosmovisão, mediante a qual a própria socie-
dade imaginariamente se enforma. Essa concepção de mundo, por
seu turno, só pode ser produzida e mantida em consonância com
os tipos de relação que cada sociedade mantém com o (seu) mun-
do: produção, apropriação e transformação da natureza. Ora, a

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mundivldência e a temporalidade encontram-se entrelaçados, uma


vez que é no tempo e com o tempo que as sociedades existem,
organizam-se e se (re)produzem.

Entretanto, se essa constatação parece óbvia e pacífica, ela impli-


ca uma questão bastante controversa acerca da própria noção ou
categoria Tempo. Parece evidente à observação que existem diver-
sas categorias e modalidades temporais, pois embora nos reporte-
mos a um tempo em geral, somos obrigados a lidar no cotidiano com
várias de suas modalidades. Ou seja, ainda que possamos cons-
tituir idealmente um tempo abstrato em geral, é com a sua disper-
são material que convivemos. Assim, distribuímos e organizamos
nossa cotidianidade em relação ao tempo do calendário, tempo psi-
cológico, tempo litúrgico etc.; tempos sagrados e tempos profanos.
Contudo, diante desses atravessamentos temporais, devemos nos
perguntar se existiria o tempo como e enquanto tal; o tempo em si
mesmo; uma espécie de tempo-ser universal, no qual e a partir do
qual todas as modalidades temporais fossem deriváveis.

As respostas, no tocante a essa questão, são muitas (da física, da


religião, da filosofia) e, não obstante, encontram-se longe de ser
conclusivas. Obviamente que, em termos estritamente discursivos,
a questão assim posta não implica indagar sobre a existência, fac-
tual ou não, de um tempo que seria próprio das coisas (o tempo
cósmico, por exemplo), que existisse independente de qualquer
consciência sócio-histórica. O que se problematiza, a partir da
constatação mesma dessa diversidade temporal, é a discursiviza-
ção desse tempo-ser.

Em termos metafísicos parece ser defensável conceber uma argu-


mentação substancialista ou essencialista do tempo. Entretanto,
considerando as argumentações de Castoriadis (op. c/í.), bem
como a complexidade inerente à questão da temporalidade, poder-
se-ia responder de duas maneiras a esse tipo de proposição. Por
um lado, e de acordo com uma perspectiva que se substancia na
materialidade do processo histórico-social, conceber a existência
de uma categoria epistemológica tempo-em-si-mesmo- como ex-
pressão da substancialidade da temporalidade - apenas responde
a um construto, especialmente quando consideramos que mundo

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não se apresenta "como um conjunto de coisas acabadas, mas


como um conjunto de processos" (Engels, 1975:105). Nessa pers-
pectiva, um enunciado do tipo "tempo-em-si-mesmo" torna-se ape-
nas uma expressão retórica destituída de real significação.

Tendo como lugar de interpretação a historicidade dos processos


sociais, não cabe pensar um tempo-em-si-mesmo, à semelhança
de um sempre-já-lá, especialmente quando se advoga metodologi-
camente que a totalidade das coisas se sujeita a processos con-
tínuos de transformações; e que é, justamente, nesse conjunto
contraditório de processos que nos deparamos com a história. Mas,
por outro lado, não podemos negligenciar o fato de que pensar o
tempo, como categoria, implica pensar algo que, nos campos filo-
sófico e epistemológico, manifesta uma inegável ontologia. Em
conseqüência e examinando ontologicamente a constituição cate-
gorial do tempo, deparamo-nos com fato de que ele apresenta uma
estrutura conceituai que mantém certas similaridades com a noção
de Ser (cf. Castoriadis, op. cit. e Sartre, op. cit).

Ainda que a existência física desse tempo-ser absoluto não seja


passível de constatação, é no entanto irrefutável o que ele signifi-
ca para nós em nossa con-vivência e, uma existência em nosso
imaginário instituinte. Isto é, imaginariamente ocorre uma identifi-
cação do sujeito social, frente à multiplicidade temporal do cotidi-
ano, com a unidade homogeneizante desse tempo-ser, dado que a
temporalidade em sua totalidade se remete ao eu/meu. Isto é, o
todo do tempo existe em função do ser eu. De sorte que podemos,
então, dizer com Sartre (op. cit \ 207) que "o tempo da consciência
é a realidade humana que se temporaliza como totalidade, a qual
é para si mesma seu próprio inacabamento".

Desse modo, falar sobre e do tempo significa, sobretudo, falar de


um tempo para ou em nós (tempo para um sujeito, ou tempo sub-
jetivo) e de um tempo no e do mundo (tempo para ou nas coisas, ou
tempo objetivo). Com relação aos diferentes modos de percepção
do tempo, Rehfeld (1988) nos oferece um bom exercício taxonômi-
co: a) tempo vivencial (relativo à experiência do eu), b) tempo real
(o tempo que opera independente da consciência), c) tempo relaci-
onai (relativo à consciência temporal, ou não, face às mudanças e

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ao movimento), d) tempo absoluto (transcorrer do tempo indepen-


dente à percepção das mudanças e do movimento), e) tempo line-
ar (tempo com efeito cumulativo: de um início a um fim), f) tempo
sagrado (tempo revivido, reevocação de acontecimentos de retorno
periódico, cuja sacralidade respeita à sua origem e não ao seu
conteúdo), g) tempo escatológico (tempo que tem começo e fim),
i) tempo profano e j) tempo histórico.

Além das várias possibilidades combinatórias desses tempos sub-


jetivos e objetivos e de sua simultaneidade, porque a vivência tem-
poral ocorre na totalidade complexa da temporalidade, essas formas
temporais, por sua vez, implicam duas concepções pelas quais
falamos do e sobre o tempo. De um lado, temos o tempo coisifica-
do, o tempo mensurável, o tempo como repetição do idêntico (pe-
riodicidade, eterno retorno), a que Castoriadis (op. cit.) chama de
tempo identitário, cujos entes temporais seriam: o tempo cósmico,
o tempo cronológico, o tempo histórico, o tempo lingüístico. De
outro, o tempo vivido, também chamado de tempo imaginário, rela-
tivo à experiência na consciência do sujeito, o qual pode ser tanto
um tempo público como um tempo cósmico.

Destarte, aquilo que Castoriadis (idem) denomina de tempo identi-


tário caracteriza-se por um conjunto de ciclos de eventos (atmos-
féricos, celestes, históricos ou cívicos), cuja função é estabelecer
a totalidade das referências e durações temporais, sejam individu-
ais ou coletivas. Um tempo fundamentalmente marcado pela repe-
tição, pela recorrência e pela equivalência; sendo, portanto, um
tempo que pode e deve ser escandido e controlado. Há, ademais,
um tempo imaginário ou social, aquele que institui uma unidade e
uma identidade sociais, sem os quais os sujeitos e as sociedades
estariam em permanente estado de dispersão; e que, enquanto tal,
é construído com referência ao tempo cósmico na forma de calen-
dários, rituais, festividades. É este tempo que institui em cada
sujeito e em cada sociedade os fatos de consciência do e sobre o
tempo. E é desse modo que cada sociedade constrói a sua própria
temporalidade; ou, em outros termos, sua concepção e categoriza-
ção do tempo. Conseqüentemente, se o tempo nunca é neutro ou
exterior a uma dada sociedade, mas apresenta-se sempre como um

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lugar de significação, o tempo imaginário comparece, então, como


aquele que, além de ser significativo, estabelece-se fundamental-
mente como o tempo da significação.

Isso remete, portanto, à categorização castoriadiana da tempo-


ralidade em tempo instituinte e tempo instituído. Cabe à categoria
de tempo instituinte materializar o tempo-ser do imaginário, o tem-
po primário, no sentido de que ele se estrutura e funciona nas for-
mações imaginárias de todas as sociedades tendo por base o tempo
cósmico objetivo. Trata-se, pois, de um tempo-base que atravessa
a sociedade e lhe serve de referência fundacional, como uma espé-
cie de interdiscurso ou memória temporal. O tempo instituído em sua
totalidade define-se, então, como aquele que é local ou socialmente
produzido ou, ainda, representado na forma de esferas temporais que
balizam o cotidiano das sociedades e de seus sujeitos, atravessan-
do-lhes o corpo (físico e social) - esses recortes ou segmentos
temporais são simultaneamente parciais e totais; autônomos e
sobredeterminados: o tempo da linguagem (tempo das falas e das
significações); o tempo dos rituais; o tempo psicológico; o tempo
de pesca, caça ou colheita; o tempo do sagrado e do profano; o
tempo da recordação e o tempo da promessa.

A escansão do tempo, como não poderia deixar de ser, resulta das


observações e da acumulação de saberes (produção e transmissão
de conhecimento) que são relativas a uma postura topo-etno-cên-
trica, de modo que diferentes concepções e representações da
temporalidade remetem a diferentes modos de estruturação histó-
rico-ideológica, assim como de organização e de memória sociais
que se instituem em cada sociedade, para o que concorrem os
diversos marcadores de tempo que, conforme sabemos, são tanto
celestes quanto sociais.

Ainda considerando o funcionamento do imaginário, um aspecto


relevante a ser levado em consideração diz respeito ao fato que "o
tempo designa o nome de uma das faltas de totalidade", de manei-
ra que "pela via da memória, o tempo enquanto influenciado pelo
sentimento, não pode ser medido" (Veschi, 1996: 215-6) - daí a
presença instituinte do inacabamento, de que fala Sartre (op. cit.)
ou, em termos discursivos, da incompletude. E no entanto, esse

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vazio (a falta, o silêncio) deve ser interpretado como potência, pois


dele decorre toda possibilidade de preenchimento, deriva e signifi-
cação, as quais são a condição fundamental do dizível e do inter-
pretável. Sobre a memória acrescente-se ainda que dela participam
tanto a recordação quanto o esquecimento, pois ele é, juntamente
com o silêncio, um dos fatores constitutivos da memória, no sen-
tido de que não há memória sem esquecimento.

Memória e afeto são co-partícipes da experiência vivencial da tem-


poralidade, especialmente na forma de recordação atualizada e,
enquanto tal, são dois dos fatores que constroem a tradição:

"Da memória depende o passado histórico como algo ideal (...)


conteúdo do qual o tempo se encarrega de retirar a imediatez,
de deslocar o ser-aí. O que foi deixado para trás acede a uma
existência ideal. A história afigura-se, assim, enquanto acumu-
lação de um encadeamento de identidades em relação ao que
se julga o evento presente e a existência atual do ser-aí."
(Veschi, op. c/Y.: 227)

Nesse sentido, o eu que sou resulta do meu passado. Ou, em ter-


mos onto-temporais, o sujeito ou o ser É seu passado, pois é em
seu passado que se encontra a matriz de sua investidura em sujeito,
conforme assevera Sartre (op. cit). Ou ainda, nas palavras de
Gassirer (citado por Rehfeld, op. cit.\ 56) "o passado não exige
porquê; é o próprio 'porquê' de todas as coisas". Desse modo, ao
comparar essa definição do ser pela temporalidade com a situação
dos guarani, percebo que ela ilumina a questão do tempo instituin-
te mbyá, visto que, em sua auto-representação, eles são o seu
passado; eles são a recordação das palavras e da bela morada de
Nhamandu, condição que pode ser deduzida tanto dos relatos mí-
ticos, quanto das declarações atuais dos guarani, de que é exem-
plo o excerto de cantos cerimoniais citado por Glastres (op. cit 113),
que reproduzo: "Assim, farei correr o fluxo das Belas Palavras/para
você, que se lembrará de mim"; "Eis porque você, que vai morar
sobre a terra,/tenha lembrança da minha bela morada".

Vemos como a discursividade mbyá dá conta de que o ser guara-


ni, corporificado pela teko (princípio a um só tempo territorial, éti-

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co-teológico e teleológico, o qual funciona como base da formação


histórico-ideológica guarani mbyá), é reflexo e síntese de seu pas-
sado, cuja matriz é Nhamandu que, na metafísica guarani, consti-
tui-se como arché, considerando-se que é Nhamandu, associado ao
movimento de expansão universal, que possibilita ou causa o existir
das coisas. Contudo, se eles são a nostalgia desse passado, a
recordação guarani não se resigna, nem se imobiliza no culto ou no
luto desse tempo originário e verdadeiro, mas dirige-se ao futuro (ao
tempo novo do renascimento), pois ocorre a atualização permanente
dessa recordação, uma vez que a reencenação do ato originário de
Nhamandu aponta para o devir. Os guarani podem, então, ser carac-
terizádos, no que tange à temporalidade instituinte, como seres do
devir, para quem a perspectiva do apocalipse não representa um fim,
mas uma possibilidade de ultrapassagem.

A relação tempo e espaço é ainda um outro aspecto a considerar.


Diferentemente do espaço (o lugar das coisas), que pode ser con-
cebido como uma multiplicidade simultânea e, portanto, como di-
ferença; o tempo (dimensão do movimento e da duração) apresen-
ta-se como uma multiplicidade sucessiva e, por conseguinte, como
alteridade. Se a diferença se dá como resultante de sucessivas
transformações a partir de uma forma da qual o diferente pode ser
dedutível (paráfrase); só podemos falar em alteridade quando ocor-
rer criação/destruição de formas; quando há a emergência de dois
objetos e, entre eles, não se aplicar nenhum conjunto de transfor-
mações determinadas que possa deduzir um do outro. Isso signi-
fica que, entre si, esses objetos são outros; são, nesse sentido,
novos, uma vez que a sua existência não pode ser produzível nem
dedutível como derivada de outras formas (ocorrência de duas no-
vas formas: polissemia). Então, se o tempo é, por excelência, a
emergência da alteridade, ele se consubstancia como criação e
destruição de formas. É a isso que (Castoriadis, op. cit) chama de
emergência radical do novo.

Com isso, enfeixamos alguns apontamentos que auxiliam na estru-


turação de um parâmetro para a consideração do tempo guarani
mbyá, com base na relação triádica entre tempo, ser e modo de
vida. A partir de agora, cabe perguntar acerca da natureza desse

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tempo-ser mbyá; se há hierarquia entre os diversos recortes tem-


porais que compõem a temporalidade desse grupo e, finalmente,
como se constrói a vida e a cotidianidade guarani em relação às
suas segmentações temporais.

2. os guarani e a temporalidade

Como já foi dito, as considerações sobre a temporalidade guarani


mbyá, vista obviamente a partir de uma perspectiva analítica exte-
rior à sociedade mbyá, procuram conciliar uma problematização
onto-social referente ao ser do tempo, ou do tempo enquanto ser,
com a abordagem discursiva, a fim de responder em que medida o
saber e o fazer mbyá do tempo se fazem discurso e, de outro lado,
como o discurso se insere nessa temporalidade. Falar, pois, em
temporalidade guarani mbyá significa, em última instância, verificar
como o sujeito guarani, afetado pela múltipla experiência do tem-
po (diferentes tempos em diferentes recortes do seu cotidiano do-
méstico e ritual) vive e compreende a localidade e a universalidade
do seu tempo.

Em vista disso e em primeiro lugar, devo esclarecer que, quando me


reporto aos guarani mbyá, estou me referindo a um dos membros
mais importantes da família lingüística tupi-guarani, com uma am-
pla distribuição pela América do Sul, e que no Brasil vive em cerca
de 10 estados, inclusive no Rio de Janeiro e Espírito Santo. Infor-
mo também que os dados especificamente etnográficos sobre os
guarani, em geral, e os quais orientam minha leitura acerca das
formações discursivas desse grupo, encontram-se em Cadogan
(1992), Clastres (1978), Clastres (1990), Lifaiff (1996), Schaden
(1974), Unkel (1987) e Viveiros de Castro (1987) aos quais remeto.
O fundamental acerca da análise concernente ao discurso mítico
mbyá encontra-se em Borges (1999).

Mais particularmente, reporto-me às aldeias mbyá localizadas no


litoral sul-fluminense, uma em Angra dos Reis, no distrito de Bra-
cui, a Tekoa Sapukai; e duas em Paraty, sendo uma em Paraty
Mirim, a Tekoa ItatT e outra em Patrimônio, a Tekoa Araponga, am-
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bas no município de Paraty. A ocupação dessa região, por levas su-


cessivas de guarani oriundos, majoritariamente, de aldeamentos do
Paraná e de Santa Catarina, deu-se a partir de 1940, sendo que as
terras foram demarcadas na década de 1990. Atualmente, a com-
posição populacional das 3 aldeias distribui-se da seguinte manei-
ra: a aldeia de ItatT é formada por 26 famílias com um total aproxi-
mado de cerca de 162 indivíduos, a aldeia de Araponga é formada
por uma única família extensa com cerca de 30 indivíduos; já a
aldeia de Sapukai, cuja formação remonta aos anos de 1980, tem
cerca de 400 indivíduos (Temporalidade, memória e saber..., 2001).

De acordo com os relatos míticos mbyá (cf. Cadogan, op. cit. e


Clastres op. cit), Nhamandu participa da arché, pois ele se encontra
na origem do movimento e da vida. No antes do tempo (pytü yma,
yvytu yma) não há movimento, existe apenas uma massa indistin-
ta e igual a si mesma. É a manifestação corpórea de Nhamandu
que, se de um lado, provoca a ruptura desse estado de inércia e, por
conseguinte, a emergência do novo; de outro, instala-se como o
tempo-zero de um evento, aquele que é movimento, diferenciação
e criação da vida; mas, igualmente, criação do devir.

As diferentes experiências locais referentes à temporalidade encon-


tram-se refletidas na língua, que é a condição material do discurso,
de maneira que a existência de um discurso mbyá concernente ao
tempo tem de estar materializada nos fatos de linguagem. Assim
sendo, um conceito essencial para compreendermos a relação dos
guarani com o tempo, ou com as diversas parcialidades que com-
põem a sua temporalidade, é oguerojera pelo qual eles descrevem
um movimento autogerado, desdobrando-se indefinidamente.

"Criou[-as] Nhamandui no cursos de sua evolução, em meio às


trevas primitivas"
^ "Oguerojera NamanduT
"Antes de haver o verdadeiro Pai Nhamandu, o primeiro, criado pytu ymã mbyte". "Naman-
no curso de sua evolução, seu futuro paraíso; du Ru Ete tenondegua oyva-
antes de haver criado a Primeira Terra; Ele existia em meio aos rã o g u e r o j e r a ' e y m b o y v e i;
Yvy T e n o n d e o g u e r o j e r a ' e y
ventos originários"^ mboyve i; Y v y t u yma ire
(Cadogan, 1992:24, 26) A'e o i k o o i k o v y " .

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Nesse sentido, oguerojera é um conceito que deve ser entendido


como uma compactação do modo guarani de conceber o universo,
o qual se configura como um processo contínuo de criação/destrui-
ção de formas. O ser criador mbyá (Nhamandu) emerge do momento
inercial (o tempo primitivo, a noite originária) como um novo, isto é,
como alteridade radical. De igual modo, essa emergência transfor-
madora mostra-nos algo da concepção mbyá acerca de seu deve-
nir, pois ela sintetiza tanto a errância de seus deslocamentos ter-
ritoriais, como o esforço místico individual e coletivo em busca da
madurez acabada {aguyje) e do renascimento {kandire), quanto a
elaboração de uma complexa metafísica que constitui o seu aran-
duporá (o belo saber: o conhecimento), conforme nos indica Clas-
tres {op. cit).

É importante salientar que tanto em oguerojera, quanto em aguyje e


em kandire encontramos a presença da temporalidade, e é em rela-
ção ao tempo do sagrado que esses elementos da cosmologia mbyá
fazem sentido e, concomitantemente, provêm os mbyá de sentido e
identidade. Se isso parece claro em oguerojera que se refere ao
movimento de expansão universal responsável pela existência do
tempo e do espaço guarani; em aguyje o tempo está intrínseco pois
esse termo designa não apenas o processo de maturação (de ho-
mens, coisas e da história), como também o chegar ao fim desse
processo; em kandire temos a expressão do ser e do vir-a-ser na
mesma perspectiva temporal, (re)início de ciclo vital. Kandire, aguyje
e oguerojera são, pois, a presença significante do passado atualizado
como eixo instituinte da ética e da subjetividade guarani mbyá.

De volta à cosmovisão mbyá, verificamos que, de acordo com as


narrativas mitológicas, a relação terra (histórica)/Terra (mítica) re-
mete-nos a uma formação discursiva fundadora de sacralidade. Para
os guarani mbyá, a terra é considerada o lugar da infelicidade e das
cópias imperfeitas, ao passo que a Terra representa a verdadeira
morada dos homens verdadeiros. Em decorrência disso, percebe-
mos que, no que se refere à episteme mbyá, ou melhor dizendo a
uma concepção teko-lógica de que nos fala Litaiff (op. cit), o lugar
da verdade só pode ser instituído em conexão com a ordem do
sagrado, que se expressa pela relação Céu e Terra.

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"Ninguém, na morada terrestre das coisas imperfeitas (...)


ninguém melhor do eles s a b e r á
sacudir para longe de si as coisas más.
Eis porque você, que vai morar sobre a terra,
tenha lembrança da minha bela morada." (gnios Icb)
(Clastres, op.cit.: 113 )

O sagrado (tempo, ordem, linguagem) não existe de per si. Trata-


se de um espectro do imaginário, cuja determinação e instituciona-
lização variam de acordo com as condições histórico-sociais de um
povo. Aquilo que escapa para o terreno do cosmológico é investido
ou transferido como um lugar específico de significação e, enquanto
tal, socialmente interpretado e aceito como sagrado; funcionando
como um meio de acesso (mediante ritos e símbolos especiais) a
uma dimensão da sociedade que se separa da cotidianidade e se
autonomiza em relação ao campo estritamente histórico e tempo-
ral dessa mesma sociedade.

No que se refere ao discurso sobre o tempo e à investidura de um


tempo sagrado, considera-se o tempo sagrado como aquele que
"retorna", no sentido de que toda sacralidade desse tempo respei-
ta à sua origem e não ao seu conteúdo. Nesse sentido, o tempo
sagrado não se configura como um tempo fenomênico subordinado
aos acontecimentos. Trata-se, antes, de um tempo vivencial ou um
tempo revivido (recordação e reinvocação). O tempo sagrado, segun-
do Rehfeld (op. c/í.:163), "é um tempo em que se revela a exigên-
cia divina e não o seu ser: exigência que molda a vida, nas condi-
ções dadas, na base dos ensinamentos do passado." O trecho
acima, citado por Clastres, é um bom exemplo desse tipo de revi-
vência. Com base nesses argumentos, podemos dizer que o inves-
timento de uma esfera do tempo em campo do sagrado é um com-
ponente do interdiscurso e da memória social mbyá, e um elemen-
to importante para compreendermos o processo guarani de subje-
tivação e de manutenção de sua identidade.

Portanto, ao dizermos que a concepção guarani de tempo expres-


sa-se em sua tekologia, queremos enfatizar que a universalidade do
tempo guarani é assumidamente local. É a partir da cosmologia da
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aldeia que esse tempo se configura. Em termos de perspectiva


observacional, tanto a concepção de uma temporalidade, quanto os
usos sócio-históricos e simbólicos do tempo estão relacionados à
posição topo-etno-cêntrica que os guarani assumem em sua histo-
ricidade. Dessa maneira, podemos dizer que o ser-no-mundo mbyá
não se assume como um estar-diante-de-deus como, por exemplo,
na tradição judaico-cristã. De acordo com a tekologia mbyá, ser-no-
mundo é estar-com-deus, compartilhando o mesmo tempo e o
mesmo espaço divinos. Em relação a esse ponto, é preciso lembrar
que o tempo-espaço do sagrado não constitui, para os guarani, lugar
de interdição. Ao contrário, segundo a tekologia guarani, é justa-
mente ao campo do sagrado que pertence o homem.

Assim sendo, o tempo-espaço sagrado se apresenta como o para-


digma da objetividade de que se forma a epistemologia guarani. Na
trilha aberta por Lévi-Strauss ([1989]2002), mostro a seguir uma
analogia entre o pensamento epistemológico guarani e o científico,
considerando que o discurso mítico nos atesta a presença de sis-
temáticas intervenções teóricas e experimentais sobre a realidade.
A concepção guarani de objetividade assemelha-se à concepção
cosmológica vigente no pensamento científico europeu até o sécu-
lo XVII, segundo o qual o plano supralunar era considerado como
perfeito (deus = objetividade), enquanto que o sublunar era tido como
o lugar da imperfeição, lugar da desordem e da incompletude. Em
suma, para os guarani, a realidade sócio-histórica é transparente,
o tempo-espaço é único e o estar-no-mundo constitui-se em refle-
xo imperfeito, sobre o mundo humano e na linguagem cotidiana, da
realidade sagrada.

Por conseguinte, no que se refere à representação temporal, pode-


mos afirmar que, de acordo com cosmologia mbyá, o tempo real,
o tempo verdadeiro dos homens, está contido no tempo de deus. De
maneira que o todo da vida humana pode ser considerado como uma
passagem, ou desejo de ultrapassagem, em direção ao mundo
verdadeiro. É o que nos indica o excerto de um canto guarani, ci-
tado por Clastres (op. c/f.:36), segundo o qual: "aquele que existe
sobre nossa terra não é mais/o verdadeiro: no limite do firmamento
de nosso pai mora o verdadeiro. Agora só subsiste sua imagem

82
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sobre nossa terra". De forma que alcançar ou transportar-se para


essa temporalidade e essa realidade essencialmente humanas
constitui o cerne da teleologia mbyá (messianismo e profetismo,
apocalipse e escatologia).

Ora, se a sociedade mbyá, como de resto qualquer outra socieda-


de, é a gestora de tudo aquilo que compreende o seu próprio mun-
do, então esse mundo só se institui como tal se for plenamente
dotado das significações imaginárias sociais, constitutivas da teko-
logia, as quais devem presentificar-se em todas as instituições
sociais particulares. Sendo assim, tanto a construção do mundo
quanto de suas significações ocorre com base em dois eixos: o do
espaço social e do tempo social mbyá.

Na materialidade lingüística mbyá encontramos inúmeras formas e


maneiras de dar conta da temporalidade, dentre essas destaca-se
o emprego de marcadores ou dêiticos temporais: a) indicação de
futuro: arã (exemplo: ranguarã 'época em que irá acontecer'); b)
indicação de passado: ere (exemplo, ranguare 'época em que já
aconteceu'); c) hoje: ay; d) ontem: kuee] e) amanhã: koérã (literal-
mente, 'futura manhã'); f) antigo, primitivo ou originário: yma etc.
Essas indicações temporais, na língua, podem ser genéricas ou
específicas, determinadas ou indeterminadas.

Os marcadores temporais também podem ser não-verbais (ainda que


expressos linguisticamente), como os marcadores celestes (astros
etc.), os marcadores meteorológicos, os marcadores sazonais (flo-
rescimento, plantio, nascimentos), e os marcadores rituais (colhei-
tas ou festas, como, por exemplo, o batizado anual) etc. O conjunto
desses marcadores constitui uma parte significativa da materialida-
de discursiva mbyá referente à temporalidade. Assim é que esses
dêiticos funcionam como operadores de uma concepção totalizante
do tempo. Discursivamente, os marcadores temporais têm a função
de estabelecer uma ordem ou permanência na transitoriedade das
coisas. A temporalidade cerca-se, assim, de fatores de homogenei-
dade no interior de uma heterogeneidade constitutiva.

Obviamente, a interconexão e a sobredeterminação das n-variáveis


temporais formam redes de significações temporais orientadas para

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a polissemia, pela própria definição de tempo como a emergência


radical do novo. De todo modo, será o conjunto desses marcadores
que configurará o complexo temporal mbyá. Concordamos com
Rehfeld (op. cit. \ 49) que "toda cronologia pressupõe um contínuo
de dimensões fixas em que (...) se estende a série de momentos
condicionantes em direção ao passado (...) leva a pressupor, tam-
bém, em direção ao futuro, igualmente numa extensão divisível e
mensurável". No que concerne à cronologia e à temporalidade gua-
rani, devemos sempre entender essa operação de divisão e mensu-
ração temporais como uma forma de apropriação social de um tem-
po integralizador, o qual, numa sociedade como a dos guarani mbyá,
conjuga-se como tempo sagrado ou cosmológico e como tempo
profano ou histórico.

Ainda que considere que em sociedades tribais os rituais possam


ser tomados como lugares privilegiados onde atuam marcadores
tempo, para os propósitos e efeitos desta análise, contudo, tomo as
narrativas míticas como o lugar em que posso observar a significa-
ção do tempo entre os guarani. Especialmente considerando que "o
tempo originário, mítico, é colocado antes, mas constituído depois.
Seu estabelecimento é análogo ao da teoria, ou seja, serve para dar
sentido a um conjunto de acontecimentos lhes fornecendo uma
causa com sentido" (Veschi, op. cit.\ 127). Os trechos abaixo,
extraídos do Ayvu Rapyta, mostram a constituição ontológica (ou
ainda, teko-lógica) da temporalidade mbyá.

"Nosso Pai último-último primeiro/para seu próprio corpo criou/


das trevas primitivas."/ "O vento primitivo em que existia nosso
Pai/retorna/cada vez que volta o tempo-espaço primitivo/en-
quanto termina a época primitiva/durante o florescimento do la-
^ Nande Ru Pa-pa Tenonde/
gueterã ombojera/ pytü ymá-
pacho/os ventos se transformam em tempo-espaço novo/já
guí/(...)/pytu yma mbytére/ surgem os ventos novos, o espaço novo/o tempo-espaço do
o g u e r o j e r a . T N a n d e Ru oiko i renascimento.
ague yvytu yma,/ojeupity je-
vyma/ára yma ojeupity navõ. (Cadogan, op. c/Y.:24; 26)
/ára y m a opa ramove. tajy
potypy,/yvytu ova ára pyaú-
Assim como o termo oguerojera nos remete à concepção de um
p y : / o i k ó m a yvytu pyau, ára
pyau/ára pyau nemokandire." tempo-em-transformação (cíclico, mas nunca fechado ou igual a si
mesmo, porque em deriva e em transformação), um outro termo, ara.

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dirige-nos para a concepção de uma unidade dual tempo-espacial.


Trata-se de um acontecimento a um tempo discursivo e cosmoló-
gico: a indivisibilidade entre tempo e espaço, uma vez que essa
dimensão do tempo-espaço novo foi gerada por Nhamandu, o qual
aparece como emergência de alteridade e superação (transforma-
ção/destruição) da noite primitiva (o espaço-tempo originário, o
estado-caos primitivo, o tempo igual a si mesmo que dominava
antes que irrompesse essa nova criação).

Na formação histórico-ideológica mbyá, o tempo sagrado e o tem-


po profano - ou em outros termos, o tempo instituinte e os tem-
pos instituídos - estão referidos à dicotomia terra verdadeira/ter-
ra sombra; ou ainda à contradição entre a terra má (Yvy Mba'e
Megua, essa terra-cópia em que vivemos) e a terra sem males (Yvy
Marã Ey, aquela terra fantásmica que se apresenta como objeto
obsessional da busca mbyá). De forma que tanto o tempo subje-
tivo ou fenomenológico, quanto o tempo objetivo ou cosmológico
encontram-se sobredeterminados pelo tempo sagrado mbyá, sen-
do que o tempo no e do mito se configura como uma de suas ex-
pressões mais relevantes.

Devido a sua intensa religiosidade, a qual se institui como o núcleo


fundador de seu etos e, ao mesmo tempo, vem-se constituindo na
condição de sua sustentabilidade cultural, a sociedade mbyá, do
ponto de vista do objeto que analiso, se estrutura tendo a ordem
cosmológica como fundamento. Nesse sentido, e de acordo com o
modo dos guarani se representarem (endo-imagem), verifica-se que
a ordem sócio-histórica encontra-se subsumida pela ordem cosmo-
lógica, de maneira que o mundo espiritual se sobrepõe à vida ter-
rena, determinando-a.

Finalmente, deparamo-nos com outro aspecto importante do tem-


po: a irreversibilidade, a qual constitui o núcleo duro dos eventos e
dos processos temporais. Segundo Heller (op. cit.: 3, grifos da A.),
se o tempo se caracteriza pela "irreversibilidade dos acontecimen-
tos, o tempo histórico é a irreversibilidade dos acontecimentos
sociais", de forma que "todo acontecimento é irreversível do mesmo
modo". Considerando, então, que além de constituir-se como alte-
ridade, o tempo constitui uma irreversibilidade, podemos trabalhar
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com a hipótese de que devemos encontrar aí um dos elementos que


dão origem e sustentação à crise originária e instituinte da socie-
dade guarani, especialmente no que tange à sua auto-representa-
ção e desejo de retorno, ou ultrapassagem, à terra sem males: não
há como reverter o tempo; não há, portanto, como reverter ao tem-
po verdadeiro de Nhamandu - ou seja, a crise instala-se devido ao
fato de que já não é possível aos homens reencenar o ato original
transformador-fundador de Nhamandu. Crise insuperável que os
impulsiona em direção à presença fantásmica da terra sem males
e que, simultaneamente, contribui para a reafirmação e a susten-
tação cotidiana de sua identidade.

3. temporalidade, errância e identidade mbyá

Como pudemos constatar acima, o tempo se apresenta para nós


na forma de fato discursivo. De igual modo, todo discurso somen-
te se realiza nessa temporalidade que atravessa em vários senti-
dos e diferentes espessuras tanto a sociedade como os sujeitos.
Portanto, se há um tempo-ser mbyá (e nossa análise aponta nessa
direção), então, a totalidade da construção do ser social (imagi-
nário, ideologia, inconsciente, ética, religião, organização social
etc.) só pode realizar-se e ser compreendida pela determinação
desse tempo-ser.

Considerando o tempo no que se refere à sua escanção e ao seu


fazer social, verificamos que o todo do tempo, que se presentifica
no imaginário social na qualidade de um tempo homogêneo, tem
como materialidade os calendários. Contudo, isso não significa, em
absoluto, que esse tempo-ser, fundado em um tempo identitário,
deva inexoravelmente apresentar-se, no imaginário, com as carac-
terísticas de um eterno retorno, tal como propõe Eliade (1985 e
1989). Ou seja, o fato de que o calendário espelhe um tempo cícli-
co não permite, a priori, caracterizá-lo como um tempo a repetir-se
indefinidamente como um eterno mesmo. A ciclicidade do calendá-
rio, com sua previsibilidade, possibilita a inteligibilidade e a ordena-
ção da temporalidade e dos eventos a ela relacionados. É dessa
maneira que a temporalidade, social e ritualmente concebida e pro-
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cessada, insere-se na ordem simbólica de um povo e comparece por


meio de um sistema instituído de regras, na forma de marcadores
(lingüísticos, ritualísticos, naturais) que habilitam os membros de uma
dada sociedade a reconhecerem a si mesmos e ao mundo.
Assim, a temporalidade integra o conjunto de falas que compõe o
seu discurso fundador. Entendemos por discurso fundador aquele
que funciona em um espaço de interdiscursividade, de maneira que
"tudo o que é dito, tudo o que é expresso por um falante, por um
enunciador, não pertence só a ele. Em todo discurso são percebi-
das vozes, às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase im-
pessoais, quase imperceptíveis, assim como as vozes próximas
que ecoam simultaneamente no momento da fala" (Bakhtin, citado
por Brait, 1999:14). Sabemos que, junto a esse trabalho da histó-
ria, ou interdiscurso, atuam vetores de direcionamento e fixação de
interpretações e, portanto, de sentidos, de forma a permitir que as
vozes continuem a dialogar com todas as vozes possíveis e até
mesmo com o silêncio. É desse modo que se estabelece um fluxo
permanente e inconcluso de atualização entre a memória discursi-
va da sociedade e as memórias individuais.

Lembremos que os mbyá concebem e representam o tempo de


forma cíclica, cujo ponto de partida é o tempo-espaço originário (ara
yma: o tempo do não-ser), aquele que existia do surgimento de
Nhamandu. É deste tempo-espaço do antes, e como sua negação,
que sucede o tempo novo, o tempo-espaço do renascimento (ara
pyau: o tempo do ser). De maneira que o intervalo de vida plena
decorre anualmente entre o retorno ritualístico ao evento fundador
(o tempo/vento originário) e a passagem ao tempo (novo) do renas-
cimento (ara pyau onhemokandire). Contudo, o kandire, conceito
em que estão subsumidos os de oguerojera e aguyje, é igualmen-
te um aspecto da temporalidade guarani, pois é ser e vir-a-ser simul-
taneamente, uma vez que, sendo a totalização messiânica do tempo
histórico e passagem para um tempo sagrado, funciona como pre-
sença material (imaginária e discursiva) do passado e como um dos
eixos da ética e da teko guarani.

Em vista disso, não devemos nos iludir pela linearidade fenomeno-


lógica desse modelo de temporalidade, caindo na armadilha de um

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tempo preso em seu eterno retorno. Devemos, antes, considerar


que, se "a natureza (...) não se move na eterna monotonia de um
ciclo constantemente repetido, mas percorre uma verdadeira histó-
ria" (Engels, op. cit.\40), então um esquema temporal do tipo eterno
retorno não consegue dar conta da dinâmica e da complexidade das
esferas temporais em que homem e sociedade co-existem. Pros-
seguindo com Engels (idem: 93), aproveito para acrescentar que,
conceber a temporalidade expressa pelo mito como um eterno re-
torno, significa, em suma, deixar de perceber que o mundo funcio-
na "como um processo, como uma matéria sujeita a desenvolvimen-
to histórico". Na outra ponta desse mesmo pré-construído, impõe-
se a concepção de que a natureza sujeita-se a um movimento eterno
que "se fazia não menos perenemente, em órbita circular, razão pela
qual não mudava de lugar e produzia [sempre] os mesmos resulta-
dos". Isto para dizer que a concepção de um eterno retorno mítico
reproduz-se numa perspectiva essencialista e imobilista da histo-
ricidade ou, em outros termos, que é reveladora de uma posição
interpretativa que condena os povos míticos à eterna clausura da
circularidade de um tempo sempre igual a si mesmo, sobre o qual
não teria efeito o devir histórico.

Além do mais, na própria mitologia mbyá encontramos um argumen-


to a favor de não concebermos a sua temporalidade como um eter-
no retorno. O modelo temporal mbyá aponta para a emergência de
uma alteridade fundadora que é estabelecida por Nhamandu ao
surgir em meio às trevas primitivas. Na vida humana, considerada
pelos guarani como sombra, imagem ou imitação da vida verdadei-
ra (a divina), esse movimento de renovação também ocorre continu-
amente (o ciclo dos anos, o calendário, o ciclo da vivência) e isso
se reflete no mbyá reko (o modo de vida guarani, a sua ética e seu
modo de ser no mundo) e em suas práticas discursivas (verbais e
não verbais). Ora, se o tempo é um componente da expansão uni-
versal de Nhamandu e, portanto, uma propriedade de deus, então
não há porque pensar em (eterno) retorno, uma vez que a flecha do
tempo ao se tensionar produz, a partir de seus ciclos, uma espiral.
O espiralamento do tempo indica que ele aponta para o devir e que
os retornos ocorrem, a cada vez, em um ponto que se afasta do
centro. Essa modelização do tempo mbyá encontra-se de acordo
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com o postulado de Castoriadis (op. cit.) de que o tempo é substan-


cialmente a emergência do novo.

O tempo de deus se configura na formação imaginária como um


tempo total, um tempo de ação, no interior do qual ocorrem os
acontecimentos; em que o nascer e o renascer, bem como o ama-
durecimento aparecem como propriedades secundárias desse tem-
po uno. E no qual o rito, enquanto reencenação dessa temporalida-
de, funciona como um simulacro do tempo, ou como uma apropri-
ação, no sentido de uma retomada pelo homem daquilo que cons-
titui propriedade divina. O rito encena uma reversibilidade, ou seja,
um jogo discursivo em que o homem representa-se assumindo o
lugar de deus e, ao mesmo tempo, reafirmando a sua ligação com
a divindade. Se, no que concerne à ordem do sagrado, o tempo é
vivido e recordado como uma totalidade, contraditória e constituti-
vamente, na ordem sócio-histórica mbyá, os ciclos temporais (o
tempo identitário, o tempo imaginário, instituído) pertencem a uma
história marcada pela falta, delimitam-se nela, determinam-se e
(re)produzem-se nela.

"Os Mbyá (...) migram em busca de terra de solo fértil e mata vir-
gem, onde seja possível viver de acordo com as normas e valo-
res de sua cultura, rezando e praticando os exercícios espiritu-
ais necessários para se alcançar o Paraíso (...). Todavia, para
a maioria de nossos informantes, a Terra sem Mal tornou-se um
sonho impossível."
(Litaiff, op. cit: 127)

Como já vimos, a bela morada de Nhamandu constitui o paradigma


mbyá de objetividade e critério de verdade daquilo que é definido, no
modo guarani de nomear, como o belo saber. De maneira que o vir
a ser guarani na direção do aperfeiçoamento final {oguerojera, aguyje
e kandiré), que constitui o seu tempo escatológico, dirige-se a um
futuro que é, de certa forma, uma ressonância daquilo que é recor-
dado. Contudo, esse passado age como modelo com o qual o fu-
turo é configurado. Por essa razão, esse tempo escatológico, as-
sim como a completude do sujeito mbyá só podem realizar-se no
e como futuro. Nesse sentido, a Terra Sem Males realiza o tempo

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escatológico, pois é para esse lugar fantásmico que todo o ser


guarani retorna ou se destina. É na Terra Sem Males que se cum-
pre a totalidade acabada do tempo guarani mbyá.

Mas, se o que é realizado, ao menos em termos guarani, só pode


ocorrer como cópia ou sombra de um modelo, então a busca des-
sa Terra Sem Males - enquanto fantasma instituinte do imaginário
e da memória sociais guarani, no papel de instituição discursiva; em
seus dois desdobramentos, um histórico e territorial, uma espécie
de espelhamento no terreno das contingências vivenciais, a busca
permanente por um lugar que propicie a estabilidade social e exis-
tencial da tribo; e outro de cunho metafísico, a busca da imortali-
dade e do (re)estabelecimento da verdade no espaço simbólico e
mítico de Nhamandu (em termos de retorno à condição originária,
de acordo com o modo guarani de conceber e representar esse
processo) - mostra, mediante seus silêncios e interditos, também
a presença de uma consciência acerca da mortalidade e da huma-
nidade como objeto de reflexão entre os guarani, cujos efeitos
pertencem à discrepância trágica entre a certeza da fugacidade e
da fragilidade e do fluir ilusório do tempo dos homens (o tempo da
história e lugar da ansiedade existencial) e a recordação fundante,
por isso permanente, de um tempo dos deuses.

Assim, podemos dizer que "o conhecimento da mortalidade signi-


fica, ao mesmo tempo, o conhecimento da possibilidade da morta-
lidade"[err\ termos guarani, isso é reconhecido e firmado pela tra-
dição e pela recordação atualizada, Icb]. Daí que a "inevitabilidade
da morte" aparece como "uma afronta e uma indignidade", por isso,
todos os esforços são no sentido de corrigir o erro [que é ter a morte
como horizonte, Icb]. Para os guarani, a tentativa de correção des-
se erro, que também é fundante, se traduz tanto na busca de uma
terra sem males ou imperecível, como no apego à religião, aos ri-
tuais restauradores (da promessa e da recordação) da opy, procu-
rando chamar a atenção dos deuses, fazê-los recordar da promes-
sa. De maneira que "estar ciente da mortalidade significa (...) so-
nhar com a imortalidade". A busca também significa um consolo
diante da inevitabilidade da morte, pois os guarani sabem que, atra-
vessando a fronteira entre esse tempo/condição humana e o tem-

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po/condição divina, a imortalidade lhes acena. No entanto, sabem


também que é somente "enquanto permanecerem mortais" que a
"perspectiva de imortalidade pode afigurar-se um consolo" (Bauman,
1998:91-92).

Se, em termos psico-histórico-sociais esse entremeio contraditó-


rio e conflitante, em que se funda a vida e a escatologia guarani,
aparece como o lugar privilegiado das crises e de sua ansiedade
existencial; em termos discursivos, é exatamente nesse espaço
que se funda a sua memória discursiva e onde se estabelece a sua
segurança ontológica, como a denominou Anthony Giddens (cita-
do por Bauman, op. cit.: 209^). Ou seja, é justamente nesse nó ^ "'um sentido de fidedignida-
de das pessoas e das coisas'
existencial e ontológico que, segundo depreendo, funda-se a teko- a u x i l i a d o e f a v o r e c i d o peia
logia guarani mbyá. 'previsibilidade das (aparen-
te) m e n o r e s rotinas da v i d a
Podemos, então, esquematicamente, dizer que a propriedade do diária"".

discurso religioso mbyá é a assimetria irredutível entre o plano


sagrado e o plano temporal (terra versusTená), uma contradição
que é sustentada pela ilusão/desejo de reversibilidade, pelo qual
seria possível passar do plano terreno para o divino. Uma travessia
que é simultaneamente espacial (como indicado no trecho acima)
e temporal, uma vez que passar de um mundo (o da ilusão) para o
outro (o da verdade) significa também atravessar o eixo do tempo
para reencontrar o estado original da humanidade. Clastres (op. cit)
diz, em relação a isso, que o desejo dos guarani não é serem huma-
nos, mas deuses. Reversibilidade e ultrapassagem também dizem
respeito à troca discursiva de papéis, o que permite que o homem
possa ocupar o lugar de deus. Daí a sua relação dramática com os
ritos. No que tange ao movimento/desejo de reversibilidade, especi-
almente pensando na questão do eterno retorno, reporto-me a Vivei-
ros de Castro (1987:17-38), segundo quem, trata-se de um movimen-
to orientado pelo devir e não por um impulso nostálgico que os impul-
sionasse de volta à gênese, ou ao ymã, e cujo eixo é a morte.

De um ponto de vista psicanalítico, podemos dizer que a relação


entre os tempo mbyá que, fundamentalmente, são responsáveis
pela formação do sujeito, uma vez que, como vimos, participam
efetiva e necessariamente do processo sócio-histórico e discursi-
vo de subjetivação, são, igualmente, responsáveis pela cisão do

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sujeito ou do eu mbyá. De acordo com Katz (2002), se o sujeito em


seu processo de subjetivação deve confrontar-se com o outro (ou-
tro indivíduo, outra cultura, outra dimensão do real), essa confron-
tação ocorre de forma dialógica, como inacabamento ou incomple-
tude tanto do ser quanto dos processos discursivos. Nesse senti-
do, a outridade do tempo mbyá, especialmente na forma de confli-
to entre o tempo cosmológico e o tempo histórico, produz como
sintoma a divisão conflitual e complementar entre os múltiplos
aspectos de que se compõe a temporalidade que, segundo a forma-
ção histórico-ideológica mbyá, se faz unitariamente dual, e cuja
materialidade lingüística é ara.

É assim que a crise, o mal-estar tekológico, aparece na forma de


No contexto cultura! guara- anomia^, dado que a sociedade guarani se estrutura na cisão en-
ni. a a n o m i a refere-se à su-
p r e s s ã o das n o r m a s via es-
tre o tempo cosmológico da recordação (objeto do desejo e da busca
q u e c i m e n t o (das n o r m a s e guarani) e o tempo histórico da cotidianidade (o tempo objeto de
das p a l a v r a s d i t a d a s por negação). O exemplo mais radical dessa anomia é oferecido pelo
Nhamandu), divergência con-
flituai entre o ideal de ser Kayová, cujo alto índice de suicídio parece apontar para uma rup-
(modo tekológico) e o real his- tura niilista dos liames entre a esfera sócio-histórica e o tempo da
tórlco-social que tende a im-
pedir a realização dessas nor-
recordação. O suicídio, como meio de superação desse conflito,
mas, de forma que tanto o in- pode ser analisado como um sintoma social, cuja marca discursi-
divíduo quanto a coletividade
va e imaginária aparece na destruição física e simbólica do corpo,
p e r c a m seus b a l i z a m e n t o s
ético-religiosos. como uma forma radical de impedir que o kandire possa se produ-
zir. O suicídio, como conseqüência da anomia, constitui um discur-
so agressivo, não contra o corpo, mas contra a possibilidade de
"manter os ossos frescos" (nhemokandire). Nesse caso, deve ser
interpretado como uma rejeição radical a um dos constituintes mais
significativos da teleologia guarani: a possibilidade de ultrapassa-
gem com vistas a alcançar a Terra Sem Males.

No caso específico dos Kayová, o retorno do silenciado, do ex-


cluído (anomia como sintoma da culpa pelo esquecimento das
belas palavras; culpa por uma recordação extraviada), faz-se de
forma aniquiladora, pela via do suicídio, dada a incapacidade de
ressignificar o mundo que, assim, se torna, para além de ininter-
pretável, esvaziado de significado. O suicídio kayová cumpre-se
no absoluto e inexorável espaço do não-sentido. O atravessa-
mento ou a intrusão da irremovível presença do real do mal-es-

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tar, neste caso, cobra um preço muito alto: a destituição signi-


ficativa do tempo.

Retomando, então, as considerações acerca da mitologia mbyá e,


em especial dos conceitos de oguerojera e nhemokandire, não se
me afigura que o tempo cíclico mbyá deva ser confundido com um
tempo sempre igual a si mesmo. Ainda que na forma de um tempo-
sombra (um tempo fantásmico, tal como os demais entes que são
cópias ou sombras dos entes reais que se encontram em território
sagrado), a temporalidade mbyá é melhor caracterizada como tempo
de renovação, aquele que, ao se repetir, transforma, retorna e avan-
ça, diferencia-se, faz-se outro: um tempo que se faz passagem,
retorno e ultrapassagem.

Devemos lembrar que o gesto originário de Nhamandu de criação do


novo (a do seu corpo e a do universo) deu-se na forma de uma
expansão universal. Ora, se o tempo profano (o da história e o da
sociedade) pode ser derivado e mesmo subsumido no tempo sagra-
do (o da divindade, o cosmológico), então não seria de todo absur-
do supor que essa expansão continue a agir e a produzir seus efei-
tos na terra humana. Isto é, ainda que se considere que, no conjunto
complexo da temporalidade mbyá, o tempo social não decorra
paralelamente ao tempo cosmológico, é inegável que mantém com
esse relações diversificadas.

Reportando-me à relação tempo/instituição social, dá-se que a dis-


cursividade mbyá está fundada na errância terra TERRA, que
os impele em direção a um devir como eterno presente ou futuro
adiado (Borges, 1999). Errância que se configura no entremeio
existencial próprio da sociedade mbyá, movimentando-se entre a
terra e a TERRA, pois se a terra, como lugar de habitação e ori-
gem, é negada por ser mera cópia imperfeita; a T E R R A é um
objeto irreversível do desejo; daí que o (re)encontro se acha per-
manentemente adiado, ainda que sempre tentado. Deriva também
dessa estruturação simbólica a elaboração de uma racionalização
sacralizante que, levada à ética, justifica o estado de descaso em
relação a tudo aquilo que signifique permanecer preso à vida ter-
rena, seja na esfera individual (o corpo: 1ete'), seja na social (a
territorialidade, a aldeia: 'tekoa').

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Na sociedade guarani, deparamo-nos com a centralidade da pala-


vra (a essência que vivifica um corpo), pois como assevera Cassi-
rer (2000) existe um vínculo originário entre as práticas discursivas
e as mítico-religiosas. Dessa vinculação resulta que o movimento
de ultrapassagem leva os mbyá a significar-se no logos (nhe'è porá:
'as divinas palavras'); na permanência de um real (o sagrado ou
verdadeiro) cuja origem e limite pertencem à ordem divina: o tem-
po-espaço de Nhamandu, do qual o tempo cosmológico (como tem-
po instituinte), na forma de tempo-espaço do renascimento ou da
renovação (ara nhemokandire), funciona como representação.

Assim, não é possível pensar a relação constitutiva sociedade/tem-


poralidade mbyá desconectada da formação heterogênea e heterô-
noma dessa sociedade. É o que depreendo das condições pelas
quais os guarani mbyá constroem a sua sociedade e, igualmente,
constroem as suas representações, inclusive no que se refere às
representações temporais. Especialmente quando se verifica que é
o tempo cosmológico, ou o tempo mítico-sagrado, que funciona
como o tempo-base, a partir do qual o tempo histórico ou profano
é estruturado, conforme vimos anteriormente.

Em relação a essa assertiva, consideremos, com Sartre (op. cit.)


que:

"Sou aquele por quem o meu passado vem a esse mundo" (168);
"Meu passado não existe porque eu o 'represento', mas é por-
que eu sou meu passado que ele entra no mundo, e, a partir de
seu ser-no-mundo, é que posso representá-lo segundo certo
processo psicológico" (168);

"Entre passado e presente há uma heterogeneidade absoluta ..."


(172);

"O Presente não é ontologicamente 'anterior' ao Passado e ao


Futuro: é condicionado por eles na mesma mediada que os con-
diciona, mas é o vão do não-ser indispensável à forma sintéti-
ca total da Temporalidade" (199).

Se o futuro é a falta, então no caso dos guarani mbyá, essa falta só


seria preenchível pelo onhemokandire, isto é, pelo passado que se

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transforma em futuro, negando e superando o presente povoado de


imitações imperfeitas. Assim, para os mbyá, o futuro é concebido
como o futuro daquele passado que foi estabelecido pelo ato inau-
gural, corporificante e transformador, de Nhamandu.

Podemos depreender, considerando o percurso analítico que foi de-


senvolvido, que a matriz da formação histórico-ideológica mbyá gera
na sociedade guarani um desejo de ultrapassagem em busca da Terra
Sem Males (realização plena do tempo-espaço guarani), cuja errân-
cia mostra-se, simultaneamente, movimento de ir (expansão e devir:
oguerojera/aguyje) em busca desse futuro possível da promessa
profética, cujos telos é a reversibilidade, somente propiciada pelo
kandire; e negação do tempo profano, o qual pode ser representado
na forma de um tempo-sombra do tempo verdadeiro, aquele que se
encontra expresso nos fundamentos e fixado na memória pela vera-
cidade do testemunho mítico. É esse o eixo que sustenta o funcio-
namento discursivo dos guarani mbyá, tanto no que concerne à tem-
poralidade (ou seja ao saber-fazer do tempo), quanto às questões
relacionadas ao fundamento de seu imaginário social instituinte.

Entretanto, considerando este modelo cosmológico, tem-se que


todo esforço para cumprir a promessa resvala na assunção de que
o que se realiza cumpre-se na forma de um simulacro, ou de mera
cópia, desse modelo. Essa contradição entre o modelo e seu reflexo
desfigurado faz com que, segundo Bauman (op. cit: 91 -2), "o que
é é cancelado de antemão por o que virá", como parte do mecanis-
mo constitutivo de desajuste entre a cultura e a existência. Contu-
do, é exatamente nesse cancelamento ontológico que a tekologia
mbyá funda o seu alcance e a sua significação. Trata-se, de fato,
da impossibilidade de cumprir a promessa, seguir as normas ou lem-
brar convenientemente das belas palavras. Ou da culpa de não estar
(nunca) pronto, de não ter alcançado a maturidade necessária para
libertar-se das ilusões e sofrimentos da terra destrutível. Culpa de
permanecer no logro de esforçar-se para alcançar um objeto fantás-
mico que, à semelhança de uma miragem, encontra-se sempre e
sedutoramente à frente dos que o perseguem.

Ainda seguindo Bauman, podemos dizer que os guarani, de acor-


do com seus princípios tekológicos, em sua negação do espaço e

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do tempo atuais (o aqui agora), isto é, sua existência reificada,


aliada a sua procura (frustrada) por aquele tempo e espaço além (o
lá depois) prometido mas nunca cumprido, são seres que não fazem
parte de nenhum lugar. E é esse estar em lugar/tempo algum (o
aqui, porque negado; o lá, porque nunca realizado) que constitui o
sítio privilegiado de significação da subjetividade guarani. Na teko-
logia mbyá, portanto, a Yvy Marã Ey constitui uma imagem utópi-
ca necessária, constituinte e não-messiânica da discursividade
mbyá e o eixo de sustentação da totalidade de sua vida e, por con-
seguinte, de sua temporalidade.

Devemos, finalmente, ressaltar que, no que respeita à instauração


do ser do tempo, bem como de seu papel estruturante do imaginá-
rio e da discursividade mbyá - como constituintes dos investimen-
tos sociais e psíquicos identificatórios - , o rio do tempo não tem
margens nem leito, nem direção, como também não tem nascente
nem foz. Mas ainda assim ele flui multidimensional. O de onde, o
onde, e o para onde esse rio-tempo flui não estão lá. Não são nem
dados, nem prévios ao fluir, e só podem ser sincronicamente cria-
dos pela expansão universal do tempo (oguerojera/aguyjé).

Resumo: Ao considerarmos as questões discursivas relati-


vas à memória e ao imaginário na sociedade Guarani Mbyá,
devemos questionar os seus sistemas de representação. A
temporalidade é um dos temas a ser estudado, no interior
desses sistemas de representação, uma vez que o investi-
mento das significações guarani encontra na temporalidade
a sua matriz. Nessa perspectiva, as narrativas míticas são
o locus privilegiado para analisarmos as relações que os
Guarani mantêm com o tempo. O objetivo deste artigo é pro-
blematizar ontologicamente o tempo guarani, procurando
mostrar como o fator tempo torna-se um componente impor-
tante dos sistemas guarani de representação, bem como de
sua discursividade.

Palavras-chave: Guarani Mbyá, temporalidade, ontologia


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Abstract: When considering some discoursive issues related


both to the memory and the imaginary formation In the Mbya
Guarani society, it's necessary to focus their systems of
representation. Temporality is one of the themes to be studi-
ed, corncerning those systems of representation, since the
guarani investment in meaning is significantiy based on tem-
porality. The mythic narrativos must be seen, under this pers-
pective, as a privileged locus that favors us to analyse the re-
lations that the Guarani people developed towards time. The
aim of this paper is to analyse ontologically the guaranian
time, as an attempt to demonstrate how the issue time beco-
mes an importante component of their systems of represan-
tation as wells of their discoursivity.

Key w o r d s : Mbya Guarani, temporality, ontology

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