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Visconde Juromenha – memórias de uma luta exemplar

Fotos: José Manuel Albuquerque (José MAN) *


Texto: Paulo Ambrósio **

Na Primavera de 1978, a Escola Preparatória Visconde Juromenha


transformou-se literalmente num campo de batalha de importância
nacional, em que se defrontaram defensores e inimigos da gestão
democrática consagrada na Constituição da República de 1976. É preciso
não esquecer que tinham decorrido pouco mais de dois curtos anos
sobre o golpe militar de 25 de Novembro e uma vaga contra-
revolucionária percorria então o país, procurando sob a capa da
“normalização democrática” ajustar contas com o 25 de Abril, eliminando
as suas conquistas mais avançadas. E, na Educação, a gestão
democrática das escolas - através das comissões directivas eleitas por
professores, funcionários, alunos e encarregados de educação - era sem
dúvida a marca mais forte de Abril, logo um alvo a tentar abater.

A Escola Preparatória Visconde Juromenha, mal acabou de ser


construída, iniciou as actividades do ano lectivo de 1975/76 com um
jovem corpo docente de pouco mais de 70 professores, dos quais mais de
50 contratados (então dizia-se provisórios), que imprimiam ao
funcionamento da escola uma marca muito própria.

Formada por pavilhões térreos pré-fabricados, ligados por corredores e


escadarias, dispostos por uma vasta área e situada num local ermo, ao
cimo da Tapada das Mercês. A toda a sua volta crescia um espesso mato
de carrascal, com algumas pequenas azinheiras, eucaliptos e pinheiros.
Os acessos que ligavam a escola às localidades mais próximas (Rinchoa,
Algueirão e Mercês) resumiam-se a vários carreiros por entre o matagal e
uma estrada de terra batida que levava à estrada do Pinhal do Escouto.

Mal servida de transportes (dois autocarros de manhã outros dois à noite)


igualmente a segurança deixava muito a desejar: uma vedação de rede
frágil e uma iluminação exterior quase inexistente. Assolada pelas
frequentes as faltas de água, frequentes na década de setenta,
especialmente nas zonas altas de todo o concelho. A deficiente instalação
eléctrica da escola motivava cortes de luz quase diários, principalmente
em dias frios, e aos últimos tempos. No Inverno, especialmente a horas
de lusco-fusco e à noite, os assaltos e roubos começaram a ser quase
diários, visando especialmente as alunas e os alunos mais indefesos no
seu trajecto para casa, o que legitimamente preocupava os encarregados
de educação.

Há três anos que o corpo docente da escola vinha exigindo às


autoridades competentes melhores condições para a prática do ensino,
no que toca a meios, acessos, iluminação e vigilância. O governo da
época era de coligação PS-CDS e no MEC pontificava o tristemente
célebre ministro da Educação Sottomayor Cardia, que nunca respondeu
positivamente às reivindicações da escola, pelo que o braço-de-ferro
entre as duas entidades prosseguia.

Aos assaltos e cenas de violência no Inverno, começaram a somar-se no


Verão os incêndios de origem criminosa, ateados em redor da escola,
principalmente na Tapada das Mercês.
A situação agrava-se com o início de uma onda de assaltos à própria
escola. A vedação aparece cortada e as portas arrombadas. São visadas
inicialmente salas de aula, especialmente de Educação Visual e Trabalhos
Oficinais, com o roubo de materiais, ferramentas e máquinas. Sucedem-
se as participações da escola às autoridades competentes civis e
policiais, sem resultados práticos. O clima é de impotência perante o
desenrolar dos acontecimentos.

Há indícios de que os autores destes assaltos são alunos mais velhos


ligados a certa marginalidade social radicada em bairros de retornados
das ex-colónias, quer militares, quer civis, e que agem encorajados e
organizados por quadros políticos de extrema-direita. Contudo, das
investigações oficiais, nada disto fica provado.

No ano lectivo de 1977/78 atinge-se o auge deste crescendo. Em Abril de


78, o aumento do clima de instabilidade provoca a demissão do Conselho
Directivo, que alega falta de condições e tensões com os funcionários.
Reunidos em plenário, os professores decidem paralisar no dia 21 e
informar os encarregados de educação da gravidade da situação. O
Sindicato dos Professores da Grande Lisboa, chamado a apoiar a luta,
envia para o local os jovens e combativos quadros Óscar Soares e
Augusto Pascoal, hoje discretos militantes socialistas, mas à época
engajados na extrema-esquerda parlamentar.

Na madrugada de 23 para 24 de Abril dá-se o último grande assalto à


escola e nem a sala de professores e os serviços administrativos
escapam. Entre outros actos de vandalismo é arrombado o cofre da
escola e desfeitos ou parcialmente queimados alguns livros de ponto. Os
materiais para as planeadas comemorações do 25 de Abril na escola são
destruídos. Nenhuma importância ou objecto de valor é furtado, mas o
ano escolar fica em risco.

Esta é a oportunidade que o MEC aguardava para abafar o clima


reivindicativo da escola e impor-lhe um “representante” à sua medida. No
próprio dia 24, os responsáveis do MEC, alegando a concordância do CD
demissionário, ordenam o encerramento da Visconde Juromenha, para
“reorganização”. Logo que a decisão é conhecida gera-se grande tumulto.
A GNR é requisitada e acaba por montar cerco à escola, dia e noite.

Ao portão da escola ocorrem os primeiros confrontos provocados por


civis e militares de direita, com a cobertura da GNR. São agredidos um
dirigente sindical, um jornalista de “A Capital” e o professor José MAN,
que é intimado por um dos GNR’s a entregar a sua máquina fotográfica
com que registava os acontecimentos. Nega-se a fazê-lo e é socado no
rosto pelo guarda, que lhe parte os óculos e lhe subtrai a máquina.
Depois de a transportarem para o jipe e tentarem sem êxito abri-la para
retirar o rolo fotográfico, os guardas acabam por devolvê-la, mas com o
manípulo partido. Outro momento de tensão gera-se quando um jipe da
GNR, alegadamente, é apedrejado e em resposta um dos guardas puxa da
pistola de serviço e aponta-a na direcção de um aluno de cerca de 12
anos de idade que se esgueirava pelo mato. O SPGL acaba por apresentar
queixa-crime contra dois oficiais da Força Aérea, o tenente-coronel
Ferreira Morais e o tenente Jorge Silva, a quem responsabiliza pelas
agressões verificadas.

Nos dias seguintes, Cardia publica um ofício aceitando a demissão do CD


e nomeando um gestor, um professor de fora, com um “currículo”
impressionante: director da Escola Preparatória D. Carlos I - Sintra até ao
dia 25 de Abril de 1974, foi então saneado por comprovada colaboração
com a PIDE/DGS, agressões bárbaras a alunos, entradas abusivas nas
instalações sanitárias das alunas da escola e outros comportamentos
indecorosos, pelos quais foi afastado do ensino. E é este personagem,
Manuel Barrinho – de meia-idade, cabelo à escovinha, bigode minúsculo,
fato aos quadrados e gravata, calças por dentro das botas altas de
cabedal, porta-chaves com a efígie de Salazar e cavalo-marinho sempre
ao alcance da mão – que, pela mão de Cardia, agora diariamente começa
a passar pelo portão da escola, escoltado pela GNR, com a aparente
missão de “restabelecer a normalidade”.

Ao tomarem conhecimento deste ofício, os professores da Visconde


Juromenha reúnem-se em plenário onde unanimemente repudiam esta
nomeação ilegal. Igualmente, a Pró-Associação de Estudantes convoca
uma reunião geral de alunos no ginásio, em que o que ressalta é o
impressionante espírito de solidariedade para com os professores e
funcionários. Ali, e em apoio das reivindicações dos professores, os
alunos declaram-se em “greve por tempo ilimitado”.

Manuel Barrinho passa ao contra-ataque: convoca novo plenário e


impede que nele participem pais e funcionários. Por requisição formal do
novo gestor, na manhã do dia 29 de Abril, uma força de 30 elementos da
GNR cerca a escola, impedindo os professores de entrar. O mesmo
acontece aos funcionários, que durante duas horas, são obrigados a
permanecer à chuva intensa, antes de lhes ser permitida a entrada. Este
dispositivo manter-se-á dias a fio, até à sua rendição pelos homens da
polícia de intervenção.

Entretanto, Barrinho procura afincadamente identificar os promotores e


participantes no plenário anterior, que passam a ser constantemente alvo
de chantagem ou ameaças e acusados de “não quererem dar aulas”. Daí
ao levantamento de processos disciplinares é um curto passo. Desta
forma, todos os 70 professores da escola (excepção aos membros do CD
demitido) são rapidamente suspensos sem vencimento. Os mais de
cinquenta professores provisórios começam a ser chamados
individualmente às instalações do MEC na rua Júlio de Andrade, em
Lisboa, para serem ouvidos em fase de inquérito. Objectivo das audições:
tentar averiguar as motivações, a disposição para continuar a luta e,
obviamente, através de ameaças várias, tentar criar divisões no seio do
corpo docente. A reacção da escola, apoiada pelo SPGL, não se fez
esperar: depois de uma nocturna operação relâmpago de colagens, o
edifício ministerial amanheceu com as paredes completamente revestidas
de cartazes alusivos à luta da Visconde Juromenha. Entrementes, para
assegurar a substituição dos docentes provisórios suspensos, o MEC fez
publicar um vulgar anúncio de emprego nas páginas do “Diário Popular”.
Os professores-substitutos, assim contratados, apresentam-se na escola,
sendo de imediato ostracizados pelo legítimo corpo docente, alunos e
funcionários.

Os encarregados de educação, na sua maioria, solidarizam-se com a luta.


O grupo de pais que se opõe à luta, agitando o risco dos seus filhos
poderem perder o ano, acaba por ficar isolado. A comunidade escolar, a
uma só voz, exige do MEC condições para leccionar e a imediata e
incondicional reintegração de todos professores saneados. É decidido
que a escola permaneça em greve por tempo ilimitado até à realização
destes objectivos. O mal-estar é generalizado mas ninguém recua. O
dispositivo da GNR é então rendido pela Polícia de Intervenção, com
dezenas de agentes de capacete, escudo, pistola e bastão posicionados
ao longo do perímetro de toda a vedação da escola. Nela, contudo, junto
ao portão principal, continuam teimosamente afixadas as três faixas com
os seguintes dizeres: “A TUA ADERÊNCIA É FUNDAMENTAL PARA A
VITÓRIA!”, “NÃO AO DIRECTOR IMPOSTO! PELA GESTÃO
DEMOCRÁTICA” e “ADERE Á GREVE PELO REGRESSO DOS PROFS.
SUSPENSOS”.

O sindicato acciona o fundo de greve, suportando integralmente o


vencimento dos professores suspensos, até ao fim do processo de luta.
Os professores sindicalizados quotizam-se entre eles e retiram uma
percentagem que entregam aos colegas não sindicalizados.

As moções de solidariedade recebidas das mais variadas proveniências


sucedem-se em catadupa. Pelo meio há mais reuniões gerais de escola,
uma das quais, realizada na terceira semana de Maio, abarrotou a
Delegação de Sindicatos de Mem Martins.

Nela é decidida a afixação de faixas frente ao MEC e é constituída uma


delegação com dois pais, dois alunos, e dois professores para ser
recebida pela Presidência da República. Dando cumprimento a outra
decisão lá aprovada, no dia 22 de Maio os professores suspensos,

funcionários, alunos e pais realizam uma participada e combativa


manifestação pelas ruas da localidade que termina frente à sede da Junta
de Freguesia.
A greve só termina em Junho, durando 70 dias, e após o MEC ceder em
toda a linha: todo o corpo docente é reintegrado, o sinistro Barrinho deixa
a escola, o aparato policial é removido e é empossada uma Comissão
Directiva Provisória composta por professores da escola. Quanto às
condições de segurança, exigidas, só aos poucos começam a ser
satisfeitas pelas autoridades responsáveis.

Em Julho de 1978 a escola respira a normalidade possível e os alunos


finalistas realizam a 1ª chamada dos exames do 9º ano de escolaridade.
Dias depois o impopular II governo constitucional acaba por cair,
arrastando consigo o ministro Sottomayor Cardia. Em meados de Agosto
o independente Nobre da Costa é indigitado pelo PR para constituir o
novo Governo.

Desenhado pelo professor MAN – que à altura era o gráfico do sindicato -


o autocolante que no decorrer da luta foi orgulhosamente ostentado por
todos, acabava por fazer jus à simbologia do seu lettering: o “V” de
“Visconde” e, simultaneamente, de “Vitória!”.

(*) José MAN estreou-se na docência em 1976, como professor provisório,


na Escola Visconde Juromenha.

(**) Paulo Ambrósio foi aluno do prof José MAN na Escola Preparatória
Visconde Juromenha em 1977/78. Membro da Comissão de Homenagem
de ex-alunos a José MAN, através da recriação de uma aula (leccionada
pelo próprio) na mesma sala da antiga escola, a 19 de Junho de 2004.

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Quem é o professor José MAN

José MAN - aliás, José Manuel de Campos Albuquerque - nasceu em Lisboa, a 1 de Março de 1941.

É professor de arte visuais do ensino secundário desde 1976. Dirigiu cursos de serigrafia no IADE (73) e no
Centro de Formação de Professores de Cascais (99/02). Realizou o arranjo plástico do Ginásio Clube Português
(73), um conjunto de 22 quadros sobre os atletas portugueses nos Jogos Olímpicos (88 e 02) e um mural
cerâmico de 160 m2 na Escola Sec. S. João do Estoril (98). Organizou, entre muitas outras, a exposição 56
Artistas da António Arroio (86). Fundou o grupo de poesia Palavras Vivas (98), que dirige e no qual actua. Foi
dirigente da VIRAGEM - Associação de Artes Plásticas de Cascais (83/92) e da Federação Portuguesa de
Halterofilia (71/77).

Iniciou actividade jornalística (72), colaborando em diversos jornais e revistas, sempre na área desportiva,
tendo-a exercido profissionalmente no República (75). Editou e dirigiu as revistas Halter e Gente Miúda (80/84).
É autor do livro Companheiros da Minha Estrada. Entendendo o desporto como acto de cultura, praticou
halterofilia (67/74) .

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