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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 3
VIDA 5
Mario Vargas Llosa 6
Alain de Botton 11
Salman Rushdie 15
CULTURA 20
Zygmunt Bauman 21
Camille Paglia 25
Edgar Morin 30
MUNDO 34
Ayaan Hirsi Ali 35
Tariq Modood 41
CONHECIMENTO 45
Fernando Savater 46
Marcelo Gleiser 50
Susan Greenfield 54
SOBRE O FRONTEIRAS 60
INTRODUÇÃO
Ideias têm consequências. Elas podem disseminar o ódio
ou incentivar uma cultura de tolerância. Elas podem levar ao
progresso e à liberdade ou condenar sociedades a longos
períodos de escuridão. O século 20 nos deu provas disso. Os
grandes sistemas totalitários, o fascismo, o nazismo e o co-
munismo, nasceram de ideias. Nasceram do incansável tra-
balho de intelectuais que se imaginavam porta-vozes de um
tipo peculiar de virtude. A “grande virtude” capaz de oferecer
uma resposta simples e final à angústia humana: virtude da
História, do Estado total, da “luta de classes”, da superiorida-
de racial ou do delírio nacionalista.
3
A obra que você está prestes a ler é um e-book construído
a partir de uma peça maior. Não por isso se pretende menos
desafiador ou inquietante. Do 21 ideais do Fronteiras do Pen-
samento para compreender o mundo atual nasce esta
versão. Esperamos que todos naveguem bem pelos agitados
mares da incerteza, do pluralismo e da curiosidade intelectu-
al. É o nosso convite.
4
VIDA
Talvez uma das questões mais complexas a se levantar,
seja agora ou em qualquer momento da história, é: o que é a
vida? E são inúmeras as respostas possíveis. Entretanto, como
dito anteriormente, o que se busca aqui é a incerteza.
5
MARIO VARGAS LLOSA
Nascido em 1936, fez parte do grupo de ficcionistas que
mostrou a viabilidade da arte narrativa nos tempos contem-
porâneos, aniquilando os profetas do fim da literatura, então
numerosos. Ao lado de Gabriel García Márquez, Carlos Fuen-
tes, Julio Cortázar e outros autores de primeira grandeza,
participou do chamado boom da ficção latino-americana.
6
NÃO EXISTE UMA
SOCIEDADE PERFEITA
MARIO VARGAS LLOSA
Foi um período em que me senti órfão. Eu havia abandona-
do algo que, durante muitos anos, me dera segurança no
campo político, no campo cívico. E de súbito aquilo havia de-
sabado. Eu não acreditava que o socialismo pudesse trazer
realmente o paraíso à Terra. Ao mesmo tempo, eu me sentia
bastante perdido. Também nesse momento certos livros me
ajudaram, e um livro em especial me prestou enorme ajuda.
Um livro de Raymond Aron, O ópio dos intelectuais.
7
E o marxismo representa na aparência, e não na realidade,
esse tipo de perfeição buscado pelos artistas e pelos intelec-
tuais. Nele está desenhada, com extrema clareza, uma filo-
sofia na qual a história vai evoluindo, vai se transformando,
rumo a uma meta de felicidade, de prosperidade, de verda-
deira justiça e verdadeira liberdade.
8
muitas vezes, a trazer à Terra verdadeiros infernos. A ideia de
igualdade se convertia numa uniformização da sociedade,
obtida somente através de coerção – e de uma coerção ilimi-
tada, que não coincidia exatamente com o modelo dentro do
qual a ideia era colocada, pois não haveria como reprimi-lo,
castigá-lo ou exterminá-lo. Os ensaios de Jean-François
Revel, explicando, digamos, essas ideias a partir da experiên-
cia vivida por ele, dos desencantos sofridos enquanto militava
pelo socialismo, também foram extraordinariamente estimu-
lantes para mim.
9
lores. Que a liberdade é algo indivisível, que a liberdade não
pode ser aplicada no campo econômico sem ser aplicada no
campo político, que precisa ser algo que opere simultanea-
mente no campo político, no campo econômico, no campo
cultural, no campo social, no campo individual, e que o verda-
deiro progresso é ter cada vez mais opções para escolher
entre diferentes possibilidades em todos os campos da vida
humana, e que esse é o verdadeiro progresso, e que isso é o
que representa, fundamentalmente, a ideia liberal.
10
ALAIN DE BOTTON
Escritor e apresentador suíço, Ph.D. em Filosofia Francesa
pela Universidade de Harvard (EUA). Conhecido como “o filó-
sofo da vida cotidiana”, por seus livros de ensaios e progra-
mas de televisão que discutem os mais diversos temas, De
Botton é autor do best-seller A arquitetura da felicidade, tra-
duzido para mais de trinta países.
11
AS RELIGIÕES 2.0
ALAIN DE BOTTON
12
ênfase na moralidade. Eu gosto dos edifícios antigos. Choro
durante a Missa em Si Menor de Bach. Sou esse tipo de
pessoa”. Por muito tempo, esse tipo de pessoa enfrentou uma
escolha bastante difícil. Ou você fazia força para acreditar
em todos os tipos de doutrinas religiosas e aproveitava as
partes boas – Natal, Bach, os belos edifícios – ou deixava a
sua vida espiritual nas mãos da CNN e do Walmart. Não acho
que deva ser essa a escolha. A escolha não precisa ser tão
dramática. Creio que existe a possibilidade de que ateus
como eu, talvez como alguns de vocês, façam uso da religião.
13
mundo moderno não tem muitos anfitriões. Temos vários
lugares onde você pode ir para estar com pessoas. Temos
pouquíssimos agentes de apresentação.
14
SALMAN RUSHDIE
Em suas memórias, vazadas numa escrita elegante e
movidas por um inabalável senso de humor e por finas
ironias, Rushdie revela o quanto lhe custou acreditar que a
liberdade da palavra é a pedra inamovível da própria
liberdade individual.
15
QUANDO O MUNDO
DEIXA DE SER
PAROQUIAL
SALMAN RUSHDIE
16
Não digo isso para criticar Jane Austen, mas para mostrar
que o mundo descrito em seus livros é tão isolado em relação
ao mundo dos acontecimentos históricos que ela não precisa
se referir a eles. Ela pode descrever por inteiro as vidas de
seus personagens, ela pode meditar profundamente sobre
seus personagens e explicá-los sem que jamais precise
mencionar assuntos de interesse público, porque esses
assuntos simplesmente não interferem nas vidas das pessoas
sobre as quais ela está falando. Esse não é o mundo em que
vivemos.
17
O que fazer, porém, quando o mundo deixa de ser
paroquial e pequeno? Quando todas as nossas histórias
colidem com as outras histórias? Quando a história do mundo
árabe colide com o Ocidente? Quando não vivemos mais em
pequenas bolhas? Quando todas as pequenas caixas de
nossas vidas se abrem dentro de todas as outras caixas?
Como reagir a isso na condição de artista? Isso cria um
problema mais profundo, porque toda a arte do romance
talvez se baseie em algo dito pelo filósofo grego Heráclito
milhares de anos atrás: “O caráter de um homem é seu
destino”. Caráter é destino. O tipo de pessoa que você é
determina o tipo de vida que você terá. Toda a arte do
romance vem disso. Contudo, o que acontece quando o seu
caráter não é o seu destino? O que acontece quando o
colapso econômico é o seu destino? Quando o tipo de pessoa
que você é não determina a vida que você tem? Quando
coisas exteriores à sua vida invadem a sua vida e a
determinam? É uma pergunta que muitos escritores, hoje,
procuram compreender e responder.
18
que os seres humanos não são assim. Somos plurais e
contraditórios. Como Walt Whitman disse: “Eu me contradigo?
Muito bem, eu me contradigo”.
19
CULTURA
Pode-se afirmar que a definição de cultura encontra uma
infinitude de respostas, assim como falar sobre vida.
Entretanto, é consoante entre os termos que é justamente
essa complexidade que torna os conceitos tão instigantes
para estudo e compreensão do mundo ao nosso redor.
20
ZYGMUNT BAUMAN
Zygmunt Bauman foi um daqueles pensadores sociais que
não apenas nos apresentou leituras poderosas de nossa
sociedade, como nos legou os termos e as categorias pelas
quais fazemos essa leitura. Sociólogo e filósofo exilado de sua
Polônia natal pelo regime comunista em 1968 – embora sua
inclinação pessoal sempre fosse para o socialismo, de tipo
não totalitário –, sua vasta obra de análise da modernidade e
do Ocidente tem alcance mundial.
21
UM MUNDO SOB
MEDIDA PARA
CADA SER HUMANO
ZYGMUNT BAUMAN
22
fundamente convencido de que, se Freud estivesse dando
essa entrevista aqui, no meu lugar, ele provavelmente repeti-
ria que toda civilização é uma troca, mas o seu diagnóstico
seria exatamente o oposto, que os nossos problemas hoje de-
rivam do fato de que nós entregamos demais a nossa segu-
rança em prol de mais liberdade. Esse é um dilema. Eu acho
que já sinto alguns sinais prodrômicos de que o pêndulo está
começando a voltar em direção a mais segurança.
23
Se você tivesse nascido vinte anos antes, sua gama de
opções seria diferente; se você tivesse nascido vinte anos
depois, novamente seria diferente; se você tivesse nascido
neste bairro rico, você teria uma gama de opções; se você
tivesse nascido num gueto, seriam opções completamente di-
ferentes. Mas sempre há gamas de opções proporcionadas
pelo destino. Porém, as escolhas entre essas opções são feitas
pelo caráter. E como os tipos de caráter são muitos e bem di-
ferentes, não é possível dar uma receita para a felicidade. Eu
sei que hoje existem consultores ganhando muito dinheiro ao
fingir que possuem receitas para a felicidade. Não acredite
neles, eles estariam enganando você. Eu jamais ousaria dar
esse tipo de conselho. Não estou me comparando a Sócrates,
mas muitos filósofos contemporâneos consideram a vida de
Sócrates, sua personalidade, que ele construiu, como a relati-
vamente mais perfeita possível que se pode imaginar. Mas o
que isso significa? Significa que o tipo de vida escolhida por
Sócrates era considerada a solução perfeita para Sócrates?
Significa que todos nós devemos imitar Sócrates e tentar ser
iguais a ele? Não, pelo contrário, porque Sócrates precisa-
mente considerava que o segredo de sua felicidade estava no
fato de ele próprio, por sua própria vontade, ter criado a
forma de vida que ele viveu.
24
CAMILLE PAGLIA
Ph.D. pela Universidade de Yale e professora de Humanida-
des e Estudos Midiáticos da University of the Arts, na Filadél-
fia, a norte-americana Camille Paglia é frequentemente
apontada como uma das críticas de arte e sociedade mais
controversas da atualidade. Entre as ideias que lhe conferem
tal aura entre o público figuram sua objeção ao feminismo
radical e a rejeição a diversos preceitos da arte contemporâ-
nea.
25
A REPRESENTAÇÃO
DA FIGURA FEMININA
E “AS SENHORITAS
DE AVIGNON”
CAMILLE PAGLIA
26
deveriam ficar atentos ao entrar nesse bordel. Tem uma
mesinha de café, onde foram deixadas algumas frutas e
lanches. De modo bizarro, há uma fatia de melão que virou a
Lua cheia – uma Lua cheia extremamente pontuda, que
ameaça castrar qualquer homem que entrar pela porta. E há
outras frutas com aparência de cinzas – peras e pêssegos –,
dando a impressão de ter havido uma castração de clientes
anteriores.
27
sigam direto de volta aos anos 1880 e reinventem toda a
história da arte moderna nos últimos 100 anos”. Isso é loucura!
Há livros após livros que reduzem Picasso a situações
negativas da sua biografia. Até mesmo eu posso pensar que
Picasso era um homem mau a partir do modo como ele
tratava as mulheres, mas ele foi um grande artista. Posso
separar essas duas coisas. Não podemos permitir esse tipo de
invasão do estudo da arte por animosidades oriundas de
“ideólogos” que não compreendem a história e a tradição das
belas-artes. Para compreendermos essa pintura de Picasso,
temos de traçar todo o caminho de volta para o que Ticiano e
Botticelli faziam com o nu feminino. Quando visto nessa
sequência, a incrível originalidade da pintura se torna
aparente. Além disso, a brilhante evocação de Picasso da
mitologia antiga pode ser totalmente apreciada através de
um estudo da antropologia.
28
o pós-estruturalismo padecem de uma visão estreita, de uma
miopia ou de uma incapacidade de ver, uma incapacidade de
considerar uma perspectiva mais ampla, como a visão
cósmica que foi uma das maiores conquistas da minha
própria geração, nos anos 1960, influenciada pelo hinduísmo
e pelo budismo – dois sistemas religiosos que, infelizmente,
careceram em termos da exposição da juventude a eles, pelo
menos nos EUA. Com certeza, fui profundamente influenciada
por meus estudos das religiões asiáticas, creio que na
perspectiva mais ampla possível. Ao mesmo tempo, sou
fascinada pelo artifício, pela magia da personalidade e pelo
papel transformador dos trajes, dos cosméticos e das
parafernálias simbólicas das diferentes culturas ao longo do
tempo. Essa é a razão pela qual sempre endossei a indústria
da moda e as revistas de moda, em oposição ao feminismo
norte-americano dos anos 1970 e 1980. Não por ser uma
escrava da moda; pelo contrário, na vida real sou, de fato,
muito comum, muito banal, sou simplesmente uma
professora. Mas, sim, por conceber a moda como parte da
herança das belas-artes.
29
EDGAR MORIN
Edgar Morin é um dos mais populares pensadores
franceses contemporâneos. Nascido em 8 de julho de 1921,
formou-se em Direito, História e Geografia pela Universidade
de Paris em 1942.
30
GLOBALIZAR E
DESGLOBALIZAR:
POR UMA POLÍTICA
DA HUMANIDADE
EDGAR MORIN
31
Levando em conta minha afirmação de que a globalização
é ambivalente, que o desenvolvimento é ambivalente, a nova
voz não consistiria em um desejo de suprimir a globalização,
de desglobalizar – como proclamam certas mentalidades,
que têm consciência da palavra globalização, mas que não
têm consciência dos seus elementos positivos, por exemplo
esta solidariedade que se criou entre seres humanos.
Também o desenvolvimento tem seu lado positivo e seu lado
negativo. O que isso significa? Significa que é preciso globali-
zar e desglobalizar. Isso pode parecer bizarro, já que a nossa
mente não está habituada a assimilar noções que aparentam
ser mutuamente excludentes, mas globalizar significa dar se-
guimento a tudo aquilo que contribui para a solidariedade
humana, para as interações, para a concepção de uma cultu-
ra planetária; ao passo que desglobalizar significa salva-
guardar a autonomia local, regional, nacional, garantir que
as nações e que as regiões não sejam despovoadas, não per-
maneçam dependentes. Afirmei que o desenvolvimento, tal
como é concebido, tende a destruir as comunidades, as soli-
dariedades; esse envolvimento significa salvaguardar tudo
aquilo que nos envolve em uma comunidade, e precisamos
do individualismo, que é produto do Ocidente, e do comunita-
rismo, que é próprio das sociedades tradicionais. Tendo o
Ocidente desintegrado as solidariedades, eu diria que ele
precisa, ao contrário, reencontrar essas solidariedades e, so-
bretudo, respeitá-las, respeitar essa solidariedade das socie-
dades tradicionais.
32
mo das populações miseráveis e pobres. É preciso combinar
crescimento e decrescimento, ou seja, o que deve crescer com
o que deve decrescer – e o que deve crescer é uma economia
verde, isto é, de energia limpa, uma economia que transfor-
ma as cidades, que as deixa saudáveis e humanizadas. Por-
tanto, é preciso combinar globalização e desglobalização,
desenvolvimento e envolvimento, crescimento e decresci-
mento – e isso, a meu ver, substituindo a palavra desenvolvi-
mento por política da humanidade.
33
MUNDO
O globalismo, tratado no capítulo de Edgar Morin, é um fe-
nômeno inevitável e, como proposto pelo autor, interpretá-lo
fazendo uma balança saudável pode ser a melhor solução
para os povos.
34
AYAAN HIRSI ALI
De uma maneira ou de outra, a vida e a obra da escritora
somali de origem muçulmana, Ayaan Hirsi Ali, fazem-nos
pensar na trajetória pessoal e intelectual de uma outra
mulher. A filósofa e cientista política Hannah Arendt, cuja
obra, ainda hoje, constitui forte ponto de controvérsia para o
povo judeu.
35
A ILUSÃO DA
DOUTRINA DO
MULTICULTURALISMO
AYAAN HIRSI ALI
36
cheio de coisas para fazer. Na verdade, eu sabia que ele ia
ficar batendo papo com seus amigos somalis, mascando qaat
até tarde da noite. Meu pai sentia-se triste por Ter Aar ter
frustrado seus hábitos, pois sem carro era muito difícil voltar
para casa depois da meia-noite. Ele se recusava a aprender
a andar de bicicleta e não podia bancar um carro com a
ajuda de custo que recebia. Além disso, nossos cuidadores se
certificavam de que o dinheiro fosse empregado em comida e
necessidades básicas das crianças.
37
sobre o tempo que vivera conosco na Somália: o caos e a ne-
gligência que nos rodeavam, os problemas causados porque
não havia ninguém para nos ensinar a discernir o certo e o
errado. Descreveu nossa vida em Ter Aar, como passamos a
ter uma rotina estável e ordenada, como toda a cidade tinha
nos acolhido. Havíamos nos tornado fluentes em holandês.
Margriet também descreveu nossas atividades na cidade: eu
cantava no coral; Muhammad e Sa’eed tinham se transfor-
mado em celebridades no time de futebol dos meninos; os
gêmeos filhos do prefeito eram os melhores amigos dos
nossos gêmeos. Depois desse relato, Rita e Liesbeth detalha-
ram como tinha sido difícil fazer com que chegássemos até ali
e as consequências de interromper tudo para que fôssemos
morar com nossos parentes somalis. Alertaram o comitê a
respeito das condições de moradia em Haia: projetos aperta-
dos, blocos de apartamentos insalubres e abundantes de
problemas sociais. Escolas inadequadas, lotadas de crianças
se arrastando para concluir a educação. Eram chamadas de
“black schools” pelos holandeses nativos, que não queriam
mandar seus filhos para estudar nelas. Margriet contrastou
essas escolas com os parques de Ter Aar, o ar saudável do
campo, as flores, as abelhas, a natureza. Concluiu dizendo
que os voluntários de Ter Aar não iam roubar nossa identida-
de, ao contrário, eles nos respeitavam como indivíduos, res-
peitavam nossa capacidade e nos ajudavam a nos tornar
cidadãos bem integrados. Após os membros do comitê terem
anotado todas essas informações, olharam silenciosamente
para Margriet. Em seguida, o coordenador chamou meu pai e
perguntou o que ele pensava de tudo aquilo, porque sua opi-
nião ia contar muito. Ele disse: “Eu confio em Deus. Ele, e só
Ele, pode antecipar o futuro. O destino quis que eu reunisse a
família e educasse minhas crianças de acordo com a tradição
da minha fé e de meus ancestrais”.
38
Duas semanas depois saiu o veredicto. Levei a carta a Lies-
beth e ela a leu para mim. Quando ouvi o que estava escrito,
caí em prantos. Sugeri que escondêssemos a carta de meu
pai. Margriet, Liesbeth e Rita choraram junto com a gente,
mas disseram que o certo seria mostrar a carta ao meu pai.
No dia de nossa despedida do único lugar onde tínhamos sido
verdadeiramente felizes, os nossos amigos queridos ficaram
em silêncio. Já faz dez anos desde que partimos de Ter Aar e
estamos novamente à deriva. O destino deu a última palavra.
Meu pai se casou com Haddiyo. Seu falatório fez com que
meu irmão fugisse para a rua e se juntasse a outros garotos
de sua idade, também de lares infelizes, para matar aula e se
vingar destruindo tudo o que encontram pela frente. Haddiyo
trata minhas irmãs e eu como empregadas. Não sei o que vai
ser dos meus irmãos mais novos. Será essa nossa identidade?
Nossa origem nobre? Servidão, opressão, miséria? Cada vez
que olho para meu pai, fico imaginando como ele pôde acre-
ditar que estaríamos melhor nesses lugares sórdidos do que
em Ter Aar. A resposta que não ouso verbalizar, mas que já
admiti para mim mesma há muito tempo, é que não existe ne-
nhuma dignidade na preservação nem na promoção da
nossa identidade.
39
mente as ações que promovem o bem-estar e o desenvolvi-
mento humano merecem ser cultivadas, sejam ou não tradi-
cionais.
40
TARIQ MODOOD
Intelectual britânico-paquistanês, professor na Universida-
de de Bristol, no Reino Unido, é destaque há duas décadas
nas áreas de políticas públicas, sociologia e ciência política
defendendo precisamente a posição multiculturalista.
41
MULTICULTURALISMO
E MODOS DE
INTEGRAÇÃO
TARIQ MODOOD
42
novos habitantes se tornando mais parecidos com a popula-
ção existente. A integração é processo no qual deve haver
mudança, adaptação, sensibilidade de ambas as partes e,
em particular, cabe às instituições da sociedade fazerem o
maior esforço no sentido de mudar para se acomodar a esses
novos indivíduos, cujas sensibilidades, cujas experiências e
cujos conhecimentos têm pouca chance de serem incluídos.
43
tidade religiosa, que pode estar relacionada ao hinduísmo, ao
islamismo, à religião dos sikhs e assim por diante. Os grupos,
portanto, são muitos, o que é capturado pelo termo “multi”.
Não são homogêneos e a sociedade não pode ser simples-
mente dividida em dois, o predominante constituindo a maio-
ria, e o singular, a minoria. Existem muitas minorias e, na ver-
dade, até mesmo a maioria é diversa em seu interior. Assim, o
multiculturalismo é uma forma de integração, mesmo que
muitas pessoas, hoje em dia, tanto na Europa quanto em
outros continentes, o critiquem por não ser suficientemente
sensível às questões da integração, por dificultá-la e até por
rivalizar com ela. Nenhuma dessas críticas é correta, na
minha opinião, porque o multiculturalismo é uma forma de
integração, uma forma pluralística de integração.
44
CONHECIMENTO
Existe uma diferença marcante entre conhecimento e
informação, pontuada por Susan Greenfield em sua confe-
rência ao Fronteiras do Pensamento. Afinal, é inegável que o
acesso à informação cresceu de forma desenfreada nos últi-
mos anos com as novas tecnologias.
45
FERNANDO SAVATER
Possivelmente o mais importante intelectual da Espanha
nos últimos quarenta anos, Fernando Savater, nascido em
1947, tornou-se uma referência não apenas em seu país, mas
também na Europa e na América Latina. Professor de Filoso-
fia na Universidade Complutense de Madri e na Universidade
Basca, negou-se a permanecer nos limites do universo aca-
dêmico e vem produzindo uma vasta obra que abrange di-
versas áreas do conhecimento, como a Ética, a Educação, a
Política e a Literatura, entre outras.
46
contrário, a tarefa da educação é a de capacitar os alunos
tanto para o ato de persuadir quanto o de serem persuadi-
dos, o que exige, antes de tudo, aperfeiçoamento ético e um
conhecimento mais aberto e plural da existência.
47
galpa no mapa; não, ele se refere à ignorância que é perigo-
sa à democracia, a ignorância de quem é incapaz de enten-
der um argumento alheio, incapaz de entender um texto sim-
ples, quando o texto expõe uma série de questões importan-
tes. Ou seja: o ignorante é incapaz de persuadir os outros ou
de ser persuadido pelos outros. Quem não consegue persua-
dir ou ser persuadido não está preparado para uma vida de-
mocrática. Porque a democracia parlamentar é um regime
de persuasão mútua. Todos temos de tentar persuadir os
outros e nos abrir à persuasão dos outros.
48
Coragem para poder viver, e generosidade para pode con-
viver. Conviver sempre exige, de alguma maneira, ceder.
Todos nós acalentamos, na infância, um sonho de onipotência
que aos poucos vai se desfazendo conforme percebemos que
somos apenas um entre muitos, cada um com seus objetivos.
A convivência com os outros é sempre um pouco dolorosa,
sempre um pouco frustrante. Nem sempre podemos fazer o
que queremos, precisamos limitar nossos desejos no choque
com os demais. Precisamos de generosidade para suportar
os desejos alheios e para ajudar, também, a quem não pode
cumprir suas próprias expectativas sociais e necessita de
apoio. Coragem para viver, generosidade para conviver e,
por fim, prudência para sobreviver. A vida é cheia de armadi-
lhas, dificuldades e riscos. Fazer o bem é muitas vezes arris-
cado, e de nada serve o martírio sem algum proveito.
49
MARCELO GLEISER
Físico teórico especializado em cosmologia, física de altas
energias, teoria da complexidade e astrobiologia. Professor
do Dartmouth College em Hanover (EUA), formou-se na PUC-
-Rio (1981), realizou seu mestrado na URFJ (1982) e doutorou-
-se pelo King’s College London (1986).
50
QUANDO NÃO EXISTE
CONFLITO ENTRE
CIÊNCIA E FÉ
MARCELO GLEISER
51
entre ciência x religião? Acho que a melhor maneira é a se-
guinte. Se tirarmos das religiões a roupa do dogma, qual é a
sua essência, a essência de todas as religiões? É o contato
com uma espiritualidade, com uma espécie de emoção pri-
mordial com o mundo, com a natureza. Sempre nasceram
assim. Lembra? No início da história da religião as árvores
eram sagradas, os montes eram sagrados, essa pedra tinha
um significado. Existia uma relação de maravilhamento com
o desconhecido, e essa espiritualidade é que deu origem à
religião. Essa é uma sensação, uma coisa subjetiva, individual,
que cada um pode ter. É uma procura de você mesmo com
sua espiritualidade, perante um mundo que é muito maior do
que a gente. Se você tira o ritual, o dogma cristão, judaico,
muçulmano, hindu, budista, essencialmente todas as religiões
falam dessa relação do ser humano com essa espiritualidade,
essa ressonância com o mundo.
52
sobre o universo, sobre as estrelas, sobre os planetas, sobre a
vida que existe à nossa volta e a que talvez possa existir em
outros lugares. E sabe o que a gente descobre? Que a vida é
extremamente rara. Você olha para Vênus, onde a temperatu-
ra na superfície é de mais de 400 graus, um efeito estufa terrí-
vel. Mercúrio é uma desgraça. Marte, se teve vida não tem
mais. Júpiter e Saturno não têm vida, impossível. Então, o que
a gente aprende com isso tudo? Que a vida é extremamente
rara e extremamente bela. Se existe uma nova moral que tem
que ser adotada o quanto antes é justamente o dever de cele-
brar a vida e sua raridade. Creio que a grande lição que
aprendemos com a ciência moderna é justamente essa, que
temos uma casa que, apesar de tão insignificante, é profun-
damente importante no universo. A vida é rara, a vida é pre-
ciosa. Nós temos a obrigação moral de preservar essa vida e
esse nosso planeta. Essa é a essência do ensinamento científi-
co para o século 21.
53
SUSAN GREENFIELD
Renomada pesquisadora do departamento de fisiologia
médica de Oxford, com passagens pelo Collège de France e
pelo Centro Médico da Universidade de Nova York, além de
dezenas de premiações e, não suficiente, baronesa, membro
da Câmara dos Lordes britânica.
54
COMPUTADORES
MELHORAM NOSSO
QI, MAS REDUZEM
NOSSA INTELIGÊNCIA?
SUSAN GREENFIELD
55
e a intuição melhoraram. Não devemos confundir informação
com conhecimento.
56
página – acima da Primavera Árabe, acima da crise
econômica, acima do colapso da União Europeia, acima de
tudo. Vejamos o que dizem as estatísticas. Cinquenta e quatro
por cento das crianças do grupo entre 13 e 17 anos passam
mais de trinta horas por semana, de modo recreativo, na
frente da tela. De quatro a cinco horas por dia não fazendo
outras coisas, sem caminhar na praia, sem abraçar alguém,
sem sentir o Sol no rosto. Houve um estudo recente no Reino
Unido mostrando que, desde 1970, o espaço no qual as
crianças perambulam livres e podem brincar diminuiu 90%.
São pessoas vivendo suas vidas em duas dimensões,
estimulando apenas a visão e a audição. Preferem essa vida
a uma vida em três dimensões, com estímulos aos cinco
sentidos.
57
desviamos o olhar. Não encontramos nada, nenhuma dessas
coisas no Facebook. Sobretudo se você for jovem e não tiver a
experiência de amizades reais, relacionamentos reais, você
nunca praticará contato visual, linguagem corporal, tom de
voz, contato físico – e, como vimos, sem praticar, você não vai
fazer bem.
58
dança mental, poderíamos usar as tecnologias para as pes-
soas serem mais criativas, para ajudá-las a se desenvolver
como indivíduos. Nunca antes tivemos a oportunidade de
fazer isso.
59
SOBRE O FRONTEIRAS
DO PENSAMENTO
O Fronteiros do Pensamento é um evento comprometido
com a liberdade de expressão, a diversidade de ideias e a
educação. O projeto promove conferências com pensadores
de todo o mundo e desenvolve conteúdos múltiplos para a
posteridade.
SAIBA MAIS
Organizador: Ricardo Santos; Revisão: Renato Deitos;
Design: Leonardo Francisco.