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A arte de perder - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 16/03

Quando algo é subtraído da minha vida, logo lembro o poema de Elizabeth Bishop, A Arte de Perder,
em que ela diz que perder não é nenhum mistério. Só perdi bobagens na minha infância e
puberdade, nada que fizesse falta a ponto de me doer até hoje. Depois, adulta, perdi alguns afetos
importantes (“tantas coisas contém em si o acidente”), e agora dei para perder itens materiais que
desaparecem de uma hora para outra. Começou com minha carteira recheada de documentos e
cartões, sumida num passe de mágica, nunca mais a vi.

Dia desses, bobeei de novo. Das primeiras horas da manhã até o início da noite, revirei a casa atrás
do meu smartphone (“perca um pouquinho a cada dia”), e acabei encontrando-o muito tempo
depois em cima da máquina de lavar, no modo silencioso, entre uma pilha de jornais – esquecido em
algum momento em que fui dar de comer para o gato na área de serviço.

Comentei recentemente que estou entrando na fase de não juntar lé com cré (“depois perca mais
rápido, com mais critério: lugares, nomes, a escala subsequente”), as palavras evaporam da
lembrança – isso durante conversas fiadas. Textos por escrito se salvam porque podem ser pensados
e repensados antes de irem para o jornal.

Não perco a fé, pois um lampejo de crença é preciso ter para levantarmos da cama todas as manhãs,
mas cada vez que assisto aos telejornais e suas más notícias, a esperança desaparece como uma
carteira, um celular. Não sei se voltará.

“Aceite, austero. A chave perdida, a hora gasta bestamente”.

Perder chave não é problema, sempre há uma sobressalente, e a hora gasta bestamente é perda
divertida, saudável, moleca, venero as horas gastas bestamente. Sou pontual não só por educação,
mas para me sobrar tempo para o nada.

Mas andei perdendo meus óculos de grau. E isso mudou tudo, cara Elizabeth Bishop.

Encomendei um novo que levou 10 dias úteis para ficar pronto, 10 dias que para mim foram de
imagens turvas, nebulosas. Não enxergava as mensagens que chegavam pelo celular (aquele que
perdi e recuperei), nem os sensacionais contos de Nu, de Botas, do Antonio Prata (sobre a infância
que perdemos e que no livro ele recupera), nem o aviso na parede do prédio sobre a próxima
reunião de condomínio, que sempre perco e desse mal não me recupero. Meus óculos de grau, onde
ficaram?
Perdi na beira de uma praia de Santa Catarina, ali, na areia, lugar da adolescência que perdi, mas
também recuperei – a maturidade tem dessas proezas.

“É evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito
sério”.

Escrevo. Meio cega às vezes, com menos poesia do que gostaria, aturdida com minhas distrações,
mas ainda escrevo – para não me perder.

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