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Lorenzo Nacheli
São Paulo
2015
FACULDADE DE SÃO BENTO
LICENCIATURA PLENA EM TEOLOGIA
Lorenzo Nacheli
Monografia apresentada ao
Curso de Licenciatura em Teologia
da Faculdade de São Bento do
Mosteiro de São Bento de São
Paulo, como requisito parcial para a
obtenção do título de Licenciado em
Teologia.
São Paulo
2015
Dedico este trabalho a todos os
meus irmãos do Sermig - Fraternidade
da Esperança e a todos os amigos e
voluntários do Arsenal da Esperança,
pois foram a dedicação e a paciência
deles que nos permitiram fazer este ano
de formação na Itália.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos acolhidos do Arsenal da Esperança que me ajudam todos os dias a viver
as palavras do Evangelho. Agradeço a todos os amigos que participaram do curso de
catecismo e que me deram a inspiração para a realização deste TCC.
Agradeço a Ernesto Olivero e a dom Luciano Mendes de Almeida (in memoriam), que
acreditaram em mim desde que me conheceram e que, apesar da minha pobreza, viram em
mim um possível presbítero.
Agradeço a Thais dos Santos Domingues pela revisão, pelos conselhos e pelo apoio
que nunca faltaram ao longo do percurso de realização deste TCC. Agradeço a Chiara Dal
Corso pelo aconselhamento iconográfico.
Agradeço à mamãe Pina e ao papai Calogero, porque é sempre bom agradecer aos
pais. Sem eles, esta história sequer teria começado.
RESUMO
Este trabalho pretende oferecer argumentos a favor de uma evangelização que não faça
distinções, mas que, ao contrário, se coloque diante de todos os jovens, homens e mulheres
com o mesmo amor e entusiasmo do Deus semeador. Os mais pobres, simples ou
"complicados" têm o direito de receber o anúncio do Evangelho de forma acessível para eles.
Este trabalho está dividido em duas partes principais. A primeira motiva a evangelização das
pessoas mais simples. A segunda ilustra o percurso de um catecismo essencial elaborado com
a Palavra de Deus e com imagens, em um método que convida todos os catequistas a costurar
uma formação sob medida para cada grupo a ser formado à fé cristã.
This study aims to provide arguments in favor of an evangelization that does not make
distinctions, but instead is put before all the young people, men and women with the same
love and enthusiasm of God sower. The poorest, simple or "complicated" have the right to
receive the Gospel in an accessible way for them. This work is divided into two main parts.
The first motivates the evangelization of the simplest people. The second illustrates the route
of an essential catechism prepared with the Word of God and images, in a method that invites
all catechists to sew a training tailored to each group to be formed to the Christian faith.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 98
INTRODUÇÃO
Como e por que semear no campo pedregoso onde, à primeira vista, não poderia
nascer nada?
Quando lemos a parábola do semeador (Mt 13,1-9; Mc 4,3-9; Lc 8,4-8), logo nos
perguntamos em quais condições o nosso coração está em relação aos campos que as
parábolas nos apresentam: será que a Palavra de amor de Deus está verdadeiramente
penetrando na minha vida? Encontrou uma boa recepção? Estamos deixando frutificar a
Palavra ou os nossos propósitos permanecem somente palavras jogadas ao vento que não se
traduzem em fatos? Porém, quando essa mensagem é lida por aqueles que são os
"semeadores", o destaque maior se dá na questão do campo que encontro à minha frente e que
precisa ser semeado. O semeador da parábola (Mt 13,1-9) não se importa com as condições do
terreno: ele semeia abundantemente, de mãos cheias, jogando a semente em todos os cantos.
Às vezes, os semeadores – os evangelizadores – esquecem-se dessa confiança que Deus põe
em todas as pessoas, em qualquer ser humano, sem olhar presente ou passado. Os semeadores
muitas vezes preferem sonhar em encontrar campos bom, férteis, com terra boa que produza
muito fruto, com jovens e adultos prontos a receber e a colocar em prática rapidamente o
ensinamento que lhe é apresentado. Mas nem sempre acontece de as pessoas à nossa frente
estarem prontas para receber a semente boa. Hoje, na maioria das vezes, não é assim. Mesmo
os campos – os corações – que teriam todas as condições para acolher a Palavra de Deus e a
filosofia do agir cristão acabam muitas vezes desperdiçando a semeadura, escolhendo
caminhos mais simples, às vezes paralelos, mas não o caminho proposto. Ainda assim, não
podemos parar de semear, sabendo que a semente poderá produzir em tempos diferentes e que
talvez sejam outros a cuidar da colheita.
Neste nosso tempo, quando parece cada vez menos necessário falar de Deus, entender
o seu amor ou simplesmente procurá-lo, vendo as nossas comunidades esvaziadas e as
vocações cada vez mais escassas, sentindo-nos ameaçados por muitos lados, a tentação que
bate à nossa porta é a ideia de que tornou-se indispensável fazer uma grande "campanha de
recrutamento" que visa o convencimento e o "alistamento" de novos cristãos. É como se
estivéssemos indo rumo a uma disputa ou, ainda pior, a uma guerra de convencimento e de
proselitismo, onde só os números no final contam. Parece que, na concepção de muitos, nesse
tipo de campanha os resultados e os números são mais importantes do que o contágio de amor
que a Palavra pode operar no coração das pessoas. Com essa "filosofia", é fácil cair no engano
11
Como podemos intuir lendo a carta apostólica Evangelii Gaudium de papa Francisco,
as palavras dos Evangelhos contagiam essencialmente depois da "alegria" de encontrar
alguém transformado pelo encontro com Jesus, porque um homem ou uma mulher só encontra
Deus quando enxerga nos olhos e na vida de outro homem ou outra mulher essa alegria de
seguir Jesus Cristo. Mas isso requer paciência, e não pressa. Só se conhece uma pessoa
convivendo com ela por muito tempo. Os próprios apóstolos, depois de ter caminhado muito
com Jesus, não O conheciam plenamente. Acontece com todas as pessoas, em todos os
relacionamentos: é só um pouco por vez e ao longo do tempo que passamos a confiar e nos
deixamos transformar. Muitas vezes, são necessários anos para encontrar Jesus nos cristãos,
entender que houve um encontro com Cristo, acreditar e colocar-se à escuta de Deus, para
procurar o próprio encontro com Deus no íntimo do próprio coração.
Papa Francisco sabe bem disso e lembra ao povo cristão que, mesmo que seja justo
convencer o outro de que o melhor que pode acontecer na vida dele é se tornar cristão,
devemos ter em mente alguns princípios que nos ajudam a proceder segundo a lógica de
Deus. Ele enuncia esses princípios na própria Evangelii Gaudium. Por exemplo, lembra-nos
de que "o tempo é superior ao espaço" (FRANCISCO, 2013, § 222). Isso quer dizer que "este
12
princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos. Ajuda a
suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o
dinamismo da realidade impõe" (FRANCISCO, 2013, § 223). Em qualquer esforço de
evangelização, no encontro com o outro, não podemos agir seguindo a obsessão pelos
resultados. O mundo não vai se encher de cristãos apenas com o nosso esforço, mas sim com
a vivência conjunta e honesta dos cristãos no meio dos todos aqueles que encontram. Dar
prioridade ao espaço significa ter consciência de que é mais importante a semeadura do que os
resultados imediatos. Somos chamados a não ter medo de começar com qualquer pessoa um
caminho de aproximação à fé, um percurso de formação. Talvez inventando cada um uma
maneira particular, se for necessário, mas todos devem encontrar as portas abertas.
Precisamos encontrar o sentido do acompanhar as pessoas no seu caminho em direção a Deus,
sabendo que o caminho de uma pessoa é sempre longo e pode ser auxiliado pela experiência e
pelo acompanhamento de muitas pessoas.
Além de dar as motivações para essa postura de vida, que podemos definir
simplesmente "evangélica", outro objetivo deste trabalho é sistematizar um método que nasce
da experiência da comunidade do Arsenal da Esperança1. Há anos essa comunidade procura
enfrentar o desafio da evangelização dos próprios acolhidos, direta ou indiretamente. O
1
O Arsenal da Esperança é uma casa em São Paulo que acolhe diariamente 1.200 homens em situação de rua e
que quer ser "um lugar de fraternidade, aberto à acolhida e ao encontro com quem quiser procurar o sentido da
sua vida". Informações disponíveis em: <http://www.sermig.org/br/arsenal-da-esperanca>. Acesso em: 27 abr.
2015.
13
primeiro passo é acolher todos com a mesma atenção e dedicação. Deus está sempre presente
e é a base desse carinho e desse "profissionalismo". Para aqueles que manifestam o desejo de
aprofundar a própria fé depois de ter conhecido os amigos da Fraternidade que habitam e
animam a casa, procuramos costurar para eles um percurso que os aproxime à figura de Jesus
Cristo. Não se trata de uma experiência de sucesso imediato; pelo contrario: a impressão que
fica é a que estamos jogando sementes no meio de pedregulhos. Ainda assim, temos a
esperança de deixar algo que possa mudar suas vidas. Trata-se de uma reflexão, de um
método desenvolvido para tentar alcançar todos os que se deixam atrair pela bondade de
Deus.
Da Evangelii Gaudium, extraímos outros princípios que podem nos ajudar nesse
desafio. Por exemplo, entender que "a realidade é mais importante do que a ideia"
(FRANCISCO, 2013, § 231). Que bem podemos fazer se não sabemos ler a realidade que está
à nossa frente e pretendemos aplicar algo já organizado? A flexibilidade da evangelização é
cada vez mais necessária em um cenário de relatividade.
As ideias que estudamos e que nos preparam para o papel de semeador na maioria das
vezes chocam-se com a realidade que encontramos nas nossas comunidades. Nesses casos,
precisamos aceitar a realidade e não deixar que as ideias aprendidas se tornem mais
importantes do que as pessoas, abortando qualquer tentativa de aproximação. As pessoas
precisam do nosso acompanhamento e, pelo bem espiritual delas, temos que ter a coragem de
mudar de direção e de método mesmo em pleno caminho. É nesse sentido que utilizamos o
verbo "costurar" para visualizar esse amor necessário para personalizar um caminho de
formação.
Não podemos esquecer também que "a unidade prevalece sobre o conflito"
(FRANCISCO, 2013, § 226). Não existe evangelização eficaz se quem se aproxima da
comunidade não encontra nela o espelho do Evangelho:
14
2
Fundador do Sermig - Fraternidade da Esperança. "O Sermig - Serviço Missionário Jovens – nasceu em 1964
de uma intuição de Ernesto Olivero e de um sonho compartilhado com muitos: derrotar a fome com obras de
justiça e de desenvolvimento, viver a solidariedade para com os mais pobres e dar uma atenção especial aos
jovens, procurando junto a eles os caminhos da paz. Dos 'sins' de jovens, casais e famílias, monges e monjas
nasceu a Fraternidade da Esperança, para estar perto do homem do nosso tempo e ajudá-lo a encontrar Deus."
("Il Sermig - Servizio Missionario Giovani – è nato nel 1964 da un'intuizione di Ernesto Olivero e da un sogno
condiviso con molti: sconfiggere la fame con opere di giustizia e di sviluppo, vivere la solidarietà verso i più
poveri e dare una speciale attenzione ai giovani cercando insieme a loro le vie della pace. Dai 'Si' di giovani,
coppie di sposi e famiglie, monaci e monache è nata la Fraternità della Speranza, per essere vicini all'uomo del
nostro tempo e aiutarlo a incontrare Dio.") Disponível em: <http://sermig.org/it/fraternita-della-speranza>.
Acesso em: 25 jan. 2015. Todas as traduções são livres e de responsabilidade do autor deste trabalho.
3
"Mi piacerebbe che chi cerca vedendoci dissesse: 'abbiamo trovato dei cristiani che rassomigliano al loro Gesù,
non sono migliori degli altri, ma ti accolgono con bontà e anche se ricevono degli sgarbi non sono vendicativi,
non sono ladri, non sono bugiardi, sono buoni'... Mi piacerebbe che la gente di noi dicesse: 'quelli sono amici di
Dio. Forse non sono migliori degli altri però sono sempre pronti a voler bene, su di loro si può contare. A vederli
danno consolazione'." Informação verbal de Ernesto Olivero, em 26 de abril 2015, em retiro realizado no Arsenal
da Paz, em Turim, Itália.
15
somente pelo fato de existir evangelizam e que mantém constante postura de quem não se
contenta com o mundo como ele é, mas quer torná-lo melhor. Semear com inteligência e
caridade no coração de todos os que ingressarem nessas hospedarias, sem exceção, sem
preconceitos antievangélicos e sem posturas "industriais", será o desafio de caridade do
futuro, o pilar das novas comunidades cristãs que devem inspirar-se nas primeiras
comunidades que aceitaram acreditar em Jesus. Mesmo as comunidades pequenas poderão
experimentar a certeza do encontro com Jesus, viver à sua presença, ser exemplo a ser
seguido; exemplo que, se todos procurassem viver, mudaria a face da terra ou pelo menos
diminuiria o espalhar-se de tanta dor e de tanto sofrimento.
Outro ponto original deste trabalho é a utilização das imagens como suporte e como
instrumentos importantes a serviço do esforço catequético. Assim nos introduz ao tema da
imagem o bispo de Novara, monsenhor Franco Giulio Brambilla (in LA PARETE..., 2013)
comentando na prefácio do livro escrito em ocasião dos 500 anos da Parete Gaudenziana4:
"Por que para contar algo precisamos da imagem? Porque a narração é feita sobretudo de
imagens. Jesus foi aquele que por intermináveis trinta anos não disse uma palavra, mas ficou
4
A Parete Gaudenziana é a parede que divide pela metade a Igreja de Santa Maria das Graças que se encontra
no vilarejo de Varallo Sesia no Piemonte. Trata-se de um elemento típico da arquitetura franciscana da segunda
metade dos anos 400, que tinha o objetivo de introduzir o fiel ao mistério de Cristo "recontando" a vida de Jesus.
O enorme afresco realizado pelo artista Gaudenzio Ferrari é um clássico exemplo de arte a serviço da fé. O fiel,
entrando na Igreja encontra à sua frente os relatos dos Evangelhos, as várias cenas que descrevem os principais
episódios da vida de Cristo, com particular atenção aos momentos da paixão. De grande impacto é a
representação da cena da crucificação, que é colocado acima do altar maior onde se celebra o grande banquete
que lembra a ressurreição de Cristo (POMI, 2012).
16
Essa é uma parte importante deste trabalho: as imagens podem ser um excelente
veículo de transmissão da nossa fé, "bombas" capazes de escancarar os corações mais
indiferentes. Por isso, podem ajudar muito na evangelização daqueles que têm mais
dificuldades em assimilar os conceitos fundamentais da nossa fé. Quanto mais capazes de
mostrar a beleza da entrega do homem Jesus no meio dos outros homens e de mostrar o
caminho de beleza que qualquer homem ou mulher pode aceitar fazer, mais eficazes as
imagens serão.
5
"Perché per raccontare c'è bisogno dell'immagine? Perchè il racconto è fatto soprattutto di immagini. Gesù è
stato colui che per trenta interminabili anni non ha detto una parola, ma si é immerso, uso questa espressione
ardita, a bagnomaria nell'immaginario del suo popolo..."
6
"Racconto e immagine dunque s'illuminano reciprocamente. Le immagini preziose che accompagnano sovente
la narrazione evangelica hanno la funzione complementare: infatti, le immagini s'intrecciano con la trama della
narrazione mettendo in moto la fantasia con il racconto. Si pensi alle stupende Annunciazioni o alle struggenti
raffigurazioni della Croce... Mentre, però, la parola narrata chiede l'impegno della risposta, l'immagine
raffigurata avvince per rispondere con la libertà di cuore. E apre squarci di futuro alla vita e al mondo."
17
O Evangelho é uma lição de vida. Nós, cristãos, estamos nas nossas comunidades
porque fomos atraídos por essa lição. Ficamos atraídos pela Palavra de Jesus que lemos nos
Evangelhos que foram escritos para todos os homens e mulheres. Não estamos frente a uma
mensagem lançada somente para os melhores ou para os eleitos, os preferidos, os inteligentes,
os potentes. Trata-se de um convite que pode ser abraçado, como fala o próprio Jesus, seja por
aquele que tem cem talentos, seja por aquele que tem somente um. O importante é colocar-se
a caminho com aquilo que se tem. Na criação, Deus colocou no coração das pessoas a
capacidade de entendê-lo e vivê-lo plenamente, independentemente das capacidades de cada
um. Talvez aquele que tem menos instrumentos precise encontrar uma comunidade
acolhedora, que se torne família e que saiba ajudá-lo a viver essa lição. Então, podemos
propor a mensagem de Jesus a qualquer um; o anúncio dele é universal. Todos podem aderir:
o rico que acredita ser abençoado na vida por Deus; aquele que se acha pecador e está jogado
debaixo de uma ponte; mas também uma criança, um jovem, uma família. Se essa adesão não
permanecer superficial, será um sim que compromete profundamente a própria vida.
Não se trata de uma proposta de vida para se tornar perfeito ou melhor que Jesus, mas
para viver qualquer situação da vida com Jesus. Ninguém pode ser melhor que Jesus. Ele veio
ao mundo para mostrar o rosto do Pai. Foi o mesmo Cristo que se referiu a Deus como Pai,
paizinho, tornando-o um Deus carinhoso, bem próximo das nossas necessidades. Essa
maneira de se relacionar com o divino eliminou as distâncias: não estamos mais longe dele.
Por isso, a Igreja nas orações comunitárias reza pelo menos três vezes por dia a oração do Pai-
Nosso. Quando falamos do centro do coração a palavra "nosso", os cristãos sãos chamados a
sentir profundamente essa proximidade, sentindo que o Pai amado não tem medo das nossas
fraquezas e, principalmente, que temos um Pai comum a todos os homens e mulheres que
agora estão e que já passaram pela nossa terra. Todos podem chamá-lo de Pai Nosso, palavras
que nos unem à divindade e a toda a sua criação. A palavra "Nosso" não quer fazer uma
separação egoísta de exclusão entre os homens, dividi-los entre bons e maus, crentes ou não
crentes, pobres ou ricos, justos ou pecadores; e sim iluminar os corações com a luz que
ilumina essa união universal da humanidade. No amor infinito de Deus, não poderia ser
diferente.
18
Deus não quer que nos tornemos escravos dele, por isso nos fez livres. Não quer
obrigar ninguém a amá-lo. Convida-nos a caminhar com Ele para mostrar o quanto é bonito
estar com Ele e entrar em um caminho de transformação do coração. Transformar o coração
para que a bondade, a luz e a misericórdia de Deus mudem a maneira de encarar a vida. Deus
nos criou para alcançarmos a felicidade, e não para nos usar. Somos o fruto de um amor
transbordante. Às vezes, a nossa maneira de ver a felicidade não coincide com a maneira do
Deus de amor que se doa, e por isso perdemos o rumo. A felicidade que Ele pensou para nós é
aquela que não exclui os problemas e as dificuldades da vida, mas que os enfrenta para vivê-
los como imitação do próprio Cristo. O amor de Deus nos convida continuamente a não tomar
atalhos que parecem caminhos mais rápidos e menos cansativos. O papa Francisco, na
contextualização da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, cujo objetivo é animar ao
anúncio do Evangelho no mundo atual, exprime muito bem o que significa entrar nesse atalho
proposto pela sociedade na qual vivemos:
Em um mundo onde:
7
Padre Georg Sporschill, jesuíta austríaco, grande amigo do cardeal Carlo Maria Martini. Desde 1991 trabalha
com meninos de rua e desemparados de Bucareste. Logo depois da queda da ditatura comunista de Nicolae
Ceauşescu, esses meninos fugiram dos orfanatos, refugiando-se nos esgotos da cidade. Padre Georg liderou por
muitos anos a pastoral que cuida deles, criando novos organismos sociais para acolhê-los e tirá-los da rua. Hoje,
está empenhado em ajudar os ciganos da província da Transilvânia, abandonados por todos os lados.
19
mesmo aquele que assumiu um estilo de vida contrário a Deus e por isso contrário ao próprio
bem, tem o direito de ter a sua chance" (SCIAMPLICOTTI, 2014)8.
Jesus, em seu ministério, proclama ter sido enviado para anunciar aos
pobres a Boa-Nova (cf. Is 61,1-5; Lc 4,18-19), dando a entender e
confirmando-o depois com sua vida que o Reino é destinado a todos os
povos, a partir dos menos favorecidos. Ele se dirige a grandes e pequenos, a
homens e mulheres, a ricos e pobres, a sãos e doentes, a próximos e distantes,
a judeus e gentios, a justos e pecadores, ao povo e às autoridades, aos
indivíduos e grupos. Convida seus discípulos a fazerem o mesmo. (CNBB,
2005, § 177)
Então é um direito de todos e não somente de poucos que parecem ter mais
entendimento! É claro que essa "mensagem de libertação" está nas mãos daqueles que tiveram
a graça de entendê-la, mas também estes são chamados, como os discípulos fortificados pelo
Espírito Santo no dia de Pentecostes, a ser os facilitadores para que a Boa-Nova possa fazer
sentido na vida de quem não possui as ferramentas para chegar a um pleno entendimento da
mensagem evangélica. De acordo com o Diretório Geral para a Catequese (DGC):
Os antigos conselhos eram principalmente proibições: não roubar, não matar, não
desejar a mulher do próximo... Já as bem-aventuranças vão além de não fazer algo. Elas
dizem como vestir algumas atitudes de amor, que Jesus diretamente nos ensina com a sua vida
e que vão converter o coração dos homens. Os discípulos são chamados para que esta
mensagem possa chegar a todos, especialmente aos mais humildes, que conhecem melhor o
sofrimento do mundo. De acordo com o Documento de Aparecida, redigido pelo Conselho
Episcopal Latino-Americano (CELAM):
8
"Credo che non ci sia nessun 'caso perso'... Ognuno, anche chi ha assunto uno stile di vita contrario a Dio e
quindi al proprio stesso bene, ha diritto alla sua chance."
20
Jesus demostrou que, com a ajuda do Pai, podemos dizer não às tentações. O Novo
Testamento veio para ser a revolução de amor anunciada pelos antigos. Todos os cristãos são
chamados a viver esses novos mandamentos, uma Nova Aliança. Por isso, Jesus é chamado
de novo Adão, como se fosse uma nova fase da humanidade, uma nova e mais perfeita aliança
com Deus.
Ser homem e mulher da Nova Aliança significa ser um cristão discípulo desse Jesus
que nos está olhando. Que nos está dizendo que é possível. A presença dele na nossa vida tem
que ser evidente, tem que nos moldar nas decisões que tomaremos e na partilha com os nossos
irmãos. Quem vive Deus simplesmente como um cristão sabe viver, ele mesmo, como sinal
da presença de Deus, sacramento vivo que une a o céu e a terra. O Documento de Aparecida
resume assim os gestos que mostram a presença de Deus na vida dos homens:
O Filho de Deus, mesmo nos pedindo para ficar longe do mal, não nos pede para ficar
fora do mundo; ao contrário, nos pede para viver no mundo com uma postura diferente e
nova, fecundando-o e semeando a sua mensagem. A Igreja de Cristo está no mundo. O nosso
mundo, mesmo que pareça distante disto, é o mesmo onde caminhou Jesus.
Jesus oferece, a quem ainda não o conhece, algo pelo qual vale a pena viver. Além de
não serem excluídos do amor de Deus, os pobres são na verdade "os destinatários
privilegiados do Evangelho [...] Como pude evidenciar na Encíclica Deus Caritas Est, 'a
Igreja não pode descurar o serviço da caridade, tal como não pode negligenciar os
Sacramentos nem a Palavra'" (BENTO XVI, 2007).
21
A Igreja na sua história muitas vezes caiu na tentação de separar os bons dos maus, os
beneficiados pela graça do Senhor e os que não foram agraciados, o joio do trigo. Mas Jesus
não veio para fazer essa divisão, não faz essa separação:
O que Ele faz quando vai procurar as ovelhas perdidas? Procura convencê-las de que a
vida que lhe é oferecida vale a pena ser vivida plenamente com Ele, e essa é a principal
missão do cristão. Quem somos nós para julgar quem pode ser amado por Deus e quem não
pode? Qual ovelha deve ser resgatada e qual não merece esse resgate? A misericórdia de Deus
vai além do que podemos imaginar. Isso teria que nos alegrar, porque temos certeza desse
amor infinito que não vai nos deixar sozinhos.
Jesus abriu para todos uma janela no céu, uma janela que mostra a beleza do paraíso,
porque Ele mesmo é o paraíso. A coisa mais bonita que podemos desejar para nós e para os
nossos irmãos é estar junto com Jesus no paraíso, e Ele nos dá a possibilidade de estar com
Ele já aqui na terra. Ele já antecipa esse paraíso prometido quando estamos com Ele. Já
estamos no paraíso. Qualquer tentativa de evangelização é caminho para aprender juntos a
estar com Ele.
Deus não criou uma pessoa para não ser amada, e ninguém pode se excluir sozinho
desse amor oferecido por Deus. Papa Francisco, nas primeiras páginas da exortação Evangelii
Gaudium, lembra que o convite de Jesus é para todos:
Papa Francisco (2013, § 14) cita a XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos
Bispos, que mergulhou no tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã,
frisando que "a nova evangelização interpela a todos". Ele relata principalmente três âmbitos
onde compartilhar essa alegria. Primeiro, na pastoral ordinária com as pessoas da
comunidade. Em segundo lugar, com as pessoas batizadas que não vivem as exigências do
Batismo, que "não sentem uma pertença cordial à Igreja e já não experimentam a consolação
da fé. Mãe sempre solícita, a Igreja esforça-se para que elas vivam uma conversão que lhes
restitua a alegria da fé e o desejo de se comprometerem com o Evangelho." E, enfim, com
aqueles "que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram". Estes últimos podem
um dia voltar, mesmo que os pastores não estejam preparados, e não podem encontrar as
portas fechadas. Por isso, o Santo Padre insiste em afirmar o Evangelho para todos já
indicando o caminho de uma renovada maneira de evangelizar, não com palavras, mas pela
atração:
Mas então como anunciar sem obrigar ninguém a se aproximar da verdade da nossa
fé? O que podemos fazer para convencer as pessoas de que é bom seguir os ensinamentos de
Jesus Cristo? Essa foi a pergunta feita ao padre jesuíta Georg Sporschill, empenhado há
muitos anos na acolhida dos meninos desamparados e dos ciganos da Romênia em Bucareste.
Ele respondeu assim:
24
Seguindo essa metáfora da fome de Deus, quando alguém é tocado por dentro e
exprime o desejo de conhecer mais de perto Jesus, não pode encontrar as portas fechadas e ser
espantado pela comunidade. Ao contrário: deveria reconhecer na comunidade os traços do
amor de Deus que o atraiu. Quando alguém começa a estar com fome de algo que nunca
comeu, tem que se acostumar aos poucos com a nova comida, como já falou o apóstolo São
Paulo (1 Cor 3,1-9). A um recém-chegado não podemos dar tudo o que estamos acostumados
a comer, pois ele vai acabar se engasgando. É preciso introduzi-lo com respeito e carinho:
essa será uma demonstração de amor da comunidade para com ele; assim, ele se tornará a
nossa nova dádiva, a nova pérola que Deus doa para sua comunidade querida, qualquer que
seja a sua identidade.
O mesmo documento afirma que "a perfeita fidelidade à doutrina católica é compatível
com uma rica diversidade no modo de apresentá-la" (DGC, 1997, § 122).
Além de ser uma possibilidade reconhecida nos documentos da Igreja, deve se tornar
cada vez mais uma prática de respeito às pessoas que, sentindo-se atraídas, interessaram-se
em caminhar e conhecer os fundamentos da fé cristã, tomaram coragem e se apresentaram
com o espírito de quem quer aprender:
9
Afirmação obtida na palestra de lançamento do livro Chi salva una vita salva il mondo intero (Quem salva uma
vida salva o mundo inteiro), no dia 23 de outubro 2014, no Arsenal da Paz, em Turim, Itália (STIMIGLIANO, S.
Chi salva una vita salva il mondo intero. Edizioni San Paolo, 2014).
25
10
Características do documento da CNBB Catequese Renovada (1983).
27
Desde sempre foi claro esse potencial, e, ao longo dos séculos, a Igreja utilizou de
maneiras diferentes a arte a serviço do povo de Deus. Como escreve padre Bernard Ardura,
secretário do Pontifício Conselho para a Cultura de 1997 a 2010: "Visto que não existe uma
arte específica da Igreja [...], a Igreja aceita a arte dos povos para o serviço do Culto,
convencida de que a arte é o caminho privilegiado para encontrar Deus" (apud BAROFFIO,
1995 p. 13)11. Sobretudo na Idade Média, as igrejas se tornaram lugares onde quem não sabia
ler podia ver pintadas as histórias da Bíblia, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Só
recentemente a leitura e o entendimento são direitos de todos; antigamente, eram
pouquíssimos aqueles que sabiam ler e que tinham tempo de filosofar. Nos antigos mosteiros,
os monges copistas permitiram que não se perdesse nada das palavras das Sagradas
Escrituras, mas também poucos deles sabiam ler e entendiam o que estavam copiando. Não
foi necessário muito tempo para que as primeiras comunidades cristãs utilizassem as imagens
para aproximá-los da própria fé. As igrejas tornaram-se as "Bíblias pintadas" dos analfabetos
e dos mais humildes; mas, sobretudo, tornaram-se a maneira mais convincente que a
comunidade tinha para repassar a crença da Igreja. Era direito também dos mais simples
conhecer as promessas do Cristo. Ainda hoje, as igrejas podem oferecer uma leitura única das
histórias evangélicas. Cláudio Pastro descreve a força da sua imensa obra iconográfica no
Santuário Nacional de Aparecida: "Trinta e quatro painéis, em azulejos, escrevem em
11
"Poiché non esiste una specifica arte della Chiesa [...] la Chiesa accetta l'arte dei popoli per il servizio del
Culto, convinta che l'arte è la strada privilegiata per incontrare Dio."
28
desenhos os Evangelhos de Jesus. Temos aí a Palavra de Deus, em forma e cor, que arrebata
cada fiel em contato com 'o fato e a pessoa de Jesus' para depois racionalmente melhor
compreender a cena" (in APARECIDA, 2013, p. 8).
A imagem é importante porque faz parte da nossa vida. Tudo o que vemos não é o que
vemos, mas a nossa interpretação do que estamos vendo. Isso aparece de forma clara quando
diferentes pessoas fazem o exercício de descrever a mesma cena: com certeza, teremos
imagens diferentes, mesmo assistindo ao mesmo acontecimento. Hoje é impossível pensar a
nossa sociedade sem imagens; isso já era verdade nos tempos antigos, quando os homens
tinham as próprias idealizações e as próprias imagens formadas, mas hoje isso acontece de
maneira ainda mais evidente e confusa. Hoje é normal caminhar na rua com uma imagem na
camiseta ou com brincos e anéis. Na maioria das vezes, essas "imagens" estão em nós
somente porque gostamos visivelmente delas, mesmo quando não sabemos ou não nos
preocupamos com seu significado; podemos até usar uma camiseta com um palavrão ou uma
bobagem escrita em um idioma desconhecido, e isso parece não ser problema nosso. Isso não
era possível em épocas passadas. A imagem tinha o valor de pertença ou de crença, algo que
hoje parece ser "líquido" (BAUMAN, 2004): hoje pertenço, amanhã não sei, talvez pela
metade. A imagem esvaziou-se de significados, mas ainda tem um poder enorme de
influenciar as decisões da nossa vida. Perdido o sentido de pertença, hoje as imagens nos
invadiram de formas boas e ruins. Mesmo achando que sim, o homem não pode viver sem
imagens. Uma televisão sem imagens seria um rádio; mas, mesmo assim, o rádio fala
lembrando e suscitando imagens na nossa cabeça. Imaginem a internet sem imagens: perderia
todo o seu valor e o seu poder de atrair e servir às pessoas. Pensem nas revoluções do cinema,
do smartphone, da publicidade, da fotografia etc.
caminhos novos. O arcebispo de Turim, monsenhor Cesare Nosiglia, na sua última Carta
Pastoral (2014-2015), relata a própria preocupação em encontrar formas novas para eliminar
ou minimizar as dificuldades que atrapalham ou sufocam a transmissão da mensagem
evangélica, evitando que ela seja erradicada do coração das pessoas. Ele pede e deseja que o
povo de Deus – de maneira particular os catequistas e todos os transmissores da fé – faça uma
nova releitura da sociedade e um esforço para encontrar a maneira para atrair. Assim escreve
ele, no capítulo que se refere à iniciação cristã:
Padre Ardura nos explica bem essa afirmação, quando fala da utilização da arte nos
mosteiros medievais:
12
"È sempre più urgente tuttavia ricercare vie e modalità di una nuova efficace inculturazione della fede, così
come in tante altre epoche storiche ha fatto la Chiesa attraverso linguaggi, forme espressive, testimonianze, segni
ed esperienze idonee a parlare con immediatezza agli uomini del proprio tempo."
13
"quei varchi attraverso cui è possibile far emergere le grandi domande di senso, la ricerca della verità, le
questioni decisive della vita che interessano nel profondo ogni persona."
14
"L'arte che nel paganesimo antico assumeva una funzione sacra e un potere magico, é stata fecondata e
purificata dalla fede cristiana, per la quale c'è un unico assoluto: il Vangelo della salvezza. Quindi nei monasteri
medievali l'arte, così fortemente promossa nelle sue diverse forme, non viene mai considerata un'assoluto, ma
30
O ícone não é então apenas obra de arte pictórica. Ele é, num certo
sentido, como que um sacramento da vida cristã, porque nele se faz presente
o mistério da Encarnação. Nele se reflete, de modo sempre novo, o Mistério
do Verbo feito carne, e o homem – autor e, ao mesmo tempo, partícipe –
alegra-se com a visibilidade do Invisível. (JOÃO PAULO II, 1994, § 4)
A palavra italiana "varchi", utilizada pelo arcebispo de Turim, pode ser traduzida por
muitos sinônimos: aberturas, acessos, portas, caminhos. São todas palavras que nos ajudam a
identificar uma passagem que cada pessoa que se coloca à frente da imagem sacra é chamado
a fazer. Mesmo com as dificuldades iniciais, no nosso caso as imagens podem ser definidas
como verdadeiras "bombas de beleza", de fácil entendimento, que, além de apresentar janelas
para entrar em um mundo até então novo e desconhecido, devem poder derrubar muros,
escancarar portas fechadas, abrir novos caminhos na vida das pessoas. Bento XVI (2009)
explicava qual era o sentido destas "bombas de beleza": "o que pode voltar a dar entusiasmo e
confiança, o que pode encorajar o ânimo humano a reencontrar o caminho, a elevar o olhar
para o horizonte, a sonhar uma vida digna da sua vocação, a não ser a beleza?". Dom
Raymundo Damasceno Assis, Cardeal-Arcebispo de Aparecida, e dom Darci José Nicioli,
CSsR, Bispo-Auxiliar de Aparecida, tinham bem claro este poder da beleza: "A beleza nos
aproxima da Beleza, Jesus Cristo" (in APARECIDA, 2013, p. 5).
Para Cláudio Pastro, a arte sacra não pode ficar superficial, mas deve necessariamente
levar o homem a uma teofania. As igrejas devem tornar a ser lugares onde Deus se revela à
humanidade sem rumo, que precisa de indicações e tem que contar com o amor de Deus.
come um mezzo adattissimo ad esprimere il mistero divino, suscitare una risposta del cuore humano, portare
l'uomo all'incontro personale con l'invisibile, con Dio."
15
"una lotta per l'immortalità, che supera il livello dell''utile' per procedere com l'incontro con l'essere delle cose,
il loro significato ultimo."
31
Praticamente, a arte torna-se elemento eficaz para levar aos homens, mesmos aos mais
simples, a beleza do Evangelho, que se torna cada vez mais o objetivo de cada cristão, como
nos lembra o papa Francisco na Evangelii Gaudium:
É por isso que Antonio Paolucci (in ZAGNOLI, 2009), diretor dos Museus do
Vaticano, não tem medo de definir a Capela Sistina como livro pintado de catecismo:
"Esquecemos principalmente que a [Capela] Sistina é um livro; um livro de teologia, de
catequese, de fé, no qual nada é deixado à imprevisibilidade do gênio, no qual tudo é colocado
com coerência iconográfica absoluta"16. Maria Antonietta Crippa (in BAROFFIO, 1995, p.
122) nos lembra a famosa citação do papa Gregorio Magno: "As imagens, pictura quasi
scriptura, devem ser utilizadas como símbolos do alfabeto para poder encontrar os sagrados
mistérios"17.
"O ícone é belo, logo torna belos" (BRAGANTINI, 2008, p.13). Quando somos
atingidos por essas "bombas de beleza", nos tornamos belos, mesmo que apenas por um
momento, mesmo que não o percebamos. Devemos deixar-nos explodir por dentro para que a
beleza que está em nós, aquela que Deus colocou no ato da criação, possa ser despertada.
Descobriremos, então, que nós somos belos e que tudo o que é belo foi feito para nós. "Pinta-
se para ficar bonito, para deixar transparecer a beleza, e o que é o belo para um crente senão
as grandes obras que Deus fez para nós? Diante de um ícone, de uma parede, de uma folha, o
crente 'vê e escuta'" (BRAGANTINI, 2008, p. 13). Esse é o desafio deste método: parar diante
de uma imagem que nos remete a algo maior e tentar escutar alguma coisa que vem de dentro
de nós.
16
"Si dimentica soprattutto che la Sistina é un libro; un libro di teologia, di catechesi, di fede, dove nulla é
lasciato alla imprevedibilità del genio, dove tutto si tiene com coerenza iconografica assoluta."
17
"Le immagini, pictura quasi scriptura, devono essere utilizzate come segni dell'alfabeto per poter trovare i
sacri misteri."
32
Essa introdução oferece um ponto de vista diferente, que ajuda a enxergar o mundo
com os parâmetros da lógica de Deus, que tem o olhar do amor, aquele herdado pelo Bom
Samaritano. Oferece ao catecúmeno o gosto da beleza da nossa fé, aquele gosto que marca o
coração, para permanecer pela vida toda, mesmo nos momento de tempestade, na presença de
Deus, atualizando a cada momento a vida de oração: "cabe à catequese ensinar a rezar por,
com e em Cristo, com os mesmos sentimentos e disposições com os quais Ele se dirige ao Pai:
adoração, louvor, agradecimento, confiança, súplica, contemplação. O Pai-Nosso é o modelo
acabado da oração cristã" (CNBB, 2005, § 53). Aquele que sabe rezar o Pai-Nosso sabe que
33
naquele termo "nosso" está a humanidade inteira, os irmãos, mesmo aqueles que não
conhecemos ou que nos odeiam.
Como já foi dito no capítulo precedente, o curso, pela sua natureza, não pode existir
desvinculado da comunidade onde está sendo ministrado; não se trata de um curso
universitário onde o aluno aprende os conteúdos e depois de um percurso de provas recebe o
certificado e vai embora. Participar desse curso significa "fazer parte", por um tempo limitado
ou para sempre, de uma comunidade. Insistimos no argumento de que é a comunidade que
deve oferecer, para quem partilha o curso, não somente momentos de formação, mas também
oportunidade de ser introduzido nas práticas da caridade, do voluntariado e na celebração da
liturgia comunitária, que estão na base da vida de um cristão. Deve ser bem claro para quem
participa dessa formação que quem pretende seguir Jesus Cristo não pode fazer isso fora de
uma vida comunitária: "se a fé pode ser vivida em plenitude somente dentro da comunidade
eclesial, é necessário que a catequese cuide com carinho dessa dimensão" (CNBB, 2005, §
53).
Atitude, oração, doar-se aos irmãos, para ser sinal de esperança e de paz. Nesse curso
vamos aprender o necessário para que essa atitude tenha uma base sólida, para que a prática
não fique descolada da teoria, para que uma possa dar sentido à outra. Os primeiros "cartões
de visita" do cristianismo e da comunidade cristã para com os catecúmenos são os próprios
catequistas. São fundamental o amor e a dedicação deles ao acolhê-los:
Já escrevemos que ninguém pode ser cristão sozinho, nem um eremita. Se ele, isolado,
esquece os outros e não reza pelo bem da humanidade, não está cumprindo o mandamento de
amar os outros como a si mesmo; mesmo na sua santidade e no seu ascetismo doado a Deus,
permanecerá cristão pela metade. Jesus nos falou que é seu discípulo verdadeiro somente
aquele que doa a própria vida pelo irmão. Trata-se de exaltar a dimensão do testemunho – "a
missão do cristão é levar, à sociedade de hoje, a certeza de que a verdade sobre o ser humano
só se revela plenamente no mistério do Verbo encarnado" (CNBB, 2005, § 53) – e também a
34
3.2 METODOLOGIA
Partindo sempre da certeza de que "o eixo central do Catecismo da Igreja Católica é
Jesus Cristo,' ...o Caminho, a Verdade e a Vida' (Jo 14,6)" (DGC, 1997, 123), o nosso ponto
de partida, a coluna vertebral deste curso é o Credo da Igreja católica e a Palavra de Deus
onde conhecemos Jesus. Assim nos lembra o capítulo da Regra do Sermig - Fraternidade da
Esperança intitulado Il Vangelo nostra regola: "O Evangelho é a nossa regra de vida porque
nos comunica Jesus. Aprendemos assim a rezar como Ele rezava, a agir como Ele agia, a ter
os mesmos sentimentos que Ele tinha. Jesus é o Senhor da nossa vida e procuramos
transformar a nossa vida na Dele" (OLIVERO, 2013, p. 34) 18.
O CIC será um guia precioso para valorizar esses instrumentos. Mas, antes de tudo, é
importante esclarecer uma premissa: esta proposta de Iniciação Cristã não quer de jeito
nenhum se apresentar como um pacote fechado, um catecismo já pronto para o uso, e sim
como um método que pretende chegar a todos aqueles que encontraram ou reencontraram as
forças para se aproximar do mistério da nossa fé. Ninguém pode ser deixado de fora quando
manifesta o desejo de entender melhor o que significa ser cristão, o desejo natural de conhecer
Jesus Cristo. Este é um convite importante feito a todos pelo papa Francisco:
Com esse objetivo, seguem as sugestões que foram pensadas para uma comunidade
cristã que sabe abrir as portas a qualquer um, respeita cada pessoa na sua diversidade e
pretende incluir todos e apresentando para quem o deseja a mensagem da Boa-Nova. Quem se
coloca nessa escuta precisa ser amado pela comunidade onde está inserido. Esse amor se
exprime também com uma catequese simples, basilar, quase personalizada, como uma roupa
que é diferente para cada pessoa.
18
"Il Vangelo è la nostra regola di vita perché ci comunica Gesù. Impariamo così a pregare come lui pregava, ad
operare come Lui operava, ad avere i suoi stessi sentimenti. Gesù è il Signore della nostra vita e noi cerchiamo di
transformare la nostra vita nella sua."
36
uma prática incentivada em qualquer fase da vida, ainda que com diferentes metodologias. É
sempre bom educar a pessoa à exigência permanente e constante da formação:
A riqueza das imagens na nossa arte sagrada cristã, patrimônio acumulado em séculos
de história da Igreja, presente nas nossas igrejas e nos lugares sagrados, pode e deve ser
utilizada em todas as suas potencialidades. Permite-nos também utilizar diferentes imagens
para explicar um ou mais aspectos do nosso Credo. Em alguns dos argumentos coloquei
imagens complementares, além da imagem principal que abre os encontros. Claramente,
quem ministra o curso tem total liberdade de utilizar outras imagens, capazes de falar tanto
quanto e até mais do que as que foram aqui escolhidas.
Apresentamos vinte temas para serem enfrentados. Cada tema compreende: uma ou
mais indicações de textos da Sagrada Escritura; uma ou mais imagens ilustrativas, "bombas de
beleza"; e a relativa explicação iconográfica. Para cada tema sugerimos também outros
argumentos que entendemos que não podem ser deixados de lado, mesmo que seja um
momento de iniciação cristã. Utilizando o primeiro tema, que desenvolve a nossa crença em
Jesus Filho, colocamos uma sugestão de roteiro completo, com o auxílio também de imagens
complementares, além da imagem principal do Cristo Pantocrator.
37
(Anexo A)
Isto fala o Catecismo da Igreja Católica quando se refere às imagens, lembrando que a
figura de Jesus Cristo é principio e motivo da nossa fé:
A figura de Jesus Bom Pastor é com certeza uma das maneiras mais antiga de lembrar
a passagem de Jesus no meio do seu povo. Ele é lembrado como o Bom Pastor da parábola de
Lucas 10, 1-7. O Bom Pastor não tem medo de deixar as noventa nove ovelhas que estão
seguras para ir atrás da ovelha perdida. A imagem, que tem origem na mitologia pagã, mostra
um jovem pastor, que está voltando ao abrigo com a ovelha reencontrada no ombro. Jesus não
quer perder nenhuma das ovelhas que lhe foram confiadas pelo Pai. Assim as primeiras
comunidades de cristãos, que viviam as dificuldades da perseguição, lembravam que Jesus
voltaria para resgatá-los e levá-los com Ele à casa do Pai. Não era somente uma esperança,
mas uma certeza que estava presente no coração das pequenas comunidades escondidas e
apavoradas pelas perseguições. Na versão de Cláudio Pastro, propõe-se Jesus tocando flauta
embaixo de uma árvore. Ele reencontrou a ovelha perdida que agora está no seu colo. A outra
ovelha aos pés dele está segura e tranquila porque aos seus pés se sente protegida.
40
É nas catacumbas que podemos encontrar aquela que podemos pensar como a
"fotografia" mais fiel de Jesus. O rosto de Cristo aqui marca uma iconografia que será
utilizada por muitos séculos, e que ainda hoje é a mais conhecida: a de um Jesus barbudo, que
com certeza é aquele que mais se aproxima dos homens do tempo dos acontecimentos
evangélicos na Galileia. Nessa pintura, Jesus aparece entre as letras gregas e que
lembram a autoafirmação de Cristo no livro do Apocalipse: "Eu sou o Alfa e o Ômega, o
Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim" (Ap 22,13), que se tornará o sinal da divindade do
Cristo.
Cristo coronato di spine (1450). Beato Fra Angelico. Museu de Livorno, Livorno,
Itália. (Anexo D)
Esta pintura representa outra maneira de imaginar o Cristo. Conta sua subida ao
calvário, coroado de espinhos e vestido de purpura. É claro que o artista exaltou o vermelho,
cor da paixão: está na auréola, na vestimenta, nos olhos exaustos, nos lábios, mas
principalmente no sangue que, partindo da coroa de espinhos, "pinta" tragicamente o rosto.
Sangue oferecido em sacrifício por todos. No sofrimento extremo, mesmo sendo martirizado,
Jesus mantém a postura real, não perde a própria dignidade, olha direto nos olhos de quem
quer olhar nos seus. O efeito faz que o espectador, olhando com devoção o quadro, não possa
permanecer indiferente. Estamos frente ao momento do sacrifício mais lindo que uma pessoa
pode oferecer: dar a vida pelas pessoas que ama. Jesus, nosso amigo e nosso Senhor,
ofereceu-se por cada homem e por cada mulher, para dizer-nos que não estamos sozinhos. As
inscrições na auréola e nas vestes são claras: REX REGUM D[OMI]N[U]S
D[OM]I[NA]T[IS]19.
19
Rei dos reis e Senhor dos senhores.
41
Frente às imagens de Jesus. Quando alguém faz uma imagem, quer comunicar
alguma coisa. Quando estamos frente a uma imagem de Jesus, não estamos diante de uma foto
que nos permite ver como Ele é, mas de uma "ideia" de Jesus que o artista está querendo
passar e que pode ajudar aqueles que a veem a conhecê-lo melhor. Se o autor é fiel, partindo
da interpretação da Palavra de Deus, podemos conseguir entender melhor quem é Jesus para a
Igreja. Em todas as épocas, tivemos na Igreja uma compreensão teológica diferente da figura
de Jesus Cristo. Na arte surgiram infinitas possibilidades de mostrar características
importantes e essenciais desse homem. Estas podem ser consideradas janelas abertas sobre o
coração de Cristo, importantíssimas para nos aproximar daquilo que temos de mais sagrado,
nas diferentes condições do nosso viver. Quando queremos encontrar esperança, podemos nos
colocar frente a imagens de Jesus ressuscitado rei do universo; se precisarmos ajudar a
comunidade a não desistir dos desafios cotidianos, o Bom Pastor dá a força para não nos
sentirmos sozinhos; quando O reconhecemos como o cordeiro de Deus sofredor no martírio, o
associamos ao sofrimento da humanidade. E assim acontece com todas as coisas da nossa
vida. Penetramos no patrimônio que nos oferecem os ensinamentos dos Evangelhos e, assim,
nesse percurso guiado, vamos encontrar o desejo de ser aquela ovelha resgatada ou parte do
povo sacerdotal, no meio dos ouvintes das bem-aventuranças, prontos como os servidores, de
ser aqueles que foram curados, chamados por uma vocação nova ou estando junto aos
discípulos dos quais foram lavados os pés; mas lembramos também que podemos ser luz e sal
para o mundo. Toda a nossa fé gira em volta dele: "no centro da catequese encontramos
42
essencialmente uma Pessoa, a de Jesus de Nazaré, Filho único do Pai [...], que sofreu e
morreu por nós e agora, ressuscitado, vive conosco para sempre [...]" (CIC, § 426).
Jesus está presente na nossa vida de todos os dias e está pedindo para nos abrirmos à
realidade dessa presença. Presença que é "às vezes difícil de reconhecer, trabalhosa de viver,
no limite do impossível, mas é real" (OLIVERO, 2013, p. 42)20. É real principalmente quando
nos colocarmos em escuta profunda e envolvente da sua Palavra: "Todas as palavras do
Evangelho são palavras escritas para nós, possíveis de serem vividas, pois, do contrário, nem
teriam sido pronunciadas. A Palavra renova todos os dias a eternidade do encontro com Jesus,
o Filho de Deus" (OLIVERO, 2013, p. 34)21. Quando não nos vemos mais como luz, sal,
ovelhas, servidores e nem discípulos, somente o viver plenamente a missão na comunidade
pode nos ajudar a resgatar essa realidade.
Entender quem é Jesus. É importante reconhecer desde o começo que, para nós
cristãos, Jesus é Deus encarnado. Lendo o Antigo Testamento, podemos ver como Deus se
comunicava com o seu povo através da voz e das ações dos profetas. Podemos pensar em
Abraão que conversava com Deus e estipulou o pacto da Aliança; em Jacó, que lutou com
Deus e ganhou; em José, abençoado por Deus, que o tornou, graças à fidelidade o homem
mais poderoso da terra; em Moisés, que foi enviado para libertar o seu povo e dialogava face
a face com Deus. E esses são somente os mais lembrados. Mas, no final, quem era Deus?
Alguém que estava longe. Nós, cristãos, tivemos a graça de reconhecer no homem Jesus a
encarnação de Deus. Ele se fez igual a qualquer homem que nasceu na face da terra,
caminhou nas cidades, sentiu dor, cócega e frio, comeu, pensou, desejou, riu, foi tentado (não
foi igual a nós somente no pecado). Ele abriu para nós uma janela que nos confirmou
definitivamente que Deus existe, se ainda tínhamos dúvidas. Se, antigamente, para falar com
Deus precisávamos da mediação dos profetas, aqueles que andaram com Jesus nos caminhos
da Palestina, simples pescadores escolhidos por Ele, conversaram diretamente com Deus.
Hoje, fazendo um salto imaginativo – ou melhor, um salto espiritual – também nós, quando
nos reunimos em nome dele, diante de qualquer imagem sagrada que o represente, podemos
nos colocar entre aqueles que ficam em volta de Jesus para ouvi-lo e escutar a Boa-Nova,
sabendo que, se conseguirmos ficar próximo a ele, a nossa vida vai com certeza se moldar à
20
"a volte difficile da riconoscere, faticosa da vivere, al limite dell'impossibile, ma è reale."
21
"Tutte le parole del Vangelo sono parole scritte per noi, possibili da vivere, altrimenti non le avrebbe
pronunciate. La Parola rinnova ogni giorno l'eternità dell'incontro con Gesù, il Figlio di Dio."
43
sua Palavra. Todas as vezes que estamos à escuta do Evangelho, estamos escutando Jesus, a
Palavra de Deus em pessoa.
Todos podem ter na cabeça e no coração uma imagem diferente de Jesus, dependendo
das nossas experiências, de onde moramos, de quem nos introduziu a fé, daquilo que
estudamos etc. O catecismo nos ajuda a entender bem esse Jesus, a responder às várias
perguntas que surgem: quem é Jesus para nós? O que nos quer dizer? O que Ele significa para
os que decidiram segui-lo? Mas devemos saber que podemos falar de Jesus de muitas formas,
e manter clara uma premissa importante que o próprio CIC nos lembra: "Crer que Jesus Cristo
é o Filho de Deus é condição necessária para ser cristão" (CIC, § 454). Vejamos, então, quem
é esse homem para os homens e as mulheres que seguem a mesma fé que a Igreja católica
professa.
Jesus é cem por cento Deus e cem por cento homem 22. Desde que Jesus esteve no
meio do seu povo, a Igreja esforçou-se para entender a sua natureza. Não era fácil acreditar
que um Deus pudesse se tornar homem. Como pode o Criador se fazer criatura e permanecer
Deus ao mesmo tempo? Mas é nisso que acreditamos. Muitos procuraram dar uma resposta a
essas dúvidas utilizando a tradição, o método filosófico, muitos tomaram uma posição; para
chegar à verdade que hoje a Igreja proclama, os cristãos se enfrentaram em longos debates,
encontros e concílios; e também em guerras, incompreensões e divisões que marcaram a
22
O dogma das duas naturezas de Jesus (verdadeiro Deus e verdadeiro homem) esclareceu-se ao longo do
tempo, começando no Concílio ecumênico de Niceia, em 325, e terminando no Concílio ecumênico de
Constantinopla, em 553 (CIC, § 464-§ 469).
44
história da Igreja e são evidentes ainda hoje. Alguns diziam que Jesus foi simplesmente um
grande profeta com superpoderes que chegavam diretamente de Deus, negando a divindade de
Jesus; outros acreditavam que Ele só parecia ter um corpo, mas que sua essência era espiritual
e sua aparência era, na realidade, um "holograma", negando a humanidade dele; outros ainda
tinham a certeza de que era Deus, somente em parte era Deus etc. Pode-se imaginar como isso
criou confusão ao longo dos primeiros cinco séculos. Chegar a essa verdade de fé não foi fácil
para ninguém e o ícone do Cristo Pantocrator é a síntese dos primeiros concílios ecumênicos:
Jesus é cem por cento Deus e cem por cento homem.
A encarnação de Jesus, o seu ser homem não diminuiu em nada a sua divindade; da
mesma forma, o fato de ser Deus não impossibilitou a encarnação. Muito pelo contrário:
"Verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Cristo tem uma inteligência e uma vontade humanas
em perfeito acordo e submissão à inteligência e vontade divinas, que Ele tem em comum com
o Pai e o Espírito Santo" (CIC, § 482). A Palavra de Deus desvenda a natureza de Deus que é
"comunidade" e por isso nós o reconhecemos como Santíssima Trindade. Três pessoas que
são o mesmo Deus, inseparáveis e ao mesmo tempo pessoas distintas: Deus Pai criador, Jesus
Filho salvador e o Espirito Santo, chamado de Paráclito. Então, Jesus é Deus. Por isso,
quando falamos que Deus é criador podemos dizer sem problemas que também Jesus é
criador de todas as coisas que conhecemos, entre as quais o tempo no qual estamos
mergulhados.
O Pai enviou o seu Filho ao mundo porque tinha chegado o momento de o próprio
Deus falar de si e mostrar com a vida aos homens como viver a humanidade. Nós tínhamos
esquecido o que significava viver plenamente, e ainda hoje não está muito claro nas nossas
cabeças o que é certo e o que está errado. Quando se torna normal na sociedade fazer o
contrário dos conselhos que Jesus nos dá – para muitos, talvez até de forma inconsciente –,
voltamos as costas ao Criador e também à nossa humanidade.
natureza23, nos milagres em nome de Deus por parte de enviados 24, afastando os demônios
com a ação dos seus anjos25, chamando novamente à vida alguém que a perdeu26. O Pai,
enviando diretamente Jesus, o seu Filho primogênito, no meio do seu povo, coloca em prática
um plano de amor e revela-se definitivamente como Deus da vida. Não precisou de
mensageiros ou de anjos: Ele mesmo falou livremente de si e mostrou esses poderes. Por isso,
a Igreja se refere a Jesus como o Filho legítimo de Deus e a nós como seus filhos adotivos: "O
nome de Filho de Deus significa a relação única e eterna de Jesus Cristo com Deus seu Pai:
Ele é o Filho único do Pai e, Ele próprio, Deus" (CIC, § 454). Como criaturas que somos,
Deus poderia nos tratar como bem entendesse, mas decidiu amar-nos e preparou-nos um lugar
perto dele no fim dos tempos. Quando falamos que o Filho mostra a face de amor do Pai,
queremos dizer que o Pai envia o Filho para nos ensinar como ser próximos dele e dos que
estão perto de nós.
No Jesus de olhos vermelhos de Beato Fra Angelico, o autor quis mostrar de maneira
evidente que, mesmo sendo Deus, o Cristo não se importou em enfrentar as consequências da
23
Por isso Jesus pode aplacar a tempestade quando está no barco (Mt 8,23-27; Mc 4,35-41 e Lc 8,22-25): Ele é
rei da natureza porque a natureza é construção do criador. Quando volta a tranquilidade àquele lago, quando a
tempestade lhe obedece, Deus se revela com o poder da Palavra.
24
No Novo Testamento é o próprio Deus, na figura de Jesus, que se mostra onipotente.
25
Diante de Jesus, os demônios o reconhecem (Mc 5,7; 1,24; 3,11 e Lc 4,34) e fogem.
26
Jesus foi o único que ressuscitou definitivamente da morte. Em todos os outros casos que encontramos nos
relatos da Bíblia nos quais Deus restitui a vida a alguém (Mt 9,18-26; 27,52; Mc 5,21-43; Lc 7,11-17; 8,40-56;
Jo 11,1-44, apenas para citar as passagens relatadas nos quatro Evangelhos), não podemos falar de ressurreição.
Quem recebeu esse dom terá que enfrentar a morte novamente. Somente com a volta de Jesus todos poderemos
ressuscitar com ele definitivamente. Jesus devolve a vida para mostrar que não tem medo da morte. Jesus deixa
entender a todos nós que ele é Deus porque, tendo sido morto de verdade, ressuscita para sempre.
46
sua total doação para com os outros. Ao contrário: mesmo podendo encontrar na sua divina
criatividade mil formas para resolver a confusão criada pelos homens, escolheu o caminho de
compartilhar a vida com as suas criaturas e, nessa vida, quis compartilhar qualquer situação.
Não ficou calado por medo de contradizer os poderosos do seu tempo, mas aceitou as provas e
os sofrimentos da paixão para permanecer com cada pessoa que sofre. Por isso, nesse Jesus
que está sofrendo podemos encontrar o sofrimento da humanidade inteira, carregada nos seus
ombros. Com uma rápida olhada, o vermelho intenso e trágico daqueles olhos quer transmitir
imediatamente ao espectador o sangue derramado daqueles que padeceram injustamente, que
sofreram as próprias limitações, derrotados pelas doenças, oprimidos, escravizados. Qualquer
homem e mulher tem direito à própria vida; mas, para ser feliz, não é suficiente viver: é
preciso praticar a vida plenamente, uma vida que faça de tudo para tornar-se um dom a ser
compartilhado, que fica sempre em contato com o próprio criador e que, com o mesmo amor,
desdobra-se para que nenhuma ovelha se perca, para que ninguém fique fora da comunidade,
para ser sinal de paz. Com a sua entrega gratuita, Jesus quer devolver aquela vida que muitos
não puderam viver plenamente. Com esse olhar ensanguentado de compaixão, pede ao fiel
que se apaixone por cada homem da mesma forma.
O Santo Sudário certamente nos traz, no mínimo, a imagem de uma pessoa que sofreu
a mesma paixão de Jesus. Foi crucificada, flagelada, torturada desumanamente. Muitos se
reconheceram nesse rosto sofredor; diante do Sudário, muitos entregam o sofrimento a Deus e
se sentem consolados. Jesus sofreu como qualquer homem de corpo e alma. Qualquer
sofrimento é contemplado nesse rosto que, apesar de tudo, mesmo sem vida, permanece
confiante. Se nós conseguirmos sofrer por amor como Ele sofreu, teremos a certeza de
ressuscitar com Ele.
"O nome de Jesus significa 'Deus salva'. O menino nascido da Virgem Maria é
chamado 'Jesus', 'porque salvará o seu povo dos seus pecados' (Mt 1, 21); 'não existe debaixo
do céu outro nome dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos' (At 4, 12)" (CIC, § 452).
Ele nos livrará da morte, da nossa condição de vida que é dolorida, limitada, angustiante.
Também prometeu nos livrar das injustiças, das opressões e das pobrezas. Porém, a sua
mensagem não deve ser confundida com qualquer mensagem revolucionária a favor dos
últimos e dos oprimidos, porque a de Jesus é uma "revolução" que parte do amor
incondicional pela humanidade inteira. Por isso, sua mensagem é algo que ajuda a viver bem
aqui na terra, mas que, principalmente, nos prepara para a vida eterna ao seu lado. A jornada
de quem caminha desde já com Jesus está antecipando um pedaço de céu. Com todos os
defeitos de qualquer construção humana, as nossas comunidades cristãs possuem esse papel
de apresentar, mesmo que de maneira ofuscada, a beleza de viver com Deus, antecipação de
algo maior e mais magnífico, que nem podemos imaginar.
A esperança de uma vida nova. Jesus não pode ser separado do Pai e do Espírito
Santo, e da mesma forma participou da criação e estará presente também quando o tempo
terminar. Nesse sentido, simbolicamente fala-se que Ele é o Alfa e o Ômega, a primeira e a
última letra do alfabeto grego – ou seja, o princípio e o fim. Deus inventou o tempo, é dono
do tempo. Quando estivermos com Jesus no Paraíso, não existirá o tempo. O século IV, em
Roma, não era a melhor época para viver e praticar a fé cristã, por causa das perseguições dos
romanos. Acreditar em Jesus Cristo significava aceitar o esconderijo, a perseguição e a
possibilidade de ter que professar a própria fé mesmo sabendo que isso significaria morte
certa. O martírio não era uma possibilidade remota para os cristãos. Os homens que se
reuniam frente à imagem de Jesus na catacumba tinham a certeza de que a morte não era o
fim de tudo, mas o começo de uma nova vida, promessa que o próprio Jesus fez da vida eterna
com ele. Uma vida certamente melhor do que aquela que estavam enfrentando na terra. Hoje,
em muitos lugares, ser cristão é bem menos perigoso e pode até ser somente um rótulo
carregado superficialmente – atitude que em tempos mais antigos não era possível. Mesmo
assim, ainda hoje o cristão tem que viver bem o seu tempo aqui na terra. Nesse sentido, ser
cristão vai além de ser bom, rezar, fazer o bem; implica também em ajudar o outro que está ao
meu lado a encontrar-se com Deus, dando a devida importância às coisas da terra, mas tendo
muito claro que estamos aqui de passagem.
48
Quem vive inserido em uma comunidade que celebra Jesus com a vida procura
afastar-se de tudo o que atrapalha a esperança que vem de Deus. Esperança se traduz em uma
comunidade que acolhe as ovelhas rejeitadas pela sociedade como um todo, que ajuda a entrar
em harmonia com o divino, que ajuda a não desperdiçar e a se tornar melhor para os outros.
Essa comunidade é já um paraíso terrestre, lugar onde é clara a presença de Deus. Temos que
fazer que todas as comunidades cristãs tornem-se pedaços de paraíso aqui na terra. Se não for
assim, cada vez mais nas nossas comunidades, além das famosas ovelhas perdidas que não
sabemos mais resgatar, também aquelas que até agora se sentiram seguras e protegidas
deixarão de nos seguir.
Aceitar a proposta de Cristo com o nosso sim. Em qualquer época, aderir aos
ensinamentos de Cristo nunca significou paz absoluta, mas paz escolhida. O cristianismo,
mesmo hoje, continua a ser catacumba27. Isso porque, quando vivido verdadeiramente, a
sociedade pode não entender e nem aceitar uma escolha que olha além da nossa existência,
que vai além da nossa humanidade, que precisa da presença de Deus. Se não for encarado
como brincadeira, dizer um sim verdadeiro a esta proposta integral é algo de tirar o fôlego.
Seguir os conselhos de Cristo muda a nossa vida: significa atuar em qualquer campo não por
dinheiro ou conveniência, mas por paixão à mensagem evangélica; significa ajudar sem
pretender algo de volta, apenas entendendo que servir é bom; significa deixar a porta aberta
da nossa vida para que todos possam entrar quando precisarem, mesmo aqueles de quem não
gostamos; significa lutar contra as injustiças para que sejam eliminadas da face da terra,
preparando os outros para a vida eterna; e ainda muito mais.
27
Galerias escavadas no subsolo onde os corpos eram sepultados e – no caso dos cristãos – ficavam aguardando
o tempo onde todos ressurgiriam. Em épocas de perseguição aos cristãos, principalmente no Império Romano,
era também nas catacumbas que eles se escondiam para rezar, celebrar os cultos, escutar a Palavra de Deus e
para fugir dos perseguidores.
28
"Como meu Pai me ama, assim também eu vos amo. [...] Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros,
assim como eu vos amei." (Jo 16,9.12)
49
para conosco. Partindo desse amor recebido, é uma questão de consciência: aderindo a Cristo,
confirmando o próprio sim a Deus, qualquer cristão deveria se empenhar em restituir o
mesmo amor aos outros, também àqueles que, humanamente falando, não amamos. Para
muitos parecerá complicado e difícil, sentirão em si uma grande fragilidade. Porém, não
estamos sozinhos somente com as nossas forças, não ficamos desamparados, porque temos o
suporte do Espírito Santo.
Jesus, centro e desejo da comunidade cristã. Além daqueles que com Ele
conviveram ou a quem Ele se quis mostrar, ninguém viu, ao vivo, Jesus em carne e osso.
Também, como já lembramos, não temos fotos ou vídeos que nos possam mostrar como Ele é.
Talvez não seja a coisa mais importante saber a cor dos olhos, se tinha barba ou não, se a pele
era escura ou clara etc. Mas, por gerações, os artistas procuraram reproduzir um Jesus o mais
fielmente possível às tradições transmitidas pelas primeiras comunidades de cristãos. A
imagem de Jesus que foi encontrada na catacumba de Comodila, em um dos túneis destinado
às orações da comunidade, sendo ela do V século d.C., é considerada uma das mais fiéis ao
verdadeiro rosto de Jesus. Geralmente, acontece isto: podemos lembrar de uma pessoa ou de
uma história por uma hora, um ano, muitos anos; mas, cada vez que o tempo passa, quanto
mais nos distanciamos daquele evento, a mente vai como que modificando aquela lembrança,
que fica suscetível a alterações e esquecimentos. Podemos facilmente imaginar o que significa
isso com a imagem do Filho de Deus. Quanto mais nos afastarmos do evento Jesus, menos a
representação que teremos será fiel à sua imagem original. É mais provável que uma pintura
de 1.500 anos atrás seja mais fiel do que uma representação de Jesus feita hoje. Enfim, vendo
essa imagem podemos imaginar qual é fisionomia de Jesus que os discípulos tentaram
transmitir aos cristãos do futuro e que depois foi passada de geração em geração. Cada cristão,
tendo encontrado Jesus, deveria dizer como nos Atos dos Apóstolos: "Quanto a nós, não
podemos deixar de falar sobre o que vimos e ouvimos" (At 4,20). É só vivendo essa afirmação
profundamente que podemos entender a importância da transmissão das primeiras
comunidades que aceitaram seguir o Cristo. Quem pintou essa imagem com certeza queria
trazer Jesus para perto da própria comunidade. Mesmo sendo apenas uma interpretação de
Jesus, queremos entendê-la como uma fotografia da pessoa mais importante da nossa vida;
assim como quem rezava naquelas catacumbas, queremos sentir o Salvador perto de nós.
"Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou ali, no meio deles"
(Mt 18,20). Essa afirmação quer dizer que, quando nos encontramos para rezar, Ele está
50
conosco, quando nos encontramos para entender melhor a nossa fé, Ele está ao nosso lado. Se
essa presença se torna importante na nossa vida, podemos encontrar as coordenadas para viver
santamente a vida que nos foi doada.
Jesus está pronto a nos abençoar sempre. O que significa abençoar? Significa
"abendiçoar", "bem-dizer"29. Quando alguém reconhece a fidelidade em uma pessoa, é natural
que fale dela, colocando-a nos favores de Deus. Temos que nos acostumar a ficar perto de
Jesus, a aproximar-nos dele para imitá-lo, para caminharmos com Ele. Precisamos encontrar a
sua benção, o seu falar bem de nós. Se Ele falar bem de nós, quem poderá falar mal?30 Ele
está sempre pronto a nos abençoar, está nos aguardando. O nosso aceitar o seu convite é
possível porque Ele não nos deixa sozinhos, quer caminhar conosco. A mão levantada, que
nos lembra a sua condição de Deus encarnado, está à procura de homens e mulheres que se
deixem "capturar" pelo seu olhar.
Os nomes do Filho de Deus. Jesus, para nós, que acreditamos nas suas palavras, é
aquele que gerações de hebreus aguardavam há séculos, anunciado pelos profetas como
aquele que, enviado por Deus, libertaria o povo oprimido. Estavam aguardando o Messias,
que significa "ungido" em hebraico e que depois foi traduzido em grego com a palavra Cristo.
Em Israel, e também no mundo antigo em geral, os reis eram ungidos com óleo de azeite
como sinal de eleição. Diferentemente dos outros reis, o Messias, Jesus, foi ungido
diretamente por Deus e Espírito Santo. O povo estava aguardava o enviado de Deus, o rei dos
reis, capaz de libertá-los. Para nós, Jesus Cristo é esse rei que, com a sua passagem na terra, já
salvou todos os homens, colocando-se a serviço da humanidade.
29
Segundo o Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, algumas das definições de abençoar são: lançar
bênção a, abendiçoar, desejar bem a, bem-fadar, bem-dizer, exaltar ou louvar (algo ou alguém).
30
"Se Deus é por nós, quem será contra nós?" (Rm 8,31b)
51
Com fé podemos fazer esta invocação: "Jesus Cristo, Filho de Deus, Senhor, tende
piedade de mim, pecador" (CIC, § 435). Essa é a famosa Oração de Jesus, simples e poderosa
ao mesmo tempo, que ajudou por séculos os monges a ficar com Jesus no coração. Podemos
invocá-lo chamando-o pelo nome, Jesus, que significa Deus salva; aclamando-o como o
Cristo ou Messias, o rei dos reis enviado pelo Pai; declarando que Ele é mesmo o Filho de
Deus, porque assim o Pai o quis chamar; colocando-nos a serviço dele, Senhor da nossa vida;
proclamando a sua divindade na encarnação; reconhecendo-nos criaturas dispensáveis frente
ao seu amor transbordante... Acreditar na autenticidade e no profundo significado desses
nomes, relembrá-los frequentemente com fé e deixá-los amadurecer no coração é a maior
declaração de amor que um cristão pode fazer a Deus. O CIC nos lembra disso muito
claramente: "O nome de Senhor significa a soberania divina. Confessar ou invocar Jesus
como Senhor é crer na sua divindade. 'Ninguém pode dizer 'Jesus é Senhor', a não ser pela
ação do Espírito Santo' (1 Co 12, 3)" (CIC, § 455).
52
João 5,17-13
Para introduzir a figura de Deus Pai, poderíamos escolher tratar de vários aspectos que
o caracterizam: o amor, a onipotência, a misericórdia, a criação, aspectos que podem ser
tratados em distintos momentos. Escolhemos uma imagem que nos apresenta uma iconografia
clássica de um Deus Pai sentado no trono, indicando sua majestade absoluta. Ao seu lado está
o Filho, Jesus, com todos os sinais da sua paixão, e a Mãe de Jesus, Maria, escolhida entre
todas as virgens para ser instrumento da encarnação de Deus no meio dos homens.
Estamos frente a um quadro de um anônimo alemão do século XV, que nos imerge em
uma teologia romântica que coloca Deus Pais acima de qualquer rei que o homem pode
conhecer. Por isso, está sentado no trono da onipotência e coroado com a mais bela e rica
coroa que já foi vista. A mão direita rege a esfera vermelha, que representa a terra que Ele
domina; depois do sacrifício do Filho, Ele tomou definitivamente nas mãos a situação e pode
continuar o projeto de amor pensado para os homens desde a Criação; as flechas que em sua
mão esquerda confirmam que é Ele que envia. Desde que alguém tentou representar Deus – o
divino por definição, o não representável – em uma imagem, seu rosto é sempre o da
sabedoria do grande ancião, bom, solene, de barba comprida; Ele parece ter o domínio sobre
todas as coisas, sobre tudo aquilo que está acontecendo, não há nada que fique escondido ao
seu olhar, nada que Ele não escute, que aconteça sem seu consentimento.
Os olhos de Jesus estão voltados para o Pai, nenhuma de suas mensagens ou de seus
gestos deixou de estar em conformidade com o Pai. Maria indica com as mãos o Deus que se
serve dos pequenos como ela para fazer grandes coisas. As faixas com as palavras são o
artifício pictórico que indica que existe um diálogo contínuo entre o Pai e o Filho e entre o Pai
e Maria. Quem olha percebe que também cada fiel pode ter esse diálogo direto de amor com o
Pai, como o próprio Jesus no mostrou ensinando-nos a oração do Pai-Nosso. O Espírito Santo
está sempre presente quando estão o Pai e o Filho, e aqui é reconhecido com todo o seu
dinamismo através da imagem da pomba que fica acima de toda a cena.
53
A origem iconográfica deste ícone nasce na antiga tradição das comunidades cristãs,
que, ainda nas catacumbas, representavam o episódio da visitação dos três anjos ao carvalho
de Mambré (Gn 18,1-16). Com o passar dos séculos, foram dadas diferentes interpretações da
misteriosa visitação à tenda de Abraão e Sara. Abraão os acolhe imediatamente chamando-os
de Senhor, mesmo que, no versículo 2, eles tenham sido definidos como "três homens". Entre
as muitas imagens que remetiam à Trindade, essa acolhida de Deus feita por Abraão era a
preferida na Igreja oriental. Ao longo dos séculos, passou por várias maneiras de ser
representada, com ou sem a presença de Abraão e Sara, até chegar a esta síntese de Rublev,
que se tornou a mais famosa e venerada.
A partir da disposição das figuras dos anjos, ligeiramente alongadas para oferecer um
maior sentido de verticalidade à composição, podemos extrair vários elementos geométricos
que nos indicam significados profundos. O primeiro é o quadrado que contém a cena:
31
"sarà dichiarata come unico modo teologicamente corretto di raffigurare la Santissima Trinità dal Concilio dei
Cento Capitoli di Mosca del 1551."
55
representa a terra aonde Deus, quando quer comunicar-se conosco, deve entrar. Trata-se da
dimensão humana. Ele, que é infinito, deve entrar no finito para comunicar-se conosco.
Dentro do quadrado podemos ver o octógono. Oito é o número escatológico, porque indica o
oitavo dia, aquele que está fora da semana, o primeiro da nova criação. Observando as três
cabeças dos anjos unidas na faixa vertical central, podemos reconhecer o formato de um tau,
uma cruz, fundamento da missão de Jesus. Todas as vezes que um cristão faz sobre o próprio
corpo o sinal da cruz, saúda e chama sobre si a presença do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Podemos ver também o cruzar-se de dois triângulos invertidos32, que lembram o encontro da
realidade do transcendente com o terreno; imagem da tentativa milenária da humanidade de se
aproximar de Deus, mas também da iniciativa de Deus que nunca quis ficar longe dos
homens. Domina sobre todas as outras a figura do círculo, onde podem ser englobados os
rostos, as mãos, os pés, e, sobretudo, os olhares dos três anjos. Procurando-se continuamente,
demonstram um dinamismo divino, estão dentro de uma dança circular, que representa a
harmonia viva e criadora. Vemos isso no movimento das mãos. Os três regem os cetros com a
mão esquerda e abençoam com a direita. O anjo de esquerda, o Pai, abençoa e cria. O do
centro, o Cristo, abençoa e indica as suas duas naturezas. O terceiro, à direita, o Espírito
Santo, abençoa indicando a sua descida no nosso dia a dia em auxílio à nossa vida e, por isso,
é como se afirmasse: "Estou aqui!".
O cálice que está no centro da mesa representa a Eucaristia. Dentro do cálice podemos
ver a cabeça do cordeiro que Abraão oferece aos três anjos de Mambré: era o que de melhor
32
Representação da Estrela de David, símbolo do Judaísmo.
56
podia oferecer aos hospedes imprevistos. Aquele cordeiro se tornará depois da cruz o maior
símbolo de Cristo: também Deus, na sua infinita bondade, nos oferece o que tem de mais
precioso. Esta imagem do Filho Cordeiro de Deus é mais evidente no segundo cálice,
delineado pelas formas dos dois anjos laterais que identificam o anjo central com o Filho de
Deus. A parte do cálice que não está fechada é um convite a todos os cristãos a completá-lo
com a própria vida, concretamente com os nossos corpos. Um convite a entrar em comunhão
com a Trindade. Podemos ver ainda outros dois cálices menos evidentes. Um delimitado pela
linha superior do altar: representa o nosso sacrifício cotidiano que pode ser oferecido a Deus,
onde não será desperdiçado e encontrará o verdadeiro sentido. Outro, mais abaixo, é aquele
verde na base do cálice maior que parece um funil: todos os cristãos precisam passar por esta
porta estreita da qual fala o Evangelho. A cor verde lembra a fertilidade da mensagem
evangélica, a esperança de que a planta, que somos nós, dê frutos, se torne para os outros.
Pode-se também fazer uma leitura das cores das vestes dos anjos. Elas não possuem
alterações tonais, a Trindade não tem sombra nenhuma. Todos se cobrem com uma veste azul
que representa a dimensão celeste que se manifesta aos homens. O hábito vermelho que cobre
Jesus recorda a cor da realeza: é o Rei dos reis. Também a presença da estola no seu ombro o
coloca como sacerdote dos sacerdotes. O Pai está envolvido em um veste rosa, cor da Graça.
O verde da veste do Espírito Santo representa a fertilidade, a cor da salvação: o seu
dinamismo torna fértil cada realidade do homem e da Igreja. O Espírito Santo é a pessoa da
Trindade mais próxima da maternidade, a mais feminil, imagem da fertilidade.
Atrás de Jesus podemos enxergar a árvore símbolo do Éden – Jesus é o novo Adão – e
que também pode ser entendida como uma referência à cruz – Jesus como Árvore da Vida –
ou como broto de Jessé – Jesus, salvação da humanidade, enxertado na velha vinha do
judaísmo. À esquerda encontramos o símbolo da Casa do Pai, com a varanda de onde o rei
anunciará a Jerusalém Celeste, a casa da Paz. À direita está a montanha, que na Bíblia é
sempre o lugar do encontro com Deus. Para encontrá-lo, para podermos crescer com Ele,
temos que subir esta montanha, temos que nos envolver e no interessar pelas coisas de Deus.
57
Mateus 2,1-12
Deus está bem presente. Os anjos olham para o alto; eles são, desde sempre, as
testemunhas da presença de Deus. Porém, desta vez aconteceu algo de inimaginável até
aquele momento. Agora não é mais preciso olhar para o alto para ver Deus. Um dos anjos
olha para baixo e indica a gruta para os pastores. Ele anuncia que não é mais necessário subir
ao monte para ver Deus, porque agora Ele desceu do alto para ficar no meio dos homens. Os
pastores representam o povo eleito querido por Deus. Tão querido que Ele se torna o pastor
que tanto aguardavam.
Maria, como reza a tradição da liturgia bizantina, se torna oferta a Deus para operar a
encarnação. Assim se reza na oração do dia do Natal:
O que vos podemos oferecer, ó Cristo, porque por nós nasceis na terra
como homem? Cada uma das vossas criaturas, que são vossas obras, vos
apresenta o próprio testemunho de gratidão: os anjos, o seu canto; os céus, a
estrela; os magos, os presentes; os pastores, a sua admiração; a terra, a gruta;
o deserto, a manjedoura; nós, homens, vos oferecemos uma Mãe Virgem.
(SPIDLIK, 2000, p. 19) 33
33
"Che cosa ti offriremo, o Cristo, perché per noi tu nasci sulla terra come uomo? Ciascuna delle creature che
sono opera tua ti reca, infatti, la sua testimonianza di gratitudine: gli angeli il loro canto, i cieli la stella, i magi i
58
No paraíso, a serpente ofereceu a uma mulher, Eva, a falsa ilusão de poder fazer-se
igual a Deus. Com a encarnação, Maria é a nova Eva, que se oferece para que Deus possa se
tornar homem. O diabo ainda está presente nas vidas das pessoas: embaixo à esquerda,
travestido de pastor, coloca dúvidas no coração de José. Esta cena lembra a eterna dúvida de
qualquer homem. Os demônios continuam colocando dúvidas nos corações: "Será mesmo que
aquele homem é Deus?". Mas foi um anjo em sonho que anunciou a José a natureza divina
deste menino. Aquelas que parecem não ter dúvidas nenhuma são as sábias mulheres que, à
direita da composição, estão cuidando do menino recém-nascido. Como todos os homens que
nasceram e nascerão, Jesus é lavado; com este gesto, as mulheres testemunham que Ele é
também verdadeiro homem. Elas serão as únicas que verdadeiramente poderão testemunhar
sobre o nascimento virginal do Cristo.
A cena em geral não é uma cena de alegria: no ar respira-se tristeza. A gruta parece
uma tumba; a manjedoura, um sepulcro; e as faixas que envolvem a criança são, na verdade,
lençóis mortuários. Praticamente Jesus nasceu para morrer, o destino dele está já marcado
desde o seu nascimento. Maria não demonstra entusiasmo pelo feliz evento. Ao contrário, ela
mergulha na tristeza e o olhar dela procura fugir do menino. Maria pariu um menino
destinado a sofrer e a morrer; por isso, no ícone Ele é colocado no sarcófago. Nos ícones da
ressurreição ficarão somente as bandagem sem o corpo que voltou à vida. A encarnação tem
um fim, que é a ressureição. A Mãe que se ofereceu como porta de entrada à terra agora é
colocada no leito. Também ela segue o caminho indicado pelo Cristo, ela será a primeira a
oferecer-se para compartilhar a dor do seu filho.
Como nos conta o Evangelho de Lucas (Lc 2,7), aquele sarcófago na realidade é uma
manjedoura. Ao lado de Jesus, temos o boi e o asno. Segundo alguns padres exegetas, se Deus
queria de verdade encontrar novamente o homem, tinha que ir ao lugar onde o homem peca.
Desde que Adão se vestiu com peles de animas, o homem encontrou a própria corporeidade
de maneira animalesca, convivendo continuamente com o medo da morte, procurando
continuamente uma maneira para se salvar. Da mesma maneira que os animais, que para
sobreviver precisam encontrar comida na manjedoura, também o homem procura a
sobrevivência, e a procura na manjedoura, no pecado. Para os padres, a este lugar voltaremos
continuamente, o homem volta sempre ao seu pecado. Deus encarnado é deposto na
loro doni, i pastori la loro ammirazione, la terra la grotta, il deserto la mangiatoia; noi uomini ti offriamo una
Madre Vergine."
59
manjedoura porque este é o único lugar ao qual o homem com certeza voltará. Deus
renunciou à sua glória, se rebaixou, para se encontrar com o homem. Por isso, a manjedoura é
também um sarcófago: porque lá se encontra também a morte.
34
"Como il pane viene distrutto nell'essere mangiato, ma così è causa di sopravvivenza, così Cristo si lascerà
distruggere, perché solo quando l'uomo lo avrà ucciso comprenderà quanto Dio è buono."
60
Lucas 1,26-38
Maria Mãe dos Jovens (Ícone Russa do século XIV). Autor anônimo. Sermig,
Arsenal da Paz, Turim, Itália. (Anexo J) (OLIVERO, 2011)
Esta Maria Theotókos é particular por Maria ter três mãos. A tradição liga esta
particularidade ao milagre do são João Damasceno, defensor do culto às imagens, que se
tornou o defensor da veneração das imagens contra a tentação iconoclasta. Ao rezar
devotamente frente a um ícone de Maria Mãe de Deus para que lhe fosse restituída a mão
decepada pelos mouros, logo depois do sono acordou com a mão no lugar certo e
perfeitamente operante. A partir daquele momento, a sua paixão por defender as imagens
multiplicou-se ainda mais.
35
A história da veneração de Maria Mãe dos Jovens pode ser encontrada no site do Sermig. Disponível em:
<http://www.sermig.org/br/maria-mae-dos-jovens/historia>. Acesso em: 25 jan. 2015.
61
Mateus 27,45-56
Estamos fora dos muros de Jerusalém, no alto do Gólgota. Pode-se perceber Jerusalém
no fundo da composição. As cruzes dos ladrões estão vazias. Na tradição oriental, o Cristo é
posto na cruz com a atitude de alguém que está dançando; trata-se de uma dança vitoriosa. Ele
é o primeiro que louva o Pai porque o homem é salvo. É a representação de um corpo sem
nenhuma marca da paixão, não existe sinal de sofrimento; isso porque o artista quis oferecer
ao espectador não um Cristo sofredor manchado pelo sangue, mas o Filho de Deus para ser
contemplado na sua vitória, no cumprimento da vontade do Pai. O corpo dele está se tornando
quase da mesma cor do fundo, o que lembra a ausência do tempo, a eternidade. Quem olha
para esta crucificação deve poder dizer como o centurião do Gólgota "Na verdade, este
homem era Filho de Deus!" (Mc 15,39). Na imagem, o chefe dos centuriões olha fixo para o
alto, mas não enxerga somente o homem que está pendendo da cruz: ele consegue enxergar
algo de espiritual que vai além da sua compreensão. A cabeça enfaixada com um pano branco
indica essa realidade espiritual. Mesmo enxergando com os olhos o que todo o mundo está
vendo, reconhece a dimensão divina que está se mostrando à sua frente e essa visão o
transforma definitivamente.
ouvido no coração do Mestre e agora está diante da sua morte. Com o seu coração, ele sente a
dor do coração que tinha conhecido tão bem. Maria, a Mãe de Jesus, que parece estar
profundamente perplexa, é sustentada por sua irmã, por Maria Madalena e por Maria de
Cléofas (Jo 19,25). Ela está olhando o Filho sem palavras e também o Filho a procura com o
olhar. A mão apoiada na face indica a dúvida na virgem, mas não é a mesma dúvida de José
no ícone da natividade – ele duvidava da divindade do menino nascido em Belém, enquanto
Maria fica perturbada pensando neste Deus humilhado na sua humanidade: "este sofrimento
era realmente necessário?". É o próprio Cristo que lhe responde através da sua postura na
cruz. Ele ensina a Maria e às mulheres que se preocupam com ela – e também a todos que
olharem para Ele – a encontrar o sentido salvífico e espiritual do sofrimento, da falência e da
morte.
A cruz está fincada na terra. Uma lenda medieval acreditava que no mesmo Gólgota,
no lugar onde foi colocada a cruz de Cristo, estaria sepultado o crânio de Adão, com três
sementes da árvore do paraíso terrestre na boca. Dessas sementes teria nascido a cruz de Jesus
(ROMANO, 2010). Como todos morreram e foram condenados ao pecado pelo Adão, assim
todos receberão a vida em Cristo (1 Co 15,22). Jesus é o novo Adão e a cruz é a árvore da
vida eterna. É por isso que Gólgota significa "lugar da caveira" e nos ícones é representado
com uma fenda na rocha, com uma caveira que dá origem à cruz.
Mateus 28,1-10
Maria Madalena parece dialogar com o olhar com Jesus ressuscitado. Ele lhe parece
indicar a casa do Pai. Ele a indica para todos nós, espetadores. É para lá que Ele deve ir, Ele
vai preparar um espaço para os seus amigos homens. As mulheres chegam da Jerusalém
terrena que mata os profetas enviados por Deus, atrás delas se enxergam os seus muros; mas
todo o movimento da imagem leva o olhar à Jerusalém celeste, que está no alto da montanha e
que deve ser a meta de toda a humanidade.
4.7.2 Ressurreição
trazendo consigo a bandeira branca com a cruz vermelha que celebra a sua vitória sobre a
morte. Por isso está vestido com uma veste rosa, sinal da soberania sobre toda a terra.
O corpo dele apresenta ainda os sinais da paixão, a ferida na costela parece ainda
sangrar. O espectador o encontra fazendo o passo decisivo que um morto não pode fazer
sozinho: sair do túmulo com os próprios pés; a perna esquerda está pronta para levar todo o
corpo para fora, deixando a morte para traz. Na parte inferior da imagem, quatro guardas
romanos estão dormindo. Eles não vigiaram, como era seu dever, e perderam – mesmo que
estivessem em posição privilegiada, perto do evento – o acontecimento mais importante da
história da humanidade. Eles não poderão testemunhá-lo; ficarão somente com o túmulo
vazio. É claro o contraste entre a humanidade incapaz de ficar acordada e a divindade sempre
vigilante. Mas existe um elemento de esperança. Um deles está apoiado à haste do estandarte
da vitória de Cristo, está diretamente em contato com a divindade, ainda que
inconscientemente. Essa postura pode nos ajudar a entender que, mesmo dormentes, mesmo
na obscuridade, cada homem pode ter esperança na força da ressurreição.
Neste ícone, Jesus é representado no ato da descida aos infernos logo depois da
ressurreição. Jesus enfrenta a morte não somente ressuscitando e saindo do túmulo, mas
também entrando no império do príncipe do mal, para enfrentá-lo abertamente. Ele entra
nesse mundo caracterizado pela mentira esplendoroso com a veste branca da ressurreição.
Venceu a morte não somente para ele, e sim para resgatar todos os homens que nasceram. A
tradição dizia que, quando Caim se escondeu de Deus, refugiara-se na escuridão da tumba,
lugar onde nada de divino entraria. É o mesmo lugar onde o príncipe da escuridão se esconde
e domina todos aqueles que viram as costas a Deus.
65
Neste momento, todas as tumbas são abertas e um terremoto atinge toda a terra (Mt
27,51-52). Jesus quis se fazer homem para descobrir o esconderijo onde se escondia a
humanidade incapaz de amar. Jesus se entrega nas mãos dos homens porque somente assim
consegue atingi-los profundamente. Cristo toma consigo Adão e Eva para restituir-lhes a
dignidade de filhos de Deus; se foi possível que isso acontecesse com eles, toda a humanidade
já está redimida na ressurreição e voltará ao coração da Trindade, à casa do Pai. É um
momento importante para a história da Salvação. As almas dos justos, confiantes, vestidas de
branco nas duas laterais da gruta, aguardam serem libertadas.
No momento em que os mortos são resgatados por Jesus, dois anjos amarram um
diabo preto como o carvão no fundo da composição. No alto de todo o evento, os anjos
sustentam e adoram a Santa Cruz, clara referência à paixão de Cristo. Ele só podia ressuscitar
se passasse pela morte; o sacrifício do Cristo abriu as portas dos infernos. Os elementos Cruz,
Jesus e a prisão do diabo, colocados centralmente um abaixo do outro, ajudam o espetador a
relacioná-los de maneira evidente.
Estão presentes na imagem as duas esferas da vida espiritual. A esfera da morte está na
gruta onde reina a escuridão, onde governam as leis dos vícios e do egoísmo. Cada demônio
que se escondeu à sombra do diabo representa um vício. Todos estão sendo perfurados pelas
lanças dos anjos que estão na esfera das virtudes, a qual tem Jesus no centro. Esta, a das
virtudes, é radicalmente oposta à esfera do diabo. Quem está nela age à plena luz do Cristo,
66
sem medo de vergonha ou confusão. Cada anjo representa uma virtude cujo nome está escrito
em uma pequena esfera branca. Cada virtude perfura o anjo que representa o vício
correspondente: a humildade derruba a vanglória, a pureza se lança contra a obscenidade etc.
Jesus destrói definitivamente a esfera do mal simplesmente entrando nela: Deus não combate
a escuridão, ela não existe mais. O homem liberto através do milagre da ressurreição pode
viver essas virtudes somente fugindo de todos aqueles que o aconselharão a voltar as costas a
Deus novamente.
67
Mateus 25,31-46
(1431). Beato Fra Angelico. Galeria Nacional de São Marco, Florença, Itália.
(Anexo O)
Esta pintura de Fra Angelico ajuda a imaginar com riqueza de detalhes e elegância o
que poderia acontecer no dia da Parúsia, a segunda vinda de Cristo, o último dia, no qual
todos, segundo a nossa fé, seremos julgados, os vivos e os mortos. Esta pintura foi criada para
ser colocada em um lugar muito visível, o coro36 dos monges de um antigo convento que hoje
não existe mais. Aos monges deveria chegar a mensagem de Jesus: o destino de quem
permanece fiel aos seus mandamentos é a casa do Pai, onde todos o louvam e encontram a
felicidade eterna. Para quem o renega, ao contrário, é preparado um lugar afastado do Pai, um
lugar onde a dor e o mal dominam e não terão fim.
Jesus juiz chega triunfante ao topo da pintura, em uma amêndoa de luz. Em volta dele
os anjos louvam a glória do Cristo: Jesus é a Luz para a qual todos devem olhar. Entre aqueles
que estão com Jesus, são reconhecíveis em primeiríssimo plano: à esquerda, a Virgem Maria,
e à direita, São João Batista. A primeira introduziu o Encarnado na terra, o segundo deu
início, oficiando o batismo dele, à história da salvação. Sentados atrás deles, à esquerda e à
direita, se encontram felizes os santos do Antigo e do Novo Testamento, que participam
juntos da glória do Altíssimo.
Logo abaixo de Jesus, um anjo mantém nas mãos a cruz da redenção e os dois anjos do
Apocalipse anunciam a chegada do Cristo, com trompetes e louvores. O anúncio despertou
todos os mortos da face da terra. Os sepulcros estão vazios, abertos, as tampas estão
escancaradas. Em primeiro plano, temos o sarcófago de Jesus, que está vazio; lembra a
passagem do Filho de Deus na terra e a sua ressurreição. Os anjos e os demônios acabaram de
separar os corpos ressurgidos: à esquerda encontramos os bem-aventurados que rezam e
agradecem o Senhor, à direita estão os danados que estão apavorados pelas torturas que logo
receberão.
36
Lugar específico para a oração comunitária dos mosteiros, onde os monges procuram entrar várias vezes por
dia na liturgia celeste de todos os santos que estão à presença de Deus.
68
Esta imagem representa alegoricamente o percurso espiritual que São João Clímaco,
contemporâneo de Maomé (século VI d.C.), indicou em seu livro Escada do Céu. Clímaco
significa escada. Esse texto, apreciado pelas Igreja de oriente e do ocidente, propõe os trinta
degraus para subir da terra até o céu, utilizando a escada que o próprio Jesus coloca e sustenta.
Segundo São João Clímaco, Jesus foi o primeiro homem que percorreu perfeitamente estes
degraus, indicou o caminho e agora está perto do último degrau, nas portas do céu, para
69
acolher todos aqueles que enfrentarão este esforço. A escada e a subida até o céu são
tentativas de imaginar a luta espiritual de cada cristão.
O livro foi escrito para os monges. Por isso, no ícone que lembra a visão de São João,
são monges que estão tentando subir os degraus, encorajados pelos anjos fiéis servidores de
Deus. Eles ascendem perigosamente, sem proteção nenhuma. Também os santos que já
conseguiram chegar ao paraíso os encorajam do alto. Em torno dessa escada já perigosa e
escorregadia, demônios alados, os anjos do diabo, insidiam os monges procurando distraí-los
do objetivo. Esforçam-se para fazê-los cair na profundeza do inferno. Somente os que
continuam a olhar para o alto, atraídos por Jesus, que está no final da subida, vão conseguir
não cair. O prêmio final será a acolhida de Jesus, o próprio Cristo. Ele está curvado e não para
de encorajar com fidelidade cada um deles. O Filho do homem, depois de ressuscitar, subiu ao
céu para preparar para todos um lugar na casa do Pai e não quer que ninguém fique de fora.
Preparados estes lugares, agora está à porta do paraíso, junto com sua Mãe Maria e os anjos.
Atrás de Cristo, que salva, está São João Batista, que instituiu o batismo, sacramento de
salvação para todos.
Quem decide começar esse percurso de ascese sabe que vai enfrentar riscos e
dificuldades. Alguns caem, e a queda é sempre algo dolorido; mesmo já em altos níveis de
ascese espiritual, existe sempre o perigo de estar no alto e de repente perder as certezas que
nos acompanharam até aquele momento. Quando essas vertigens surgem, a queda pode ser
feia e destrutiva para quem não encontrar um suporte. Quem cai aceitando os convites dos
demônios tem um espaço reservado na escuridão, representado pela gruta repleta de pessoas
sob a escada.
chegar a Deus com o coração. Esse é o anuncio que o próprio São João, na imagem, está
proclamando no púlpito. Na pregação, ele está contando a visão da escada aos fiéis reunidos
na Igreja – na realidade, a todos os que lerão o livro. Com a mão indica o caminho da
salvação que pode ter somente uma direção: a subida. Trata-se de um percurso indicativo para
quem quer enfrentar um combate espiritual com o olhar fixo no fim dos tempos. Quem escuta
as suas palavras enxerga imediatamente Jesus curvado aguardando-o no fim da subida da
escada. Este é o segredo: enxergar imediatamente esse Jesus que ama todos. Ele fala no
púlpito de uma igreja: a salvação, o caminho que leva a Deus, nasce e é possível somente na
Igreja. No ícone, essa igreja é representada pela construção arquitetônica no fundo, mas o
grupo que está escutando o santo representa a Igreja viva de Jesus Cristo.
71
Este ícone da Ascenção quer ser um ícone cristológico, porque fala de algo que
aconteceu a Jesus, e, ao mesmo tempo, eclesiológico, porque o Cristo que sobe ao céu
"permanece" na terra vivendo na Igreja. É também a expressão da festa da criação que
participa com toda força da subida ao céu do seu Criador. Por isso, assistimos à dança das
rochas e das oliveiras no meio da composição. Cristo é levado pelas forças angelicais à casa
do Pai. Dois anjos sustentam uma esfera que representa o céu espiritual. Jesus é representado
como o ressuscitado vencedor, com as mesmas características do Cristo Pantocrator, com o
rolo do Evangelho na mão esquerda e com a outra abençoando.
Desde que existe a história, os homens sempre procuraram no céu as respostas para as
próprias dúvidas, procurando os ideais e as belezas que não se encontram na terra. Os anjos
convidam a não olhar mais para o céu. Eles direcionam o olhar dos apóstolos, indicando que
os fiéis devem procurar na humilde serva do Senhor o céu que está na terra. A Igreja é
portadora de todas as virtudes que são necessárias para viver como pessoas que abandonaram
as vestes velhas e se deixaram vestir com as novas trazidas por Jesus. Por isso, cada apóstolo
tem uma veste de cor diferente, cada um representando as diferentes almas e modos de ser que
se encontram no Povo de Deus. Cada um é parte de um corpo que forma a Igreja, possui os
talentos e as virtudes que fazem da Igreja, ao mesmo tempo, um jardim de belezas infinitas e
uma pirâmide, edifício de Deus, com as bases bem firmes na terra.
Quando foi realizada esta obra, Caravaggio era considerado o maior pintor de Roma e
todos os maiores aristocratas o chamavam para trabalhar para eles. A maior característica das
obras de Caravaggio é a capacidade do pintor em utilizar as luzes e as sombras; a sua técnica
revolucionária e original é a colocação das cenas em um fundo obscuro, deixando que seja a
luz a sublinhar os gestos dramáticos e importantes, exaltando-os e oferecendo ao espectador
uma dramaticidade que não pode deixar ninguém indiferente.
Se o Cristo não podia ser reconhecido pelo aspecto visível, era bem reconhecível nas
atitudes e nos gestos. Neste quadro, está fazendo o gesto da bênção do pão, e é a partir deste
momento que os dois discípulos, revestidos aqui com os tecidos dos peregrinos do tempo de
Caravaggio, assumem posições e expressões que deixam claro o espanto, o desarranjo
interior. Aqueles discípulos, que estavam indo para longe de Jerusalém, deixando para trás
qualquer esperança, entendem, naquele instante que se tornará a celebração eucarística, que
nada terminou, que tudo o que Jesus tinha prometido estava se cumprindo. No relato, Jesus se
apresentara como um viajante que não tinha um lugar para passar a noite.
Diferentemente do garçom, que fica sem palavra e sem saber o que fazer, os gestos
dos dois peregrinos são bem eloquentes e falam sozinhos. O homem de costas parece não
acreditar no que está vendo. Com o movimento de jogar a cadeira para trás, demonstra querer
enxergar melhor e, aproximando a cabeça, expressa um ponto de interrogação que já tem a
sua resposta. O homem da direita está claramente maravilhado; com os braços, parece imitar a
cruz, lembrando os acontecimentos que acabaram de contar a Jesus durante o caminho e que
acreditavam que Ele desconhecesse. Com essa abertura, parece medir o espaço. O impacto é
tão forte que a mão parece sair do quadro e puxar o espectador para dentro da cena. A mão
direita, aquela perto do Cristo, parece ser desproporcional, mas mostra a intenção do autor em
levar a Cristo o olhar de quem assiste a cena. Na mesa estão presentes o pão e o vinho, que
simbolizam o corpo e o sangue de Jesus em seu sacrifício. O recipiente cheio de fruta
representa tanto a fertilidade de quem se coloca à mesa do Senhor quanto a fragilidade das
coisas materiais, da existência terrena. Por isso, as folhas das uvas estão murchas, os figos e a
romã estão quebrados e a casca da maçã tem buracos.
(Anexo S)
4.11 BATISMO
A descida de Jesus às águas do rio do batismo desde sempre foi interpretada como a
descida ao "sepulcro líquido" do Jordão. Cristo se revela nas margens destas águas que
dividem o Israel e a Jordânia de hoje e que vão até a depressão do Mar Morto. Para os
antigos, o mar e as águas em geral hospedavam os monstros marinhos e nelas residem as
potências do mal; por isso, também os judeus temem navegar. Jesus é rei da natureza e não
teme mandar nas águas.
A centralidade da figura majestosa de Jesus, o raio de luz que sai do alto e a água do
rio que desce exaltam a verticalidade da composição. O rio parece uma fenda que rasga a
montanha em duas e cai diretamente dentro da profundidade da terra, no abismo onde reina a
escuridão. Essa posição de Jesus prefigura a descida nos infernos tendo o mesmo significado:
é através da morte que Jesus salva o homem; Ele é o novo Adão. O Filho de Deus desce ao
abismo mortal, derrota o diabo e todas as forças do mal e sai dele vitorioso.
Jesus domina e santifica as águas; João Batista se dobra sobre Ele e coloca água na
cabeça do Cristo. Os três anjos aguardando no lado oposto ao do Batista estão prontos a
receber o corpo do Cristo, desnudo como no momento da criação, como se já fosse a
Eucaristia. Com o batismo do Cristo celebra-se o início da nova criação, vivificada pela
77
presença de Deus. Ele restaura em si a imagem original do homem, a sua beleza que se tinha
perdido com o pecado de Adão. O machado fincado na árvore à esquerda lembra a todos que
os últimos tempos já chegaram; o acesso ao Reino de Deus com Jesus é reaberto, mas com
uma condição: é preciso seguir o caminho indicado pelo servo de Javé e o batismo é o
primeiro passo.
78
4.12.1 Pentecostes
A descida do Espírito Santo no dia de Pentecostes, que acontece cinquenta dias depois
da ressurreição, é a manifestação definitiva da Trindade, que dá início ao motor da Igreja que
se torna como um farol, luminosa e calorosa novidade para a humanidade. A Festa de
Pentecostes é considerada por muitos a fundação da Igreja. A comunidade, reclusa por medo
dos judeus, ao receber o Espírito Santo adquire a maravilhosa capacidade de falar ao coração
dos homens e das mulheres de qualquer cultura e encontram a coragem de pregar o Evangelho
em todos os cantos do mundo.
Como relata o livro dos Atos dos Apóstolos (At 2,1-13), estavam presentes os onze
apóstolos que caminharam e participaram dos momentos trágicos dos últimos dias de vida de
Jesus na terra e Matias, sorteado entre outros discípulos para substituir Judas como décimo
segundo. Neste ícone Matias é substituído pela figura de São Paulo. São reconhecíveis os
evangelistas Mateus, João, Lucas e Marcos, porque cada um tem nas mãos um livro que
lembra os escritos do Novo Testamento. Também o Pedro ao lado de Paulo, mantem no braço
o Evangelho. A presença também de Paulo confirma que esta iconografia não quis fazer uma
documentação histórica do acontecimento, mas uma leitura teológica que vê os apóstolos e
missionários como a comunidade que é chamada a anunciar a Palavra de Deus ao mundo
todo. A disposição deles em semicírculo quer representar a comunidade dos fiéis. Serão
aqueles que darão testemunho de Jesus Cristo, com pregações e milagres, mas, sobretudo,
com a vida e, para alguns deles, com o martírio. Os rolos que cada um tem na mão são os seus
escritos. Eles não estarão sozinhos nessa empreitada. Entre Pedro e Paulo existe um espaço
vazio: é o espaço preservado para a presença espiritual de Jesus Cristo, que se faz presente na
vida dos homens através do Espírito Santo que é o consolador, o paráclito (que significa
advogado), o defensor, o intercessor. Aquele espaço não está vazio, mesmo que assim o
pareça.
pelo Pai e prometido pelo Filho. O Espírito é simbolicamente representado como uma pomba,
a mesma pomba que desceu sobre Jesus no momento do batismo no rio Jordão. Agora, a
Igreja comunidade está madura e o Espírito desce para fortificá-la e acompanhá-la no desafio
do anúncio. A comunidade se abre à ação do Espirito e é preservada na unidade, mas também
na particularidade de cada um. Aos apóstolos inflamados pela luz divina se contrapõe a figura
do velho rei que se encontra abaixo da cena. Ele representa alegoricamente o cosmos, o
mundo que até aquele momento vivia nas sombras, prisioneiro do mal e à espera de ser
vivificado pelo Espírito. Com o fogo do Espírito que desce do alto, a figura do cosmos se
coloca em contraste com a escuridão do caos e do pecado. Com o tecido branco ele tenta
recolher o fogo que chega do alto e que se transforma nos rolos das pregações de todos os
cristãos. O cosmos pode ser entendido como a personificação da harmonia cósmica, mas
também como a prefiguração do homem novo restaurado pelo espírito na beleza original.
Todos aqueles que aceitam receber as chamas do Espírito Santo na própria vida se
inserem nesse mistério, pelo qual a Igreja se torna mensageira da manifestação de Cristo para
o mundo. A disposição dos elementos faz entender a construção de uma Igreja onde o Povo de
Deus se reúne e a presença invisível, mas real, de Deus é uma certeza. É aqui que o homem
encontra a salvação. A Igreja se torna o templo vivente, é diferente da construção do templo
de pedra dos judeus; é lugar privilegiado para encontrar Deus neste tempo de passagem pela
terra. É aqui que os fiéis precisam encontrar o modo de colaborar com o Povo de Deus para
levar Jesus a quem não o conhece.
4.12.2 Pentecostes
dizia: "Como poderia não estar presente no momento da vinda do Espírito Santo aquela que
concebeu e deu à luz através do Espírito?"37.
37
"Como poteva non essere presente al momento della venuta dello Spirito colei che ha concepito e partorito
mediante lo Spirito?"
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Ao longo dos séculos, foram muitas as obras que tentaram imaginar e contar o
momento da instituição da Eucaristia. A mais famosa é A última ceia de Leonardo Da Vinci.
Aqui, decidimos propor a Última ceia de Jacopo Bassano, que encontrou uma maneira de
juntar todos os relatos dessa noite tão importante para a cristandade, seguindo especialmente
os relatos de João. Observando os homens em torno da mesa, logo percebe-se que as palavras
de Jesus não foram compreendidas tão claramente. Os discípulos ficaram sem entender, seus
olhos expressam incredulidade, e por isso perguntam e esperam explicações. Pedro logo se
declara pronto a segui-lo; Tomé, ao contrário, tenta fugir dessa possibilidade. Felipe pede para
ver o Pai e Judas Tadeu fica maravilhado que Jesus por manifestar-se aos discípulos e não ao
mundo. Entre eles, um pergunta ao outro, não podem entender o significado daquelas palavras
pronunciadas por Jesus. Na dinâmica dos gestos e dos olhares respira-se um clima de tensão.
Jesus tinha acabado lavar os pés de cada um dos apóstolos; ninguém deixou de ter os
pés lavados, nem Judas, que o deveria trair. Bem em evidência, logo se enxergam a bacia e o
frasco com água que Jesus utilizou para demonstrar como servir. Judas, o homem com a
camisa verde à direita, tem na mão esquerda a bolsa com o dinheiro; o autor não a coloca em
evidencia, mas deixa que seja o espetador a intuir sua presença mostrando as tiras da bolsa
que contém as trintas moedas. Outros indícios são a presença do gato que aparece ao lado dele
e o seu calcanhar levantado que lembra, de maneira plástica, que ele está prestes a levantar-se
para denunciar Jesus e que o traidor levantará o calcanhar contra o próprio mestre (Sl 41,10).
Mas antes Judas dissimula, não se esconde, representa o próprio papel até o fim. Não
responde a Jesus que tinha acabado de pedir-lhe de fazer logo o que tinha que fazer (Jo
13,27), mas com a máscara da hipocrisia discute ainda com os dois discípulos que estão à sua
frente. O discípulo em pé está bebendo um copo de vinho, o outro indica a mesa eucarística.
Também Judas indica o pão que está perto dele. É o pão do qual Jesus pegou um pedaço para
oferecer ao traidor (Jo 13,26). Judas continua dissimulando e, com a posição da mão, deixa
entender sobre o que todos estão discutindo vivamente à mesa: as duas espécies eucarísticas.
Os únicos que parecem não estar interessados são o próprio Jesus e João, aquele que se define
82
como o discípulo mais amado pelo Senhor (Jo 21,20-24); ele não resiste às notícias e se
abandona nos braços de Jesus, preferindo dormir nos braços do Senhor a procurar a solução
que todos estavam querendo encontrar. Pedro, confuso, pelo gesto da mão esquerda parece
envergonhado e ao mesmo tempo chateado com o homem que está bebendo o vinho todo; mas
na mão direita segura a faca que utilizará no Horto das Oliveiras. Olha para seu irmão André,
que parece não acreditar no gesto daquele que está bebendo. Os discípulos de direita estão em
plena discussão, e Tomé mostra o dedo que colocará na ferida do corpo do Cristo
ressuscitado.
Cristo é o único que olha para o espectador sem desvios. Ele está conosco sempre,
mesmo quando debatemos sobre nossas opiniões diferentes. Ao contrário, nenhum apóstolo
olha para Jesus. O Filho de Deus está preocupado porque parece que ninguém consegue
entender a sua mensagem. Mas os sinais na mesa e na imagem são claros, pelo menos pelo
espectador. A cabeça de cordeiro que está no centro da mesa lembra o rito hebraico da
remissão dos pecados com os animais: Jesus se está colocando como Novo Cordeiro
sacrificial para a remissão de todos os pecados. A laranja no centro da mesa, colocada na
borda, lembra a paixão e a redenção. Há também a particular auréola trinitária, que parece sair
da cabeça de Jesus. Porém, todos os apóstolos renunciaram a entender com a fé o que tinha
acontecido naquela mesa e deixaram de lado a presença do Cristo.
A última ceia de Bassano nos convida a não cometer o mesmo erro de deixar de lado o
Messias à procura do entendimento, e sim a reler com paixão os relatos da instituição da
Eucaristia. Nós homens e mulheres, nós Igreja, podemos ter a tentação de investigar a
substância, a forma e o rito, e de esquecer e não investigar o significado profundo que Jesus
Cristo nos quis passar. Estamos convidados a olhar aquele que, como mostra esta pintura, está
interessado em nos olhar. Temos que nos deixar ajudar pelo Espírito para entender melhor o
valor da Eucaristia: Jesus que nos olha um por um e nos chama a fazer o mesmo com todos os
homens e mulheres que Deus coloca em nossa vida.
83
4.14.1 Lava-pés
Estamos na noite da instituição da Eucaristia. Antes disso, Jesus cumpre um gesto que
deixa todos sem palavras. Jesus sai da mesa, tira o manto, veste a roupa de servo e começa a
lavar os pés dos discípulos presentes.
Um dos discípulos que não está olhando para Jesus é Judas; ele estava querendo outro
tipo de messias, parece não entender o sinal da humildade e da brandura do Mestre. Jesus,
mesmo sabendo o que ele estava tramando dentro do coração, quis lavar também os pés dele,
no último ato de misericórdia possível. Jesus não tem medo das nossas fraquezas e até o
último momento se coloca à disposição, como um amigo – mais que isso, como um servo –
procurando ajudar-nos a não fechar o coração.
Este é o testamento de Jesus deixado a todos nós cristãos. Antes de ser entregue aos
romanos e de sofrer de uma maneira terrível, antes de ser entregue nas mãos dos pecadores e
de derramar o seu sangue para nós, com este gesto Ele comunicou a síntese do anúncio da
84
Boa-Nova. Quem quer seguir Jesus e a sua Palavra deve entender que o segredo de quem ama
é amar os outros como o Encarnado nos amou. O recíproco bem-querer é fundamento da
comunidade cristã. Estimar-se, acolher quem está perto e quem está longe, deixar a lógica do
ser melhor que outro e servir são a cola que mantém a unidade na comunidade cristã.
Colocar estas duas imagens na mesma miniatura revela a grande conexão que existe
entre a Eucaristia vivida na liturgia, na comunhão da oração com todos os irmãos e a
Eucaristia como dimensão do serviço, onde cada cristão se coloca a serviço do outro por
amor, sem querer nada em troca. Não podemos separar as duas Eucaristias.
85
Lucas 15,11-32
Podemos dizer que esta obra é aquela que, mais que qualquer outra, exprime com
intensidade o imenso amor misericordioso de Deus para com a humanidade. Rembrandt
tentou, em vários momentos da sua vida, capturar em uma imagem este momento prodigioso
do pai que acolhe o filho que parecia estar perdido. A parábola do filho pródigo com certeza é
uma das mais lindas parábolas que Jesus nos doa; o amor de Deus é incompreensível para o
homem e a alegria do perdão é algo que não pode ser descrito. É muito provável que
Rembrandt se sentisse necessitado desse amor, talvez por ter vivido os primeiros anos de
popularidade e sucesso como esse filho que quer seguir sua própria vida; mesmo gastando e
vivendo de maneira arrogante, sentia que antes ou depois precisaria desse perdão. No final da
vida, entre sofrimentos e desventuras, sofreu a solidão, falecendo pobre e sem amigos. Este
filho pródigo que temos diante de nós é de 1668 ou 1669, ou seja, de pouco tempo antes da
morte do autor (outubro de 1669). Conhecendo a vida dele, vendo o filho ajoelhado aos pés
do pai amoroso e paciente, com a cabeça mergulhada no peito quase tentando escutar e
convencer o coração dele, difícil não enxergar nele a autobiografia do Rembrandt no final da
sua vida.
O filho volta à casa do pai, não mais vestido suntuosamente com roupas caras, como
quando desperdiçou a parte de herança que lhe era de direito, mas com roupas sujas e
rasgadas. Está frio. Todos têm um manto para se proteger da baixa temperatura, também o pai
o acolhe vestido com um rico manto que lembra ao filho o que ele deixou para trás. O filho
não tem nada para se cobrir; agora, somente o abraço do pai misericordioso o aquece. Os
chinelos, que praticamente não servem mais para nada, contam bem a queda de quem perdeu
tudo, até a dignidade. O pé esquerdo desnudo e cheio de cicatrizes conta os quilômetros
percorridos para voltar à casa do pai. Ele não possui mais nada, é pobre. Tem a cabeça
raspada e não mais os cabelos compridos para serem exibidos. A única coisa que ficou com
ele é a espada que está bem evidente na cintura. Ela representa a casa do pai, emblema da
86
própria dignidade e da nobreza da sua família. É a única coisa que ele não vendeu para comer.
Não se esqueceu de quem é filho.
O filho mais velho observa a cena comovente, mas não se deixa envolver pela emoção
da volta do irmão menor. Está claramente rígido, quase ausente, quer ficar fora dessa história.
A composição do quadro se divide em duas partes distintas. A primeira, à esquerda, onde o
pai acolhe o filho, e a segunda, à direita, dominada pela presença do filho maior. No meio
existe uma distância que parece intransponível, uma fratura que dificilmente poderá ser
sanada. O pai e o filho maior têm barba e estão vestidos com o mesmo manto. Isso quer dizer
que, sendo da mesma carne, possuem elementos comuns. Os dois são ligados na imagem pela
luz que ilumina seus rostos, mas são luzes e posturas diferentes. O primeiro tem os braços
abertos, desde o dia em que o filho caçula saiu de casa, prontos a abraçá-lo na sua volta; o
segundo mantém os braços bem escondidos debaixo do manto e as mãos cruzadas junto ao
corpo, excluindo qualquer possibilidade de acolhida, seja material, seja de coração.
Rembrandt evidencia essa diferença iluminando de maneira diferente as mãos dos dois. Uma
luz branca, sem emoção, evidencia a frieza de coração do filho mais velho; uma luz calorosa,
que esquenta e envolve até o espectador, ilumina o abraço do pai. O filho que permaneceu a
vida toda fiel ao pai desta vez não aceita esse ato de bondade, não aceita participar desses
festejos de amor íntimo. A sua maneira de agir o coloca fora da iluminação que o abraço do
pai espalha na cena; ele parece estar na escuridão, obcecado pelo próprio eu e pela sua falsa
justiça.
Mas é o pai a figura mais importante deste quadro. No longo tempo longe do filho,
também ele mudou muito, aprendendo a dar menos valor às coisas materiais. Por isso, o que
brilha não são mais as correntes preciosas ou as coisas que estão à sua volta, mas é o seu rosto
que exprime uma vida vivida plenamente. Quem o enxerga agora não é mais atraído pelas
suas riquezas, mas pela intensidade do seu amor, que ele aprendeu a exercitar com paciência
aguardando o filho desaparecido. Pintando o pai, Rembrandt quer ajudar a entender o
significado da ternura, do perdão e da misericórdia. Ele encarna no pai, com habilidade e
paixão, a realidade espiritual do amor de Deus Pai misericordioso. O que existe de mais
divino é contado através da carne de um pai humano, como qualquer pai na face da terra. Um
homem idoso, com barba e bigode, vestido ricamente, que apresenta todas as limitações que
um homem pode ter, mas em cujos gestos e expressões pode-se ler um amor incondicional,
um perdão pronto e para sempre e uma ausência de rancor – características divinas.
87
Mas o centro verdadeiro da pintura são as duas mãos do abraço do Pai. Aqui a luz é
mais potente e todos os olhares, inclusive daqueles que estão fora da cena, estão
contemplando esta maravilha. As mãos deste velho pai são diferentes uma da outra e agem de
maneira diferente também. A mão esquerda é claramente musculosa, forte, que se apoia no
ombro direito do filho como se quisesse sustentá-lo dando-lhe força, a força que ele não tem.
É evidente a sua natureza masculina. A mão direita é gentil, delicada, atenciosa, quer oferecer
carinho, acalmar, consolar; é uma mão feminina, uma mão de mãe amorosa. Por isso, nesta
interpretação de Rembrandt, o pai da parábola do filho pródigo não é somente pai, mas é, ao
mesmo tempo, mãe. Ele exprime com arte a natureza de Deus, na qual estão presentes
plenamente seja a essência do homem, seja a da mulher; seja a paternidade, seja a
maternidade.
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Mateus 4,18-22
Jesus é o protagonista jovem desta cena, muito mais jovem que os pescadores que está
chamando a segui-lo. Com a chamada dos primeiros apóstolos, acaba de começar a sua
caminhada de anúncio da Boa-Nova. Está procurando amigos fiéis que possam acompanhá-lo
nessa empreitada. Com a mão esquerda, Jesus indica aos futuros discípulos o caminho que
devem seguir e logo coloca também o corpo naquela direção, deixando para trás somente o
olhar que captura os dois pescadores. Ele está traçando um caminho que é bem claro para ele,
mas que os seus seguidores descobrirão apenas caminhando, andando com ele.
(1559). Caravaggio. Capela Contarelli, Igreja de São Luís dos Franceses, Roma,
Itália. (Anexo AB)
O futuro apóstolo está com os seus amigos em uma espelunca, onde habitualmente
finalizam as tarefas do dia. De repente, abre-se a porta do quarto escuro onde Mateus e os
seus companheiros estavam contando o dinheiro das taxas: é Jesus, com uma proposta
surpreendente. Uma luz quase divina ilumina os homens capturados no momento da chamada
mais incrível do Evangelho. Todas as figuras usam as vestimentas do tempo de autor, dando
à obra mais força de expressão. Também Jesus usa um chapéu típico do século XVIII. O gesto
dele é inconfundível: o dedo indica o homem sentado no centro da mesa. Ele é o chefe. Bem
em evidência podem ser vistos os seus instrumentos de trabalho: o caderno com as anotações
de quem deve ainda pagar e de quem já pagou e a espada (presa à cintura do jovem
colaborador) para impor medo. O dinheiro é o objetivo dele e está à mostra na mesa.
(Anexo AC)
Neste afresco de Fra Angelico, Jesus, sentado sobre a montanha, está fazendo um
discurso importante para os seus discípulos. Eles entenderam logo que não se tratava de uma
simples parábola. Neste caso, Jesus os convidou a subir uma pequena altura. Quando Deus
chama os homens para escutá-lo no alto de uma montanha, o divino tem sempre algo de novo
e maravilhoso para comunicar. Jesus, Filho de Deus, está na parte de cima da composição
como se tivesse que falar a todos os que estão abaixo, não somente aos apóstolos, mas a toda
a humanidade que o quer escutar. Ele tem a certeza de que, de alguma maneira, esta
mensagem não será jogada fora ou desperdiçada.
Jesus tem na sua mão esquerda o rolo da Palavra de Deus, e com a mão direita indica o
céu onde habita Deus Pai. Ele não está falando sozinho: as palavras estão chegando do céu,
diretamente de Deus. Observando as expressões dos apóstolos, entende-se logo que o discurso
é sério e que vale a pena escutá-lo, levá-lo no coração e praticá-lo na vida. Trata-se da nova
lei que vai substituir a antiga. A velha era fundada sobre o "olho por olho, dente por dente",
porque o povo entendia a justiça como vingança e punição; agora, com a vinda de Jesus,
legislador de uma nova justiça, o amor e a bondade estão na base de uma nova maneira de
viver, inaugurada pela passagem de Jesus na nossa vida. Interessa-nos seguir o caminho dele.
91
Lucas 11,1-13
Este ícone nos introduz na questão dos tempos litúrgicos na Igreja. Estão
representadas na mesma imagem doze grandes festas do calendário litúrgico bizantino. Todas
essas festas possuem um fundamento a partir dos acontecimentos relatados no Novo
Testamento e lembram fatos importantes desde a preparação à vinda de Jesus com o
nascimento de Maria, Mãe de Deus, até todos os fatos mais expressivos da passagem do Filho
de Deus na terra.
Partindo da primeira cena à direita, encontramos às doze festas em torno de uma cena
maior no meio da composição. Os acontecimentos em volta da ressurreição e as aparições de
Jesus que se mostrou vivo depois da sua morte aos seus apóstolos são o tema central deste
elemento. Claramente, estes fatos são fundamento de toda a fé cristã e, consequentemente, de
todas as festas que os cristãos celebram. Não teria sentido lembrar e celebrar os outros fatos se
Jesus não tivesse nascido, ressuscitado e subido ao céu.
Partindo do alto e analisando bem cada cena, podemos admirar e lembrar: a Festa do
Nascimento da Mãe de Deus, instrumento do divino para se encarnar; a Apresentação da Mãe
de Deus ao templo; a Anunciação do anjo a Maria; a Natividade, com a Sagrada Família e os
reis magos. Logo abaixo, as quatro cenas centrais nos lembram: a Apresentação de Cristo no
templo; o Batismo de Cristo no rio Jordão; o Ingresso triunfal de Jesus em Jerusalém
(Domingo de Ramos); a sua Transfiguração. As festas colocadas na faixa inferior são: a
Ascensão do Cristo ao céu; a representação da Trindade, na visitação dos três anjos a Abraão;
a Exaltação da Cruz; a Dormição de Maria.
Examinar cada cena deste ícone pode ser um bom exercício para lembrar algumas
festas que vivemos no nosso ano litúrgico.
92
Lucas 8,4-15
(1602). Emmanouil Lambardos. Museu dos Ícones, Veneza, Itália. (Anexo AE)
Na imagem, João está em uma gruta junto com Prócoro, inseparável companheiro de
viajem. Lá está recebendo uma iluminação. A gruta parece uma cúpula redonda coroada por
duas pontas de rochas, como se fosse um lugar sagrado preparado para receber aquela que
seria reconhecida Palavra de Deus. O Evangelista está sentado com a postura de quem escuta.
Está voltado para a sua direita e, com a mão perto da orelha, demonstra toda a sua atenção. O
rosto deixa claro que está meditando as coisas que chegam do alto, que somente ele recebe e
pode ouvir diretamente da boca de Deus. Os olhos de João estão voltados para o céu, o lugar
de onde as palavras chegam. A presença de Deus que representa a revelação é clara pelos três
raios de luz visíveis que iluminam a gruta e pela mão de Deus bendizente. João é somente um
instrumento nas mãos de Deus, acolhe a revelação e dita as palavras inspiradas ao discípulo
fiel. Prócoro está sentado ao lado dele em um banquinho no ato de escrever; tem uma única
preocupação: a de não perder nenhuma palavra que sai da boca do mestre. A tradição diz que
a maratona de escutar, ditar e escrever duraria dois dias e seis horas sem parar. Prócoro tem
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Lucas 10,26-37
(Anexo AF)
Nas pinceladas apaixonadas de Van Gogh, podemos encontrar elementos que nos
apresentam a força do Evangelho. Van Gogh reproduz uma obra de Delacroix oferecendo a
ela um novo dinamismo que envolve também o espectador. De todos os gestos que podiam
ser evidenciados nesta parábola, Delacroix decidiu mostrar o esforço do samaritano que
levanta o desafortunado golpeado pelos bandidos. Os músculos das pernas estão tensos e as
costas encurvadas para aguentar o peso do homem sem forças. O homem socorrido faz de
tudo para se agarrar a ele, e com esse gesto multiplica o seu peso. Além de tudo, a dor cria
convulsões que o fazem gritar e se contorcer, vendo no samaritano a sua única esperança.
Nesta releitura de Van Gogh, é o autor que se coloca no lugar do samaritano, dizendo
aos espetadores que cada um deveria fazer a mesma coisa. Mesmo não conhecendo a
verdadeira fé de Van Gogh, ele demonstra uma intensa sensibilidade com a dor e o sofrimento
dos outros. Nos seus traços ásperos, transmite o peso e a responsabilidade do gesto de amor
incondicional; mesmo carregando o corpo sem forças no cavalo, o peso permanece no ombro
de quem tomou a decisão certa, sinal de que, para ajudar quem está em dificuldade, não é
suficiente socorrer, mas é preciso também carregar sobre de si – ou sobre uma comunidade
unida e aberta aos imprevistos – todas as suas penas, o seu futuro, a sua volta a uma
"normalidade".
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Agora, cada um, animado pelo gesto do samaritano, pode se preocupar com a parte
que lhe cabe. Seja trabalhando na hospedaria, seja ajudando os sofredores a chegar à
hospedaria, seja ajudando a descer do cavalo, seja com gestos muito mais humildes. A
atenção e a perseverança do samaritano ajudaram muitas pessoas a fazer a própria parte.
Também a samaritana que está tirando água do poço (Jo 4,4-26) está na composição para
dizer uma coisa clara: nós só poderemos socorrer quem encontramos na nossa vida se
soubermos onde encontrar as forças necessárias para também suportar as consequências da
coerência cristã. Jesus falou muito claramente à mulher samaritana: "quem beber da água que
eu darei nunca mais terá sede, porque a água que eu darei se tornará nele uma fonte de água
jorrando para a vida eterna" (Jo 4,14). É Jesus que precisamos levar conosco para socorrer os
últimos que estão jogados nas sarjetas da vida. O homem que será hospedado naquela casa
precisará de comida, cuidados, remédios, conforto e repouso, mas, sobretudo, precisará que
tudo isso seja feito com o mesmo cuidado com que Jesus faria.
O esforço de pesquisa iconográfica realizado neste trabalho pode ser para muitos um
instrumento interessante que ajuda a exprimir as potencialidades que temos nas mãos quando
precisamos ser responsáveis pela formação à nossa fé. Pode interessar a todos os cristãos em
geral, mas de maneira particular aos catequistas, para que cada vez mais se apaixonem pelos
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jovens, pelos meninos e meninas, pelos homens e mulheres que pedem para ser introduzidos à
fé cristã ou desejam continuar um processo de formação permanente. Deve ficar bem claro
que cada pessoa e cada turma merece uma atenção particular; é preciso um esforço de amor e
um exercício de fantasia, mantendo-se nos trilhos propostos pela Igreja. Um percurso ideal de
formação é personalizado, "costurado", uma proposta feita sob medida, capaz de unir
Evangelho, imagens, oração e vida comunitária.
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CONCLUSÃO
Esse é Ernesto Olivero para mim: um cristão como qualquer um que, tendo conhecido
Jesus ressuscitado, quer mudar a si mesmo e ao mundo inteiro. É tão apaixonado que não se
poupa para inventar continuamente situações para que também os outros possam se apaixonar
pelo mesmo amor. Todos deveriam ter essa mesma vontade de testemunhar com os fatos, com
a vida e com a mudança de caráter que Deus existe e pode ser enxergado no mundo por meio
da nossa aceitação desse amor. Acima de qualquer esforço, de qualquer técnica de ensino que
pudermos aplicar e do auxílio de novas mídias e tecnologias, a condição mais importante para
uma evangelização eficaz é a correspondência entre as palavras que se pronunciam e a vida
que comunicamos, resultado do encontro com Cristo. As "palavras" sem essa correspondência
com a vida podem se tornar escândalo e podem obter o resultado contrário ao objetivo inicial:
afastar, às vezes para sempre, os homens do encontro com Deus.
REFERÊNCIAS
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2012.
BAUMAN, Z. Amor líquido: a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.
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os bispos do Brasil. Viagem apostólica de Sua Santidade Bento XVI ao Brasil por
ocasião da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe. Città
del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2007. Disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2007/may/documents/hf_b
en-xvi_spe_20070511_bishops-brazil_po.html>. Acesso em: 17 out. 2014.
_______. Discurso do papa Bento XVI por ocasião do encontro com os artistas na
Capela Sistina. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2009. Disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2009/november/documents
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DAL CORSO, C. L'icona della Santissima Trinità. Nuovo Progetto, Torino, Giugno-
Luglio, p. 44, 2012.
JOÃO PAULO II. Homilia do papa João Paulo II: Celebração da Eucaristia por
ocasião da inauguração do restauro dos afrescos de Miguel Ângelo na Capela Sistina.
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<http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/homilies/1994/documents/hf_jp-
ii_hom_19940408_restauri-sistina_po.html>. Acesso em: 10 ago. 2014.
_______. La gioia di rispondere sì: la regola del Sermig. 15. ed. Torino: Priuli &
Verlucca, 2013.
ROMANO, S. Nasce dalla bocca di adamo il legno della croce di Cristo. Corriere
della Sera. 4 abr. 2010. p. 29. Disponível em:
<http://archiviostorico.corriere.it/2010/aprile/04/NASCE_DALLA_BOCCA_ADAM
O_LEGNO_co_9_100404070.shtml>. Acesso em: 1 maio 2015.
101
ANEXOS
Cristo coronato di spine (1450). Beato Fra Angelico. Museu de Livorno, Livorno,
Itália.
106
Turim, Itália.
107
Autor anônimo.
111
Maria Mãe dos Jovens (Ícone russa do século XIV). Autor anônimo. Sermig,
Arsenal da Paz, Turim, Itália.
112
ANEXO M: RESSURREIÇÃO
(1431). Beato Fra Angelico. Galeria Nacional de São Marco, Florença, Itália.
117
ANEXO U: PENTECOSTES
ANEXO V: PENTECOSTES
ANEXO X: LAVA-PÉS