Você está na página 1de 189

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Faculdade de Comunicação Social

Letícia Perani Soares

“O maior brinquedo do mundo”: a influência comunicacional dos games na


história da interação humano-computador

Rio de Janeiro
2016
Letícia Perani Soares

“O maior brinquedo do mundo”: a influência comunicacional dos games na história da


interação humano-computador

Tese apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Doutora, ao Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(PPGCom/UERJ).

Orientadora acadêmica: Profa. Dra. Fátima Cristina Regis Martins de Oliveira

Rio de Janeiro
2016
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

S676 Soares, Letícia Perani.


“O maior brinquedo do mundo”: a influência comunicacional dos games na
história da interação humano-computador / Letícia Perani Soares. – 2016.
187 f.

Orientadora: Fátima Cristina Regis Martins de Oliveira.


Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de
Comunicação Social.

1. Comunicação Social – Teses. 2. Vídeogames – Teses. 3. Computadores e


civilização – Teses. I. Oliveira, Fátima Cristina Regis Martins de. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Comunicação Social.
III. Título.

es CDU 316.77

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.

___________________________________ 08/07/2016
Assinatura Data
Letícia Perani Soares

“O maior brinquedo do mundo”: a influência comunicacional dos games na história da


interação humano-computador

Tese apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Doutora, ao Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(PPGCom/UERJ).

Aprovada em 8 de julho de 2016.

Banca Examinadora:

_______________________________________________________
Profa. Dra. Fátima Cristina Régis Martins de Oliveira (orientadora)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

_______________________________________________________
Profa. Dra. Raquel Timponi Pereira Rodrigues
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

_______________________________________________________
Prof. Dr. Francisco José Paoliello Pimenta
Universidade Federal de Juiz de Fora

_______________________________________________________
Profa. Dra. Suely Dadalti Fragoso
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

_______________________________________________________
Prof. Dr. Thiago Pereira Falcão
Universidade Anhembi Morumbi

Rio de Janeiro
2016
AGRADECIMENTOS

Ao meu companheiro, Leonardo Sanches, pela sua dedicação, carinho e até os puxões
de orelha ocasionais que me mantiveram focada nesta tese.
À minha família, pelo apoio.
À minha orientadora, Profa. Fátima Regis, que me deu atenção, ouviu minhas súplicas
desesperadas e sempre procurou me apontar os melhores caminhos durante estes dez anos de
trabalhos ininterruptos, desde o Mestrado. Novamente desejo que possamos continuar com as
nossas interações tão produtivas, mesmo à distância.
Ao casal Alessandra Maia e Denner Monteiro, que tão generosamente me acolheu em
sua casa, a minha gratidão eterna. Sem esse carinho e apoio de vocês, nunca teria conseguido
chegar até aqui.
Aos meus companheiros de CiberCog/Uerj, José Messias, Alessandra Maia, Raquel
Timponi, Pollyana Escalante, Ivan Mussa, Rafael “Pimp” Barbosa, Gustavo Audi e Vinícius
David, pelas discussões, trabalhos conjuntos, e muita alegria cotidiana. Um pedaço de cada
um de vocês está aqui nesse texto.
Aos meus colegas da turma 2012, a primeira de Doutorado do PPGCom/Uerj, em
especial Filipe Feijó, Jacqueline Deolindo, Rosane Feijão, Flávio Lins, Francisco Brinati e
Pedro Sangirardi (in memoriam), que juntos enfrentaram comigo as delícias e amarguras da
vida acadêmica. Muitos agradecimentos também aos colegas de outras turmas do
PPGCom/Uerj que foram parte conjunta desse processo: Ana Erthal, Yuri Garcia, Ramon
Bezerra, Tatiane Hilgemberg, Fernanda Sanglard, Eduardo Bianchi, Fausto Amaro, Débora
Gauziski, Carmem Prata, Fabíola Lourenço, Grécia Falcão, João Guilherme Bastos, Camila
Augusta Pereira e Leonardo Mancini.
Aos professores do PPGCom, em especial Fernando Gonçalves, Denise Siqueira,
Erick Felinto, Vinicius Andrade Pereira, Marcio Gonçalves e Ricardo Freitas, pelos
constantes estímulos intelectuais. Aos secretários do PPGCom, pelo carinho e atenção de
sempre.
Aos meus companheiros de trabalho, professores, técnicos administrativos e
servidores terceirizados do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de
Fora (IAD/UFJF). Agradecimentos especiais aos colegas de departamento Cláudio Fajardo,
Sandra Sato, Carlos Reyna, Christian Pelegrini e Ricardo Cristofaro, e aos funcionários
Renata Fogaça, Julimar Franco, Hermenegildo Giovannoni, Alexsandro de Melo, Josué
Ferreira e Joana Oliveira, pelo apoio às nossas atividades. Aos alunos e alunas do IAD, que
me ensinam a ser uma professora melhor a cada dia.
Aos meus orientandos de Iniciação Científica, Extensão e Monitoria: Ernando Moraes
Neto, Igor Sanches Marini, Fillipe Montes, Barbara Assunção, Kelly de Paulo, Mariah
Vicente, Naiara Castro, Pedro Lima, Vinicius Rodrigues, Rucciela Frazzatto, Ruan Moraes,
David Martins e Matheus Oliveira, que me dão bastante trabalho, mas também alegrias
infinitas ao ver o crescimento de cada um. Que eu possa sempre ser um apoio para todos
vocês.
Aos docentes da Faculdade de Comunicação da UFJF, que me educaram durante anos,
e agora me acolhem como colega de outra unidade; em especial, a Francisco Paoliello
Pimenta, Gabriela Borges, Soraya Ferreira, Potiguara Mendes da Silveira Jr., Janaína Nunes,
Paulo Roberto Figueira Leal e Aline Andrade Pereira. Aos alunos do Programa de Educação
Tutorial (PET-Facom/UFJF) e da empresa jr. Acesso – Comunicação Jr., agradeço pela
confiança e pelos convites para orientações e oficinas.
Aos colegas dos game studies no Brasil e no mundo, que tão arduamente lutam pela
área, e nos ajudam a seguir em frente: Suely Fragoso e seus orientandos do LAD/UFRGS,
Thiago Falcão, Thaiane Oliveira, Luiz Adolfo Andrade, entre tantos outros. Agradecimentos
também aos membros da lista de e-mails Local Game Histories, na figura da sua
administradora, Melanie Swalwell, pelas dicas e discussões sempre enriquecedoras.
At last but not least, aos amigos que tanto me apoiaram nestes últimos quatro anos,
representados por Melissa Toyama, Thiago Souza & Augusto Luth, Mariana Pelegrini, Gil
Horta, Ana Lúcia Furquim Campos-Toscano, Roberta Gray, Dimas Tadeu, Luiz Felipe
Stevanim, Marilia Cruz, Deyvisson Costa, Júlia Pessôa. Em um mundo com tanta brutalidade,
sempre importante contar com quem nos quer bem.
A leitura do mundo precede a leitura da palavra.
Paulo Freire
RESUMO

SOARES, Letícia Perani. “O maior brinquedo do mundo”: a influência comunicacional dos


games na história da interação humano-computador. 2016. 187 f. Tese (Doutorado em
Comunicação) – Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 2016.

Na história da interação humano-computador (conhecida por sua sigla em inglês,


HCI), muito se especulou sobre uma possível influência dos jogos eletrônicos no
desenvolvimento de tecnologias e teorias desta área; porém, poucas pesquisas historiográficas
trabalham criticamente para desvendar estas ligações entre games e a HCI. Nesta presente
tese, pretendemos apontar alguns dos temas e eventos citados por pesquisadores deste campo,
especialmente em seus aspectos tecnológicos/cognitivos, mercadológicos e culturais,
buscando “pistas” que nos são fornecidas em materiais que referenciam os pioneiros dessas
áreas de trabalho a partir de uma metodologia comunicacional, portanto, relacional de
abordagem histórica. Acreditamos que este esforço pode nos ajudar a compreender como nos
relacionamos tanto com os games quanto com os dispositivos computacionais disponíveis
atualmente no mercado, e tão presentes em nosso cotidiano.

Palavras-Chave: Jogos eletrônicos. Interação Humano-Computador. História das Mídias.


ABSTRACT

SOARES, Letícia Perani. “World’s greatest toy”: games and the communicational history of
Human-Computer Interaction. 2016. 187 f. Tese (Doutorado em Comunicação) – Faculdade
de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016.

In the history of Human-Computer Interaction (HCI), influences of games on technical


and theoretical developments were always noticed; however, a few historical researches have
a critical approach on this area, as connecting games and HCI. In this present work, we shall
uncover some of the most important themes and events, specially working on
technological/cognitive, marketing, and cultural aspects, looking for evidences that shall be
provided as we search for documents that give references material aspects and the pioneers of
computing and games, through a relational communicational method of historical
perspectives; we believe this method shall help us to understand how we are related to current
games and computer devices, which are each and every time more present in our daily lives.

Keywords: Games. Human-Computer Interation. Media History.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Memex, como pensado em 1945 ....................................................................... 22


Figura 2 - Sketchpad em ação: o computador como um meio visual ................................ 30
Figura 3 - Star: a interface ganha janelas para a informação ............................................ 33
Figura 4 - A matéria “Jogos em computador, um assunto muito sério .............................. 49
Figura 5 - Os menus de No More Heroes (2007): a estética do retrogaming .................... 78
Figura 6 - O controle do Intellivision: padrões descartados pela indústria de games........ 81
Figura 7 - Embalagem do Nintendo Power Glove: interface (literalmente) física ............ 83
Figura 8 - MicroChess, jogo pioneiro da indústria de softwares, citado como exemplo
em uma propaganda de outro game .................................................................. 88
Figura 9 - A famosa capa de Robert Tinney: o imaginário do xadrez computacional....... 91
Figura 10 - TK Xadrez II, destaque da primeira edição da revista brasileira
MicroHobby ...................................................................................................... 93
Figura 11 - Portrait de joueurs d'échecs (1911), de Marcel Duchamp ............................... 95
Figura 12 - A capa da revista Popular Electronics com o Altair 8800: a chegada
definitiva dos microcomputadores ao mercado .............................................. 110
Figura 13 - Publicação de desenho de circuito elétrico para transmissores de rádio na
revista Electron: a difusão popular do conhecimento técnico ........................ 115
Figura 14 - Publicidade de cursos técnicos em computação nos anos 1950: treinamento
para um mercado crescente ............................................................................. 117
Figura 15 - Minivac 601: um “computador” para crianças inventado por Claude
Shannon........................................................................................................... 122
Figura 16 - O joguinho eletrônico tupiniquim apresentado nas páginas da revista Nova
Eletrônica ........................................................................................................ 124
Figura 17 - A utilidade de dispositivos gráficos nos computadores domésticos nos anos
1970: jogar games ........................................................................................... 127
Figura 18 - As capas anuais de Byte sobre games: 1978 - 1982 ........................................ 130
Figura 19 - Início do código de programação de Aventuras na Selva, um dos primeiros
games brasileiros ............................................................................................. 132
Figura 20 - As instruções do gabinete de Pong: um dos primeiros “manuais” de games . 140
Figura 21 - Xuxa modelando para o JB: uma aficionada por fliperamas? ........................ 142
Figura 22 - Space Invaders, o videoclipe: um mix do jogo com o universo de Star
Wars ................................................................................................................ 151
Figura 23 - Video Games, The Fingers: o vício destruindo a vida..................................... 152
Figura 24 - Video Games, The Toons: aulas são chatas sem os games .............................. 153
Figura 25 - Pac-Man Fever no programa Dick Clark: vício e diversão em conjunto ....... 154
Figura 26 - Computer Games: o futuro sombrio da tecnologia ......................................... 157
Figura 27 - Space Age Whiz Kids: a infância robotizada pelos games .............................. 159
Figura 28 - Transas & Caretas: os games chegam à cultura pop brasileira ...................... 161
Figura 29 - Video Game, de Ronnie Jones: os games como paixão e vício ...................... 164
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................... 12
1 UMA PROPOSTA DE HISTÓRIA DA MÍDIA PARA O ESTUDO DAS
ARTICULAÇÕES ENTRE GAMES E A HCI ......................................................... 21
1.1 O (obscuro) lugar dos games na historiografia da HCI .......................................... 31
1.2 Arqueologia da mídia: por uma história relacional da Comunicação ................... 40
1.3 A construção de uma história comunicacional para o estudo da HCI ................... 54
2 POR UM LUGAR DOS GAMES NAS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO .......... 58
2.1 O que são os games? ................................................................................................... 60
2.2 Os games são um meio de comunicação? ................................................................. 65
2.2.1 Tecnologia ..................................................................................................................... 68
2.2.2 Contextos e pessoas ...................................................................................................... 68
2.2.3 Atividades e funções ..................................................................................................... 69
2.3 E quais seriam as contribuições do estudo de games para a área de
Comunicação? ............................................................................................................. 71
2.4 Retrogaming: games, história, Comunicação........................................................... 74
2.4.1 Retrogaming e os estudos comunicacionais ................................................................. 79
2.5 Conclusão: há um lugar dos games na Comunicação? ........................................... 84
3 XADREZ: A DROSÓFILA DA COMPUTAÇÃO E DA INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL CLÁSSICA.......................................................................................... 86
3.1 Mais do que um jogo: xadrez, cultura e cognição .................................................... 94
3.2 Xadrez e o desenvolvimento da Inteligência Artificial .......................................... 101
4 COMPUTADORES PARA O POVO: GAMES, HOBBYISMO E AS
REVISTAS ESPECIALIZADAS............................................................................. 109
4.1 Hobbyismo: um lazer “sério” .................................................................................. 111
4.2 As revistas de hobbyismo computacional ............................................................... 116
4.3 Games nas revistas de computação: educação prática sobre a tecnologia .......... 121
4.4 Como as revistas computacionais retrataram os games ........................................ 126
5 GAMES E CULTURA POP: AS MÚSICAS SOBRE A FEBRE DOS
ARCADES (1978 – 1984) ......................................................................................... 134
5.1 As músicas sobre games: retratos da era de ouro dos fliperamas ........................ 146
5.2 The craze, the fever: as canções sobre o vício em games....................................... 148
5.3 No future: o futuro distópico nas músicas sobre games ........................................ 154
5.4 O amor como jogo, o jogo do amor ......................................................................... 159
5.5 Os games e a música pop: retratos de uma época de descobertas ........................ 164
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 166
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 169
ANEXO A – Crônica “os computadores caseiros ameaçam o poderio da tv”, de
Silvio Lancellotti ........................................................................................................ 184
ANEXO B – Matéria “fliperama em casa” ................................................................ 185
ANEXO C – Nota “um jogo sofisticado” .................................................................. 186
ANEXO D – Capa do primeiro número da revista byte ............................................. 187
12

INTRODUÇÃO

“Os computadores caseiros ameaçam o poderio da TV”, decretava o título da crônica


do jornalista Silvio Lancelotti que foi publicada em 1º de fevereiro de 1983 no caderno
Ilustrada do jornal Folha de São Paulo (ver ANEXO A). Porém, quem se lançou na leitura do
texto esperando descobrir mais sobre os dispositivos digitais que começavam a chegar aos
lares brasileiros, nos estertores de uma rigorosa ditadura militar que completava quase 20
anos, pode ter ficado surpreso com a verdadeira estrela da crônica: o videogame. Lancelotti
apostava que, da mesma forma que a televisão tirou do cinema o título de mídia mais querida
pela população tupiniquim, os games fariam a mesma coisa assim que desembarcassem de
forma oficial no Brasil:

Em poucas semanas a Atari do Brasil estará lançando o seu delicioso computador


caseiro capaz de reproduzir, numa tela convencional, os jogos mais infernais do
mercado. Preço? Em torno de cem mil cruzeiros 1, pouco menos, pouco além, talvez.
Coisa a ser adquirida mensalmente, a prestação, dez quilos de alcatra a cada quinze
dias. Uma tentação. Ou melhor, um novo vício. (LANCELOTTI, 1983, p. 35, grifos
nossos)

Ao relatar em sua crônica, de forma descontraída, como o videogame roubava a


atenção da sua família, o jornalista previu o enorme potencial dos games como produto
privilegiado da indústria de entretenimento. Contudo, o que mais nos chama a atenção no
texto de Lancelotti é a descrição dos consoles de videogame como computadores caseiros,
quase como que “ensinando” aos leitores da Folha, que em sua maioria não tinha acesso aos
dispositivos computacionais em seus lares (e talvez nem ainda em seus locais de trabalho),
que aquela nova mídia de entretenimento era também um computador. Tal posicionamento
também era compartilhado pela imprensa do Rio de Janeiro, que desde 1982 publicava
constantemente reportagens sobre a chegada dos consoles ao país, dedicando-se
especialmente a reportar o lançamento do Atari Video Computer System2, primeiramente de
forma não oficial, já que as importações de produtos computacionais eram restritas pela

1
De acordo com o conversor de valores disponibilizado pela Fundação de Economia e Estatística do Governo do
Estado do Rio Grande do Sul (http://www.fee.rs.gov.br/servicos/atualizacao-valores/), Cr$ 100.000,00
corresponderiam, em valores atuais, a R$ 4642,09 (conversão realizada em 01/05/2016) [Nota da autora].
2
Ou Atari VCS, que se tornou conhecido no Brasil apenas pelo nome do fabricante.
13

política de tecnologia da informação adotada em terras tupiniquins até então3. Um certo


entusiasmo com os jogos eletrônicos é evidente em matérias como “Fliperama em casa”,
publicada em 25 de julho de 1982 na coluna Videomania4 do suplemento de TV do Jornal do
Brasil (ver ANEXO B):

O Atari – complexo de jogos eletrônicos para a televisão – já está tomando conta da


cidade (...) No Atari, os jogos podem ser feitos de duas maneiras: a pessoa escolhe o
cartucho e desafia o computador, ou chama um parceiro para uma disputa (JORNAL
DO BRASIL, 1982a, p. 10, grifos nossos)

Porém, na imprensa brasileira dos anos 1980, não apenas os consoles de games eram
descritos como computadores, como também eram destacadas as capacidades lúdicas dos
dispositivos computacionais. Na nota “Um jogo sofisticado”, publicada no Jornal do Brasil
em 29 de agosto de 1982 (ver ANEXO C), o computador Atari 800 era descrito por suas
utilidades laborais, “(...) serve para qualquer tipo de informação, seja ela de administração
caseira ou de empresas...” (JORNAL DO BRASIL, 1982b, p. 10), mas era verdadeiramente
destacado pelas suas funcionalidades para jogos.
Estas associações entre computadores e jogos eletrônicos não eram restritas à
imprensa brasileira; em seu primeiro número, a revista Byte, dedicada ao então nascente
mundo da computação pessoal, afirmou, em sua manchete de capa (ver ANEXO D):
“Computadores – o Maior (sic) Brinquedo do Mundo!” (no original em inglês, “Computers –
the World’s Greatest Toy”), pensamento este reforçado pelo editorial da revista, escrito por
Carl Helmers, que, para demonstrar a utilidade dos computadores domésticos, sugeriu aos
leitores de Byte – composto prioritariamente por hobbyistas acostumados à lida com
dispositivos eletrônicos - que os jogos seriam uma boa maneira de demonstrar as
potencialidades de suas máquinas, e desenvolver novas habilidades técnicas, necessárias para
a realização de outras tarefas (HELMERS, 1975).

3
A primeira regulamentação da importação de computadores no Brasil foi realizada no governo de Juscelino
Kubitschek (decreto nº 46.987, de 10 de outubro de 1959). Após vários estudos realizados no período da
ditadura militar, intensificados no final dos anos 1970, o presidente João Baptista Figueiredo sancionou, em 29
de outubro de 1984, a lei 7.232, que regulamentou a Política Nacional de Informática, criando uma reserva de
mercado para empresas de capital nacional. Na prática, a lei, que vigorou oficialmente até 1992, permitiu que
fabricantes brasileiros copiassem sistemas e softwares de fabricantes internacionalmente estabelecidos sem o
pagamento de direitos autorais – o Atari VCS foi um dos hardwares mais copiados na época.
4
Videomania foi uma coluna criada juntamente com o suplemento de TV do Jornal do Brasil, em 7 de março de
1982. Voltada em seus primórdios para fãs de gravações domésticas de vídeo, a coluna pode ser sido pioneira
em realizar uma cobertura regular de games no país; em pesquisas no arquivo da Hemeroteca Digital Brasileira
da Biblioteca Nacional (http://hemerotecadigital.bn.br/), observamos que a primeira menção feita em
Videomania aos jogos eletrônicos data de 2 de maio de 1982.
14

Em todos esses exemplos, emerge o espírito de uma época na qual os computadores


gradualmente deixavam de ser máquinas voltadas para uma elite especializada, com fins
militares, industriais ou científicos – para Bill Gaver, “o computador, como um conceito, se
expandiu de uma ferramenta para um ambiente virtual, de uma máquina desajeitada para um
lugar de exploração e experimentação”5 (GAVER, 2009, p. 164). Se a Segunda Guerra
Mundial provocou a emergência dos computadores digitais, mais de 100 anos após as
máquinas Diferencial e Analítica6 do britânico Charles Babbage, o uso destas tecnologias
pelo público em geral foi gestado em um período de 40 anos, marcado pela publicação do
ensaio “As We May Think” (1984), de Vannevar Bush, e o lançamento, em 1984, do Apple
Macintosh, o computador produzido em série que popularizou a forma de interação com o
usuário por meio de interface gráfica7. A partir do momento em que Bush sonha com o
memex, uma enciclopédia que conteria em si, digitalizada, toda a produção intelectual da
humanidade, pensando em usos cotidianos para máquinas desenvolvidas em um esforço de
guerra do qual ele mesmo fez parte, laboratórios de pesquisa em todo o mundo se focaram no
poder comunicacional que os dispositivos computacionais possuem, passando a desenvolver
aplicações diversas que exploravam as capacidades simbólicas dos computadores para fins
científicos, posteriormente para escritórios e fábricas, até chegar às casas de seus usuários.
Segundo o cientista da computação estadunidense Nathaniel S. Borenstein (1991), o
surgimento da cultura computacional foi marcado por duas etapas específicas: uma primeira
fase, com a criação dos computadores digitais, e sua adoção por elites especializadas, e uma
segunda etapa, iniciada na segunda metade da década de 1970 com a criação dos dispositivos
microeletrônicos, que possibilitaram o acesso da população em geral a este tipo de produtos.
E uma das aplicações computacionais que despertaram o interesse dos pesquisadores foram os
jogos eletrônicos, atividades lúdicas produzidas e processadas através de computadores, frutos
do desenvolvimento da microinformática e de seus efeitos sociais, que rapidamente
conquistaram um grande espaço em nosso cotidiano, como podemos notar pelos exemplos
acima.

5
Livre tradução de: “The computer as concept expanded from a tool to a virtual environment, from a clumsy
machine to a place for exploration and experimentation”.
6
Tradução de Difference Engine e Analytical Engine, computadores mecânicos concebidos por Babbage durante
as décadas de 1820 e 1830, mas que nunca entraram em funcionamento definitivo devido à complexidade dos
seus maquinários (CAMPBELL-KELLY et al., 2014).
7
Conforme definimos em nossa dissertação de Mestrado (SOARES, 2008), as interfaces gráficas são formas de
representação visual, tátil e sonora dos dados computacionais contidos em um sistema digital.
15

Dentro do amplo campo dos meios de comunicação digitais, os videogames se


destacam por priorizarem as experiências exploratórias de interação lúdicas como uma
“finalidade” do relacionamento do interator com a mídia, diferenciando-se, assim, dos outros
formatos computacionais, que teriam o lúdico como uma “base” para o desenvolvimento de
características e funções de interfaces gráficas, conforme destacamos em nossa dissertação de
Mestrado (SOARES, 2008). Portanto, não nos é surpreendente que, ao longo da história da
computação, os games passaram a ser utilizados como exemplos para a desejada
popularização da computação; em busca desta interatividade lúdica, prazerosa, a partir da
trilha lançada por Thomas W. Malone em seu clássico artigo “Heuristics for Designing
Enjoyable User Interfaces: Lessons from Computer Games” (1982), descrito com mais
detalhes em capítulo posterior, vários campos científicos procuraram unir videogames e a
interação humano-computador (em inglês, Human Computer Interaction – HCI). Como um
exemplo de pesquisas que juntam jogos eletrônicos e as interfaces gráficas de computador,
podemos citar a Funology8, ramo recente das teorias de interação de HCI, fundado a partir da
publicação do livro-coletânea Funology: From Usability to Enjoyment (2005), editado por
pesquisadores ingleses e holandeses. Na introdução do livro, os editores Mark Blythe e Peter
Wright irreverentemente citam como epígrafe um trecho da música “All I Wanna Do”, da
cantora Sheryl Crow (“All I want to do is have a little fun before I die”9), e explicam que, no
início da popularização dos programas e dispositivos computacionais, estes eram elaborados
para o uso como poderosas ferramentas de trabalho, focando em eficiência e rapidez; “(...)
entretanto, o divertimento tem se tornado uma grande questão a partir do momento em que as
Tecnologias da Informação e da Comunicação se mudaram do escritório de trabalho para a
sala de estar”10 (BLYTHE; WRIGHT, 2005, p. XVI). Contudo, para Blythe e Wright, pensar
a Funology não seria apenas a criação de um campo de pesquisas sobre o prazer nos
dispositivos comunicacionais, com o objetivo de entender as demandas dos usuários
domésticos, mas também um movimento epistemológico extremamente necessário, já que o
foco do designer deve passar das questões de usabilidade - o quão fácil e eficaz é utilizar uma
ferramenta digital - para o aproveitamento prazeroso da experiência de uso da ferramenta.

8
Preferimos aqui utilizar o termo original em inglês, mas poderíamos arriscar uma tradução possível:
“Divertimentologia”.
9
Em uma tradução livre para o português, “Tudo que quero fazer é ter um pouco de diversão antes de morrer”.
10
Livre tradução de: “(…) however enjoyment has become a major issue as information and communication
technology have moved out of the office and into the living room”.
16

Mark Blythe e Peter Wright também afirmam que as questões ontológicas sobre o
divertimento/lúdico/prazer são muito antigas, remontando desde Sócrates e Platão até
pesquisadores contemporâneos das ciências cognitivas11. Por esta razão, citam textualmente
as várias confusões conceituais que a mistura entre lúdico e HCI pode causar aos
pesquisadores menos habituados ao tema:

Estamos falando sobre entretenimento e o ato de jogar? Existe uma ligação óbvia
entre essas coisas e a tecnologia, mas os games não são os únicos aplicativos que
nos dão prazer. E as tarefas de trabalho? As pessoas podem aproveitar isso também,
e uma boa interface pode tornar uma tarefa mais prazerosa, mas isso não é apenas
usabilidade? Estamos falando sobre interfaces bonitinhas ou sobre aquele clipe
horroroso que fica piscando para a gente no Windows? Tudo isso é sobre estética? É
possível apreciar um belo site na Internet desde que ele não demore meia hora para
carregar. Ou estamos falando de pornografia, já que não é esta a principal maneira
que uma quantidade absurda de gente gosta de interagir com os seus
computadores?12 (BLYTHE; WRIGHT, 2005, p. XIII)

Porém, conforme observamos nestas explicações e questões da Funology, o


entendimento ampliado sobre as ligações entre a ontologia do lúdico e as formas de interação
humano-computador são mais recentes e ainda pouco explorados; mais comuns são as
menções à influência e importância dos videogames para o desenvolvimento da HCI, como no
caso do seminal artigo de Thomas W. Malone, de 1982. Em Mainframe Games and
Simulations (2008), David H. Ahl afirma que a associação entre games e computadores teria
se iniciado em 1950, com o “jogo da imitação” (imitation game) proposto por Alan Turing no
importante artigo Computing Machinery and Intelligence, trabalho que fundou as bases para o
início dos estudos de inteligência artificial (cf. REGIS, 2010). Ahl explica também o porquê
de programadores terem desenvolvido games mesmo com a falta de tempo e os recursos
escassos que poderiam ser dedicados à computação em seu princípio:

As razões mais comuns incluíam a exploração do poder do computador, o


aprimoramento do entendimento dos processos de pensamento humano, a produção
de ferramentas educacionais para gerentes ou oficiais das Forças Armadas, simular

11
O primeiro capítulo da nossa dissertação de Mestrado (ver SOARES, 2008) traz uma breve tentativa de
mapeamento de questões ontológicas referentes ao lúdico desde os pré-socráticos até a teoria contemporânea
da Ludologia, voltada aos estudos de games.
12
Livre tradução de: “Are we talking about entertainment and play? There’s a clear link to technology but games
aren’t the only applications we enjoy. What about work? People can enjoy that too and a good interface can
make a task more enjoyable, but isn’t that just usability? Are we talking about cute interfaces or that awful
winking paperclip in windows? Is this all about aesthetics? It’s possible to enjoy a beautiful web page so long
as it doesn’t take half an hour to download. Or are we talking about pornography, isn’t this the main way an
awful lot of people enjoy interacting with their computers?”.
17

ambientes perigosos, e prover meios para a aprendizagem por meio de descobertas 13


(AHL, 2008, p. 31).

A psicóloga estadunidense Sherry Turkle cita que os games teriam “nascido” no


mesmo local da fundação do que hoje conhecemos como “cultura computacional” (os
laboratórios do Massachusetts Institute of Technology – MIT, nos Estados Unidos) e descreve
as semelhanças entre os games e os computadores, utilizando o testemunho de um garoto que
realizava atividades de programação no início dos anos 1980: “Videogames me mostraram o
que você pode fazer com computadores, o que você pode programar. Eles lhe mostram o que
você pode fazer”14 (TURKLE, 2005, p. 74). Ben Shneiderman, em seu artigo Direct
Manipulation: a step beyond programming machines (1983), que aborda a importância da
manipulação direta para a computação, afirma serem os games a melhor demonstração desta
técnica, oferecendo “lições” de construção de interfaces com os usuários, que poderiam ser
empregadas na construção de programas interativos. Em Remediation: understanding new
media (1998), David J. Bolter and Richard Grusin também demonstram o que seria uma
conexão histórica entre a construção de jogos de computador e as teorias relacionadas às
interfaces gráficas do usuário:

O contínuo desenvolvimento de máquinas de fliperama e consoles domésticos


encontrava-se em paralelo ou mesmo antecipou o desenvolvimento do computador
pessoal e sua interface (...) com uma sugestão implícita que a ação lúdica, ou pelo
menos uma interface mais responsiva, gráfica, é o que a computação deveria ser. 15
(BOLTER; GRUSIN, 1998, p. 89 - 90)

Como podemos notar pelos exemplos acima indicados, não é difícil achar menções das
conexões entre jogos eletrônicos e as pesquisas em HCI. Porém, nos parece que a maioria
dessas referências é apenas uma mera citação, que atenta para estas relações históricas sem
realizar explorações mais profundas sobre o tema (por exemplo, REHAK, 2008; AHL, 2008).
Poucos trabalhos exibem comentários críticos, mas estes restringem seu foco em períodos
entre o final dos anos 1970 e o começo da década de 1980, quando a incipiente elaboração de
interfaces gráficas para usuários domésticos estava em seu início, e a indústria de videogames
13
Livre tradução de: “Common reasons included exploring the power of the computer, improving understanding
of human thought processes, producing educational tools for managers or military officers, simulating
dangerous environments, and providing the means for discovery learning”.
14
Livre tradução de: “Video games showed me what you could do with computers, what you could program.
They show you what you can do”.
15
Livre tradução de: “The ongoing development of arcade and home games paralleled or anticipated the
development of the desktop computer and its interface (...) with an implicit suggestion that gaming, or at least
an immediately responsive, graphical interface, is what computing should really be about”.
18

já provocava certo impacto nos mercados de entretenimento dos Estados Unidos, Japão e
Europa (por exemplo, em JØRGENSEN, 2009; MONTFORT; BOGOST, 2009).
Por estas razões, acreditamos que há uma lacuna, tanto no campo da história da HCI
quanto na história dos games, que pode ser melhor trabalhada: o desenvolvimento de uma
pesquisa abrangente sobre a influência dos jogos eletrônicos na fase inicial dos estudos da
interação humano-computador. Nossa hipótese é que podemos encontrar uma influência
ampla dos games no desenvolvimento de três aspectos das tecnologias digitais como as
conhecemos atualmente: a) no desenvolvimento tecnológico e cognitivo (interfaces gráficas,
Inteligência Artificial, linguagens de programação etc.); b) no desenvolvimento do mercado
de dispositivos computacionais (popularização da microinformática); c) nos aspectos
culturais (cultura dos hackers, usos e funções da computação, influências culturais na cultura
pop – filmes, músicas etc.).
Desta forma, assumindo a ideia de que tanto os games quanto os dispositivos de
interação humano-computador são meios de comunicação presentes na vida de bilhões de
pessoas em todo o mundo, tornando-se partes integrantes de nosso cotidiano, nossa Tese de
Doutorado pretende desvendar as possíveis ligações entre os jogos eletrônicos e a HCI,
especialmente em aspectos tecnológicos/cognitivos, mercadológicos e culturais, buscando
“pistas” que nos são fornecidas em materiais que referenciam os pioneiros dessas áreas de
trabalho. A divisão dos capítulos deste trabalho reflete esta nossa visão: no primeiro capítulo,
tentamos traçar um breve histórico dos estudos de interação humano-computador, suas
ligações com os games, e a possível influência dos jogos eletrônicos no desenvolvimento de
tecnologias e teorias desta área; entendendo, porém, que poucas pesquisas historiográficas
trabalham criticamente para desvendar estas ligações entre games e a HCI, este capítulo
pretende então trazer contribuições metodológicas para uma pesquisa abrangente sobre a
história da HCI e os jogos, tendo como ponto inicial uma análise comunicacional, a partir de
uma arqueologia da mídia. Para esta parte da tese, utilizaremos autores das ciências
comunicacionais e da HCI, como Michel Foucault, Walter Benjamin, Friedrich Kittler, Jussi
Parikka, Wolfgang Ernst, Hans Ulrich Gumbrecht, Henry Oinas-Kukkonen, Anker Helms
Jørgensen, Thomas W. Malone, Ben Shneiderman, entre outros.
O segundo capítulo, denominado Por um lugar dos games nas Ciências da
Comunicação, discute os jogos eletrônicos, forma de entretenimento digital que cada vez mais
ganha espaços nas culturas e sociedades humanas, assim despertando cada vez mais o
interesse das pesquisas em Ciências da Comunicação, especialmente na área de Cibercultura;
contudo, acreditamos que parece haver uma falta de pensamento mais reflexivo sobre este
19

objeto, o que nos permitiria situar as bases do interesse da comunidade de HCI pelos games.
Assim, procuramos estabelecer um lugar dos games na Comunicação, a partir da resolução de
três questionamentos de fundo ontológico e epistemológico: a) O que são os games? b) Os
jogos eletrônicos podem ser considerados como mídia? c) Quais seriam as contribuições do
estudo de games para a área da Comunicação e da Cibercultura? A partir dessa discussão,
também lançaremos luzes no chamado movimento retrogaming, de resgate e valorização dos
jogos eletrônicos das décadas de 1970, 1980 e 1990, para tentar demonstrar como essa
corrente nos indica uma possível história comunicacional dos games. Para tanto, partiremos
do estudo de autores dos chamados “estudos clássicos do lúdico”16, como Johan Huizinga e
Gilles Brougère, além de Alexander Galloway, Jay D. Bolter e Richard Grusin, Denis
McQuail e Friedrich Kittler, pesquisadores relacionados aos estudos comunicacionais. Dos
game studies, trabalharemos com as ideias de Jesper Juul, Espen Aarseth, Franz Mäyrä, Janet
H. Murray, entre outros.
Nos capítulos três, quatro e cinco, pretendemos descrever os resultados das nossas
pesquisas com as fontes históricas, primárias e secundárias, a partir da metodologia traçada
nos capítulos anteriores, a partir de três eixos básicos, que seguem a linha temporal
comumente apresentada em trabalhos de história da interação humano-computador: no
capítulo 3, discorremos sobre a influência dos games na comunidade acadêmica, que iniciava
os estudos de computação nos anos 1950/1960, com foco no impacto do jogo de xadrez para o
desenvolvimento das tecnologias de Inteligência Artificial (IA) clássica, cognitivista; o
capítulo 4 traz o impacto dos jogos eletrônicos na criação da comunidade de hobbyistas de
computador nas décadas de 1970 e 1980, exemplificado pela presença de games nas revistas
especializadas, não-acadêmicas, da área; e, no capítulo 5, apresentamos alguns dos efeitos
culturais da introdução dos games (e, consequentemente, da computação) no mercado de
entretenimento para um público geral, retratados por músicas que descreviam a chamada era
de ouro dos fliperamas, entre o final dos anos 1970 e o começo dos anos 1980.
Porém, esta organização não significa a adoção de uma ordem cronológica puramente
linear – por vezes, nossas contextualizações ultrapassaram os escopos temporais definidos em
nossa metodologia, mas a necessidade de recorrer a materiais de outros períodos históricos só
demonstram como a adoção de uma perspectiva histórica comunicacional, baseada no ato de
descrever conexões de ideias, objetos, teorias e afetos (sensoriais e emocionais) traz em si
esse questionamento da descrição histórica tradicional, como ponderamos no capítulo 2.

16
Jesper Juul (2005) denomina os estudos do lúdico anteriores aos jogos eletrônicos como “modelo clássico de
jogo” (classic game model).
20

Desta forma, acreditamos que a busca por entender como os games possivelmente
ajudaram a moldar a interação humano-computador não só nos dá uma perspectiva ampla
sobre como os computadores se transformaram, de forma gradual em meios de comunicação –
ou sobre como essas questões comunicacionais já estavam previstas no texto histórico de
Vannevar Bush, em 1945 – mas também nos ajuda a compreender, de certa forma, como nos
relacionamos com as todas as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) da
atualidade. Por isso, voltar nossos olhares ao maior brinquedo do mundo é, na verdade,
entender como os seres humanos tomam parte ativa nesse processo tão rico.
21

1 UMA PROPOSTA DE HISTÓRIA DA MÍDIA PARA O ESTUDO DAS


ARTICULAÇÕES ENTRE GAMES E A HCI

Em julho de 1945, o mundo ainda vivia sob os tremendos impactos da 2ª Guerra


Mundial; a capitulação da Alemanha Nazista havia determinado o fim das hostilidades na
Europa, e a campanha dos Aliados no Pacífico se aproximava do seu final, culminando com
as preparações para os ataques atômicos à Hiroshima e Nagasaki, em 6 e 9 de agosto do
mesmo ano. Profundamente marcado pelos esforços científicos de guerra, o engenheiro
estadunidense Vannevar Bush, chefe do Office of Scientific Research and Development
(OSRD)17, e um dos responsáveis pela organização inicial do Projeto Manhattan18, publicou,
neste mês, o ensaio “As We May Think” na revista literária The Atlantic. Fazendo referências
cifradas ao desenvolvimento de dispositivos nucleares19, com a frase “(...) a construção de
estranhos artefatos20 destrutivos...”21 (BUSH, 1945, grifos nossos), Bush afirma que todo o
enorme cabedal de conhecimento construído durante os anos de guerra deveria agora ser
utilizado para o período de paz que se avizinhava. Este conhecimento, segundo o engenheiro
estadunidense, teria três consequências fundamentais para os seres humanos: o controle
material do nosso meio ambiente, com o desenvolvimento de roupas, comidas, habitações
etc.; o conhecimento dos processos biológicos, com a cura de doenças e o aumento da
expectativa de vida humana; e a descobertas referentes às interações entre o que Bush chamou
de “funções fisiológicas e psicológicas” (no original, physiological and psychological
functions) dos seres humanos, melhorando nossa saúde mental. Porém, para usufruir desta
grande quantidade de produção científica, Vannevar Bush considera essencial pensar uma
forma de organização e divulgação destes materiais, ressaltando que “(...) a especialização se
torna cada vez mais necessária para o progresso, e o esforço de conectar as diferentes

17
Agência do governo dos Estados Unidos, que funcionou entre 1941 e 1947, responsável por coordenar os
esforços científicos utilizados para fins militares durante a 2ª Guerra Mundial.
18
Projeto de pesquisa e desenvolvimento que gerou as primeiras bombas atômicas.
19
“Trinity”, o primeiro teste de detonação de um artefato atômico, ocorreu em 16 de julho de 1945; Vannevar
Bush foi um dos observadores do teste.
20
A escolha desta palavra nos parece ter sido intencional – artefato (no original em inglês, gadget) era o código
utilizado no Projeto Manhattan para se referir ao dispositivo nuclear pesquisado e construído pelas equipes
deste esforço científico estadunidense; em especial, o dispositivo detonado no teste “Trinity” entrou para a
história com esse nome [Nota da autora].
21
Livre tradução de “(…) the making of strange destructive gadgets…”.
22

disciplinas é correspondentemente superficial”22 (BUSH, 1945). Bush então relembra os


esforços de G.W. Leibniz e Charles Babbage para a construção de calculadoras mecânicas,
suas “máquinas lógicas”, nos séculos XVII e XIX, ressaltando que esses dispositivos não
eram confiáveis para o uso contínuo, pela sua propensão a quebras mecânicas (além da
complexidade dos projetos em relação às tecnologias disponíveis na época); com os
dispositivos eletrônicos que surgiam nos anos 1940, após os esforços de guerra, as máquinas
lógicas finalmente eram confiáveis e relativamente baratas, o que levou Bush a declarar que
“o mundo chegou a uma época de dispositivos complexos e baratos, de grande confiabilidade
– e algo vai surgir daí”23 (BUSH, 1945). O “algo” sugerido por Vannevar Bush era uma
máquina com o nome de Memex, um arquivo complexo que disporia de todo o conhecimento
produzido pelo ser humano - a partir de um dispositivo de buscas que funcionaria a partir de
trilhas (trails) de associações entre temas buscados, o usuário do Memex teria acesso a textos,
imagens e áudios correspondentes; para Bush, o uso de trilhas se daria pelas próprias
características da mente humana:

[O cérebro] opera a partir de associações. Quando um item [de conteúdo] está ao seu
alcance, ele já pula imediatamente para o próximo que lhe é sugerido pela
associação de pensamentos, de acordo com algumas redes complexas de trilhas que
existem a partir das células cerebrais.24 (BUSH, 1945)

Figura 1 - Memex, como pensado em 1945

Fonte: Revista Life, 10 set. 1945, p. 123

22
Livre tradução de “(…) specialization becomes increasingly necessary for progress, and the effort to bridge
between disciplines is correspondingly superficial”.
23
Livre tradução de: “The world has arrived at an age of cheap complex devices of great reliability – and
something is bound to come of it”.
24
Livre tradução de: “It operates by association. With one item in its grasp, it snaps instantly to the next that is
suggested by the association of thoughts, in accordance with some intricate web of trails carried by the cells of
the brain”.
23

A proposta do Memex, utilizando as novas tecnologias que surgiam após os esforços


de pesquisa para fins militares da 2ª Guerra Mundial, se mostra alinhada com os experimentos
que pesquisadores como John von Neumann e Norbert Wiener, nos EUA, ou Alan Turing, no
Reino Unido, realizavam naquela época, tentando pensar similaridades entre os dispositivos
computacionais e os processos biológicos dos seres vivos – deste ponto de partida em comum,
Turing passou a pesquisar processos de inteligência artificial (utilizando jogos de xadrez,
conforme veremos em capítulo posterior) e Wiener propôs o campo de pesquisa da
Cibernética, com um foco especial em métodos de controle e regulação de organismos vivos
– em especial, na cognição humana – e a sua aplicação em máquinas que elaboram e/ou
transmitem informações. O pesquisador estadunidense foi categórico ao afirmar que, “se o
século XVII e o início do século XVIII foram a era dos relógios, e o final do século XVIII e o
século XIX constituem a era das máquinas a vapor, o tempo presente é a era da comunicação
e controle”25 (WIENER, 1965, p. 39), já que, a partir do processo de lida com a informação,
destacando o uso de fundamentos matemáticas para o seu armazenamento, preservação e
transmissão, o cientista estadunidense propõe até mesmo mudanças nas formas de
organização social.
Porém, ao contrário destas pesquisas, que mostraram sua importância e aplicabilidade
de forma mais gradual, o Memex de Vannevar Bush era uma aplicação da nascente tecnologia
computacional para o cotidiano, voltado para as pessoas comuns desde o seu princípio, e esta
visão do engenheiro estadunidense influenciou várias gerações de pesquisadores que
buscaram desenvolver o potencial da computação para além dos laboratórios acadêmicos e
militares. Dentre estes pensadores influenciados por Bush, destacam-se pioneiros como
Douglas Engelbart, que leu As We May Think em uma ilha nas Filipinas, esperando o término
do seu serviço na Marinha dos EUA ao final da 2ª Guerra Mundial (cf. HITLZIK, 1999), e
que posteriormente utilizou as ideias de Vannevar Bush como base para o seu trabalho com
dispositivos computacionais; em seu relatório técnico Augmenting Human Intellect: A
Conceptual Framework (1962), que se tornou um clássico da área, Engelbart faz um resumo
de As We May Think para expor o seu sistema H-LAM/T - Human using Language, Artifacts,
Methodology, in which he is Trained (em uma possível tradução, Humano utilizando
Linguagem, Artefatos, Metodologia, nos quais ele é Treinado), que, assim como previsto por
Vannevar Bush, é desenvolvido por meio de questões cognitivas para desenvolver a interação
humana com as máquinas computacionais. Por sua vez, esse trabalho culminou na famosa

25 Livre tradução de: “If the seventeenth and early eighteenth centuries are the age of clocks, and the later eighteenth and the
nineteenth centuries constitute the age of steam engines, the present time is the age of communication and control”.
24

apresentação de dezembro de 1968 na qual Engelbart apresentou o mouse, dispositivo de


interação física amplamente adotado pela indústria, e o NLS (oNLine System), um software
baseado em linhas de comando, considerado por alguns autores (por exemplo, BRENLLA,
2005; BOLTER; GROMALA, 2003) como o primeiro exemplo de uma interface gráfica
computacional como a conhecemos hoje. Nesse sentido, o trabalho de Engelbart é um
exemplo significativo de como As We May Think ajudou a criar o campo que fez dos
computadores dispositivos onipresentes em nossas vidas: a interação humano-computador.
A interação humano-computador (em inglês, Human-Computer Interaction – HCI) é
um campo do conhecimento relativamente novo, datado do final dos anos 1970/começo dos
anos 1980; acredita-se que o termo HCI foi popularizado a partir do lançamento de The
Psychology of Human-Computer Interaction (1983), de Stuart Card, Thomas P. Moran e
Allen Newell, um dos livros pioneiros deste campo (cf. CARROLL, 2003; JØRGENSEN,
2008). Segundo Raymond S. Nickerson e Thomas K. Landauer (in HELANDER et al., 1997,
p. 11), no começo das pesquisas da área, a HCI não era um tópico de interesse, pois poucas
pessoas interagiam com dispositivos computacionais, e quem tinha acesso a essas tecnologias
eram os técnicos especializados. Corroborando com esta contextualização, Alistair Sutcliffe
(1989, p. 3) nos explica que

o surgimento da interação humano-computador como uma disciplina ativa está


verdadeiramente relacionada com o surgimento do microcomputador. Uma possível
explicação para isto é que, pela primeira vez, computadores e seus softwares se
tornaram produtos de ampla circulação para o público em geral.26

Como várias das áreas de estudo fundadas no final do século XX, a HCI foi
constituída a partir de trocas entre várias ciências (GRUDIN, 2007), partindo das descobertas
realizadas pelas Ciências da Computação até a busca de aportes teóricos da Psicologia,
Design, Ciências Cognitivas, chegando até às Ciências Humanas e Sociais, em busca de um
melhor entendimento do relacionamento entre seres humanos e dispositivos computacionais;
de certa forma, a interdisciplinaridade da HCI já era prevista por Vannevar Bush em 1945, ao
refletir nas associações necessárias entre diversos campos, como vimos anteriormente. Esta
tendência interdisciplinar da área leva a uma infinidade de abordagens e temas possíveis,
sendo difícil estabelecer uma definição única do que é a interação humano-computador,
embora seja possível traçar um claro objetivo em comum para o campo: o desenvolvimento

26
Livre tradução de “The rise of human-computer interaction as an active discipline correlates well with the rise
of the microcomputer. A plausible explanation for this is that for the first time computers and their software
became mass circulation commodities for ordinary people”.
25

de tecnologias interacionais cada vez mais simples, agradáveis e adequadas para um uso
humano geral. Em uma definição criada por um grupo de estudos da American for Computing
Machinery (ACM), a principal associação de pesquisas computacionais do mundo, a interação
humano-computador é descrita como “(...) uma disciplina que se ocupa do design, avaliação e
implementação de sistemas computacionais interativos para o uso humano, e com o estudo
dos seus principais fenômenos relacionados”27 (HEWETT et al., 1992, p. 5); ao escrever o
prefácio de The Computer User as Toolsmith, um clássico da área, o pesquisador britânico
Harold Thimbleby pondera que

Os humanos são as criaturas mais versáteis, e os computadores são as mais versáteis


das criações. A Interação Humano-Computador é o estudo do que eles podem fazer
juntos; em particular, a HCI busca fazer da interação algo mais voltado aos
humanos”28 (THIMBLEBY in GREENBERG, 1993, p. XIII).

A definição do especialista John M. Carroll traz esta mesma base, ao afirmar que a
HCI “está interessada em entender como as pessoas fazem uso de dispositivos e sistemas que
incorporam ou inserem a computação, e como esses dispositivos e sistemas podem ser mais
úteis e mais usáveis”29 (CARROLL, 2003, p. 1). Seguindo este padrão da área, Steve
Harrison e colaboradores apontam, no artigo “The Three Paradigms of HCI” (2007), dois
paradigmas que fomentaram as pesquisas em interação humano-computador: o da engenharia
e fatores humanos, que tem seu foco na otimização do relacionamento humano-máquina, e
que pensa a interação como um “acoplamento” entre humanos e computadores; e o das
ciências cognitivas, com base na sua vertente clássica da Inteligência Artificial30, no qual
mente e máquina seriam praticamente simétricos em seu processamento de informação,
enfatizando a eficácia e precisão na transmissão de informações. Os autores observam, então,
a emergência de um terceiro paradigma, inspirado nos estudos recentes de Psicologia
Cognitiva, que trata a interação como fenomenologicamente situada, “na qual toda ação,

27
Livre tradução de: “(…) is a discipline concerned with the design, evaluation and implementation of
interactive computing systems for human use and with the study of major phenomena surrounding them”.
28
Livre tradução de: “Humans are the most versatile of creatures, and computers are their most versatile of
creations. Human-Computer Interaction (HCI) is the study of what they do together; in particular, HCI aims to
make interaction better suit the humans”.
29
Livre traducão de: “It is concerned with understanding how people make use of devices and systems that
incorporate or embed computation, and how such devices and systems can be more useful and more usable”.
30
No capítulo 3, explicitamos a discussão sobre modelos de Inteligência Artificial a partir dos jogos de xadrez
computacional.
26

interação e conhecimento são pensadas como corporificadas em atores humanos situados”31


(HARRISON et al., 2007, p. 7), no qual a interação em si é um suporte para essa ação situada
no mundo32.
Já o início empírico da HCI pode ser mais facilmente traçado a partir das pesquisas de
interfaces33, com o desenvolvimento de tecnologias (tanto físicas quanto gráficas/visuais) para
a manipulação de objetos gráficos apresentados em tela, conforme já destacamos em nossa
dissertação de Mestrado (SOARES, 2008). Estas tecnologias são a aplicação prática mais
visível das formas de interação humano-computador – já que todo o nosso uso de dispositivos
digitais é mediado por interfaces gráficas e físicas – e são definidas por Pierre Lévy como
“(...) os aparatos materiais que permitem a interação entre o universo da informação digital e
o mundo ordinário” (LÉVY, 1999, p. 37); acepção esta que inclui tanto os dispositivos de
entrada de dados (input), como teclados, mouses e telas touch (que são exemplos de interfaces
físicas), quanto os dispositivos de saída (output), como monitores, que exibem interfaces
gráficas. Porém, as interfaces tornaram-se mais conhecidas nos estudos comunicacionais a
partir de uma outra definição, trazida pelo escritor estadunidense Steven Johnson, que é
incompleta por não compreender em si todas as facetas destas aplicações na computação,
conforme nos alertam Florian Cramer e Matthew Fuller (2008, p. 149), mas que nos é útil
para começar a entender as conexões possíveis entre máquinas e humanos:

Em seu sentido mais simples, a palavra se refere a softwares que dão forma à
interação entre usuário e computador. A interface atua como uma espécie de
tradutor, mediando entre as duas partes, tornando uma sensível para a outra. Em
outras palavras, a relação governada pela interface é uma relação semântica,
caracterizada por significado e expressão, não por força física. (JOHNSON, 2001, p.
17, grifos nossos)

Esta interação entre computadores e seus usuários já era prevista no projeto


associativo do Memex de Vannevar Bush, embora não tenha sido formalmente descrita pelo
engenheiro estadunidense; porém, a ideia de uma relação mais profunda entre humanos e os
dispositivos digitais foi mais desenvolvida só depois de algumas décadas, nos anos 1960,

31
Livre tradução de: “(...) in which all action, interaction, and knowledge is seen as embodied in situated human
actors”.
32
Como nos aponta Fátima Regis, ao entendermos a cognição como corporificada, presumimos que o processo
cognitivo depende do nosso aparato sensório-motor para obter as informações do mundo; em resumo, “seres
vivos têm suas ações acopladas ao mundo; suas decisões são contextualizadas, ancoradas em situações
concretas” (REGIS, 2011, p. 123).
33
Florian Cramer e Matthew Fuller (2008, p. 149) acreditam que o termo interface foi adotado pela área da HCI
a partir dos estudos de Química, nos quais significaria fronteiras que são comuns entre dois corpos, espaços
e/fases.
27

especialmente após a publicação de Man-Computer Symbiosis (1960), artigo do pesquisador


estadunidense J. C. R. Licklider, que, inspirado pelas visões da Cibernética para o
desenvolvimento tecnológico (cf. BARDINI, 2000), propunha uma “interação cooperativa”
(cooperative interaction) entre seres humanos e os dispositivos digitais, com o objetivo de
facilitar o pensamento para a resolução de problemas, e permitir a cooperação entre humanos
e máquinas na tomada de decisão e no controle de situações complexas; ou seja, a associação
simbiótica desejada por Licklider se baseia em conexões cognitivas baseadas em operações
lógicas, puramente mentais. Para chegar nesta percepção, o pesquisador estadunidense se
interessou por estudos sobre o processo de decisão humana, percebendo que a maior parte do
tempo de sua pesquisa foi tomada por procedimentos de busca, separação, filtragem e análise
das informações necessárias para o seu desenvolvimento, um tipo de "pensamento técnico"
que, segundo Licklider, poderia ser melhor realizado pelas máquinas. Contudo, a capacidade
humana de flexibilidade nas suas ações e pensamentos seria uma característica ausente nos
computadores, só que altamente desejável para o aprimoramento das funções computacionais,
sugerindo "(...) que uma cooperação simbiôntica, se bem-sucedida na integração das
características positivas dos humanos e dos computadores, poderia ser de grande valor"34
(LICKLIDER, 1960, p. 6).
Para tanto, Licklider se preocupou em refletir sobre soluções para as diferenças de
velocidade e linguagem, que seriam as grandes dificuldades a serem enfrentadas, pensando
em novas maneiras de leitura e gravação de dados na memória do processador, e também em
construir uma linguagem que permitisse a interação entre humanos e máquinas em tempo real.
Neste ponto, o pesquisador cita a então a nascente área da Inteligência Artificial, destacando
os estudos de xadrez computacional como exemplos da sofisticação lógica que os dispositivos
digitais estavam começando a alcançar. Contudo, embora seu sistema de pensamento
privilegiasse uma conexão “mental” entre seres e máquinas - que para Thierry Bardini (2000,
p. 28) seria um “ato comunicacional” (communicative act) entre usuários e dispositivos -
dentre os requisitos de Licklider para a simbiose humano-computador estava a criação de
dispositivos de input e output que fossem tão flexíveis e fáceis de usar quanto um caderno ou
um quadro-negro:

Certamente, para uma efetiva interação humano-computador, será necessário, tanto


para o humano quanto para o computador, desenhar grafos e imagens, e escrever
notas e equações para cada um na mesma superfície de apresentação de informação.

34
Livre tradução de: “(…) that a symbiotic cooperation, if successful in integrating the positive characteristics of
men and computers, would be of great value”.
28

O humano deve ser capaz de apresentar uma função ao computador, de uma maneira
rudimentar mas rápida, por meio de um desenho de um grafo. 35 (LICKLIDER, 1960,
p. 9)

Ao escrever Man-Computer Symbiosis, Licklider talvez não imaginasse que a sua


preocupação em criar elementos mais ágeis de comunicação humano-computador seria
fundamental para despertar em outros estudiosos, por exemplo, o interesse pela construção de
interfaces gráficas do usuário, mas, ao afirmar que “para a cooperação em tempo real entre
humanos e computadores, vai ser necessário, porém, lançar mão de princípios adicionais e até
mesmo diferentes de comunicação e controle”36 (LICKLIDER, 1960, p. 8), Licklider acabou
por antecipar várias questões que permearam o estudo da interação humano-computador por
mais de quarenta anos.
Estes sistemas de controle idealizados por J. C. R. Licklider para a construção da
simbiose humano-computador foram mais tarde desenvolvidos por pioneiros como Ivan
Sutherland, e o seu Sketchpad. Fruto da tese de doutorado de Sutherland no Massachusetts
Institute of Technology (MIT) em 1963, o Sketchpad era um programa desenvolvido para o
desenho e manipulação de formas geométricas, utilizando principalmente um dispositivo de
interação física denominado como light pen37. Inspirado pelas ideias de interação desejadas
por Licklider, que é citado como referência em sua tese, Sutherland imaginou quais seriam as
facilidades que poderiam ser trazidas para o desenvolvimento de desenhos técnicos ou
científicos, sendo assim um precursor dos programas gráficos contemporâneos. Contudo, ao
mesmo tempo, o pesquisador também tinha em mente que o seu programa traria modificações
importantes na forma de se pensar a comunicação entre os usuários e os seus computadores,
ao explicar que:
O sistema Sketchpad torna possível para um humano e um computador conversarem
rapidamente por meio de traços. Antes, a maior parte da interação entre humanos e
computadores teve sua velocidade diminuída pela necessidade de reduzir toda a
comunicação a instruções escritas que possam ser digitadas (...) O sistema
Sketchpad, que elimina instruções digitadas (com exceção de legendas) em favor de

35
Livre tradução de: “Certainly, for effective man-computer interaction, it will be necessary for the man and the
computer to draw graphs and pictures and to write notes and equations to each other on the same display
surface. The man should be able to present a function to the computer, in a rough but rapid fashion, by drawing
a graph”.
36
Livre tradução de: “For the purposes of real-time cooperation between men and computers, it will be
necessary, however, to make use of an additional and rather different principle of communication and control”.
37
Conforme destacamos em trabalho anterior, “Dispositivo considerado antecessor do mouse, a light pen
utilizava sensores rudimentares para detectar a sua posição no espaço, e traçar linhas na tela” (SOARES,
2008).
29

traços, abre um novo campo de comunicação humano-máquina38. (SUTHERLAND,


2003, p. 17, grifos nossos)

Para Lev Manovich, “o Sketchpad exemplificou um novo paradigma na interação com


os computadores: ao mudar algo na tela, o operador também mudava alguma coisa na
memória do computador. A tela em tempo real tornou-se interativa”39 (MANOVICH, 2001, p.
102), e dar estas capacidades gráficas e interativas ao computador transformou-o em um
poderoso meio de expressão visual (cf. JOHNSON, 2001; BOLTER; GROMALA, 2003;
VENTURELLI, 2004), alterando radicalmente os usos e funções pensadas para estes
dispositivos. Se antes os computadores eram simples máquinas de cálculos e processamento
de dados, a partir do desenvolvimento das teorias de HCI eles passaram a também ser
verdadeiros meios de comunicação:

Foi inventando a interface gráfica do usuário (GUI) que Engelbart, Kay e outros nos
convenceram que o computador era um meio. Fazendo isto, eles não apenas nos
davam uma nova ferramenta de edição de texto e de contabilidade; eles também nos
mostravam como o computador poderia desempenhar um papel na nossa cultura
visual40 (BOLTER; GROMALA, 2003, p. 41).

38
Livre tradução de: “The Sketchpad system makes it possible for a man and a computer to converse rapidly
through the medium of line drawings. Heretofore, most interaction between men and computers has been
slowed down by the need to reduce all communication to written statements that can be typed (…) The
Sketchpad system, by eliminating typed statements (except for legends) in favor of line drawings, opens up a
new area of man-machine communication.
39
Livre tradução de: “Sketchpad exemplified a new paradigm of interacting with computers: By changing
something on the screen, the operator changed something in the computer’s memory. The real-time screen
became interactive”.
40
Livre tradução de: “It was by inventing the GUI that Engelbart, Kay and others convinced us that the computer
was a medium. In doing so, they weren’t just giving us a new tool for word processing and bookkeeping; they
were also showing how the computer could play a role in our visual culture”.
30

Figura 2 - Sketchpad em ação: o computador como um meio visual

Fonte: http://blog.interfacevision.com/assets/img/posts/example_visual_language_sketchpad_01.jpg

Em Software Takes Command (2013), Lev Manovich sustenta a hipótese de que os


pioneiros da interação humano-computador eram mais do que cientistas: eram teóricos de
mídia, por pensarem e executarem tarefas nas áreas de controle, representação, simulação,
memória, escrita, interação etc., que são caras aos estudos comunicacionais, e defende que o
termo interfaces midiáticas (media interface) é o mais adequado para discutir as GUIs
atualmente, pois estas fazem uso de diferentes formatos midiáticos (vídeos, fotos etc.) para a
representação de dados computacionais; para Manovich, quando as GUIs criaram
possibilidades de manipulação e criação de mídia, “eles [os pesquisadores de HCI] sabiam
que estavam transformando as mídias físicas em novas mídias”41 (2013, p. 72). Esta
afirmação é, de certa forma, corroborada por Alexander Galloway (2012, p. 31), ao afirmar
que “já que qualquer formato [de mídia] encontra a sua identidade meramente no fato que ele
é um contêiner para outro formato, os conceitos de interface e meio se desfazem rapidamente
em uma coisa única”42.

41
Livre tradução de: “They knew that they were turning physical media into new media”.
42
Livre tradução de: “Since any given format finds its identity merely in the fact that it is a container for another
format, the concept of interface and medium quickly collapse into one and the same thing”.
31

1.1 O (obscuro) lugar dos games na historiografia da HCI

Para alcançar os objetivos dos estudos de HCI, de um uso simples e prazeroso das
tecnologias digitais em geral, vários dos pesquisadores do campo passaram a prestar atenção
na evolução das pesquisas de implementação de jogos, uma área das ciências computacionais
que começou a alcançar enorme sucesso comercial especialmente após o lançamento, em
1977, do Atari Video Computer System (VCS), console que popularizou os games como uma
opção de entretenimento, e assim “(...) ajudou a introduzir a computação para uma audiência
leiga e para fins domésticos”43 (MONTFORT; BOGOST, 2009, p. 3). Neste contexto,
conforme já descrevemos em trabalhos anteriores (SOARES, 2008) o pesquisador
estadunidense Thomas W. Malone escreveu “Heuristics for Designing Enjoyable User
Interfaces: Lessons from Computer Games”, artigo publicado em 1982, e considerado um dos
pioneiros na proposição do uso dos jogos eletrônicos como um exemplo de interações
prazerosas e dinâmicas entre humanos e computadores; neste trabalho, que é em verdade o
resumo de questões apresentadas por Malone em sua tese de doutorado, defendida na Stanford
University em 1980, o pesquisador realiza três pesquisas empíricas com crianças do ensino
fundamental nos EUA, com o objetivo de encontrar elementos que comprovem o porquê dos
games serem tão cativantes, e como estas características encontradas poderiam ser utilizadas
para a elaboração de interfaces humano-computadores melhores. Com o resultado de suas
explorações, o pesquisador sugere que algumas características essenciais são encontradas nos
games: o desafio (no original em inglês, challenge, que é definido por Malone como uma
atividade que tenha um objetivo cujo resultado é incerto), a ficção imaginativa (fantasy, um
sistema que evoque imagens de objetos físicos ou situações sociais que não estão
verdadeiramente presentes, baseado em emoções e metáforas) e a curiosidade (curiosity,
construída em um ambiente que tenha um nível equilibrado de “complexidade
informacional”, ou seja, que não seja complicado de ser usado, e nem tão fácil). Estas três
características poderiam ser utilizadas para a criação de ambientes de HCI com o objetivo de
desenvolver futuros sistemas de uso mais fácil e eficaz, mas que também seriam “(...) mais
interessantes, mais agradáveis e mais satisfatórios”44 (MALONE, 1982, p. 68) – objetivos
estes que estão no cerne das pesquisas de todas as áreas da HCI.

43
Livre tradução de: “(…) that helped introduce computing to a popular audience and to the home”.
44
Livre tradução de: “(…) more interesting, more enjoyable, and more satisfying”.
32

A mesma conclusão de Thomas W. Malone foi descrita por John M. Carroll e John C.
Thomas em “Metaphor and the Cognitive Representation of Computing Systems”, artigo
publicado na mesma época do trabalho de Malone (março de 1982), e que faz breves menções
ao uso dos games como modelos para o design de HCI. O objetivo principal de Carroll e
Thomas seria pensar a natureza do processo de aprendizagem de sistemas computacionais e
também a natureza das representações mentais elaboradas por estes, especialmente com o uso
de metáforas45, método representacional que, nos dispositivos digitais, fornecem ao usuário a
ilusão do controle, da manipulação dos dados. Thomas D. Erickson nos explica que, para os
designers de interfaces, “metáforas funcionam como modelos naturais, nos permitindo pegar
nossos conhecimentos sobre objetos e experiências familiares, concretas, e usá-las para
estruturar conceitos mais abstratos”46 (ERICKSON, 1996a, p. 66), e conforme destacamos em
trabalho anterior,

Neste sentido, a metáfora serve como uma ajuda ao usuário para a apreensão dos
elementos de uma interface, mas também é útil para o designer do software, que a
utiliza como um auxílio para a sua criatividade no momento de elaboração da
estética/usabilidade do ambiente; entender a metáfora utilizada em uma interface é
também entender o objetivo do programador, entrar em contato com as suas
intenções iniciais... (SOARES, 2008)

O uso de metáforas começou a se tornar padrão na comunidade de HCI nos anos


1980, especialmente após o sucesso comercial de interfaces gráficas como o Apple Macintosh
e o Microsoft Windows, consideradas como evoluções do modelo de GUI Star, desenvolvido
pelo centro de pesquisas Xerox em Palo Alto, Califórnia. O sistema operacional Star fazia
referências às mesas de escritório da época, tanto em sua parte gráfica quanto para nomear
comandos disponíveis, criando a metáfora visual e tátil das janelas (no original em inglês,
windows) para esta obtenção e lida das informações computacionais; essas metáforas
utilizadas foram descritas, em 1982, por David Canfield Smith, Charles Irby, Ralph Kimball e
Eric Harslem, pesquisadores da área de computação da Xerox:
Quando aberto, um ícone se expande em uma forma maior chamada de janela, que
exibe o conteúdo do ícone. Isto permite que você leia documentos, inspecione o
conteúdo de pastas e arquivos, veja se chegou mensagens, e execute outras

45
Para este trabalho, adotamos a definição de metáfora oferecida por George Lakoff e Mark Johnson, no livro
“Metaphors we live by”: “A essência da metáfora é entender e vivenciar um tipo de coisa nos termos de outra
diferente” (1980, p. 5 [Livre tradução de: “The essence of metaphor is understanding and experiencing one
kind of thing in terms of another”]).
46
Livre tradução de: “Metaphors function as natural models, allowing us to take our knowledge of familiar,
concrete objects and experiences and use it to give structure to more abstract concepts”.
33

atividades. As janelas são o principal mecanismo de exibição e manipulação de


informação.47 (SMITH et al., 1982, p. 519, grifos nossos)

Figura 3 - Star: a interface ganha janelas para a informação

Fonte: http://www.filfre.net/wp-content/uploads/2013/01/starbitmap2.gif

Desta forma, refletindo sobre estes desenvolvimentos da época, Carroll e Thomas


destacam, em “Metaphor and the Cognitive Representation of Computing Systems”, este
importante papel dos conceitos metafóricos, e elaboraram oito recomendações para a
elaboração de sistemas de interface computacionais que trariam satisfação às necessidades dos
seus usuários, principalmente focando-se na construção e manutenção do interesse dos
utilizadores – para tanto, os pesquisadores propõem uma “Rotina Computacional Baseada em
Games” (no original, Game-based Routine-application Computing) que teriam elementos
fundamentais para este fim:

Existem dois aspectos principais nesta proposta de metáforas baseadas em games


para rotinas computacionais. Primeiramente, a metáfora utilizada por um sistema é
algo ao menos “dinâmico”. Os games são intrinsicamente dinâmicos de uma
maneira que as interfaces atuais nunca conseguem ser (...) Em segundo lugar, a
metáfora utilizada por um sistema é “envolvente”. Novamente, os games parecem
intrinsicamente envolver o ego do jogador de uma forma que nenhuma das
interfaces atuais conseguem.48 (CARROLL; THOMAS, 1982, p. 115)

47
Livre tradução de: “When opened, an icon expands into a larger form called a window, which displays the
icon's contents. This enables you to read documents, inspect the contents of folders and file drawers, see what
mail has arrived, and perform other activities. Windows are the principal mechanism for displaying and
manipulating information”.
48
Livre tradução de: “There are two central aspects to this proposal for game-base metaphors for routine-
application computing. First, the metaphor of the system is at least somewhat "dynamic." Games are
intrinsically dynamic in a sense that present interfaces never are. (…) Second, the metaphor of the system is
34

A partir de suas abordagens voltadas às questões da utilização de aspectos lúdicos na


computação, tanto o artigo de Thomas W. Malone quanto o trabalho de John M. Carroll e
John C. Thomas provocaram uma forte impressão na comunidade de estudos de interação
humano-computador, e influenciaram pesquisadores como Ben Shneiderman, que em 1983
publicou “Direct Manipulation: a Step Beyond Programming Languages”, texto que ficou
famoso por popularizar49 uma das expressões que define as ações interativas computacionais:
a manipulação direta (direct manipulation), que seria a sensação de manipular os dados
computacionais por meio de representações visuais dessas informações, ou seja, agir
ativamente em um ambiente de interface. Segundo Shneiderman, muitas das pesquisas
realizadas com usuários de computadores naquele momento recebiam feedback semelhantes,
apontando para os mesmos aspectos que seus interatores desejavam na lida com os
dispositivos digitais: domínio completo do sistema, competência para realizar tarefas,
facilidade no aprendizado, confiança na manutenção das habilidades conquistadas, uso
prazeroso do sistema, o interesse em apresentar o sistema a novatos, e o desejo de explorar
funcionalidades mais avançadas. Para tanto, o estudioso acredita ser necessário oferecer uma
maior visibilidade ao objeto de interesse no sistema, além de ações que sejam rápidas,
reversíveis e que tenham a possibilidade de serem incrementadas, e da troca das linhas
complexas de comando pela ilusão da manipulação direta do objeto de interesse. Tendo em
vista esses objetivos, Shneiderman procura esses atributos em várias das aplicações
computacionais do início dos anos 1980, como editores de planilhas, softwares de CAD
(Computer-Aided Design, ou desenho assistido por computador) e o sistema ZOG, utilizado
no navio de guerra estadunidense USS Carl Vinson, mas acaba por explicitar sua ideia de que

Provavelmente, o emprego mais excitante, mais engenhoso – e certamente mais


bem-sucedido - da manipulação direta está no mundo dos videogames (...) Os
designers desses games nos fornecem uma forma de entretenimento estimulante, um
desafio para novatos e experts, e muitas lições intrigantes sobre os fatores humanos
no design de interfaces – de algum modo, eles conseguiram encontrar uma forma de
fazer as pessoas colocarem suas moedas nos computadores. A forte atração trazida
por esses jogos contrastam marcadamente com o nervosismo e a resistência que
muitos usuários vivenciam no uso de equipamentos automatizados no trabalho.50
(SHNEIDERMAN, 1983, p. 61)

"involving." Again, games seem to intrinsically involve the ego of the player in a way that no present interface
can”.
49
Embora a provável primeira aparição do termo tenha ocorrido um ano antes, no artigo “The future of
interactive systems and the emergence of direct manipulation”, também de autoria de Shneiderman.
50
Livre tradução de: “Perhaps the most exciting, well-engineered – certainly, the most successful – application
of direct manipulation is in the world of video games (…) The designers of these games have provided
stimulating entertainment, a challenge for novices and experts, and many intriguing lessons in the human
35

A conclusão de Ben Shneiderman nos parece suficientemente clara, e acaba por chegar
na mesma perspectiva explicitada nos artigos anteriores de Malone, Carroll e Thomas51: os
designers de interação humano-computador devem olhar para os jogos eletrônicos para
entender sua complexidade, usando suas características interacionais para o desenvolvimento
de novos dispositivos e interfaces; observações estas que, 15 anos depois, são resumidas por
David J. Bolter e Richard Grusin, no já clássico livro Remediation: understanding new media
(1998); ao utilizarem as GUIs como exemplo do processo de remediação dos meios e
linguagens, os autores estadunidenses aproveitam para também realizar uma demonstração do
que poderia ser uma conexão histórica entre a construção de games e as teorias relacionadas
às interfaces computacionais52:

O contínuo desenvolvimento de máquinas de fliperama e consoles domésticos


encontrava-se em paralelo ou mesmo antecipou o desenvolvimento do computador
pessoal e de sua interface (...) com uma sugestão implícita que a ação lúdica, ou pelo
menos uma interface mais responsiva, gráfica, é o que a computação deveria ser. 53
(BOLTER; GRUSIN, 1998, p. 89-90)

Porém, vale lembrar que propostas de uso de atividades lúdicas como inspiração para
os designers da interação humano-computador continuam tendo destaque nessa área de
estudos; em seu artigo “Designing for Homo Ludens, still” (2009)54, o designer inglês Bill
Gaver declara que o conceito de homo ludens criado por Johan Huizinga – o lúdico como
parte indispensável da experiência de vida humana – seria um antídoto para a ideia de que
tecnologias devem apenas se ater à solução rápida, eficiente de problemas, deixando de lado a
criatividade e a engenhosidade que muitas vezes são buscadas no design para a criação de

factors of interface design -somehow they have found a way to get people to put coins into the sides of
computers. The strong attraction of these games contrasts markedly with the anxiety and resistence many users
experience toward office automation equipment”.
51
Contudo, Shneiderman faz uma crítica às analogias entre os games e os aplicativos voltados à tarefas de
trabalho, utilizadas por Carroll e Thomas em seu artigo, ao afirmar que “entretanto, os jogadores procuram
entretenimento e o desafio do domínio do sistema, enquanto usuários de aplicativos se focam nas tarefas, e
podem não gostar de serem forçados a aprender sobre as limitações do sistema” (1983, p. 62 [livre tradução de:
“However, game players seek entertainment and the challenge of mastery, while application-system users
focus on the task and may resent forced learning of system constraints”]).
52
O termo “interfaces computacionais” pode se referir tanto às interfaces físicas quanto às gráficas.
53
Livre tradução de: “The ongoing development of arcade and home games paralleled or anticipated the
development of the desktop computer and its interface (...) with an implicit suggestion that gaming, or at least
an immediately responsive, graphical interface, is what computing should really be about”.
54
Versão ampliada de “Designing for Homo Ludens” (2002), também escrito por Gaver, texto altamente
influente na comunidade de HCI no início dos anos 2000.
36

novos produtos: “quando brincamos com as coisas e as ideias, quando conversamos e


sonhamos acordados, nós somos capazes de descobrir novas perspectivas e maneiras de criar,
assim como novas ambições, relacionamentos e ideais”55 (GAVER, 2009, p. 165). Assim, o
designer inglês utiliza-se de estudos de caso relacionados a experimentos artísticos
computacionais para concluir que “Fazer projetos para atividades incomuns, e para estranhas
orientações [de interface], é atraente para expandir o repertório da computação para além de
suposições confortáveis sobre pessoas e suas questões”56 (GAVER, 2009, p. 165), resumindo
uma linha de pensamento comum na pesquisa de HCI. Ao comentarem o trabalho de Gaver,
Thomas Binder, Jonas Löwgren e Lone Malborg (2009) afirmam:

Mesmo que as questões lúdicas e das possibilidades prazerosas de jogo foram


adotadas no design de interação relativamente há pouco tempo, nota-se que elas se
transformaram em um sabor especial, que vai além da tradicional leveza e
criatividade humorística do design industrial (...) existe uma tendência à participação
lúdica que é transversal à distinção entre design e uso. 57 (BINDER; LÖWGREN;
MALBORG, 2009, p. 7)

Assim, podemos notar, tanto nos trabalhos de Thomas W. Malone e Ben Shneiderman,
quanto em desenvolvimentos posteriores, que as ligações entre os games e HCI continuaram
sendo parte importante dos desenvolvimentos da teoria da interação humano-computador,
como anteriormente vimos na criação da Funology; da mesma forma, estudos recentes sobre a
história das tecnologias computacionais apontam raízes ainda mais profundas dessas
conexões, remontando ao uso de jogos de xadrez nas primeiras pesquisas em Inteligência
Artificial realizadas por pioneiros como Alan Turing e Claude Shannon (cf. AHL, 2008),
como veremos em capítulo posterior. Estes entrelaçamentos entre jogos eletrônicos e HCI
podem ser observadas mesmo em estudos mais voltados para análises comunicacionais; ao
criticar os estudos de ontologia dos meios digitais de Lev Manovich em The Language of New
Media (2001), e também partindo de questionamentos de fundo sócio-político-econômico-
social, Alexander Galloway (2013, p. 3) ressalta, entre outras características, uma certa
centralidade dos games e do ato de jogar que estaria presente não só nas descrições de

55
Livre tradução de: “As we toy with things and ideas, as we chat and daydream, we find new perspectives and
new ways to create, new ambitions, relationships, and ideals”.
56
Livre tradução de: “Designing for uncommon activities and strange orientations is attractive in expanding the
repertoire of computing beyond comfortable assumptions about people and their concerns”.
57
Livre tradução de: “Even though play and playfulness have made their way into the interaction design only
relatively recently, it can be noted that they have transformed into a particular flavour which goes somewhat
beyond the traditional lightness and humoristic creativity of industrial design (...) there has been a thread of
playful participation that cuts across the distinction between design and use”.
37

Manovich, mas também nas discussões sobre tecnologias digitais em geral, declarando que
estas são “reinvidicações estéticas” (aesthetic claims) que teriam se tornado um lugar comum
no discurso construído sobre os chamados “novos” meios. O próprio projeto de pensamento
sobre mídias digitais de Galloway (2013, p. x) parte dessa premissa, ao dedicar um dos livros
de sua trilogia sobre política e estética das tecnologias informacionais aos jogos eletrônicos:
Gaming: Essays on Algorithmic Culture (2006) discute materialidades, história e
representações dos games para demonstrar suas potencialidades sociais, políticas e culturais.
Uma outra abordagem de fundo humanístico que destaca essa nítida conexão entre games e
computação, embora parta do campo da Psicologia Social, com outras bases epistemológicas,
está em The Second Self: Computers and the Human Spirit, de Sherry Turkle – neste livro,
lançado originalmente em 1984, a psicóloga estadunidense avalia (de forma certamente
pioneira), os efeitos da crescente adoção dos computadores e dos games na vida cotidiana,
com destaque no desenvolvimento cognitivo de crianças e adolescentes; a argumentação
principal de Turkle entende que a questão central da cultura que emerge com o uso de
computadores é a ideia de “mundos governados por meio de regras” (“rule-governed”
worlds), construídos e manipulados por seus usuários, que nos atrai para seu uso, afirmando
que

Os videogames são uma janela para um novo tipo de intimidade com as máquinas
que é característico da nascente cultura computacional. A relação especial que os
jogadores constroem com os videogames tem elementos que são comuns às
interações com outros tipos de computadores. Portanto, esse poder atrativo dos
videogames, essa fascinação quase hipnótica, é uma forma dos computadores terem
esse poder de atração sobre nós58 (TURKLE, 2005, p. 67)

Porém, se após observarmos todas essas incidências dessas ligações entre games e as
formas computacionais em geral, e também adotarmos a postura de Alexander Galloway,
ainda dentro de sua crítica à ontologia de Lev Manovich, de que “nós somos obrigados a
pensar criticamente e historicamente porque o digital é tão estrutural, tão abstrato, tão
sincrônico”59 (2012, p. 2), podemos entender que, quando nos voltamos para observar como
as pesquisas de história da interação humano-computador vêm retratando esta conexão
intrínseca da área com o desenvolvimento das tecnologias de jogos eletrônicos, percebemos

58
Livre tradução de: “Video games are a window onto a new kind of intimacy with machines that is
characteristic of the nascent computer culture. The special relationship that players form with video games has
elements that are common to interactions with other kinds of computers. Thus, the holding power of video
games, their almost hypnotic fascination, is a form of computer holding power”.
59
Livre tradução de: ”we are required to think critically and historically because of the very fact that the digital
is so structural, so abstract, so synchronic”.
38

que esta relação não é muito destacada pelos estudiosos da área – a maioria das referências
aos desdobramentos de ligações e influências mútuas entre os games e a HCI são apenas
citações realizadas em trabalhos com outros escopos, que atentam para estas relações
históricas sem realizar explorações mais profundas sobre o tema. Exemplos desta tendência
historiográfica podem ser notados em artigos como “Mainframe Games and Simulation”
(2008), do jornalista David H. Ahl, que foca no desenvolvimento de jogos nos computadores
de grande porte entre as décadas de 1950 e 1970, e “The Rise of the Home Computer”
(2008b), de Bob Rehak, que descreve o início da popularização da computação como
dispositivos domésticos nos anos 1970 e 1980. Mesmo em um livro de nítido apelo histórico
como HCI Remixed: Reflections on Works That Have Influenced the HCI Community (2008),
editado pelos especialistas Thomas Erickson e David W. McDonald, que possui a proposta de
destacar bibliografias e momentos mais obscuros da história da HCI, os momentos de
conexão e influência mútua entre estas áreas são deixados de lado: dentre as 51 resenhas que
compõem este trabalho, nenhuma faz sequer menção às possíveis ligações entre games e a
interação humano-computador. Em verdade, são poucos os trabalhos que exibem comentários
críticos sobre este tema, destacando-se as pesquisas do professor dinamarquês Anker Helms
Jørgensen, com foco na crítica da historiografia da HCI e no desenvolvimento da indústria
computacional em seu país (2004; 2008; 2009), e o livro Racing the Beam (2009), no qual
Nick Montfort e Ian Bogost fazem uma exploração ampla sobre o progresso dos dispositivos e
da indústria da computação nos anos 1970 e 1980, utilizando como exemplo o console Atari
VCS. Porém, entendemos que estes trabalhos apresentam uma restrição em seu escopo: eles
trabalham especialmente com o período entre o final dos anos 1970 e o começo da década de
1980, quando a incipiente elaboração de interfaces gráficas para usuários domésticos estava
ainda em seu início, e a indústria de videogames já ocupava seu espaço nos fliperamas e nas
casas dos Estados Unidos, Europa e Japão – talvez não coincidentemente, a mesma era em
que a disciplina da HCI começou a tomar forma nos espaços acadêmicos.
Uma explicação possível para esse ocultamento do papel dos games na história das
tecnologias de interação humano-computador pode estar nas escolhas metodológicas dos
autores interessados neste tema. Segundo Anker Helms Jørgensen, as pesquisas
historiográficas de HCI se encaixariam em cinco categorias de análise, baseadas em
metodologias de pesquisa em História:
• Internalismo: Concentra-se no design funcional e nas características da tecnologia
em si, excluindo aspectos contextuais
• Externalismo: Concentra-se no contexto de eventos referentes às tecnologias, mas
não discute o desenvolvimento das suas funções técnicas
39

• Contextualismo: Concentra-se sobre os artefatos tecnológicos, inseridos em


contextos sociais, econômicos, culturais e políticos
• Liberalismo: Salienta a noção linear de desenvolvimento e progresso contínuo que
promove o mito da autonomia da tecnologia e do determinismo tecnológico
• História dos “de cima” e história dos “de baixo”: A primeira se foca nos grandes
feitos dos grandes homens, enquanto a segundo aborda a vida cotidiana60.
(JØRGENSEN, 2008, p. 2)

Estas abordagens descritas por Jørgensen são facilmente visualizadas em trabalhos


como o do estadunidense Brad A. Myers, outro pesquisador especializado em historiografia
da HCI, que, em “A Brief History of Human Computer Interaction Technology” (1998),
evitando (deliberadamente ou não) um pensamento crítico sobre a história do campo, prefere
traçar diferentes linhas do tempo, demarcando o desenvolvimento quinquenal do que ele
considera como as principais tecnologias de HCI, em três aspectos: pesquisa universitária,
pesquisa corporativa e produtos comerciais. Assim, Myers se dedica a demonstrar o
desenvolvimento da manipulação direta, das “janelas” das interfaces gráficas, do hipertexto,
do reconhecimento de gestos, entre outros – uma perspectiva internalista, a mais recorrente na
área segundo Jørgensen - que também pode ser observada em outros trabalhos, como em
“Three Faces of Human–Computer Interaction”, de Jonathan Grudin (2005). Já livros
voltados para um público geral, leigo, abordam a história da HCI em uma perspectiva voltada
para as histórias dos “de cima” e as histórias dos “de baixo”; este é o caso de Dealers of
Lightning: Xerox PARC and the Dawn of the Computer Age (1999), de Michael Hiltzik; The
Dream Machine: J.C.R. Licklider and the revolution that made computing personal (2001);
de M. Mitchell Waldrop; e do clássico Hackers: Heroes of the Computer Revolution (2010)61,
de Steven Levy. Trabalhos provenientes de áreas dos estudos comunicacionais vão adotar, ao
nosso ver, uma linha contextualista, como os livros da série Platform Studies62, editada por
Nick Montford e Ian Bogost: além do já citado Racing the Beam, a série conta com Codename

60
Livre tradução de: “• Internalism: Focuses on the functional design and characteristics of the technology itself
while excluding contextual aspects / • Externalism: Focusses on the context of technological events but do not
discuss the design of function of the technologies / • Contextualism: Focuses on the technological artifacts as
embedded in a social, economic, cultural, and political context / • Whiggism: Stresses a linear notion of
development and continuous progress that fosters the myth of autonomous technology and technology
determinism. / • History from above and history from below: The former addresses great deeds of great men,
while the latter addresses everyday life.”
61
Com sua primeira edição lançada em 1984, Hackers foi um dos primeiros livros que contava as histórias por
trás dos feitos dos pioneiros da computação.
62
Os estudos de plataforma propostos por Montford e Bogost têm o objetivo de promover conexões entre “(...)
as bases do trabalho em mídias digitais às culturas nas quais esse trabalho foi efetivado, e em que a codifcação,
as formas, as interfaces e o seu eventual uso são construídos” [livre tradução de: “(…) the fundamentals of
digital media work to the cultures in which that work was done and in which coding, forms, interfaces, and
eventual use are layered upon them”] (MONTFORT; BOGOST, 2009, p. 147).
40

Revolution: The Nintendo Wii Platform (2012), escrito por Steven E. Jones e George K.
Thiruvathukal e The Future Was Here: Commodore Amiga (2012), de Jimmy Maher. Em
todos estes casos de diferentes abordagens, as menções aos games estão de alguma forma
presentes, mas consideramos emblemático o fato de que apenas as obras que contam a história
de consoles desenvolvidos especificamente para o uso de jogos eletrônicos – ou seja, que
tratam os games como um meio de comunicação - vão descrever os jogos e suas interfaces
como parte integrante e principalmente, relevante, da história da interação humano-
computador. Se a historiografia tradicional da HCI escolhe se focar no desenvolvimento de
seus dispositivos e sistemas, ou nos grandes feitos de seus fundadores, há pouco espaço para
falar de ascendências e contextos que não estejam necessariamente ligados às perspectivas
mais utilizadas, como é o caso da presença dos jogos eletrônicos na história da interação
humano-computador, citada na maior parte das vezes apenas como uma curiosidade da área, e
não como possíveis fontes de inspirações técnicas e metodológicas; esta é uma tendência que,
de forma curiosa, vai de contramão ao que podemos perceber em trabalhos de HCI voltados
ao design de sistemas de interação, conforme citamos anteriormente.
Por estas razões, acreditamos que há uma lacuna, tanto no campo da história da HCI
quanto na história dos games, que pode ser melhor trabalhada: o desenvolvimento de uma
pesquisa abrangente sobre a influência dos jogos eletrônicos na fase inicial dos estudos da
interação humano-computador, a partir de uma arqueologia da mídia.

1.2 Arqueologia da mídia: por uma história relacional da Comunicação

A chamada arqueologia da mídia é uma corrente emergente das teorias


comunicacionais, que possui a proposição de refletir sobre o desenvolvimento de meios e seus
usos e apropriações, fazendo resgate de questões por vezes obscurecidas pela historiografia
dita tradicional. Acredita-se que o primeiro uso deste termo tenha surgido no início dos anos
1980, em Mémoires de l'ombre et du son: Une archéologie de l'audio-visuel (1981), do
pesquisador francês Jacques Perriault (cf. HUHTAMO; PARIKKA, 2011), mas podemos
encontrar traços de similaridade em propostas anteriores de história midiática, que não fazem
uso desta denominação. Exemplos desta presença podem ser encontrados em autores tão
diversos como Walter Benjamin, com sua crítica a um passado positivo fundamentado pela
noção de progresso; segundo o filósofo alemão, construímos o passado quando capturamos
41

momentos passados, e os colocamos em relação com a nossa experiência presente – por esta
razão, a história não é uma ciência exata, e nem os acontecimentos históricos podem estar
relacionados de forma positiva, linear, já que “ele se transforma em fato histórico
postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios
(BENJAMIN, 1985, p. 232). Para os objetivos desse presente trabalho, é curioso notar que,
em “Sobre o conceito de história” (Über den Begriff der Geschichte), o texto em que
Benjamin lança as bases de sua crítica ao historicismo tradicional, a base da analogia utilizada
pelo filósofo alemão para criticar um cientificismo “neutralizante” na história - que causa uma
visão homogênea do futuro como progresso positivo - é o mecanismo conhecido como O
Turco (Schachtürke), concebido no final do século XVIII por Wolfgang von Kempelen. Era
essa uma máquina, aparentemente autômata, que realizava lances de xadrez, e a ilusão da
automação d’O Turco, que na verdade era comandado por um mestre enxadrista (não se sabe
se era um jogador com nanismo, ou um adolescente de pequeno porte escondido nas entranhas
do equipamento), seria a mesma realizada pelo materialismo histórico, se este tomasse uma
postura mais transcendente do que meramente científica: “O fantoche chamado ‘materialismo
histórico’ ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço
a teologia. Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se” (BENJAMIN,
1985, p. 222).
A arqueologia da mídia não é uma disciplina constituída, nem um método
consolidado, e seus diferentes propositores nem mesmo compartilham da mesma termologia
ou os mesmos princípios (HUHTAMO; PARIKKA, 2011) – este é um termo “guarda-chuva”
que abrange uma infinidade de temas e métodos, tão complexos quanto seus objetivos; por
exemplo, vários pesquisadores que trabalham com temas próximos aos interesses
arqueológicos não usam esse termo em seus trabalhos, como Marshall McLuhan, ao pensar
contextos e afetos dos meios, e as influências destes na história da cultura ocidental. Esta
tendência também pode ser observada, desde que guardadas as devidas diferenças teóricas,
em pensadores que trabalham com áreas próximas à teoria midiática a partir dos anos 1990,
como Bruno Latour (Teoria Ator-Rede), D.F. McKenzie (sociologia dos textos), Hans Ulrich
Gumbricht (simultaneidade histórica), Jay D. Bolter e Richard Grusin (remediações), Lev
Manovich (linguagem das “novas” mídias), entre outros.
Embora a preocupação com as questões históricas dos meios seja comumente
associada às chamadas teorias de mídia alemãs, a partir das obras de pensadores como
Friedrich Kittler, Siegfried Zielinski e Vílem Flusser (cf. FELINTO, 2010; FELINTO;
SANTAELLA, 2012), segundo Erkki Huhtamo e Jussi Parikka, os pesquisadores da
42

arqueologia da mídia são originários de diversas abordagens e teorias, unidos


primordialmente por suas críticas aos modos tradicionais de representação histórica dos
meios:

Arqueologistas da mídia concluíram que as descrições mais comuns da cultura


midiática contemporânea e das histórias da mídia, de forma igual, muitas vezes
apenas falam sobre partes específicas da história, e não necessariamente estas são
partes que estão corretas ou são relevantes. Muito vem sendo deixado de lado por
negligência ou por certas tendências ideológicas.63 (HUHTAMO; PARIKKA, 2011,
p. 3)

Esta censura comum aos métodos historiográficos mais comuns, nesta tendência de
teorias midiáticas, recebe grande influência da análise do discurso proposta por Michel
Foucault em Arqueologia do saber (no original, L'archéologie du savoir), de 1969. Nesta
obra, Foucault faz uma crítica à História das Ideias64, campo bastante em voga nos meios
historiográficos naquele período do século XX, e seus postulados marcadamente modernos: a
busca de uma gênese, de continuidades históricas lineares e da totalização do saber. Deste
modo, o pensador francês busca na área da Arqueologia a inspiração para descrever uma
proposta de abandono da busca da origem como ponto primordial do estudo dos discursos, e
da linearidade como forma de organização histórica, para a determinação das condições da
produção do saber e da verdade:

Não se deve mais procurar o ponto de origem absoluta, ou de revolução total, a


partir do qual tudo se organiza, tudo se torna possível e necessário, tudo se extingue
para recomeçar. Temos que tratar de acontecimentos de tipos e níveis diferentes,
tomados em tramas históricas distintas. (FOUCAULT, 2008, p. 165)

Foucault se preocupa, então, em desenvolver um método de análise do discurso que


leve em conta as relações complexas e as interdependências de seus elementos, construindo
redes de significados entre os objetos analisados, e fazendo emergir a regularidade destes
enunciados; desta forma, a Arqueologia do Saber “não é o retorno ao próprio segredo da
origem; é a descrição sistemática de um discurso-objeto” (FOUCAULT, 2008, p. 158), frase

63
Livre tradução de: “Media archaeologists have concluded that widely endorsed accounts of contemporary
media culture and media histories alike often tell only selected parts of the story and not necessarily correct
and relevant parts. Much has been left by the roadside out of negligence or ideological bias”.
64
Segundo José D’Assunção Barros (2007, p. 203), o campo da História das Ideias é “(...) aquele em que são
examinadas as idéias relacionadas ao pensamento sistematizado de indivíduos específicos (por exemplo, os
tratados filosóficos, as teorias políticas escritas por grandes ou pequenos pensadores políticos, ou as
concepções estéticas dos artistas e literatos de diversos tipos e níveis)”.
43

esta que acreditamos resumir (de forma obviamente muito simplificada) o projeto
foucaultiano.
Esta proposta arqueológica de Michel Foucault encontrou ressonância em grande parte
das propostas de estudo da História que surgiram posteriormente, como no livro Em 1926:
vivendo no limite do tempo (no original, In 1926: living at the edge of time), do pesquisador
alemão Hans Ulrich Gumbrecht (1999)65; nesta obra, Gumbrecht propõe o uso de um método
basicamente descritivo, baseado na simultaneidade histórica, para a superação dos problemas
que as concepções pós-modernas do tempo e da História trazem ao pesquisador do campo:

O que podemos fazer com o nosso conhecimento sobre o passado, quando


abandonamos a esperança de aprender com a História, independente de meios e
custos? (...) A verdadeira questão por trás da questão de saber o que fazer com o
nosso conhecimento sobre o passado não é a questão – mais ou menos técnica – de
saber como escrever ou representar a História. É sobretudo a questão de saber o que
nós imaginamos que o passado “seja” (a questão sobre o passado como “matéria
crua”), antes mesmo de começarmos a pensar sobre formas possíveis de sua
representação. (GUMBRECHT, 1999, p. 11)

Desta forma, a proposta de Gumbrecht constitui-se como essencialmente não-


hermenêutica e, para Erick Felinto (2010, p. 11), “conecta-se intimamente com a adoção de
uma nova abordagem da temporalidade: a história não deve mais ser interpretada, mas sim
experimentada”. Para tanto, o autor alemão utiliza-se de conceitos como o de palco sem
atores (negação da sequencialidade e da construção de uma linha narrativa histórica por meio
da exclusão da visão de sujeitos como agentes históricos), ou a tentativa de construção de uma
experiência direta, primordialmente sensorial, do passado; para além dessas questões,
Gumbrecht propõe uma observação empírica da recorrência, ou seja, a identificação de
temas e interesses comuns que aparecem nas fontes históricas consultadas, estabelecendo
espaços de simultaneidade que não procuram estabelecer relações temporais sequenciais.
Esta é a construção de uma rede assimétrica de relações entre os objetos estudados,
que não só guarda similaridades com conceitos da Arqueologia do Saber de Foucault, mas
também com os estudos de Friedrich Kittler, que partiu para uma análise de redes de
discursos sobre as tecnologias do passado em livros como Grammophon Film Typewriter, de
1986, no qual o escritor alemão discorre sobre o desenvolvimento técnico e as questões
sociais que surgiram com o advento do gramofone, das imagens em movimento e da máquina
de escrever; para Kittler, a necessidade da elaboração de redes de discursos sociais – que

65
Mesmo que Gumbrecht (1999, p. 463) deixe claro que sua proposta metodológica diverge fortemente dos usos
que certas correntes de cunho hermenêutico, como o Novo Historicismo, fizeram das teorias foucaultianas.
44

fazem emergir conexões de poder, marcações, inscrições - se dá porque a análise do discurso


de Foucault foi encerrada justamente no princípio da introdução das tecnologias audiovisuais,
já que “a análise do discurso não pode ser aplicada a arquivos sonoros ou em pilhas de rolos
de filmes”66 (KITTLER, 1999, p.5). Se Sybille Krämer (2008, p. 97) evidencia que “as
abordagens históricas [de Kittler] transformam a análise do discurso no reflexo e no sintoma
de uma específica – e desde então já concluída - época midiática”67, John Durham Peters nos
lembra que o objetivo principal da obra kittleriana é “(...) usar a história para divulgar uma
reflexão filosófica sobre as técnicas de transmissão, armazenagem e processamento”68 (2010,
p. 12, grifos nossos)69. Por estas razões, Jussi Parikka considera ser correta a implicação de
Kittler como um arqueologista da mídia, já que o autor alemão adota de fato a teoria
foucaltiana, mas ressalta que

Kittler era inflexível em relação ao fato de que precisamos saber que o entendimento
de Foucault sobre o que governa nossa vida contemporânea – seus arquivos – não se
trata apenas de instruções e regras encontradas em livros e bibliotecas. Ao contrário,
ele vai ser encontrado nas redes tecnológicas de máquinas e instituições, nos padrões
educacionais e de treinamento: é no complexo científico-militar que pratica estas
formas de poder que as teoria humanística tradicional é incapaz de compreender ou
apreender, se continuar a falar sobre significados hermenêuticos ou se persistir em
operar com conceitos sociológicos tradicionais. 70 (PARIKKA, 2015, p. 2)

A partir da perspectiva tecnocêntrica de Friedrich Kittler, outros pesquisadores da


Comunicação se valeram da Arqueologia da Mídia para construir suas proposições; este é o
caso de Siegfried Zielinski, teórico ligado às teorias de mídia alemãs, que em sua obra
Archäologie der Medien: Zur Tiefenzeit des technischen Hörens und Sehens (traduzido para o
português como Arqueologia da mídia: em busca do tempo remoto das técnicas do ver e do
ouvir), publicada em 2002, propõe uma análise histórica dos processos comunicacionais que,
66
Livre tradução de: “Discourse analysis cannot be applied to sound archives or towers of film rolls”.
67
Livre tradução de: “His historical approach transforms discourse analysis into the reflex and symptom of a
specific – and since ended – media epoch”.
68
Livre tradução de: “(…) to use history to inform philosophical reflection about techniques of sending, saving,
and calculating”.
69
A tríade transmissão, armazenagem e processamento é o componente principal das teorias de Friedrich
Kittler, e podem também ser encontradas em outros autores ligados aos estudos de mídia de língua alemã,
como Niklas Luhmann e Vílem Flusser (cf. FELINTO; SANTAELLA, 2012).
70
Livre tradução de: “Kittler was adamant that we need to make sure that Foucault’s understanding of what
governs our contemporary life - its archive - is not only about the statements and rules found in books and
libraries. Instead, it is to be found in technological networks of machines and institutions, patterns of education
and drilling: in the scientific-engineering complex that practices such forms of power that the traditional
humanities theory is incapable of understanding or grasping if it continues to talk about hermeneutic meanings
or persists to operate with traditional sociological concepts”.
45

a exemplo de Foucault, Kittler e Gumbrecht, visa romper com a ideia de uma evolução linear
e totalizante. Porém, a proposta de Zielinski se diferencia das anteriores ao advogar a
constituição de uma variantologia da mídia (no original em alemão, Variantologie der
Medien), que tem como prerrogativa a busca de variações individuais dentro dos padrões de
recorrência encontrados em uma pesquisa arqueológica:

Em vez de procurar tendências obrigatórias, mídia principal ou pontos de fuga


imperativos, devemos ser capazes de descobrir variações individuais. Possivelmente
descobriremos fraturas ou pontos críticos nos planos históricos principais, que
fornecerão ideias úteis para percorrermos o labirinto do que está atualmente
estabelecido com firmeza. (ZIELINSKI, 2006, p. 24)

Para tanto, Zielinski se utiliza de um termo advindo dos estudos de Geologia moderna,
adaptado para os estudos midiáticos: a do tempo profundo da mídia, que busca quebrar a
noção da existência de pontos originários, genesíacos, dos processos e tecnologias da
Comunicação71:

A história da mídia não é o resultado do avanço previsível e necessário de um


aparato primitivo para um aparato complexo. O atual estado-da-arte não
necessariamente representa o melhor estado possível (...) As mídias são espaços de
ação para iniciativas construídas de conectar o que está separado. (ZIELINSKI,
2006, p. 23)

A escolha de Siegfried Zielinski por uma metáfora vinda da Geologia, que nos parece
curiosa em um primeiro entendimento, não se deu por acaso: a ideia de tempo profundo,
atribuída ao pesquisador escocês James Hutton, procura demonstrar que a formação dos
elementos que compõe o nosso planeta é muito anterior do que a própria existência humana
na Terra, rompendo assim com as tentativas teológicas de estabelecimento de uma data-
origem do planeta (cf. REPCHECK, 2003; ZIELINSKI, 2006). Com as descobertas
geológicas de Hutton, não apenas se alteram os estudos da cronologia da Terra, mas também a
nossa própria noção de tempo histórico, pois o pesquisador escocês advogava que “então, ao
que diz respeito à observação humana, este mundo não tem nem um começo e nem um
final”72 (HUTTON apud REPCHECK, 2003, p. 152-153); ou seja, dentro da História não é
possível a existência de uma gênesis porque nosso tempo, como seres humanos, é limitado
71
O prefácio feito por Timothy Druckrey para a edição estadunidense (2006) de Archäologie der Medien - que
infelizmente não foi incluído na edição brasileira – estabelece claras ligações entre a teoria de Zielinski e as
ideias anteriores de Foucault e Kittler, ressaltando que o tempo profundo da mídia não visa apenas rastrear
“reverberações”, ou seja, estudar efeitos históricos de ideias e aparatos, mas sim também situar estes efeitos
dos meios nos ambientes sociais de suas respectivas épocas.
72
Livre tradução de: “so that, with respect to human observation, this world has neither a beginning nor an end”.
46

aos nossos limites biológicos – só podemos ver e tentar entender o que o presente nos
apresenta. Em Charles Lyell, considerado o grande sucessor das ideias huttonianas,
encontramos uma frase que acreditamos resumir bem o projeto da Geologia como área
histórica do conhecimento:

Com estas pesquisas sobre o estado da Terra e de seus habitantes em períodos


anteriores, nós adquirimos um conhecimento mais perfeito da sua condição presente,
e visões mais amplas das leis que atualmente governam suas produções animadas e
inanimadas.73 (LYELL, 1830, p. 1)

Este uso de questões da Geologia para o entendimento de questões comunicacionais


também é proposto por Jussi Parikka em A Geology of Media (2015), que define sua
arqueologia das mídias como “um tipo de materialismo temporal e espacial da cultura das
mídias que é diferente daquele que se foca apenas em máquinas ou mesmo em redes de
tecnologias como agentes não-humanos”74 (2015, p. 3). Neste caso, de forma diferente do que
no tempo profundo da mídia de Zielinski, o campo geológico não é utilizado como uma mera
metáfora, já que o pesquisador finlandês está interessado em entender as formações
geológicas da Terra como integrantes dos processos comunicacionais em um sentido literal,
como partes físicas das materialidades dos meios; para tanto, Parikka afirma que “(...) as
ciências geológicas e a Astronomia já se abriram para a ideia de pensar a terra, a luz, o ar e o
tempo como mídias”75 (2015, p. 3), e que por isso podemos entender a economia política da
produção industrial e pós-industrial por meio das suas explorações. Acreditando que esse
enfoque literalmente ecológico, com o seu principal objetivo de desvendar como os recursos
naturais influenciam nossos modos de produção e consumo de mídias, seria um
aprofundamento das teorias de Friedrich Kittler sobre a tecnocultura, o pesquisador declara
que

Desta forma, a Geologia não trata apenas do solo, da crosta, das camadas que dão ao
nosso pé uma base para pisar (...) Ela se conecta com os amplos mundos de vida
geofísica que tanto dão suporte à vida orgânica quanto aos mundos tecnológicos de
transmissão, cálculo e armazenamento. A Geologia se torna uma forma de investigar
a materialidade do mundo midiático tecnológico. Ela se torna uma trajetória

73
Livre tradução de: “By these researches into the state of the earth and its inhabitants at former periods, we
acquire a more perfect knowledge of its present condition and more comprehensive views concerning the laws
now governing its animate and inanimate productions”.
74
Livre tradução de: “a different sort of temporal and spatial materialism of media culture than the one that
focuses solely on machines or even networks of technologies as nonhuman agencies”.
75
Livre tradução de: “(…) the geological sciences and astronomy have already opened up the idea of the earth,
light, air, and time as media”.
47

conceitual, uma intervenção criativa para a história cultural da contemporaneidade. 76


(PARIKKA, 2015, p. 4)

Nesta perspectiva de Jussi Parikka, nos parece haver a radicalização de uma ontologia
que questiona a centralidade do humano nas nossas relações com as mídias, questão esta que é
compartilhada pelas outras propostas de arqueologia da mídia: para o autor finlandês, não
basta apenas pensar nas condições materiais dos processos comunicacionais, como
normalmente é realizado, mas também devemos aproveitar as lições da Geologia para
aprofundar nosso entendimento do material como componentes físicos, partes constituintes
dos meios, e, consequentemente, das nossas relações com eles.
Portanto, nos voltando novamente para nossos interesses neste presente trabalho, ou
seja, a influência material dos jogos eletrônicos na história da computação - neste mesmo
sentido ampliado, anteriormente discutido, que perpassa a história, cultura, sociedades, formas
de construção do conhecimento, cognições etc. - podemos fazer então uma breve reflexão: se
a História perdeu seu poder normativo, como declara Gumbrecht (1999), e se já não mais
podemos buscar origens ou narrativas que nos apontem uma verdade histórica, por que há esta
necessidade de entendermos os meios de comunicação e seus contextos, usos e apropriações,
afetos e efeitos a partir da exposição do que eles já foram (ou deveriam ter sido), do que eles
afetaram? Se a História da Mídia nos mostra que os meios são heterogêneos e estão sempre
em constante transformação, conforme defendem Keibach e Stauff (2013), aqui temos um
motivo para o interesse dos pesquisadores de Comunicação pelas propostas arqueológicas (ou
até mesmo antropogeológicas): se em cada processo de transformação dos meios emergem
novos contextos, usos, materialidades e afetos, apropriações e problematizações, e se
entendemos esses processos como contínuos, para então entender os processos
comunicacionais do presente devemos buscar os processos anteriores nos quais eles se
apoiam, e que ainda estão “vivos”, de certa forma, nestes contextos e tecnologias; postura essa
que está inclusa no que Jay D. Bolter e Richard Grusin chamam de “redes de remediação”
(networks of remediation): que “cada [mídia] participa em uma rede de contextos técnicos,
sociais e econômicos; e que nisso constitui o meio como uma tecnologia”77 (BOLTER;
GRUSIN, 1999, p. 65).

76
Livre tradução de: ” Hence geology is not only about the soil, the crust, the layers that give our feet a ground
on which to stumble (…) It connects to the wider geophysical life worlds that support the organic life as much
as the technological worlds of transmission, calculation, and storage. Geology becomes a way to investigate
materiality of the techno- logical media world. It becomes a conceptual trajectory, a creative intervention to the
cultural history of the contemporary”.
77
Livre tradução de: “Each participates in a network of technical, social, and economic context; this constitutes
the medium as a technology”.
48

Consideramos estas ponderações acima extremamente importantes para o


desdobramento de um método baseado em uma arqueologia da mídia, especialmente ao
refletirmos sobre a documentação histórica a ser empregada. Os documentos que hoje
utilizamos se apresentam após décadas de análises e desdobramentos sobre eles, e os
dispositivos se tornam gastos, sujos, obsoletos78. Nossos objetos e fontes são inexoravelmente
alterados pela ação do tempo, e mesmo trabalhando apenas com fontes primárias, ou com os
dispositivos em sua forma original, nossos pensamentos sobre o meio pesquisado já não
estariam de certa forma “contaminados” por estas mudanças materiais e de ordem
ontológica/epistemológica? Por exemplo, tomemos este trecho da revista brasileira Micro
Sistemas, especializada em computação, em sua edição de janeiro de 1983 (FIGURA 4):

O que ainda não se sabe quando chegará ao Brasil são os video-games, verdadeiros
“toca-fitas” para jogos. São máquinas como o famoso Atari, muito específicas,
normalmente sem teclado, que apenas lêem fitas e executam os programas nelas
contidos, não permitindo o processamento de dados ou texto, como nos micros. Em
compensação, os video-games possuem fantásticos recursos sonoros e gráficos.
(MICRO SISTEMAS, 1983, p. 72, grifos nossos)

Partindo de uma perspectiva contemporânea dos games, esta declaração de que


videogames são como toca-fitas nos parece ingênua, até mesmo risível, pois sabemos que os
dois meios não compartilham atualmente características em comum, e os cassetes já até se
tornaram obsoletos para o uso cotidiano. Porém, aí nos valeria um rápido exercício de
exegese: comparar consoles de jogos eletrônicos com reprodutores de cassetes pode ter sido
uma estratégia muito inteligente na década de 1980, já que apresentou um dispositivo
provavelmente desconhecido para uma boa parte dos leitores da revista, fazendo uma analogia
com um dispositivo de função dedicada parecida: o processamento de dados (os consoles
reproduzem os algoritmos dos jogos, o toca-fitas reproduz dados sonoros ou digitais). Além
disso, podemos também lembrar que os cassetes eram a mídia primordial para a gravação,
reprodução e distribuição de dados computacionais no anos 1980, algo que certamente estava
no cotidiano dos leitores da Micro Sistemas. Contudo, toda esta contextualização partiu de um
exercício interpretativo que vai de encontro com as pretensões de uma arqueologia da mídia.
É evidente que, em meio à realização de explorações históricas, muitas vezes não podemos

78
Como exemplo, uma grande dificuldade para o estudo de retrogames, conforme veremos em capítulo
posterior, é a obtenção de consoles ainda em funcionamento, e adaptados para os aparelhos de televisão atuais
– muitos periféricos, como a pistola Light Phaser do console SEGA Master System, só podem ser utilizados
em televisores de tubo de raios catódicos. Com isso, grande parte da pesquisa retrogamer apenas pode ser feita
com o uso de emuladores, perdendo-se muito da experiência de jogo prevista por seus designers.
49

fugir da elaboração de comentários interpretativos; mesmo Gumbrecht, que propôs a tentativa


de redução da interpretação de dados, não escapa à tentação de tentar analisar certos
elementos de sua experiência direta, como quando o autor alemão discorre sobre os motivos
que ele acredita terem motivado a declaração de Jorge Luis Borges de que 1926 seria o ano da
degradação do estilo musical do tango (1999, p. 171).

Figura 4 - A matéria “Jogos em computador, um assunto muito sério

Fonte: Revista Micro Sistemas, n. 16, janeiro 1983.

Sempre olharemos para o passado com a mentalidade e as ferramentas metodológicas


do presente – e talvez seja esta a lição que podemos tomar tanto dos fundadores da Geologia
moderna quanto de Walter Benjamin, que nos alerta que o historiador “(...) capta a
50

configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior,
perfeitamente determinada” (BENJAMIN, 1985 ,p. 232) – mas também é por esta mesma
razão que um esforço de arqueologia da mídia deve evitar a mera interpretação dos dados que
nos são oferecidos a partir de uma observação empírica da recorrência, já que, mais uma vez
voltando a um modo foucaultiano, não estamos interessados diretamente no sentido que
emerge de nossas “escavações”, mas sim nas conexões e redes materiais e cognitivas que
perpassam e possuem influência nos nossos objetos. Portanto, acreditamos que uma história
da mídia deve ser primordialmente uma abordagem relacional, ou seja, que promove cadeias
de associações com um foco não-hermenêutico que possui diversos graus de adoção/interesse,
dentre os vários aspectos inerentes ao processo comunicacional (as materialidades, a
cognição, o imaginário, o social, o cultural, o político etc.). Assim, o foco dos estudos
comunicacionais estaria nessa constituição destas verdadeiras redes de relações, de caráter
particularmente emergente, não mais preocupadas com um sujeito totalizante, que nos
permitiria abordar a enorme complexidade do ato de comunicação, seja ao pensar nos
processos inerentes aos usos dos meios, ou ao estudar sua materialidade constituinte, com seu
foco não-hermenêutico maior ou menor, dependendo das filiações teóricas individuais – e
aqui, conforme citamos em momentos anteriores deste capítulo, nos deparamos com o
pensamento de várias escolas do pensamento comunicacional contemporâneo, como as
chamadas teorias de mídia alemãs, os software/platform studies, as diversas ramificações da
Escola de Toronto, os estudos de artemídia, os game studies, a sociologia dos textos, os
estudos cognitivos, a Transformática de MD Magno, a teoria Ator-Rede de Bruno Latour, e
até mesmo os estudos aplicados à Comunicação da semiótica pragmaticista de Charles S.
Peirce, entre outros. Não por acaso, todas essas correntes adotam, em diversos momentos,
métodos que apresentam pontos de aproximação, às propostas de arqueologia da mídia que
apresentamos anteriormente. É claro que devemos observar suas diferenças de constituição
epistemológica; neste caso, sabemos estas teorias partem de pontos de vista diferentes, e têm
objetivos bastante diversos, e podem também possuir diferentes filiações à correntes
filosóficas (especialmente em termos metafísicos). O que deve ser ressaltado que é todas estas
propostas parecem ter, em si, a opção por essa perspectiva relacional para desenvolverem seus
modos de operação teóricos.
Desta forma, acreditamos que abordar a história da computação a partir dos games é
uma escolha de abordagem metodológica que pressupõe uma intenção que pode nos parecer
oculta em um primeiro momento, mas que nos é revelada em sua (quase, podemos dizer)
totalidade quando aplicamos nosso olhar arqueológico – mas mais do que isso, relacional -
51

sobre o objeto escolhido. Nesta perspectiva, mesmo o espaço temporal escolhido para a coleta
de dados se mostra como apenas mais uma variável de análise: em uma proposta de história
da mídia de caráter relacional, o tempo pesquisado nos fornece indicações únicas sobre os
objetos e questões analisadas, mas o escopo temporal também se mostra como menos
significativo para os objetivos finais da pesquisa. Conforme vimos anteriormente em autores
ligado à Geologia como Hutton e Lyell, os objetos históricos se apresentam para o seu
pesquisador em seu estado presente, o que certamente provoca uma certa diluição das
fronteiras temporais do nosso escopo; assim, não analisamos o tempo passado, mas sim a
cadeia de relações produzidas pelo objeto, e o nosso relacionamento com ele, desde o tempo
passado até nosso tempo presente, e essas relações são de ordem material, sócio-econômica-
cultural, cognitiva, de imaginários, entre outras.
Portanto, esta é a razão pela qual acreditamos que esta abordagem que queremos
realizar, utilizando os jogos eletrônicos como base para uma história da computação como
mídia, é essencialmente voltada à definição de uma epistemologia da Comunicação, já que os
elementos que escolhemos para esta análise traduzem não só uma visão comunicacional sobre
estes objetos e fenômenos, mas também dizem muito sobre a nossa forma de pensar o próprio
campo da Comunicação. De forma marcante, se o “devir-arqueológico” nos diz que a escolha
dos objetos analisados também tem muito a falar sobre as nossas próprias posições
epistemológicas, ou seja, como preferimos organizar a construção do entendimento sobre um
determinado tema, tomemos então os games como esta base epistemológica de uma possível
história da interação humano-computador: o que realmente queremos demonstrar com esta
abordagem é o fato de que pensamos nos dispositivos digitais como verdadeiros objetos
midiáticos; queremos ressaltar a inerente “midialidade” da computação, especialmente
quando esta é aplicada no formato de jogos eletrônicos. Neste sentido, nossa postura
demonstra similaridades com as ideias de Wolfgang Ernst (2013), quando o autor alemão
afirma que a arqueologia da mídia é, em verdade, autorreflexiva, e

(...) tanto um método quanto uma estética da prática do criticismo de mídia, um tipo
de engenharia reversa epistemológica, e uma consciência dos momentos em que as
mídias em si, e não mais exclusivamente apenas os humanos, se tornam
“arqueólogas” ativas do conhecimento.79 (ERNST, 2013, p. 55)

79
Livre tradução de: “(...) is both a method and an aesthetics of practicing media criticism, a kind of
epistemological reverse engineering, and an awareness of moments when media themselves, not exclusively
humans anymore, become active ‘archaeologists’ of knowledge”.
52

Aqui, acreditamos que podemos fazer uma crítica ao modo que as conexões históricas
entre meios de comunicação e os objetos computacionais é normalmente tratada nestes dois
campos do conhecimento: o exemplo mais emblemático pode ser encontrado no livro
Software Takes Command, quando Lev Manovich define o dispositivo Dynabook, criado de
forma conceitual por Alan Kay e seus colaboradores (em especial, a cientista da computação
Adele Goldberg) durante os anos 1970, como a proposta-chave para o início de um
pensamento computacional como mídia. Para embasar esta afirmação, Manovich evoca o fato
de que Kay concebia o Dynabook como um meio de expressão pessoal, que permitiria a
realização de desenhos, pinturas, animações, composições musicais etc., com a interação
tornada possível pelas interfaces de interação humano-computador; o computador seria um
dispositivo que trabalha dentro de uma lógica de remediação80 (2013, p. 58-59). Esta
afirmação de Manovich está completamente de acordo com as ideias de Alan Kay e Adele
Goldberg, que no artigo “Personal Dynamic Media” (1977) defendem ser o computador uma
“metamídia” (metamedia), já que “(...) a habilidade de simular os detalhes de qualquer
modelo descritivo significa que o computador, visto em si como um meio, pode se tornar
qualquer outra mídia, se os métodos de incorporação e visualização forem suficientemente
bem fornecidos”81 (KAY; GOLDBERG, 1977, p. 31), e cuja principal qualidade é ser ativa,
respondendo à atividade dos usuários. De fato, não há como negar o pioneirismo desta linha
de pensamento, unindo áreas – Comunicação e as Ciências da Computação – que poderiam
parecer tão distantes nessa época, porém, acreditamos que Kay e seus colaboradores estavam
de acordo com desenvolvimentos que já emergiam na área computacional pelo menos desde
os anos 1960, especialmente a partir de reflexões sobre o computador como uma possível
ferramenta educacional; como exemplo, podemos citar o artigo “The role of computers in
instructional systems: past and future”, publicado por Fred A. Crowell e S. Carl Traegde em
1967, que define o computador como um “metassistema” (metasystem), “ou seja, um sistema
de alta ordem que possui as funções primárias de transmissão, armazenamento, recuperação
e utilização de informação que sejam relevantes para sistemas (atuais e concebíveis) em todos
os níveis de discurso”82 (1967, p. 419, grifos nossos), e um dos critérios definidos pelos

80
Manovich (2013, p. 58-59) faz questão de ressaltar que a remediação citada em Software Takes Command é
de fato o conceito criado por Jay D. Bolter e Richard Grusin em Remediation: a utilização de linguagens,
funções e práticas de meios anteriores em outros, criados posteriormente.
81
Livre tradução de: “(…) the ability to simulate the details of any descriptive model means that the computer,
viewed as a medium itself, can be all other media if the embedding and viewing methods are sufficiently well
provided”.
82
Livre tradução de: “i.e., a higher order system with primary functions of transmission, storage, retrieval and
utilization of information relevant to systems (actual and conceivable) at all levels of discourse”.
53

autores para essas utilizações computacionais seria o uso de recursos multimídia para
atividades educacionais. Outras referências aos dispositivos computacionais como mídias são
ainda anteriores, como em “Machines, Media and Meaning”, de Robert W. Wagner (1967) ou
em “New Applications of Computer Technologies for the Improvement of Instruction and
Learning” (1965 apud GOLDBERG, 1966). Graças aos esforços de vários pesquisadores, os
computadores já tinham sua potencialidade midiática vislumbrada por outros escritos, que
também tinham seu grau de importância para a área, bem antes dos trabalhos de Alan Kay;
porém, as pesquisas de Kay explicitaram ainda mais (e talvez com maior embasamento
teórico) essas conexões. Contudo, quando tomamos os jogos eletrônicos como nossos guias
pela história da HCI, percebemos que, se os games são de fato um processo comunicacional,
então as relações entre computação/comunicação acabam por ser mais anteriores – os jogos
eletrônicos de xadrez já eram comuns nas pesquisas de Inteligência Artificial desde os anos
1950, e o game espacial Spacewar!, criado por estudantes do MIT, era uma febre entre os
universitários estadunidenses desde 1962, como veremos posteriormente. Portanto, a partir
dessas ilações, acreditamos que temos motivos suficientes para afirmar que os games foram,
de fato, a proposta-chave para pensar o início destas perspectivas comunicacionais da história
da computação.
Neste ponto, gostaríamos de refletir sobre outra das questões apresentadas por
Wolfgang Ernst (2013), de clara inspiração nos trabalhos de Michel Foucault e Friedrich
Kittler: a ideia de que a arqueologia da mídia é também uma arquivologia da mídia;
afirmação esta que nos parece muito exata para explicar o caráter fundamentalmente
epistemológico desse método: o ato de arquivar implica em construir um sistema de
pensamento lógico individualizado que permite um acesso mais rápido e facilitado aos dados
armazenados, pois a construção de metadados é uma forma aplicada de epistemologia;
acreditamos que isto está descrito, mesmo que em uma forma seminal, no famoso artigo “As
We May Think”, conforme descrevemos anteriormente neste capítulo. Desta forma, é ainda
mais emblemático que uma exploração comunicacional do desenvolvimento da interação
humano-computador, realizada sob a guia dos jogos eletrônicos, se inicie por uma proposta
teórica (o Memex de Vannevar Bush) que pode ser contemporaneamente pensada como uma
proposta de arqueologia/arquivologia da mídia. Então, refinamos mais ainda nossa tentativa
de crítica a Lev Manovich: os games foram a primeira aplicação mídiatica da computação
efetivamente implementada, materializada no formato de software, mas quem primeiro pensou
os dispositivos computacionais a partir de uma visão comunicacional, ainda em potência, foi
Vannevar Bush, em “As We May Think”. Os games, que mais tarde se tornaram mídias por si
54

mesmos, conforme discutiremos no capítulo 2, foram uma demonstração do poder


comunicacional desta visão midiática de Bush, levando a computação a explorar seus limites,
mas será que os pioneiros dos jogos eletrônicos já tinham essa consciência? Ou podemos
agora navegar, até com certa facilidade, por essas cadeias de relações comunicacionais por
que a nossa organização de como pensamos a história da computação (e, principalmente, a
história dos games) nos traz esses dados, já que a arqueologia de mídia se refere tanto ao
objeto quanto ao método? Essas são perguntas que perpassam nossos esforços de pesquisa de
forma crucial.

1.3 A construção de uma história comunicacional para o estudo da HCI

A partir dessa contextualização – tanto das lacunas que pensamos existir na pesquisa
histórica da ligação entre os jogos eletrônicos e as teorias de interação humano-computador,
quanto das linhas de desenvolvimento de uma arqueologia da mídia – gostaríamos de traçar
uma metodologia comunicacional para o desenvolvimento de uma pesquisa abrangente sobre
a influência dos jogos eletrônicos na fase inicial dos estudos da interação humano-
computador, mais marcadamente no período entre 1945 (data de publicação de As We May
Think, que pode ser considerado o início dos estudos de interação humano-computador,
conforme discutimos no começo desse capítulo) e 1984 (lançamento do Apple Macintosh,
representando o começo da popularização das interfaces gráficas do usuário, e o
estabelecimento de um padrão comercial para a HCI). A escolha destas duas datas pode
parecer arbitrária, porém, acreditamos que estes foram os momentos que marcaram o início e
o final do período mais experimental da HCI, no qual foram desenvolvidas muitas das teorias
e tecnologias que se tornaram o padrão para a elaboração dos dispositivos digitais dos últimos
trinta anos, como os padrões de uso de interfaces físicas e o design de interfaces gráficas;
conforme nos alerta Siegfried Zielinski, em uma arqueologia da mídia

(...) encontraremos situações do passado em que as coisas e as condições ainda


estavam num estado de fluxo, quando as opções de desenvolvimento em diversas
direções ainda estavam muito abertas, quando o futuro era passível de ser concebido
como sustentador de diversas possibilidades em relação a soluções técnicas e
culturais para a construção de mundos de mídia. (ZIELINSKI, 2006, p. 27)
55

Portanto, buscando justamente retratar estes momentos de fluxo que definiram a HCI,
desenvolvemos a hipótese de que podemos encontrar uma influência ampla dos games no
desenvolvimento de três aspectos das tecnologias digitais como as conhecemos atualmente:
a) no desenvolvimento tecnológico e cognitivo: conforme demonstramos em
trabalhos anteriores (PERANI, 2012), as primeiras versões digitais de jogos, como os de
xadrez, ajudaram pesquisadores da computação a desenvolverem teorias sobre Inteligência
Artificial (IA) e, consequentemente, sobre lógica cognitiva; uma famosa frase atribuída ao
cientista soviético Alexander Kronrod resume toda a importância da implementação dos jogos
para a evolução da IA: “o xadrez é a drosófila da Inteligência Artificial”. Neste aspecto,
também podem ser estudadas questões referentes a interfaces físicas (as materialidades dos
sistemas) e interfaces gráficas, linguagens de programação etc. – ou seja, como os games
ajudaram a desenvolver as tecnologias computacionais, ao mesmo tempo em que auxiliaram
na consolidação de padrões de uso e design;
b) no desenvolvimento do mercado de dispositivos computacionais: relatos apontam
que, no início dos anos 1980, cerca de 60% do mercado de softwares no mundo era composto
por jogos eletrônicos (cf. COHEN, 1984; CAMPBELL-KELLY, 2003). Mesmo em países
menores, como a Nova Zelândia, ou em desenvolvimento, como o Brasil, os games ganhavam
espaços em anúncios e matérias de revistas especializadas como a melhor maneira de usar um
computador em casa (SWALWELL, 2010; MICRO SISTEMAS, 1983), ou eram utilizados
em programas de rádio e TV de países tão díspares como Holanda, Brasil, Reino Unido,
Finlândia, na ainda dividida Alemanha, Polônia, entre outros, como um dos conteúdos mais
populares em transmissões pelo ar utilizadas para a distribuição de software, muito antes da
popularização do acesso à Internet (sobre estas transmissões, ver KIRKPATRICK, 2007;
BLYTH, 2012);
c) nos aspectos culturais: a chamada cultura dos hackers, palavra que em seu início
denominava aficionados com paixão por alterar máquinas e descobrir todas as suas
funcionalidades, possui fortes ligações com a indústria dos games. Dois dos hackers que mais
tarde alcançaram fama e fortuna, os fundadores da Apple Steve Jobs e Steve Wozniak,
realizaram um dos seus primeiros trabalhos trabalhando em um jogo de arcade (o clássico
Breakout, lançado pela Atari em 1976) – Wozniak mais tarde referiu-se a Breakout como a
sua grande inspiração para a construção do Apple II, um dos primeiros microcomputadores a
ser vendido em larga escala: “muitas das funções do Apple II surgiram porque eu programei
Breakout para a Atari. Eu programei o seu hardware. Eu queria então escrever essas coisas
56

para os softwares”83 (WOZNIAK, 1986). Outras questões deste aspecto abrangem também os
usos e funções da computação nos anos 1970 e 1980, no início da popularização da
computação pessoal, e as influências culturais dos jogos eletrônicos como representantes
primordiais da cultura computacional para um público leigo; exemplos deste alcance cultural
dos games podem ser vistos em filmes como Tron (1982), músicas pop (o jogo Space
Invaders foi referenciado em várias canções no final dos anos 1970/começo dos anos 1980,
como Computer Game, lançado em 1978 pela banda japonesa Yellow Magic Orchestra), ou
até mesmo na abertura da telenovela brasileira Transas e Caretas (Globo, 1984).
Definidos estes três aspectos a serem buscados na documentação, pretendemos então
abranger um escopo maior de questões do que as abordagens históricas costumeiramente
adotadas pelos estudiosos da interação humano-computador. Contudo, não deixaremos de
lado, por exemplo, a descrição do trabalho de pioneiros como Vannevar Bush, Douglas
Engelbart e Alan Kay, mas consultaremos essas obras por meio da técnica do “cruzamento de
referências” (cross-referencing) sugerida por Henry Oinas-Kukkonen (2007) em From Bush
to Engelbart: “Slowly, Some Little Bells Were Ringing”: ao invés de pensarmos a história da
HCI como linear e sem vínculos entre os seus pioneiros e suas pesquisas, nossa perspectiva
tentará abordar conexões e influências mútuas em seus trabalhos – ou seja, adotando uma
perspectiva de história complexa (ou relacional) das mídias. Outras técnicas utilizadas são a
não-hierarquização das fontes consultadas, a tentativa de minimização dos comentários
interpretativos e, principalmente, a observação empírica da recorrência de Hans Ulrich
Gumbrecht, associada à busca de variações individuais de Siegfried Zielinski, tentando
identificar temas e interesses comuns que aparecem nas fontes históricas consultadas; em
nosso caso, identificar e descrever as formas em que a ligação entre os jogos eletrônicos e os
estudos de interação humano-computador são apresentadas. As fontes a serem consultadas são
primárias e secundárias: relatórios técnicos, livros, transcrição de depoimentos, artigos
acadêmicos e jornalísticos, documentários, além de uma tentativa de estudo da materialidade
dos dispositivos, descrevendo formas de interação, interfaces gráficas e físicas, e suas
possíveis semelhanças e ligações com os formatos de jogos eletrônicos – vale lembrar que
mesmo os consoles e arcades são dispositivos computacionais em si, apenas desenvolvidos
para o uso dedicado de games.
Desta forma, definimos o nosso espectro de pesquisa com as seguintes etapas:
1. Buscar bibliografia sobre videogames, e seus aspectos comunicacionais;

83
Livre tradução de: “A lot of the features of the Apple II went in because I had designed Breakout for Atari. I
had designed it in hardware. I wanted to write it in software now”.
57

2. Buscar fontes históricas primárias e secundárias – conforme descrevemos


anteriormente - sobre o desenvolvimento da HCI entre os anos de 1945 e 1984;
3. Nestas fontes históricas, buscar referências feitas aos jogos eletrônicos;
4. Realizar o cruzamento dos dados obtidos a partir das referências,
identificando possíveis recorrências de temas na ligação games x HCI;
5. A partir da recorrência de temas, descrever textualmente os dados
encontrados, buscando delinear o papel e a importância dos jogos eletrônicos
no desenvolvimento da interação humano-computador, partindo da hipótese de
que esta suposta influência dos games ocorre especialmente em aspectos
tecnológicos/cognitivos, mercadológicos e culturais, descritos anteriormente.

Assim, a adoção dessa metodologia para o estudo das possíveis ligações entre games e
as teorias e tecnologias de interação humano-computador pressupõe uma abordagem
comunicacional, portanto, relacional com os nossos objetos de pesquisa, em uma tentativa de
dar à história da HCI uma perspectiva que é diferente à adoção de um certo positivismo
encontrado até então nestes estudos, seguindo a sugestão de Siegfried Zielinski de que, em
uma arqueologia da mídia, “não procuremos o velho no novo, mas encontremos algo novo no
velho” (ZIELINSKI, 2006, p. 19). Afinal, se nossas premissas estiverem minimamente
corretas, entender como os games auxiliaram a delinear os métodos e ferramentas de interação
humano-computador pode nos ajudar a também compreender como nos relacionamos com as
Tecnologias da Informação e da Comunicação atualmente disponíveis, e as questões sociais,
filosóficas e culturais que surgem a partir destas interações humano-máquina.
58

2 POR UM LUGAR DOS GAMES NAS CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

Os estudos de games (game studies) ganham cada vez mais espaço nas pesquisas em
Ciências da Comunicação. Especialmente concentrados na área de Cibercultura, que
arregimenta autores interessados na reflexão sobre as tecnologias digitais, os game studies
fazem parte do cenário comunicacional brasileiro desde os anos 1990; conforme destacamos
em artigo anterior (PERANI, 2008), um dos primeiros registros de estudos brasileiros de
jogos eletrônicos é o artigo Videogame, escola e conto popular, de Luciano Biagio Toriello,
publicado na revista Comunicação & Educação, em abril de 1997. Nos anos 2000, grupos
pioneiros como o CS: Games, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e o
inativo Plataformas interativas e seus padrões sígnicos, da Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF), lideraram as pesquisas da área no Brasil, abrindo caminho para laboratórios
como o CiberCog - Comunicação, Entretenimento e Cognição, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj), criado em 2007 por Fátima Regis, o grupo de pesquisa com a maior
produção sobre games em congressos nacionais de Comunicação no período de 2005 a
201284.
Um indicador que consideramos interessante, embora informal, para avaliar a
crescente influência dos game studies no campo da Comunicação digital no Brasil é o número
de trabalhos sobre jogos publicados no Grupo de Trabalho (GT) Comunicação e Cibercultura
do Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em
Comunicação – Compós, considerado como um dos principais congressos da área. Em uma
busca85 pelos artigos publicados no GT Ciber em cinco de suas edições (2009 – 2013),
detectamos que, de cinquenta artigos apresentados neste período, apenas nove tratavam dos
games como seu objeto de estudo. Porém, cinco destes trabalhos foram apresentados na XXII
edição da Compós, realizada em junho de 2013 na cidade de Salvador, representando a
metade dos artigos aprovados neste ano – um considerável crescimento em relação aos anos
anteriores. Devemos também ponderar que, nos anos de 2014, 2015 e 2016, apenas dois
artigos sobre jogos eletrônicos foram selecionados para apresentação neste Grupo de
Trabalho, que, apesar de representar uma grande queda nas aprovações de artigos gamers,
mostra que este ainda é um tema que desperta interesse entre os pesquisadores da área. Esses

84
De acordo com os dados inferidos na pesquisa netnográfica de Leonardo Ferreira (2012).
85
Realizada na biblioteca de textos disponível no portal da Compós: www.compos.org.br/biblioteca.php. Os
textos buscados foram analisados a partir dos seus resumos.
59

dados apontados por esta nossa pesquisa são amparados por Suely Fragoso e colaboradores
(2015), com o artigo Um panorama dos estudos de games na área da Comunicação nos
últimos 15 anos, em ampla pesquisa empírica que levantou teses e dissertações sobre jogos
eletrônicos defendidas no país entre 2000 e 2014, e trabalhos apresentados nos congressos
Intercom, Compós e ABCiber, que concentram a maior parte dos artigos sobre comunicação
digital publicados no Brasil. Neste trabalho, Fragoso e colaboradores confirmam a queda de
publicações sobre games desde 2013, mas também apontam as Ciências da Comunicação
como campo privilegiado para a pesquisa do lúdico eletrônico no país.
Portanto, não é difícil perceber que os games vêm, mesmo que lentamente, garantindo
seu espaço entre os estudiosos da Comunicação, e se tornando um campo de estudo
primordial para o pensamento contemporâneo sobre a Cibercultura. Contudo, não é tarefa
fácil encontrar trabalhos que reflitam sobre os jogos eletrônicos como objetos
comunicacionais, e suas possíveis contribuições para o campo, já que os autores de game
studies no Brasil parecem preferir a realização de estudos de caso que utilizam os jogos
apenas para a investigação de hipóteses elaboradas com o auxílio de teorias advindas de
outros tópicos de interesse da área – esse é o caso de trabalhos como "Bens virtuais em social
games" (2011), de Rebeca Recuero Rebs, que investiga a construção social de bens nos social
games a partir das teorias de sociólogos como Pierre Bourdieu, Mike Featherstone e Anthony
Giddens, ou “A materialidade do jogar no Kinect: o terror ganha outras proporções” (2013),
de Alessandra Maia, no qual jogos de terror são analisados a partir de proposições de Hans
Ulrich Gumbrecht (produção de presença), J.J. Gibson (affordances) e Fátima Regis
(capacitação cognitiva na Cibercultura); artigos como “Gameplay x Playability: defining
concepts, tracing differences” (MELLO; PERANI, 2012), que procuram definições para
características próprias do estudo de jogos eletrônicos (neste caso, os conceitos de gameplay e
jogabilidade), parecem ainda ser uma minoria em nosso país; esta percepção é confirmada por
Suely Fragoso e colaboradores (2015), que assinalam as áreas de Semiótica e Publicidade
como primordiais para os estudos de jogos eletrônicos no país. Em trabalho anterior
(PERANI, 2008), já havíamos detectado essa falta de reflexividade da área de games no
Brasil, desenvolvendo a hipótese de que esta ausência de estudos epistemológicos e
ontológicos se dá pelo fato de que os game studies em terras tupiniquins ainda estão
fortemente vinculados às áreas de origem de seus pesquisadores (em especial, a Comunicação
e a Educação), o que torna estes jogos meros objetos de análise para fundamentarem questões
teóricas destes campos; na cena internacional do estudo de jogos eletrônicos, a área de game
studies já estaria plenamente constituída, com teorias voltadas para seus canais próprios de
60

divulgação de produção (congressos, revistas e handbooks, por exemplo) desde o ano de


200186.
A pergunta que realizamos há quase dez anos, “será que estamos a caminho do
estabelecimento dos game studies brasileiros, ou optaremos pela continuidade das pesquisas
em campos diversos?” (PERANI, 2008, p. 12), ainda prossegue em aberto, mas continuamos
a ressaltar a necessidade de buscar definições sobre os jogos eletrônicos, especialmente
quando observados como objetos de estudo das Ciências da Comunicação e da Cibercultura.
Assim, neste presente capítulo, procuraremos elementos que possam nos ajudar a definir um
possível lugar dos games na Comunicação, a partir de três questionamentos: a) afinal, o que
são os games? b) os jogos eletrônicos podem ser considerados como mídia? c) quais seriam as
contribuições do estudo de games para a área da Comunicação?

2.1 O que são os games?

O que é um jogo eletrônico? Atualmente, esta pergunta pode parecer simplista, já que
parecemos estar acostumados com a grande presença dos videogames em nosso cotidiano.
Para então responder a pergunta acima, devemos conhecer, primeiramente, a terminologia
utilizada em português para estes objetos culturais. No Brasil, são utilizadas as palavras jogos
eletrônicos e o anglicismo videogame (bem como a sua abreviação, game), e podemos
ressaltar que todos estes termos são empregados de forma genérica, sem que se faça a
distinção entre os três tipos de jogos eletrônicos mais comuns, que, segundo Sérgio Nesteriuk
Gallo (2002), são: os desenvolvidos para o uso em consoles caseiros; os jogos desenvolvidos
para o uso em computadores; e os arcades (mais conhecidos no Brasil como fliperamas),
máquinas computacionais dedicadas, desenvolvidas especificamente para o uso em ambientes
públicos. Apesar destas diferenças maquínicas, tornou-se comum a não-diferenciação dos
termos, “partindo do princípio que todas elas tiveram um princípio comum, e todas elas
utilizam um computador para produzir e processar seus jogos em estruturas hipermidiáticas
(...)” (GALLO, 2002, p. 78). Esta mesma perspectiva de Gallo é encontrada em autores como
Alexander Galloway, que define os games como: “(...) um objeto cultural, limitado pela

86
Ao escrever um editorial para a primeira revista científica dedicada aos games, a Game Studies, o pesquisador
norueguês Espen Aarseth (2001) definiu o ano de 2001 como o “marco zero” deste campo de estudos, pois a
revista, o primeiro congresso científico internacional da área e as primeiras disciplinas sobre jogos eletrônicos
em cursos de graduação surgiram neste período.
61

história e pela materialidade, constituindo-se de um dispositivo computacional eletrônico e


um jogo, simulado a partir de um software”87 (GALLOWAY, 2006, p. 1). O pesquisador
Francesco Alinovi (2011, p. 11) prefere destacar a palavra videogame (no original em italiano,
videogioco) para pensar as partes componentes do meio: videogame é vídeo + game/jogo.
Assim, o video representaria as tecnologias (principalmente as imagéticas) de hardware
envolvidas em um jogo eletrônico: o sistema de áudio e vídeo, o sistema de controle (que
possibilita a interação), o CPU e o sistema de armazenamento de dados do jogo; já o
game/jogo representaria o fluxo de informações que estão envolvidas em um jogo eletrônico,
o software desse sistema: estão compreendidas aí a experiência lúdica em si, o microuniverso
de suas regras, com seus modelos físicos, próprios e/ou simulados, e o entretenimento
produzido – ou seja, uma palavra se refere a parte maquínica do uso de um game, e a outra à
experiência humana de jogo, corroborando a ideia de Espen Aarseth (2001), que declara
serem os jogos eletrônicos tanto objetos quanto processos que exigem um “envolvimento
criativo” (creative involviment) por parte do seu usuário, o jogador.
Nestas definições de Gallo, Galloway e Alinovi, encontramos um ponto em comum:
todos estes autores parecem concordar que os games são implementações digitais de
atividades lúdicas, sejam elas pré-existentes no mundo “físico” (por exemplo, esportes, jogos
de tabuleiro ou brincadeiras infantis) ou criações originais de entretenimento digital, como os
jogos de plataforma88. Portanto, ao seguirmos esta linha de pensamento, podemos recorrer às
mesmas características dos jogos “convencionais” descritas pelos pesquisadores “clássicos”89
do lúdico como o historiador holandês Johan Huizinga (Homo Ludens, de 1938) e o sociólogo
francês Roger Callois (Les jeux et les hommes, publicado em 1958), pois estas também se
aplicariam aos games – esta é a visão de especialistas como Jesper Juul (2005), que busca
entender as semelhanças entre os jogos eletrônicos e as atividades lúdicas mais tradicionais
para desenvolver uma análise do que há de diferente entre esses fenômenos, e Franz Mäyra
(2008), que acredita que os game studies são partes integrantes de um processo histórico
maior, que evolui com o tempo, a partir de novas formas de jogo que vão sendo
desenvolvidas.

87
Livre tradução de: “(...) a cultural object, bound by history and materiality, consisting of an electronic
computational device and a game, simulated in software”.
88
Jogos de ação nos quais o jogador deve enfrentar obstáculos (muitas vezes em forma de plataforma – daí o
nome do gênero), usando o pulo como movimento principal. O exemplo mais conhecido de jogo de plataforma
é o clássico Super Mario Bros. (1985).
89
Conforme já explicitamos, Jesper Juul (2005) denomina os estudos do lúdico anteriores aos jogos eletrônicos
como “modelo clássico de jogo” (classic game model).
62

Assim, baseados em nossas pesquisas anteriores sobre a ontologia do lúdico (ver


SOARES, 2008), consideramos três elementos fundamentais para uma compreensão
contemporânea dos jogos:
a) Prazer: o prazer é componente essencial para o engajamento do jogador nas
possibilidades proporcionadas por estas atividades. Se o lúdico é uma atividade tão
arrebatadora, que pode provocar até mesmo mudanças de comportamentos e ideias (muitas
vezes necessárias para o início de um ambiente de jogo), muito se deve às sensações
prazerosas que são proporcionadas por ele; esta é uma característica fundamental a ser
explorada por aqueles que querem aproveitar os benefícios que as atividades lúdicas podem
proporcionar aos jogadores. Steven Johnson explica essa ligação do jogo com o prazer a partir
da neuroquímica do corpo humano, que possui um sistema de recompensas que nos faz buscar
sensações prazerosas, e o lúdico traz em si essas possibilidades:

No mundo do jogo, a recompensa está em todos os lugares (...) A maior parte do


trabalho crucial no projeto da interface do jogo gira em torno do fato de manter os
jogadores informados das recompensas potenciais disponíveis para eles e como, no
momento, essas recompensas são necessárias” (JOHNSON, 2005, p. 30)

b) Engenhosidade/transformação de ideias: em nossos estudos anteriores (SOARES,


2008; PERANI, 2013), vimos que matemáticos e filósofos estudiosos do lúdico salientavam
que o jogo seria um lugar de criações, no qual a mente humana estaria livre para
experimentações, para o crescimento de novas práticas e ideias; para G.W. Leibniz, a
matemática deveria se lançar à análise dos jogos de azar para estudar probabilidades, pois,
segundo o filósofo, “(...) a mente humana parece tirar mais vantagem dos jogos do que em
buscas mais sérias” (LEIBNIZ, 2006, p. 223). Acreditamos que, já que o lúdico precisa de
uma dimensão espaço-temporal diferente do cotidiano, envolvendo a adoção de outras regras
e formas de ação para o seu funcionamento, ele adquire então a possibilidade de se tornar um
espaço de engenhosidade, de criatividade. Não há limites para o que pode ser experimentado
em um jogo, e para as percepções de mundo que são construídas dentro dele.
c) Exploração: em diversos trabalhos anteriores (SOARES, 2008; REGIS; PERANI,
2009; MUSSA; PERANI, 2013) ressaltamos que devemos considerar a exploração como a
característica de jogo mais interessante para os estudiosos contemporâneos da área, que
demonstraria o lúdico em toda sua potencialidade. O pedagogo francês Gilles Brougère
(1999) explica que o lúdico é um ambiente de explorações e descobertas, atividades estas que
permitem a busca de informações sobre o meio, o que contribui para inúmeras aprendizagens;
63

assim, os jogos podem servir como formas de compreensão e domínio de uma dada
conjuntura, habilidades estas que posteriormente são aproveitadas para a produção de
situações distintas, diferentes das iniciais. Retomando a discussão anterior, lembramos que,
para Steven Johnson (2005), nosso instinto de exploração ressaltado pelas atividades lúdicas
vem da necessidade biológica de buscar coisas que nos são prazerosas – exploramos para
adquirir recompensas, e essas recompensas nos dão prazer, e nos fazem também aprender, de
forma colateral. Adotamos também o conceito de que a exploração em jogos eletrônicos é a
atividade de reconhecimento das regras de um determinado sistema computacional, por meio
do seu uso proativo. Explorar um ambiente virtual também envolve o emprego de suas
ferramentas (avatares, objetos do jogo menus, mapas etc.) em tarefas diversas, a partir do uso
das interfaces de utilização – joysticks ou sensores de movimentos, por exemplo - e a
elaboração de rotinas de utilização feitas pelo jogador: saber o que pode ser realizado,
descobrir quais os limites de manipulação da informação que o jogo oferece. Do mesmo
modo, é importante lembrar que este movimento só é permitido aos jogadores graças à
sensação de manipulação direta, ou de agência90, que fornece estas possibilidades de
“ciberatividade”91.
Estes três elementos que destacamos – prazer, engenhosidade, exploração – estão, ao
nosso ver, presentes na mais famosa explicação da pergunta “o que é um jogo”, elaborada por
Johan Huizinga, em sua obra Homo Ludens:

O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e


determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas,
mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de
um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida
quotidiana”. (HUIZINGA, 2004, 33, grifos nossos)

Na definição de Huizinga, nos interessamos especialmente pela frase “segundo regras


livremente consentidas”, pois acreditamos ser este um ponto-chave para entender o que são os
jogos, em todas as suas acepções e formatos. O desenho do “isolamento” do tempo e do
espaço realizado pela atividade lúdica se dá no momento da constituição de suas regras; a
partir destas diretrizes, necessariamente aceitas pelos jogadores, é que serão determinados

90
Segundo Janet H. Murray (2003, p. 127) agência (agency) é “(...) a capacidade gratificante de realizar ações
significativas e ver os resultados de nossas decisões e escolhas”.
91
Termo criado por Derrick de Kerckhove (1997) para denominar a movimentação dos usuários em ambientes
virtuais.
64

quais os espaços a serem utilizados, bem como a duração, as limitações e as linhas-mestras


das ações. De acordo com Steven Johnson,

E uma das coisas que tornam todos os jogos tão atraentes para nós é que eles têm
regras. Nos jogos tradicionais, como Banco Imobiliário ou xadrez, o divertido – a
brincadeira – é o que acontece quando você explora o espaço de possibilidades
definido pelas regras. Sem elas, você tem alguma coisa parecida com um mero teatro
de improviso, em que qualquer coisa pode acontecer em qualquer momento. As
regras dão aos jogos sua estrutura; e sem estrutura não há jogo... (JOHNSON, 2003,
p. 134)

Retomando a nossa discussão anterior, dos games são implementações de atividades


lúdicas em dispositivos computacionais, torna-se então fácil pensar os jogos eletrônicos como
softwares, e sabemos que para o funcionamento de qualquer software, é necessário
primeiramente definir seus princípios de ação, métodos e resultados esperados. Isto é feito por
meio de comandos lógicos, que constituem o algoritmo do programa; estes algoritmos são
regras utilizadas pelo software para o exercício das atividades pré-determinadas por seus
programadores. Segundo Janet H. Murray, “ser um cientista da computação é pensar em
termos de algoritmos e heurística, ou seja, identificar constantemente as regras exatas ou
gerais de funcionamento que descrevem qualquer processo...” (MURRAY, 2003, p. 78, grifos
nossos); é por sua capacidade de executar um conjunto de regras que Murray considera o
computador como um meio procedimental, ou seja, que possibilita um exercício interativo de
relacionamento do usuário/jogador com as possibilidades de uso/jogo pré-definidas pelo seu
criador:

Achamos os ambientes digitais interessantes não apenas porque eles exibem


comportamentos gerados a partir de regras, mas também porque podemos induzir o
seu comportamento. Eles reagem às informações que inserimos neles. (MURRAY,
2003, p. 80)

Desta forma, conforme declara Jesper Juul, “os jogos são uma interação entre as suas
regras algorítmicas e os jogadores humanos (...) Jogos são sistemas formais que oferecem
experiências informais”92 (JUUL, 2005, p. 120), e a ligação entre os dispositivos
computacionais e as atividades lúdicas, existente desde o início da história da interação
humano-computador (como vimos no primeiro capítulo), seria fruto da composição lógica
existente nestes dois tipos de sistemas:

92
Livre tradução de: “Games are an interaction between the algorithmic game rules and the human players (…)
Games are formal systems that provide informal experiences”.
65

Isto explica muito da afinidade entre os jogos e os computadores – e o fato de que


vários jogos não-eletrônicos de mais de mil anos de idade são facilmente
implementáveis em um programa computacional: o impulso em direção à
definibilidade das regras torna o jogo pronto para a implementação em uma
linguagem de programação 93. (JUUL, 2005, p. 38)

Portanto, se os jogos permitem a construção de uma experiência vivenciada de forma


diferente do dia-a-dia, a partir de uma “separação” espaço-temporal, esta experiência vai nos
trazer a necessidade de assimilação das regras de funcionamento desse universo paralelo
constituído nos domínios do jogo, ou seja, dos seus objetivos, histórias de fundo, ações
permitidas etc. – e esta dependência de um sistema formal é ainda mais marcante nos games,
já que a materialidade de um jogo eletrônico, a sua condição primeira de existência, está em
seu código de programação, que contém as informações que vão permitir a construção do
ambiente virtual do jogo e a interação do jogador com esta atividade lúdica digital.

2.2 Os games são um meio de comunicação?

Após esta breve (e certamente incompleta) definição do que é um jogo eletrônico,


podemos voltar as nossas atenções para a segunda pergunta que propusemos para tentar
encontrar um possível lugar destas atividades lúdicas na área comunicacional: afinal, o que
faz dos games um meio de comunicação? Para responder este questionamento, consideramos
essencial definir primeiro o que entendemos como mídia, já que não há um consenso entre os
pesquisadores da área – a diversidade de correntes e métodos de abordagem existentes nas
Ciências da Comunicação praticamente impossibilita a criação de um conceito unificado,
assim como também há uma “multiplicidade de sentidos” na própria visão do que é a
comunicação em si (cf. MATTELART; MATTELART, 2001, p. 9); para Muniz Sodré
(2001), o objeto da Comunicação se apresenta vago, indistinto em todas as atividades teóricas
do campo.
Assim, acreditamos que essa indefinição inerente aos estudos comunicacionais se
apresenta também na definição de conceitos como o de mídia. Para o pesquisador brasileiro
Luiz Martino (2000, p. 107), a definição do que são os meios de comunicação é habitualmente
elaborada em três planos de análise: o plano tecnicista, que trata os meios como suportes
93
Livre tradução de: “This explains some of the affinity between games and computers – and the fact that a
several thousand-year-old-non-electronic game is easily implementable in a computer program: The drive
toward definiteness in the rules makes the game ripe for implementation in a programming language”.
66

físicos, o que implica no uso de estudos de ciências exatas e naturais como auxiliares; o plano
das instituições, que observa as mídias a partir de uma “cadeia humana” da produção de
trabalho, de gestão e elaboração de informações; e o plano do aparelho, que vê o dispositivo
como uma interface entre a informação e o ser humano. Pensando a partir destas
demarcações, podemos estabelecer que as definições de mídia habitualmente construídas por
pesquisadores interessados nas tecnologias midiáticas, como Jonathan Sterne (2007, p. 17) e
sua afirmação de que “se você pode chamar algo de mídia, então ela tem uma infraestrutura
física”94, acabam sendo tecnicistas, ecoando a declaração kittleriana de que

(...) fica claro, primeiramente, que todas as mídias tecnológicas vão armazenar ou
transmitir, ou processar sinais, e, segundo, que o computador (teoricamente desde
1936, e na prática desde a II Guerra Mundial) é o único meio que combina estas três
funções – armazenamento, transmissão e processamento 95. (KITTLER, 2010, p. 26,
grifos nossos)

Já autores ligados aos Estudos Culturais, preocupados em explicitar as conexões entre


comunicação, sociedade e cultura, tenderiam a adotar uma perspectiva mais institucional
sobre as mídias, conforme explicita Raymond Williams: (...) entendo por meios de
comunicação as instituições e formas em que se transmitem e se recebem as ideias, as
informações e as formas de atuação”96 (WILLIAMS, 1978, p. 15). Porém, mais complicado
seria demarcar quais correntes das teorias comunicacionais estariam interessadas no plano do
aparelho, já que poderíamos incluir nesta perspectiva (dos meios como interfaces) autores que
trabalham com abordagens teóricas diversas, incluindo aqui pensadores como Vilém Flusser e
a sua própria noção de aparelho97, ou mesmo as definições de inspiração mcluhiana, como a
de Jay D. Bolter e Richard Grusin, que explicam: ”Nós oferecemos esta definição simples: um
meio é aquilo que faz a remediação. É aquilo que apropria as técnicas, formas e a
significância social de outra mídia e tenta rivaliza-las ou remodela-las em nome do real”98

94
Livre tradução de: “If you can call something a medium, then it has a physical infrastructure”.
95
Livre tradução de: “(...) it is made clear first that all technical media either store, transmit, or process signals
and second that the computer (in theory since 1936, in practice since the Second World War) is the only
medium that combines these three functions – storage, transmission, and processing”.
96
Livre tradução de: “(...) entiendo por medias de comunicación las instituiciones y formas em que se
transmitem y se reciben las informaciones y las actitudes”.
97
Segundo Anke Finger, Rainer Guldin e Gustavo Bernardo (2011), Flusser sempre buscava entender uma
dimensão intersubjetiva dos meios de comunicação – como a mídia altera o nosso estar no mundo.
98
Livre tradução de: “We offer this simple definition: a medium is that which remediates. It is that which
appropriates the techniques, forms, and social significance of other media and attempts to rival or refashion
them in the name of real”.
67

(BOLTER; GRUSIN, 1998, p. 65). A perspectiva pragmaticista peirceana de Lucia Santaella,


que tem seu foco nas semioses99 realizadas a partir dos meios, também poderia ser incluída
neste plano de interface, já que a pesquisadora brasileira declara:

Ora, mídias são meios, e meios, como o próprio nome diz, são simplesmente meios,
isto é suportes materiais, canais físicos, nos quais as linguagens se corporificam e
através dos quais transitam. Por isso mesmo o veículo, meio ou mídia de
comunicação é o componente mais superficial, no sentido de ser aquele que primeiro
aparece no processo comunicativo. (SANTAELLA, 2003, p. 25)

Desta forma, ao refletirmos sobre definições do termo mídia, procuramos abraçar a


perspectiva de que esse é um conceito complexo, cheio de nuances e pontos de vista
possíveis; assim, nos identificamos mais com noções sobre os meios de comunicação que não
procuram estabelecer uma acepção rigidamente demarcada, como os aspectos midiáticos
levantados por Denis McQuail em Mass Communication Theory:

Na história das mídias de massa, nós lidamos com quatro elementos principais: a
tecnologia em si; os contextos políticos, sociais, econômicos e culturais de uma
sociedade; o conjunto das atividades, funções ou necessidades; e as pessoas,
especialmente quando agregados em grupos, classes ou por interesses comuns. Estes
elementos vêm interagindo em diferentes formas e com ordens diferentes de
primazia para diferentes meios, às vezes com um parecendo ser a força-motriz ou o
fator preponderante, e às vezes outros assumindo esse papel 100. (MCQUAIL, 1983,
p. 19)

Voltando novamente nossas atenções para os jogos eletrônicos, podemos perceber que
há praticamente um consenso entre a comunidade de game studies que estas atividades lúdicas
digitais seriam meios de comunicação (por exemplo, em NEWMAN, 2004; APPERLEY,
2010; COSTIKYAN, 2002). Espen Aarseth (2001) chega a afirmar que os games não são
apenas uma única mídia, mas várias mídias diferentes, e esse é o argumento que o autor
norueguês utiliza para defender a constituição de um campo próprio para o estudo deste tipo
de jogos. Utilizando, então, as tipologias de mídia de Denis McQuail, podemos explorar quais
elementos realmente teriam a capacidade de definirem os games como um meio de
comunicação.

99
A semiose (semiosis) é um termo criado por Charles S. Peirce para definir o processo de significação que
ocorre em uma mente interpretante (cf. PIMENTA, 2006).
100
Livre tradução de: “In the history of mass media we deal with four main elements: a technology; the political,
social, economic and cultural situation of a society; a set of activities, functions or needs; people – especially
as formed into groups, classes or interests. These have interacted in different ways and with different orders of
primacy for different media, with sometimes one seeming to be the driving force or precipitating factor,
sometimes another”.
68

2.2.1 Tecnologia

Se pensarmos a materialidade de um game como sendo unicamente o seu dispositivo


físico, apenas as máquinas dedicadas (neste caso, os consoles e fliperamas) poderiam ser
considerados um meio de comunicação - as novas modalidades de jogos, que são distribuídos
digitalmente, não possuem suportes físicos, e assim não poderiam ser considerados como uma
mídia. Porém, quando anteriormente respondemos a pergunta o que são os games?,
construímos o entendimento que estas são atividades lúdicas implementadas de forma digital,
a partir de regras codificadas em algoritmos; ou seja, o suporte físico (consoles, cartuchos,
CDs/DVDs etc.) não é tão importante, já que o verdadeiro suporte material de um game está
nas linhas de programação que compõem as atividades e o mundo do jogo. Assim, podemos
também nos lembrar da afirmação de Friedrich Kittler, em There is no software (1997), de
que qualquer software não existe se não considerarmos seu código como sua parte material –
o game existe por si só porque está codificado, e esse código é plenamente utilizável em
qualquer plataforma digital. Então, mesmo que considerado como apenas mais um dos
produtos dos meios digitais, dependente de formas computacionais para a sua veiculação, os
games seriam um meio de comunicação se pensados exclusivamente por sua tecnologia, pois
possuem sua materialidade nos códigos que vão armazenar, transmitir e processar suas
informações.

2.2.2 Contextos e pessoas

Sabemos que os games são um dos produtos de entretenimento mais rentáveis do


mundo, com um mercado próprio e consolidado – a estimativa para o ano de 2016 é que o
mercado de jogos eletrônicos movimente cerca de 86 bilhões de dólares em todo o mundo (cf.
SEBRAE, 2014); em pesquisas anteriores (PERANI, 2012) descrevemos como os games
foram um dos principais responsáveis pela popularização da computação pessoal nos anos
1970 e 1980, logo no início da exploração comercial destes dispositivos. Porém, para além
deste evidente sucesso comercial dos jogos eletrônicos, estes produtos passaram a influenciar
outras produções midiáticas: games são usados como elementos de produções transmidiáticas
69

(por exemplo, na trilogia Matrix, 1999-2003), como inspiração de roteiro (o filme Lola Rennt,
de 1998) e visual (Scott Pilgrim vs. the World, 2010), ou em obras que usam personagens de
games (Angry Birds Toons, de 2013, desenho animado baseado nos jogos de mesmo nome). O
personagem Mario, criado pela Nintendo nos anos 1980, se tornou um grande símbolo do
entretenimento contemporâneo, ganhando até um bloco de carnaval de rua próprio 101, e
autores como David Sheff (1999) e James Newman (2004) chegam a afirmar que, no final da
década de 1980 e início da década de 1990, Mario era mais conhecido pelas crianças norte-
americanas do que o clássico personagem Mickey Mouse, de Walt Disney, mostrando o
impacto cultural que os games passaram a ter após o seu surgimento.
Além de influenciarem o mercado e as produções culturais em todo o mundo, os
games também ganham destaque cada vez maior nas esferas políticas. Na década de 1990,
jogos como o polêmico Carmageddon102 (1997) geraram discussões em órgãos
governamentais de diversos países sobre a representação de ações gráficas de violência em
formatos de entretenimento; outra polêmica aconteceu em março de 2013, quando Marta
Suplicy, então ministra de Estado da Cultura do Brasil, declarou publicamente que não
considerava games como objetos culturais, gerando protestos entre a comunidade gamer
brasileira. Contudo, a visão dos políticos sobre os jogos eletrônicos não é de toda forma
negativa: no início dos anos 2000, campanhas eleitorais nos Estados Unidos e no Uruguai
utilizaram games como plataformas de divulgação de propostas e atração de novos eleitores
(cf. PIMENTA; PERANI, 2006).
Portanto, se os games, como objetos de interesse socioeconômico, político e cultural,
são tão influentes em várias esferas das culturas e sociedades humanas, estes seriam indícios
de que estamos sim tratando de um meio de comunicação – já que estes são padrões de análise
comumente utilizados para os estudos de outras mídias.

2.2.3 Atividades e funções

101
Desde 2012, o Super Mario Bloco sai pelas ruas do bairro carioca de Santa Teresa durante o carnaval. Os
músicos da banda, que puxa os foliões, se vestem como personagens dos jogos do bigodudo encanador, e todas
as músicas tocadas são de fases da série Mario.
102
Neste game, o jogador ganhava pontos apenas ao atropelar transeuntes dispersos no mundo do jogo, e os
atropelamentos mostravam detalhes da mutilação destes corpos digitalizados.
70

Apenas a categorização dos games como produtos de entretenimento já serviria para


compará-los com mídias como o cinema e a televisão, porém, podemos acrescentar mais
camadas de similaridades, ao pensarmos os jogos eletrônicos como formatos narrativos, por
exemplo. Em verdade, pesquisadores como Alexander Galloway (2006), Franz Mäyrä (2008)
e Tom Apperley (2010) afirmam que a principal diferença entre os games e outras formas de
entretenimento consideradas como mídias é que os jogos eletrônicos são formatos interativos
que exigem a participação ativa para a sua fruição; para Galloway, não são apenas as etapas
de produção de um game que utilizam o trabalho humano “ativo”: a recepção de um jogo
também deve ser visto como uma ação, pois, “se fotografias são imagens, e filmes são
imagens em movimento, então os videogames são ações (...) Sem a participação ativa dos
jogadores e das máquinas, os videogames vão ser apenas códigos computacionais estáticos”103
(GALLOWAY, 2006, p.2). Esta participação ativa do usuário/jogador sempre foi a função
principal das atividades lúdicas digitais, previstas até mesmo na descrição formal que Ralph
Baer, inventor dos consoles de videogame, fez de sua invenção, em patente concedida em
abril de 1973:

Até então, aparelhos receptores de TV coloridos e em p&b vêm sendo usados pelos
usuários domésticos e outros mais apenas como dispositivos passivos; ou seja, o
receptor de TV é utilizado apenas para mostrar a programação originada por um
estúdio. A audiência limita-se apenas em selecionar a programação disponível para
ser assistida, e ela não é participante no sentido de poder controlar ou influenciar ou
acrescentar coisas à apresentação mostrada na tela do receptor. Um receptor comum
é então usado com um equipamento auxiliar para prover uma forma ativa de
entretenimento caseiro104. (BAER, 1973, p. 13)

Estas características únicas dos games, advindas da sua forma computacional (sua
tecnologia), como vimos no capítulo anterior, vão diferenciá-los das mídias de entretenimento
anteriores, e os tornam processos comunicacionais únicos, garantindo sua definição como
uma mídia.
Assim, ao avaliarmos os jogos eletrônicos a partir dos aspectos utilizados para o
estudo de mídia propostos por Denis McQuail, podemos dizer que os games podem
verdadeiramente ser meios de comunicação, já que possuem atividades e funções únicas

103
Livre tradução de: “If photographs are images, and films are moving images, then video games are actions
(…) Without the active participation of players and machines, video games exist only as static computer code”.
104
Livre tradução de: “Heretofore color and monochrome receivers have been used by the home and viewers
only as passive devices; i.e. the receiver is used only as a display means for programming originating at a
studio. The viewer is limited to selecting the presentations available for viewing and he is not a participant to
the extent that he can control or influence the nature of, or add to the presentation displayed on the receiver
screen. A standard receiver is employed with auxiliary equipment to provide an active form of home
entertainment”.
71

(entretenimento “ativo”), são cada vez mais influentes nas culturas e sociedades de todo o
mundo, e possuem um suporte físico que lhes confere sua materialidade midiática (os seus
códigos de programação).

2.3 E quais seriam as contribuições do estudo de games para a área de Comunicação?

Respondidos os dois primeiros questionamentos, e a partir de um entendimento mais


ampliado sobre os jogos eletrônicos e sua inerente “midialidade”, podemos passar para a
nossa terceira e última pergunta: como os games podem fazer contribuições para as Ciências
da Comunicação, especialmente para o campo da Cibercultura? Segundo o pesquisador
português Luís Filipe B. Teixeira (2007, p. 5), os games podem ser estudados em diversas
disciplinas da área, contribuindo para as teorias da Comunicação e os estudos comparativos
dos meios, e também para as genealogias de mídia, os estudos de cibertextualidades e de
Semiótica; porém, conforme podemos observar em diversos artigos da área, a possível
colaboração dos games à Comunicação pode ser ampliada para vários outros métodos, bem
como outras correntes teóricas:
- Estudos cognitivos: seguindo a trilha já desbravada pelos estudos clássicos do lúdico,
diversos autores trabalham com as possibilidades de desenvolvimento cognitivo, que os
videogames contêm em si, como novos modelos para o aperfeiçoamento da aprendizagem
humana. Para tanto, procura-se determinar certas características “mentais” destas atividades
lúdicas digitais, passíveis de utilização em estudos posteriores, como a “sondagem” e a
“investigação telescópica” (JOHNSON, 2005), que envolvem o desenvolvimento de
habilidades lógicas nos jogadores, ou mesmo a definição de “princípios de aprendizagem”
disponíveis nos games, que exigem a capacidade de apreensão de diversos tipos de linguagens
verbais e não-verbais (GEE, 2007); nesta modalidade, também se encaixam estudos sobre
percepção visual e auditiva, interação corpórea, espacialidades, affordances e afetos (por
exemplo, MAIA, 2013; PERANI; MAIA, 2012; MUSSA; PERANI, 2013). No Brasil, esta
abordagem é adotada por pesquisadores como Fátima Regis (2008, 2010), que define cinco
categorias de possíveis capacitações e habilidades cognitivas desenvolvidas pelos jogadores a
partir das atividades lúdicas digitais: a Cibertextualidade (conjunto de características das
tecnologias midiáticas que, ao possibilitarem a hibridação de meios, linguagens e
textualidades, afetam o modo de produção dos textos, a sua leitura e a participação do leitor),
72

a Logicidade (características que aprimoram o caráter lógico, tais como tomada de decisão,
reconhecimento de padrões, atividades associativas), a Criatividade (estímulo à intervenção
nos produtos por parte dos usuários, seja pela criação de obras inéditas, seja pela criação por
meio de mixagens, fanfictions, paródias, mashups), a Sensorialidade (atividades que desafiam
nossas habilidades sensoriais e perceptivas, táteis e imersivas), e a Sociabilidade (estimulo à
formação de comunidades de gosto e/ou ao esquadrinhamento de diversas mídias em busca da
informação desejada, para buscar, produzir e partilhar informações adicionais sobre seus
produtos culturais favoritos). Uma outra possibilidade de trabalho com as questões cognitivas
nos jogos eletrônicos nos é dada pela pesquisa de sensorialidades de Vinícius Andrade
Pereira, que pensa em uma

(...) análise de novas formas de interações sociais e de entretenimento que se


efetivam através de arranjos e ambientes midiáticos, sistemas complexos de
comunicação que espelham a cultura dos gamers (jogadores de games) e parecem
alterar, de alguma forma, o campo sensório-perceptivo humano. (PEREIRA, 2008,
p. 4)
.
- Narrativa: os estudos de narrativa são tradicionais na área de Comunicação, podendo
ser remontados desde autores como Walter Benjamin; portanto, não nos causa surpresa que
muitos autores do campo recorram aos games para analisar as possibilidades que estes meios
possuem para desenvolver histórias interativas e seus aspectos comunicacionais inerentes -
este é o mote de trabalhos que inauguraram essa corrente de estudos, como o livro Cybertext:
Perspectives on Ergodic Literature (1997), de Espen Aarseth, que cunhou o termo cibertexto
(cybertext) para definir a organização dos elementos textuais de uma atividade interativa, que
exigem atenção e exploração ativa por parte do jogador/leitor. Outro clássico da área é Hamlet
on the Holodeck, escrito pela estadunidense Janet H. Murray, que afirma:

Um jogo é um tipo de narração abstrata que se parece com o universo da experiência


cotidiana, mas condensa essa última a fim de aumentar o interesse. Todo jogo,
eletrônico ou não, pode ser vivenciado como um drama simbólico. Qualquer que
seja o conteúdo do jogo, qualquer que seja o nosso papel dentro dele, somos sempre
os protagonistas da ação simbólica... (MURRAY, 2003, p. 140)

De acordo com Jesper Juul (2005), estes estudos narratológicos partem, em geral, da
premissa de que a narrativa é a maneira primária de construir e organizar o sentido que damos
ao mundo, podendo ser aplicada em diversas situações, como nos discursos científicos, na
ideologia de uma nação e no entendimento das experiências de vida particulares. Porém,
autores narratologistas como Marie-Lauren Ryan (2001; 2006) afirmam estarem mais
73

interessados nas propriedades imersivas da narrativa, que seriam ainda mais potencializadas
pelos meios digitais; para tanto, a autora afirma que o foco da sua pesquisa está em “(...)
estruturas de escolha (arquitetura textual), modos de envolvimento do usuário (tipos de
interatividade) e a combinação destes parâmetros, que preservam a integridade do sentido da
narrativa”105 (RYAN, 2006, p. 100). Em nosso país, trabalhos de pesquisadores como Renata
Gomes (2005), Thiago Falcão (2010), Gustavo Magliano Audi (2012) e Suely Fragoso (2013)
adotam esta perspectiva para a análise dos games como formas de comunicação e
entretenimento, buscando a associação entre narrativa, imersão e outros aspectos presentes
nos jogos eletrônicos, como gameplay, espacialidade e affordances.
- Interações sociais: Se nos voltarmos aos modelos clássicos do lúdico, vamos
perceber que praticamente todos os jogos e brincadeiras possuem um certo potencial
interacional em suas atividades (cf. HUIZINGA, 2004; BROUGÈRE, 1999), e isso é
transposto, como todas as outras características lúdicas, para a implementação no formato de
games digitais. Dentro da área de game studies, estes tipo de pesquisa é originário dos estudos
de alteridade, sociabilidade e economia nos MUDs106, realizados a partir dos anos 1980/1990;
a psicóloga estadunidense Sherry Turkle foi uma autora pioneira nestes estudos de
sociabilidade, se interessando principalmente pela construção de subjetividades a partir da
interação nos MUDs:

Nos meus mundos mediados por computador, o eu é múltiplo, fluido, e constituído a


partir da interação com as conexões da máquina; ele é feito e transformado pela
linguagem (...) No mundo maquinalmente gerado dos MUDs, encontro personagens
que me colocam em um novo relacionamento com minha própria identidade. 107
(TURKLE, 1997, p. 15)

Nos anos 2000, os MUDs deram lugar aos MMORPGs108 e aos jogos pervasivos109,
além das atividades lúdicas em ambientes de simulação (especialmente em Second Life),

105
Livre tradução de: “(…) the structures of choice (textual architecture), the modes of user involvement (types
of interactivity), and the combinations of these parameters that preserve the integrity of narrative meaning”.
106
Os MUDs (Multi-User Dungeons) são jogos de base textual, populares em usuários de redes computacionais
nos anos 1970 e 1980, que permitem a interação social em espaços virtuais.
107
Livre tradução de: “In my computer-mediated worlds, the self is multiple, fluid, and constituted in interaction
with machine connections; it is made and transformed by language (…) And in the machine-generated world
of MUDs, I meet characters who put me in a new relationship with my own identity”.
108
Sigla de Massively Multiplayer Online Role-Playing Game, jogos online nos quais o jogador assume papeis e
comportamentos de um personagem, e realiza aventuras com a ajuda de outros usuários.
109
Jogos eletrônicos que também usam elementos e/ou realizam ações no mundo “físico”; para Benford,
Magerkurth e Ljungstrand (2005, p. 54), os jogos pervasivos libertam o jogador das constrições do seu
74

como os objetos privilegiados de estudo de interações sociais em ambientes digitais lúdicos.


Análises das formas de sociabilidade e do surgimento de microeconomias são encontradas em
muitos trabalhos da área (por exemplo, em BAINBRIDGE, 2010; CASTRONOVA, 2005),
assim como a descrição das atividades diárias dos habitantes do Second Life foi coberta por
livros de caráter jornalístico, mais voltados para as histórias de interesse humano das
interações sociais nos ambientes virtuais (ver AU, 2008). Na área brasileira de Comunicação,
pesquisadores como Rebeca Recuero Rebs (2011) se interessam pelas possibilidades de trocas
informacionais, pelas construções identitárias e pelos agrupamentos de pessoas por afinidades
seletivas resultantes da interação dos jogadores durante os jogos online; já Luiz Adolfo
Andrade (2013) e Thaiane Moreira de Oliveira (2013) destacam as possibilidades
educacionais, imersivas e representacionais dos jogos pervasivos, enquanto Dimas Tadeu de
Lorena Filho (2011) se concentra em entender a linguagem sígnica das construções espaciais
do Second Life a partir da Semiótica de Charles S. Peirce.
Destacamos estas possibilidades de contribuição dos games às teorias e métodos
comunicacionais apenas para um efeito ilustrativo das possibilidades de pesquisa que este
objeto apresenta – porém, acreditamos na obviedade da compreensão de que muitos outros
temas possam ser estudados a partir dos jogos eletrônicos, como mercado e pirataria dos
meios (MESSIAS, 2013), história das mídias digitais (PERANI, 2012), ativismo lúdico
(WENZEL; LORENA FILHO, 2006) ou até mesmo formas transmidiáticas de elaboração e
transmissão de conteúdo (FALCÃO, 2013).

2.4 Retrogaming: games, história, Comunicação

Era o verão de 1991/1992 em uma cidade do interior paulista, e eu me encontrava


fascinada com o videogame que havia ganhado há dois meses: um Nintendo Game Boy,
console de 8-bit que era o estado da arte da computação portátil daquele final de século, com
uma tela de 2,6 polegadas, capaz de exibir quatro tons de cinza, uma saída de som estéreo
disponível para quem se atrevia a usar fones de ouvido para jogar, dois botões de ação (A e

dispositivo digital, possibilitando uma experiência se que une ao mundo. Dentre as diversas modalidades
pervasivas, estão inclusos os Alternate Reality Games (ARGs), os location-aware games, os jogos de realidade
aumentada, urbanos, entre outros.
75

B) e um direcional claramente copiado do NES, seu “irmão mais velho”110. Mesmo sendo
uma fã declarada dos jogos da rival Sega, e dona orgulhosa do primeiro Master System111 da
minha cidade, cuja superioridade técnica era alardeada em todas as revistas especializadas
que eu religiosamente comprava todos os meses nas bancas, logo me rendi aos encantos do
Game Boy e de seu carro-chefe: o jogo Super Mario Land (Nintendo, 1989); Mario Land é
uma adaptação dos jogos do simpático encanador Mario, o mascote da “Big N”, para as
limitações de hardware que um console dos anos 1990 possuía, com menos fases e monstros
inimigos do que as versões anteriores para o NES, mas estas restrições nem eram notadas
por uma menina de nove anos, e minhas análises ficavam limitadas ao tempo que deveria
levar para pular na cabeça dos monstros exibidos na tela, ou onde poderia achar as vidas
extras que eram secretamente dispostas, de forma estratégica, em cada fase. Eu ficava horas
e mais horas (re)conhecendo todos os segredos de Mario Land, tentando aproveitar o
máximo das minhas férias e também das quatro pilhas AA que forneciam energia para o meu
pequeno console - eu era a rainha daquele mundo em p&b, uma jovem gamer determinada,
invencível. Passados mais de 20 anos, ainda sou capaz de ligar meu velho Game Boy e me
lembrar de todos os macetes que utilizava para jogar Mario Land. É claro que a tela de LCD
do meu portátil está esmaecida, seus botões gastos pelo uso e pelo tempo, mas o encanto
deste jogo continua intacto para mim – é ouvir o ruído característico do início do
funcionamento do Game Boy, que me sinto transportada para as tardes das minhas férias de
verão no começo dos anos 1990. A pesquisadora de hoje se reencontra com a pequena
aficionada do passado.
Destas nossas recordações extremamente pessoais, e muito específicas, podemos nos
lembrar de uma recorrência de boa parte dos trabalhos acadêmicos das áreas que desenvolvem
pesquisas sobre games: a presença dos jogos eletrônicos de sistemas passados, agora
denominados como retrogames. A bibliografia de game studies sempre recorre aos jogos do
passado para explicar termos e questões de design, apropriação, consumo e interatividade,
como em Half-Real (2005), de Jesper Juul, ou An Introduction to Game Studies (2008), de
Franz Mäyrä – nestas duas obras, que pretendem ser “manuais” para o estudo dos jogos
eletrônicos, games tão díspares entre si quanto Pong (Atari, 1972) e o RPG Ultima IV (Origin,
1985) são citados como exemplos.

110
NES (Nintendo Entertainment System) é o nome estadunidense do console doméstico de 8-bit lançado pela
Nintendo em 1983.
111
Console doméstico de 8-bit lançado pela Sega em 1985; seu lançamento oficial no Brasil, pela Tectoy,
ocorreu em 1989.
76

Para Bob Rehak, o “movimento retrogame” (retrogame movement) é “(...) um


movimento que revisita a história e a evolução dos jogos clássicos, ou a ‘velha guarda’ dos
jogos de videogame e de computador, admirando as inovações do passado”112 (2008a, p. 194).
Já James Newman coloca o retrogaming entre as novas tendências do universo dos jogos
eletrônicos, descrevendo este movimento como uma nostalgia por games mais “simples”, sem
o rebuscamento de gráficos e atividades que atualmente caracterizam os produtos deste
mercado:

Retrogaming descreve o crescente interesse nos hardwares e softwares de games


‘vintage’ ou ‘clássicos’. A fascinação com os jogos ‘vintage’ dos anos 1970, 1980 e
até do começo dos 1990 é frequentemente expressada nos termos de sua ‘pureza’.
Aqui, ‘clássico’ não se refere apenas à idade dos sistemas e softwares, mas sim ao
seu status e, particularmente, a sua ênfase percebível no gameplay em relação às
armadilhas da sua apresentação e do seu (re)acondicionamento...” 113 (NEWMAN,
2004, p. 165)

A mesma percepção da busca de uma “pureza originária” dos games está na definição
de retrogaming de Jaakko Suominen (2008), que, apesar de entender que este fenômeno
possui outras camadas de complexidade, não se reduzindo apenas ao culto de um passado
mais simples, acaba por concordar com a acepção de Newman, acrescentando:

A palavra retro, que se origina do latim, se refere a uma volta, um retorno, ou algo
repetitivo. Portanto, retrogaming geralmente indica - mas não sempre - o retorno, se
isso significa o retorno ou o retrocesso do consumidor à infância, ou a uma intenção
de (re-)alcançar algo puro ou preferível.114 (SUOMINEN, 2008)

Como a indústria de games começou a se consolidar a partir do final dos anos 1970, o
retrogaming é considerado como um estudo de história recente (recent history), que as
historiadoras estadunidenses Renee C. Romano e Claire Bond Potter (2012, p. 3) definem
como sendo “(...) a história de eventos que aconteceram há não mais de quarenta anos

112
Livre tradução de: “(...) a movement that revisits the history and evolution of classic or ‘old school’ video and
computer games appreciating the innovations of the past”.
113
Livre tradução de: “Retrogaming describes the growing interest in ‘vintage’ or ‘classic’ videogaming
hardware and software. The fascination with 1970s’, 1980s’ and, even, early 1990s’ ‘vintage’ videogaming is
often expressed in terms of its ‘purity’. Here, ‘classic’ refers not only to the age of the systems and software,
but to their status and, particularly, to their perceived emphasis on gameplay over the trappings of presentation
and (re)packaging...”
114
Livre tradução de: “The word retro, which originates from Latin, refers to a return, a comeback, or something
repetitive. Therefore retrogaming hints usually - but not always - at returning, whether it means the consumer’s
return or retrogression to childhood, or an intention to (re-)achieve something pure or preferable”.
77

atrás”115. Isto representa um problema para a historiografia tradicional, já que, para as teorias
“tradicionais” da história, devemos nos distanciar do passado retratado o máximo possível,
buscando o estudo de épocas não mais pertencentes ao nosso século, por exemplo, para que
possamos representar esta era específica com o máximo de imparcialidade (cf. ROMANO,
2012). Porém, devemos considerar aqui dois fatores: no caso dos games, ainda não
conseguimos fazer um grande deslocamento de “distanciamento” temporal, já que esse meio
surgiu e se popularizou durante a segunda metade do século XX, ou seja, ainda recentemente;
mas mais importante é considerar que o distanciamento e a imparcialidade são impossíveis de
serem alcançados por qualquer pesquisador de game studies, não apenas os retrogamers, pois
para pesquisar, conhecer profundamente um jogo eletrônico, temos que jogá-lo116, e isso
implica em estabelecer uma série de relações de afetividades e sensorialidades – o estudioso
de games acaba entrando em uma relação íntima com o seu objeto, imergindo em sua
narrativa (quando há), desempenhando uma série de atividades lógicas, sensoriais, criativas,
sociais e textuais, e assim adquirindo novas habilidades e competências cognitivas (cf.
REGIS, 2008; REGIS; PERANI, 2010). Portanto, o distanciamento do pesquisador de
retrogames em relação aos objetos estudados e suas épocas históricas é impossível – e um
exemplo claro dessa dificuldade está no relato que fizemos no início deste texto, ao narrarmos
nossas experiências pessoais com videogames no começo dos anos 1990 – pois afetos e
sensorialidades estão necessariamente envolvidos nessa busca pelo passado dos jogos
eletrônicos. Entretanto, para além das questões metodológicas, entendemos que essa busca
pelo distanciamento temporal para uma imparcialidade da análise reflete, em verdade, a
procura pela pureza originária do sentido histórico, típica de abordagens epistemológicas
“tradicionais” e que, como vimos no capítulo anterior, é deixada de lado nas abordagens
contemporâneas de estudo da história das tecnologias digitais, que favorecem genealogias
não-sequenciais.
Porém, a tendência retrogamer é um fenômeno que não apenas está relacionado com
os jogos e consoles do passado; muitos games lançados mais recentemente, como a série No
More Heroes (Grasshopper Manufacture, 2007), apresentam elementos gráficos, sonoros e de
mecânica de jogo (gameplay117) que remontam aos jogos 8-bit dos anos 1980, mesmo
adotando as inovações do mercado: o jogador comanda Travis Touchdown, o irreverente anti-

115
Livre tradução de: “(...) histories of events that have taken place no more than forty years ago”.
116
Em várias discussões sobre metodologia de análise de jogos eletrônicos (por exemplo, em CONSALVO;
DUTTON, 2006), é destacada a importância de se jogar o game analisado, mesmo que as análises envolvam
observações e/ou entrevistas com terceiros.
117
Para uma discussão mais aprofundada sobre os significados desse termo, ver MELLO; PERANI, 2012.
78

herói de NMH, a partir da movimentação corporal típica do console Nintendo Wii, mexendo o
braço que segura o joystick Wiimote para derrotar seus inimigos com golpes de espada. Neste
caso, essa volta ao passado é mais um elemento estético do que necessariamente uma
característica de jogo – ao se utilizar de sons e imagens 8-bit, NMH se refere à era que “(...)
revolucionou o conceito do que poderia ser feito com videogames”118 (KUNKEL in WEISS,
2009, p. 2), mas continua se valendo das atualizações e convenções dos games dos anos 2000,
como o uso de mapas, menus de interação, possibilidades de gravação do jogo (saves),
jogabilidade cinética, entre outros.

Figura 5 - Os menus de No More Heroes (2007): a estética do retrogaming

Fonte: https://goluck.files.wordpress.com/2008/02/motelrua.jpg

Deste modo, podemos fazer uma definição de retrogaming que englobe essas duas
vertentes apresentadas:
1. a retomada do interesse por jogos e consoles desenvolvidos até os anos
2000, a partir do uso de sistemas computacionais lúdicos considerados
“ultrapassados” pela indústria, ou de emuladores119 que permitem o
acesso a esses jogos em computadores e consoles atuais, assim como a

118
Livre tradução de: “(...) revolutionized the concept of what you could do with video games”.
119
Segundo James Newman (2004, p. 165): “(...) emuladores são aplicativos que mimetizam as funcionalidades
e as capacidades técnicas de outras plataformas”. Livre tradução de: “(...) emulators are software applications
that mimic the technical functionalities and capabilities of other platforms”.
79

discussão de retrogames em páginas da Internet, revistas especializadas


como a brasileira Old!Gamer e a britânica Retro Gamer, ou livros
acadêmicos, sendo Racing the Beam (2009), uma discussão sobre as
materialidades do console Atari VCS, escrito por Nick Montford e Ian
Bogost, o exemplo mais conhecido dessa tendência nas pesquisas de
game studies;
2. o uso de uma estética visual, sonora, de mecânicas de jogo etc., que
remeta aos jogos mais antigos, mas que retenha em si as características
dos sistemas para os quais foram desenvolvidos, bem como as
convenções implementadas nos games nas últimas décadas (menus,
mapas, saves, entre outros). Exemplos de jogos que adotam essa
tendência estética são o já citado No More Heroes e o inovador Braid
(Jonathan Blow, 2008);
3. e, como uma “combinação” dos itens 1 e 2 (interesse
cultural/tecnológico e adoção estética), podemos também observar o
uso do retrogaming em mídias diversas, como no quadrinho/filme Scott
Pilgrim (a HQ foi publicada entre 2004 e 2010, e o filme lançado em
2010), o gênero musical chiptune, ou o uso de pixelart em diversas
obras artísticas.

Com essa definição possível do amplo espectro do movimento retrogaming – em


atividades de jogo, estética e cultura – podemos começar a pensar em um possível lugar
dessas práticas e questões dentro da área de Comunicação, mais especificamente nos game
studies.

2.4.1 Retrogaming e os estudos comunicacionais

O campo das Ciências da Comunicação sempre teve uma especial atenção para os
estudos de questões midiáticas do passado – já que podemos considerar os veículos e
processos comunicacionais como formas de registro e armazenamento das culturas e
sociedades humanas. Assim, nos parece bem clara a destacada função dos estudos de História
das Mídia dentro da área, conforme exploramos melhor no capítulo anterior, a partir das
80

trilhas inaugurada por Michel Foucault e sua arqueologia do saber, passando pelas correntes
da chamada arqueologia da mídia, e também observando pensadores que trabalham com
áreas próximas. A partir dessas questões comunicacionais, acreditamos que o estudo do
movimento retrogaming está essencialmente ligado à construção do entendimento sobre os
jogos eletrônicos, produtos de entretenimento que cada vez mais apresentam sua influência
nos âmbitos socioeconômico, político e cultural em todo o mundo – se os games estão
alcançando níveis de popularidade e influência crescentes, isso se dá também pelo o que esse
meio apresentou em seu passado para seus jogadores; assim, estamos de acordo com James
Newman (2004, p. 163), quando ele declara que “de fato, e em um forte contraste a uma
posição tão tecnologicamente determinista, a adoção e a resistência dos consumidores são
fatores importantes, e são significantes para moldar a natureza dos videogames como um
conjunto de práticas culturais”120, e também com Egenfeldt-Nielsen e colaboradores (2008, p.
49), que declaram: “a posição cultural que os videogames ocupam hoje é difícil de ser
entendida sem um senso de como os games foram inicialmente concebidos e vendidos”121.
Como um exemplo dessa questão, podemos nos lembrar de lançamentos que foram vistos em
sua época como “o futuro dos games’, como o 3DO (The 3DO Company, 1993), console
inovador lançado com a pretensão de ser uma “central de entretenimento multimídia”,
reproduzindo fotos, vídeos e músicas, e que foi um retumbante malogro comercial, mas cujas
características de convergência midiática foram posteriormente adotadas por consoles
populares como o Sony Playstation 3 e o Microsoft Xbox, quase vinte anos depois da proposta
original do 3DO.
Assim, podemos dizer que os acontecimentos do passado dos jogos eletrônicos, agora
denominados como retrogamimg, são partes integrantes do que os games são hoje, tanto em
termos das tecnologias utilizadas pelos fabricantes de consoles e produtoras de jogos, quanto
nos hábitos e usos dos jogadores – o 3DO pode ter fracassado nos anos 1990, mas atualmente
é apreciado122 como a primeira tentativa de aumentar o escopo de serviços de entretenimento
dos consoles de videogame, prática que se tornou padrão da indústria nos anos 2000. Outros

120
Livre tradução de: “Indeed, and in stark contrast to such a technologically deterministic stance, consumer
take-up and resistance are important factors and are significant in shaping the nature of videogaming as a set of
cultural practices”.
121
Livre tradução de: “The cultural position video games occupy today is difficult to understand without a sense
of how games were initially conceived of and marketed”.
122
Como exemplos desta “valorização” póstuma do 3DO, matérias recentes nas já citadas revistas Old!Gamer
(BARROS, 2013) e Retro Gamer (MATTHEWS, 2013) contam a história do desenvolvimento e fracasso
comercial do console, apontando sua originalidade e influência em sistemas posteriores.
81

malogros, no início da indústria de jogos eletrônicos, determinaram a não-adoção posterior de


certas tecnologias e práticas de jogo, como no caso do joystick do console Intellivision
(Mattel, 1979), que, ao invés de ser em formato de manche (como no Atari VCS), ou com o
direcional em cruz típico dos consoles da Nintendo123, adotou um formato numérico
semelhante aos keypads de computadores - cada jogo comprado trazia consigo um pequeno
display de plástico para ser colocado no joystick, demonstrando os comandos necessários aos
jogadores. Depois da descontinuidade da produção do Intellivision, poucas modificações
foram realizadas nos controles de jogo, que basicamente ainda seguem os modelos dos
joysticks dos anos 1980, com algumas modificações – neste caso, um padrão foi favorecido e
amplamente adotado pela indústria em detrimento de outros, ainda no início da história dos
jogos eletrônicos, e assim permanece.

Figura 6 - O controle do Intellivision: padrão descartado pela indústria de games

Fonte: https://dustyconsoles.files.wordpress.com/2013/02/img_0772.jpg

123
O controle direcional da Nintendo, que se tornou um modelo para praticamente todos os joysticks posteriores,
inclusive de outras fabricantes, surgiu nos minigames Game & Watch, no começo dos anos 1980.
82

Em uma indústria marcada pela constante busca pelo seu estado da arte, quando nos
voltamos para o seu passado podemos facilmente estabelecer relações de continuidade entre
seus produtos, avaliando suas evoluções e questões, conforme ressalta Bob Rehak:

Retrogames mantêm a história viva, e levantam questões intrigantes sobre a


evolução do meio videogame (...) O Retrogaming é particularmente interessante à
luz da aura high-tech que envolve os videogames, que vêm sendo recebidos
(independentemente do ano de lançamento deles) como exemplos de “estado da
arte”, o último e melhor uso da tecnologia disponível. Retrogames parecem penetrar
nessa aura, nos lembrando que, graças à Lei de Moore (que diz que a densidade dos
transistores dos circuitos integrados dobra a cada 24 meses), games envelhecem
rapidamente e de forma cruel – muito mais do que mídias como os filmes, que
comparativamente evoluem a um ritmo glacial. 124 (REHAK, 2008a, p. 194)

Como um “arquétipo” das questões apresentadas por Rehak, podemos nos lembrar de
um console considerado como o estado da arte dos games nos anos 2000: o Nintendo Wii,
lançado em 2006. Por trazer a proposta de uma interação corpórea, utilizando o movimento
dos braços para comandar os avatares na tela, e não apenas o movimento de dedos e/ou
punhos (o formato primário de uso de joysticks desde os anos 1970), muitos se precipitaram
em descrever sua tecnologia de interação como “inovadora” e “revolucionária”, especialmente
na imprensa não-especializada em games – como podemos ver na matéria de Tatiana Bonumá
(2008) para a revista feminina Marie Claire - mas pesquisadores mais versados em história
dos jogos eletrônicos logo perceberam que não havia nada de muito novo em como
interagimos com o Wii: tecnologias de interação corporal nos games existem pelo menos
desde os tempos dos consoles 8-bit, como a Power Glove, periférico do Nintendo NES que se
assemelha a uma luva, e quando vestida pelo jogador permite o controle do avatar por meio de
movimentos com o braço. Conforme destacamos em trabalho anterior (PERANI; BRESSAN,
2007), a novidade do Wii se traduz em uma retomada do interesse dos fabricantes de consoles
pela interatividade física, em contraste com os esforços para a evolução do realismo gráfico
apresentado pelos jogos, que tomou a atenção do mercado de games desde os anos 1990.
Nesse caso específico, conhecer o passado nos permitiu ter uma ideia mais clara sobre o nosso
presente, dando ao Wii seu devido valor dentro dos game studies, sem torná-lo algo mais

124
Livre tradução de: “Retrogames keep history alive and raise intriguing questions about the evolution of the
video game medium (...) Retrogaming is particularly interesting in light of the high-tech aura around video
games, which have usually been received (regardless of their year of release) as examples of ‘‘state of the art,’’
the latest and greatest use of available technology. Retrogames would seem to puncture that aura, reminding us
that, thanks to Moore’s Law (which says that the transistor density of integrated circuits doubles every 24
months), games date quickly and cruelly — much more so than media such as film, which evolves at a glacial
pace by comparison.
83

importante ou até mesmo depreciar o seu papel na história dos formatos do lúdico digital,
mostrando o que ele realmente tem a oferecer aos estudos comunicacionais.

Figura 7 - Embalagem do Nintendo Power Glove: interface (literalmente) física

Fonte: https://proactiontranshuman.files.wordpress.com/2015/02/nintendo-power-glove-2.png

Deste modo, quando olhamos para os exemplos como o do console 3DO, do joystick
do Intellivision e da Power Glove do NES, podemos observar que o retrogame se aproxima
dos estudos “arqueológicos” da Comunicação ao pensar a história dos jogos eletrônicos como
redes complexas de associações entre vários aspectos deste meio: materiais, sociais, culturais,
mercadológicos etc. Essa complexidade do estudo da história dos games é refletida em artigos
como “Videogames in Computer Space: The Complex History of Pong” (2009), do
pesquisador Henry Lowood, que retrata o surgimento de Pong a partir das suas características
de engenharia elétrica e de design, retratando também as ideias e questões daqueles que
trabalharam no desenvolvimento deste jogo – Lowood cobre tanto aspectos técnicos quanto
humanos, ou seja, pontos de vista diametralmente diferentes, complexos (e daí a razão desse
termo aparecer no título do artigo), que levaram à introdução de Pong nos lares de todo o
mundo nos anos 1970. Portanto, nos espelhando nesse exemplo de Lowood, acreditamos que
uma exploração retrogaming, da mesma forma proposta pela nossa abordagem em relação à
história da HCI, deve ser primordialmente uma abordagem relacional, seja ao pensar nos
processos e questões inerentes aos usos dos meios, seja ao estudar sua materialidade
84

constituinte – o que torna o estudo de games antigos um objeto válido – e para nós,
extremamente interessante – do campo comunicacional.
Assim, pensamos que o movimento retrogaming de valorização de jogos eletrônicos
antigos, bem como das suas estéticas e influências tecnológicas, culturais e sociais, torna estes
objetos difíceis de serem analisados se adotarmos apenas um método ou perspectiva histórica
– é quase impossível dissociar um retrogame das suas características materiais (geração do
console, joysticks utilizados, entre outros), das suas questões de narrativa, gameplay e
jogabilidade, bem como dos seus impactos socioculturais e mercadológicos. Portanto,
podemos dizer que uma história retrogamer é também uma maneira comunicacional de
trabalhar com a história dos jogos eletrônicos, já que, conforme vimos brevemente em
momentos anteriores, os estudos históricos de mídia fazem essas conexões, essas buscas de
relações entre os diversos aspectos de um meio de comunicação, que fazem emergir um
resultado complexo, cheio de nuances a serem observadas. Para além das lembranças de seus
pesquisadores e entusiastas, voltar nosso interesse para os retrogames pode nos ajudar a
esclarecer o fascínio humano por estas atividades lúdicas em sua forma computacional.

2.5 Conclusão: há um lugar dos games na Comunicação?

Este presente capítulo procurou estabelecer um possível lugar dos games na


Comunicação, a partir da resolução de três questionamentos de fundo ontológico e
epistemológico: a) O que são os games? b) Os jogos eletrônicos podem ser considerados
como mídia? c) Quais seriam as contribuições do estudo de games para a área da
Comunicação? Todas as questões apresentaram respostas complexas, bem condizentes com a
própria natureza deste objeto: os jogos eletrônicos são uma experiência estética, vivenciada de
forma diferente do cotidiano, a partir de uma constituição de um tempo e de um espaço
próprios, e são implementados digitalmente a partir de um sistema formal de regras em seu
código de programação, que contém as informações do ambiente de jogo e da interação
possíveis para esta atividade. Eles podem ser considerados meios de comunicação por
possuírem atividades e funções únicas, especialmente em relação às suas possibilidades
interativas, por serem cada vez mais influentes nas culturas e sociedades de todo o mundo,
criando novos mercados de entretenimento e novas narrativas e personagens icônicos, e
também por possuírem uma materialidade única devido aos seus códigos de programação.
Diversas disciplinas da área de Comunicação adotam os games como objetos de pesquisa pela
sua flexibilidade de formas de estudo, e riqueza de análises possíveis – destacamos também o
85

movimento retrogame, que traz uma abordagem relacional, ou seja, criadora de redes
complexas entre suas materialidades, influências culturais, mercadológicas etc., à história dos
jogos eletrônicos. Os retrogames demonstrariam, então, a possibilidade da construção de uma
história comunicacional que pode não apenas ser restrita aos games, mas também à
computação em geral, como veremos posteriormente. Assim, acreditamos que seja mais
correto não pensarmos em um lugar dos jogos nos estudos comunicacionais, e sim,
entendermos que há muitos lugares, diversos e complexos, para os games na Comunicação; e
acreditamos que um destes possíveis lugares está no entendimento da função dos jogos
eletrônicos para a construção de uma história comunicacional do desenvolvimento e ampla
adoção das tecnologias de interação humano-computador.
86

3 XADREZ: A DROSÓFILA DA COMPUTAÇÃO E DA INTELIGÊNCIA


ARTIFICIAL CLÁSSICA

Conforme destacamos nos capítulos anteriores, uma das premissas para a utilização de
games nos primórdios da computação reside no fato de que tanto as atividades lúdicas quanto
os computadores são regidos por um conjunto de regras fixas; no caso dos dispositivos
digitais, precisamos de algoritmos para o funcionamento de qualquer software, comandos
lógicos que descrevem princípios de ação, métodos e resultados esperados, possibilitando o
exercício de atividades pré-determinadas pelos programadores. Estes dois mundos governados
por regras estiveram em ampla sinergia durante todo o início da computação, e dentre os
primeiros games a serem elaborados para sistemas computacionais, chama-nos a atenção a
presença constante do jogo de xadrez como opção primordial de experimentações de
programação; porém, como podemos observar em vários momentos da história
computacional, o xadrez não é apenas inspiração para a construção de softwares, estando
também presente em diversas produções, sejam estas acadêmicas ou populares125, sobre a
nascente cultura da informática.
Nos anos 1960, algumas das atividades das aulas de Inteligência Artificial do
Massachussets Institute of Technology (MIT), berço da cultura computacional, envolviam a
elaboração de programas de xadrez. O autor relata uma brincadeira que teve um resultado
surpreendente para a época: a demonstração de que seria possível a construção de programas
interativos em rede:

De acordo com [o aluno do MIT, Peter] Samson, os hackers chamaram John


McCarthy, venerável pioneiro dos estudos de Inteligência Artificial, para se sentar
no PDP-1126. “Professor McCarthy, dê uma olhada em nosso novo programa de
xadrez!”. E então chamaram outro professor para se sentar no TX-0127. “Aqui está o
nosso programa de xadrez! Digite a sua jogada!”. Depois que McCarthy digitou a
sua primeira jogada, e ela apareceu no Flexowriter128 conectado ao TX-0, os hackers
disseram ao outro professor que ele havia visto o movimento de abertura do TX-0.
“Agora faça o seu!”. Depois de algumas rodadas, McCarthy notou que o computador
estava digitando as jogadas uma letra de cada vez, muitas vezes com uma pausa

125
Em trabalho anterior (PERANI, 2010), realizamos uma diferenciação entre materiais sobre a cultura
computacional produzidos por pesquisadores, voltados para práticas de pesquisa e ensino (Cibercultura
acadêmica) e por usuários e agitadores culturais, voltados para um público mais amplo (Cibercultura popular).
126
Computador construído em 1960 pela empresa Digital Equipment Corporation (DEC), o PDP-1 era conhecido
pela sua capacidade de demonstrar gráficos [nota da autora].
127
Construído em 1956, foi o primeiro computador a utilizar somente transistores [nota da autora].
128
Máquina de teletipo [nota da autora].
87

suspeita entre elas. McCarthy então seguiu o fio que conduzia ao seu oponente de
carne e osso. Os hackers morreram de rir.129 (LEVY, 2010, p. 45)

Alguns anos depois, em 1974, Ted Nelson incluiu os programas de xadrez dentre seus
“sonhos” computacionais, que em verdade eram possíveis aplicações comunicacionais das
tecnologias digitais, descritas em seu seminal livro-manifesto130 Computer Lib/Dream
Machines. Satirizando o uso massivo de adjetivos grandiosos nas matérias jornalísticas sobre
lançamentos de novos dispositivos digitais, e também ironizando a constante busca do estado
da arte realizada pela indústria da computação, Nelson escreveu:

Claro que você pensou que as configurações de posicionamento fixo eram para um
tipo mal feito de coisas analógicas. Mas agora temos A MÁQUINA DE XADREZ,
que está sendo serissimamente construída pelo laboratório de IA do MIT, que vai
nos prover uma ANÁLISE DE AMEAÇAS DE POSICIONAMENTO FIXO. Sim,
sua arquitetura perceptron avançada será supostamente capaz de analisar ameaças a
qualquer posição em um GRANDE FLASH PARALELO. O impacto deste incrível
desenvolvimento no mundo do Xadrez Eletrônico, ou qualquer outra coisa, neste
sentido, é totalmente impossível de prever131. (NELSON, 1975, p. 26B)

Iniciativas como as de Ted Nelson, que forjou, neste mesmo manifesto, um dos lemas
mais marcantes da história computacional, “poder computacional para o povo!”132 (NELSON,
1975, p. 3), refletiam a nascente cultura da microcomputação, e o início da popularização do
conhecimento sobre estas tecnologias digitais. Esta postura influenciou jovens entusiastas
como o anglo-canadense Peter Jennings, que programou, em 1976, o jogo MicroChess para o
computador MOS Technology KIM-1. Segundo o depoimento oral de Jennings para o Museu
da História da Computação da Califórnia (2005), ele começou a se interessar por
computadores aos 15 anos, após utilizar máquinas da Universidade de Waterloo para um

129
Livre tradução de: “According to Samson, the hackers called in the venerable AI pioneer John McCarthy to
sit by the PDP-1. 'Professor McCarthy, look at our new chess program!' And then they called another professor
to sit by the TX-0. 'Here’s the chess program! Type in your move!'. After McCarthy typed his first move, and it
appeared on the Flexowriter on the TX-0, the hackers told the other professor that he had just witnessed the
TX-0’s opening move. 'Now make yours!' After a few moves, McCarthy noticed that the computer was
outputting the moves one letter at a time, sometimes with a suspicious pause between them. So McCarthy
followed the wire to his flesh-and-blood opponent. The hackers rocked with mirth”.
130
Ou, na definição de Nelson, um “livro contracultural sobre computação” (cf. LEVY, 2010, p. 172).
131
Livre tradução de: “Of course you've thought that hardwired setups were for sloppy analog types of thing. But
here now we have THE CHESS MACHINE, under straightfaced construction at the MIT AI Lab, which will
provide HARDWIRED THREAT ANALYSIS. Yes, its advanced perceptron architecture will supposedly be
capable of analyzing threats to any given position in a GRAND PARALLEL FLASH. The impact of this
astonishing development on the world of Electronic Chess, or anything else, for that matter, is totally
impossible to predict”.
132
Livre tradução de “Computer power for the people!”
88

trabalho escolar; depois de adulto, com o advento da microcomputação, Jennings decidiu que
tentaria fazer algo para viver de computação, programando e comercializando o seu próprio
jogo de xadrez, fazendo de MicroChess um dos primeiros softwares a serem bem sucedidos
comercialmente, e dando o exemplo a outros aficionados, que decidiram também criar seus
programas. Graças ao tino comercial de Peter Jennings, MicroChess ganhou notoriedade,
sendo afamado como um marco da indústria da computação, conforme Paul Freiberger e
Michael Swaine relatam no célebre livro Fire in the Valley: The Making of the Personal
Computer133:

Quando Chuck Peddle, presidente da MOS Techology, fabricante do KIM-1,


ofereceu a Jennings mil dólares pelos direitos do programa, Jennings recusou,
dizendo, “eu vou ganhar muito mais dinheiro se eu mesmo vendê-lo” (...) Os
pedidos foram entrando. Jennings descobriu que pessoas que nunca haviam jogado
xadrez, e que não eram nem interessadas em aprender a jogar, compraram o
programa mesmo assim. Com MicroChess, os donos de computadores podiam
mostrar para os seus amigos que aquela coisa que eles possuíam era poderosa e real.
De certa forma, MicroChess legitimou o microcomputador134 (FREIBERGER;
SWAINE, 2000, p. 167 -168)

Figura 8 - MicroChess, jogo pioneiro da indústria de softwares, citado como


exemplo em uma propaganda de outro game

Fonte: Revista Kilobaud Microcomputing, fev. 1979.

Acompanhando este interesse do público pelo desenvolvimento de softwares voltados


ao xadrez, muitos materiais impressos foram publicados para possibilitar o ensino das
133
Lançado originalmente em 1984, Fire in the Valley é considerado um dos relatos pioneiros sobre a história da
computação, e segundo Charlie Yood (2005), serviu como base para o roteiro de Pirates of Silicon Valley (que,
no Brasil, ganhou o título de Piratas do Vale do Silício), filme de 1999 dirigido por Martyn Burke.
134
Livre tradução de: “When Chuck Peddle, president of MOS Technology, manufacturer of the KIM-1, offered
Jennings a thousand dollars for all rights to the program, Jennings declined, saying, ‘I'm going to make a lot
more money selling it by myself’. (…) The orders poured in. Jennings found that people who couldn't play
chess, and who weren't even interested in learning chess, nevertheless bought the program. With MicroChess,
computer owners could show their friends that this thing they possessed was powerful and real. It could play
chess. In a sense, MicroChess legitimized the microcomputer.”
89

linguagens computacionais a partir deste tipo de jogos; neste momento, revistas e livros de
divulgação/popularização da nascente cultura hacker já indicavam o xadrez como objeto de
estudo para o aprendizado da lida com computadores. No livro Games Playing With
Computers, lançado em 1972, o britânico A.G. Bell relata que os jogos (especialmente os de
xadrez) seriam ótimos para o ensino de programação, já que eles estão relacionados com a
teoria e a prática dessa atividade. Mesmo com vários pesquisadores renomados trabalhando
no design de games de xadrez, Bell descreve um certo preconceito contra esse tipo de
atividade, e irreverentemente aconselha:

Uma dica: não fale que você quer jogar games. Muito melhor é falar sobre o desejo
de estudar técnicas dinâmicas de busca e avaliação em um problema de espaço
multidimensional incorporando recuperação de informações e realizado em uma
hierarquia de Chomsky de tipo 2.135 (BELL, 1972)

Após convencer seus superiores da DEC a apostar nesse tipo de material de


divulgação, já que “ele começava a ver o computador como uma ferramenta educacional
individual, e os jogos pareciam ser uma parte natural desse pacote”136 (FREIBERGER;
SWAINE, 2000, p. 27), David H. Ahl lançou o clássico livro BASIC Computer Games
(publicado inicialmente em 1973, e que contou com diversas edições revisadas em anos
posteriores), citando em sua introdução alguns dos pioneiros do design de jogos eletrônicos, e
mencionando alguns exemplos de desenvolvimento computacional com o xadrez e outros
jogos de tabuleiro que apresentam características semelhantes:

Em 1952, logo após o lançamento dos primeiros computadores comerciais, A.L.


Samuel da IBM escreveu um programa de damas para o IBM 701. Ele foi escrito a
partir da ideia de que muito poderia ser apreendido sobre o processo de pensamento
humano se pudermos simulá-lo em um computador. Esta foi a mesma razão pela
qual Newell, Shaw e Simon, alguns anos depois, na Rand Corporation, escreveram o
primeiro programa de xadrez computacional. Porém, mesmo para aqueles não-
iniciados no campo da inteligência artificial, estes programas eram jogos muito
divertidos, mesmo se essas pessoas não jogassem xadrez ou damas em um alto
nível.137 (AHL, 1978, p. VIII)

135
Livre tradução de: “A word of advice: do not say you wish to play games. Much better is a wish to study
dynamic techniques of search and evaluation in a multi-dimensional problem space incorporating information
retrieval and realised in a Chomsky Type 2 language.”
136
Livre tradução: “He was beginning to view the computer as an individual educational tool, and games seemed
a natural part of the package”.
137
Livre tradução de: “Back in 1952 shortly after the first comercial computers were introduced, A. L. Samuel at
IBM wrote a checkers program for the IBM 701. It was written with the idea that a great deal could be learned
avout the human thought process if one could simulate it on a computer. This also was the reason that Newell,
Shaw, and Simon a few years later at Rand Corporation wrote the first computer chess program. But even to
90

Porém, mesmo em livros que não possuem os jogos como tópico principal, a presença
do xadrez é nitidamente perceptível. Em Advanced BASIC: Applications and Programs
(1977), de James S. Coan, que tem a pretensão de ser um manual de aprendizagem de rotinas
de BASIC138, o último exemplo de programas possíveis com esta linguagem é “Knight´s
Tour”, uma simulação não-interativa de um jogo simplificado de xadrez inspirado em um
tradicional puzzle matemático com o nome “Problema do Cavalo”, no qual esta peça deve se
movimentar por cada casa do tabuleiro apenas uma vez (cf. SHENK, 2011). Dedicado aos
gráficos computacionais, o livro Advanced Graphics with the Sinclair ZX Spectrum (1983)
empregou o xadrez como exemplo de composição visual, ensinando como construir a imagem
de um tabuleiro, juntamente com as peças utilizadas no jogo – neste caso específico, a capa
desta publicação mostra o desenho do tabuleiro de xadrez já finalizado, após a aplicação do
código disponibilizado. Em comum, estes livros populares, que comumente possuiam como
objetivo a divulgação e o aprendizado da lida com os microcomputadores, acabavam por
corroborar a complexidade do jogo, pois, neste tipo de material, quase não são encontrados
estudos e demonstrações de xadrez computacional efetivamente funcionais. Assim, as
citações sobre o enxadrismo digital e os jogos simplificados presentes nos livros populares,
tinham o escopo de demonstrar o potencial dos microcomputadores para o público leigo, que
precisava explorar e descobrir as possibilidades de uso destes dispositivos.
Para além dos livros, as revistas especializadas em computação, que nasceram com o
advento da microcomputação, também exploraram o xadrez digital em várias reportagens
voltadas para a divulgação das linhas de desenvolvimento destes softwares para os seus
leitores, também em uma abordagem popular. Em outubro de 1978, a pioneira revista Byte
trouxe o jogo de xadrez em sua capa, ilustrada pelo artista Robert Tinney139, dando destaque
aos recentes desenvolvimentos do enxadrismo computacional: neste caso, celebrando o
advento do chamado xadrez de microcomputadores (microcomputer chess), ou seja, a chegada
do xadrez aos computadores domésticos, libertando-se dos limites dos laboratórios de
informática das grandes universidades pelo mundo. Nestes quatro artigos deste número de

those uninitiated in the field of artificial intelligence research, these programs were great fun as games even if
they didn´t play outstanding chess or checkers”.
138
BASIC, sigla em inglês para Beginners All-purpose Symbolic Instruction Code, foi uma linguagem criada em
1964 com o objetivo de simplificar o aprendizado e a produção de programas na Universidade Dartmouth, nos
EUA (cf. CAMPBELL-KELLY et al., 2014). Especialmente a partir do advento da microcomputação, BASIC
saiu dos ambientes acadêmicos para se tornar uma das linguagens de programação mais populares de todos os
tempos.
139
Segundo Luis Latour (2003, p. 82), esta capa de Tinney se tornou tão famosa que passou a ser vendida como
pôster, tornando-se parte da decoração de salas de clubes de computação nos EUA.
91

Byte dedicados ao enxadrismo digital, discutem-se informações básicas de como programar


este tipo de jogo, e como escrever um problema de xadrez em código (o famoso problema das
oito rainhas140), além de nomear exemplos de programas bem-sucedidos, e trazer pequenas
resenhas sobre livros e programas de xadrez computacional, como as versões aprimoradas do
software MicroChess de Peter Jennings para os computadores TRS-80, Commodore PET e
Apple II.

Figura 9 - A famosa capa de Robert Tinney: o imaginário do xadrez


computacional

Fonte: Revista Byte, v. 3, n. 10, out. 1978

140
Neste problema, o jogador deve colocar oito rainhas em um tabuleiro de 8 x 8, fazendo que nenhuma rainha
ataque as outras. Este exercício é ainda hoje utilizado em cursos de Ciência da Computação para aprendizagem
de Análise Combinatória e Inteligência Artificial.
92

Esse enfoque popular na aprendizagem deste tipo de programação não é fortuito:


como a maioria das revistas de informática da época, Byte era voltada para um público de
hobbyistas, entusiastas muito especializados, que procuravam entender as questões técnicas
da computação como um passatempo141. Em artigo sobre máquinas, softwares e
acontecimentos que ajudaram a desenvolver a microcomputação na Finlândia dos anos
1970/1980, Petri Saarikoski e Jaakko Suominen descrevem a importância de jogos eletrônicos
(como o xadrez) para esta subcultura como “(...) uma maneira de demonstrar as possibilidades
técnicas dos microcomputadores...”142 (SAARIKOSKI; SUOMINEN, 2009, p. 24),
corroborando a descrição que Portia Issacson fez, em 1977, das questões que envolviam o
hobbismo de microcomputação nos EUA, publicada na revista Computer da associação
IEEE143:

O objetivo da computação doméstica é obter uma aplicação desejada, mas a


verdadeira essência da computação hobbyista é experimentar com o hardware, com
a programação, e construir aplicativos apenas pela diversão, com o objetivo de
aprender mais sobre computação, e às vezes, finalizar esse aplicativo 144.
(ISSACSON, 1977, p. 72)

Possuindo o mesmo intuito de atender o público hobbyista, a revista brasileira de


informática Micro Sistemas também abordou constantemente o tema do xadrez computacional
em suas páginas. Já em sua primeira edição, publicada em outubro de 1981, a revista dedicou
duas páginas para a matéria “Homem x Máquina: quem será o Grande Mestre”, escrita por
Paulo Henrique de Noronha, que traz uma entrevista com Márcio Miranda, o então presidente
da Confederação Brasileira de Xadrez, analisando o estado da arte do xadrez eletrônico
naquele início de década. Noronha escreve, refletindo sobre as limitações encontradas nos
softwares de xadrez da época, que ainda não eram capazes de superar os grandes jogadores:

A grande barreira, a pedra no caminho, pode ser resumida em dois adjetivos tão
comuns à espécie humana e ininteligíveis para as máquinas: Intuição e Criatividade.

141
O próximo capítulo traz uma discussão sobre a relação do hobbyismo de computação, games e revistas
especializadas.
142
Livre tradução de: “For the hobbyist subculture, computer games were usually a way of demonstrating the
technical possibilities of microcomputers...”.
143
IEEE é a sigla de Institute of Electrical and Electronics Engineers, associação acadêmica e profissional
fundada nos EUA no final do século XIX, que fomenta pesquisas em todo o mundo nas áreas de Eletrônica,
Computação, e em outros campos afins.
144
Livre tradução: “The goal of home computing is obtaining a desired application; but the point of hobby
computing is experimenting with the hardware, programming, and building applications just for the fun of it, in
order to learn more about computing and sometimes to get the application constructed”.
93

Como pensa-los em termos numéricos binários, a linguagem de computador?


(NORONHA, 1981, p. 7)

A partir do seu número 4, em janeiro de 1982, Micro Sistemas passou a contar com
uma coluna regular de xadrez computacional, escrita por Luciano Nilo de Andrade, ex-
presidente da Federação Metropolitana de Xadrez do extinto Estado da Guanabara, e um dos
ícones do enxadrismo nacional. As contribuições de Andrade apareceram em todas as edições
da revista até o número 36, em setembro de 1984, e tornando-se esporádicas até dezembro de
1986, quando a coluna fez sua última aparição no número 63 de Micro Sistemas.
Especializada na linha de microcomputadores TK, produzida pela empresa brasileira
Microdigital Eletrônica145, a revista paulista Microhobby também dedicou seu primeiro
número aos jogos eletrônicos de xadrez, em maio de 1983, trazendo como reportagem de capa
“TK Xadrez II analisado por Herman Claudius”, descrevendo a interação do ex-campeão
brasileiro com este game nacional, lançado por uma subsidiária da Microdigital, especializada
em jogos, de nome curioso e conhecido: “Microsoft”146. TK Xadrez, ou TKadrez, poderia ter a
primazia de ser um dos primeiros jogos nacionais de xadrez computacional, mas, em verdade,
era apenas um clone, traduzido para o português, do software ZX Chess I, lançado em 1981
pela produtora inglesa Artic.

Figura 10 - TK Xadrez II, destaque da primeira


edição da revista brasileira MicroHobby

Fonte: Revista MicroHobby, n. 1, mai. 1983, p. 8.

145
Em verdade, os computadores TK eram clones da linha ZX de computadores da fabricante britânica Sinclair,
produzidos sem licença.
146
A “Microsoft” brasileira, que clonou até a logomarca utilizada pela verdadeira empresa estadunidense,
também lançou jogos para o console Onix Jr., um clone do Atari 2600 produzido pela Microdigital.
94

Dando impulso à nascente indústria da microcomputação nos anos 1970, ajudando a


ampliar as tecnologias de comunicação em rede, e (principalmente) sendo uma das bases
principais para a elaboração de algoritmos de Inteligência Artificial, o xadrez sempre intrigou
e estimulou os cientistas da computação. Porém, muitos podem questionar: por que um mero
jogo de tabuleiro esteve tão presente no desenvolvimento das tecnologias digitais?

3.1 Mais do que um jogo: xadrez, cultura e cognição

Desde a sua acepção como chatrang, jogo indo-persa que adquiriu popularidade após
a conquista da Pérsia pelo Califado Islâmico, no século VII, o xadrez se tornou o passatempo
favorito daquela sociedade intelectualizada; para David Shenk (2007), o jogo ajudou os
muçulmanos a terem a compreensão filosófica da ideia de livre arbítrio, sendo visto como
mais do que um divertimento. Este fascínio pelo xadrez percorreu séculos, influenciando
artistas como Marcel Duchamp, que dedicou várias pinturas de sua fase cubista a esse tema,
como Portrait de joueurs d'échecs (1911). Segundo a análise proposta por Dieter Daniels, em
seu artigo “Duchamp: Interface: Turing: A hypothetical encounter between the bachelor
machine and the universal machine” (2007), Duchamp procurou representar neste quadro não
só a ação do jogo, mas também todo o espaço conceitual, de interatividade entre as mentes
dos jogadores, tendo como interfaces o tabuleiro e as mãos dos jogadores, que permitem a
materialização do pensamento lógico por meio de sua ação sensível; assim, o espaço de jogo
seria mais amplo do que as ações executadas no tabuleiro, interligando realidades físicas e
mentais, que se misturam e se constroem em movimentos simbióticos. Para o crítico Calvin
Tomkins (2004, p. 75), Portrait de joueurs... foi a primeira obra em que o artista franco-
estadunidense colocou em prática sua maior ambição artística: a libertação das artes de uma
estética predominantemente “retiniana” ou seja, a fruição apenas visual de uma pintura ou
escultura – o projeto duchampiano previa que os processos mentais que deveriam ser feitos
pelo público, a partir de sua exposição à obra, são tão (ou mais) importantes do que as formas,
imagens e símbolos que nela estão apresentadas. O próprio Duchamp, ao comentar sobre seu
interesse pelo xadrez (informação verbal), afirma que “peças de xadrez colocadas em uma
posição passiva não têm nenhum apelo visual ou estético. São os seus possíveis movimentos,
95

que podem ser jogados daquela posição, que as fazem mais ou menos bonitas”147 [tradução
nossa]. Assim, deduzimos que Duchamp estava interessado nos processos cognitivos
envolvidos no xadrez, mais do que em suas representações visuais, bem ao encontro da sua
própria estética antirretiniana.

Figura 11 - Portrait de joueurs d'échecs (1911), de Marcel Duchamp

Fonte: Coleção online do Philadelphia Museum of Art. Acesso em 24/01/2016:


http://www.philamuseum.org/ collections/permanent/51446.html?mulR=1910198258|71

Estes “espaços mentais” do xadrez, que influenciaram várias obras de Marcel


Duchamp148, também serviram de interesse para o pesquisador e enxadrista holandês Adriaan
de Groot, que em sua tese de doutorado Het denken van den schaker (1946), posteriormente

147
Teledocumentário “Jeu d´échecs avec Marcel Duchamp”, dirigido por Jean-Marie Drot, exibido na RTF
Télévision, Paris, no dia 08/06/1964. Acesso em 18/01/2016: http://www.ubu.com/film/duchamp_drot.html
148
A obsessão de Duchamp com o jogo de xadrez foi bem documentada durante toda a sua vida, e retomada em
colaborações como Duchamp Playing Chess with a Nude (1963), fotografia de Julian Wasser, e Reunion
(1968), performance sonora proposta por John Cage. Além de fabricar de peças e tabuleiros, Duchamp pintou,
em 1910, Le jeu d´échecs, e escreveu o livro de táticas L'Opposition et les cases conjuguées sont réconciliées
(1932), em coautoria com o enxadrista Vitaly Halberstadt.
96

publicada em inglês com o nome de Thought and choice in chess149, realizou uma série de
experimentos com grandes mestres de xadrez, procurando compreender as contribuições deste
jogo para a análise de processos cognitivos. De acordo com o pesquisador holandês, o jogador
trabalha com quatro fases de aprofundamento para a seleção de suas jogadas: a orientação, na
qual o enxadrista observa, de forma geral, ações possíveis e suas consequências; a
exploração, na qual são realizados cálculos da sequência de alguns movimentos e suas
possíveis variações; a investigação, que seria uma observação mais profunda de forças e
fraquezas dos movimentos possíveis; e a prova, a checagem final das sequências de
movimento, para descobrir se os resultados a serem alcançados com o movimento escolhido
realmente são os melhores dentro da estratégia aplicada. Para tanto, de Groot (1978, p. 335-
338) destaca, como necessidades cognitivas do jogador, uma boa percepção espacial, uma
“atitude empírica” (explorar ativamente as possibilidades no tabuleiro, e refletir sobre o
resultado de suas ações), e a complexidade do problemas do jogo – partes que seriam
necessariamente integrantes do processo de pensamento sobre o xadrez - chegando à
conclusão de que o jogador de xadrez de alto nível precisa de uma percepção espacial apurada
e organizada, bem como de uma memória capaz de armazenar vários métodos e padrões de
jogo (cf. DE GROOT, 1978; RASSKIN-GUTMAN, 2009).
A partir das ideias de enxadristas entusiasmados, advindos de áreas tão diferentes
entre si, como o artista Marcel Duchamp e o psicólogo Adriaan de Groot, podemos perceber
uma das razões do grande fascínio de pensadores pelo xadrez: a clareza que supostamente
construímos sobre os processos de cognição humana ao observarmos as regras e ações deste
jogo milenar. Para David Shenk (2007), o xadrez ganhou espaço na modernidade por extrair
beleza e verdade a partir da sua complexidade, fazendo com que cientistas e artistas
buscassem, neste jogo, uma área de trabalho para os problemas e desafios de suas áreas de
origem. Porém, este tipo de pensamento sobre o xadrez não é uma exclusividade do século
XX; no ensaio The Morals of Chess, escrito em 1779, o Founding Father150 estadunidense
Benjamin Franklin defende o xadrez como uma diversão na qual o jogador poderia adquirir
várias habilidades cognitivas, como a capacidade de prever lances, de ser circunspecto e
cauteloso, aprendendo também a não desistir diante de adversidades, e a não ser presunçoso
em situações favoráveis (cf. SOARES, 2008).

149
Em uma tradução livre para o português, O pensamento e a escolha no xadrez.
150
Título dado aos líderes que participaram do movimento de independência dos Estados Unidos.
97

O tema do ensaio de Franklin não foi casual, já que, nesta mesma década, máquinas
que supostamente poderiam jogar de forma autônoma começaram a ser desenvolvidas,
reproduzindo mecanicamente os pensamentos e as ações de um jogador de xadrez. Desde o
Renascimento, o interesse da humanidade pelos autômatos, devidamente explorado em
máquinas e histórias mitológicas de diversos povos, havia sido revivido; para Minsoo Kang
(2011, p. 114), a partir desse período “(...) estava em curso um processo da naturalização do
sobrenatural, provendo explicações mundanas para maravilhas, sem fazer referências a seres
ou forças além desse mundo”151. Acompanhando este espírito do tempo, a exploração do
desenvolvimento de técnicas de automatização passaram a também envolver o jogo de xadrez
em seus esforços, em uma tentativa de reproduzir e superar o raciocínio humano – desta
forma, a aparição da estranha máquina enxadrista denominada “O Turco” não se constituiu
uma surpresa para um mundo que já havia visto as criações do mecânico francês Jacques de
Vaucanson152. Construída em 1770 pelo engenheiro mecânico austro-húngaro Wolfgang von
Kempelen, o Schachtürke era uma máquina complexa, com vários níveis de engrenagens e
alavancas, que tinha em seu topo um boneco articulado, vestido com roupas nativas da
Turquia, que era capaz de efetuar movimentos de xadrez com seu braço mecânico,
movimentando as peças de um tabuleiro próximo. Depois de vários tours pela Europa e
Estados Unidos, até sua destruição em um incêndio em 1854 (cf. KANG, 2011), relatos de
pessoas que interagiram com a máquina começaram a contestar sua pretensa autonomia, como
a tese defendida pelo inglês Philip Thicknesse em seu libreto The Speaking Figure and the
Automaton Chess-player, Exposed and Detected (1784), de que “(...) aquele que realmente
move [as peças] está escondido no Balcão, que é suficientemente grande (excluindo-se o
maquinário) para conter uma criança de dez, doze ou quatorze anos de idade”153
(THICKNESSE, 1784, p. 10-11).
Apesar das contestações sobre a sua real forma de funcionamento, “O Turco” causou
grande impacto cultural desde sua primeira aparição na corte do Império Austro-húngaro,
sendo personagem de contos do escritor Edgar Allan Poe, além de inspirar peças de teatro e
outras propostas científicas; segundo Devin Monnens (2013), a criação das máquinas
Diferencial e Analítica de Charles Babbage foi em parte inspirada pela interação do inventor
151
Livre tradução de: “a process was under way of naturalizing the preternatural, of providing mundane
explanations for marvels without any references to otherworldly beings or forces”.
152
Dentre várias máquinas que possuíam mecanismos com relativos graus de automação, a criação mais famosa
de Vaucanson foi o “Pato Mecânico” (1739), que pretendia simular o aparelho digestivo de um animal.
153
Livre tradução de: “And the real mover is concealed in the Counter, which is quite large enough (exclusive of
the clockwork) to contain a child of ten, twelve, or fourteen years of age”.
98

inglês com “O Turco”, em março de 1819, que teria sido um “catalizador” para Babbage
colocar no papel suas ideias sobre máquinas autômatas. Um outro exemplo mais recente154,
brevemente explorado no primeiro capítulo deste trabalho, foi a citação que Walter Benjamin
fez de “O Turco” em “Sobre o conceito de história”, trabalhando a lenda da máquina austro-
húngara como uma metáfora para iniciar sua crítica ao historicismo tradicional.
A visão de Kempelen, de um autômato capaz de jogar xadrez, começou a ser
efetivamente implementada com a construção, em 1912, da máquina “O Enxadrista” (no
original, El Ajedrecista) pelo cientista espanhol Leonardo Torres y Quevedo. O autômato de
Torres y Quevedo era extremamente limitado, conseguindo apenas realizar movimentos com
uma torre e um rei, contra uma torre utilizada pelo jogador humano, reproduzindo uma das
possibilidades de estágio final do jogo de xadrez. Porém, o grande avanço d´ “O Enxadrista”
está no fato de que esta máquina utilizava elementos de heurística (decisões baseadas no
cálculo do estado em que o sistema se encontra no momento determinado) para reduzir a
mobilidade da peça adversária e, desta forma, obter as posições mais vantajosas (cf.
RASSKIN-GUTMAN, 2009). Para Nick Montfort (2005), “O Enxadrista” pode ser
considerado o primeiro jogo eletrônico da história, um pioneiro da Inteligência Artificial
(AI)155, que começaria a ser verdadeiramente desenvolvida após a II Guerra Mundial.
Neste contexto do pós-guerra, podemos situar o início da abordagem acadêmica de
xadrez digital, com a produção de livros, artigos e programas experimentais voltados ao
objetivo de construir máquinas que simulassem o pensamento dos seres humanos. Embora
Norbert Wiener fizesse menções ao enxadrismo no final de Cybernetics, refletindo sobre
possíveis analogias entre as lógicas humana e computacional ao pensar sobre os princípios
necessários para a construção de uma máquina de xadrez156, e que, da mesma forma, John
Von Neumann já havia apontado a importância deste jogo para a construção de sua Teoria dos
Jogos, o primeiro trabalho a explorar este jogo como objeto principal de estudo para
inovações computacionais foi Programming a computer for playing chess, de Claude
Shannon, publicado em 1950. Neste artigo, Shannon explica que seu objetivo é elaborar um

154
Em verdade, o exemplo mais recente que poderíamos citar seria o Amazon Mechanical Turk - MTurk
(https://www.mturk.com/mturk/welcome), site da empresa estadunidense Amazon, no qual pessoas de todo o
mundo podem se candidatar a vagas remuneradas para executar tarefas normalmente atribuídas a agentes
inteligentes.
155
AI é a sigla em língua inglesa para Inteligência Artificial (Artificial Intelligence).
156
Nos capítulos suplementares de Cybernetics, introduzidos pela primeira vez na edição de 1961, Wiener olha
com mais atenção para o xadrez como um exemplo de atividade efetuada por máquinas com aprendizagem
autônoma.
99

programa (ou, como ele descreve, uma “rotina computacional” de xadrez) que pudesse ser
futuramente utilizado para a solução de problemas lógicos semelhantes, como a construção de
máquinas para telefonia, cálculos de operações matemáticas simbólicas, tradução de línguas,
entre outros. Shannon cita “O Turco” de von Kempelen e “O Enxadrista” de Torres y
Quevedo como parte de sua revisão de literatura, e declara:

A máquina de xadrez é ideal para começar [o trabalho computacional], já que: (1) o


problema é claramente definido tanto nas operações permitidas (os movimentos)
quanto no objetivo final (xeque-mate); (2) não é tão simples, de ser trivial, nem tão
difícil para alcançar uma solução satisfatória; (3) considera-se que o xadrez
normalmente requer “pensamento” para jogar com alto nível; a solução deste
problema vai nos forçar a admitir a possibilidade do pensamento mecanizado, ou
mais além, restringir o nosso conceito de “pensamento”; (4) a estrutura discreta do
xadrez combina bem com a natureza digital dos computadores modernos157.
(SHANNON, 1950, p. 2)

O cientista britânico Alan Turing escreveu sobre este jogo em um dos seus últimos
artigos, Digital computers applied to games158 (1953), demonstrando que computadores
poderiam ser programados para efetuarem jogadas de xadrez, desde que fossem fornecidas
para a máquina notações formais, sem conter ambiguidades, e com a definição de uma tabela
de valores para as peças e as jogadas, auxiliando a máquina a decidir pelo melhor movimento
a ser realizado – método parecido com o definido por Shannon em seu trabalho. Turing já
havia demonstrado seu interesse anterior pelo jogo na palestra “Lecture on the Automatic
Computing Engine”, ministrada na London Mathematical Society em 20 de fevereiro de 1947;
nesta fala, em que são definidos alguns princípios de funcionamento de máquinas digitais, o
britânico afirma que a reprodução do pensamento humano na computação dependeria de
ações de interação humano-computador, fornecidas pelos jogos digitais:

(...) a máquina deve poder ter contato com seres humanos para que ela possa se
adaptar aos seus padrões. O jogo de xadrez talvez seja muito apropriado para esta

157
Livre tradução de: “The chess machine is an ideal one to start with, since: (1) the problem is sharply defined
both in allowed operations (the moves) and in the ultimate goal (checkmate); (2) it is neither so simple as to be
trivial nor too difficult for satisfactory solution; (3) chess is generally considered to require "thinking" for
skilful play; a solution of this problem will force us either to admit the possibility of a mechanized thinking or
to further restrict our concept of "thinking"; (4) the discrete structure of chess fits well into the digital nature of
modern computers”.
158
Tanto na coletânea de artigos Computer Chess Compendium (1988), editada pelo especialista em xadrez
digital David Levy, quanto na coleção The Essential Turing (2004), com edição de Jack Copeland, “Digital
computers applied to games” aparece com o nome de “Chess”, que, segundo Copeland (2004, p. 568), seria o
nome apresentado em sua publicação original na coletânea do simpósio Faster Than Thought, editado em
1953. Porém, os manuscritos desse artigo apresentados pelo Turing Digital Archive trazem o título de “Digital
computers...”; desta forma, preferimos citá-lo com este nome.
100

finalidade, já que os movimentos do oponente da máquina vão automaticamente


prover esse contato.159 (TURING, 2004a, p. 294)

Turing voltou a se referir ao xadrez em Intelligent Machinery (1948), relatório técnico


escrito pelo cientista quando trabalhava para o National Physical Laboratory do Reino Unido,
que tinha o objetivo de discutir se as máquinas poderiam exibir comportamento inteligente
autônomo. Para tanto, Turing volta suas atenções para maneiras que os computadores
poderiam reproduzir as ações executadas pelo cérebro humano, destacando seis campos que
seriam mais vantajosos para os pesquisadores da área: na sequência especificada pelo
britânico, primeiro viriam jogos diversos (xadrez, jogo da velha, bridge, poker), a
aprendizagem de linguagens, a tradução de linguagens, a criptografia e a matemática
(TURING, 2004b). Neste caso, as aplicações que não possuem interferência externa às
máquinas seriam melhores para a realização deste tipo de trabalho, para Turing, reforçando
que

Por exemplo, para que a máquina possa ser capaz de jogar xadrez, seus únicos
órgãos precisam ser “olhos” capazes de distinguir as várias posições em um
tabuleiro especialmente feito para esse fim, e ter meios para anunciar seus próprios
movimentos160. (TURING. 2004b, p. 421).

Os esforços de Alan Turing em pensar o xadrez como atividade primordial para o


desenvolvimento das habilidades computacionais acabou por culminar em Turochamp,
algoritmo de xadrez que o cientista começou a desenvolver a partir de 1948, em coautoria
com David Champernowne. Turochamp utilizava os princípios descritos mais tarde por
Turing em Digital computers applied to games, como a atribuição de valores para as peças,
dando peso para possíveis conquistas, e o uso de heurística para a avaliação de futuros
movimentos, mas estas ideias não chegaram a serem implementadas como programa antes do
final da vida do cientista britânico. Porém, existem relatos que Turing teria testado o
algoritmo com jogos manuais, perpetrando ele mesmo a reprodução dos movimentos que um
computador faria se estivesse rodando sua programação (cf. LEVY, 1982; COPELAND,
2004).

159
Livre tradução: “(…) the machine must be allowed to have contact with human beings in order that it may
adapt itself to their standards. The game of chess may perhaps be rather suitable for this purpose, as the moves
of the machine’s opponent will automatically provide this contact”.
160
Livre tradução de: “For instance in order that the machine should be able to play chess its only organs need be
‘eyes’ capable of distinguishing the various positions on a specially made board, and means for announcing its
own moves”.
101

A heurística, rudimentarmente demonstrada no autômato de Torres y Quevedo, e


trabalhada com mais sofisticação por Claude Shannon e Alan Turing, foi também a base
principal dos jogos eletrônicos de xadrez elaborados a partir da segunda metade do século
XX, já com a utilização de dispositivos computacionais, e a partir do algoritmo Turochamp e
do artigo pioneiro de Shannon161, vários programas de enxadrismo foram elaborados. Desde
Machiavelli, algoritmo construído por Donald Michie e Shaun Wylie praticamente na mesma
época dos esforços de Turing (cf. LEVY, 1982), até as brincadeiras dos hackers dos
laboratórios de informática do MIT, o xadrez esteve presente no desenvolvimento inicial dos
dispositivos digitais, em um âmbito ainda acadêmico. Posteriormente, programas como o já
citado Microchess, bem como os campeonatos de enxadrismo digital, e aparelhos dedicados
como o Splice Byte XD 300162, uma máquina de “xadrez eletrônico” produzida no Brasil em
1982, também deram um novo impulso à prática de xadrez na era contemporânea. Quando a
fase inicial da história da computação foi ultrapassada, a partir da segunda metade dos anos
1980, surgiram partidas em servidores online, que contam com jogadores de todo o mundo,
desde iniciantes até profissionais, e a sofisticação destes algoritmos de xadrez levou à
construção de supercomputadores dedicados, como Deep Thought e Deep Blue da IBM, que
ganharam notoriedade ao enfrentar grandes mestres de xadrez como Garry Kasparov; em
maio de 1997, Deep Blue derrotou Kasparov em uma série de seis partidas, se tornando o
primeiro computador a ganhar um conjunto de jogos de um campeão mundial.

3.2 Xadrez e o desenvolvimento da Inteligência Artificial

De “El Ajedrecista”, um autômato que realizava poucas jogadas, até Deep Blue, um
poderoso computador capaz de vencer um campeão mundial de xadrez, os programas voltados
para este milenar jogo passaram por quase um século de desenvolvimento de suas capacidades

161
Os escritos de Alan Turing e Claude Shannon citados neste trabalho talvez sejam os mais conhecidos e
influentes do campo do xadrez computacional, mas igualmente importantes são artigos como Logical or non-
mathematical programmes (1952), de C.S. Strachey, que descreve como realizar a programação de um jogo de
damas. O artigo de Strachey influenciou trabalhos posteriores de Shannon, e foi citado por Allan Newell em
The Chess Machine: An Example of Dealing with a Complex Task by Adaptation (1955), que descreve com
detalhes as etapas e os processos necessários para o funcionamento do xadrez digital.
162
Como a maior parte dos hardwares e softwares de microcomputação produzidas no Brasil sob os auspícios da
reserva de mercado criada pela Política Nacional de Informática, a tecnologia da máquina Byte XD 300 é
clonada de um similar importado: o computador dedicado Fidelity Chess Challenger 7, lançado nos EUA em
1979.
102

heurísticas. Em verdade, a história do xadrez computacional se confunde com o surgimento


das teorias de Inteligência Artificial; como pudemos observar, pesquisadores pioneiros como
Alan Turing e Claude Shannon perceberam no xadrez uma oportunidade de colocar à prova
conceitos sobre a cognição humana que estavam sendo discutidos naquele momento histórico.
A frase “o xadrez é a drosófila da Inteligência Artificial”, atribuída ao matemático
russo Alexander Kronrod, nos revela a importância deste jogo para o desenvolvimento da AI.
Estas moscas da espécie Drosophila melanogaster foram o organismo modelo primordial do
campo da Genética em seu início, pelo seu curto ciclo de geração e por terem apenas quatro
cromossomos – e fazendo esta comparação, vemos que o xadrez também foi um “organismo
modelo”, por ser um jogo destacado como uma das grandes manifestações da inteligência e
cultura humana, com muita disponibilidade de materiais de pesquisa, e que é facilmente
reduzível a um conjunto de regras formais, ou seja, facilmente programável em um
computador. Para Monroe Newborn, um dos pioneiros das competições de xadrez
computacional, o interesse dos pesquisadores da AI pelo xadrez é facilmente explicável, pois
as suas características o tornam muito atrativo para quem se interessa pela solução de
problemas complexos: este seria um jogo de “informações perfeitas”, já que “suas regras são
bem definidas, incluindo definições de vitória, derrota e o empate. Não existem elementos de
sorte; todas as cartas, por assim dizer, estão sobre a mesa”163 (NEWBORN, 1975, p. 1).
Assim, o objetivo destes pioneiros da área, ao adotarem o xadrez como sua “drosófila”, pode
ser resumido nesta frase do pesquisador norte-americano Eliot Hearst:

Se alguém conseguir programar um programa de xadrez razoavelmente poderoso,


que se baseie no conhecimento sobre a maneira que os humanos realmente resolvem
problemas, a sua estrutura poderia ser aplicável em várias áreas além do xadrez 164.
(HEARST, 1977, p. 169)

Os primeiros modelos de AI advogavam a ideia de que seres inteligentes interagem


com o mundo por meio da mediação de sensações mentais (cf. EKBIA, 2008). Para Diego
Rasskin-Gutman (2009), os pioneiros da AI se basearam no fato de que, se os computadores
eram capazes de realizar tarefas consideradas como parte das funções cognitivas dos seres
humanos (como cálculos, solução de problemas e representações), seria então possível
elaborar níveis de analogia entre o cérebro e os dispositivos digitais; isso permitiria, desta

163
Livre tradução de: “The rules are well defined, including the definitions of a win, a loss, and a draw. There is
no element of chance; all the cards, so to speak, are on the table”.
164
Livre tradução de: "If one could design a reasonably powerful chess program that relied on knowledge about
how humans actually solve problems, its structure might prove applicable in a variety of areas besides chess".
103

forma, a construção de máquinas que emulariam processos mentais. Em Nós, ciborgues:


Tecnologias da Comunicação e Subjetividade Homem-Máquina (2012), Fátima Regis lista
algumas definições da Inteligência Artificial propostas por Margaret Boden, pesquisadora
inglesa de Ciências Cognitivas:

o estudo de como construir e/ou programar computadores para habilitá-los ao tipo de


coisas que as mentes podem fazer; fazer os computadores realizarem coisas que
requereriam inteligência caso fossem feitas por pessoas; o desenvolvimento de
computadores cujo desempenho observável possua aspectos que nos humanos
poderíamos atribuir aos processos mentais; a ciência da inteligência em geral, ou
mais precisamente, o âmago intelectual da ciência cognitiva. (BODEN apud REGIS,
2012, p. 132)

Mesmo que o termo Inteligência Artificial tenha sido cunhado apenas em 1956, por
John McCarthy, os estudos nesta área foram iniciados por Alan Turing em décadas anteriores.
Em 1936, no artigo On Computable Numbers, with an Application to the
Entscheidungsproblem, o pesquisador britânico fez uso de estudos sobre lógica formal em
termos matemáticos para traçar o funcionamento do que atualmente é chamado de “Máquina
de Turing”, um modelo abstrato de computador que foi a base para o desenvolvimento das
tecnologias digitais, bem como dos estudos de AI. Já no artigo Computing machinery and
intelligence, de 1950, Turing descreve o “jogo da imitação” (imitation game), posteriormente
rebatizado como “Teste de Turing”, que consiste em colocar numa sala um homem (A) e uma
mulher (B), separados de um interrogador (C) que pode ser de qualquer sexo, e que está do
outro lado se comunicando com os dois via sistema de texto. Os sujeitos A e B precisam
convencer C de que são do sexo oposto, ou seja, o homem tenta convencer que é mulher, e a
mulher, por sua vez, que é homem. Neste trabalho, a partir de seu questionamento inicial
“podem as máquinas pensar?” (can machines think?), Turing acreditava que, se uma máquina
pudesse realmente pensar e tomar o lugar de um dos interrogados, ao responder as questões
do interrogador no jogo de imitação, ela conseguiria ser identificada como um humano. Essa
afirmação pode ser observada na seguinte pergunta: “o que vai acontecer quando uma
máquina fizer o papel de A no jogo?”165 (TURING, 1950, p. 41).
Assim, podemos notar que a Inteligência Artificial trata da “inteligência das
máquinas”, fazendo parte do ramo da Ciência da Computação que visa desenvolver máquinas
que possam perceber seu ambiente e realizar ações que maximizem as chances de sucesso na
interação com pessoas; para tanto, foram criados algoritmos como o minimax, originalmente
uma estratégia de decisão popularizada por John Von Neumann em estudos de Teoria dos
165
Livre tradução de: “What will happen when a machine takes the part of A in this game?”
104

Jogos. O minimax funciona avaliando todas as jogadas possíveis, após a movimentação das
peças do jogador humano, que possam minimizar possíveis perdas, maximizando possíveis
ganhos – ou seja, no caso do xadrez computacional, a jogada a ser realizada deverá ser aquela
que obtenha a melhor vantagem para o computador na sua jogada. O uso deste algoritmo em
jogos digitais foi sugerido tanto por Norbert Wiener, em Cybernetics, quanto por Claude
Shannon, no já citado Programming a computer for playing chess, com a definição de valores
para as peças de xadrez (o artigo de Shannon faz uso dos dados ponderados anteriormente por
Adriaan de Groot, com a rainha valendo nove pontos, as torres valendo cinco, e assim por
diante) e para determinadas posições. O uso do minimax em programas de xadrez pode ser um
exemplo de modelos da chamada Inteligência Artificial forte, um conjunto de teorias
desenvolvidas desde o início do campo da AI que defende a ideia de que o pensamento é
computável, podendo ser reduzido a uma série de operações lógicas (cf. RASSKIN-
GUTMAN, 2009). A AI forte é uma abordagem considerada clássica, baseada em uma
programação que permite à máquina jogar xadrez e fazer cálculos aritméticos, sendo
exemplos de tarefas que requerem, principalmente, inteligência lógico-matemática.
Foi o desenvolvimento obtido na fase inicial da computação de algoritmos como o
minimax, ou sua variação alpha-beta, que permitiu o surgimento posterior de máquinas
dedicadas, como Deep Blue. A arquitetura de Deep Blue era baseada no método de busca por
força bruta (brute-force search), um processo de solução de problemas que procura calcular
todas as soluções possíveis para uma determinada questão – no caso do jogo de xadrez, o
cálculo é realizado para procurar, nos movimentos possíveis, a melhor estratégia para dominar
uma partida. Era na grande velocidade de cálculo que residia a força do computador da IBM,
que tinha a capacidade de analisar cerca de 200 milhões de jogadas de xadrez por segundo (cf.
EKBIA, 2008), procurando sempre um movimento que permitisse o posicionamento mais
proveitoso de suas peças no tabuleiro – poder calcular jogadas com boa rapidez é uma
vantagem em partidas competitivas, que possuem um limite de tempo definido para a
realização dos movimentos no tabuleiro. Como David B. Fogel nos explica, “utilizar um
hardware mais rápido para processar mais movimentos, no mesmo limite de tempo,
significava que os programas de xadrez podem olhar muito adiante, e antecipar um escopo
muito maior de possibilidades de movimentos e contra-ataques”166 (FOGEL, 2002, p. 26) – e
esta necessidade já era apresentada de forma integral nos trabalhos da fase inicial da

166
Livre tradução de: “Using faster hardware to process more boards in the same amount of time meant that
chess programs could look farther ahead and anticipate a greater possible range of moves and countermoves”.
105

computação, prevista por seus pioneiros, sendo implementada a partir do desenvolvimento


gradual dessas tecnologias.
A vitória de Deep Blue sobre o Grande Mestre Garry Kasparov foi um marco no
desenvolvimento da Inteligência Artificial, mas logo levantou uma série de críticas ao modo
como as pesquisas nesse campo vinham sendo conduzidas desde o seu início; ao comentar o
feito do computador da IBM, John McCarthy (1997) criticou o desenvolvimento de sistemas
baseados apenas no poder computacional, que privilegiavam rapidez de cálculo, e não
consideravam questões inerentes ao pensamento humano, como as abstrações visuais e a
capacidade de aprendizagem. McCarthy declara:

Talvez vamos descobrir que o xadrez é uma ferramenta não muito boa para entender
os mecanismos gerais do comportamento inteligente. Porém, pessoas cujos
interesses são atraídos para o xadrez computacional podem fazer a coisa certa ao
considerar como identificar os mecanismos intelectuais envolvidos [em um jogo de
xadrez]167. (MCCARTHY, 1997b)

As críticas de McCarthy ao desenvolvimento da AI, usando o xadrez como exemplo,


vêm de encontro às novas abordagens desse campo, como o Conexionismo (ou modelização
neural), que ganhou vigor a partir dos anos 1980 por explorar a ideia de que a máquina pode
“aprender” a partir do contexto em que está inserida, ou seja, desenvolver inteligência sem
precisar ser inteiramente programada. Para Margaret Boden, os sistemas conexionistas

consistem em redes ou unidades interconectadas de modo simples, nas quais


conceitos podem ser representados como um padrão geral de excitação distribuída
através de toda a rede. Essas redes são sistemas de processamento paralelo, no
sentido de que todas as unidades funcionam simultaneamente (excitando ou inibindo
seu vizinho imediato). (BODEN apud REGIS, 2012, p.133).

Já Alex Primo destaca a diferenciação que o filósofo João de Fernandes Teixeira faz
entre conexionismo e inteligência artificial simbólica:

Sistemas conexionistas e simbólicos são sistemas computacionais, mas há uma


grande diferença no tipo de computação que eles realizam. Na perspectiva
simbólica, a computação é essencialmente a transformação de símbolos de acordo
com regras – regras que estão estabelecidas em um programa. A ideia de
computação subjacente a um sistema conexionista é diferente: seu princípio é um
conjunto de processos causais através do quais as unidades se excitam ou se inibem,
sem empregar símbolos ou tampouco regras para manipulá-los. (TEIXEIRA apud
PRIMO, 2007, p. 178)

167
Livre tradução de: “Maybe it will turn out that chess is an inferior tool for understanding these general
mechanisms of intelligent behavior. However, people whose interests are attracted to computer chess would do
well to consider about how to identify the intellectual mechanisms involved”.
106

Por este motivo, Regis destaca: “enquanto GOFAI [em inglês, Good Old-Fashioned
Artificial Intelligence, a abordagem clássica da AI] e conexionismo são abordagens práticas,
inteligência artificial forte e fraca168 são posicionamentos filosóficos que põem em xeque os
critérios e limites que distinguiam humano e não-humano, artificial e natural” (REGIS, 2012,
p. 134). Empregando o xadrez como exemplo, poderíamos dizer que os pesquisadores da AI
forte consideram que as máquinas podem jogar da mesma forma que os seres humanos,
calculando as melhores jogadas e tentando antecipar movimentos do adversário; já os
“defensores” da AI fraca consideram que os computadores são capazes de realizar jogos
porque o xadrez é baseado em regras formais, facilmente programáveis em um sistema digital,
mas, ao mesmo tempo, não possuem consciência e reflexão sobre os atos que realizam no
tabuleiro.
Em verdade, os pesquisadores da AI que se dedicam ao xadrez computacional
parecem cada vez mais se conscientizar sobre as diferenças que podem ser encontradas entre
o jogo feito por humanos e o jogado por máquinas; para H.R. Ekbia (2008), computadores
jogam xadrez a partir de um método “calculativo”, privilegiando a postura de AI forte,
enquanto os seres humanos utilizam, sobretudo, habilidades perceptivas. Assim, percebemos
que uma boa parte do que Diego Rasskin-Gutman (2009) lista como os processos cognitivos
presentes em um jogo de xadrez (sinestesia, percepção, memória, aprendizagem, pensamento,
atenção, solução de problemas, decisão, criatividade e sentimentos) não estariam presentes na
maneira em que o jogo é realizado em computadores – daí as críticas ao uso do xadrez como
modelo prioritário para o desenvolvimento da Inteligência Artificial. Ao refletir sobre a
metáfora do xadrez como a drosófila da AI, John McCarthy ironiza a atenção dada pelos
pesquisadores do campo à velocidade computacional:

(...) o xadrez computacional se desenvolveu tanto quanto se a Genética poderia ter se


desenvolvido se os geneticistas tivessem concentrado seus esforços, iniciados em
1910, na criação de Drosophila para corridas. Nós teríamos tido algum
desenvolvimento científico com isso, mas, principalmente, nós teríamos moscas-de-
fruta muito rápidas169 (MCCARTHY, 1997a)

É interessante também lembrar que a vitória de Deep Blue e as subsequentes críticas


que foram feitas ao campo da AI surgiram em um momento de transformações na forma de

168
A máquina como uma ferramenta cuja utilidade se restringe à simulação da mente humana [nota da autora].
169
Livre tradução de: ”(...) computer chess has developed much as genetics might have if the geneticists had
concentrated their efforts starting in 1910 on breeding racing Drosophila. We would have some science, but
mainly we would have very fast fruit flies”.
107

pensar e desenvolver modelos de Inteligência Artificial. A partir do trabalho de Rodney


Brooks, no laboratório de AI do Massachusetts Institute of Technology (MIT), começou a se
delinear a chamada Nouvelle AI, um ramo de pesquisas que utiliza principalmente robôs para
experimentar a hipótese de que a inteligência não pode ser reduzida a certos módulos
funcionais, baseados em representações do mundo, como defendem a GOFAI e o
Conexionismo; para a Nouvelle AI, a inteligência poderia ser decomposta em módulos de
comportamentos de nível baixo, que gerariam comportamentos mais complexos a partir de
sua interação mútua (cf. BROOKS, 1990; EKBIA, 2008). Brooks afirma que sua linha é
baseada na hipótese do fundamento físico (physical grounding hypothesis), enunciando que
“(...) para construir um sistema inteligente, é necessário ter suas representações baseadas no
mundo físico”170 (BROOKS, 1990, p. 3), ou seja, todos os sistemas precisariam
necessariamente da interação física com o ambiente para construírem representações, e assim
construírem um comportamento inteligente.
Na Nouvelle AI, o xadrez já não é mais o principal objeto de pesquisas, sendo
preterido pelos autônomos corporificados, entretanto, não por acaso, um dos primeiros
trabalhos desenvolvidos neste campo da Inteligência Artificial é Elephants don’t play chess
(1990), de Rodney Brooks. O xadrez é utilizado no nome deste artigo (em português,
elefantes não jogam xadrez) como um símbolo dos modelos anteriores da AI, ao comparar
sistemas artificiais aos elefantes, animais que exibem comportamentos inteligentes variados –
em uma comparação com sistemas que são desenvolvidos para outras atividades, para além
dos cálculos e tomada de decisões do jogo de xadrez. Para reforçar essa ideia, em um
momento posterior do seu texto, Brooks afirma que “(...) é injusto dizer que um elefante não
tem uma inteligência que valha a pena ser estudada só porque ele não joga xadrez”171. Neste
uso do xadrez como uma metáfora do pensamento clássico sobre Inteligência Artificial,
podemos notar uma particularidade: mesmo que o jogo não seja mais o centro dos esforços
dos pesquisadores da área, sua importância para o surgimento da AI é sempre referenciada,
mesmo que de forma crítica, como também visto nos escritos de John McCarthy citados
acima.
Deste modo, podemos observar neste percurso que o xadrez, um jogo milenar
apreciado em todo o mundo e que traz em si muito da história e das culturas humanas, foi uma

170
Livre tradução de: “(…) to build a system that is intelligent it is necessary to have its representations
grounded in the physical world”.
171
Livre tradução de: “(…) it is unfair to claim that an elephant has no intelligence worth studying just because it
does not play chess”.
108

das pedras angulares do desenvolvimento dos dispositivos computacionais, e também de


divulgação sobre suas possíveis habilidades para um público leigo. O campo da Inteligência
Artificial, fortemente explorado na academia, e discutido com menor profundidade, mas com
muita curiosidade, por livros e revistas populares, utilizou o xadrez como seu objeto
primordial de pesquisa, partindo desde as explorações de Alan Turing e Claude Shannon, nos
anos 1950, até a grande capacidade de cálculo e heurística que permitiu a primeira vitória de
um computador sobre um grande mestre de xadrez, em 1997. A partir do êxito de Deep Blue,
as críticas ao uso do jogo como modelo primordial da AI (que surgiram a partir dos anos
1980) se tornaram muito mais frequentes dentro desse campo de pesquisas, especialmente
com a criação de modelos como a Nouvelle AI. Neste sentido, a ideia de que o xadrez é uma
das atividades intelectuais mais importantes na história da humanidade ganha um sentido mais
ampliado quando pensamos no seu papel crucial para ajudar a criar alguns dos dispositivos
técnicos mais avançados de suas épocas – desde autômatos mecânicos até programas
computacionais complexos.
109

4 COMPUTADORES PARA O POVO: GAMES, HOBBYISMO E AS REVISTAS


ESPECIALIZADAS

A edição de janeiro de 1975 da revista estadunidense Popular Electronics,


especializada em discussões sobre tecnologia eletrônica, trouxe uma grande novidade,
alardeada em letras garrafais em sua capa: “O Primeiro Kit de Microcomputador do Mundo
para Competir com os Modelos Comerciais... ‘ALTAIR 8800’”172. O Altair 8800,
desenvolvido pela empresa Micro Instrumentation and Telemetry Systems (MITS), era um
computador de 8-bits com memória RAM de 256 bytes, que não vinha de fábrica com
dispositivos de entrada ou de saída de dados; conforme descreve Steven Levy, em Hackers,

A única maneira com que ele podia falar com você era por meio das luzes piscantes
da sua parte frontal. Para todos os propósitos práticos de utilização, ele era surdo,
mudo e cego. Mas, como uma pessoa totalmente paralisada, cujo cérebro estaria
vivo, sua casca não-comunicativa obscurecia o fato de que um cérebro
computacional estava vivo e pulsante ali dentro. Isto era um computador, e o que os
hackers poderiam fazer com ele seria limitado apenas pelas suas próprias
imaginações.173 (LEVY, 2010, p. 190)

Tais capacidades técnicas parecem irrisórias após quatro décadas do seu lançamento,
porém, a reportagem da Popular Electronics fez questão de ressaltar o poder computacional
do pequeno Altair como “o mais poderoso computador já apresentado, como um projeto para
construção, em qualquer revista de eletrônica”174 (ROBERTS; YATES, 1975, p. 33),
decretando que a era dos computadores domésticos finalmente havia chegado, após anos de
descrições diversas pelos escritores de Ficção Científica175. Contudo, mais do que revelar a
transição que os dispositivos computacionais começaram a realizar nos anos 1970, de sair
definitivamente dos laboratórios de pesquisa para a sua adoção pelo público geral, a matéria
da revista estadunidense apontava para a consolidação de uma nova atividade de lazer entre o

172
Livre tradução de: “World´s First Minicomputer Kit to Rival Commercial Models… ‘ALTAIR 8800’”.
173
Livre tradução de: “The only way it could talk to you was by the flashing lights on the front. For all practical
purposes, it was deaf, dumb, and blind. But, like a totally paralyzed person whose brain was alive, its
noncommunicative shell obscured the fact that a computer brain was alive and ticking inside. It was a
computer, and what hackers could do with it would be limited only by their own imaginations”.
174
Livre tradução de: “It is the most powerful computer ever presented as a construction project in any
electronics magazine”.
175
De fato, a Ficção Científica discutiu por décadas os efeitos sociais da adoção das tecnologias computacionais,
mesmo que suas obras não tenham antecipado o computador em si; para um melhor entendimento destas
questões envolvendo computadores e a FC, ver REGIS, 2012.
110

seu público-alvo: o hobbyismo de microcomputadores, que tinha nos games uma de suas
expressões mais ativas e visíveis. Esta união entre hobbyismo, os jogos eletrônicos e as
revistas especializadas em computação ajudaram a moldar o início da produção e do consumo
das tecnologias de HCI em diversos lugares do mundo, entre os anos 1970 e 1980.

Figura 12 - A capa da revista Popular Electronics com o Altair 8800: a chegada


definitiva dos microcomputadores ao mercado

Fonte: Popular Electronics, jan 1975.


111

Até o aparecimento de microcomputadores como o Altair 8800, os dispositivos


computacionais ainda estavam confinados ao público especializado – os “cérebros
eletrônicos”, como eram chamados pela imprensa176, ainda eram desconhecidos da população
em geral, muito devido aos altos custos destes equipamentos, e a necessidade de
conhecimento técnico para a sua operação. Mesmo que estudantes como Peter Samson, citado
no capítulo anterior, já haviam começado a desenvolver programas lúdicos como os jogos de
xadrez, ainda nos anos 1960, as atividades dos hackers eram restritas às suas universidades de
origem pela simples ausência destes equipamentos em outros ambientes. Porém, conforme
relatam Martin Campbell-Kelly, William Aspray, Nathan Ensmenger e Jeffrey R. Yost, estes
estudantes treinados em computação começaram a pensar novos usos para estas máquinas,
como uma verdadeira atividade de lazer:

Muitos dos usuários dos [computadores] PDP-8 se tornaram muito ligados a eles,
referindo-se a eles como seus “computadores pessoais”. Alguns usuários
desenvolveram jogos para estas máquinas – um dos mais populares era uma
simulação de um veículo lunar, que o usuário tinha que guiar para um pouso seguro.
A experiência de colocar as mãos na massa na computação produziu uma grande
cultura de hobbyismo computacional, não apenas entre estudantes e jovens técnicos,
mas também entre a comunidade de engenheiros mais experientes. 177 (CAMPBELL-
KELLY et al., 2013, p. 218)

4.1 Hobbyismo: um lazer “sério”

Segundo os conceitos elaborados por Robert A. Stebbins em seu livro Amateurs,


Professionals, and Serious Leisure, um hobby é “(...) uma busca especializada que vai além
da ocupação de um indivíduo, uma busca que é particularmente interessante e agradável por
conta dos seus benefícios duráveis” (STEBBINS, 1992, p. 10), que teria como atributos a
motivação do seu seguidor, um papel institucional de separação em relação ao trabalho, e uma
contribuição em termos culturais, comerciais e/ou de satisfação ao seguidor (1992, p. 18).

176
Por exemplo, na reportagem “’Cérebro eletrônico’ emitirá contas de água em São Paulo”, publicada no Jornal
do Brasil de 28 de julho de 1957, que noticiou a montagem do computador UNIVAC-120 importado pelo
governo paulista para o Departamento de Águas e Esgotos da capital; este é considerado o primeiro
computador do país.
177
Livre tradução de: “Many of the users of PDP-8s became very attached to them, regarding them as their
‘personal’ computers. Some users developed games for the machines—one of the most popular was a
simulation of a moon-landing vehicle that the user had to guide to a safe landing. The experience of hands-on
computing produced a strong computer hobbyist culture, not only among students and young technicians but
also in the community of seasoned engineers”.
112

Para Stebbins, estes amadores se especializam em conhecimentos específicos, que por vezes
exige estudo técnico sobre o interesse desejado, mesmo que a execução desta atividade seja
absolutamente voluntária, sem a necessidade da aferição de lucros financeiros, que
configuraria atividade de trabalho formal.
Neste tipo de definição do “lazer sério”, no qual o hobby se encaixa, sempre é
retomada a distinção aristotélica entre trabalho e divertimento, presente em escritos como
Política e, principalmente, Ética a Nicômaco. Para Aristóteles, o ser humano procura o
divertimento sem outras coisas em vista, mas a felicidade não estaria na recreação, que deve
ser desejada apenas como uma atividade para o relaxamento dos seres. As atividades lúdicas,
então, não seriam uma finalidade, já que são realizadas para a boa continuidade do trabalho e
dos atos virtuosos:

Com efeito, tudo que escolhemos, escolhemo-lo tendo em vista outra coisa – com
exceção da felicidade, que é um bem em si mesma. Desse modo, esforçar-se e
trabalhar por causa de recreação parece algo tolo e absolutamente pueril (...) O
relaxamento, portanto, não é um fim, pois nós o cultivamos tendo em vista a
continuidade da nossa atividade. (ARISTÓTELES, 2006, p. 228)

Em Política, encontramos outra passagem que destaca o conceito de Aristóteles sobre


a função social do divertimento, com bastante clareza:

Se os dois [repouso e trabalho] são indispensáveis, mas o repouso é mais preferível


que o trabalho, sendo sua finalidade, devemos descobrir em que se deve empregar o
lazer. Certamente não seria no divertimento próprio; senão, o divertimento seria o
nosso fim último. Mas se isto é impossível, e se divertimentos são mais utilizados
enquanto se trabalha (pois quem se esforça precisa de relaxamento, e o relaxamento
é a finalidade do divertimento, e o trabalho é acompanhado de fadiga e esforços),
enquanto devemos, por esta razão, permitir os divertimentos, mas devemos ser
cuidadosos para usá-los no tempo certo, usando-os como um remédio para os
malefícios do trabalho. Pois este tipo de movimento da alma é relaxante e
repousante por causa do prazer que ele envolve. 178 (ARISTÓTELES, 1998, p. 229)

A partir destas considerações aristotélicas, foi fundada uma noção sobre o lúdico que
se mostrou central em todo o pensamento sobre o tema, ao longo de vários séculos: a
oposição entre jogo e seriedade, que passou a ser contestada apenas no século XX, com o
trabalho de pensadores como Johan Huizinga e Roger Callois. Porém, mesmo com as críticas

178
Livre tradução de: “If both are required, but leisured activity is more choiceworthy than work and is its end,
we should try to discover what people should do for leisured activity. For surely they should not be amusing
themselves, otherwise amusement would have to be our end in life. But if that is impossible, and if
amusements are more to be used while one is at work (for one who exerts himself needs relaxation, relaxation
is the end of amusement, and work is accompanied by toil and strain), then we should, for this reason, permit
amusement, but we should be careful to use it at the right time, dispensing it as a medicine for the ills of work.
For this sort of motion of the soul is relaxing and restful because of the pleasure it involves”.
113

de Huizinga e Callois à oposição aristotélica, a visão acadêmica sobre o hobbyismo continuou


a separar o trabalho cotidiano do seu seguidor em relação a sua atividade especializada de
lazer, embora considerando que esta modalidade de lazer aproximaria estas duas atividades;
para Steven M Gelber, “os hobbies se desenvolveram como uma categoria de atividades
sociais valorizadas, no século XIX, porque eles constroem pontes entre os mundos do
trabalho e de casa”179 (GELBER, 1999, p. 2). Tanto Gelber quanto Stebbins são categóricos
ao afirmar que esta visão sobre o hobby surgiu a partir da era vitoriana, quando o trabalho
passou a ser executado em espaços fora de casa, levando à emergência do lazer doméstico,
que devia, no entanto, ser tratado com cautela:

O imperativo ideológico para os passatempos úteis entrou em conflito com a


suposição comum de que o lazer devia ser recuperativo, ao mesmo tempo não
distraindo seus participantes do seu trabalho. Consequentemente, as pessoas eram
aconselhadas a seguir um hobby útil – mas não muito intensamente.180 (GELBER,
1999, p. 26)

A partir desta questão levantada por Gelber, que mostra um certo fundo aristotélico do
entendimento sobre formas de lazer socialmente aceitas como sérias, a partir da tentativa de
uma separação entre o ganha-pão cotidiano e o relaxamento necessário ao trabalhador,
entendemos que o costume da exploração de habilidades técnicas como divertimento, a partir
do século XX, parece ser o maior exemplo do hobby como estas atividades ideais. Ao
descrever o surgimento das revistas especializadas em hobbies técnicos nos EUA, Luis Latour
cita a transformação deste país, depois dos eventos da II Guerra Mundial, de uma sociedade
semiagrária em pós-industrial, voltada para a produção de bens e o consumo de serviços,
gerando também o surgimento de formas de divertimento que refletiam essa mudança de
perfil:

A natureza pós-industrial do final da década de 1950 e do começo dos anos 1960


nos Estados Unidos não estava apenas transformando as ocupações das pessoas, e as
suas formas de trabalho, mas também encorajou novas éticas de trabalho que
permitiam mais tempo de lazer, e cronogramas de trabalho menos extenuantes. 181
(LATOUR, 2003, p. 45)

179
Livre tradução de: “Hobbies developed as a category of socially valued leisure activity in the nineteenth
century because they bridge the worlds of work and home”.
180
Livre tradução de: “The ideological imperative for useful pastimes conflicted with the general assumption
that leisure should be recuperative while not distracting participants from work. Consequently people were
counseled to pursue a useful hobby - but not too intensely”.
181
Livre tradução de: “The post-industrial nature of the late fifties and early sixties in the United States was not
only transforming people´s occupations and the way in which they worked, but it also encouraged new work
ethics that allowed for more leisure time and less strenuous schedules”.
114

A partir deste contexto da modificação dos modos de trabalho e lazer, práticas de


hobbyismo emergiram em diversas áreas de interesse. Robert A. Stebbins (1992, p. 11-14)
separa os hobbies em quatro tipos fundamentais: o de colecionador (de selos, brinquedos,
acessórios etc.); de atividades físicas e/ou artísticas; da participação em competições diversas;
e de fabricantes e “fuçadores” (no original em inglês, makers and tinkerers), entusiastas que
utilizam seu tempo livre para a fabricação, o desenvolvimento de objetos técnicos, ou a
criação especializada de animais de estimação, entre outras atividades. Em comum, os
fabricantes e fuçadores têm a paixão pelo entendimento de todas as questões em envolvem
seu hobby, construindo conhecimentos, habilidades e valores comuns, mas mantendo a
autonomia na programação de suas atividades, o que diferenciaria estes esforços do trabalho
cotidiano:

Trabalhadores hobbyistas escolhem seus próprios projetos, compram seus próprios


materiais e ferramentas, trabalham no seu próprio ritmo, no seu espaço próprio, e
criam um objeto inteiro, do começo até o final. A liberdade com que eles operam, e
o orgulho na produção dos seus esforços distinguem o hobby do trabalho...182
(GELBER, 1999, p. 155)

Nesta categoria, destacamos os esforços dos fabricantes e fuçadores interessados em


trabalhos técnicos, como os estudiosos de eletrônica, que estavam particularmente
interessados em concentrar seus esforços na exploração das possibilidades trazidas pelos
meios de comunicação que surgiram a partir do século XX: a radiodifusão, que gerou os
rádio-clubes183 e o radioamadorismo; a televisão, que provocou o interesse na modificação de
aparelhos e imagens184; e, posteriormente, os computadores. Luis Latour (2003, p. 66-67)
atribui esse interesse nos avanços tecnológicos ao clima pós-II Guerra Mundial, com a
construção de um imaginário voltado para o saber tecnocientífico – o que estaria de acordo
com a visão de Vannevar Bush em As We May Think, como discutimos no primeiro capítulo.

182
Livre tradução de: “Hobbyist workers choose their own projects, acquire their own materials and tools, work
at their own pace in their own space, and create a whole object from start to finish. The freedom with which
they operate, and the pride in the product of their efforts distinguishes the hobby from work...”.
183
Os rádio-clubes, agremiações de interessados nas tecnologias de transmissão de ondas sonoras, surgiram no
Brasil durante as primeiras décadas do século XX, gerando posteriormente muitas das primeiras emissoras de
rádio do país. De acordo com Carlos Henrique Antunes Taparelli (2002, p. 18), “Nas modalidades rádio-
sociedade e rádio-clube, que, depois da criação da nossa primeira estação de rádio, surgiram em todo o Brasil,
o princípio era o mesmo: um grupo de pessoas pagava uma mensalidade para a manutenção do equipamento e
o salário dos funcionários, e alguns ainda cediam discos para serem ouvidos por todos”, reforçando o caráter
hobbyista da introdução da radiodifusão brasileira.
184
Por exemplo, o trabalho de Ralph Baer com imagens televisivas, que gerou o primeiro console de videogame,
conforme citamos no segundo capítulo.
115

Porém, o próprio exemplo dos rádio-clubes brasileiros, constituídos nas décadas anteriores ao
início desse conflito, nos aponta que a adoção dos estudos de eletrônica já se encontravam
presentes entre os hobbyistas em todo mundo. Em verdade, ao observarmos as revistas
voltadas à chamada “ciência popular”, de divulgação científica e discussão técnica, como as
estadunidenses Scientific American (lançada em 1845) e Popular Science (lançada em 1872),
podemos notar a inclusão de artigos voltados para a produção caseira de equipamentos
eletrônicos já a partir do início do século XX, alimentando o discurso científico da
Modernidade, evocando também as obras de Ficção Científica lançadas neste mesmo período,
criadas também a partir destes contextos (ver REGIS, 2012). No Brasil, revistas lançadas
pelos rádio-clubes cariocas como Rádio (1923 - 1926) e Electron (1926), publicadas pela
Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, e Antenna (1926 - 2007), de propriedade do Rádio Clube
do Brasil185, tiveram a primazia do pioneirismo da difusão do conhecimento técnico em
eletrônica em país, demonstrando tanto o estímulo ao saber tecnocientífico como promotor do
progresso social186, quanto agindo como agente de estimulo à adoção deste hobby de caráter
fabricante e fuçador.

Figura 13 - Publicação de desenho de circuito elétrico


para transmissores de rádio na revista Electron: a
difusão popular do conhecimento técnico

Fonte: Revista Electron, n. 1, fev 1926, p. 11.

185
Posteriormente publicada pela Antenna Edições Técnicas, editora criada para dar continuidade à publicação
da revista, que ganhou o nome de Antenna - Eletrônica Popular nos anos 1980.
186
Como exemplo destes discursos, os exemplares da revista Electron disponibilizados online pela Fundação
Oswaldo Cruz – Fiocruz (http://www.fiocruz.br/radiosociedade/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=61) sempre
trazem textos sobre higiene e saúde, juntamente com os materiais técnicos sobre radiodifusão.
116

Para tanto, as revistas especializadas serviram como veículo de divulgação deste


conhecimento tecnocientífico, e também de criação de um público hobbyista interessado na
exploração das possibilidades destes novos meios de comunicação eletrônicos, servindo a um
duplo propósito: refletindo as mudanças nas formas de trabalho e lazer ocorridas a partir do
século XIX, ao mesmo tempo que ajudavam a criar modalidades de hobbyismo e suas
comunidades de entusiastas. Para Luis Latour, “estas atividades se centraram em revistas, em
parte, porque elas ajudavam a legitimar essas atividades, ao identificar uma comunidade mais
ampla que possuía os mesmos interesses”187 (2006, p. 60).

4.2 As revistas de hobbyismo computacional

Em setembro de 1975, poucos meses depois do anúncio de lançamento do Altair 8800,


um dos primeiros periódicos dedicado ao hobbyismo computacional chegava às bancas
estadunidenses: a revista Byte, lançada por Wayne Green e Carl Helmers. O lançamento de
Byte demonstra como este novo hobby estava intimamente conectado com as comunidades de
praticantes de eletrônica, já que Green era o editor-chefe da 73 Magazine, uma revista voltada
à prática da radiocomunicação amadora, de enorme prestigio entre os entusiastas dos Estados
Unidos, e que publicava material sobre computação desde o final dos anos 1960188 – antes
mesmo da invenção dos microprocessadores, que impulsionaram a busca pela miniaturização
dos dispositivos computacionais189; para Kevin Gotkin (2014, p. 6), este “(...) tipo diferente
de amador, o radioamador, se tornou o antepassado literal e figurativo do hobbyista de
computador...”190.
Outras publicações voltadas aos diversos setores do hobbyismo eletrônico também
publicaram regularmente matérias sobre a evolução da indústria computacional, relatando

187
Livre tradução de “These activities centred on magazines in part because they helped to legitimise these
activities by identifying a wider community with similar interests”.
188
Em pesquisas no arquivo da 73 Magazine, disponível no site Archive.org, o primeiro resultado para a palavra
“computer” foi o artigo “Computer Card Construction”, publicado na edição de dezembro de 1967, que
explicava a construção artesanal de placas de circuito impresso para uso em aparelhos de radioamador.
189
O microprocessador foi inventado em 1971 pela empresa estadunidense Intel, e foi fundamental para o
surgimento da computação pessoal, já que possibilitou a diminuição dos circuitos necessários para o
funcionamento deste tipo de máquina.
190
Livre tradução de: “(…) different kind of amateur, the radio ham, became the computer hobbyist’s literal and
figurative forefather...”
117

pesquisas acadêmicas e aplicações industriais; como exemplo, podemos recorrer à revista


Electronic Age, publicada pela empresa RCA, que na edição do verão estadunidense de 1969
trouxe reportagens sobre o estado do desenvolvimento da computação na União Soviética,
relatando como os computadores eram utilizados nas empresas estatais, e também sobre obras
artísticas criadas em diversos países com o auxílio computacional. Até os anos 1970, embora
a maioria das revistas de hobbyismo eletrônico raramente publicassem material técnico sobre
computadores, como esquemas que permitissem a reprodução de circuitos, a presença de
matérias sobre computação era frequente, tanto quanto as publicidades de cursos a distância
de ensino de eletrônica para computadores, indicando um certo interesse dos leitores (e/ou dos
editores) sobre este assunto, o que acabou culminando na apresentação do Altair 8800 aos
leitores da Popular Electronics em 1975, e, posteriormente, na publicação de revistas
especializadas como a Byte.

Figura 14 - Publicidade de cursos técnicos em computação nos anos 1950: treinamento para
um mercado crescente

Fonte: Revista Electronics Illustrated, v. 2, n. 8, ago 1959, p. 111.


118

Porém, a linha evolutiva que levou ao aparecimento de revistas como Byte contou
também com um outro tipo de publicação para unir os hobbyistas computacionais: os boletins
dos clubes de computação (em inglês, computer clubs newsletters), órgãos oficiais das
associações de entusiastas que se reuniam para trocar conhecimentos, peças, e realizar
experiências em conjunto. Estes clubes começaram a ser estabelecidos ainda nos anos 1960,
com o surgimento de espaços de discussão como a Amateur Computer Society – ACS, criada
em 1966 na cidade de Nova Iorque por Stephen B. Gray, engenheiro da empresa Sylvania
Electric Products – que, coincidentemente ou não, era também um dos escritores mais
constantes da seção de computação da Electronics Magazine, conhecida revista voltada para
os trabalhadores da indústria eletrônica191. Em depoimento para a Creative Computing,
refletindo sobre os anos iniciais da computação pessoal, Gray relata suas motivações para a
criação da ACS:

Vinte anos atrás, quando eu era o editor de computação na revista Electronics da


[editora] McGraw-Hill, percebi o quanto eu poderia aprender ao construir um
computador. Não demorou muito tempo para descobrir o quão difícil era apenas
começar. Não existiam kits, nem livros de instrução. Os livros sobre computação
normalmente continham esquemas parciais, mas nenhum ensinava como conectar as
diversas seções. Após anos tentando construir um computador digital no meu tempo
livre, eu comecei a perceber o quão difícil deveria ser para outros hobbyistas.192
(GRAY, 1984, p. 6)

Para facilitar a comunicação entre os membros da sociedade, que residiam em


diferentes cidades, a ACS publicou o número inicial da ACS Newsletter em agosto de 1966.
Enviado para cerca de 60 pessoas (cf. GRAY, 1966, p. 6), este primeiro boletim trazia
informações sobre como conseguir informações sobre diferentes questões técnicas, indicando
as melhores peças de hardware, livros e outras leituras úteis, além de explicitar o início da
história da ACS, e os objetivos da sociedade. A importância da ACS para o início do
hobbyismo é disputada por historiadores e pioneiros da computação; em um artigo para o

191
A popularidade de Electronics Magazine se deve principalmente à publicação, em abril de 1965, de
“Cramming more components onto integrated circuits”, artigo de Gordon Moore, fundador da Intel. Este texto
é considerado seminal na história da computação por introduzir a chamada “Lei de Moore”: a previsão de que
a indústria da computação conseguiria dobrar a capacidade dos seus circuitos a cada 24 meses, revisada
posteriormente para 18 meses (cf. WATSON, 2012, p. 289; CAMPBELL-KELLY et al., 2013, p. 222).
192
Livre tradução de: “Twenty years ago, while I was the computers editor on Electronics magazine at McGraw-
Hill, I realized there was much I could learn from building a computer. It didn't take long to find out how
difficult it was just to get started. There were no kits, no "cookbooks." Computer textbooks usually contained
partial schematics, but none told how to connect the various sections. After several years of trying to build a
digital computer in my spare time, I began to realize how difficult it must be for other hobbyists”.
119

periódico acadêmico Computer, em março de 1977, Jim Warren193 menciona a ACS como um
clube que “(...) não foi um líder das atividades de hobbyismo computacional e, na verdade,
parece ser desconhecido da maioria dos hobbyistas atuais”194 (1977, p. 10), porém,
pesquisadores contemporâneos como Martin Campbell-Kelly e colaboradores (2013) e Kevin
Gotkin (2014) reafirmam a importância da ACS, especialmente em relação ao seu boletim,
considerado o primeiro newsletter do hobbyismo computacional, construindo espaços de
discussão e consumo da tecnologia que mais tarde foram ocupados pelos periódicos
profissionais, como a revista Byte.
Porém, a grande diferença de Byte para publicações anteriores, como as voltadas para
eletrônicos, ou as newsletters dos clubes de computação, ou até mesmo as revistas
exclusivamente computacionais como Creative Computing, lançada em outubro de 1974 por
David H. Ahl, era sua ligação profunda com o lado técnico do hobbyismo de computadores:
aos moldes da 73 Magazine, sua inspiração editorial, Byte era voltada para os hobbyistas que
queriam colocar as mãos na massa, construir seus próprios equipamentos. Em seu primeiro
número, com a emblemática capa que declarava ser o computador o “maior brinquedo do
mundo”, Byte já mostrava sua ambição: ser o veículo da revolução da computação pessoal;
como descrito por Carl Helmers no editorial dessa edição, “o conteúdo técnico da BYTE é
basicamente dividido pela trilogia do hardware, software e aplicações. Cada componente
dessa trilogia é como se fosse a faceta de uma pedra valiosa, brilhante – o computador caseiro
aplicado a usos pessoais”195 (HELMERS, 1975, p. 4). Contudo, a afirmação de Helmers não
se revelou verdadeira nos primeiros anos do período, já que Byte preferiu se focar no
maquinário, deixando os programas para as suas (várias) páginas de propaganda; segundo
Luis Latour,

Enquanto Byte se concentrou nos projetos de hardware e na desmistificação dos


conceitos computacionais, ela negligenciou, de várias maneiras, a importante
ascensão do software como o parceiro lógico da revolução computacional. Os
primeiros anos da Byte refletiram os interesses daqueles que viam o futuro como

193
O matemático Jim Warren foi o primeiro editor da revista estadunidense Dr. Dobbs Journal of Computer
Calisthenics & Orthodontia, popular publicação hobbyista lançada em janeiro de 1976.
194
Livre tradução de: “However, it has not been a leader in the computer hobbyist activities and, in fact, appears
to be unknown by the majority of present-day hobbyists”.
195
Livre tradução de: “The technical content of BYTE is roughly divided into the trilogy of hardware, software
and applications. Each component of the trilogy is like a facet of a brilliant gem - the home brew computer
applied to personal uses”.
120

sendo construído a partir do computador, muitas vezes sem uma ideia clara sobre os
usos e objetivos práticos para estas máquinas. 196 (LATOUR, 2003, p. 63)

Mesmo com suas limitações e críticas, não se pode negar o importante papel da revista
Byte para a cultura computacional estadunidense, fomentando o hobbyismo e criando
mecanismos de circulação de novas ideias e soluções. No Brasil, este papel exploratório foi
assumido pela Micro Sistemas, publicação lançada em 1981 pela jornalista carioca Alda
Surerus Campos, que tem a primazia de ser considerada como a primeira revista tupiniquim
voltada exclusivamente ao público de hobbyistas computacionais197. Segundo Campos, em
depoimento ao Museu da Computação e Informática – MCI198, a Micro Sistemas foi elaborada
a pedido do seu pai, Aldenor Campos, empresário que começava a investir no ramo dos
computadores pessoais, abrindo empresas de produção e venda destes equipamentos: “A loja
não estava vendendo como esperado, pois o público ainda não estava informado, não havia
cultura. Ele [Aldenor Campos] então me entregou uma pilha de revistas americanas e disse:
‘Precisamos de algo assim no Brasil. Você é jornalista’” (CAMPOS, 2002). Nesta fala da
jornalista carioca, dois aspectos do início da cultura computacional no país se tornam
evidentes: a inspiração nos conteúdos publicados pelos periódicos estadunidenses, já que
existiam poucos locais de circulação deste tipo de conhecimento no Brasil, e a própria
natureza das revistas computacionais, que não surgiram a partir de demandas e/ou esforços da
comunidade hobbyista, como aconteceu nos Estados Unidos – os periódicos que se tornaram
mais notórios no Brasil, como Micro Sistemas, Geração Prológica199 e MicroHobby200 eram
publicados por fabricantes de microcomputadores, com o mesmo objetivo expresso por
Aldenor Campos a sua filha: fornecer conteúdos sobre informática que pudessem circular pela

196
Livre tradução de: “While Byte concentrated on hardware projects and the demystification of computing
concepts, it neglected in many ways the important ascent of software as the logical partner to the computer
revolution. The first few years of Byte reflected the interests of those who saw the future as being built through
the computer often without clear ideas of uses and practical goals for the machines”.
197
Mesmo que Micro Sistemas seja costumeiramente lembrada como a primeira revista totalmente dedicada aos
computadores no Brasil, é interessante também lembrar que conteúdos da revista Byte foram reproduzidos
desde o primeiro número (em fevereiro de 1977) da revista Nova Eletrônica, mostrando, de certa forma, traços
das conexões entre hobbyismo eletrônico e a computação em solo tupiniquim.
198
http://www.mci.org.br
199
Publicada pela Prológica, fabricante nacional de microcomputadores, atendendo ao público consumidor da
sua linha de equipamentos.
200
Publicada pela Microdigital Eletrônica, empresa mencionada no capítulo anterior, para os usuários dos
computadores TK.
121

pequena comunidade hobbyista brasileira da época, criando um mercado para os produtos


nacionais, sob os auspícios das políticas de protecionismo da Ditadura Militar.
Assim, fica claro que não foram as comunidades hobbyistas que criaram as revistas
computacionais do Brasil, mas, de forma inversa, estas revistas começaram a divulgar a
computação como um hobby disponível para os brasileiros. Essa inversão de objetivos gerou
uma particularidade: como observado nas reportagens disponíveis nos periódicos
computacionais nacionais, o foco do público hobbyista do Brasil não era construir seus
próprios equipamentos, mas sim explorar as possibilidades dos computadores pessoais que
eram vendidos no mercado. Explorar estas possibilidades, nos anos 1970 e 1980, implicava no
desenvolvimento de programas que dessem utilidades práticas ao “maior brinquedo do
mundo”, e essa utilidade logo se traduziu em um formato lúdico: os games.

4.3 Games nas revistas de computação: educação prática sobre a tecnologia

Mesmo antes do surgimento das revistas especializadas em computação nos EUA,


reportagens sobre games já se encontravam presentem em periódicos voltados para o
hobbyismo eletrônico, embora muitos dos jogos fossem apenas eletrônicos, e não
computadorizados, como o dispositivo Geniac, um brinquedo que permitia jogos simples com
lógica booleana, apresentado pela Popular Electronics em junho de 1955. Matérias
explicando a montagem deste tipo de jogos, com esquemas elétricos para permitir sua
reprodução pelos leitores, também apareciam nos periódicos hobbyistas; um exemplo é o
“Electronic Numbers Game” apresentado na edição de abril de 1960 da Electronics
Illustrated, que, segundo seu autor, “(...) realmente é um computador em miniatura. Ele é fácil
de construir, usando oito diodos 1N34A, e pode também ajudar os jovens a melhorarem suas
somas com totais com três dígitos”201 (CADDEN, 1960, p. 81). Além disso, propagandas de
“minicomputadores” sempre se faziam presentes, como o Minivac 601 Digital Computer Kit,
um kit eletromecânico202 criado em 1961 por Claude Shannon com o objetivo de ensinar
fundamentos de eletrônica e computação para crianças.

201
Livre tradução de: “(…) is really a miniature computer. It is easy to build using eight 1N34A diodes, and can
also help the youngsters brush-up on simple addition involving three-digit totals”.
202
Nos anos 1960 e 1970, estes “minicomputadores” eram populares nos EUA e Europa como uma introdução à
eletrônica para jovens, estando presentes até mesmo em países da Cortina de Ferro, nos quais a fabricação de
122

Figura 15 - Minivac 601: um “computador” para


crianças inventado por Claude Shannon

Fonte: Electronics Illustrated, nov. 1961, p. 113.

O que estes exemplos estadunidenses dos anos 1950 e 1960 nos apontam é uma
exploração dos jogos eletrônicos de uma forma mais rudimentar pelo hobbyismo eletrônico,
servindo apenas como uma ferramenta de atração de novos interessados, especialmente para
crianças. Tal visão é compartilhada por Zbigniew Stachniak, ao declarar que

Desde o final dos anos 1940, entusiastas de computação e dedicados educadores


estiveram envolvidos em uma miríade de atividades voltadas à computação, desde o
design de computadores de brinquedo e auxílios educacionais, até a montagem de
publicações e de grupos e organizações sociais de computação.203 (STACHNIAK,
2015, p. 13)

bens de consumo não era a prioridade industrial – por exemplo, a Alemanha Oriental produziu o PIKO dat, um
“computador de brinquedo” (spielzeug-computer), em 1969.
203
Livre tradução de: “Since the end of the 1940s, computer enthusiasts and dedicated educators had been
involved in a range of computing-related activities from the design of computer toys and educational aids to
publishing and setting up computer social groups and organizations”.
123

Este cenário começou a mudar nos EUA a partir dos anos 1970, com a introdução dos
microprocessadores, que permitiram, entre outras coisas, o desenvolvimento dos primeiros
jogos eletrônicos comerciais, como observaremos melhor no próximo capítulo. Porém, até
mesmo antes da exploração comercial dos games, revistas de hobbyismo eletrônico já
publicavam conteúdos para a fabricação de jogos, como o “Electronic Tag Game” publicado
pela Popular Electronics em novembro de 1972 – coincidentemente ou não, a mesma época
de lançamento comercial do Atari Pong, que já havia sido testado em estabelecimentos da
Califórnia alguns meses antes. O tag game204 apresentado pela revista tinha gráficos parecidos
com Pong, além de ser controlado por uma interface física (botões) que também eram usados
pelo jogo da Atari, mesmo que esta inspiração não tenha sido explicitada pelo autor da
matéria. Mesmo a sua mecânica de jogo não apresentava diferenças significativas; enquanto
Pong era basicamente um jogo de tênis de mesa eletrônico, com uma bola sendo rebatida por
dois retângulos que faziam o papel de raquetes, o pega-pega era jogado apenas com os
retângulos, que deviam se tocar para “apanhar” o outro. Porém, a presença desta adaptação
em Popular Electronics antecipou em pelo menos três anos a versão doméstica oficial da
Atari, que foi lançada em 1975, demonstrando a atenção que os hobbyistas estadunidenses
prestavam aos novos desenvolvimentos do mercado de computação.
Esta atenção ao entretenimento eletrônico observada entre os entusiastas dos Estados
Unidos nas décadas anteriores ao lançamento dos microcomputadores não parecia estar
presente entre hobbyistas de outras partes do mundo. No Brasil, menções aos jogos
eletrônicos começaram a ser encontradas nas revistas de eletrônica apenas no final dos anos
1970, com o lançamento de Nova Eletrônica, que ao contrário de concorrentes como Antenna
– Eletrônica Popular, não era só voltada para projetos “sérios” em rádio e TV, mas também
trazia experimentações com equipamentos de som para música popular205. Em Nova
Eletrônica, encontramos um dos poucos exemplos de projetos eletrônicos brasileiros para
jogos, o “joguinho Reflexômetro”, atração da revista na sua edição de novembro de 1977,
apresentado da mesma forma que os seus equivalentes estadunidenses, mesmo com algumas
décadas de atraso: “uma novidade que vai agradar a todos que se interessam pela eletrônica
como ‘hobby’, como diversão, e que será útil para o aprendizado dos principiantes, é o
joguinho. Para crianças e adultos...” (KAWECKI, 1977, p. 26).

204
Em português, jogo de pega-pega.
205
Um dos criadores de Nova Eletrônica foi Cláudio César Dias Baptista, o CCDB, irmão mais velho d´Os
Mutantes Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Entusiasta de eletrônica, Cláudio criou muitas das guitarras e pedais
de efeito que eram utilizados pela banda em suas gravações.
124

Figura 16 - O joguinho eletrônico tupiniquim apresentado nas


páginas da revista Nova Eletrônica

Fonte: revista Nova Eletrônica, n. 9, nov. 1977. p. 26

O pretenso “atraso” brasileiro em relação aos jogos eletrônicos também se repetiu na


maioria dos países que também cultivaram a cultura hobbyista por meio de revistas.
Escrevendo sobre o início da computação e dos games na Holanda, Frank Veraart (2011, p.
56) relata que o hobbyismo computacional só se iniciou em seu país em 1975, a partir de lojas
que importaram kits de montagem dos Estados Unidos, e que os games ganharam
proeminência entre os entusiastas no final dos anos 1970; fato que traz semelhanças com a
realidade brasileira, já que, da mesma forma que no Brasil, revistas sobre eletrônica como
Elektuur/Elektor circulavam amplamente na Holanda desde os anos 1960. Já Melanie
Swalwell (2012, p. 5) traz depoimentos de hobbyistas neozelandeses que construíram seus
próprios computadores a partir de 1976, programando também games, mas estes pioneiros
eram inspirados por artigos da revista estadunidense Byte, não por produções do seu próprio
125

país. As especificidades locais dos entusiastas gregos é abordada por Theodoros Lekkas
(2014), que justifica o início tardio da computação em seu país (os computadores pessoais só
começaram a ser vendidos na Grécia no início dos anos 1980) devido à necessidade de
adaptação ao alfabeto grego, embora hobbyistas gregos tivessem acesso à Popular Electronics
nos anos 1970; quando as dificuldades linguísticas foram contornadas, foram as revistas
especializadas como Pixel (1983–1996) que diretamente iniciaram a cultura computacional
grega, especialmente a partir da programação de jogos. Na União Soviética, o hobbyismo de
computadores também teria começado a partir dos anos 1980, segundo Zbigniew Stachniak,
embora revistas técnicas sobre radiodifusão estivessem disponíveis ao público soviético desde
os anos 1920; Stachniak explica que

O que os hobbyistas tinham mais falta era o acesso aos novos dispositivos
semicondutores, como os microprocessadores, e de informações sobre eles. Nos
anos 1970, [a revista] Radio publicou artigos sobre eletrônica digital, mas nunca
trilhou os caminhos do mundo dos microprocessadores de forma significante. Por
exemplo, uma das séries mais antigas de artigos educacionais, que explicava os
computadores modernos para os hobbyistas de eletrônica, publicada em Radio em
1978, apenas mencionou o microprocessador como um novo dispositivo integrado
de CPU.206 (STACHNIAK, 2015, p. 13)

Desta forma, podemos perceber que o inicio do hobbyismo computacional aconteceu


de formas muito diferentes em outros países do que nos Estados Unidos, um dos berços do
saber tecnocientífico. Como destacam Petri Saarikoski e Jaakko Suominen, em artigo sobre a
cultura hobbyista computacional na Finlândia, este tipo de descrição mostra

(...) a importância de comparações internacionais, e as noções de especialidades e


diferenças nacionais e regionais nas culturas de games, que estão relacionadas a
estilos tecnológicos, tradições, sistemas econômicos e legislações. Tais comparações
são importantes para a historiografia da tecnologia porque elas nos lembram que
estes desenvolvimentos não são globalmente uniformes, e que a tecnologia é
culturalmente dependente.207 (SAARIKOSKI; SUOMINEN, 2009, p. 20)

Porém, há um importante aspecto em comum a todas estas experiências dos


entusiastas de computadores mundialmente: a adoção dos games como exemplos

206
Livre tradução de: “What the hobbyists lacked the most was access to novel semiconductor devices such as
microprocessors and to information about them. In the 1970s, Radio did publish articles on digital electronics,
but it never ventured into the world of microprocessors in any significant way. For instance, one of the earliest
series of educational articles explaining modern computers to electronic hobbyists, published in Radio in 1978,
only mentioned the microprocessor as a novel integrated CPU device”.
207
Livre tradução de: “(…) importance of international comparisons and the notions of national and regional
specialties and differences in game cultures, related to technological styles, traditions, economic systems, and
legislation. Such comparisons are important in the historiography of technology because they remind us that
developments are not globally uniform and that technology is culturally dependent”.
126

educacionais, como explorações das possibilidades computacionais, ou apenas como


atividades divertidas para serem realizadas com computadores.

4.4 Como as revistas computacionais retrataram os games

A partir do editorial da primeira edição de Byte, que cita os jogos como exemplo de
aplicação prática que os hobbyistas poderiam dar aos seus computadores pessoais, as revistas
especializadas em computação sempre deram destaque aos games em suas páginas, seja como
objeto de suas reportagens, ou como produto oferecido em suas publicidades – e isso é
possível de ser notado até mesmo em publicações voltadas ao hobbyismo de hardware, como a
pioneira revista estadunidense. Como exemplo, podemos citar o artigo “LIFE Line”, um
longo texto escrito pelo editor-chefe Carl Helmers para o número 1 de Byte. Na descrição
feita por Helmers, o jogo Life Line seria uma adaptação do famoso game/simulador The Game
of Life208, que poderia ser implementado em diversos sistemas que possuíssem um sistema de
exibição de gráficos. De acordo com o editor,

LIFE Line é um veículo muito prático e conveniente para ensinar ideias sobre design
de programas e sistemas, que você pode aplicar para o seu uso pessoal. Mesmo se
você nunca implementar [no seu computador] um dispositivo de saída gráfica e um
teclado de input interativo, você pode ganhar conhecimento e melhorar suas
habilidades ao ler e refletir sobre os pontos a serem feitos em LIFE Line.209
(HELMERS, 1975, p. 72)

Esta tendência de associar os jogos eletrônicos com a exibição de gráficos continuou a


ser prevalente nas matérias da revista Byte durante os seus anos iniciais – em uma época em
que a maioria dos kits de computadores domésticos ainda não previam saídas (output) de
vídeo para a exibição dos dados de forma visual210, e os dispositivos WYSIWYG211 ainda

208
O Game of Life foi criado pelo matemático britânico John Conway no início dos anos 1970, para simular o
comportamento, em termos de mudanças, em uma determinada população de seres vivos com o passar do
tempo.
209
Livre tradução de: “LIFE Line is a very convenient and practical vehicle for teaching ideas about program
and system design which you can apply for your own use. Even if you never implement a graphics output
device and interactive input keyboards, you can gain knowledge and improve your skills by reading and
reflecting upon the points to be made in LIFE Line”.
210
Como um exemplo desta questão, o Altair 8800 exibia os resultados do seu processamento de dados apenas
por meio do seu painel de luzes, ou por impressão. Para Ian Watson (2012, p. 135), nesta época “(...) todos os
computadores, incluindo o Altair, tinham painéis frontais difíceis de serem lidos, e não tinham telas e teclados,
127

estavam sendo criados nos laboratórios de pesquisas computacionais, os games representavam


um motivo palpável para a adoção da exibição de gráficos pelos hobbyistas. Esta justificativa
é apresentada em “Add This Graphics Display to Your System”, uma das reportagens da
edição de novembro de 1976, dedicada ao desenho computacional; logo em seu início, o
engenheiro Thomas R. Buschbach, autor do texto, deixa bem clara sua intenção do porquê
construir em casa um sistema gráfico relativamente sofisticado para a época, desenvolvendo
uma linha de pensamento tipicamente hobbyista:

Já que uma das razões pelas quais eu construí um microprocessador pessoal foi para
jogar videogames, eu precisava de algum tipo de um display de alta capacidade de
exibição gráfica. Depois de examinar a atual falta de um produto comercial de baixo
custo para desempenhar esta tarefa, eu decidi construir meu próprio aparelho. 212
(BUSCHBACH, 1976, p. 32)

Figura 17 - A utilidade de dispositivos gráficos nos computadores


domésticos nos anos 1970: jogar games

Fonte: revista Byte, nov. 1976, p. 32-33.

Este interesse do engenheiro Buschbach por gráficos bem definidos para suas sessões
de jogatina é retomado posteriormente em “The Colorful Future of Personal Computing (or

você escrevia os programas e os dados puxando interruptores de forma árdua, e você lia os resultados pelas
linhas de luzes vermelhas.” [livre tradução de: “(…) all computers, including the Altair, had hard-to-read front
panels and no screens and no keyboards, you entered programs and data by laboriously flipping switches on the
front, and you read the results from rows of red lights”].
211
Sigla de What You See Is What You Get, em tradução livre, Você vê o que você obtem, utilizada para definir a
manipulação de dados computacionais em ambientes gráficos (em editores de texto, por exemplo) que
permitem ao usuário visualizar o resultado de suas ações da mesma forma que será finalizado.
212
Livre tradução de: “Since one of the reasons I built a personal microprocessor was to play video games, I
needed some type of high resolution graphics display capability. After examining the current unavailability of
a low cost commercial product to perform this task, I decided to build my own unit”.
128

What the World Needs Is a Good Mass Produced High Resolution Color Display...)”, um
longo ensaio escrito pelo editor-chefe Carl Helmers para a edição de outubro de 1977,
discorrendo sobre as possibilidades técnicas de produção de telas coloridas para computadores
pessoais, e quais os usos possíveis destes dispositivos, que, para Helmers, se resumiriam a
duas possibilidades básicas, para peças de arte computacional, e para uma maior simulação de
realismo nos games, com muitas aplicações práticas:

Mas considere a possibilidade de animações cartunescas aplicadas as jogos de


simulação. Se o jogo tem um cenário tipo parque, no qual os jogadores se movem,
empregue a tela colorida para representar este cenário, com programas extras para
gerar a movimentação dos jogadores neste cenário. Se o jogo envolve a simulação
de um pouso de avião, ou de uma corrida de carros, use programas para gerar os
efeitos de movimento na tela, e as variações das informações no fundo. Tais
sugestões envolvem um desenvolvimento significante de software e de capacidade
de processamento de dados, quando o grau de realismo se torna alto. Porém, dadas
as capacidades dos displays coloridos e dos processadores, pode ainda existir uma
considerável melhoria no tipo de telas utilizados com os jogos. 213 (HELMERS,
1977, p. 47)

Nestes dois exemplos, podemos novamente observar uma característica que sempre é
uma marca determinante da indústria dos games, como discutimos em vários momentos dos
capítulos anteriores: os jogos eletrônicos como aplicações práticas do estado da arte do
desenvolvimento de tecnologias de interação humano-computador, tanto em relação às
interações possíveis em tela (como a manipulação direta), ou, como visto nestas matérias da
revista Byte, quanto em relação das composições gráficas digitais e suas formas de
visualização possíveis – o que demonstra o porquê do interesse dos editores e colaboradores
da pioneira revista estadunidense em seus primórdios, já que a proposta inicial de Byte era
atender ao público hobbyista dos anos 1970, engajado na montagem dos seus primeiros
computadores pessoais.
Porém, a partir do momento que o mercado de microcomputadores se ampliou,
passando a oferecer não mais kits para montagem, mas sim máquinas prontas, que precisavam
apenas do uso de programação para o seu funcionamento, o foco dos escritores de Byte
também mudou, acompanhando estas modificações do mercado. Segundo Ian Watson, estas
transformações no universo do hobbyismo computacional aconteceram a partir do lançamento

213
Livre tradução de: “But consider the possibility of cartoon style animation applied to simulation games. If the
game involves a park like setting in which the simulation players move, use the color display to represent that
setting, with programs appended for generation of players' movement in the setting. If the game involves
simulating a plane landing, or an automobile race, use programs to generate the moving effects on the screen,
and variations of the background information. Such suggestions involve significant software development and
processor bandwidth when the degree of realism becomes high; but, given the color display and a given
processor's capabilities, there can be considerable improvement in the types of displays used with games”.
129

das máquinas de baixo custo, que não necessitavam de grandes conhecimentos técnicos para
serem utilizadas:

Três máquinas, o Commodore PET, o Apple II e o Tandy TRS-80, todos lançados


em 1977, foram denominados pela revista Byte como a “Trindade de 1977”. No final
dos anos 1970, enquanto os preços dos chips de silício começaram a cair, muitas
empresas entraram no mercado de computadores domésticos: o Atari 400 e 800, o
Commodore 64, o BBC Micro e o Texas Instruments TI-94 venderam milhões de
unidades, e tiveram lucro...214 (WATSON, 2012, p. 144)

Para o historiador da computação Paul Ceruzzi, “não era coincidência que esses
computadores também podiam jogar games, similarmente ao que era oferecido pelos consoles
de empresas como a Atari”215 (CERUZZI, 2012, p. 113). Essa analogia de Ceruzzi faz muito
sentido se pensarmos nas materialidades desses dispositivos digitais, já que, como vimos no
capítulo 2, os consoles são computadores dedicados, que precisam de um software específico
para o seu funcionamento – o jogo em si, em forma de cartuchos, discos óticos ou por
download. A partir da sua exploração comercial, para além do público hobbyista mais
dedicado à eletrônica digital, os computadores pessoais também começaram a seguir o mesmo
paradigma, dependendo cada vez mais da criação de softwares para o seu uso; como explicam
Martin Campbell-Kelly e colaboradores (2013, p. 243),

Com a chegada das máquinas voltadas para consumidores, como o Apple II, o
Commodore PET e o Tandy TRS-80, o mercado para softwares de “aplicações”
decolou. Os aplicativos permitiam ao computador realizar tarefas úteis sem precisar
da programação direta do seu dono. Existiam três mercados principais para os
aplicativos: games, educativos e empresariais. 216

De fato, mudanças de foco editorial são facilmente percebidas nas edições da revista
Byte a partir de 1977, acompanhando as tendências da comunidade do hobby computacional, e
também do nascente mercado de computadores e programas. Aos poucos, as matérias sobre
hardware e montagem de equipamentos foram sendo deixadas em segundo plano, com um

214
Livre tradução de: “Three machines, the Commodore PET, the Apple II, and the Tandy TRS-80, all released
in 1977, were referred to by Byte magazine as the “1977 Trinity”. In the late seventies, as silicon chip prices
began to fall, many companies entered the home computer market: the Atari 400 & 800, the Commodore 64,
the BBC Micro and the Texas Instruments TI-94 all sold millions and made profits...”.
215
Livre tradução de: “It is no coincidence that these computers could also play games, similar to what was
offered by the consoles from companies like Atari”.
216
Livre tradução de: “With the arrival of consumer-oriented machines such as the Apple II, the Commodore
PET, and the Tandy TRS-80, however, the market for ‘applications’ software took off. Applications software
enabled a computer to perform useful tasks without the owner having to program the machine directly. There
were three main markets for applications software: games, education, and business”.
130

destaque maior à programação de aplicativos, com o oferecimento de códigos em diferentes


linguagens para a reprodução dos programas criados pelos hobbyistas. Como efeito destas
transformações editoriais, Byte passou a dar ainda mais espaço aos jogos eletrônicos, que
passaram a ganhar reportagens de capa pelo menos uma vez por ano, entre 1978 e 1982. Essa
sequência de capas começou com a histórica ilustração217 de Robert Tinney para ilustrar as
possibilidades do xadrez computacional, na edição de outubro de 1978 (v. 3, n. 10),
continuando com Fun and Games, tema de novembro de 1979 (v. 4, n. 11); Adventures foi o
tema da capa de dezembro de 1980 (v. 5, n. 12), seguida por Computer Games, de dezembro
de 1981 (v. 6, n. 12) e Game Plan 1982, capa de dezembro de 1982 (v. 7, n. 12). Para os
objetivos deste trabalho, é interessante notarmos que essa sequência histórica de capas da
revista Byte se inicia no ano posterior ao lançamento dos microcomputadores comerciais, e se
encerra no ano anterior ao crash dos videogames de 1983, quando há uma queda na produção
e consumo de jogos eletrônicos nos Estados Unidos – porém, encontrar correlações entre estes
acontecimentos seria um exercício interpretativo que foge ao escopo do nosso trabalho, já que
não encontramos nenhuma alusão a estas ligações, nem comentários posteriores que apoiem
esta hipótese no material analisado.

Figura 18 - As capas anuais de Byte sobre games: 1978 - 1982

Fonte: Revista Byte, números diversos.

217
Conforme discutimos brevemente no capítulo 3.
131

Porém, essa maior atenção aos games nas edições de Byte, que surgiu a partir das
mudanças na computação pessoal depois de 1977, sempre esteve presente em revistas que
possuíam um foco mais (contra)cultural, como Creative Computing. Fundada em novembro
de 1974 por David H. Ahl, que mais tarde se tornou um dos maiores historiadores de jogos
eletrônicos, Creative Computing trazia como subtítulo a frase “uma revista de fins não-
lucrativos sobre computação educacional e recreacional”218, trazendo desde o seu primeiro
número reportagens sobre os impactos socioculturais do surgimento da microcomputação, os
possíveis usos dos computadores em atividades educacionais e atividades práticas,
especialmente jogos de lógica que teriam o potencial de ensinar questões matemáticas. Após a
introdução comercial dos microcomputadores, Creative Computing também modificou seu
foco editorial, passando a dedicar a maior parte de suas reportagens a avaliações de
lançamentos de novas máquinas e programas, adotando um novo slogan no início dos anos
1980: “a revista número 1 de aplicativos computacionais e softwares”219. Porém, nas duas
fases da revista, que publicou seu último número em dezembro de 1985, os jogos sempre
estiveram presentes como o melhor exemplo da “computação criativa” abordada em suas
páginas, tanto com matérias de fundo educacional como “Using the game paddle in the
laboratory and classroom”, escrita por John F. De Gilio para a edição de outubro de 1983, que
discutia possíveis usos dos joysticks em salas de aula e laboratórios de informática em escolas
de ensino fundamental e médio, quanto com reviews como “Atari Arcade Games: the state of
the art” de David Small, uma avaliação dos jogos de fliperama lançados pela notória
fabricante, publicada em março de 1982. O formato de reviews de Creative Computing foi
adotado por outras publicações de computação, e levaram ao surgimento posterior de revistas
que abordavam exclusivamente os games; um exemplo é Creative Computing Video &
Arcade Games, um spin-off da pioneira revista computacional que durou apenas dois
números, em 1983.
Este mesmo foco no games como aplicações práticas podem também ser encontrado
em revistas de países que tiveram um início tardio do hobbyismo computacional, como no
Brasil – neste caso, por serem publicações desenvolvidas por fabricantes de
microcomputadores, as revistas nacionais já nasceram voltadas à discussão e distribuição de
softwares, que serviriam como um acompanhamento das máquinas vendidas. Além das
reportagens e da coluna sobre xadrez, brevemente descritas no capítulo anterior, a revista

218
Livre tradução de: “a non-profit magazine of educational and recreational computing”.
219
Livre tradução de: “the #1 magazine of computer applications and software”.
132

Micro Sistemas trazia periodicamente códigos de games, que deveriam ser digitadas pelos
usuários em seus computadores pessoais. Este espaço de publicação de Micro Sistemas
acabou por servir como veículo de divulgação dos primeiros jogos autorais brasileiros, como
Aventuras da Selva, de Renato Degiovani220, publicado na edição 23, de agosto de 1983.
Aventuras da Selva é a primeira versão de Amazônia (1983), considerado o primeiro clássico
dos games nacionais.

Figura 19 - Início do código de programação de Aventuras na Selva, um


dos primeiros games brasileiros

Fonte: Revista Micro Sistemas, n. 23, out. 1983.

220
Degiovani é considerado um dos primeiros game designers do Brasil, e mais tarde foi editor de Micro
Sistemas.
133

Desta forma, podemos observar como os jogos eletrônicos exerceram muitas funções,
de igual importância, para a construção da cultura do hobbyismo computacional,
especialmente em combinação com as revistas especializadas da área. Desde seu uso como
ferramentas educacionais para o ensino de eletrônica digital, nos anos 1950 e 1960, como
objeto de experimentações técnicas na fase inicial da microcomputação, no começo dos anos
1970, até sua acepção como aplicativos que davam funções úteis aos primeiros computadores
comerciais, no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, os games não só ajudaram a
fomentar o incipiente mercado digital, mas também a testar os limites da tecnologia, tanto na
parte de hardwares quanto de softwares, descobrindo novas potencialidades para as máquinas,
e ao mesmo tempo ajudando a divulgar os computadores como novos meios de computação,
gerando grandes transformações socioculturais, econômicas e educacionais. Para tanto, as
revistas especializadas foram um meio essencial de divulgação da atividade hobbyista,
fazendo que o computador realmente puder ser “o maior brinquedo do mundo” para seus
aficionados.
134

5 GAMES E CULTURA POP: AS MÚSICAS SOBRE A FEBRE DOS ARCADES (1978


– 1984)

Em 1978, o mercado musical foi tomado de surpresa pelo lançamento do primeiro


álbum da banda japonesa Yellow Magic Orchestra. Neste disco, homônimo, o grupo explorou
a musicalidade dos sons eletrônicos que emergiam na música pop daquele período, já que,
segundo Simone Pereira de Sá (2003, p. 5-6), o ano anterior ao surgimento de YMO foi um
marco na história da música eletrônica, devido aos lançamentos de I Feel Love, produzido por
Giorgio Moroder para a voz da diva disco Donna Summers, Flash Light, do grupo de soul-
funk Parliament, e do álbum Trans-Express Europe, dos pioneiros alemães Kraftwerk. Porém,
o que definitivamente diferenciou o som da Yellow Magic Orchestra dos clássicos anteriores
da música eletrônica era o uso de efeitos sonoros advindos dos jogos implementados em
computadores, especialmente em sua vertente de jogos de fliperama (no original em inglês,
arcade221), máquinas estas que foram uma evolução eletrônica dos antigos dispositivos de
entretenimento encontrados em parques de diversão; em termos estritamente computacionais,
fliperama/arcade se refere a máquinas dedicadas (ou seja, usadas de forma exclusiva) para
jogos, desenvolvidas para o uso em ambientes públicos, como vimos em capítulo anterior.
Concomitantemente à popularização da música eletrônica na cultura pop, os fliperamas
viviam sua época de maior notoriedade nos países desenvolvidos, atraindo milhões de novos
jogadores – segundo Brian R. Eddy,

O final dos anos 1970 marcou o início da era de ouro das máquinas de fliperama,
durante a qual alguns dos jogos mais rentáveis e interessantes foram criados. Assim
que sistemas mais poderosos e gráficos a cores se tornaram possíveis, o mercado
passou a prestar atenção [nos games]. Todo mundo queria experimentar essa nova
forma de entretenimento. Jogos de fliperama começaram a aparecer em todo o
mundo. As primeiras casas de fliperama foram abertas, fornecendo locais
específicos para jogar videogames operados com moedas, e para se sociabilizar com
amigos.222 (EDDY, 2012)

221
O termo arcade vem da Arquitetura, significando uma sequência de arcos que geram uma divisão de espaços.
Apenas em 1977 que este termo passou a ser usado para definir as máquinas de divertimento digital, como uma
abreviação de penny arcade, espaços públicos de entretenimento repletos de máquinas operadas por moedas,
existentes desde o início do século XX, e encontrados nos centros das cidades, parques de diversão, entre
outros lugares. (cf. GUINS, 2014).
222
Livre tradução de: “The late 1970s marked the start of the golden age of arcade machines, during which some
of the most prolific and engaging games were created. As more powerful electronics and color graphics
became possible, the mass market started to take notice. Everyone wanted to try this new form of
entertainment. Arcade games started popping up all over the world. The first video arcades opened, providing
dedicated venues to play coin-operated video games and socialize with friends”.
135

Os fliperamas não apenas agiam como divulgadores e/ou semeadores desta nova
forma de entretenimento digital, mas também da nascente cultura computacional que tomava
forma neste período – sob os auspícios das correntes contraculturais que floresciam
especialmente no estado norte-americano da Califórnia, e com a invenção do microchip, que
barateou os custos e tornou esta produção mais simples. Os computadores pessoais
começavam a penetrar o mercado doméstico, e uma das principais facetas dessa “revolução”
foram os games, que eram criados por aficionados em laboratórios, empresas e garagens dos
EUA, Europa e Japão.
Porém, para entender a crescente popularidade dos arcades nos anos 1970, é
necessário retomar a história de um jogo eletrônico, fruto dos laboratórios do Massachusetts
Institute of Technology (MIT), que se tornou a base para o desenvolvimento das máquinas
computacionais dedicadas ao entretenimento público: Spacewar!, Criado em 1962 por Steve
“Slug” Russell, com o auxílio de vários dos seus colegas do MIT, Spacewar! é um game com
mecânica simples, no qual duas naves flutuando no espaço sideral, e controladas por
jogadores diferentes, devem trocar tiros entre si, com o objetivo de destruir o oponente. A
criação deste pioneiro dos jogos eletrônicos foi um dos eventos mais referenciados de ligação
entre os games e a HCI dentre as fontes consultadas para este trabalho. Em pelo menos dois
dos livros consultados para esta pesquisa existe o capítulo “Spacewar”, nomeado em relação a
este emblemático jogo: Dealers of Lightning: Xerox PARC and the Dawn of the Computer
Age (1999), de Michael Hiltzik, e Hackers, de Steven Levy. Outra fonte nomeada a partir do
game criado por Steve Russell foi a reportagem SPACEWAR: Fanatic Life and Symbolic
Death Among the Computer Bums, escrita pelo jornalista e ativista Stewart Brand para a
edição de sete de dezembro de 1972 da revista estadunidense Rolling Stone, que utilizava
Spacewar! como uma metáfora para o modo de vida lúdico e influenciado pela contracultura
adotado pelos pesquisadores de interação humano-computador retratados nesta matéria:

Confiavelmente, a qualquer hora da noite (isto é, fora do horário comercial), na


América do Norte, centenas de técnicos de computação estarão fora de seus corpos,
presos em batalhas espaciais computacionais de vida ou morte, projetadas nas telas
de tubos de raios catódicos, muitas vezes por horas, detonando seus olhos, deixando
seus dedos dormentes ao apertar freneticamente os botões de controle, matando
alegremente seus amigos e desperdiçando o valioso tempo computacional dos seus
patrões. Alguma coisa primordial está acontecendo 223. (BRAND, 1972)

223
Livre tradução de: “Reliably, at any nighttime moment (i.e. non-business hours) in North America hundreds
of computer technicians are effectively out of their bodies, locked in life-or-Death space combat computer-
projected onto cathode ray tube display screens, for hours at a time, ruining their eyes, numbing their fingers in
frenzied mashing of control buttons, joyously slaying their friend and wasting their employers' valuable
computer time. Something basic is going on”.
136

E a descrição de Brand também é corroborada por pesquisadores que viveram este


momento no Palo Alto Research Center – PARC, da empresa Xerox, um dos laboratórios que
mais contribuíram para a criação das interfaces gráficas do usuário:

‘As luzes ficavam todas acesas e dezenas de pessoas estariam por lá, mesmo sendo
nove ou dez da noite’, ele [Jack Goldman, o fundador do PARC] relembra. ‘Muitas
vezes eles estavam jogando games. Mas, lembrem-se, naqueles dias os jogos de
computador não eram o que eles são hoje. Aquilo era uma coisa nova. Aqueles caras
estavam literalmente inventando jogos de computador e aprendendo como usar a
máquina’224 (HILTZIK, 1999, p. 154)

Segundo Steven Levy, Spacewar! surgiu a partir do conceito de que um jogo


visualmente interessante seria a melhor ideia para demonstrar as capacidades gráficas do já
citado computador PDP-1, que era, por si próprio, um dispositivo inovador. Essa era uma
premissa que parecia ser bem difundida na época: Ken Olsen, o fundador da DEC, declarou
que “’[Spacewar] serviu como uma grande demonstração para os nossos acionistas!’ ele
acrescentou depois com uma risada – ‘sem mencionar para os potenciais consumidores’”225
(WALDROP, 2001, p. 188). Levy também menciona o uso de Spacewar! pela DEC para
impressionar os compradores do PDP-1:

A DEC ficou feliz em conseguir uma cópia, e os seus engenheiros usavam-na para
fazer o diagnóstico final nos PDP-1 antes de liberarem as máquinas para entrega.
Então, sem limpar a memória do computador, eles desligavam a máquina. Os
vendedores da DEC sabiam disso, e frequentemente, quando os computadores eram
entregues para novos compradores, o vendedor ligava a máquina, verificava se não
havia fumaça saindo da parte de trás, e acessava a posição “VY”, onde Spacewar
ficava localizado. E se a máquina tivesse sido cuidadosamente embalada e enviada,
a grande estrela estaria no centro, e o foguete com formato de cigarro e o foguete
com formato de tubo estariam prontos para uma batalha cósmica. O primeiro voo de
uma máquina mágica226. (LEVY, 2010, p. 56)

224
Livre tradução de: “The lights would all be lit and dozens of people around, even it if was nine or ten at
night,” he recalled. “Often they were playing computer games. Now, just remember, in those days computer
games were not what they are today. This was a new thing. These guys were literally inventing computer
games and learning how to use the machine.”
225
Livre tradução de: “[Spacewar] made a great demonstration for the stockholders!" he later said with a laugh -
not to mention for potential customers”
226
Livre tradução de: “DEC was delighted to get a copy, and the engineers there used it as a final diagnostic
program on PDP-1s before they rolled them out the door. Then, without wiping the computer memory clean,
they’d shut the machine off. The DEC sales force knew this, and often, when machines were delivered to new
customers, the salesman would turn on the power, check to make sure no smoke was pouring out the back, and
hit the “VY” location where Spacewar resided. And if the machine had been carefully packed and shipped, the
heavy star would be in the center, and the cigar-shaped rocket and the tube-shaped rocket would be ready for
cosmic battle. A maiden flight for a magic machine”.
137

E para Stewart Brand, que escreveu suas observações no começo da década de 1970,
antes do pleno desenvolvimento dos dispositivos computacionais pessoais, Spacewar! não
serviu apenas como uma demonstração das capacidades gráficas dos computadores:

Contudo, Spacewar, se alguém se importou em notar, foi uma bola de cristal que
não errou ao prever coisas que apareceram nas ciências da Computação e no uso de
computadores: 1. Ele era intensamente interativo, e em tempo real, com o
computador; 2. Ele encorajou novas programações feitas pelos usuários; 3. Ele uniu
humano e máquina por meio de uma interface responsiva que exibe grande
quantidade de gráficos em tempo real; 4. Ele funcionou primordialmente como uma
ferramenta de comunicação entre humanos; 5. Ele era um jogo; 6. Ele funcionava
melhor em equipamentos autônomos (e interrompeu a vida útil dos sistemas
multiusuário); 7. Serviu ao interesse humano, e não às maquinas (Spacewar é banal
para um computador); 8. Ele era delicioso227. (BRAND, 1972)

Porém, para além da importância de Spacewar! para a indústria e a cultura


computacional, este jogo também foi fundamental para a constituição do fenômeno dos
arcades, já que a primeira máquina de fliperama comercialmente produzida tomou sua
inspiração do clássico do MIT: Computer Space, criado em 1971 pelo engenheiro
estadunidense Nolan Bushnell. Segundo Bushnell, que havia trabalhado com brinquedos de
um parque de diversões durante sua adolescência (cf. BLOOM, 1982), seu contato com
Spacewar! nos laboratórios da Universidade de Utah (sua alma mater), despertou seu
interesse pelos jogos eletrônicos:

A questão é que os computadores [da universidade] ficavam ligados 24 horas por


dia, e então, alguns de nós que realmente gostavam de computadores, nós íamos
para lá no comecinho da madrugada e nós conseguíamos tempo para usar com o
computador, apenas porque eles tinham que ficar ligados... e ninguém estava
usando-os, então era quando nós jogávamos games. E nós costumávamos jogar
Spacewar! e coisas desse tipo...228 [tradução nossa]

Ao se formar, Nolan Bushnell se mudou de Utah para a California, trabalhando na


indústria eletrônica até ser contratado pela indústria de jogos eletromecânicos Nutting
Associates. Com o fracasso comercial de produtos anteriores da empresa, o engenheiro teve a
ideia de adaptar Spacewar! para o uso em ambientes públicos (cf. WOLF, 2008a). O jogo não

227
Livre tradução de: “Yet Spacewar, if anyone cared to notice, was a flawless crystal ball of things to come in
computer science and computer use: 1. It was intensely interactive in real time with the computer. 2. It
encouraged new programming by the user. 3. It bonded human and machine through a responsive broadband
interface of live graphics display. 4. It served primarily as a communication device between humans. 5. It was
a game. 6. It functioned best on stand-alone equipment (and disrupted multiple-user equipment). 7. It served
human interest, not machine. (Spacewar is trivial to a computer). 8. It was delightful”.
228
Programa de entrevistas “People Are Talking”, exibido na KPIX-TV, afiliada da rede CBS em San Francisco
(EUA), em 1982. Acesso em 21/03/2016: https://www.youtube.com/watch?v=h93eLDhHqY8
138

foi bem sucedido comercialmente, já que, segundo Bushnell, Computer Space exigia um
conhecimento técnico muito avançado para ser jogado; por exemplo, o engenheiro
estadunidense cita a Primeira Lei de Newton (lei da Inércia) como um dos conhecimentos
necessários para se entender a mecânica do jogo:

Bom, eu amei [Computer Space], todos os meus amigos amaram, mas todos os meus
amigos eram engenheiros... ele era muito difícil, usava a Primeira Lei de Newton [na
sua mecânica]... ele era um daqueles jogos que eram muitos difíceis de serem
jogados, precisava de um conhecimento técnico relativamente grande... 229 [tradução
nossa]

Escrevendo um histórico dos games, na década de 1980, o escritor Steve Bloom


detalha outros possíveis motivos para os problemas comerciais de Computer Space:

Da melhor maneira possível, pode-se dizer que Computer Space era uma versão
rudimentar de Spacewar. Como não havia um computador nele (circuitos integrados
faziam o jogo se movimentar), o nome do jogo era, primeiramente, um nome errado.
Em segundo lugar, o jogo era restrito a uma pessoa por vez, e apenas contra a
máquina – não havia ferozes combates corpo-a-corpo aqui. Finalmente, as imagens
raster em preto-e-branco estavam, literalmente, a anos-luz do esplendor da tela
brilhante do PDP-1. Dando crédito a Bushnell, ele conseguiu criar controles
parecidos [aos de Spacewar!] – botões direcionais, para atirar, e para o movimento
de hiperespaço – mas as estrelas eram apenas pontinhos de luz e a gravidade não
existia. Computer Space era um duelo espacial entre humanos e máquinas da forma
mais simples possível.230 (BLOOM, 1982, p. 7)

Mesmo com o pouco sucesso de Computer Space, este fliperama abriu espaço para o
início de um indústria voltada ao entretenimento eletrônico, alguns anos antes dos
computadores se tornarem “domésticos”, disponíveis ao público geral; corroborando essa
visão, o historiador dos games Mark J.P. Wolf declara que:

Quando Nolan Bushnell adicionou um slot para a inserção de moedas no fliperama


Computer Space, em 1971, a indústria de videogames teve início. Antes dos arcades
trazerem os vídeo games para o público geral, os games de computador estavam

229
Programa de entrevistas “People Are Talking”, exibido na KPIX-TV, afiliada da rede CBS em San Francisco
(EUA), em 1982. Acesso em 21/03/2016: https://www.youtube.com/watch?v=h93eLDhHqY8
230
Livre tradução de: At best, one could say that Computer Space was a crude version of Spacewar. Since there
was no computer (integrated circuits made the game move), the game´s name was first and foremost a
misnomer. Second, gameplay was restricted to one person at a time and only versus the machine – no fearsome
hand-to-hand combats here. Finally, the black-and-white raster images were literally light-years behind the
splendor of the PDP-1´s sparkling display. To Bushnell´s credit, he did effect similar controls – buttons for
directions, shooting, and hyperspace – but the stars were just dots of light and gravity was nonexistent.
Computer Space was a man-machine space duel of the simplest kind.
139

disponíveis apenas para aqueles que tinham acesso aos laboratórios computacionais
em universidades e empresas.231 (WOLF, 2008b, p. 29)

. E esse pioneirismo das máquinas dedicadas aos jogos ganhou seu espaço definitivo
com o lançamento de Pong, jogo criado por Nolan Bushnell e Al Alcorn em 1972, sendo o
primeiro game produzido pela Atari, a famosa companhia fundada por Bushnell após sua
saída da Nutting Associates. Pong, mais conhecido no Brasil com o nome Telejogo232, era um
game de mecânica simples, com dois retângulos representando os jogadores, e uma linha
tracejada dividindo a tela, sugerindo um campo, ou uma mesa de jogo. O objetivo era jogar a
“bola” para o outro lado da tela, marcando pontos se o outro jogador não conseguisse bater na
bola, que então saia do campo. A facilidade do entendimento dessa mecânica era refletida na
frase inserida nos gabinetes do arcade, dando a instrução necessária sobre Pong para seu
público, que se tornou clássica: “avoid missing ball for high score”233. Segundo Bushnell, essa
simplicidade foi proposital, um aprendizado da experiência com Computer Space:

Então, eu disse que com o próximo jogo, todo mundo vai saber as regras... ping-
pong, tênis... algo que seja acessível pra gente. E eu percebi que as pessoas não liam
as instruções, ninguém lê as instruções, então o jogo tinha que ser praticamente
capaz se jogar sozinho, para que as pessoas possam saber o que está acontecendo,
então foi assim que Pong foi criado.234 [tradução nossa].

231
Livre tradução de: “When Nolan Bushnell added a coin slot to the arcade game Computer Space in 1971, the
video game industry was born. Before the arcade brought video games to the public, mainframe games were
available only to those who had access to computer labs at universities or corporations”.
232
Telejogo, lançado pela Philco em 1977, era uma das versões domésticas de Pong que foram produzidas por
diversas empresas em todo o mundo, alcançando grande sucesso comercial.
233
Em uma tradução possível, “evite errar a bola para a melhor pontuação”.
234
Programa de entrevistas “People Are Talking”, exibido na KPIX-TV, afiliada da rede CBS em San Francisco
(EUA), em 1982. Acesso em 21/03/2016: https://www.youtube.com/watch?v=h93eLDhHqY8
140

Figura 20 - As instruções do gabinete de Pong: um dos primeiros “manuais” de games

Fonte: http://www.cyberroach.com/blog/WindowsLiveWriter/OriginalPongArcadeGoingOnce_FA1D/pong
05[1].jpg

Pong é considerado o primeiro grande sucesso comercial dos games (cf. BLOOM,
1982; WOLF, 2008a; EDDY, 2012), trazendo lições que posteriormente foram adotadas pelos
designers de fliperama (e, posteriormente, os designers de interface computacional, como
visto em capítulo anterior). Para o pesquisador finlandês Franz Mäyrä (2008, p. 59), a
mecânica de fácil compreensão do jogo de Bushnell e Alcorn apresenta controles fáceis de
serem aprendidos, mecânica familiar aos jogadores, e muitas possibilidades de ação
permitidas pelo sua interação multijogadores, explicando seu sucesso; Mäyrä também explica
que “o início dos anos 1970 foram os anos em que a indústria de videogames nasceu, e Pong
desempenhou um papel seminal para isso. Os anos 1970 foram também a década em que
foram criados os fundamentos para um ´léxico da mecânica de jogo´”235 (MÄYRÄ, 2008, p.
60). Uma década antes de Mäyrä, o próprio Nolan Bushnell já havia feito esta mesma
afirmação, ao refletir sobre suas criações e as perspectivas futuras para a HCI, acrescentando
que a indústria de games teria inventado as interfaces gráficas do usuário, pois

A demanda dos gamers por interfaces do usuário é inegável. A partir de uma


definição vinda do lazer/entretenimento, os jogos devem ser de fácil interação e
aprendizado. Particularmente no setor de fliperamas, que não tinha a muleta dos
treinamentos ou dos manuais do usuário, era um fato consumado que uma interface
do usuário confusa falhava em atrair moedas suficientes para seu sucesso monetário,

235
Livre tradução de: “The early 1970s were the years when a video game industry was born, and Pong played a
seminal role in it. The 1970s was also the decade when the fundamentals of ‘gameplay lexicon’ were created”.
141

e uma boa comunicação com o usuário resultava em mais rendas para a máquina. 236
(BUSHNELL, 1996, p. 32)

A partir dessa linha evolutiva, que se iniciou no laboratórios de pesquisa com


Spacewar!, até o começo da exploração comercial das máquinas de arcade com Computer
Space e Pong, os games gradativamente ganharam seu espaço nas casas de entretenimento
dos EUA, Japão e Europa, criando toda uma cultura própria, como retratado em livros da
época (Video Invaders, de Steven Bloom, lançado em 1982), lançamentos mais atuais (Game
After: A Cultural Study of Video Game Afterlife, escrito por Raiford Guins, de 2014),
reportagens de TV (a série High Tech Rec237, exibida em 1982 na afiliada local da rede NBC
em Chicago, EUA) e exposições artísticas recentes (More than a Craze: Photographs of New
Zealand's early digital games scene238, com a curadoria das neozelandesas Melanie Swalwell
e Janet Bayly). No Brasil, ainda não existem livros ou outros materiais acadêmicos/artísticos
sobre a história dos arcades no país, e leva-se também em conta que as menções aos
chamados fliperamas são relativamente difíceis de serem encontradas no material jornalístico
da época, já que o termo, em língua portuguesa, pode significar tanto os videogames públicos
quanto as tradicionais máquinas de flipper (ou pinball, em inglês); um exemplo de como os
dois tipos de jogos eram sempre colocados na mesma categoria pela imprensa nacional é a
matéria “Espalha-se a mania do brinquedo eletrônico", de Alberto Beuttenmüller e José
Emílio Rondeau, publicada no suplemento “Revista do Domingo” do Jornal do Brasil do dia
12 de abril de 1981, que relata a popularidade dos fliperamas (tanto tradicionais quanto
digitais) entre a juventude carioca com uma visão positiva, de celebração do desenvolvimento
destas tecnologias. A mesma indiferenciação é encontrada no editorial de moda “Flipper: a
moda”, da edição de 20 de junho de 1982, que traz modelos como a futura apresentadora
Maria da Graça “Xuxa” Meneghel apresentando looks inspirados nestes games, na companhia
das máquinas da casa de fliperama do centro de compras BarraShopping, no Rio de Janeiro.

236
Livre tradução de: “The user interface demands of games are undeniable. From the leisure/entertainment
definition games must be easy to interact with and learn. Particularly in the coin-operated sector, which was
unprotected from the crutch of training or user manuals, it was simply a fact that a confusing user interface
failed to attract enough quarters from customers for monetary success, and that good user communication
resulted in more income for the machine”.

237
https://www.youtube.com/watch?v=7JJywbVZvCI
238
A exposição online pode ser visitada em: http://old.maharagallery.org.nz/MoreThanACraze/essay.php
142

Figura 21 - Xuxa modelando para o JB: uma aficionada por


fliperamas?

Fonte: Revista do Domingo do Jornal do Brasil, n. 322, 20 de junho de 1982. p.


13.

Conforme observamos em nosso segundo capítulo, o videogame é um meio que exige


a participação ativa de seu usuário para o consumo do seu conteúdo – não basta ver, ouvir um
game, devemos também colocar nossas mãos no joystick, temos que experimentar, por nós
mesmos, as possiblidades da mecânica e da narrativa que ele nos oferece; essa experiência é
uma das características constitutivas dos jogos eletrônicos, algo que Janet H. Murray descreve
como a imersão, “a sensação de estarmos envolvidos por uma realidade completamente
estranha, tão diferente quanto a água e o ar, que se apodera de toda a nossa atenção, de todos
o nosso sistema sensorial” (2003, p. 102). A imersão possibilita as explorações, tanto lógicas
quanto corpóreas, que ao nosso ver são o ponto crucial para explicar a experiência lúdica em
143

todas as suas formas, sejam “tradicionais”, não-eletrônicas, ou computacionais (ver SOARES,


2008). Neste caso, após repassarmos as discussões sobre jogos e a HCI realizadas no primeiro
capítulo, e especialmente depois de observarmos as propostas de Vannevar Bush para a sua
máquina Memex, percebemos que esta imersão sensorial provocada pelos games é, em
verdade, uma característica de qualquer ambiente construído digitalmente, uma das razões que
explicam o interesse nos jogos eletrônicos como os modelos para o início da computação
pessoal.
Assim, esse envolvimento necessário para a lida com os ambientes digitais provocava
desconfiança por parte do público geral, fazendo com que nem sempre os flippers ganhassem
destaque positivo na imprensa brasileira. Vivendo ainda sob os reflexos morais da Ditatura
Militar instalada em 1964, todas as primeiras menções aos fliperamas na imprensa brasileira
são em notícias sobre a proibição da frequência de menores às casas de entretenimento
eletrônico, como na matéria “´Fliperamas’ estão proibidos a menores”, publicado no jornal
Folha de São Paulo em 24 de abril de 1979, relatando que a pressão de educadores levou o
juiz de menores Nilson Silveira a baixar uma portaria com esta interdição na capital paulista;
Silveira chega a assegurar que não se preocupava com os jogos em si, mas sim com os locais
nos quais as máquinas estavam instaladas:

O juiz faz questão de afirmar que não é contra os jogos eletrônicos. Ele acredita que
o “fliperama”, instalado em locais saudáveis, como clubes e recintos fechados,
podem desenvolver determinadas capacidades ou simplesmente divertir, sem
problemas. A preocupação do juiz Nilson Silveira não é o jogo eletrônico mas, como
afirmou, os locais onde ele está instalado... (FOLHA DE S. PAULO, 1979, p. 17)

No Rio de Janeiro, a restrição de crianças e adolescentes nas casas de diversão


eletrônica havia sido determinado no ano anterior pelo juiz Campos Neto, segundo a
reportagem “´Fliperama´ é proibido a menores”, do Jornal do Brasil do dia 21 de junho de
1978. Na matéria carioca, não são dadas as razões da interdição aos menores, mas pistas
podem ser encontradas três anos depois, quando o JB descreve a febre dos arcades no Rio:
“Jogos de azar, central distribuidora de drogas, causa do declínio na frequência às aulas, e
instrumento neurotizante. Não foram poupados atributos negativos no que se refere aos
flippers” (BETTENMÜLLER; RONDEAU, 1981, p. 20). Porém, esta visão negativa sobre as
máquinas de entretenimento eletrônico não era exclusiva da reprimida sociedade brasileira do
período ditatorial, mas também observada em outros países, como nos EUA, onde as casas de
entretenimento eletrônico foram acusadas de serem locais controlados pela Máfia; segundo
Steven L. Kent,
144

Como um modelo de negócio que lidava com dinheiro vivo, a indústria de lazer
naturalmente atraia suspeitas, e alguns de seus membros atuavam, sem dúvidas, em
atividades de lavagem de dinheiro. Mas a maior parte das histórias sobre a Máfia
controlando essa indústria era exagerada, ou mito.239 (KENT, 2001)

Além das suspeições sobre os locais onde os fliperamas eram disponibilizados ao


público, o conteúdo destes jogos passaram a ser objeto de controvérsias desde o lançamento
de Death Race (Exidy, 1976), game cujo objetivo era atropelar transeuntes – que eram
descritos pela fabricante como formas não-humanas, “gremlins” (cf. ARSENAULT, 2008) ou
“esqueletos em um cemitério” (cf. KENT, 2010). Apesar do pouco sucesso comercial deste
jogo, com apenas 1000 máquinas vendidas (KENT, 2010), a violência representada em Death
Race ganhou grande atenção da imprensa americana; uma busca no arquivo Google News
Archive240 nos mostra 138 resultados de menções nos jornais americanos disponíveis neste
site, sendo que a maioria destes resultados corresponde a reproduções de duas matérias
produzidas pela Associated Press sobre as suspeições da ONG estadunidense National Safety
Council em relação ao jogo.
Contudo, mais comuns eram as menções à “febre” dos games, ou a “mania” dos
fliperamas (em inglês, video craze), tema amplamente explorado pela imprensa mundial em
reportagens que mostravam o apreço de crianças, adolescentes e adultos pelo entretenimento
eletrônico, como nas reportagens do JB citadas acima. Pesquisadores da história dos games
(por exemplo, BLOOM, 1982; WOLF, 2008b) afirmam que este fenômeno foi capitaneado
pelo lançamento de Space Invaders (Taito, 1978), um fliperama japonês no qual o jogador
deve enfrentar alienígenas, que tentam invadir o nosso planeta, atirando com seu canhão laser
para salvar a humanidade. Este jogo espacial se tornou tão popular em seu país de origem, que
teria até mesmo provocado a interrupção da circulação das moedas de 100 ienes, utilizadas
para iniciar o game na máquina (cf. BLOOM, 1982; WOLF, 2008b; DONAVAN, 2010;
EDDY, 2012).
Em uma carta enviada para a edição de 10 de setembro de 1982 do Journal of the
American Medical Association (JAMA), um curioso estudo de caso envolvendo Space
Invaders foi reportado, ganhando o nome de A Obsessão por Space Invaders (no original,
Space Invaders Obsession): três noivos do sexo masculino, prestes a se casarem, começaram a
jogar o arcade de forma obsessiva, com um deles até adiando sua lua-de-mel para continuar o

239
Livre tradução de: “As an all-cash business, the amusement industry naturally attracted suspicion and some
members undoubtedly engaged in money-laundering activities. But most of the stories about the Mafia
controlling the industry were exaggerations or myths”.
240
Repositório de jornais de todo o mundo: https://news.google.com/newspapers
145

jogo; porém, o vício em Space Invaders terminou logo após os seus casamentos. Antes da
descrição do caso, o editor esclarece a importância do tema aos seus leitores, profissionais da
área médica estadunidense: “Os americanos foram pegos em uma ‘mania’ de videogames
eletrônicos. É digno de nota observar que existem relatos recentes das complicações médicas
de se jogar Space Invaders...”241 (JAMA, 1982, p. 1177). Já a resposta indicada para esse caso
por três especialistas da Universidade Duke tenta não criar juízos sobre o game, mas sim
relacionar a derrota no jogo com o comprometimento dos indivíduos com o ato de se casar:

Nós acreditamos que a obsessão de cada um destes homens por jogar Space
Invaders foi uma maneira de lidar com a sua raiva pelo seu recente
comprometimento ao casamento. A desintegração dos alienígenas invasores que
tentavam invadir a “base doméstica” recebeu um significado simbólico. Além disso,
porque o jogador é sempre derrotado no final, a culpa por expressar essa raiva é
aliviada. O termino dos sintomas de cada homem após o casamento refletem uma
diminuição do conflito com este comprometimento. 242 (JAMA, 1982, p. 1177)

Porém, para além da falta de moedas em seu país de origem, ou de problemas


matrimoniais nos EUA, Space Invaders se tornou um grande clássico dos jogos eletrônicos e,
segundo Brian R. Eddy,

Space Invaders contribuiu com muitas novidades para a indústria [de games],
incluindo o uso de personagens animados, e a habilidade de exibição dos recordes.
Seu impacto foi ainda mais sentido devido a enorme quantidade de spin-offs, clones
e remakes ainda produzidos para cada plataforma de jogo imaginável. Space
Invaders também teve um grande efeito na cultura pop.243 (EDDY, 2012)

Esse efeito na cultura pop não foi só causado por Space Invaders, mas sim por todos
os arcades de sucesso, que passaram a fazer parte da vida de milhões de pessoas em todo o
mundo. Neste sentindo, como um reflexo desta crescente popularização dos jogos eletrônicos,
foram criadas diversas músicas que tinham os games como tema, especialmente durante a era
de ouro dos arcades, que compreende o período entre 1978 e 1984 (cf. EDDY, 2012), uma

241
Livre tradução de: “Americans are caught up in an electronic video-game ‘craze’. Of note have been recent
reports of medical complications of playing Space Invaders…”
242
Livre tradução de: “We believe that each man's obsession with playing Space Invaders was a means of
handling his anger over the recent commitment to marriage. The disintegration of invading aliens who were
trying to overrun the "home base" took on symbolic significance. In addition, because the player is ultimately
defeated, the guilt over expressing this anger is relieved. Each man's cessation of symptoms after marriage
reflected a lessening of the conflict over his commitment”.
243
Livre tradução de: “Space Invaders contributed many firsts to the industry, including the use of animated
characters and the ability to display a high score. Its impact was further felt by the sheer quantity of spin-offs,
clones, and remakes made to this day on every game platform imaginable. Space Invaders also had a big effect
on pop culture”.
146

tendência iniciada pelos temas buscados pela banda Yellow Magic Orchestra, como
descrevemos anteriormente. Acreditamos que, quando voltamos o nosso olhar para canções
que, por exemplo, têm como tema Space Invaders, um jogo inspirado por clássicos da FC
como o primeiro filme da trilogia Star Wars e por A Guerra dos Mundos , de H.G. Wells (cf.
LOGUIDICE e BARTON, 2009; DONAVAN, 2010), percebemos que esse crossover entre
música e cultura digital não se realizou por mero acaso, já que essas instâncias operariam
dentro de certas lógicas comuns, e estas características podem se refletir nas canções com
essas temáticas, pois

Os prazeres proporcionados pela música popular massiva, os valores, gostos e afetos


que ela comunica, em geral, estão relacionados com “estórias” que elas contam
sobre os consumidores potenciais dos diversos gêneros que compõem o cenário do
consumo musical na cultura contemporânea. (JANOTTI JR., 2003, p. 36)

5.1 As músicas sobre games: retratos da era de ouro dos fliperamas

Em um esforço de pesquisa em sites como Discogs244, Youtube e Google, utilizando-


nos de palavras-chave como arcade, games, video game, ou de traduções destes termos para
diversas línguas, como computerspiel, videojuego ou Игра (igra, “jogo” em diversas línguas
eslavas), chegamos a um total de 137 músicas, compostas em gêneros variados como disco (e
suas variações como space e italo disco), electro, punk rock, funk, synthpop/new wave, jazz,
rockabilly e dub. Estas produções foram realizadas em 15 países, em ordem cronológica de
primeira aparição: Japão, Nova Zelândia, Austrália, Reino Unido, Bélgica, EUA, Holanda,
Itália, Alemanha, Jamaica, França, Brasil, Canadá, Venezuela e Finlândia. A maioria destas
músicas foi lançada como single, não obtendo muita expressão na época do seu lançamento, e
caindo posteriormente na obscuridade, mas algumas composições atingiram certo sucesso
comercial na época; Pac-Man Fever, um rock-pop lançado em 1982 pela dupla estadunidense
Buckner & Garcia, chegou ao número nove da Billboard Hot 100, ganhou versões em línguas
locais de países como Alemanha Ocidental e Finlândia, e entrou na trilha sonora internacional
da telenovela brasileira O Homem Proibido (Rede Globo, 1982). No Brasil, as produções
locais de música sobre jogos eletrônicos atingiram também certa notoriedade: Transas &
Caretas foi gravada pelo grupo Trio Los Angeles para a abertura da novela homônima (Rede

244
Site que pretende ser uma database de todos os lançamentos musicais do mundo, acessado pelo endereço
http://www.discogs.com/
147

Globo, 1984); o synthpop Videogame, lançado pelo grupo Roupa Nova em 1983, foi a base do
tema de abertura do extinto telejornal Jornal da Manchete durante toda a sua existência, entre
1983 a 1999; a banda new wave Azul 29 emplacou Vídeo-Game na trilha sonora do filme Bete
Balanço (1984).
Mesmo com tanta diversidade de origens e estilos, as músicas que retrataram a era de
ouro dos fliperamas não possuíam uma grande variedade de temas. Dentre as canções
encontradas durante as nossas pesquisas, encontramos cinco tópicos predominantes: o vício
causado pelos games, cenários futuristas distópicos, tecnofobia, analogias entre jogos e amor,
a diversão causada pelos games, e descrições do ato de jogar eram os tópicos mais
desenvolvidos pelos compositores, com especial destaque para as menções a Space Invaders.
Este foi o jogo mais observado em nossa exploração, com 17 títulos de músicas fazendo
menções diretas ao game espacial, concentradas principalmente entre os anos de 1979 e 1980;
Space Invaders recebeu quase o dobro de citações a Pac-Man (Nanco, 1979), outro popular
arcade, no qual o jogador deve comandar um simpático personagem, com o formato de uma
bola amarela, por um desafiante labirinto, comendo pílulas de energia disponíveis ao longo
dos caminhos da tela, e fugindo de fantasmas. Assim, observamos nas músicas com temáticas
gamers a prevalência de uma visão tecnofóbica sobre os jogos eletrônicos – como exemplo,
podemos citar a preocupação com o vício em games, presentes em 23 canções encontradas,
que aparecem de forma metafórica (Pac-Man fever, a “febre por Pac-Man” do título da
canção de Buckner & Garcia) ou agressivamente literal (o pré-refrão “He's hooked, he's
hooked/His brain is cooked”245 de Space Invaders, um disco/funk lançado pelo DJ
estadunidense Uncle Vic em 1980). Conforme nos lembra Graeme Kirkpatrick (2014), ao
refletir sobre os discursos sobre games em revistas especializadas do Reino Unido no anos
1980, nesta época os jogos eletrônicos lutavam para se livrar do estigma que as atividades de
computação em geral eram viciantes; porém, o pesquisador britânico destaca que

Os games e o ato de jogá-los não se apresentam muito como ‘atividades normais de


lazer’, mas sim como ‘normais em sua anormalidade’ (...) Visto dessa forma, o jogar
é um jogo em si, e, de acordo com as suas regras, certas construções discursivas do
anormal (‘viciante’, ‘maluco’) acabam por constituir um novo normal. 246
(KIRKPATRICK, 2014, p. 2)

245
Em uma tradução livre para o português, “Ele está viciado, ele está viciado/Seu cérebro derreteu”.
246
Livre tradução de “Games and gaming presente themselves not so much as ‘normal leisure pursuits’ as
‘normal in their abnormality’ (…) Viewed in this way, gaming is itself a game and, according to its rules,
certain discursive constructions of the abnormal (‘addictive’, ‘crazed’) come to constitute a new normal”.
148

Desta forma, para darmos conta de uma aproximação duas formas de entretenimento –
música e games - que parecem, à primeira vista, ser tão diferentes entre si, devemos continuar
a adotar nossa postura metodológica (descrita no capítulo 1) que procura desvelar possíveis
redes de relações entre os temas abordados a partir de uma observação empírica e descrição
da recorrência de temas, características materiais e contextos que compõem nossos objetos de
estudo. Deste modo, não buscaremos interpretar o que as canções nos apresentam, mas sim
pensar nas conexões e nas redes materiais e cognitivas que perpassam e possuem influência
nos nossos objetos.
Para a descrição das músicas gamers dentro dessa nossa proposta de método,
exploramos três conjuntos de elementos:
a) Sonoridade: estilo musical; uso de samples de jogos eletrônicos e/ou efeitos sonoros
que lembrem sons usados em games; instrumentos utilizados; harmonias vocais e/ou uso de
vocoder247. Escolhemos o detalhamento destes elementos seguindo a sugestão de Mark J.
Butler (2003, p. 6) de que o uso de sintetizadores, baterias eletrônicas, sequenciadores e
sampleadores são características que definem a produção de música eletrônica, e que se
tornaram cada vez mais comuns na música popular – assim, estes elementos sonoros que
escolhemos descrever em nosso conjunto de análise fazem parte da materialidade da música
eletrônica e/ou de produções musicais influenciadas por esse estilo;
b) Visualidade: como os clipes musicais das músicas selecionadas retratam os temas
discutidos neste trabalho em seus elementos visuais. Para tanto, buscamos selecionar, dentre
as 137 músicas encontradas na pesquisa, aquelas que possuem clipes e/ou alguma outra forma
de divulgação audiovisual;
c) Letras: ao que elas se referem e descrevem, tanto de forma direta quanto
metaforicamente.

5.2 The craze, the fever: as canções sobre o vício em games

O vício em jogos eletrônicos, constantemente explorado por legisladores e juízes de


todo o mundo, foi um tema constantemente retomado pelas músicas pop sobre games na era
de ouro dos arcades. Essa tendência se iniciou com o lançamento, em 1979, de um dos

247
O vocoder é um sintetizador de voz que “(...) ligado a um microfone, permitia alteração de voz e constituía
uma estética semelhante a de alguém falando ao telefone” (SOARES, 2014, p. 23).
149

primeiros singles com temática gamer: a canção Space Invaders, composta pelos produtores
australianos Russell Dunlop e Bruce Brown sob o nome Player One, e inspirada pelo jogo de
fliperama homônimo. Com uma levada característica da disco music, e traços de influência do
notório trio Bee Gees, Space Invaders atingiu o número três das paradas da Austrália, e se
tornou um clássico, sendo sampleado por músicas seminais como On and On, do pioneiro da
house music Jesse Saunders, e levou Dunlop e Brown a apostarem no lançamento de um
álbum temático, Game Over (1980), com todas as suas dez músicas associadas a diferentes
aspectos da nascente cultura gamer – porém, suas outras canções, como My Babe Is A Cool
Player, Red On The Bottom Line ou Microprocessor, cada uma parodiando um estilo em voga
na música pop do final dos anos 1970 (rock progressivo, funk, entre outros), não obtiveram o
mesmo sucesso comercial do single. Space Invaders é uma música marcadamente disco,
sendo classificada na vertente Space disco248 pelo seus temas (espaço, futurismo, tecnologia)
e pelo seu uso de efeitos sonoros correspondentes. Uma linha de baixo sintetizada, sampleada
diretamente do jogo Space Invaders249 e reconfigurada em um tempo mais rápido do que no
original, abre a música, e continua em loop, em segundo plano, até o seu final. Os vocais
possuem harmonias vocais próximas, muito parecidas com as que seus conterrâneos dos Bee
Gees criaram em seus maiores sucessos – com o uso, inclusive, de falsetes que eram a marca
registrada dos irmãos Gibb. Os efeitos sonoros também são uma atração da canção de Dunlop
e Brown, que faz uso constante de samples de pequenos fragmentos sonoros do jogo Space
Invaders, como o barulho do canhão laser da nave do jogador, ou os ruídos característicos da
entrada na tela da nave mãe dos alienígenas invasores.
No videoclipe de Space Invaders, as imagens espaciais ganham destaque: logo no
começo são apresentados planetas e naves que passam pela tela atirando raios laser, em uma
clara alusão ao game inspirador; os raios laser aparecem de acordo com os efeitos sonoros da
música, que, como descrevemos acima, foram diretamente sampleados do jogo. Seres com
capas pretas e com a face escondida por máscaras brancas fazem uma alusão aos Sith do filme
Star Wars, referência esta confirmada em cenas posteriores, que mostram pessoas com roupas
parecidas com as dos personagens Luke Skywalker e Han Solo lutando contra as figuras de

248
Space disco é uma vertente da música eletrônica que alcançou certa notoriedade na Europa no final dos anos
1970, especialmente na Itália. As canções desse gênero possuem batidas rápidas, efeitos sonoros
computadorizados, uso de vocoder, e letras invocando viagens espaciais e/ou outros elementos tecnológicos,
como computadores e robôs.
249
No jogo, esse efeito sonoro começa como sons esporádicos que são tocados de acordo com a movimentação
das naves alienígenas inimigas (os invasores espaciais do título do game). Quando os alienígenas já se
encontram perto mais perto da nave do jogador, os efeitos adquirem um tempo maior, gerando a linha
sampleada por Dunlop e Brown.
150

preto, em cenários que possuem certa semelhança com a nave Estela da Morte. Durante todo
o clipe são realizadas inserções das imagens dos alienígenas do jogo inspirador – uma
inserção notável foi feita logo no início do clipe, quando os seres de capas preta são
mostrados em uma sala cheia de estruturas feitas de cristais, e colocando as mãos em uma
destas, como que invocando os aliens do jogo para uma batalha. No final, um planeta é
desintegrado com uma rajada de raio laser, um poder que era, em Star Wars, exclusivo da
Estrela da Morte.
E se a visualidade do videoclipe de Space Invaders nos mostra influências de outro
popular produto de entretenimento com temática científico-ficcional, a letra da canção deixa
clara a inspiração no famoso jogo de fliperama, descrevendo, em primeira pessoa, o processo
de jogar o arcade – a música começa com as frases “Through dark sunken eyes/I see another
pale sunrise”250, como se o jogador entrasse na história durante o período de sua partida, e
continua a descrever um ambiente sombrio, de lutas, dentro das casas de fliperama:
“Surrounded by soldiers glued to the screens/Hold back the invaders, their infernal
machines”251, e corroborado pelo pré-refrão “We fight to survive, running to stay alive/Our
bodies aching and tired...”252. As alusões aos videogames como um produto de entretenimento
ativo, que leva ao vício (como vimos em discussões acima), não foram exploradas pelo clipe
de Space Invaders, que supostamente se focou nas batalhas enfrentadas pelos jogadores, mas
estão bem presentes na letra, especialmente na parte “Oh my hip pocket nerve is aching
again/I must go back in and fight it out to the end”253. A batalha do jogador de Space
Invaders, para Dunlop e Brown, não é só contra os invadores espaciais do arcade, mas
também contra o próprio envolvimento excessivo com o jogo.

250
Uma tradução possível seria: “Através dos meus olhos cheios de olheiras/Eu vejo outro amanhecer pálido”.
251
“Cercado por soldados grudados em suas telas/Detendo os invasores, suas máquinas infernais”.
252
“Nós lutamos para sobreviver, correndo para nos manter vivos/Nossos corpos doloridos e cansados...”.
253
“Oh, meu bolso está doendo de novo/Eu devo voltar para lá e lutar até o final”.
151

Figura 22 – Space Invaders, o videoclipe: um mix do jogo com o universo de Star Wars

Fonte: Screenshots feitos pela autora

Outras músicas de menor sucesso, muito mais obscuras, também descreveram a “febre
dos flippers” como viciante, nociva ao jogador: esse é o caso do single Video Games, da
banda estadunidense de new wave Fingers, lançado em 1982, cujo clipe chegou a ter uma
rotação limitada na MTV local. Video Games começa com efeitos sonoros de diversos jogos,
misturados, que vão se acelerando até a introdução dos instrumentos, e do coro “Video...
Video... Video games” – o restante da música segue a linha do new wave, com influências de
punk e synthpop, o que significa uma batida energética, com uso de pequenas partes sonoras
eletrônicas de fundo. O clipe de Video Games se passa, em sua maior parte, em um fliperama,
e mostra o vocalista Rick George parecendo agitado, procurando moedas em seu bolso, sendo
abandonado por sua namorada, indo ao psiquiatra – tudo pelo vício em games. E a letra de
Video Games explicita bem a paixão do personagem da música pelos jogos de fliperama, ao
afirmar “You knew that I was different from the start/You´d look inside and see ´Space
Invaders´ in my heart”254.

254
Em uma tradução livre: “Você sabia que eu era diferente desde o começo/Você olhava para dentro de mim e
via ‘Space Invaders’ no meu coração”.
152

Figura 23 – Video Games, The Fingers: o vício destruindo a vida

Fonte: Screenshots feitos pela autora.

A mesma febre é descrita em Video Games, lançado em 1982 pela banda californiana
The Toons como uma das faixas do seu único álbum, Looking at Girls. A banda é descrita
pela Revista Billboard de 18 de setembro de 1982 como adotando um estilo próximo aos
pioneiros do surf rock The Beach Boys, com harmonias vocais complexas que “(...) resultam
em canções pop igualmente inteligentes”255 (BILLBOARD, 1982, p. 63), porém, destas
influências do surf rock apenas as harmonias vocais estão presentes em Video Games, que se
aproxima muito mais da new wave, com sua batida rápida, uso de efeitos sonoros eletrônicos -
de jogos, claro – e letra bem-humorada. O videoclipe desta música também ganhou certa
rotação na MTV estadunidense, juntamente com a canção homônima do Fingers, e mostra a
banda em uma sala de aula repleta de crianças, parecendo entediados com a aula que estava
acontecendo; os membros do Toons batem as pernas com ansiedade, fazem movimentos com
as mãos que são parecidos com o ato de jogar arcades, até finalmente fugirem da sala,
jogando os seus materiais escolares para o alto, e irem correndo a um fliperama, onde jogam,
alucinados. Esse tema de tédio escolar, em oposição à diversão dos games está presente
também na letra, que diz, logo em seu começo, mais uma vez citando Space Invaders: “Tenho
que sair dessa sala de aula/Não consigo resolver essa equação/Minha galáxia está devastada

255
Livre tradução de: “(…) to render equally clever pop songs”.
153

por uma invasão alienígena”256. E no refrão, a febre por games se mostra devastadora para o
jogador:

Não quero comer/Não quero beber/Não quero falar/Não quero pensar/Não quero
viver/Não quero chorar/Não quero viver/Não quero chorar/Eu quero viver/Não
quero morrer/Porque tudo que eu quero é... jogar/jogar/jogar/jogar/jogar os meus...
videogames257

Figura 24 – Video Games, The Toons: aulas são chatas sem os games

Fonte: Screenshots feitos pela autora.

A descrição dessa batalha contra o vício também está presente naquela que pode ser a
música mais famosa sobre games: a já citada Pac-Man Fever. Neste sucesso mundial, a dupla
Jerry Buckner e Gary Garcia utiliza efeitos sonoros do jogo sobre uma base de rock clássico,
com riffs de piano bem marcados e um solo de guitarra no meio da canção, em sua ponte.
Pac-Man Fever não ganhou videoclipes em sua versão original258, mas várias apresentações
da música ao vivo podem ser encontradas em sites como YouTube – em uma delas, no
programa Dick Clark, a plateia é vista mexendo as mãos para imitar os movimentos do avatar

256
Livre tradução de: “Gotta get out of this classroom/I can´t solve this equation/My galaxy is wrecked by an
alien invasion”.
257
Livre tradução de: “Don´t wanna eat/Don´t wanna drink/Don´t wanna talk/Don´t wanna think/Don´t wanna
live/Don´t wanna cry/I wanna live/Don´t wanna die/´Cause all I wanna do is... Play, play, play, play, play my...
Video games”
258
Apenas a versão em língua alemã, Pac-Man Fieber, lançada em 1982 pelo cantor Gerald Mann, possui
videoclipe: https://www.youtube.com/watch?v=tL9rHSThPFE
154

do jogo, ou dançando de forma descontrolada, refletindo letras como o refrão “´Cause I've got
Pac-Man fever, Pac-Man fever/It's driving me crazy, driving me crazy” 259. Porém, a música
de Buckner & Garcia acaba tendo uma visão um pouco menos negativa do vício em jogos
eletrônicos, se focando na intensa experiência de jogar o arcade japonês, mais do que nos
seus supostos efeitos nocivos, que foi a principal marca das músicas gamers da época de ouro
dos fliperamas.

Figura 25 – Pac-Man Fever no programa Dick Clark: vício e diversão em conjunto

Fonte: Screenshots feitos pela autora.

5.3 No future: o futuro distópico nas músicas sobre games

A presença de visões negativas sobre a computação, de um futuro dominado pelas


máquinas, tema presente em muitas obras de Ficção Científica (ver REGIS, 2012), também
está presente nas canções gamers. Uma música emblemática sobre essa tecnofobia é
Computer Games, lançada em 1979 pela banda neozelandesa Mi-Sex, e que chegou ao
número 61 da Billboard Hot Dance Club Songs e ao primeiro lugar das paradas australianas.
Liderada pelo vocalista Steve Gilpin, morto em um acidente de carro em 1992, a Mi-Sex fez
259
Uma possível tradução seria: “Porque eu peguei a febre do Pac-Man/Isso está me deixando louco...”
155

sucesso nas paradas da Oceania e da Europa com o seu synthpop repleto de temas ligados à
Ficção Científica; as letras de Gilpin e seus companheiros cantavam um futuro sombrio,
distópico, no qual os jogos eletrônicos e a engenharia genética eram parte do dia-a-dia, e os
sentimentos eram inúteis, quase extintos; em People (1980), a banda se pergunta: “E o que vai
acontecer com a família quando esse dia chegar/Quando a criança não mais vai dever sua
existência a dois pais biológicos”260. E esse clima de distopia, desconfiança em relação às
inovações tecnológicas está presente no principal sucesso da Mi-Sex: lançada em 1979,
Computer Games traz elementos futurísticos tanto em seus sons quanto nos apelos visuais do
seu clipe.
Podemos perceber, claramente, que Computer Games se encaixa no estilo new
wave/synthpop, dançante, com influências do punk e da música eletrônica dos anos 1970. E as
influências desses estilos se tornam claras assim que Computer Games começa a tocar: um riff
criado por meio de sintetizadores abre a música, permanecendo em loop, em um volume mais
baixo, durante toda a canção, ajudando a compor a batida da música juntamente com a
bateria. Em seguida, um riff de guitarra com distorção levemente sintetizada entra em
primeiro plano, fazendo a ponte para o início dos versos. Ocasionalmente são ouvidos efeitos
sonoros eletrônicos, que em um flagrante desacordo com o título da música, não são de jogos
eletrônicos – parecem mais ser de aparelhos telefônicos; estes efeitos parecem ser produzidos
em sintetizadores, e não por meio de samples. O vocal agudo (e por vezes estridente) de Steve
Gilpin não passa por nenhuma alteração em sintetizadores, e só ganha a companhia de um
coro em momentos breves, já no refrão.
Ao analisarmos o videoclipe de Computer Games, o tema futurístico da música se
torna ainda mais claro: o clipe foi gravado na sede da empresa multinacional Control Data
Corporation (CDC), em North Sydney, na Austrália – a primeira cena mostra a logomarca da
empresa em destaque, enquanto a banda “invade” o datacenter, de madrugada. Em diversos
momentos, os membros da Mi-Sex são mostrados em frente aos equipamentos da CDC,
tentando usá-los de forma entediada, caótica, “rebelde” – o que combina com o vestuário da
banda, composto por jaquetas de couro punk. Em um momento emblemático, Gilpin canta em
frente a uma impressora matricial, que imprime a imagem da Mona Lisa de Leonardo da
Vinci em formato ASCII art261. O refrão é cantado em um lugar diferente, com um fundo em

260
Livre tradução de: “And what will happen to the family when the day comes/When the child no longer owes
his existence to two biological parents”.
261
ASCII art é um formato artístico que ganhou popularidade a partir dos anos 1980, em que imagens são
reproduzidas ou criadas a partir de caracteres ASCII, usados para representar textos em dispositivos digitais.
156

chroma-key, que exibe imagens de jogos de fliperama populares nos anos 1970: na primeira
vez, é exibida uma projeção em loop do arcade de corrida Speed Freak (Vectorbeam, 1978),
no qual o carro dirigido pelo jogador bate em outro, e se desfaz em formas geométricas, bem
no ápice do refrão (“Com-pu-pu-pu-pu-pu-pu-pu-pu-pu-pu-puter-puter, computer games!”);
na segunda iteração, o jogo exibido é Atari Basketball (Atari, 1979); na terceira, o arcade
exibido é o jogo espacial Star Fire (Exidy, 1979), que possui elementos visuais inspirados
pelo filme Star Wars, como a presença de naves de caça parecidas com os TIE fighters do
Império. Nessa parte, os membros da banda se vestem ao estilo new wave: roupas mais justas,
com elementos brilhantes, com cortes e estampas geométricas. No final do videoclipe, é
exibida a tela de “game over”, final do jogo, de Star Fire, em close.
Os elementos que compõem a letra de Computer Games apresentam uma visão
distópica sobre a introdução das tecnologias computacionais em nosso cotidiano: Gilpin
canta, em primeira pessoa, sobre um mundo no qual o trabalho é mediado pela computação,
se tornando repetitivo, cansativo, aborrecedor. As primeiras frases da canção são “I fidget
with the digit dots and cry an anxious tear/As the XU-1 connects the spot/But the matrix grid
don't care…”262, refletindo a ansiedade e a frustração do ser humano em uma era de frieza,
desconexão familiar (“Get a message to my mother/What number would she be...”263), na qual
as pessoas se encontram presas às regras das máquinas, sendo apenas mais uma peça na
engrenagem (“Is it suicide run till the work gets done/'Cause the matrix grid don't say...” 264).
Para os objetivos deste trabalho, interessante é observar que os jogos eletrônicos não são
mencionados, nem mesmo de forma metafórica, durante os versos da música – os “computer
games” são citados apenas no refrão, gaguejado, o que apresenta certa coerência com os
detalhes visuais observados no videoclipe da Mi-Sex. Nesse sentido estrito observado, não é o
personagem desta narração que joga games, e sim, ele apenas é participante de um game (a
sua vida cotidiana) que seria dirigido, “jogado” pelas máquinas.

262
Uma possível tradução seria “Eu brinco, nervoso, com os pontos dos dígitos e choro de ansiedade/Enquanto a
XU-1 conecta os pontos/Mas a grade da matriz não se importa...”.
263
“Tenho uma mensagem para minha mãe/Qual número ela deve ser...”.
264
“É uma corrida suicida até o trabalho terminar/Porque a matriz não nos diz nada...”.
157

Figura 26 – Computer Games: o futuro sombrio da tecnologia

Fonte: Screenshots feitos pela autora.

Este futuro sombrio, em que a humanidade vive em um jogo, também é o tema de


Living on Video, da banda canadense Trans-X, lançado em 1983, juntamente com a sua versão
em língua francesa, Vivre sur Vidéo. Esta canção québécois chegou ao número 61 na parada
estadunidense Billboard Hot 100, e foi muito bem sucedida na Europa, conquistando bons
lugares nas parada de singles de diversos países: número 1 na Espanha, 2ª posição na Suiça,
número 4 na Alemanha, e 9º lugar na UK Charts. Em Living on Video, os sintetizadores
dominam sua sonoridade, tanto na base quanto nos riffs, em um estilo próprio do synthpop da
época; porém, a batida muito acelerada, de aproximadamente 135 batidas por minuto
(BPM)265, faz com que esta música possa ser classificada dentro da vertente Hi-NRG de
música eletrônica266. O vocoder também está presente, assim como o uso de efeitos sonoros
que evocam os games, assim como em outras músicas dessa temática, mas o futurismo de
Living on Video se torna ainda mais claro em seu videoclipe, que mostra pessoas (membros da
banda e figurantes) com roupas brilhantes, de lurex, mexendo-se de forma robótica por uma
sala repleta de televisores e computadores. A letra da canção da Trans-X contribui ainda mais
para esse cenário de um futuro distópico, ao citar o “mundo digital” construído pelos
computadores como mera fantasia, ilusão, em contraposição ao mundo real – a letra da versão

265
As batidas foram medidas com o auxílio do aplicativo Gibson Studio Share, em sua versão para o tablet IPad.
266
Gênero de música eletrônica popular nos anos 1980, especialmente em boates voltadas ao público gay, a Hi-
NRG (sigla de Hi-Energy, “alta energia”) se caracterizava por batidas aceleradas, linhas de baixo acentuadas,
uso de sintetizadores em bases e riffs, e temas futuristas.
158

em francês deixa ainda mais clara essa intenção, ao declarar “C´est bien mieux que la
réalité/Dans les circuits intégrés”267.Também fica claro que esse mundo irreal de Living on
Video são os jogos eletrônicos, que não são referenciados de forma literal, como nas outras
músicas gamers, mas por figuras de linguagem, como em “Give me light, give me action/At
the touch of a button/Flying through hyperspace/In a computer interface” 268. No final, a
mensagem da Trans-X, é clara, repetida continuamente no refrão: “Pare - de viver na tela”269.
O pessimismo de Computer Games e Living on Video/Vivre sur Vidéo também é
compartilhado por músicas como Space Age Whiz Kids, lançada em 1983 por Joe Walsh, mais
conhecido por ser o guitarrista principal da clássica banda Eagles. Space Age... foi o single
mais conhecido do álbum solo You Bought It – You Name It e chegou ao número 52 da parada
Billboard Hot 100, e ao número 21 da Hot Mainstream Rock Tracks. Esta é uma música que
possui um estilo de rock clássico, com riffs de guitarra bem marcados e uso de baixo e bateria
para a marcação do ritmo, porém, vocalizações distorcidas por vocoders e efeitos de
sintetizadores dão a ambientação de uma música feita para ironizar a “febre dos arcades”. O
videoclipe da canção reflete bem esta intenção de Walsh, ao mostrar o músico em um
fliperama dos anos 1950, com suas máquinas mecânicas, como um lugar de diversão e
sociabilização de jovens, contrastando com o futurista fliperama dos anos 1980, repleto de
jovens com roupas “espaciais”, feitas de tecidos brilhantes, com movimentos robóticos, e
olhos grudados nas telas, jogando games populares da época, como Donkey Kong (Nintendo,
1981), Lunar Lander (Atari, 1979), sem se distraírem com as tentativas de Walsh para chamar
a atenção de todos, ou mesmo quando o músico caminha pelo fliperama vestido como um
astronauta. O sentimento de inadequação, de não acompanhar os novos tempos fica ainda
mais evidente na letra de Space Age... - logo na primeira estrofe, Walsh declara: “I feel a
little bit mixed up, maybe I'm obsolete/All us pinball pool sharks, we just can't compete...”270,
e ainda ironiza o gosto das crianças espertas, “I like space age whiz kids/I like...I need...I
need quarters...quarters!/Give me quarters! I like quarters!”271

267
“É bem melhor do que na realidade/Nestes circuitos integrados”
268
“Dê-me a luz, dê-me a ação/No toque de um botão/Voando pelo hiperespaço/Em uma interface de
computador”.
269
Tradução de: “Stop - living on vídeo”.
270
Uma possível tradução seria: “Eu me sinto um pouco confuso, talvez eu esteja obsoleto/Todos nós, feras do
bilhar e do flipper, nós não conseguimos competir...”.
271
“Eu gosto das crianças espertas da era espacial/Eu gosto... eu preciso... eu preciso de moedas... moedas!/Me
dê moedas! Eu gosto de moedas”.
159

Figura 27 – Space Age Whiz Kids: a infância robotizada pelos games

Fonte: Screenshots feitos pela autora.

O mesmo tema – crítica às crianças “futuristas”, que se interessam por jogos


eletrônicos – aparece também em Micro-Kid, música da banda de jazz-fusion britânica Level
42, também lançada em 1983, que chegou ao número 37 das paradas de singles do Reino
Unido, e à posição de número 67 da Billboard Dance/Disco Top 80. Em Micro-Kid, o jogador
infantil de games é descrito, ironicamente, como alguém repleto de conhecimento, que pode
resolver os problemas da humanidade ao mesmo tempo em que programa seus games: no
refrão, o vocalista e baixista Mark King canta: “O garoto do micro com seus mega
pensamentos/Ele é real, ele está aqui, ele está na moda/O garoto do micro fala um papo
digital/Se você ouvir o que ele diz que é aceitável”272. Tanto nas fábulas de Space Age Whiz
Kids quanto em Micro-Kid, assim como em Computer Games e Living on Video, a mensagem
é clara: devemos temer o futuro dominado pelos games e seus jogadores.

5.4 O amor como jogo, o jogo do amor

Em janeiro de 1984, estreava uma nova novela na grade da Rede Globo de Televisão:
escrita por Lauro César Muniz, Transas & Caretas foi exibida no tradicional horário das 19h,

272
Livre tradução de: “Micro-kid with mega-thoughts/He is real, he is here, he is fashionable/Micro-kid speaks
digitalk/If you hear what he says it's acceptable”.
160

com 167 capítulos. A novela tinha toques de Ficção Científica, contando a história de dois
irmãos, um conservador, que gostava de viver no passado, e um “moderno”, que tinha o robô
Alcides como seu mordomo. Além do empregado robótico, Transas & Caretas adicionou
mais camadas de suposta modernidade à trama com sua abertura, que contava com a música
homônima gravada pelo trio brega Los Angeles. Até então, o grupo liderado pelo cantor
Márcio Mendes era mais conhecido pelas canções de inspiração latina, como a salsa Vamos
Dançar Bambolê – o pop-rock de influências eletrônicas de Transas & Caretas, escrita pelos
hitmakers Michael Sullivan e Paulo Massadas, e gravada especialmente para a produção
global, trouxe novos rumos para a carreira do trio, que frequentou assiduamente os programas
de auditórios da TV brasileira nos anos 1980. Porém, para além dos usos globais, a
notoriedade de Transas & Caretas se deve ao seu tema: uma música que faz alusão aos
videogames para falar de amor e paixões.
Em termos de sua sonoridade, a música do Trio Los Angeles se diferencia das outras
analisadas pelo uso diminuto de elementos eletrônicos – a canção quase não faz uso de
sintetizadores, preferindo ressaltar na sua parte instrumental uma guitarra bem pronunciada,
com distorção pesada, tocando o riff da abertura da música. Um elemento de percussão,
possivelmente de uma bateria eletrônica, lembrando o som de palmas, marca o ritmo junto
com pratos que parecem ser de uma bateria convencional, resultando em uma batida rápida
para os padrões do pop (145 BPM, aproximadamente). Os vocais são cantados em harmonia
pelos integrantes do trio (um homem e duas mulheres) durante toda a duração da canção,
resultando em um coro que não permite diferenciar timbres individuais. Alguns efeitos
sonoros são empregados em momentos esparsos, com uma sonoridade que lembra efeitos
especiais usados para representar naves espaciais e raios laser. A abertura da novela Transas
& Caretas, sob a direção de José Wilker e Mário Márcio Bandarra, continua com a verve
futurista da música homônima: logo em seu começo, é mostrado um console do videogame
Atari VCS, lançado oficialmente no Brasil em 1983. Uma mulher, vestida com trajes
elegantes, coloca um cartucho no console, cujo rótulo possui a logomarca de Transas &
Caretas. Quando a mulher liga o game, a logo é desenhada em um televisor, posteriormente
se transformando em um labirinto, que possui cores neon semelhantes às utilizadas no filme
Tron (1982), de temática gamer. Este labirinto é percorrido por dois homens vestidos de
branco, que se movimentam de acordo com os movimentos que a mulher faz com o joystick
do Atari. No final, os homens se libertam do controle da mulher misteriosa, pulando para fora
da TV. Vale a pena ressaltar que, para essa produção audiovisual, a música homônima
161

recebeu efeitos sonoros extra, que se assemelham mais aos sons encontrados nos jogos
eletrônicos da época.
Na letra composta por Sullivan e Massadas, as evocações ao futurismo se dão por
meio dos games (“Chega de sonhar/O game é pra valer”), das viagens (“Entre nessa nave,
aperte o cinto...”) e das lutas espaciais com raios laser (“É como um raio a disparar/Num alvo
fácil de acertar”), da robótica e da computação (“Siga o seu robô, tome cuidado/Como vai
programar”). Apesar das menções à tecnologia e ao futuro, o tema principal de Transas &
Caretas é mesmo a analogia entre o amor e o jogo, evocada na abertura da novela, mostrando
a necessidade de entrar nas jogadas, fazer o seu próprio destino; o refrão procura deixar clara
essa ideia, ao decretar: “Quem quiser brincar/pode se queimar/é sempre assim/até o fim/e
nunca vai mudar...”. Porém, ao contrário das outras canções desta análise, Transas & Caretas
não possui um tema distópico, não traz em si a desconfiança e/ou a angústia com o uso das
tecnologias digitais – nesta música tupiniquim, a tecnologia aparece apenas como plano de
fundo para a metáfora amorosa, sem julgamentos sobre o seu valor.

Figura 28 – Transas & Caretas: os games chegam à cultura pop brasileira

Fonte: Screenshots feitos pela autora.

A mesma postura é encontrada em outra música gamer nacional: Video Game, da


banda paulistana Azul 29. Lançada em 1984, Video Game é um synthpop com bateria
eletrônica e sintetizadores bem marcados, que traz as relações entre jogo e paixão em sua
162

letra, afirmando que “Um jogo de busca/Nem sempre indolor/Envolve, assusta/O seu
jogador”, e buscando um amor impossível a partir de aventuras: “Na era da eletrônica/Os
sonhos já não servem mais (...) Ainda vou te programar/Num video game terminal/Tua
imagem congelar/Em um sistema digital/Video game”. A mesma forma de descrever a paixão
é encontrada em Video Game, single lançado pelo obscuro cantor Raulzinho em 1984, uma
música pop com efeitos eletrônicos e vocoder, cuja letra faz uma analogia entre os
sentimentos amorosos e o uso de tecnologias digitais: “Eu liguei/O fio da paixão/Do
coração/Ao terminal da TV/Na tela, eu vi você/Em digital (...) Louca batalha do amor/O
computador...”.
Mas nem sempre as analogias entre games e amor resultavam em retratos neutros
sobre a tecnologia. Em Video Games, lançado em 1980 por Ronnie Jones, cantor
estadunidense radicado na Itália, amor, desejo e vício se confundem, trazendo o ato de jogar
como uma metáfora para a sensualidade, a relação carnal. Video Games chegou ao número 28
nas paradas italianas, e foi escolhida como tema de encerramento da primeira temporada do
programa musical Pop Corn da rede Canale 5273, apresentado por Jones, e se tornou mais
conhecida nos anos 2000, ao se tornar uma das inspirações para o sucesso Technologic (Daft
Punk, 2005), que interpolou (usou a estrutura melódica) de versos da música de Jones (como
“Squeeze it, push it try, to tease it...”) em sua composição (“Buy it, use it, break it, fix it/Trash
it, change it, mail - upgrade it/Charge it, point it, zoom it, press it...”).
A música de Jones apresenta uma verdadeira mescla de ritmos. Durante os versos, um
baixo bem destacado, tocado com o uso da técnica de slap, dá à canção um ritmo típico das
produções do funk estadunidense da época, junto com a presença de um riff de sintetizador
marcante, repetido por várias vezes durante a música. No refrão, a música muda seu ritmo
para algo mais aproximado da estética italo disco, com uma batida acelerada, composta por
bateria e sintetizadores que tomam o lugar do baixo funkeado. O refrão e alguns versos da
música utilizam vocoder nas vozes, acentuando a presença de pequenos ornamentos sonoros
eletrônicos, algo bastante frequente na estética do italo disco – estes elementos, especialmente
presentes em partes instrumentais de Video Games, soam como trechos de jogos eletrônicos.
A proposta da música de Ronnie Jones se torna mais clara no vídeo de encerramento
de Popcorn, no qual a dançarina Tiziana Fiorveluti, uma das apresentadoras do programa,

273
Lançado em 1980 pelo futuro primeiro-ministro Silvio Berlusconi, o Canale 5 foi um dos primeiros canais
privados de TV na Itália, Para vencer a audiência acostumada com os programas da rede estatal Radio
Televisione Italiana – RAI, Berlusconi apresentou uma fórmula agressiva de programação: filmes e séries
produzidas nos EUA, e muitos programas de auditório com mulheres em trajes provocantes e apresentações de
música pop. O documentário Vidiocracy (2009), dirigido por Erik Gandini, traz uma profunda discussão sobre
os efeitos desta fórmula de Berlusconi na política e na cultura italiana.
163

dança sensualmente em um local cheio de espelhos e luzes piscantes, semelhante a uma


discoteca. No próximo take, Ronnie Jones está sentado em frente a quatro televisores – os três
mais próximos dele exibem a imagem de Fiorveluti dançando, enquanto o quarto aparelho
mostra uma imagem digital, que supostamente seria de um videogame. A logomarca de
Popcorn está logo atrás dos televisores, bem destacada na imagem, enquanto Jones é
mostrado em primeiro plano manipulando um joystick; em um momento posterior, quando
começa o refrão da música, a imagem de Fiorveluti toma o ambiente onde está o cantor
estadunidense, que imediatamente para de “jogar”, fazendo irreverentes expressões faciais de
desejo e apreciação pela bailarina. Essa atitude de Jones se torna evidente no momento em
que ele canta “ops, I missed a play...”274, e sorri, como se tivesse se distraído propositalmente
com a dança sensual de Fiorveluti.
A intenção sensual demonstrada pelo clipe de Video Games é mais que corroborada
por sua letra, que usa os jogos eletrônicos como metáfora da relação carnal (“Hold it baby,
touch it baby, try to make a play/Squeeze it, push it, try to tease it...”275), e também da
competição, da conquista em um relacionamento amoroso (Your turn, my turn/Competition's
getting to my brain/Your score, my score, low score, high score/Stop and play again” 276).
Porém, o refrão apresenta tons distópicos (“Turn, turn on the video/Can't play on the
radio/Turn off reality/Bring, bring out the worst in me”277), apresentando o medo da nova
tecnologia e do vício que também vistos nas análises anteriores. Para os objetivos dessa
pesquisa, é curioso notar que, diferentemente das outras canções analisadas, Ronnie Jones
relaciona em sua letra tipos de jogos e esportes que ganharam versões eletrônicas, como
hockey, tênis e o tênis de mesa, e os pinballs, máquinas também associadas às casas de
fliperamas – contudo, na frase “Speedway, Star Wars, Space Invaders”, Jones comete um erro
ao citar todos como games, já que Speedway (Chicago Coin Machine Co., 1969) é um jogo de
corrida eletromecânico, ou seja, com mecanismos mecânicos que são ativados por estímulos
elétricos, e o primeiro jogo que licenciou oficialmente a marca Star Wars foi lançado apenas
em 1983, três anos após Video Games.

274
Em uma tradução livre: “opa, eu perdi um lance [da partida]”.
275
“Segure, toque, baby, tente fazer uma jogada/Esprema, empurre, tente provocá-lo....”.
276
“Sua vez, minha vez/A competição está subindo pra minha cabeça/Os seus pontos, os meus pontos, pontuação
mais baixa, pontuação mais alta/Pare e jogue de novo”.
277
“Ligue, ligue o vídeo/Não se pode jogar no rádio/Desliga a realidade/Revela o que há de pior em mim”.
164

Figura 29 – Video Game, de Ronnie Jones: os games como paixão e vício

Fonte: Screenshots feitos pela autora.

5.5 Os games e a música pop: retratos de uma época de descobertas

Em suma, podemos observar que as produções musicais sobre games da época


dourada dos arcades entre 1978 e 1984, que citamos dentre várias, giram em torno de três
temas principais: a tecnofobia ligada ao medo da perda das relações sociais e do
desprendimento da realidade por meio do vício em jogos eletrônicos; a reflexão sobre um
futuro distópico, ressaltada pela adoção maciça das novas tecnologias no cotidiano; e a
utilização do ato de jogar os games como uma metáfora para as relações amorosas. Todos
esses temas, juntamente com a exaltação da diversão no jogo e as descrições das ações
encontradas nos games mais famosos, são facilmente observáveis nas músicas encontradas
por nossa análise, com algumas diferenças de abordagem: enquanto músicas como Computer
Games da Mi-Sex, Space Invaders da dupla Player One, e Video Games, de Ronnie Jones,
apresentam momentos de crítica aos games e à computação, canções como Transas &
Caretas, e as homônimas de Raulzinho e da banda Azul 29 mantém uma postura mais neutra,
preferindo não refletir sobre as consequências da adoção dessas tecnologias no dia-a-dia.
Mesmo entre as músicas tecnofóbicas, existem diferenças na intensidade dessa censura:
165

enquanto a Mi-Sex discorre durante toda a letra sobre os perigos do fim dos relacionamentos e
da criatividade humana, os produtores de Space Invaders preferem se focar em uma sombria
dependência dos jogos eletrônicos. Observamos também que as estéticas sonoras e visuais
ajudam a reforçar os temas tratados nas composições por meio das características sonoras e
construções imagéticas presentes. Desta forma, torna-se mais fácil entender as relações entre a
música pop deste final dos anos 1970 e começo dos anos 1980 com a nascente indústria dos
jogos eletrônicos – estas canções revelavam a visão do grande público em relação à
introdução das tecnologias digitais, dando voz aos medos e esperanças surgidos a partir da
adoção dos meios eletrônicos em nosso cotidiano.
166

CONCLUSÃO

Em 22 de janeiro de 1984, os telespectadores do Super Bowl XVIII278 foram


surpreendidos por um comercial de tons distópicos, com o foco em uma figura autoritária de
um homem que gritava palavras de ordem em uma grande tela, observada por centenas de
pessoas acinzentadas, de olhar fixo, sem vontade. Correndo, uma mulher em coloridas roupas
de ginástica invade a sala, destruindo a tela depois de lançar uma marreta, fazendo com que
um enigmático texto apareça nos televisores que assistiam a essa transmissão: “no dia 24 de
janeiro, a Apple Computer vai lançar o Macintosh. E você vai ver porque 1984 não será como
1984”279. Para além das alusões ao mundo fascista, devastado pelas políticas repressivas de
controle descritas por George Orwell no livro 1984, este spot de um minuto dirigido por
Ridley Scott passou uma mensagem muito mais sutil ao público, marcando a primeira
apresentação do computador que sedimentou as principais características da computação
pessoal: o uso de interfaces gráficas do usuário, com certa apuração na reprodução dos dados
computacionais de forma gráfica; a introdução de interfaces físicas de interação,
especialmente o mouse, dispositivo que até então não havia sido adotado em larga escala pela
nascente indústria de computadores, mesmo após quase vinte anos da pioneira demonstração
de Douglas Engelbart; e o incentivo ao uso criativo das possibilidades computacionais, por
meio do uso de aplicativos para edição de texto, imagens, entre outras funções.
Ao observarmos estas características encontradas no Apple Macintosh, calcadas em
décadas de desenvolvimento das tecnologias digitais, podemos dizer que o anúncio 1984
marcou o momento em que os computadores definitivamente se tornaram meios de
comunicação, iniciando a materialização da previsão de Vannevar Bush em As We May
Think, em 1945 – o uso dos dispositivos computacionais como parte essencial do nosso
cotidiano, construídos a partir das características cognitivas dos seres humanos, e que
pudessem ajudar na construção do conhecimento e de valores comuns a todos os povos do
planeta. Assim, consideramos que o lançamento do Macintosh determinou a conclusão da fase
inicial da história da computação digital, com quarenta anos de várias transições, conforme
discorremos ao longo desta tese: de uma ferramenta de uso exclusivo militar para um

278
Partida anual de futebol americano que marca o grande campeão da temporada, disputada entre os vencedores
das duas conferências que compõe a National Football League (NFL). O Super Bowl tem as maiores
audiências da TV nos Estados Unidos, quebrando recordes a cada ano.
279
Livre tradução de: “On January 24th, Apple Computer will introduce Macintosh. And you'll see why 1984
won't be like 1984”.
167

dispositivo utilizado por pessoas comuns de todas as idades; de uma máquina dedicada a
cálculos complexos para uma ferramenta com diversas finalidades, inclusive (ou
principalmente) de expressão pessoal; de um dispositivo que precisava de um enorme
conhecimento técnico para a sua utilização para uma máquina fácil de ser usada, ainda mais
com o uso cada vez maior dos nossos sentidos (hápticos, especialmente) para a interação; de
um alvo de interesse específico, hobbyista, para uma máquina de uso geral; de um maquinário
obscuro para um bem de consumo desejado por todos.
E para a realização de todas essas transições que transformaram o computador nesta
tecnologia comunicacional, um elemento se mostrou extremamente importante: os games. Os
jogos eletrônicos estavam presentes entre a comunidade acadêmica que iniciou o
desenvolvimento da computação, especialmente com o uso do xadrez para o desenvolvimento
da Inteligência Artificial, iniciando o desenvolvimento de linguagens de programação que nos
permitiram explorar todo o potencial destas máquinas digitais. Os games também foram
importantes quando os computadores começaram a sair dos laboratórios de pesquisa a partir
do trabalho dos hobbyistas eletrônicos, que se dedicaram a construir seus próprios
equipamentos em casa, e que utilizaram os jogos como forma de educação e treinamento de
habilidades, do desenvolvimento de hardware, além da demonstração da utilidade dos
computadores para o público geral. Os games também serviram de inspiração para os
designers de interface, indicando maneiras de criar formas de interação humano-computador
que fossem úteis e prazerosas aos usuários. E, finalmente, os jogos eletrônicos foram de certa
forma o primeiro contato desse público geral com as tecnologias computacionais, a partir dos
consoles e fliperamas, que começaram a serem retratados, discutidos, nas reportagens de
periódicos jornalísticos e nas produções de cultura pop. Assim, após todo o percurso que
realizamos, não é difícil concluir que os games foram uma das peças principais para o
desenvolvimento da computação como a conhecemos atualmente, permitindo que estes
dispositivos pudessem funcionar como pensados por Bush em As We May Think.
Porém, acreditamos que todo o percurso realizado em nossa pesquisa aponta ainda
para outras questões que estão muito além de uma mera história da computação a partir dos
games. Primeiramente, utilizar os games como este objeto-base para uma ontologia da
computação ajudou a clarificar ainda mais, ao nosso ver, a potência comunicacional destes
aparelhos digitais, já que o desenvolvimento dos jogos eletrônicos apontou para as questões
cognitivas, tanto lógicas quanto sensoriais, necessárias para pensar computadores como
veículos de divulgação de ideias diversas, como ferramenta para a materialização de questões
artísticas, como meio de expressão pessoal – ou seja, como um dispositivo relacional, de
168

diversos usos e funções, que faz a mediação entre as ações e os pensamentos humanos. Em
segundo lugar, acreditamos que discutir os games em si como um meio de comunicação é
algo redundante, já que sabemos serem eles implementações computacionais de atividades
lúdicas; se definimos o computador como um meio, e pensarmos no lúdico também como um
espaço de mediação de ações e pensamentos, entre tempo e espaço, entre as instâncias
materiais e imateriais das culturas e sociedades, essa dupla conotação comunicacional dos
games ajuda a explicar o porquê do seu uso para realizar essa potência midiática prevista
pelos pioneiros da computação. Finalmente, a partir do momento que escolhemos realizar um
estudo comunicacional da história da computação, a partir desta dada potência dos jogos, uma
série de relações emergiu, conectando técnica, cultura, ciência e arte – demonstrando como os
computadores são a parte mais visível da tecnocultura surgida na Modernidade, e como sua
introdução em nosso cotidiano levou aos questionamentos que modificaram esta visão de
mundo de forma irreversível. Justamente pela complexidade trazida pelo conjunto de relações
emergentes surgidas a partir da nossa pesquisa, acreditamos que nossa tarefa de mostrar a
importância dos games na história da interação humano-computador não se esgota nesta
presente pesquisa - ao contrário, acreditamos que atingimos aqui apenas uma camada
superficial de relações, que podem ainda serem aprofundadas em trabalhos futuros; por
exemplo, podemos imergir ainda mais nas relações entre Ficção Científica, tecnociência e
computação, ou nas relações entre cognição, tecnologias digitais e formas de entretenimento
contemporâneos, entre outros temas. O “maior brinquedo do mundo” sempre vai nos oferecer
muitas formas lúdicas de construção do conhecimento comunicacional, realizando plenamente
os objetivos traçados por Vannevar Bush em seu início.
169

REFERÊNCIAS

AARSETH, Espen. Computer Game Studies, Year One. Game Studies, n. 1, 2001.

AHL, David H. Basic Computer Games: Microcomputer Edition. New York: Workman
Publishing, 1978.

AHL, David H. Mainframe games and simulations. In: WOLF, Mark J. P. The video game
explosion: a history of Pong to Playstation and beyond. Westport: Greenwood Press, 2008.

ALINOVI, Francesco. GAME START! Strumenti per comprendere i videogiochi. Milano:


Springer-Verlag Italia, 2011.

ALMEIDA, Marilane. Curso essencial de Lógica de Programação. São Paulo: Digerati


Books, 2008.

ANDRADE, Luiz Adolfo. Jogos Pervasivos: Educação, cultura e cidade digital. Revista
Opara, v. 3, n. 1, 2013. s/n.

ANGELL, Ian O.; JONES, Brian J. Advanced Graphics with the Sinclair ZX Spectrum.
London: Macmillian Press, 1983.

APPERLEY, Tom. Gaming Rhythms: Play and Counterplay from the Situated to the Global.
Amsterdam: Institute of Network Cultures, 2010.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2006.

ARISTÓTELES. Politics. Indianapolis: Hackett, 1998.

ARSENAULT, Dominic. The Video Game as an Object of Controversy. In: WOLF, Mark. J.
P. (ed.). The Video Game Explosion: a history from Pong to Playstation. Westport:
Greenwood, 2008.

AU, Wagner James. Os bastidores do Second Life: notícias de um novo mundo. São Paulo:
Ideia & Ação, 2008.

AUDI, Gustavo Magliano. Jogos narrativos de videogame: criação e manutenção do estado


de imersão. Dissertação (Mestrado) – UERJ, Rio de Janeiro, 2012.

BAER, Ralph H, inventor; Sanders Associates, Inc., cessionário. Television gaming and
training apparatus. United States patent US3728480. 1973 Apr. 17.

BAINBRIDGE, William Sims. The Warcraft Civilization: Social Science in a Virtual


World. Cambridge: The MIT Press, 2010.

BARDINI, Thierry. Bootstrapping: Douglas Engelhart, Coevolution, and the Origins of


Personal Computing. Stanford: Stanford University Press, 2000.
170

BARROS, Alexei. Dossiê 3DO. Old!Gamer, n. 17, out. 2013.

BARROS, José D’Assunção. História das Idéias: em torno de um domínio historiográfico.


Locus, v. 13, n. 1, 2007. p. 199-209.

BENFORD, Steve; MAGERKURTH, Carsten; LJUNGSTRAND, Peter. Bridging the


physical and digital in Pervasive Gaming. Communications of the ACM, v. 48, n. 3, p. 54-
57, march 2005.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Obras


escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1.

BETTERMÜLLER, Alberto; ROUNDEAU, José Emílio. Espalha-se a mania do brinquedo


eletrônico. Jornal do Brasil, Revista de Domingo, p. 20, 12 abr. 1981.,.

BILLBOARD. Billboard´s Recommended LPs. Billboard, 18 set. 1982. p. 63.

BINDER, Thomas; LÖWGREN, Jonas; MALBORG, Lone. Introduction – (re-) programming


interaction design. In: BINDER, Thomas et al. (re)Searching the digital Bauhaus. London:
Springer-Verlag, 2009.

BLOOM, Steve. Video Invaders. New York: Arco Publishing, 1982.

BLYTH, Tilly. The legacy of the BBC micro: effecting change in the UK’s cultures of
computing. London: Nesta, 2012.

BLYTHE, Mark et al. Funology: from usability to enjoyment. Dordrecht: Kluwer Academic
Publishers, 2005.

BOLTER, Jay D.; GROMALA, Diane. Windows and mirrors: interaction design, digital arts
and the myth of transparency. Cambridge: The MIT Press, 2003.

BOLTER, Jay D.; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambridge:
The MIT Press, 1998.

BONUMÁ, Tatiana. Wii-fit: malhação do futuro sem sair de casa. Marie Claire, n. 208, jul.
2008.

BORENSTEIN, Nathaniel S. Programming as if people mattered. Princeton: Princeton


University Press, 1991.

BRAND, Stewart. SPACEWAR: Fanatic Life and Symbolic Death Among the Computer
Bums [online]. Rolling Stone, dec 1972. Disponível em: <http://wheels.org/spacewar/
stone/rolling_stone.html>. Acesso em 11/08/2014:

BRENLLA, Roberto. Historia das Interfaces Gráficas de Usario (GUIs). Comunidade


Autônoma da Galícia: agnix.org, 2005 Disponível em: <http://brenlla.blogaliza.org/files/
2008/02/2005_historia_guis.pdf>. Acesso em 03/02/2016:
171

BROOKS, Rodney A. Elephants don’t play chess. Robotics and Autonomous Systems, v. 6,
n.1/2, 1990. p. 3-15.

BROUGÈRE, Gilles. Jogo e educação. Porto Alegre: Artmed, 1999.

BUSCHBACH, Thomas R. Add This Graphics Display to Your System. Byte, v. 0, n. 15, p.
32-39, nov. 1976.

BUSH, Vannevar. As We May Think. The Atlantic Monthly, jul. 1945. Disponível em:
<http://www.theatlantic.com/magazine/archive/1945/07/as-we-may-think/303881/>. Acesso
em: 11/11/2015

BUSHNELL, Nolan. Relationships between Fun and the Computer Business.


Communications of the ACM, v. 39, n. 8, august 1996.

BUTLER, Mark J. Unlocking the groove: rhythm, meter, and musical design in electronic
dance music. Bloomington: Indiana University, 2003. Tese de Doutorado.

CADDEN, Jack. Electronic Numbers Game. Electronics Illustrated, abr. 1960. p. 81-83.

CAMPBELL-KELLY, Martin. From Airline Reservations to Sonic The Hedgehog: a


history of the software industry. Cambridge: The MIT Press, 2003.

CAMPBELL-KELLY, Martin; ASPREY, William; ENSMENGER, Nathan; YOST, Jeffrey


R. Computer: a history of the information machine. Boulder: Westview Press, 3 ed., 2014.

CAMPOS, Alda Surerus. Micro Sistemas a primeira revista brasileira de microcomputadores


(de verdade!). Museu da Computação e Informática – MCI, 2002. Disponível em:
<http://www.mci.org.br/historia/ms/ms.html>. Acesso em 12/11/2015:

CARROLL, John M. Introduction: Toward a Multidisciplinary Science of Human-Computer


Interaction. In: CARROLL, John M. (ed.). HCI Models, Theories, and Frameworks:
Toward a Multidisciplinary Science. San Francisco: Morgan Kaufmann, 2003.

CASTRONOVA, Edward. Synthetic worlds: the business and culture of online games.
Chicago: The University of Chicago Press, 2005.

CERUZZI, Paul. Computing: a concise history. Cambridge: The MIT Press, 2012.

COAN, James S. Advanced BASIC: Applications and Problems. Rochelle Park: Hayden
Book Company, 1977.

COHEN, Scott. Zap: rise and fall of Atari. New York: McGraw-Hill, 1984.

CONSALVO, Mia; DUTTON, Nathan. Game Analysis: Developing a Methodological


Toolkit for the Qualitative Study of Games. Game Studies, v. 6, n. 1, 2006.

COPELAND, B. Jack (ed.). The Essential Turing. Oxford: Oxford University Press, 2004.
172

COSTIKYAN, Greg. I Have No Words & I Must Design: Toward a Critical Vocabulary for
Games. Proceedings of Computer Games and Digital Cultures Conference - DiGRA.
Tampere: Tampere University Press, 2002.

CRAMER, Florian; FULLER, Matthew. Interface. In: FULLER, Matthew. (ed.). Software
Studies: A Lexicon. Cambridge: The MIT Press, 2008.

CROWELL, Fred A.; TRAEGDE, S. Carl. The role of computers in instructional systems:
past and future. ACM '67 - Proceedings of the 1967 22nd national conference. New York:
ACM, 1967.

DE GROOT, Adriaan D. Thought and choice in chess. The Hague: Mouton, 2a ed. 1978.

DONAVAN, Tristan. Replay: the history of video games. East Sussex: Yellow Ant, 2010.

EDDY, Brian R. Classic video games: the Golden Age 1971–1984. Oxford: Shire
Publications, 2012.

EKBIA, H. R. Artificial Dreams: the quest for non-biological intelligence. Cambridge:


Cambridge University Press, 2008.

ENGELBART, Douglas C. Augmenting Human Intellect: A Conceptual Framework. Menlo


Park: Stanford Research Institute, 1962. 139p. Relatório Técnico.

ERIKSON, Thomas; MCDONALD, David W. (ed.). HCI Remixed: Reflections on Works


That Have Influenced the HCI Community. Cambridge: The MIT Press, 2008.

ERNST, Wolfgang. Digital Memory and the Archive. Minneapolis: University of


Minnesota Press, 2013.

FALCÃO, Thiago. Estruturas de agenciamento em mundos virtuais: mundos ficcionais como


vetores para o comportamento social in-game. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 19.,
2010, Rio de Janeiro. Anais do... Rio de Janeiro: PUC, 2010.

FALCÃO, Thiago. Paratextos, programas de ação. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS,


22., 2013, Salvador. Anais do... Salvador: UFBA, 2013.

FELINTO, Erick. Em Busca do Tempo Perdido: O Sequestro da História na Cibercultura e os


Desafios da Teoria da Mídia. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 19., 2010, Rio de
Janeiro. Anais do... Rio de Janeiro: PUC, 2010.

FELINTO, Erick; SANTAELLA, Lucia. O explorador de abismos: Vílem Flusser e o pós-


humanismo. São Paulo: Paulus, 2012.

FERREIRA, Leonardo. Games: um estado da arte com base em uma pesquisa netnográfica.
In: SIMPÓSIO NACIONAL DA ABCIBER, 6.. 2012, Novo Hamburgo. Anais do... Novo
Hamburgo: Feevale, 2012.

FINGER, Anke; GULDIN, Rainer; BERNARDO, Gustavo. Vilém Flusser: An


Introduction. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2011.
173

FOGEL, David B. Blondie24: playing at the edge of AI. San Francisco: Morgan Kauffmann
Publishers, 2002.

FOLHA DE S. PAULO. “Fliperamas” estão proibidos a menores. Folha de São Paulo, São
Paulo, 24 abr 1979. Primeiro Caderno, p. 17.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2008.

FRAGOSO, Suely. Imersão em games: da suspensão de descrença à encenação de crença. In:


ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 22., 2013, Salvador. Anais do... Salvador: UFBA,
2013.

FRAGOSO, Suely et al. Um panorama dos estudos de games na área da Comunicação nos
últimos 15 anos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO,
38., 2015, Rio de Janeiro. Anais do... Rio de Janeiro: UFRJ, 2015.

FREIBERGER, Paul; SWAINE, Michael. Fire in the Valley: The Making of the Personal
Computer. New York: McGraw-Hill Professional, 2a. ed., 2000.

GALLO, Sérgio Nesteriuk. A narrativa do jogo na hipermídia: a interatividade como


possibilidade comunicacional. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2002.

GALLOWAY, Alexander. Gaming: essays on algorithmic culture. Minneapolis: University


of Minnesota Press, 2006.

GALLOWAY, Alexander R. The Interface Effect. Cambridge: Polity Press, 2012.

GAVER, Bill. Designing for Homo Ludens, still. In: BINDER, Thomas et al. (re)Searching
the digital Bauhaus. London: Springer-Verlag, 2009.

GEE, James Paul. What video games have to teach us about learning and literacy. New
York: Palgrave Macmillan, 2007.

GOMES, Renata. The design of narrative as an immersive simulation. Proceedings of


DiGRA 2005 Conference. Vancouver: DiGRA, 2005.

GOLDBERG, Albert L. The Computer and Education. Educational Leadership, v. 23, n. 7,


1966. p. 579-585.

GOTKIN, Kevin. When Computers Were Amateur. IEEE Annals of the History of
Computing, v. 36, n. 2, 2014. p. 4 – 14.

GRAY, Stephen B. The last word. ACS Newsletter, n. 1, ago 1966. p. 6.

GRAY, Stephen B. The early days of personal computers. Creative Computing, v. 10, n. 11,
nov 1984. p. 6 – 14.
174

GRUDIN, Jonathan. Three Faces of Human-Computer Interaction. IEEE Annals of the


History of Computing, v. 27, n. 4, 2005. p. 46-62

GRUDIN, Jonathan. A moving target: the evolution of HCI. In: SEARS, Andrew; JACKO,
Julie A. The Human-Computer Interaction handbook. New York: Lawrence Erlbaum, 2a.
ed., 2007.

GUINS, Raiford. Game After: A Cultural Study of Video Game Afterlife. Cambridge: MIT
Press, 2014. E-book.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em 1926: vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Record,
1999.

HARRISON, Steve et al. The Three Paradigms of HCI. Proceedings of ACM CHI 2007
Conference on Human Factors in Computing Systems. San Jose: ACM, 2007.

HAYLES, N. Katherine. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics,


literature, and informatics. Chicago: University of Chicago Press, 1999.

HEARST, Eliot. Man and machine: chess achievements and chess thinking. In: FREY, Peter
W. (ed). Chess Skill in man and machine. New York: Springer-Verlag, 1977.

HELMERS, Carl. What is BYTE? – (the first) editorial. BYTE Magazine, Peterborough, p.
4-5, set. 1975.

HELMERS, Carl. LIFE Line. Byte, n. 1, set. 1975. p. 72 – 80.

HELMERS, Carl. The Colorful Future of Personal Computing (or What the World Needs Is a
Good Mass Produced High Resolution Color Display...). Byte, v. 2, n. 10, p. 6, 42- 48, nov.
1977.

HEWETT, Thomas T. et al. ACM SIGCHI Curricula for Human-Computer Interaction.


New York: ACM, 1992.

HILTZIK, Michael. Dealers of Lightning: Xerox PARC and the Dawn of the Computer Age.
New York: HarperBusiness, 1999.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 5a ed., 2004.

HUHTAMO, Erkki; PARIKKA, Jussi. Introduction: An Archeology of Media Archeology.


In: HUHTAMO, Erkki; PARIKKA, Jussi. (eds.). Media Archaeology: Approaches,
Applications, and Implications. Oakland: University of California Press, 2011.

JAMA. Space Invaders Obsession. Journal of the American Medical Association, v. 248,
n.10, 1982. p. 1177.

JANOTTI Jr., Jeder Silveira. À procura da batida perfeita: a importância do gênero musical
para a análise da música popular massiva. Eco-Pós, v. 6, n.2, 2003. p. 31-46.

JOHNSON, Steven. Cultura da interface. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.


175

JOHNSON, Steven. Emergência: a dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e


softwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

JOHNSON, Steven. Surpreendente!. Rio de Janeiro: Campus, 2005.

JORNAL DO BRASIL. Fliperama em casa. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 25 jul. 1982A.
Suplemento TV, p. 10.

JORNAL DO BRASIL. Um jogo sofisticado. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 29 ago.


1982B. Suplemento TV, p. 10.

JØRGENSEN, Anker Helms. Context and Driving Forces in the Development of the Early
Computer Game Nimbi. IEEE Annals of the History of Computing, v. 31, n. 3, p. 44-53,
July-Sept. 2009.

JØRGENSEN, Anker Helms. Exploring the History of User Interfaces - The Myth of Xerox
PARC and other Oddities. Proceedings of the Sixth Danish HCI Research Symposium.
Aarhus: University of Aarhus, 2006.

JØRGENSEN, Anker Helms. Marrying HCI/Usability and computer games: a preliminary


look. ACM International Conference Proceeding Series; v. 82 - Proceedings of the Third
Nordic conference on Human-computer Interaction. Tampere: Association for Computing
Machinery (ACM), 2004.

JUUL, Jesper. Half-real: Video games between real rules and fictional worlds. Cambridge:
The MIT Press, 2005.

KANG, Minsoo. Sublime Dreams of Living Machines: The Automaton in the European
Imagination. Cambridge: Harvard University Press, 2011.

KAWECKI, Ricardo. “Reflexômetro”: o joguinho. Nova Eletrônica, n. 9, p. 26- 31, nov.


1977.

KAY, Alan; GOLDBERG, Adele. Personal Dynamic Media. Computer, v. 10, n. 3, p. 31-41,
1977.

KRÄMER, Sybille. The Cultural Techniques of Time Axis Manipulation: On Friedrich


Kittler's Conception of Media. Theory Culture Society, v. 23, n. 7-8, 2006. p. 93-109.

KEILBACH, Judith; STAUFF, Markus. When Old Media Never Stopped Being New:
Television’s History as an Ongoing Experiment. In: TEURLINGS, Jan; DE VALCK,
Marijke. After the Break: Television Theory Today. Amsterdam: Amsterdam University
Press, 2013.

KERCKHOVE, Derrick de. A pele da cultura. Lisboa: Relógio d'Água: 1997.

KIRKPATRICK, Graeme. Meritums, Spectrums and narrative memories of ‘pre-virtual’


computing in Cold War Europe. The Sociological Review, v. 55, n. 2, p. 227-250, 2007.
176

KIRKPATRICK, Graeme. Making games normal: computer gaming discourse in the 1980s.
New Media Society, OnlineFirst version, 18 november 2014.

KITTLER, Friedrich. There is no software. In: JOHNSTON, John (ed.). Literature, Media,
Information Systems. New York: Routledge, 1997.

KITTLER, Friedrich. Gramophone, Film, Typewriter. Stanford: University of California


Press, 1999.

KITTLER, Friedrich. Optical Media: Berlin Lectures 1999. Cambridge: Polity, 2010.

LANCELOTTI, Silvio. Os computadores caseiros ameaçam o poderio da TV. Folha de São


Paulo, São Paulo, 1 fev. 1983. Caderno Ilustrada, p. 35.

LATOUR, Luis. Constructing tomorrow on the kitchen table: cultural imperatives in


computer hobbyist publications (1975-1980). Montreal: Concordia University, 2003.
Dissertação de Mestrado.

LEKKAS, Theodoros. Legal Pirates Ltd: Home Computing Cultures in Early 1980s Greece.
In: ALBERTS, Gerard; OLDENZIEL, Ruth (Eds.). Hacking Europe: From Computer
Cultures to Demoscenes. London: Springer-Verlag, 2014.

LEVY, David. The Early History of Computer Chess. In: LEVY, David; NEWBORN,
Monroe. All about chess and computers. Berlin: Springer-Verlag, 1982.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: 34, 1999.

LEVY, Steven. Hackers: Heroes of the Computer Revolution. 25th Anniversary Edition.
Sebastopol: O'Reilly Media, 2010.

LEIBNIZ, G. W. New Essays on Human Understanding. Reino Unido: 2006.

LICKLIDER, J. C. R. Man-computer symbiosis. IRE Transactions on Human Factors in


Electronics, n. 1, p. 4-11, mar. 1960.

LOGUIDICE, Bill; BARTON, Matt. Vintage games: an insider look at the history of Grand
Theft Auto, Super Mario, and the most influential games of all time. Burlington: Focal Press,
2009.

LORENA FILHO, Dimas Tadeu de. A linguagem do espaço: Padrões representativos em


plataformas de realidade virtual. Dissertação (Mestrado) - UFJF, Juiz de Fora, 2011.

LOWOOD, Henry. Videogames in Computer Space: The Complex History of Pong. IEEE
Annals of the History of Computing, v. 31, n. 3, July-Sept. 2009.

LYELL, Charles. Principles of Geology. London: John Murray, 1830. v. 1

MAIA, Alessandra. A materialidade do jogar no Kinect: o terror ganha outras proporções. In:
ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 22., 2013, Salvador. Anais do... Salvador: UFBA,
2013.
177

MALONE, Thomas W. Heuristics for designing enjoyable user interfaces: lessons from
computer games. Proceedings of the 1982 Conference on Human Factors in Computer
Systems, Gaithersburg: Association for Computing Machinery - ACM, 1982.

MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge: The MIT Press, 2001.

MANOVICH, Lev. Software Takes Command. New York: Bloomsbury Academic, 2013.

MARTINO, Luiz C. Contribuições para o estudo dos meios de comunicação. Famecos, n. 13,
p. 103-114, 2000.

MATTELART, Armand; MATTELART, Michele. História das teorias da comunicação. São


Paulo: Loyola, 2001.

MATTHEWS, Will. Ahead of its time:a 3DO retrospective. Retro Gamer, n. 122, nov. 2013.

MÄYRÄ, Franz. An Introduction to Game Studies:games in culture. London: SAGE, 2008.

MCCARTHY, John. AI as sport [online]. 1997A. Disponível em: <http://www-


formal.stanford.edu/jmc/newborn/newborn.html>. Acesso em: 23/03/2012:

MCCARTHY, John. Making Computer Chess Scientific [online]. 1997B. Acesso em


23/03/2012: http://www-formal.stanford.edu/jmc/chess.html

MCLEOD, Ken. Music. In: BOULD, Mark; BUTLER, Andrew M.; ROBERTS, Adam;
VINT, Sherryl (ed.). The Routledge Companion to Science Fiction. London: Routledge,
2009.

MCQUAIL, Denis. Mass Communication Theory: An Introduction. London: SAGE, 1983.

MELLO, Vinícius; PERANI, Letícia. Gameplay x Playability: defining concepts, tracing


differences. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE JOGOS E ENTRETENIMENTO DIGITAL –
SBGAMES, 11., 2012, Brasília. Anais... Brasília: UnB, 2012.

MESSIAS, José. Notas sobre a pirataria de games no Brasil: inclusão (digital) dos pobres e
games como fomentadores de resistência. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 22.,
2013, Salvador. Anais do... Salvador: UFBA, 2013.

MICRO SISTEMAS. Jogos em computador, um assunto muito sério. Micro Sistemas, Rio de
Janeiro, ano II, n. 16, janeiro de 1983. p. 72.

MONNENS, Devin. “I commenced an examination of a game called 'tit-tat-to'”: Charles


Babbage and the “First” Computer Game. Proceedings of DiGRA 2013: DeFragging Game
Studies. Atlanta: DiGRA, 2013.

MONTFORT, Nick. Twisty Little Passages: An Approach to Interactive Fiction. Cambridge:


The MIT Press, 2005.
178

MONTFORT, Nick; BOGOST, Ian. Racing the Beam: the Atari Vídeo Computer System.
Cambridge: The MIT Press, 2009.

MURRAY, Janet H. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo:


Unesp/Itaú Cultural, 2003.

MUSSA, Ivan; PERANI, Letícia. Exploração de ambientes e sensação de tridimensionalidade


nos jogos eletrônicos. In: SIMPÓSIO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
PESQUISADORES EM CIBERCULTURA – ABCIBER, 7., 2013, Curitiba. Anais do...
Curitiba: UTP, 2013.

MYERS, Brad A. A Brief History of Human Computer Interaction Technology. ACM


interactions, v. 5, n. 2, p. 44-54, March 1998.

NEWBORN, Monroe. Computer Chess. New York: Academic Press, 1975.

NEWMAN, James. Videogame. London: Routledge, 2004.

NICKERSON, Raymond S.; LANDAUER, Thomas K. Human-Computer Interaction:


Background and Issues. In: HELANDER, Martin G. et al. (eds.). Handbook of Human-
Computer Interaction. Amsterdam: Elsevier, 2a. ed., 1997.

NORONHA, Paulo Henrique. Homem x Máquina: quem será o Grande Mestre. Micro
Sistemas, n. 1, out. 1981. p. 6-7, 32.

OINAS-KUKKONEN, Henry. From Bush to Engelbart: “Slowly, Some Little Bells Were
Ringing”. IEEE Annals of the History of Computing, v. 29, n. 2, p. 31-39, Apr-June 2007.

OLIVEIRA, Thaiane Moreira de. Imersão em jogos pervasivos. Rumores, v. 7, n. 14, 2013.
p. 315-334.

PARIKKA, Jussi. A Geology of Media. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2015.

PERANI, Letícia; BRESSAN, Renato Teixeira. Wii will rock you: Nintendo Wii e as relações
entre interatividade e corpo nos videogames. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE JOGOS E
ENTRETENIMENTO DIGITAL – SBGAMES, 6., 2007, São Leopolldo. Anais do... São
Leopoldo: Unisinos, 2007.

PERANI, Letícia. Game studies Brasil: um panorama dos estudos brasileiros sobre jogos
eletrônicos. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL SOBRE A ESCOLA LATINO-
AMERICANA DE COMUNICAÇÃO – CELACOM, 12., 2008, São Bernardo. Anais do...
São Bernardo do Campo: Umesp, 2008.

PERANI, Letícia. Sobre cartas para um território singular: uma exploração dos mapeamentos
da Cibercultura. In: ENCONTRO DA COMPÓS, 19., 2010, Rio de Janeiro. Anais do... Rio
de Janeiro: PUC-Rio, 2010.

PERANI, Letícia. Jogando por um ideal: breves notas sobre a influência dos games na história
da interação humano-computador. In: Encontro Anual da Compós, 21., 2012, Juiz de Fora.
Anais do... Juiz de Fora: UFJF, 2012.
179

PERANI, Letícia. Estética, técnica e jogo: relações entre o lúdico e a arte fotográfica. In:
ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 22., 2013, Salvador. Anais do... Salvador: UFBA,
2013.

PERANI, Letícia; MAIA, Alessandra. Análises de affordances em jogos eletrônicos: um


estudo de caso do game Just Dance 3 para Nintendo Wii e Xbox 360/Kinect. In: Simpósio
Nacional da ABCiber, 6., 2012, Novo Hamburgo. Anais do... Novo Hamburgo: Feevale,
2012.

PEREIRA, Vinícius Andrade. G.A.M.E.S. 2.0 - Gêneros e Gramáticas de Arranjos e


Ambientes Midiáticos Mediadores de Experiências de Entretenimento, Sociabilidades e
Sensorialidades. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 17., 2008, São Paulo. Anais do...
São Paulo: Unip, 2008.

PETERS, John Durham. Introduction: Friedrich Kittler’s Light Shows. In: KITTLER,
Friedrich. Optical Media: Berlin Lectures 1999. Cambridge: Polity, 2010.

PIMENTA, Francisco J. Paoliello. Hipermídia e ativismo global. Rio de Janeiro: Sotese,


2006.

PIMENTA, Francisco J. Paoliello; PERANI, Letícia. Imersão digital e campanhas políticas:


uma estratégia semiótica. Lumina, v. 9, n. 1/2, 2006. p. 11-19.

PRIMO, Alex. Interação mediada por computador. Porto Alegre: Sulina, 2007.

RASSKIN-GUTMAN, Diego. Chess metaphors: Artificial Intelligence and the human mind.
Cambridge: The MIT Press, 2009.

REBS, Rebeca Recuero. Bens virtuais em social games. In: ENCONTRO ANUAL DA
COMPÓS, 20., 2011, Porto Alegre. Anais do... Porto Alegre: UFRGS, 2011.

REGIS, Fátima. Tecnologias de comunicação, entretenimento e competências cognitivas na


Cibercultura. Revista Famecos, n. 37, 2008. p. 32 – 37.

REGIS, Fátima. Práticas de Comunicação e desenvolvimento cognitivo na Cibercultura. In:


ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 19., 2010, Rio de Janeiro. Anais do... Rio de Janeiro:
PUC-Rio, 2010.

REGIS, Fátima. Nós, ciborgues: tecnologias de informação e subjetividade homem-máquina.


Curitiba: Champagnat, 2012.

REGIS, Fátima; PERANI, Letícia. Games, tecnologias de comunicação e capacitação


cognitiva na cibercultura. In: SILVA, Augusto Soares; MARTINS, José Cândido;
MAGALHÃES, Luísa; GONÇALVES, Miguel. (Org.). Comunicação, Cognição, Media. 1.
ed. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia - Universidade Católica Portuguesa, 2010.
v. 1, p. 491-502.
180

REGIS, Fátima; PERANI, Letícia. Comunicação e entretenimento na Cibercultura:


repensando as articulações entre lúdico, cognição e tecnologia. E-Compós, v.13, n.2,
maio/ago. 2010.

REHAK, Bob. Retrogames. In: WOLF, Mark J. P. (ed.). The Video Game Explosion: a
history from Pong to Playstation and beyond. Westport: Greenwood Press, 2008A.

REHAK, Bob. The Rise of the Home Computer. In: WOLF, Mark J.P. The video game
explosion: a history of Pong to Playstation and beyond. Westport: Greenwood Press, 2008B.

REPCHECK, Jack. The Man Who Found Time: James Hutton and the discovery of the
Earth’s antiquity. New York: Basic Books, 2003.

REUTERS. FACTBOX - A look at the $66 billion video-games industry. Disponível em:
<http://in.reuters.com/article/2013/06/10/gameshow-e-idINDEE9590DW20130610>. Acesso
em 18/07/2013.

ROBERTS, H. Edward; YATES, William. ALTAIR 8800: The Most Powerful Minicomputer
project ever presented - can be built for under $400. Popular Electronics, p. 33-38, jan 1975.

ROMANO, Renee C. Not Dead Yet: My Identity Crisis as a Historian of the Recent Past. In:
POTTER, Claire Bond; ROMANO, Renee C (ed.). Doing Recent History: On Privacy,
Copyright, Video Games, Institutional Review Boards, Activist Scholarship, and History That
Talks Back. Athens: The University of Georgia Press, 2012.

ROMANO, Renee C.; POTTER, Claire Bond. Just over Our Shoulder: The Pleasures and
Perils of Writing the Recent Past. In: POTTER, Claire Bond; ROMANO, Renee C (ed.).
Doing Recent History: On Privacy, Copyright, Video Games, Institutional Review Boards,
Activist Scholarship, and History That Talks Back. Athens: The University of Georgia Press,
2012.

RYAN, Marie-Lauren. Narrative as Virtual Reality: Immersion and Interactivity in


Literature and Electronic Media. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2001.

RYAN, Marie-Lauren. Avatars of story. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2006.

SÁ, Simone Pereira de. Música e Tecnologia: reconfigurando a discotecagem. In:


ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 12., 2003, Recife. Anais do... Recife: Universidade
Federal de Pernambuco, 2003.

SAARIKOSKI, Petri; SUOMINEN, Jaakko. Computer Hobbyists and the Gaming Industry in
Finland. IEEE Annals of the History of Computing, v. 31, n. 3, p. 20-33, 2009.

SANTAELLA, Lucia. Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do pós-humano.


Famecos, n. 22, dezembro 2003. p. 23-32.

SHANNON, Claude E. Programming a computer for playing chess. Philosophical Magazine,


v. 41, n. 314, 1950.

SHEFF, David. Game Over: Press Start to Continue. New York: Random Press, 1999.
181

SHENK, David. The immortal game: a history of chess. New York: Anchor Books, 2007.

SHNEIDERMAN, Ben. Direct manipulation: a step beyond programming languages. IEEE


Computer, v. 16, n. 8, Aug 1983.

SOARES, Letícia Perani. Interfaces gráficas e os seus elementos lúdicos: aproximações


para um estudo comunicacional. Rio de Janeiro: UERJ, 2008. Dissertação de Mestrado.

SOARES, Thiago. O Pixel da Voz. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 22., 2013,
Salvador. Anais do... Salvador: UFBA, 2013.

SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede.


Petrópolis: Vozes, 2001.

STACHNIAK, Zbigniew. Red Clones: The Soviet Computer Hobby Movement of the 1980s.
IEEE Annals of the History of Computing, v. 37, n. 1, p. 12-23, 2015.

STEBBINS, Robert A. Amateurs, Professionals, and Serious Leisure. Montreal: McGill-


Queen´s University Press, 1992.

STERNE, Jonathan. Out with the Trash: On the Future of New Media. In: ACLAND, Charles
R. (ed.). Residual Media. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007.

SUOMINEN, Jaakko. The Past as the Future? Nostalgia and Retrogaming in Digital Culture.
Fiberculture Journal, n. 11, 2008.

SUTHERLAND, Ivan Edward. Sketchpad: a man-machine graphical communication system.


Cambridge: Cambridge University, 2003. 149p. Relatório Técnico.

SWALWELL, Melanie. Hobbyist Computing in 1980s New Zealand: Games and the popular
reception of microcomputers. In: TOLAND, Janet (ed.). Return to Tomorrow: 50 years of
computing in New Zealand. Wellington: New Zeland Computer Society, 2010.

SWALWELL, Melanie. The Early Micro User: Games writing, hardware hacking, and the
will to mod. Proceedings of DiGRA Nordic 2012 Conference: Local and Global – Games in
Culture and Society. Tampere: DiGRA, 2012.

TAPARELLI, Carlos Henrique Antunes. A evolução tecnológica do rádio. Revista USP, n.


56, 2002.

TEIXEIRA, Luís Filipe B. Criticismo ludológico e Novos Média: introdução. In: Simpósio
Brasileiro de Jogos para Computador e Entretenimento Digital – SBGames, 6., 2007, São
Leopoldo. Anais do... São Leopoldo: Unisinos, 2007.

THICKNESS, Phillip. The Speaking Figure and the Automaton Chess-player, Exposed
and Detected. London: John Stockdale, 1784.

THIMBLEBY, Harold. Foreword. In: GREENBERG, Saul. The Computer User as


Toolsmith. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
182

TURING, Alan. Digital computers applied to games [online]. Disponível em:


<http://www.turingarchive.org/viewer/?id=461&title=1>. Acesso em: 10/08/2010.

TURING, Alan. Computing machinery and intelligence. In: BODEN, Margaret. The
Philosophy of Artificial Intelligence. New York/Oxford: Oxford University Press, 1990.

TURING, Alan. Lecture on the Automatic Computing Engine. In: COPELAND, B. Jack
(ed.). The Essential Turing. Oxford: Oxford University Press, 2004A.

TURING, Alan. Intelligent Machinery. In: COPELAND, B. Jack (ed.). The Essential
Turing. Oxford: Oxford University Press, 2004B.

TURKLE, Sherry. Life on the screen: identity in the age of Internet. New York: Touchstone,
1997.

TURKLE, Sherry. The second self: computers and the human spirit (20th anniversary
edition). Cambridge: The MIT Press, 2005.

VERAART, Frank. Losing Meanings: Computer Games in Dutch Domestic Use, 1975–2000.
IEEE Annals of the History of Computing, v. 33, n. 1, 2011. p. 52 – 65.

VENTURELLI, Suzete. Arte: espaço_tempo_imagem. Brasília: Universidade de Brasília,


2004.

WAGNER, Robert W. Machines, Media and Meaning. Audio-Visual Media, v. 1, n. 2, 1967.


p. 11-15.

WALDROP, M. Mitchell. The Dream Machine: J.C.R. Licklider and the revolution that
made computing personal. New York: Viking Penguin, 2001.

WARREN, Jim. Personal and hobby computing: an overview. Computer, v. 10, n. 3, p. 10-
22, 1977.

WATSON, Ian. The Universal Machine: From the Dawn of Computing to Digital
Consciousness. Berlin: Springer-Verlag, 2012.

WEISS, Brett. Classic home video games, 1985-1988: a complete reference guide. Jefferson:
McFarland & Company, 2009.

WENZEL, Camila; LORENA FILHO, Dimas Tadeu. Os jogos eletrônicos como plataforma
para o ciberativismo: Estudo de caso do McDonald´s Videogame. CASA – Cadernos de
Semiótica Aplicada, v. 4, n. 2, p. 1-9, 2006.

WILLIAMS, Raymond. Los medios de comunicación social. Barcelona: Península, 1978.

WIENER, Norbert. Cybernetics: or control and communication in the animal and the
machine. Cambridge: The MIT Press, 1965.
183

WOLF, Mark. J. P. Arcade games of the 1970s. In: WOLF, Mark. J. P. (ed.). The Video
Game Explosion: a history from Pong to Playstation. Westport: Greenwood, 2008B.

WOLF, Mark. J. P. The early days (before 1985). In: WOLF, Mark. J. P. (ed.). The Video
Game Explosion: a history from Pong to Playstation. Westport: Greenwood, 2008A.

WOZNIAK, Steve. And Then There Was Apple. Call-A.P.P.L.E. Magazine, Seattle, Oct.
1986, p. 22-27.

YOOD, Charlie. The History of Computing at the Consumption Junction. IEEE Annals of
the History of Computing, v. 27, n. 1, 2005.

ZIELINSKI, Siegfried. Arqueologia da Mídia: em busca do tempo remoto das técnicas do


ver e do ouvir. São Paulo: Annablume, 2006.
184

ANEXO A – Crônica “Os computadores caseiros ameaçam o poderio da TV”, de Silvio


Lancellotti

Fonte: Folha de São Paulo, 1 fev 1983. Caderno Ilustrada, p. 35.


185

ANEXO B – Matéria “Fliperama em casa”

Fonte: Jornal do Brasil, 15 jul 1982. Suplemento de TV, p.10.


186

ANEXO C – Nota “Um jogo sofisticado”

Fonte: Jornal do Brasil, 29 ago 1982. Suplemento de TV, p.10.


187

ANEXO D – Capa do primeiro número da revista Byte

Fonte: Revista Byte, v. 0, n. 1, set 1975.

Você também pode gostar