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RESUMO A solução de controvérsias na saúde vem se dando pelo Poder Judiciário, gerando
o fenômeno da judicialização. Essa forma de dirimir conflitos não atende ao SUS nem ao
próprio órgão julgador. Este artigo empreende uma discussão sobre o instituto da Mediação,
para contemplá-la como uma forma de exercício social de acesso à justiça. A Mediação é
pouco utilizada no País. É ferramenta para a solução de controvérsias, a fim de evitar a ne-
cessidade de mobilização do Poder Judiciário. Trata-se de um instituto célere, de baixo custo
e que mantém as garantias de acessibilidade à justiça como direito social. A Mediação pode
amenizar as controvérsias que geram a judicialização.
ABSTRACT The settlement of controversies in health has been going by the Judiciary, generating
the Judicialization phenomenon. This way of settling conflicts does not meet the SUS neither the
own judging body. This article undertakes a discussion about the Mediation Institute, to contem-
plate it as a form of fiscal year of access to justice. Mediation is not widely used in the country.
It is a tool for the resolution of disputes settlement, in order to avoid the necessity of mobiliza-
tion of the Judiciary. This is a quick institute, low cost, and which maintains the guarantees of
accessibility to justice as a social right. Mediation can alleviate the controversies that generate
legalization.
2 Universidadde Cantabria –
Cantábria, Espanha.
eduardo.vazquez@unicam.es
SAÚDE DEBATE | rio de Janeiro, v. 39, n. 105, p.506-513, ABR-JUN 2015 DOI: 10.1590/0103-110420151050002017
A Mediação Sanitária como alternativa viável à judicialização das políticas de saúde no Brasil 507
saúde, vem mostrando que os sistemas po- pátrio, bem antes de 1988. Caracterizam-se
lítico, jurídico e médico-sanitário chegaram pela indefinição da titularidade e pela indivi-
ao esgotamento e que o Poder Judiciário não sibilidade do direito perseguido.
responde mais, com a eficácia esperada, à O fato é que os conflitos envolvendo in-
pacificação dessas controvérsias. teresses difusos têm chegado ao Judiciário
E é sobre esse conflito, que se conven- e esbarrado em julgadores que não contam
cionou chamar de ‘judicialização das políti- com uma tradição legal, porque o direito
cas de saúde’, que este trabalho se debruça, difuso é um direito novo. Tampouco contam
objetivando construir caminhos de enten- com farta bibliografia, pois ainda há pouca
dimento e enfrentamento do problema e produção intelectual sobre o tema, e, muito
apresentar uma alternativa viável ao acesso menos, com precedentes de decisões dos
à justiça, para pacificar os conflitos na saúde, tribunais superiores que representem um
senão por intermédio dos tribunais. pensamento jurídico novo, fazendo com que
Cappelletti e Garth (1972) e a figura das as decisões aconteçam em uma seara absolu-
ondas da garantia do acesso à justiça refor- tamente recente e não consensual.
çam que a assistência judiciária aos mais Surgem as class action, cuja decisão teria
carentes foi a primeira onda dessa garantia. efeito sobre todos os indivíduos afetados,
Segundo os autores, em verdade, mesmo aqueles que não tivessem participa-
do do processo judicial. Na legislação brasi-
os primeiros esforços importantes para incre- leira, é a Ação Civil Pública o instrumento
mentar o acesso à justiça nos países ociden- processual cabível para ajuizar ações junto
tais concentram-se, mais adequadamente, em ao Poder Judiciário para demandar por di-
proporcionar serviços jurídicos aos pobres. reitos difusos. Mas o Ministério Público tem
(CAPPELLETTI; GARTH, 1972, P. 24). outros instrumentos extrajudiciais para a
proteção dos direitos difusos, como o Termo
Essa forma de propiciar o acesso à justiça de Ajustamento de Conduta. Igualmente, as
desenvolveu-se em muitos países. No Brasil, agências reguladoras têm a função de regular
a assistência judiciária gratuita é prestada um mercado em que sujeitos indefinidos de
por inúmeras entidades, mas, especialmente, direito podem sofrer danos em seus direitos
pela Defensoria Pública. difusos e coletivos.
Único país do mundo a dar tratamento A saúde pública é um direito difuso, no
constitucional para a garantia do acesso das entanto, não se tem notícia de Ações Civis
pessoas pobres à justiça, o Brasil ainda padece Públicas ou mesmo ações coletivas que
de organização, de forma definitiva e concre- cheguem aos tribunais para tratar de modo
ta, da Defensoria Pública, em alguns estados generalizado de temas que afetem a saúde
brasileiros, além de manter um crônico déficit das pessoas, indistintamente.
de, aproximadamente, 10.578 defensores A terceira e última onda de acesso à re-
públicos em todo o País, o que acarreta, em presentação legal – e a mais ampla concep-
consequência, um impeditivo acesso à justiça ção de acesso à justiça – é um novo enfoque
daqueles que dependem da assistência judi- que deve ser levado a efeito fora do circuito
ciária gratuita prestada pelo Estado (IPEA, 2013). jurisdicional. Isso porque, assim como sur-
A segunda onda é a representação dos di- giram direitos materiais de terceira geração,
reitos difusos. Os chamados direitos difusos como defende Bobbio (2004), também surgi-
estão dentro da ideia de novos direitos, que, ram direitos como a participação na decisão
aliás, não são tão novos assim; a maioria deles do conflito e no acesso à justiça, que se
nasceu na Revolução Francesa, e outros tantos constituem em direitos processuais de ter-
se incorporaram no ordenamento jurídico ceira geração (CAPPELLETTI; GARTH, 1996). Ocorre
que, na decisão judicial, as partes não parti- pela Constituição. Para Maciel e Koerner
cipam da decisão do conflito, mas apenas se (2002), a expressão judicialização da políti-
submetem, inertes, à decisão do terceiro, o ca recebe um sentido de processo social e
juiz da causa. político quando é usada para se referir à
Por vezes, a jurisdição não é capaz de dar “expansão do âmbito qualitativo de atuação
solução adequada a certos tipos de conflito do sistema judicial, do caráter dos procedi-
por desconhecer o campo do conhecimento mentos de que dispõem e, ainda, aumento
do tema posto a seu julgamento e por, muitas do número de processos no Tribunal”
vezes, exercer a função jurisdicional de apli- (MACIEL; KOERNER, 2002, P. 115).
cação da lei ao caso concreto, afirmando-se Dados da Consultoria Jurídica do
na função substitutiva do sistema político e Ministério da Saúde (ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO,
“destecnificando” a aplicação da lei; por con- 2012) apontam que há um crescente número
sequência, levando à judicialização da vida de ações judiciais em matéria de saúde, nos
administrativa e econômica (FARIA, 2004, P. 103). últimos anos, sendo que, apenas em 2011,
Assim acontece com a saúde. Por des- o total de novas ações atingiu o número de
conhecer as políticas públicas formadoras 12.811, apenas em nível federal (ADVOCACIA
do SUS, a jurisdição não tem solucionado o GERAL DA UNIÃO, 2012). Isso equivale a um
acesso a bens e serviços de saúde. Ao contrá- aumento de 15% se comparado ao número de
rio, tem criado distorções no sistema e dado processos iniciados no ano anterior.
ao conceito de acesso à justiça um sentido Para termos uma ideia do que representa
reverso, em que uns poucos privilegiados, esse elevado número de ações judiciais, os
que podem ter acesso aos tribunais, obtêm gastos, em 2012, somente em medicamen-
uma sentença. tos, sem levar em conta as despesas com a
Vários estudiosos do tema têm-se colo- efetiva aquisição dos mesmos, o transporte
cado de modo contundente sobre a situação e a efetiva entrega, seguro e quando não a
das reiteradas decisões judiciais no âmbito importação, chegaram a R$ 243.954.000,00
da saúde, que infringem ou distorcem princí- (ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO, 2012).
pios do SUS, sobretudo o da equidade. (CHIEFFI; São aquisições não programadas, não per-
BARATA, 2009; BORGES; UGÁ, 2010; SARTÓRIO; BORDIN, 2010; tencentes ao normal planejamento do setor
MACEDO, 2011). da saúde, que podem resultar em gastos ex-
Assim, tem-se que o exercício de um traordinários com processos administrati-
direito fundamental pelos cidadãos pode vos de dispensas de licitação. Tais situações
acarretar sérios prejuízos políticos, com a acabam por concorrer com o normal abaste-
exacerbação da atuação do Poder Judiciário cimento do SUS, acarretando uma irregular
para além de seus limites funcionais, a gerar divisão de esforços materiais, humanos e
impactos significativos na implementação e orçamentários para atender à judicialização.
execução da política pública de saúde. O mesmo se passa no Poder Judiciário. O
A judicialização da política é uma ex- novo afluxo de processos na área de direitos
pressão equivalente à ‘politização da sociais, entre eles, os da saúde, fez com que
justiça’, e pode ser traduzida pela expansão a jurisdição tivesse um aporte maior no já
do Poder Judiciário no processo decisório. sobrecarregado sistema judicial. Segundo
Werneck Vianna (1999) utiliza o termo para Serbena et al. (2013), em 2010, ingressaram
descrever as transformações trazidas pela no cômputo geral 24,2 milhões de novos
Constituição Federal de 1988, no Brasil, que processos na Justiça, somando-se aos 59, 2
alargam as possibilidades de ações junto ao milhões de processos pendentes de sentença.
Poder Judiciário, para que este defenda os Ademais, não há pesquisas específicas sobre
direitos, individuais e sociais, resguardados o custo unitário de um processo judicial em
matéria de saúde, mas o Instituto de Pesquisa mais partes em litígio tentam voluntariamen-
Econômica Aplicada (Ipea), em um trabalho te alcançar por si mesmas um acordo sobre
pioneiro sobre o custo de um processo judi- a resolução de um litígio com a ajuda de um
cial de execução fiscal, pôde dar uma ideia do mediador. (UNIÃO EUROPEIA, 2008).
custo individual de uma ação judicial para o
Estado. Segundo o estudo (IPEA, 2013), o valor Para Vazquez de Castro (2010), essa
individual de um processo de execução fiscal maneira de resolver conflitos pela autocom-
na Justiça Federal, em primeiro grau, é de R$ posição – em que as partes contam com um
7.063,74, o que poderia ser usado como parâ- terceiro neutro, mas que pode desempenhar
metro para o custo de um processo judicial na um papel ativo no processo de adoção de
área da saúde, no âmbito do Poder Judiciário. acordos no sentido de superar o litígio – é a
Como se vê, esse fenômeno, que se con- Mediação.
vencionou chamar de judicialização da saúde, A Mediação, como método pacífico de
não é razoável para o sistema sanitário nem gestão de conflitos, pretende evitar a abertu-
tampouco para o sistema da justiça. Além ra de processos judiciais de caráter conten-
disso, o controle judicial das políticas públicas cioso e pôr fim àqueles iniciados ou reduzir
prejudica o pleno exercício da cidadania, pois o seu alcance.
torna o indivíduo dependente do Estado, e o Cebola (2013, P. 19) dispõe que:
Poder Judiciário seu fornecedor de serviços.
No Brasil, os litígios em matéria de saúde O direito de acesso ao Direito, pilar fundamen-
que possuem mais evidência são aqueles em tal do Estado de Direito, vem sofrendo profun-
que o acesso é o objeto material da demanda. das transformações. Deixou de ser um direito
De um lado está o cidadão enfermo, deman- de acesso ao Direito através do direito de aces-
dando ações ou insumos de saúde contra o so aos tribunais para passar a ser um direito de
Estado, provedor de serviços públicos de acesso ao Direito, de preferência sem contato
saúde, que, por razões de ausência do serviço ou sem passagem pelos tribunais.
ou da não previsibilidade deste nas políticas
públicas, deixa de oferecê-los. Trata-se de um Reconhecido o direito de acesso à justiça
‘enfrentamento social’ que ganhou propor- como um direito a recorrer a todos os meios
ções epidêmicas. Os mecanismos clássicos de legítimos, legais e válidos para solucionar
resolução dos conflitos acabaram por produ- conflitos, sejam judiciais ou extrajudiciais,
zir externalidades negativas para o SUS, já resta analisar se tal orientação contraria a
debilitado por razões diversas. Carta de 1988.
Mas, retomando as ondas de Cappelletti Ante à previsão do artigo 5º, inciso XXXV:
e Garth (1972), pergunta-se: e o que a terceira “a lei não excluirá da apreciação do Poder
onda tem a ver com a judicialização da saúde Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL,
e o movimento universal de acesso à justiça? 2012, P. 17), que implica o poder de acudir-se de
Os autores reconhecem que a terceira um tribunal para a resolução de um confli-
onda deve estar fora do circuito jurisdicional to jurídico. É oportuno questionar se, nesse
e que uma das diversas formas para a con- contexto, há admissibilidade dos meios
cretização da justiça, pela autocomposição, é extrajudiciais.
a Mediação. A questão ganha maior importân-
O conceito de Mediação, segundo a Diretiva cia frente à Resolução 127 do Conselho
2008/52, da Comunidade Europeia, é: Nacional de Justiça (CNJ), conhecida como
Política Judiciária Nacional, que, entre
um procedimento estruturado, seja qual for outras medidas, prevê o movimento pela
seu nome ou denominação, em que duas ou conciliação.
Assim, é preciso que se descreva o que vem Para tanto, é preciso incutir uma nova
a ser a Mediação Sanitária. prática, uma nova cultura no âmbito do SUS.
A Mediação Sanitária é um modelo alternati- Uma vigilância permanente dos conflitos sa-
vo de resolução de conflitos na área da saúde. As nitários, que pode ocorrer de muitos modos.
relações em saúde transcendem a ótica bilateral A construção de núcleos de Mediação
do médico com o paciente, para envolver muitos Sanitária, no âmbito das Secretarias de
outros atores presentes em um sistema de saúde, Saúde, em todos os níveis, para operar a
advindo, daí, conflitos de toda a ordem, inter- Mediação interna ao sistema e externa com
nos e externos ao sistema, criando condições seus usuários, há de ser um novo paradigma
para a judicialização. Conflitos internos (como a substituir a litigância e a judicialização.
os assistenciais, organizativos e conflitos entre Aos órgãos do Poder Judiciário, que têm
profissionais) geram desgastes e judicialização, se esforçado enormemente para diminuir a
como também fazem os conflitos gerados fora litigância na saúde, que implementem, igual-
do sistema, mas com reflexos diretos dentro mente, a conciliação prévia, como já previsto
dele, assim como os conflitos sociais e conflitos no Código de Processo Civil.
legais igualmente geram a judicialização. É preciso, ainda, questionar a formação
do bacharel em direito que se submete ao
concurso de juiz; o membro do Ministério
Conclusão Público ou o Defensor Público sobre o seu
modo tradicional, litigioso e adversarial de
Assim, para além da resolução dos conflitos operar o direito.
pela Mediação Sanitária, é possível, também, É necessária uma nova postura da socie-
antever os conflitos, precavendo-se de seus dade brasileira para uma nova necessidade
efeitos por intermédio da construção e per- social, especialmente na saúde, de resol-
manente atenção ao mapa dos conflitos no ver conflitos e afastar, de vez, esse abismal
âmbito do SUS, fazendo com que o sistema modelo tradicional de julgar por meio dos
possa operar antecipando-se aos conflitos clássicos tribunais e juízes. É preciso adotar
futuros, solucionando-os. a Mediação nos litígios da saúde. s
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