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II
A última lembrança da cegueira
III
Ilhado no deserto
Solitário.
Mesmo em meio a bilhões de outros seres humanos.
Triste. Mesmo em meio a milhões de sorrisos.
Engraçado...
Resolvi atuar como palhaço, mas agora, atuo diante
de outro palco.
Um assassino…
Agora ou a alguns minutos atrás, matei vários de rir
enquanto me matava de inveja.
Me sinto patético, com um sorriso pintado enquanto já
não sou mais capaz de sorrir.
Faço os outros sorrirem, mas sou o maior dos infelizes.
Não vejo graça no que faço.
Minha vida é uma comédia, minhas escolhas sempre
foram cômicas.
Não passo de um palhaço, ilhado em um deserto
repleto de corpos sem vida, que por pouco não me
privei para sempre de ver.
Talvez fosse melhor… talvez.
Se lhes digo que sou, sou alguém que não pareço ser.
Mas não se assustem, porque nem eu me vejo como
sou.
Sou a força de minha alma, sou o que sou e o que não
considero ser. Sinto tanta necessidade de ser quem
sou que acabo criando e acreditando que somos o que
aparentamos ser. E, talvez por isso, sou infeliz, pois
aqui, em meu picadeiro, sou eu, um palhaço.
Mas o meu circo é vazio. Os sorrisos que ouço são
grunhidos do meu cachorro, aborrecido com meu
espetáculo que não lhe deixa dormir.
Ilhado no deserto de seres sem vida, submeto-me ao
mundo dos mortos para atestar que minha visão
realmente voltou, e que os sorrisos que ouço não são
de um cachorro entediado.
De fato, o que mais espero de mim é viver um sonho
do qual possa ver que um dia, um dia, não serei o que
realmente não quero ser, afirmando em mim uma
identidade que não se pode formar por outra maneira
senão pela negação do que não desejo. Por que, se
quando fiquei cego, toda esta suposta necessidade
sumiu de mim?
Confesso que me desesperei, e na tentativa de
permanecer inatacável, ao fim de cada apresentação,
procuro me curvar para permanecer bem mais ereto,
esvaziar-me para ouvir elogios que me enchem o
orgulho e me fazem perceber a função de um papel
que não existe, bem como todos os outros que me
assistem.
É… parece que estou buscando me esvaziar para
permanecer repleto. De que?
Como costumo pensar: podemos agir de forma
semelhante a como agimos antes, mas nunca da
mesma forma. O que fazer aqui, nesta ilha deserta,
sob os olhares desatentos de um cão?
Sou eu, o palhaço quem vos diz que sou, e por isso
talvez nem seja! Ninguém nunca mais viu meu rosto,
nem sequer se lembram como ele era antes de toda
aquela pintura e maquiagem que o isolamento me
deram. Agora, como palhaço, meu sorriso é pintado, e
todos me vêem assim (todos que eu digo são meu
cachorro e os outros espectadores, que vez ou outra,
quando escapam do meu jantar, param e me ouvem
encenar como quero que me vejam).
Sinto falta da cegueira.
E agora, me fazendo passar por palhaço, sou quem
vos digo ser: um perdido, um sofrido; e, mesmo assim,
aquele que sentiu a real essência dos sorrisos
incontentes do rosnado das bestas selvagens.
Mas agora o show acabou. O que serei daqui pra
frente?
Primeiro, um caçador, ou não passarei de um corpo
morto, fazendo companhia a meu cão.
IV
De barriga cheia, mais um pouco de cena
Nasci em uma família mediocremente tradicional.
Nesse tempo, fui realmente feliz.
Mas não era suficiente.
Meu pai, um empresário bem sucedido, sempre dizia
que eu deveria seguir seus passos.
Minha mãe, juíza de direito, sempre dizia que eu
deveria seguir seus passos.
Todos os dois diziam isso; aliás, todos dizem isso.
Menos aqui. Nesta ilha, o vento forte não me permite
enxergar os caminhos que já foram traçados, e cada
trilha que sigo é uma trilha nova.
Sei o quanto é difícil pisar em um terreno virgem; sei o
quanto é difícil sentir seus pés no chão, mas quando
não se usam sapatos tudo fica bem mais fácil.
Mas quem disse que o chão é pisado por nossos
sapatos? Quem vos disse que nossos passos devem
ser programados? Quem me garante isso? Vamos!
Diga-me, quem?!
Pois é, não é você quem me dirá isso, não é?
Foi minha vida. Ela quem me disse, e disse assim: não
há como prever o futuro ou avaliar o passado. Não há
um tempo a se viver que seja real. O futuro é pura
abstração. O passado é morto. Meus passos? Para quê
tentar vê-los à frente? O cego não consegue andar?
Mas voltemos a minha estória.
Era o dia vinte e um de dezembro de dois mil e doze.
Os Maias o chamavam de início do holocausto. Eu
chamo de escolha. Podia dizer que hoje é ontem, que
diferença faz? Talvez estes relatos só venham a ser
lidos daqui a 100 anos, se meu cachorro não cagar
nas últimas folhas que restam nesse deserto.
Nesse mesmo dia, um circo passava pela cidade. Já
não me lembro mais a idade que tinha quando escrevi
tudo isso (a quanto tempo estou ilhado?); não me
envergonho de não saber minha idade.
Engraçado como os mortos se envergonham disso.
Sou bem mais novo que vocês podem pensar! É…
coitados, a cada instante mais próximos da morte.
Como deverão perceber, o tempo para mim não
interessa; nem o governo, nem o saboreio. Ele
conseguiu ser mais rápido que meus pensamentos e
mais eterno que minhas palavras. Ou o contrário, ou
vice-versa. O que estava falando mesmo?
Ah, lembrei!
Eu estava triste, como sempre. Meu pai e minha mãe
haviam morrido há um tempo. Meu relógio estava
quebrado, não sabia se fazia uma ou duas horas. Mas
o circo sim, esse passaria pela rua em que estava no
presente momento e sempre na hora certa.
Nada conseguia mudar o fato de que o mundo a mim
pertencia. Nada pode mudar o fato de que minha
alegria estava morta. Mas um palhaço, um grande
miserável palhaço, fez-me perguntar: por que nos
recusamos a sorrir? Por que a felicidade é tão difícil de
se ter?
Então descobri.
Não tenho nada.
Nada me pertence.
O mais completo nada é o mais completo pertence.
Se o nada é uma ficção, minha tristeza é uma
invenção, assim como a minha felicidade.
Tudo é uma grande ilusão do nada.
Veja só: vivemos em um mundo com mais de dois
milhões de habitantes, mas na maioria do "nosso
tempo” nós nos sentimos solitários; sorrimos, e então
nos esquecemos disso tudo.
Esquecemos do tempo.
Esquecemos...
Desculpe-me, esqueci que te contava minha estória. É
difícil se concentrar quando se está sozinho com um
cachorro lambendo seu pé. Deve ser fome. Quem
mandou estar dormindo quando fui caçar? Agora
agüente!
Pois bem; um palhaço. Um palhaço e um sonho: se
não posso rir, farei os outros sorrirem.
No dia da estréia, todos estavam na rua: os velhos e
suas rugas, as crianças e seus sorrisos, os
adolescentes e suas acnes.
E eu? Eu estava só.
Só, triste e apreensivo.
Era minha última chance de ser feliz (assim pensava)
ou de pelo menos, sorrir.
O palco se armou no centro da rua.
Os domadores coordenavam a arrumação dos locais
para se colocar as jaulas e os animais,
freqüentemente maltratados e mal nutridos. É, eles
estavam piores que você, cachorro imprestável!
Vá, vá! Saia daqui, vá procurar o que comer e deixe
de me lamber!
Voltando… Ah, os anões!
Os anões logo correram para o bar da esquina para
tomar uma cerveja. Pelo tamanho dos copos, pensei
que fossem reutilizá-los como banheira, mas logo após
um único gole eles fizeram o refil com mais álcool.
Os mágicos sumiram para algum lugar longe dos
outros participantes do espetáculo. Eles se acham
superiores aos outros por fazerem as coisas
desaparecerem (mas se esquecem que, no País, isso
era praxe, e dava até cadeia, quando quem fazia as
coisas sumirem não pertencia ao espetáculo).
Aqui as coisas também somem, mas basta ir atrás do
cão que eu encontro, nem que sejam apenas os
restos.
E como ele apanha se pegar o carvão que uso pra
escrever! Dá até pena! Às vezes acho que matei o
desgraçado. Mas como pode, se ele já está morto?
Voltando… logo após os outros personagens se
organizarem e todo o material circense estar
montado, o picadeiro estava pronto para começar
suas atividades.
E eu, de fato, não sabia o que fazia ali.
Como em todo circo de cidade pequena, os garotos
correram para observar mais de perto aquele mundo
estranho que ali se formava.
Alguns ficaram estagnados em frente dos animais
selvagens; outros pareciam mais selvagens que os
animais ao se empurrarem para ver a mulher barbada.
Os anões eram alvo de chacota e preconceito, mas
com toda sua experiência, ameaçavam amaldiçoar as
crianças e estas ficavam menores que eles, morrendo
de medo. Felizes com o resultado, os anões caiam no
riso, embriagados, com suas canecas de cerveja quase
pelo fim.
O palhaço... E o palhaço? Dele nada se via. Isso eu
posso afirmar, pois eu era o único que estava por lá,
bem próximo do seu camarim. Para falar a verdade,
quase dentro da sala, mas escondido.
Passaram-se meia hora e nada aconteceu em frente à
porta do camarim, até que esta se abriu. Juro ter visto
o palhaço chorar, mas ele estava com um sorriso
pintado no rosto, e isso me confundiu.
Vi seu nome na lapela da camisa, se chamava
Palhaço, e logo pensei: que falta de sorte.
Ele seguiu correndo até um grupo de crianças e atirou-
lhes alguns doces (que não consegui ver de que tipo).
Logo, os pequenos se esqueceram dos animais e
agarraram-se com as guloseimas como os animais se
agarravam com os restos de comida que antes as
crianças lhes jogavam.
É complicado, mas é fato: a cada fantasia que
criamos, a cada pensamento que ensaiamos,
reconstrói-se uma realidade inédita.
A vida é bem cruel em existir antes da morte. Se
quiserem saber o que acontecerá depois de cada
sonho, basta acordar e voltar para a manifestação de
realidade de cada dia, repleta de ilusões.
Mas a vida não é tão cruel assim. Ela é única para
cada um de nós. Pena que agora só eu a aproveito,
apesar de achar que estou morto.
Só você pode vivê-la, pensou eu, que resolvi viver
assim: uma ficção assumida.
Mas não fui bem eu quem escolhi; nem o destino ou o
acaso.
Aliás, não enxergava muito bem para onde ia até ser
mordido pelo cão, que deve ter feito isso não para me
salvar, mas porque tinha acordado e estava com
fome.
Agora estou aqui, em uma ilha deserta, em um beco
sem saída (pois a vida é isso, e o que fiz para merecê-
la? O que fazer para aproveitá-la?).
Mas insisto em dizer: é nos becos que fazemos o que
queremos, sem vergonha, sem receio. Assim é a vida
como penso ser, uma soma de subvidas; de anos, de
dias, de segundos, de momentos atemporais em que
se fabulam circos e personagens para animar o que
parece morto, sem vida, na tentativa de nos fazer
sorrir, quando na verdade, estamos mais ativos que
meu cão, que agora voltou com uma lebre.
Se me dão licença, vou ali roubar a comida dele.
Já já eu volto pra lhes contar mais alguma coisa.
V
Torpezas