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I

Por que vos escrevo?

Esta não é uma estória de amor, portanto, você já está


livre para fechar este livro. Mas por que vos escrevo?
Porque ontem ouvi me chamarem.
Não foi ninguém, nem sequer foi nada. Só ouvi meu
nome, mas ele não me expressou qualquer
significado.
Estou quase vivo. Ou quase morto
Não sei. Simplesmente o mundo parou.
Já não sou, só estou: uma existência sem significado.
Mas, quem eu costumava ser?
Nunca soube. Nem eu, nem ninguém. Talvez, só meu
cachorro. E ele já está mais morto do que eu.
Considero-me assim: recentemente assassinado por
uma consciência que antes não me pertencia; que me
tomou a mente, acabando com todo o resto.
Preciso lhes contar como tudo começou, talvez, dessa
forma, possa saber o que é isso que corrói a minha
mente; que a desfaz em mais pedaços e mais pedaços
enquanto tento não pensar em nada.
Sou um dos únicos que continuam de pé neste
deserto-ilhado.
Como o mundo, nenhuma outra ideia ordinária se
move de canto algum para lugar lugar nenhum,
apenas rodeiam um capo gravitacional qualquer.
Pela Cidade, todas as outras pessoas já atingiram esse
estado mental em que desabo a cada segundo que me
resta. Ninguém mais se move. Nada mais se move.
Sempre soube que a vida não me pertencia, eu quem
a pertenço. Um objeto do acaso, fruto de uma
brincadeira sem graça que sempre me divertiu.
O tempo todo não soube o que ela quis de mim.
Talvez seja isso.
Na verdade, acho que ninguém nunca saberá.
Apenas espero que minha narrativa não seja em vão,
que ainda reste alguma consciência pronta para
receber o que vos digo, ainda que a despreze.
Afinal, não quero ser o último dos humanos, nem
sequer o primeiro deles.
Estive cego, estou ilhado, e ainda não resolvi o que
fazer.

II
A última lembrança da cegueira

Tudo estava claro aos meus olhos, que me indicavam


por onde seguir e o que tocar.
Mas essa claridão se alastrou rapidamente por todos
os cantos, adquirindo uma intensidade que não pude
suportar.
Meus olhos fecharam, já não conseguia mais ver nada.
Lutei contra o impulso que os faziam permanecer
inertes, fiz de tudo para abri-los, mas já não tinha esta
liberdade. Uma dor insuportável me arrebatava a cada
instante que tentava permitir que a luz entrasse
livremente pelos meus olhos.
Ver já não doía mais.
Estava cego.
Desesperei-me.
Estiquei os braços para frente e saí como um cão pelo
ambiente disforme em que me encontrava, sem
conseguir me achar.
As paredes se chocavam contra mim, delimitando um
espaço que eu não conseguia estabelecer.
Já não suportava viver na luz, e comecei a gritar por
socorro, suplicando pela ajuda de quem parecia não
entender o que estava se passando.
Abra seus olhos! Não pode ser tão difícil assim!,
diziam com a maior tranqüilidade possível, típica de
quem pode ver.
Uma angústia me arrebatou para frente, fazendo com
que tropeçasse pelos degraus abaixo.
As paredes, que antes me surravam, pareciam querer
me suportar.
Lentamente, escorreguei para o chão. Respirei e tentei
ouvir tudo o que pude.
Tic-tac, tic-tac, tic-tac.
Um relógio pulsava em meu braço.
Claro, diante de tanta claridade, não pude ver as
horas, mas me senti como um ponteiro, rodando em
círculos, pedindo indicações de um caminho a seguir
para fora daquele terreno disforme que tendia a me
levar para o chão.
É isso!
Onde fica a saída? Olhem pra mim! Imaginem que sou
um relógio. A que horas fica a maldita saída?
Às seis fechamos, disse alguém que parecia se divertir
com a situação. Seis e meia, disse outra voz que
dificilmente se definia em meio a risos e sarcasmos.
Às três, disse uma voz feminina, que achei super
agradável e que resolvi confiar.
Novamente abri os olhos, mirando para a fonte
daquela melodia.
Isso mesmo, ela dizia, fazendo da sua voz um imã que
me puxava não apenas pelo ouvido, mas também pelo
pau, que apontava para o norte discretamente dentro
das minhas calças.
A sombra, por alguns segundos, tomou conta de mim,
e senti que podia enxergar.
Pude, e pude ver uma beleza indescritível, que talvez
sequer tenha visto (nem agora, nem antes).
Mas atrás dela não havia saída. Pra onde, se meu
desespero havia passado? Ela atraiu minha atenção
para seu corpo, e não para fora, onde queria
angustiantemente ir.
Confiante de que a saída estava do outro lado, olhei
para trás e uma grande cortina branca novamente me
jogou arrastou para a confusão.
Sua cor se alastrou por todo o ambiente, e já não
havia escuridão que me permitisse enxergar.
E agora? Que horas? Seis, disse novamente. E já não
sabia distinguir se era piada ou não.
Não resolvi investigar.
O silencio gritante invadiu minha tranqüilidade, mais
até que a ausência de visão.
Novamente sai como um cão, derrubando tudo por
onde passava, apoiando-me no que me atingia.
Desajeitado, ouvia as coisas se quebrando aos meus
pés, que neste momento já deveriam estar pintados
de sangue.
Desta vez, tive a esperança de encontrar novamente
as sombras, e a própria cortina me deu esta
possibilidade quando, trombando por todos os lados,
me enrosquei em seus imensos fios de tecido.
Estava indefeso como uma mosca em uma teia de
aranha, e temia que logo-logo eu virasse a presa.
Não posso lhes garantir que fiz muita força para me
libertar, mas assim que pude respirar aliviado estava
com os pés molhados, submersos até a canela dentro
d'água.
Consegui. Saí da enorme prisão de concreto disforme
para fora.
Abri meus olhos, mas aqui a luz era mais intensa,
vindo de todos os lados e refletindo sobre superfície
da água.
Água? Que água? De onde ela veio? Saí pelo caminho
certo? Por onde voltar?
Comecei a andar em círculos, e quanto mais buscava
a terra firme, mais afundava em um rio de desespero.
Meu cachorro, que estava bem vivo, mordeu meu
braço quando eu já estava prestes a me afogar.
Assim como com a cortina, me debati para me libertar
e acertei a superfície fria de algo que flutuava sobre a
água que me engolia.
Abracei-me, e por lá fiquei, até que pudesse
novamente abrir os olhos.
Estava em alto mar, e podia ver de longe um pequeno
monte de terra.
Meu cachorro, dormindo sobre a tábua em que me
agarrava, não se incomodava com nada. O filho da
puta sabia nadar.
Esta é minha última lembrança do passado.
Já voltei a enxergar, mas parece que todos os outros
estão mortos, até o desgraçado do cão, que vive
dormindo.

III
Ilhado no deserto

Solitário.
Mesmo em meio a bilhões de outros seres humanos.
Triste. Mesmo em meio a milhões de sorrisos.
Engraçado...
Resolvi atuar como palhaço, mas agora, atuo diante
de outro palco.
Um assassino…
Agora ou a alguns minutos atrás, matei vários de rir
enquanto me matava de inveja.
Me sinto patético, com um sorriso pintado enquanto já
não sou mais capaz de sorrir.
Faço os outros sorrirem, mas sou o maior dos infelizes.
Não vejo graça no que faço.
Minha vida é uma comédia, minhas escolhas sempre
foram cômicas.
Não passo de um palhaço, ilhado em um deserto
repleto de corpos sem vida, que por pouco não me
privei para sempre de ver.
Talvez fosse melhor… talvez.
Se lhes digo que sou, sou alguém que não pareço ser.
Mas não se assustem, porque nem eu me vejo como
sou.
Sou a força de minha alma, sou o que sou e o que não
considero ser. Sinto tanta necessidade de ser quem
sou que acabo criando e acreditando que somos o que
aparentamos ser. E, talvez por isso, sou infeliz, pois
aqui, em meu picadeiro, sou eu, um palhaço.
Mas o meu circo é vazio. Os sorrisos que ouço são
grunhidos do meu cachorro, aborrecido com meu
espetáculo que não lhe deixa dormir.
Ilhado no deserto de seres sem vida, submeto-me ao
mundo dos mortos para atestar que minha visão
realmente voltou, e que os sorrisos que ouço não são
de um cachorro entediado.
De fato, o que mais espero de mim é viver um sonho
do qual possa ver que um dia, um dia, não serei o que
realmente não quero ser, afirmando em mim uma
identidade que não se pode formar por outra maneira
senão pela negação do que não desejo. Por que, se
quando fiquei cego, toda esta suposta necessidade
sumiu de mim?
Confesso que me desesperei, e na tentativa de
permanecer inatacável, ao fim de cada apresentação,
procuro me curvar para permanecer bem mais ereto,
esvaziar-me para ouvir elogios que me enchem o
orgulho e me fazem perceber a função de um papel
que não existe, bem como todos os outros que me
assistem.
É… parece que estou buscando me esvaziar para
permanecer repleto. De que?
Como costumo pensar: podemos agir de forma
semelhante a como agimos antes, mas nunca da
mesma forma. O que fazer aqui, nesta ilha deserta,
sob os olhares desatentos de um cão?
Sou eu, o palhaço quem vos diz que sou, e por isso
talvez nem seja! Ninguém nunca mais viu meu rosto,
nem sequer se lembram como ele era antes de toda
aquela pintura e maquiagem que o isolamento me
deram. Agora, como palhaço, meu sorriso é pintado, e
todos me vêem assim (todos que eu digo são meu
cachorro e os outros espectadores, que vez ou outra,
quando escapam do meu jantar, param e me ouvem
encenar como quero que me vejam).
Sinto falta da cegueira.
E agora, me fazendo passar por palhaço, sou quem
vos digo ser: um perdido, um sofrido; e, mesmo assim,
aquele que sentiu a real essência dos sorrisos
incontentes do rosnado das bestas selvagens.
Mas agora o show acabou. O que serei daqui pra
frente?
Primeiro, um caçador, ou não passarei de um corpo
morto, fazendo companhia a meu cão.

IV
De barriga cheia, mais um pouco de cena
Nasci em uma família mediocremente tradicional.
Nesse tempo, fui realmente feliz.
Mas não era suficiente.
Meu pai, um empresário bem sucedido, sempre dizia
que eu deveria seguir seus passos.
Minha mãe, juíza de direito, sempre dizia que eu
deveria seguir seus passos.
Todos os dois diziam isso; aliás, todos dizem isso.
Menos aqui. Nesta ilha, o vento forte não me permite
enxergar os caminhos que já foram traçados, e cada
trilha que sigo é uma trilha nova.
Sei o quanto é difícil pisar em um terreno virgem; sei o
quanto é difícil sentir seus pés no chão, mas quando
não se usam sapatos tudo fica bem mais fácil.
Mas quem disse que o chão é pisado por nossos
sapatos? Quem vos disse que nossos passos devem
ser programados? Quem me garante isso? Vamos!
Diga-me, quem?!
Pois é, não é você quem me dirá isso, não é?
Foi minha vida. Ela quem me disse, e disse assim: não
há como prever o futuro ou avaliar o passado. Não há
um tempo a se viver que seja real. O futuro é pura
abstração. O passado é morto. Meus passos? Para quê
tentar vê-los à frente? O cego não consegue andar?
Mas voltemos a minha estória.
Era o dia vinte e um de dezembro de dois mil e doze.
Os Maias o chamavam de início do holocausto. Eu
chamo de escolha. Podia dizer que hoje é ontem, que
diferença faz? Talvez estes relatos só venham a ser
lidos daqui a 100 anos, se meu cachorro não cagar
nas últimas folhas que restam nesse deserto.
Nesse mesmo dia, um circo passava pela cidade. Já
não me lembro mais a idade que tinha quando escrevi
tudo isso (a quanto tempo estou ilhado?); não me
envergonho de não saber minha idade.
Engraçado como os mortos se envergonham disso.
Sou bem mais novo que vocês podem pensar! É…
coitados, a cada instante mais próximos da morte.
Como deverão perceber, o tempo para mim não
interessa; nem o governo, nem o saboreio. Ele
conseguiu ser mais rápido que meus pensamentos e
mais eterno que minhas palavras. Ou o contrário, ou
vice-versa. O que estava falando mesmo?
Ah, lembrei!
Eu estava triste, como sempre. Meu pai e minha mãe
haviam morrido há um tempo. Meu relógio estava
quebrado, não sabia se fazia uma ou duas horas. Mas
o circo sim, esse passaria pela rua em que estava no
presente momento e sempre na hora certa.
Nada conseguia mudar o fato de que o mundo a mim
pertencia. Nada pode mudar o fato de que minha
alegria estava morta. Mas um palhaço, um grande
miserável palhaço, fez-me perguntar: por que nos
recusamos a sorrir? Por que a felicidade é tão difícil de
se ter?
Então descobri.
Não tenho nada.
Nada me pertence.
O mais completo nada é o mais completo pertence.
Se o nada é uma ficção, minha tristeza é uma
invenção, assim como a minha felicidade.
Tudo é uma grande ilusão do nada.
Veja só: vivemos em um mundo com mais de dois
milhões de habitantes, mas na maioria do "nosso
tempo” nós nos sentimos solitários; sorrimos, e então
nos esquecemos disso tudo.
Esquecemos do tempo.
Esquecemos...
Desculpe-me, esqueci que te contava minha estória. É
difícil se concentrar quando se está sozinho com um
cachorro lambendo seu pé. Deve ser fome. Quem
mandou estar dormindo quando fui caçar? Agora
agüente!
Pois bem; um palhaço. Um palhaço e um sonho: se
não posso rir, farei os outros sorrirem.
No dia da estréia, todos estavam na rua: os velhos e
suas rugas, as crianças e seus sorrisos, os
adolescentes e suas acnes.
E eu? Eu estava só.
Só, triste e apreensivo.
Era minha última chance de ser feliz (assim pensava)
ou de pelo menos, sorrir.
O palco se armou no centro da rua.
Os domadores coordenavam a arrumação dos locais
para se colocar as jaulas e os animais,
freqüentemente maltratados e mal nutridos. É, eles
estavam piores que você, cachorro imprestável!
Vá, vá! Saia daqui, vá procurar o que comer e deixe
de me lamber!
Voltando… Ah, os anões!
Os anões logo correram para o bar da esquina para
tomar uma cerveja. Pelo tamanho dos copos, pensei
que fossem reutilizá-los como banheira, mas logo após
um único gole eles fizeram o refil com mais álcool.
Os mágicos sumiram para algum lugar longe dos
outros participantes do espetáculo. Eles se acham
superiores aos outros por fazerem as coisas
desaparecerem (mas se esquecem que, no País, isso
era praxe, e dava até cadeia, quando quem fazia as
coisas sumirem não pertencia ao espetáculo).
Aqui as coisas também somem, mas basta ir atrás do
cão que eu encontro, nem que sejam apenas os
restos.
E como ele apanha se pegar o carvão que uso pra
escrever! Dá até pena! Às vezes acho que matei o
desgraçado. Mas como pode, se ele já está morto?
Voltando… logo após os outros personagens se
organizarem e todo o material circense estar
montado, o picadeiro estava pronto para começar
suas atividades.
E eu, de fato, não sabia o que fazia ali.
Como em todo circo de cidade pequena, os garotos
correram para observar mais de perto aquele mundo
estranho que ali se formava.
Alguns ficaram estagnados em frente dos animais
selvagens; outros pareciam mais selvagens que os
animais ao se empurrarem para ver a mulher barbada.
Os anões eram alvo de chacota e preconceito, mas
com toda sua experiência, ameaçavam amaldiçoar as
crianças e estas ficavam menores que eles, morrendo
de medo. Felizes com o resultado, os anões caiam no
riso, embriagados, com suas canecas de cerveja quase
pelo fim.
O palhaço... E o palhaço? Dele nada se via. Isso eu
posso afirmar, pois eu era o único que estava por lá,
bem próximo do seu camarim. Para falar a verdade,
quase dentro da sala, mas escondido.
Passaram-se meia hora e nada aconteceu em frente à
porta do camarim, até que esta se abriu. Juro ter visto
o palhaço chorar, mas ele estava com um sorriso
pintado no rosto, e isso me confundiu.
Vi seu nome na lapela da camisa, se chamava
Palhaço, e logo pensei: que falta de sorte.
Ele seguiu correndo até um grupo de crianças e atirou-
lhes alguns doces (que não consegui ver de que tipo).
Logo, os pequenos se esqueceram dos animais e
agarraram-se com as guloseimas como os animais se
agarravam com os restos de comida que antes as
crianças lhes jogavam.
É complicado, mas é fato: a cada fantasia que
criamos, a cada pensamento que ensaiamos,
reconstrói-se uma realidade inédita.
A vida é bem cruel em existir antes da morte. Se
quiserem saber o que acontecerá depois de cada
sonho, basta acordar e voltar para a manifestação de
realidade de cada dia, repleta de ilusões.
Mas a vida não é tão cruel assim. Ela é única para
cada um de nós. Pena que agora só eu a aproveito,
apesar de achar que estou morto.
Só você pode vivê-la, pensou eu, que resolvi viver
assim: uma ficção assumida.
Mas não fui bem eu quem escolhi; nem o destino ou o
acaso.
Aliás, não enxergava muito bem para onde ia até ser
mordido pelo cão, que deve ter feito isso não para me
salvar, mas porque tinha acordado e estava com
fome.
Agora estou aqui, em uma ilha deserta, em um beco
sem saída (pois a vida é isso, e o que fiz para merecê-
la? O que fazer para aproveitá-la?).
Mas insisto em dizer: é nos becos que fazemos o que
queremos, sem vergonha, sem receio. Assim é a vida
como penso ser, uma soma de subvidas; de anos, de
dias, de segundos, de momentos atemporais em que
se fabulam circos e personagens para animar o que
parece morto, sem vida, na tentativa de nos fazer
sorrir, quando na verdade, estamos mais ativos que
meu cão, que agora voltou com uma lebre.
Se me dão licença, vou ali roubar a comida dele.
Já já eu volto pra lhes contar mais alguma coisa.

V
Torpezas

Já fantasiei outras vezes ser um vendedor de livros,


um gladiador, um cantor, um esportista, um político,
um empresário…, mas a fantasia que estava
destinada a mim era uma maquiagem branca e um
nariz vermelho que realçava o aspecto sem vida de
um rosto pálido. É incrível como os palhaços se
fantasiam.
Eles vestem a máscara da tristeza, mas conseguem
fazer os outros rirem.
A platéia tem uma alma má? Somos más por natureza
a ponto de rirmos das desgraças e das torpezas dos
outros?
Sei lá! A única natureza que vejo é o que ocorre diante
de mim sem qualquer significação.
A lebre estava uma delícia, dei os ossos ao meu
cachorro.
Ainda o mato de fome, ele que já está morto, e que
mesmo assim permanece ao meu lado, e não escolhe
se refugiar no mato.
Será que ele comeu alguma coisa antes de me trazer
a lebre? Filho da puta, escondendo comida! Se te
apanho fazendo uma dessas você está morto,
cachorro desgraçado!
Sai! Sai!
Sim… o palhaço.
Percebi uma coisa interessante: nas comédias as
pessoas riem, mas nos dramas, quando encenava ter
problemas sérios, as pessoas ficavam tristes e até
choravam. Por que será? Será que algo que fizemos é
tocado pelo o que vemos acontecer com os outros?
Será que a primeira alma boa só surgiu após ver outra
alma sofrer? Faço de tudo para expulsar de mim essas
idéias; senão, o primeiro homem da Terra teria sido
mal. Eu sou o único homem destas terras, o que sou?
Acabei de roubar a comida do meu cachorro. Sou eu
quem contribuo para a exposição não-artística das
suas costelas, mas mesmo assim ele permanece ao
meu lado. Bom ou mau, não faz diferença. Aqui sou o
que quero: um palhaço, um escritor, um caçador, ou
qualquer outra coisa.
Sou porque quero ser alguma coisa, pra passar o
tédio.
Sou, na medida em que sei que não sou nada, que
estou perdido e que quase fiquei cego.
Se eu não volto a enxergar, já estaria morto! E o quê
garante que eu não estou? Minha barriga, reclamando
por comida? Meu ouvido, distraído na imensidão de
sons que considero naturais porque já vivi na cidade,
quando considerava alguns sons artificiais? Meus
olhos, que já me falharam uma vez e que agora vêm
sempre meu cachorro dormir ou fazer algo que me
incomode?
Tá bom, esse papo já começou a me incomodar. Vou
descansar um pouco. Acabei de comer, não tenho
mais por que ficar aqui me distraindo.
VI
Constatações

Não fui o primeiro, nem nunca seremos. Só ele é.


Não estou usando referências religiosas. Só estou
dizendo o que é muito claro: só o primeiro é o
primeiro. Eu sou o primeiro palhaço a viver a vida que
eu vivo (aliás, neste espaço de terra, sou o único que
resta). Só eu viverei minhas dores e alegrias, que as
vezes nem posso tomar para mim.
Nem tu viverás nem ele viverá o que vivo. Não sou o
primeiro, mas estou aqui e só eu posso viver a minha
vida. Pena que nunca me satisfaço com ela, pois em
um único momento da minha vida, seria o primeiro.
Se posso constatar isto é por um motivo.
Desgraçado, vestindo uma máscara e a fazendo sumir
em seu rosto como uma coisa só, o palhaço produz um
espetáculo que não pode ser mais artificial que a
sensação vazia do seu próprio drama.
Não basta o poder da vida em não nos permitir nunca
a completa satisfação, o palhaço pega toda a angústia
dos espectadores e a domina.
Usa-as da mesma maneira que se veste: divertindo
aqueles que com elas não se cobrem e atormentando
aqueles que com elas cobrem seu corpo. Imaginem só
algum espectador vestido de palhaço. Será que ele se
sentiria ofendido por eu usar uma roupa igual a sua?
Amor e ódio.
Tão próximos nos sorrisos provocados por minhas
piadas de humor negro. Piadas que, moralmente
repudiadas, acabam por fazer os mais estúpidos
sorrirem. E quem não ri? Talvez aqueles vestidos
como eu.
Piadas tão trágicas que chegam a ser atraentes. Tão
atraentes que chegam a ser trágicas.
A vida…
Não pedimos para nascer, mas exigimos viver. Por
que?
O melhor dos sofrimentos: viver.
A propósito, o propósito da vida é terminar.
Em nós, essa sensação deve ser tão intensa a ponto
de sermos capazes de nos fazer, de algum modo,
capazes de amar o nosso próprio sentimento de vazio.
Claro, sem moralismos hipócritas e precipitadamente
egoístas, a razão da vida é tão vazia quanto o vácuo.
Na vida, tudo é diferente. Nada é igual.
A semelhança, no entanto, é buscada por aqueles que
procuram alguma razão nas coisas.
Explicações...
E isto, por mais que previsto pela lógica humana,
damos sempre um jeito de, pela lógica, contradizê-la.
O argumento dos opostos. Apenas mais um
argumento sem utilidade aqui na ilha.
Podemos até controlar a natureza, mas quando o
homem poderá controlar a si mesmo? E se nossa
razão perceber que a única forma para nos controlar
seria nos tornar pura natureza e retirar de nós o
restante de racional que ainda temos? Uma razão
suicida? Opa… acabo de constatar que seria melhor
que meu cão comesse meu carvão por um tempo.
Vem, cachorro inútil! Pega o carvão, pega!
Pega!

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