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Pensar e Preciso Completo
Pensar e Preciso Completo
Epígrafe:
Apenas a derrubada de ídolos e líderes possibilita
o surgimento de uma democracia de verdade
APRESENTAÇÃO
Mas, afinal, para que serve uma obra literária se não obrigar o leitor a pensar
por si mesmo na busca de soluções para seus problemas existenciais ou de qualquer
outra natureza? Se a obra de Salvatore conseguir convencer o leitor de que pensar é
preciso, por certo ele já se sentirá recompensado. Sem ser um livro de auto-ajuda nos
moldes convencionais, “Pensar é preciso” é uma obra que ajuda o leitor a questionar o
que nunca fora por ele sequer pensado.
WILSON DAHER
(Psiquiatra e membro da Academia Riopretense de Letras e Cultura)
Sumário
I - Herança greco-romana
Mito e realidade, 6; Eros: a força cósmica do amor, 8; Júpiter: o complexo do
autoritarismo, 9; Apolo e Dioniso: ordem e instinto, 10; Édipo e Fedra: o tema do incesto,
12; Tróia: Ilíada e Odisséia, 14; Atenas: o berço da civilização ocidental, 20; o pensamento
reflexivo: Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro, Estoicismo e Cinismo, 21; Alexandria e
Helenismo, 25; Roma: a cultura latina, 26.
Pascal, Hobbes, Spinoza, Kant, Hegel, Vico, 98; a Ciência: Copérnico, Bacon, Galileu,
Newton, 103; Iluminismo, Enciclopédia, Democracia, fim da Escravidão, 105.
proíba o homem de ser feliz, elencando um montão de pecados sujeitos a penas eternas.
Infelizmente, no nosso país, as igrejas pipocam mais do que partidos políticos!
Mas este trabalho não é apenas crítico, polêmico, iconoclasta. Tem seu aspecto
construtivo também. Apresentar um pequeno esboço da história da estupidez humana é o
primeiro passo para tentar o melhoramento social. A reflexão sobre os erros do passado
pode nos levar à libertação de preconceitos atávicos que impedem o progresso
civilizacional. O último capítulo, que toca mais especificamente no momento atual da
política brasileira, visa apresentar sugestões para a construção de uma cidadania de
verdade. Isso só será possível na medida em que, pelo esclarecimento do povo, o
sentimento de verdade e de justiça irá substituir os egoísmos individuais e de grupos.
“O que é a maioria? A maioria é tolice.
O bom senso sempre tem sido de poucos!
Convém pesar os votos e não contá-los”.
Tal constatação, feita pelo poeta alemão Schiller, 200 anos atrás, infelizmente, ainda
hoje continua verdadeira. A massa popular, manobrada por líderes religiosos ou
políticos, causou a morte de homens maravilhosos, como Sócrates e Jesus Cristo, e
exaltou figuras sinistras, como Hitler e Stalin. Pensar é preciso para que aumente,
cada vez mais, o número de gente com consciência crítica e cívica!
I - Herança greco-romana
(pois não existiu no plano histórico), mas é “tudo”, porque foi a figura aventurosa do herói
grego que estimulou os lusitanos a desbravar “os mares nunca dantes navegados”,
deslocando o eixo do comércio do Mediterrâneo para o Atlântico.
Federal que manda calar a boca a um depoente numa seção de Comissão Parlamentar de
Inquérito; um Ministro de Estado que solicita a quebra do sigilo bancário de um caseiro;
Presidentes da República, Governadores e Prefeitos que usam a máquina do Estado para se
reeleger.
Outras formas de atualização do mito de Júpiter podem ser encontradas no bullyng
americano e na ação dos pitboys cariocas: um tipo de comportamento cruel e ameaçador,
muito usado entre traficantes de drogas, marginais, presidiários. Infelizmente, a postura
jupteriana é muito mais generalizada do que se possa pensar. Encontra-se na violência
familiar e na prepotência dos poderosos, como também nos garotos musculosos que,
especialmente depois de beber ou tomar drogas, praticam assédio sexual ou outras formas
de intimidação. Enfim, sofre do complexo de Júpiter todo ser humano que lança mão da lei
da selva, da razão do mais forte, não sendo educado a respeitar o direito e a vontade do
semelhante.
A Suprema Corte do Afeganistão, país que se acha vítima da violência do sistema
capitalista, recentemente, ratificou a condenação à morte do cidadão Abdul Rahman por ter
rejeitado a fé islâmica. Que todos os fanáticos do mundo reflitam sobre o que disse
Napoleão: “a maior parte daqueles que não querem ser oprimidos quer ser opressora”. Que
dizer, então, do regime Talibã que ainda considera as mulheres propriedade do macho,
podendo ser apedrejadas em praça pública, caso namorem fora do casamento? Infelizmente,
apesar do reconhecimento dos direitos da mulher, o machismo ainda predomina em
sociedades presas a tradições milenares. Casos recentes de seqüestros e assassinatos de
moças por maridos ou namorados enciumados demonstram como a prepotência masculina
ainda está enraizada em nossos costumes.
É preciso não confundir “autoridade” com “poder”. O étimo de auctoritas vem do
verbo latino “augere”, que significa aumentar, crescer, desenvolver, adquirir beleza e fama.
O príncipe Caio Otávio, sobrinho de Júlio César, foi denominado “Augusto” pela
grandiosidade de sua personalidade, que deu paz e prosperidade ao povo romano. Já seus
sucessores, os imperadores Nero, Calígula etc., tiverem o poder, transmitido por herança
genética, mas não autoridade, pois foram tiranos cruéis, nocivos à nação. Numa
democracia, o poder vem do povo mediante eleições para a escolha de representantes. Mas
nem o voto nem a nomeação dão autoridade, que se consegue somente através do mérito,
do empenho pessoal. Podemos atribuir a um governante, político ou religioso, poder, mas
nem sempre autoridade.
Apolo era uma divindade essencialmente luminosa: pela luz cósmica, protegia a
vida vegetal, animal e humana (patrono dos agricultores, dos pastores e dos navegantes);
pela luz intelectual, era o protetor dos médicos e dos artistas; pela luz divina, era o deus dos
oráculos, desvendando os mistérios da natureza. Apolo, com a musa Calíope, gerou Orfeu,
poeta e músico, venerado pelos gregos porque seu canto abrandava a dor e fascinava
homens e animais. A dor de Orfeu pela morte da amada Eurídice constitui uma das páginas
mais líricas da mitologia clássica.
Nas artes plásticas, Apolo é esculpido ou pintado como um belo jovem
completamente nu ou coberto por arco e lira, com uma coroa de flores na testa. Tal
iconografia de Apolo atesta o conceito de beleza clássica entendida como harmonia de
formas: abstraindo de vários efebos (jovens bonitos) as partes corporais mais bem
acabadas, os artistas gregos procuravam chegar à criação de um modelo de beleza
masculina, universal e absoluta, em que o todo fosse resultante de partes harmonicamente
estruturadas. Apolo é apresentado, portanto, como o deus de todas as faculdades criadoras
de formas. A arte que nele se inspira — a apolínea -- tem como fundamento o sonho, a
imaginação, a ilusão, um radical otimismo, a confiança nas forças do homem, considerado
capaz de alcançar a vitória sobre o mal e a mentira.
Contrastando com o deus Apolo, Dioniso, o romano Baco, teve uma vida bastante
acidentada. Conforme o mito, ele foi duplamente filho de Júpiter, daí o apelido de
ditirambo (“aquele que nasceu duas vezes”), que era também o nome do hino religioso a ele
consagrado. O pai dos deuses, em outra aventura amorosa, seduziu a princesa tebana
Sêmele. Sua esposa Hera, então, roída pelo ciúme, provocou a morte da bela jovem
grávida de seis meses, instigando-a a solicitar que seu amante noturno lhe mostrasse sua
verdadeira identidade. Ao ver o senhor dos deuses em toda sua majestade, Sêmele caiu
fulminada, não suportando a intensidade luminosa dos raios celestes. Júpiter, então,
realizou a primeira cesariana: abriu o ventre da princesa morta, recolheu o feto e, porque
naquela época não havia estufas, com a mesma faca, fez um corte na sua coxa esquerda,
onde colocou o prematuro, dando continuidade à gestação.
Fruto híbrido de um amor divino-humano, Dioniso não foi aceito no Olimpo e
precisou conquistar o direito à imortalidade por suas próprias forças. Errou pelo mundo até
então conhecido e conseguiu o caminho da glória pela descoberta da uva, ensinando os
homens a produzirem o vinho. Tocando flautas ou tamborins, acompanhado pelo cortejo de
sátiros, bacantes, centauros e pelos deuses Sileno e Pã, Baco propiciava aos homens e aos
deuses alegria e felicidade. Enquanto durava o estado de embriaguez, seus devotos sentiam
a presença do deus do vinho dentro de si e se deixavam levar pelos ritos orgíacos, entrando
em transe histérico.
Dioniso sempre foi considerado pelos gregos como um deus subversivo, pois
personificava a desobediência à ordem e à medida, a vida do instinto, a liberdade e o prazer
sem limites, a inversão dos valores sociais. O espírito dionisíaco encontrou sua primeira
manifestação artística no coro ditirâmbico que, segundo a maioria dos estudiosos da
literatura grega, foi o embrião da tragédia antiga, quando o mito de Dioniso, no lugar de ser
apenas cantado (poesia lírica) e contado (narrativa), passou a ser também encenado (teatro).
As pessoas que compunham o coro dionisíaco se sentiam transformadas pela embriaguez e
punham de lado a máscara social, manifestando sua verdadeira personalidade. No estado
dionisíaco, nos momentos de excitação orgíaco, esquecido de seu status, o homem sentia-se
membro de uma comunidade universal em que se quebravam as barreiras de classes.
Assim, o homem divinizava-se, o escravo emancipava-se, a crueldade tornava-se prazer, o
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grotesco misturava-se ao sublime. Este espírito dionisíaco, vivido também nas saturnálias
romanas, persiste em todas as manifestações carnavalescas da cultura ocidental.
O mito de Dioniso invadiu a Literatura e as outras Artes, ao longo da nossa história.
A obra do filósofo-poeta alemão F. Nietzsche (1844-1900) está toda ela impregnada do
espírito báquico, ele mesmo definindo-se um “demônio dionisíaco”. Duas de suas obras são
fundamentais para entendermos a importância do mito de Baco na evolução do pensamento
e da arte européia: A Origem da Tragédia e Assim falou Zaratustra. Nietzsche remete à
oposição “apolíneo vs dionisíaco” duas posturas perante a vida: viver conforme a razão e as
ideologias sociais (código cultural) ou de acordo com o instinto que privilegia a busca da
satisfação individual (código natural).
O contraste entre as duas divindades está evidente no mito da disputa entre Apolo e
Pã (deus dos bosques, amante da lua e, como Priapo, deus do sexo, participante do cortejo
de Baco). A tensão representa não apenas a vitória da lira sobre a flauta, da música suave e
harmoniosa sobre os acordos rudes, da beleza com relação a feiúra, mas também o triunfo
da civilização grega sobre a barbárie asiática. Em psicanálise, usando a linguagem de
Sigmund Freud, podemos associar o id (a força do instinto, o código natural) ao mito de
Dioniso e o superego (o conjunto das normas culturais) ao mito de Apolo.
A atração natural do filho pela mãe ou da filha pelo pai que, a partir de Sigmund
Freud, passou a ser objeto de estudo da psicanálise, antigamente já fomentara a fértil
imaginação dos gregos, dando origem a vários mitos ou histórias fantásticas sobre
relacionamentos endógamos. O mais famoso é o mito de Édipo: Jocasta, a esposa de Laio,
rei de Tebas, informada pelo oráculo de Delfos que o nascituro estava destinado a matar o
pai e casar com a mãe, ordenou que um serviçal desse fim ao bebê. Mas o criado ficou com
dó, abandonando Édipo (o “dos pés atados”, como se fosse um franguinho) no campo.
Criado por pastores, o belo jovem, quando ficou sabendo do oráculo, achando que era filho
de Políbio e Peribéia, se afastou da casa dos pais putativos e, por ironia do destino, foi parar
na cidade de seus pais verdadeiros.
Ao chegar em Tebas, numa encruzilhada, teve uma altercação com um senhor de
idade e acabou matando o velho sem saber que Laio era o rei, seu pai. Ao entrar na cidade,
enfrentou a Esfinge, um monstro metade mulher e metade leão, que devorava os
estrangeiros que não conseguissem desvendar o enigma: “Qual é o animal que tem quatro
pés de manhã, dois ao meio-dia e três à tarde?”. Édipo respondeu: “é o homem”, pois na
infância engatinha, depois anda e, quando velho, usa a bengala. Vencido o desafio, o
forasteiro é acolhido como herói e, porque acabara de ser assassinado o rei Laio, é-lhe
ofertada a bela viúva Jocasta em casamento. Édipo casa com a rainha de Tebas, sem saber
que era sua mãe natural, e com ela tem quatro filhos.
Após longos anos de felicidade conjugal e de sábio governo, o rei tem que enfrentar
uma terrível desgraça: a cidade de Tebas sofre de uma misteriosa epidemia que dizima
homens e animais. Consultado o oráculo de Apolo, a resposta é de que a peste não cessaria
enquanto o assassino do rei Laio ficasse impune. Édipo ordena que se investigue o caso e o
adivinho Tirésias esclarece que o culpado é o próprio rei. Perante tal monstruosa revelação,
Jocasta se suicida e Édipo fura seus olhos e abandona a cidade. O mito de Édipo foi
explorado por escritores e artistas ao longo dos 25 séculos da cultura ocidental. Mas a
melhor representação ainda é a peça do dramaturgo Sófocles, Édipo Rei, que remonta ao
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século V a.C. e foi submetida a diversas interpretações pelos exegetas. Os versos da fala de
Jocasta a Édipo:
“Não tenha medo da cama de tua mãe:
Quantas vezes em sonho um homem dorme com a mãe!”
perpassa o drama de Sófocles de ponta a ponta. A lição transmitida pela peça é que é inútil
lutar contra os desígnios do Fado, configurado como uma força cósmica superior à vontade
dos próprios deuses. O que caracteriza o mito trágico é a coexistência dos contrários: Édipo
é culpado, pois matara o pai e casara com a mãe, mas, ao mesmo tempo, é inocente, pois
não sabia. O motivo do inocente-culpado tem sua explicação, pois a culpa não é individual,
mas atávica: Édipo paga o preço de um pecado cometido pelo seu progenitor. Narra o mito
que Laio, o pai de Édipo, durante umas férias, raptou, seduziu e abandonou o jovem
Crisipo, filho do rei da Frigia, que acabou se suicidando. O pai do rapaz amaldiçoou o
raptor, pedindo aos deuses que ele nunca tivesse um filho; mas, caso o tivesse, que ele fosse
a causa da sua morte. O que estava escrito nas estrelas aconteceu: o parricídio e o incesto de
Édipo são o castigo pela violência homossexual praticada por Laio. A lenda de Édipo nos
lembra o mito bíblico do pecado original: Adão comeu a maçã e toda sua descendência
herdou, não apenas a pena, mas também a culpa! Outro tema importante é o da catarse, a
purificação pela dor, o sofrimento como condição indispensável para a felicidade:
Estes dois últimos versos da peça Édipo Rei nos ensinam que, se o conhecimento da
verdade nos leva ao sofrimento, de outro lado, será somente através deste que o homem,
adquirindo a verdadeira dimensão de sua essência, terá condição de ser feliz. O brilho de
Édipo, o decifrador de enigma e o bom governante de Tebas, era falso, pois fundado sobre
o desconhecimento da própria identidade. O herói trágico se encontra verdadeiramente na
dor, na fraqueza, no abandono: reencontrar-se na impotência, nisso reside o supremo saber.
Na última peça de Sófocles, Édipo em Colona, a cidadezinha perto de Atenas onde o herói
se refugiara, feliz na companhia da filha Antígona, sentimos certa identificação do poeta
com o protagonista mítico: Sófocles escreveu este drama com mais de 80 anos, consolado
na sua velhice por uma jovem e bela hetera (cortesã de costumes livres).
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O mito de Édipo, que explora o tema do incesto, tem o seu equivalente feminino no
mito de Electra, que trata da atração da filha pelo pai, e de Fedra, que aborda relações
sexuais entre membros da mesma família. Electra é filha de Agamenão e Clitemnestra,
soberanos de Micenas. Durante a longa ausência do rei, que fora comandar a frota naval
grega na Guerra de Tróia, a rainha se apaixona pelo cunhado Egisto e juntos maquinam o
assassinato de Agamenão, quando do seu regresso. Electra ajuda o irmão Orestes a vingar a
morte do pai, causando a morte da mãe adúltera e do tio assassino.
A psicanálise, assim como apresentada por C.G.Jung, denomina “complexo de
Electra” à atração sexual não sublimada que uma filha possa sentir pelo próprio pai. Depois
de uma fase de fixação afetiva na mãe, quando da amamentação e na primeira infância, a
menina pode passar a sentir um sentimento mórbido pelo pai, em quem constrói a imagem
do homem ideal. Electra simboliza a tendência a um amor incestuoso da filha pelo pai,
quando o sentimento de apego não é resolvido de uma forma adequada, podendo causar
neuroses. O mito de Electra, como o de Édipo, inspirou muitas obras de arte dramática e
plástica, através dos tempos. Citamos apenas a peça O luto fica bem em Electra, do
dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill, representada pela primeira vez em 1931. No
Brasil, esta peça foi encenada com o título Electra e os fantasmas.
A figura de Fedra, irmã de Ariadne, está ligada ao mito do pai Minos, rei de Creta, e
de Teseu, o maior herói de Atenas, famoso por inúmeras aventuras de luta e de amor. A
façanha mais conhecida foi sua vitória sobre o Minotauro, na ilha de Creta. Matou a socos a
fera, fechada no Labirinto e de lá conseguiu sair graças à ajuda da esposa Ariadne, que lhe
deu um novelo de fio para marcar o caminho de volta. Mas, ingrato, abandonou a jovem na
ilha de Naxos, onde ela morreu de dor. E pagou por isso, de acordo com a justiça cósmica.
Já velho,Teseu casou com a cunhada mais nova, Fedra, que, enquanto o marido participava
da expedição dos Argonautas, se apaixonou pelo jovem enteado Hipólito. O rapaz, que
tinha feito voto de castidade a Diana, deusa da caça, não quis saber da madrasta. Sentindo-
se repudiada, ela apela pela vingança: escreve uma carta ao marido, acusando o jovem de
assédio sexual. Hipólito é executado e Fedra se enforca.
O que mais impressiona no mito de Fedra, largamente representado na cultura
ocidental, além do alto grau de violência a que pode levar uma paixão louca não
correspondida, é a maldade possível no coração de uma mulher: ela acusa o rapaz
justamente daquilo que ele não quisera fazer, transformando a vítima num agressor. Esta
lenda me faz tecer um paralelo com a trama do filme Assédio sexual, onde a atriz Demi-
Moore representa o papel da bela executiva Meredith Johnson, que destrói a carreira de um
jovem subordinado por ele não ceder a sua sedução, preferindo manter-se fiel à esposa. O
mito de Édipo, como outros mitos, enquanto arquétipos de ações humanas, vive se
repetindo continuamente ao longo da nossa existência.
Tróia é o nome latino da antiga Ílion, próspera cidade situada na costa da Ásia
Menor. No séc. XII a.C., a cidade troiana sofreu um assédio por uma frota de navios
gregos que, depois de dez anos de luta, conseguiram expugná-la e incendiá-la. A guerra de
Tróia é um fato histórico, documentado por resíduos arqueológicos, ao redor do qual, ao
longo de quatro séculos de tradição oral, a fantasia popular foi inventando histórias
fabulosas sobre deuses e heróis, gregos e troianos. Só em meados do séc. VIII, a Grécia já
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tendo uma língua escrita, um rapsodo “costurou” ( “rapsódia” significa juntar partes) vários
episódios de heróis divinos e humanos, deixando para a posteridade documentos de alto
valor poético e civilizacional. Se este rapsodo foi Homero ou os dois poemas épicos foram
escritos por vários autores e em épocas diferentes, é assunto da proverbial “questão
homérica”, que deu tanto trabalho a exegetas. Mais importante do que descobrir a autoria, é
admirar a beleza da obra.
Antes de expor fatos, personagens e sentidos dos dois poemas, acho didático
lembrar a história mítica criada para justificar a agressão grega ao território troiano. A
guerra contra Tróia estava escrita nas estrelas, pois diretamente relacionada com o mito de
Vênus e de outras divindades. Mitos divinos se misturam com lendas humanas, no céu e na
terra. Narra o mito que o último rei de Tróia foi Príamo, casado com Hécuba. Quando a
rainha estava grávida de seu 50° filho, sonhou com chamas e um adivinho aconselhou o
casal a matar o nascituro, pois ele seria a causa da destruição de Tróia. Mas o servo
encarregado da morte ficou com dó do recém-nascido e o abandonou no monte Ida, sendo
criado por pastores, que lhe deram o nome Páris, “o que protege” o gado. Aqui se dá o
cruzamento do mito humano com o divino. Houve uma festa de casamento, lá no Olimpo,
para a qual não foi convidada Éris, a deusa da Discórdia (pudera! quem convidaria uma
encrenqueira?). E ela, por vingança, pela janela do salão de festas, lançou um pomo com a
escrita “para a mais bela”. As três principais deusas do Olimpo, Atena (Minerva), Hera
(Juno) e Afrodite (Vênus), começaram uma briga, cada qual achando que o pomo era para
si. Júpiter, então, escolheu como juiz um ser humano, o belo jovem Páris que, não sabendo
de sua verdadeira filiação, vivia no meio de pastores.
Para obter a vitória, cada deusa tentou corromper o juiz, oferecendo o que possuía:
Minerva lhe prometeu a sabedoria, Juno o poder e Vênus o amor. Páris entregou o Pomo da
Discórdia a Afrodite, em troca da promessa da posse da mulher mais bonita da terra.
Naquela época, por acaso, a miss mundi era a linda Helena, esposa de Menelau, rei de
Esparta, irmão do poderoso Agamenão. Para cumprir a promessa, Vênus armou o encontro
dos dois, que se tornaram amantes. Páris, já reconhecido como filho pelo rei Príamo,
apesar dos tristes presságios da irmã Cassandra que tinha o dom da profecia, levou Helena
para Tróia, sua cidade natal. Para vingar a honra maculada, uma coligação de príncipes
gregos assediou Tróia. O mito, evidentemente, foi inventado para justificar a sanha
expansiva dos gregos. É por causa dessa lenda que, na poesia épica grega, romana e
lusitana, encontramos sempre Vênus protegendo os troianos e seus descendentes, os latinos,
enquanto as outras duas deusas protegem o exército grego.
Mas, neste ponto, deve ser inserido outro mito fundamental da cultura ocidental: o
de Ulisses, o grego Odisseu, o protagonista do outro poema épico, A Odisséia, e, talvez, o
maior herói humano de todos os tempos. Ulisses nasceu como conseqüência de uma dúplice
artimanha, preparada pelos dois homens mais inteligentes da Grécia da era pré-histórica:
Sísifo, rei de Corinto, para vingar-se de Autólico, que lhe roubara o rebanho, seduziu-lhe a
filha Anticléia. Mas isso era tudo o que o próprio Autólico tinha planejado, pois desejava
ter um neto que herdasse a astúcia de seu rival Sísifo. A moça Anticléia, já grávida,
abandonada por Sísifo, desposou Laertes, rei de Ítaca, que assumiu a paternidade da
criança.
O jovem Ulisses, educado pelo sábio centauro Quirão, na idade de contrair núpcias,
apaixonou-se por Helena, a mulher mais bonita da Grécia; mas, por serem muitos os
pretendentes, desistiu da competição, estabelecendo o famoso “pacto”: os concorrentes à
mão de Helena se comprometiam a respeitar a vontade da moça na escolha do esposo e a
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defender a união do casal. Helena escolheu como marido o príncipe grego Menelau e
Ulisses casou-se com Penélope, prima de Helena. Declarada a guerra dos gregos contra
Tróia para a reconquista de Helena, raptada pelo príncipe troiano Páris, Ulisses foi obrigado
a participar do assédio de Tróia, vítima do acordo por ele próprio inventado. De sua
inteligência nasceu o estratagema da construção do famoso Cavalo de Tróia. Mais façanhas
de Ulisses encontram-se no poema que leva seu nome como título. Voltemos, agora, à
apresentação do primeiro poema homérico.
Ilíada significa “sobre Ílion”, o nome antigo da cidade de Tróia, mas o poema se
limita apenas a descrever alguns episódios e não a história dos dez anos que durou a briga
entre gregos e troianos. O poema começa com a invocação:
Observemos que Homero não diz “eu canto”, mas coloca como narrador da história
a própria divindade. E isso por uma questão de coerência: como um ser humano poderia
saber o que se passa lá no céu, estar presente em todos os lugares e em épocas diferentes?
Ele se considera apenas um ser inspirado, um vate que recebeu o dom de ser o
intermediário entre a divindade e a humanidade. É claro que se trata de um fingimento
poético (e Fernando Pessoa bem dizia que “o poeta é um fingidor”, que finge tão bem ao
ponto de enganar a si próprio), mas, pergunto eu, a sensação de sentir-se inspirado por uma
força divina no ato de escrever não seria comum também aos líderes e escritores de textos
considerados sagrados pelas várias religiões? Poeta é Profeta, e vice-versa: religião e arte
sempre andaram juntas!
O assunto do que trata o poema Ilíada está anunciado nas duas palavras citadas
acima: “a cólera de Aquiles”. Este é o protagonista do poema, filho do rei Peleu e da deusa
Tétis que, segurando o recém-nascido pelo calcanhar, o banhou nas águas do rio Estige para
torná-lo invulnerável. Portanto, o único ponto fraco ficou sendo o calcanhar que não
recebeu a água sagrada. Daí, o proverbial “calcanhar de Aquiles”. Sua “cólera”, ira ou
raiva está relacionada com a perda da bela escrava Briseida pelo prepotente chefe
Agamenão (Helena, Briseida, Cleópatra, Cremilda... sempre elas, as moças bonitas, causas
e vítimas de desgraças: cherchez la femme, dizem os franceses, quando buscam o motivo de
um crime).
Os gregos, para se proverem de comida, roupa e mulheres, costumavam saquear
cidadezinhas perto de Tróia. Na divisão de um butim, Agamenão e Aquiles ficaram com
duas belas jovens, feitas escravas. Mas, a que ficara com o chefão, Criseida, era filha de um
sacerdote de Apolo, que pediu vingança. O deus, então, lançou flechas envenenadas que
começaram a dizimar homens e animais no acampamento. Para aplacar a ira divina, o
conselho dos gregos obrigou Agamenão a devolver Criseida. Mas o poderoso chefão exigiu
em troca a escrava Briseida, que era a concubina de Aquiles. Este, louco da vida, se retirou
do combate. Os troianos, percebida a ausência do valoroso Aquiles, saíram dos muros da
cidade e atacaram os gregos em seus acampamentos na praia. O herói troiano Heitor, filho
do rei Príamo, acaba matando Pátroclo, amigo de Aquiles. Este, então, para vingar a morte
de seu amigo, volta a combater os gregos, dirigindo sua ira especialmente contra o inimigo
Heitor, encurralando-o até os muros de Tróia e matando-o, após uma luta singular e
dramática. O poema acaba com os funerais de Heitor, pois o velho rei conseguira comover
o raivoso herói grego, que lhe entrega o cadáver do filho.
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Este pequeno resumo apresenta apenas uma pálida idéia da beleza poética e humana
da Ilíada. Contar episódios de vida de deuses e homens que participaram da Guerra de
Tróia é a forma que o poeta encontra para fixar para sempre, por virtude da arte literária, a
galeria de heróis e de posturas humanas que a tradição oral foi criando e transmitindo ao
longo de séculos e que se tornaram arquétipos na cultura ocidental. Aquiles, o protagonista
deste poema épico (o nome certo deveria ser “Aquileida”, título de um poema do escritor
latino Estácio e de outros imitadores de Homero), representa a força física, a perícia na
guerra, o sentimento de honra, o caráter indomável que não se dobra perante a prepotência
do chefe Agamenão, nem face aos desígnios do destino: mesmo conhecendo o vaticínio que
anunciara sua morte logo após a de Heitor, ele mata o herói troiano para vingar a morte do
amigo Pátroclo.
Aquiles encarna o homem na idade juvenil que se deixa dominar ora pela violência
das paixões (ódio e agressividade), ora pela delicadeza dos sentimentos (amizade e
piedade). Helena, a moça grega, que passou à história como Helena de Tróia, também ela
semideusa, pois fruto do relacionamento de Júpiter com a mortal Leda, embora seja o pivô
da guerra, não é considerada culpada. O próprio sogro dela, o rei Príamo, que mais sofre
com a desgraça que está caindo sobre Tróia e sua imensa família, tem muito carinho por ela
e sempre a defende, pois entende que Helena é vítima do destino, contra o qual ninguém
pode. Ela é a representante humana da deusa Vênus, que simboliza o instinto, a força da
paixão amorosa que vence qualquer norma moral. Helena é o símbolo da mulher fatal,
seduzida e sedutora, que vive apenas em função do sexo. O mito narra que, após a tomada
de Tróia, quando o marido Menelau a procura no palácio para vingar-se da traição, ela, sem
falar uma palavra em sua defesa, simplesmente se despe: a visão da beleza do seu corpo
transforma o ódio em novo amor.
Além de Aquiles e Helena, outros personagens importantes da Ilíada são:
Agamenão, o prepotente chefe da armada grega; Heitor, o maior herói troiano, que luta
bravamente para defender sua família e sua cidade; sua esposa Andrômaca que,
contrastando com Helena, é a mais bela configuração de fidelidade conjugal, antecipando a
Penélope de Ulisses, personagem da Odisséia; o belo Páris, que não sai da cama de Helena,
preferindo fazer o amor em lugar da guerra, embora tenha sido ele a causa dela; Menelau, o
marido traído, caracterizado como homem indulgente e sensato, preocupado em preservar
os valores ideológicos da união conjugal e do respeito pelos bens alheios, pois,
independentemente de qualquer sentimento amoroso, a mulher era considerada posse do
esposo.
O segundo poema homérico, a Odisséia, narra a viagem do herói grego Ulisses
(nome latino de Odisseu) que, cumprido a missão da reconquista de Helena e da destruição
de Tróia, começa a caminhada de regresso a Ítaca, sua terra natal, onde o espera a virtuosa
esposa Penélope. Conforme a tradição mítica, o herói grego leva dez anos para retornar.
Somados aos dez da Guerra de Tróia, perfazem 20 anos de ausência do lar. Ítaca, ilha do
mar jônico, não fica tão longe de Tróia, situada na costa da Ásia Menor. Mas era vontade
divina que o herói grego tivesse uma viagem de volta bem acidentada.
A narração das aventuras de Ulisses não procede conforme a ordem cronológica. O
poema começa quando o herói chega náufrago na ilha dos Feácios (a atual Corfú), após sete
anos de sua partida de Tróia. Encontrado na praia pela bela princesa Nausica, Ulisses é
acolhido na corte do rei Alcino e, durante um banquete, conta retrospectivamente suas
aventuras. Este recurso técnico de narrar uma história começando pelo meio, in medias res,
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próprio da poesia épica, como veremos na Eneida, de Virgílio e nos Lusíadas, de Camões,
será utilizados também pelo conto policial ou de suspense e pelo cinema.
Vou tentar reconstruir e resumir a fábula da Odisséia, colocando os principais
acontecimentos na ordem cronológica para facilitar seu entendimento. O náufrago Ulisses,
acolhido na corte dos Feácios, durante um banquete, ouve o aedo Demódoco contar como
os gregos enganaram os troianos, construindo um enorme cavalo de madeira, dentro do
qual esconderam dúzias de soldados. Convenceram, então, o rei Príamo a permitir sua
entrada na cidade, pois se tratava de um presente divino. Como se pode ficar, aos poucos,
os episódios da guerra de Tróia começaram a ser objetos de cantos populares.
Ao ouvir esse canto, Ulisses não resiste à comoção e começa a chorar, revelando
que é ele o herói da história. Conta, então, como, após o incêndio de Tróia, junto com
outros gregos, em doze embarcações, inicia o caminho de volta para sua terra de origem.
Após várias tempestades, os ventos jogam Ulisses e seus companheiros no Sul da Itália.
Perto da ilha da Sicília, numa região vulcânica, são capturados pelo ciclope Polifemo,
monstro antropófago com apenas um olho na fronte, que encerra os gregos numa gruta e
toda a manhã come um forasteiro. O astuto Ulisses, que lhe diz chamar-se “Ninguém”,
embebeda o ciclope e lhe enfia um pau no olho, conseguindo escapar do antro com o
restante dos companheiros. Polifemo pede ajuda aos outros ciclopes, gritando “Ninguém
me cegou”. Os irmãos, pensando que ele, bêbedo, estava brincando, não o acodem e os
gregos conseguem alcançar os barcos e fugir.
Chegam à ilha de Éolo, o guardião dos ventos (daí o nome da energia “eólica”), que
fecha num odre os ventos adversos para facilitar a chegada a Ítaca. Mas seus companheiros
furam o saco, pensando conter vinho. E, mais uma vez, os ventos contrários os desviam do
caminho certo. No litoral do Lácio, desembarcam numa ilha onde vive a feiticeira Circe,
que transforma os companheiros de Ulisses em porcos. O herói, passado um ano feliz nos
braços da bela deusa, resolve continuar a viagem, indo parar no golfo de Nápoles, numa
localidade onde se acreditava estar o reino dos mortos. Feito um sacrifício ritual, desce
numa gruta onde encontra as almas de figuras míticas: Tântalo, Sísifo, Agamenão, Aquiles,
entre outras, cada qual contando sua história. Ao atravessar o estreito de Messina, entre os
escolhos Cila e Caribdes, que separa a ilha da Sicília da península italiana, Ulisses coloca
cera nos ouvidos de seus companheiros. Por sua vez, pede ser amarrado ao mastro do navio
para não sucumbir ao irresistível canto das sereias, grandes pássaros com cabeça de mulher,
que costumavam atrair os marinheiros contra os recifes.
Chegados na Sicília, a ilha consagrado a Hélios, o deus Sol, acabados os
mantimentos, os companheiros de Ulisses matam e comem as vacas sagradas, sendo por
isso condenados a uma morte violenta. Salva-se apenas o herói que respeitara a ordem
divina. Após nove dias de naufrágio, Ulisses chega na ilha Ogígia (talvez a atual Gibraltar),
no limite extremo do Ocidente, perto da península ibérica, o fim do mundo até então
conhecido. A patroa da ilha é a bela ninfa Calipso que se apaixona perdidamente pelo herói
grego, estando disposta a desposá-lo e a conceder-lhe a imortalidade.
Mas a deusa Atena, lá numa assembléia do Olimpo, exige que o destino seja
cumprido e que Júpiter tome as providências necessárias para o retorno de Ulisses a sua
pátria. Obediente à vontade divina, Calipso aconselha o herói a construir uma jangada e
iniciar a viagem de volta para Ítaca. Mais uma vez o deus Netuno provoca uma tempestade
que arrebenta o barquinho. Atena salva o herói providenciando um véu que o impede de
afogar. A nado e exausto chega na ilha Esquéria, onde é protegido pela bela Nausica, a
princesa dos Feácios.
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Eis o resumo da narração em flash-back, a retrospecção dos fatos que Ulisses conta
ao rei Alcino, na ilha dos Feácios, situada no mar Egeu, não muito longe de Ítaca. A partir
daí, a narração dos fatos continua no tempo linear. Ulisses recusa a oferta de casamento
com Nausica, desejoso de, finalmente, após quase vinte anos de aventuras, retornar ao seu
lar. Um navio feácio leva o herói adormecido na praia de Ítaca. Em sonho, a deusa Atena
aconselha Ulisses a não revelar sua identidade, pois há mais inimigos a enfrentar, também
na sua terra. Ele, então, assume a feição de um fugitivo da ilha de Creta e pede
hospitalidade, sendo reconhecido apenas pelo velho cão Argos e pelos escravos Eumeu e
Euricléia.
Apresentado ao filho Telêmaco, os dois preparam a vingança contra os
pretendentes à mão de Penélope. Acontecera que, devido à longa ausência de Ulisses,
pensando que ele estivesse morto, vários nobres de Ítaca queriam que a bela rainha
escolhesse outro marido. Mas o coração de Penélope lhe dizia que o esposo estava ainda
vivo e um dia voltaria. Por isso ficava adiando a escolha, dizendo que só se casaria de novo
após terminar uma mortalha para seu sogro Laertes. Mas ela desfazia de noite o que tecia
de dia. Os pretendentes, após descobrirem a artimanha, ficaram violentos, dilapidando o
patrimônio da corte.
Quando seu pai chegou disfarçado, Telêmaco aconselhou sua mãe a escolher como
esposo o vencedor da prova do machado: usando o arco de Ulisses, os candidatos deviam
fazer atravessar uma flecha pelo buraco de doze machados enfileirados. Ninguém
conseguiu superar a prova. O estrangeiro, então, pediu permissão para também ele tentar.
Ulisses superou o desafio, revelou sua verdadeira identidade e, com a ajuda do filho e dos
antigos servos, acabou com os pretendentes. Penélope só se convenceu que ele era seu
verdadeiro marido quando Ulisses lhe revelou segredos de alcova. O poema épico termina
com a intercessão da deusa Atena junto a Júpiter para que uma paz duradoura reine sobre os
soberanos e os habitantes da ilha de Ítaca.
O valor estético e educativo da Ilíada e da Odisséia é atestado pelas contínuas
reedições dessas obras nas línguas mais diferentes dos cinco continentes. Apenas os livros
da Bíblia superam os poemas atribuídos a Homero no mercado livresco internacional. E
isso porque gregos, troianos, latinos e seus descendentes encontraram na poesia épica, além
da beleza artística, ensinamentos de vida. Enquanto a Ilíada é a epopéia da guerra, a
Odisséia é a epopéia do mar. O primeiro poema de Homero, mais antigo, retrata a luta dos
gregos para a conquista de novos territórios. Neste estágio de civilização, o heroísmo
guerreiro era fundamental.
Já a Odisséia espelha uma fase posterior, quando os gregos, deixando de ser
nômades, se fixaram em cidades, chamadas póleis. Passaram, então, a descrever a vida nas
cortes e nos palácios, usos, costumes, utensílios. A viagem marítima de Ulisses durou dez
anos porque o poeta estava mais interessado em mostrar como viviam as várias povoações
por ele visitadas do que o retorno do herói a sua terra natal. Enquanto na Ilíada predomina
o valor dos homens nos campos de batalha, na Odisséia encontramos a valorização da
família. Ulisses prefere o amor da esposa aos atrativos de deusas e rainhas, pois é a mulher
que dá estabilidade ao lar. Vejam-se as belíssimas caracterizações de figuras femininas,
como Penélope, Nausica, Calipso, Circe. Enfim, estamos perante uma concepção ética
predominantemente conservadora e aristocrática, baseada na nobreza de sangue, na virtude,
na honra, na sabedoria, na beleza. A presença dos deuses, que nasceram no tempo, mas se
tornaram imortais, concebidos como representações de ideais humanos levados ao seu
maior grau, atesta o desejo de superar a precária condição humana.
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A cidade mais importante da Grécia leva o nome de uma divindade, Atena, cultuada
em Roma com o nome de Minerva. Deusa da sabedoria e da guerra, nasceu já armada da
cabeça de Júpiter, que lá a colocou para esconder o fruto de seu adultério com Métis, a
personificação da Prudência. Apenas o s final distingue o nome da cidade do da deusa. Ao
longo de longos séculos obscuros, ocorreu a unificação de vários povoados que, a partir do
séc. VI, deram origem a uma cidade com uma estrutura política consistente. O apogeu deu-
se sob o governo de Péricles (495-429). Em pouco mais de meio século de liberdade
política, Atenas, que já tinha a herança da poesia épica (Homero) e didática (Hesíodo),
criou a poesia lírica (Safo, Píndaro), trágica (Ésquilo, Sófocles, Eurípides), cômica
(Aristófanes), as artes plásticas (especialmente a arquitetura), a historiografia, a retórica, as
olimpíadas.
Sem dúvida alguma, a maior conquista da Grécia foi a instituição do regime
democrático, que possibilitou alcançar tão alto grau de civilização. Péricles entendeu que o
melhor tipo de governo é aquele baseado na vontade da maioria e não apenas de um
indivíduo ou de uma elite dominante. E o sustento da democracia é a “meritocracia”, cada
qual ganhando conforme o mérito, independentemente da classe social a que pertencer.
Mas, no mesmo tempo em que o grande estadista estimulava o sentimento cívico,
enaltecendo os valores da igualdade de todos perante a lei e a justa recompensa pelo
trabalho realizado, ele, na prática, cultivava a demagogia, que se tornou a maior praga da
democracia. Para angariar votos, ele inventou a “mistoforia”, a remuneração para quem
ocupava cargos do governo, o financiamento público de espetáculos teatrais e outras formas
de ajuda à massa popular. Este tipo de populismo foi condenado pelo filósofo Sócrates que
censurou Péricles por tornar os cidadãos de Atenas preguiçosos e corruptos. E não sem
razão, pois o estadista acabou sendo condenado por prática de peculato. Os atuais políticos
brasileiros têm gloriosos antecedentes!
O espírito inventivo dos gregos transformou os principais mitos sobre deuses e
heróis, transmitidos pela tradição oral, em obras de arte literária e plástica, tornando-os
eternos. Mesmo quando acabou a crença no politeísmo grego, ficou sua mensagem cultural
pela ação transformadora e indelével da arte. A partir do séc. IV, com a perda da
independência (batalha de Queronéia, 338), submetida a Felipe II da Macedônia, Atenas
começou seu declínio. Seu espírito inventivo se transformou em reflexivo, produzindo
grandes filósofos, como veremos a seguir.
A capital da Grécia, então, se tornou centro de debates, passando a questionar as
verdades religiosas, antes aceitas sem discussão. Atenas deu origem à primeira forma de
Humanismo, pois o parâmetro para a vida em sociedade passou a ser o homem e não mais a
divindade. A cultura grega apresenta a idéia inovadora de que os padrões existenciais estão
embutidos na própria realidade, perceptíveis pelo raciocínio, sem precisar recorrer ao
sobrenatural. Com o culto da filosofia, o pensamento se descobre a si próprio, se acostuma
a refletir e dialogar, substituindo os dogmas religiosos pelas leis da lógica e do bom senso.
“Um fazendeiro das vizinhanças (da escola de ceticismo, em Atenas) se sai com
uma das habituais perguntas obtusas feitas pelos fiéis, como: se não há Zeus, quem
manda a chuva para regar as plantações? Convidando o homem a utilizar sua
cabeça por um segundo, Sócrates (o filósofo funciona como personagem da peça)
destaca que, se Zeus pudesse fazer chover, poderia haver chuvas em céus sem
nuvens. Como isso não acontece, deve ser mais sábio concluir que as nuvens são a
causa da chuva. Tudo bem, diz o fazendeiro, mas então quem coloca as nuvens em
posição? Certamente deve ser Zeus. Não, diz Sócrates, que explica os ventos e o
calor. Bem, nesse caso, replica o velho rústico, de onde vêm os raios para punir os
mentirosos e os que agem errado? Os raios, é gentilmente explicado a ele, não
parecem discriminar justos e injustos. De fato, freqüentemente é noticiado que eles
atingem os templos do próprio Zeus olímpico. Isso é suficiente para derrotar o
fazendeiro, embora ele depois abjure sua falta de reverência e queime a escola com
Sócrates dentro”.
ou, melhor, ele pensa de estar fazendo a coisa certa. Efetivamente, quanto mal não se
comete, pensando de fazer uma obra de bem. Hoje diríamos que de boas intenções está
cheio o inferno!
Para ele nada existe além da natureza observável. As idéias das coisas estão na própria
realidade, sendo percebidas pelo princípio da abstração, que separa o geral do particular.
Por exemplo, a idéia de árvore está na própria árvore e não num outro mundo. Pela
operação mental da abstração, posso distinguir o que é próprio de uma árvore específica
(tamanho e cor das folhas, tipo de ramificação) do que é comum a todas as árvores (raiz,
folha e tronco). O que é genérico me fornece a idéia da árvore, sem precisar recorrer a um
mundo transcendental.
O sistema filosófico de Aristóteles se baseia no “ilemorfismo” (ilê = matéria e
morfê = forma), a conjunção da matéria com a forma, do corpo com a alma. Os dois
elementos são distintos, mas inseparáveis. É como se fosse uma folha de papel:
conseguimos distinguir uma face da outra, mas não é possível separar os dois lados (esta
imagem é do lingüista suíço Ferdinand de Saussure, 1857-1913, aplicada à distinção entre
significante e significado). No ser humano, distinguimos a alma (a parte espiritual, que nos
faz sentir, amar, pensar) do corpo (a parte biológica e vegetativa), mas não conseguimos
imaginar como seria a existência de um corpo sem alma, nem de uma alma sem o corpo.
Esta concepção filosófica de Aristóteles é a matriz de correntes realistas, positivistas
e materialistas que se sucederam ao longo da cultura ocidental, enquanto seu mestre Platão
será o inspirador das correntes idealistas, românticas e espiritualistas. Realmente,
Aristóteles, o pedagogo de Alexandre o Grande, pode ser considerado o maior pensador da
Grécia antiga. Em Atenas, deu aulas no Liceu. Sua escola era chamada de “peripatética”,
porque discutia com os discípulos sobre cultura passeando pelos pórticos. Dante Alighieri,
o imortal poeta da Divina Comédia, define Aristóteles como “o pai dos que sabem”.
Carpe diem (aproveite o momento que passa): este verso do poeta latino Horácio,
um admirador entusiasta de Epicuro, se tornou proverbial, pois sintetiza uma doutrina que
coloca na busca do prazer a finalidade de qualquer atividade dos seres vivos. O homem
estuda e trabalha para adquirir posição social e dinheiro, de que se serve para satisfazer, da
melhor forma possível, seus dois instintos básicos: a conservação própria, pela alimentação,
e da sua espécie, pelo acoplamento sexual. Sábio, porém, é quem usa o prazer de uma
forma ponderada, pois qualquer excesso é prejudicial: se comer menos do que precisa, pode
sofrer por inédia ou anorexia, se comer mais, estará sujeito aos males causados pela
obesidade. Portanto, in médio stat virtus (a virtude está no meio-termo), citando outro verso
do epicurista Horácio.
As poucas notícias sobre o filósofo grego Epicuro, considerado, como Sócrates, um
“mestre” de vida, nos foram transmitidas por discípulos e admiradores. Sabemos que
lecionou em várias cidades da Grécia, em Atenas inclusive, pregando o Atomismo de
Demócrito, com uma postura materialista. Mas ele passou à posterioridade pela sua
doutrina moral, fundamentada no Hedonismo (do grego hedone = prazer), que prega o
equilíbrio entre os prazeres possíveis. Epicuro foi o primeiro pensador ocidental a negar
claramente a possibilidade da existência de uma “providência transcendental”, de um Deus
preocupado com suas criaturas. Num fragmento de seus escritos, lemos:
“Ou Deus pode e não quer evitar o mal: então não é bom;
ou quer mas não pode: então não é onipotente.
Em cada qual das duas hipóteses: ele não existe!”
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morais da antiguidade, foi superado pelo nascente Cristianismo, que prometia ao homem
um final bem mais feliz.
A doutrina cínica tem muito em comum com o pensamento estóico, tanto que Crates
de Tebas (365-285), discípulo de Diógenes de Sínope, o maior expoente do cinismo, foi
mestre de Zenão de Cítio, o pai do estoicismo. A diferença pode residir no fato de que os
estóicos construíram um sistema teórico-cosmológico acima do que os cínicos
consideravam apenas uma prática de vida, uma moral sem nenhum fundamento filosófico.
A origem etimológica do termo “cínico” é kunós, que em grego significa “cão”, o animal
mais impudico. Na verdade, o cinismo defende um retorno à vida da natureza, com base
apenas no instinto, rejeitando qualquer forma de cultura ou civilização, ensinando a viver
naturalmente. Narra-se que Crates chegava a fazer sexo em público com sua esposa
Hiparquia, imitando os animais.
Em verdade, o que houve foi uma crise de valores, pois os cínicos passaram a
desacreditar nas instituições jurídicas, religiosas e sociais, incapazes de proporcionar
felicidade ao homem. Apelaram, então, para formas de autarquia, às vezes chegando à
anarquia. Ensinavam e praticavam a auto-suficiência, dispensando tudo o que fosse
desnecessário para viver. A libertação não era apenas dos objetos materiais, mas também
com relação aos sentimentos, não se preocupando com o sofrimento, a saúde ou a morte
nem de si próprios, nem dos outros, familiares ou amigos Por isso, a palavra cinismo
adquiriu a conotação, que ainda persiste hoje em dia, de indiferença e insensibilidade ao
sentir e sofrer dos outros.
Hélade, do grego Hellas, era o nome restrito à região central da Grécia antiga. Mais
tarde, o nome heleno passou a ser usado como sinônimo de grego, em geral.
Historicamente, os termos helenismo e helenístico indicam a difusão da cultura grega no
período que vai das conquistas de Alexandre (331-323) no Oriente Médio e na Ásia até à
dominação romana, que começou a partir do ano 31 a.C. Neste sentido, falamos de período
helenístico como sinônimo de alexandrino. Ao contato com o mundo grego, os egípcios
começaram a deixar de lado as antigas crenças, cultivando artes, ciência e filosofia.
Alexandria, depois de Atenas e antes de Roma, tornou-se o centro irradiador de cultura,
conservando e difundindo o patrimônio artístico, literário, filosófico e científico produzido
pela criatividade do povo grego ao longo dos séculos anteriores. Na sua famosa Biblioteca
se reuniam os maiores sábios da época (Arquimedes, Apolônio de Rodes, Teócrito,
Calímaco, entre outros).
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Um ditado popular afirma que “todos os caminhos levam a Roma”, mas a verdade é
também seu contrário: “todos os caminhos partiram de Roma”. A cidade, alcunhada de
“eterna”, situada no centro da Itália, é o ponto crucial da Europa e do mundo ocidental,
geográfica e historicamente. Há duas lendas sobre as origens da caput mundi, o antigo
centro do Império Romano e atual capital da Nação italiana e da Religião Católica. A
primeira, mais antiga e idealizada, conecta as origens de Roma à civilização troiana (séc.
XII a.C.), pois o herói Enéias, após o incêndio de Tróia, em busca de uma nova terra
prometida pelo Fado, teria chegado até o Lácio, lutado contra os povos indígenas da região
e casado com a latina Lavínia. Seu filho Ascânio, também chamado de Julo, teria dado
origem à família Júlia, a que pertencia o imperador Otávio Augusto. Tal lenda encontra-se
consagrada no famoso poema épico A Eneida, do escritor romano Virgílio, do séc.I a.C.
Outra lenda remonta ao séc. VIII: o deus Marte engravidou a bela Réia Sílvia, filha
do rei de Alba, consagrada à Vesta, a deusa da castidade. Deste amor proibido nasceram os
gêmeos Rômulo e Remo que, jogados nas correntezas do rio Tibre, foram salvos por uma
loba. Daí o símbolo de Roma ser a estátua de uma loba amamentando dois recém-nascidos.
A imagem dos bebês pendurados nas tetas da loba se perpetrou por longos séculos no
subconsciente dos italianos e hoje está a representar os políticos, divididos numa miríade de
partidos, a sugar no peito da amada Pátria. Atualmente, a Itália e o Brasil estão travando
uma acirrada disputa com a Grécia moderna para a conquista do troféu do país mais
corrupto e mais leniente com a impunidade, entre todos os povos do Ocidente.
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Criados por pastores, Rômulo e Remo fundaram a cidade de Roma. Rômulo acabou
matando seu irmão por transgredir a ordem de não ultrapassar os limites estabelecidos por
ele. Em seguida, o valentão perpetrou o que passou à história como o “Rapto das Sabinas”:
para povoar a nova cidade, Rômulo, junto com um bando de primitivos, foi a uma festa na
cidade de Sabina e levou embora várias moças. Enquanto os pais, irmãos e maridos das
jovens raptadas organizavam a vingança, os romanos engravidaram suas mulheres que,
portanto, impediram a luta entre as duas povoações. A união de antigos habitantes do Lácio
foi o núcleo do que será mais tarde o glorioso Império romano.
Conforme esta segunda lenda, Roma foi fundada ao redor do ano 753 a.C e povoada
por etruscos e outras etnias da península itálica. Aos poucos, todos os antigos povos da
Itália foram dominados pelos romanos, que começaram a se preocupar com as instituições
públicas para dar consistência ao Estado. Terminado o período arcaico da monarquia,
quando se sucederam sete Reis, Roma passou a ser governada por dois cônsules, eleitos
anualmente pelos dois partidos: o aristocrático (dos ricos = patrícios) e o democrático (dos
pobres = plebeus). O órgão político superior era o Senado.
Roma iniciou seu caminho para se tornar uma grande potência com as duas Guerras
Púnicas (de 264 a 201), subjugando os fenícios, cuja capital era Cartago, na atual Tunísia.
Os pesados tributos dos cidadãos e os impostos que o governo romano cobrava das
províncias dominadas acirravam as disputas políticas e engordavam o funcionalismo
público. Logo começaram lutas intestinas pelo poder entre os dois partidos: de um lado, os
irmãos Tibério e Caio Graco, tribunos do povo, seguidos por Mário, Catilina, Júlio César e
Marcus Antônio; de outro lado, os aristocratas Sila, Pompeu, Cícero e Otávio Augusto.
Os idos de março (dia 15) de 44 a.C. é uma data memorável na civilização
ocidental. Júlio César foi apunhalado até à morte, em plena luz do dia e no átrio do palácio
do governo romano, por um grupo de Senadores, incluído seu filho adotivo Brutus, que
conspiraram contra sua vida. Ele fora um grande general (conquistara boa parte da Europa
Central, entre outras vitórias), um exímio escritor (De Bello Gallico e De Bello Civile, que
tratam da conquista da Gália e da guerra civil na própria Roma) e um político de grande
visão. Pertencente ao partido democrático, queria acabar com os latifúndios, distribuindo
terras para os soldados que, voltando das guerras, não encontravam emprego. Continuara,
assim, a luta dos irmãos Graco, assassinados por defenderem a reforma agrária.
Mas César encontrou a oposição de um Senado decrépito e conservador, temeroso
de perder suas mordomias. Aparentemente, o motivo do assassínio era nobre: a defesa das
liberdades democráticas, face ao perigo da instauração de um regime ditatorial. Júlio César,
aproveitando-se do enorme prestígio popular, quer pelas suas vitórias militares, quer pela
sua compreensão das necessidades do povo, poderia tentar um golpe de estado, fechando o
Congresso. É difícil saber quais eram as intenções do grande líder. Uma coisa é certa: ele
tinha consciência de que a corrupção dos costumes políticos tornara Roma ingovernável,
precisando de uma nova ordem institucional.
E a história lhe deu razão: logo após a morte de César, não houve mais eleições
livres. O poder foi arbitrariamente e por acordo nupcial (Antônio casou com Otávia, irmã
de Otaviano) dividido entre o cônsul Marcus Antônio, a quem coube o domínio do Oriente
e Otávio, sobrinho e filho adotivo de César, que ficou com Roma e a parte ocidental do
império. Antônio estabeleceu sua capital em Alexandria e, repudiando a esposa Otávia, se
casou com a ambiciosa e sedutora Cleópatra VII, última rainha da dinastia dos Ptolomeus.
Ela, depois de enviuvar de dois seus irmãos (casara, sucessivamente, com Ptolomeu XIII e
XIV), acabou seduzindo Júlio César que a levou para Roma. Após o assassinato do seu
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amante, voltou para Alexandria e, logo em seguida, enredou nas suas malhas amorosas o
recém chegado novo chefe romano, Marcus Antônio.
Antonio e Cleópatra ampliaram o domínio de Alexandria no Oriente, subjugando
várias províncias romanas, o que suscitou a vingança de Otávio, que declarou guerra aos
dois e os venceu na batalha de Ácio, em 31 a.C, tornando-se o único dono do mundo
romano. Marcus Antônio, acreditando na morte de Cleópatra, se suicida. Shakespeare deve
ter-se inspirado no final desta paixão amorosa quando escreveu Romeu e Julieta. Aliás, o
dramaturgo inglês compôs duas peças sobre os dois amantes da rainha do Egito: Júlio
César e Antônio e Cleópatra.
Enquanto isso, em Roma, o Senado conferia a Otávio o título de Princeps, com o
nome de Caius Julius Caesar Octavianus Augustus, e de Grande Pontífice, somando o
poder militar, político e religioso. O regime de Roma passou de República a Principado,
uma monarquia disfarçada, que logo após sua morte se tornou Império, permitindo a
transferência do poder por herança genética. Adeus democracia romana! Mas o Principado
de Augusto teve seus méritos. Em poucas décadas, de 31 a.C. a 14 d.C., Roma teve uma
florescência comparável ao apogeu da Atenas da época de Péricles. Augusto foi, sem
dúvida alguma, um déspota esclarecido. Ele conseguiu pacificar as correntes políticas
internas e frear o ritmo de expansão externa, estabelecendo a pax romana, também
chamada “Paz de Augusto”.
Convencido de que uma reforma de costumes não se faz pela força, mas pela
mudança de mentalidade, com base em princípios ideológicos, Augusto se circundou das
mais belas inteligências da época. Servindo-se da amizade do rico Mecenas, protetor de
poetas e artistas, solicitou a colaboração de Virgílio e Horácio, as duas maiores expressões
da Literatura Latina. Toda a obra do poeta Virgílio veio ao encontro do propósito de
Augusto. O poema épico A Eneida, baseado na lenda da viagem do herói Enéias ao Lácio,
conecta a origem de Roma com a antiga civilização troiana; os Carmina Bucólica, também
chamados de Éclogas, exalta o amor, a alegria e dor dos que vivem no campo; as
Geórgicas, poema didático em quatro livros, ensina o cultivo da terra, o plantio das árvores,
a criação do gado e das abelhas. O poeta Horácio, por sua vez, em várias de suas Odes,
exalta o espírito patriótico.
O programa de Augusto, porém, não teve êxito, pois seus sucessores transformaram
o Principado numa ditadura imperial, cometendo as maiores barbaridades. O primeiro
Imperador foi Tibério, enteado de Augusto, que assumiu o nome de Tiberius Julius Caesar,
dando continuação no poder à família Júlia, institucionando o cesarismo. No início, Tibério
foi um general de costumes austeros, mas, aos poucos, sensível à hostilidade do Senado e
de outras forças políticas, tornou-se amargo e vingativo, estabelecendo um regime de terror.
Até que, em 29 d.C., se refugiou na ilha de Capri, curtindo uma refinada devassidão.
Seu sucessor, Cláudio I, gago e sofrendo de uma espécie de “delírio tremens”,
mandou matar a escandalosa esposa Messalina, casando-se com Agripina, que o envenenou
para que seu filho Nero o sucedesse no trono. Lucius Domitius Claudius Nero (37-68),
embora educado pelo filósofo estóico Sêneca, não conseguiu escapar da tutela perniciosa da
mãe Agripina. Após determinar o envenenamento de Britânico, o filho do seu antecessor
Cláudio, mandou matar a própria mãe e obrigou seu mestre a suicidar-se. O incêndio de
Roma, em 64, atribuído aos cristãos, segundo outra versão, foi provocado pelo próprio
Nero como inspiração para compor um poema épico, imitando Homero que tinha cantado a
destruição de Tróia.
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“A Grécia conquistada (pelas armas), por sua vez, conquistou (pela cultura) o
bárbaro vencedor (o povo latino) e introduziu as artes no Lácio selvagem.”
Roma adaptou à psique de seus habitantes e difundiu pelo mundo o conjunto da cultura que
herdara da Grécia: a mitologia, a poesia épica e lírica, o teatro, a filosofia, as artes plásticas,
as olimpíadas, a democracia. Talvez, a única contribuição propriamente latina fosse uma
compilação de leis civis e penais, o chamado Direito Romano, disciplina ainda hoje
ministrada em Faculdades de Direito. Ma o conceito de cidadania para todos e de justiça
social ficou apenas no papel, nunca foi posto em prática.
A sociedade romana, como a grega e a oriental, não deixou de ser machista,
escravagista e injusta. Os povos vencidos nas guerras eram considerados escravos; as
mulheres não tinham direitos civis; a própria sociedade romana era dividida em estamentos:
a classe dos senadores, dos cavaleiros, dos magistrados. Quem não tivesse recursos
econômicos (a plebe) era chamado de “proletário”, pois o único bem que ele podia oferecer
ao Estado era a “prole”, o filho, para servir como soldado ou como agregado a uma família
nobre, vivendo de caridade. Nos períodos de carestia, de turbulência social ou na vigência
de campanhas eleitorais o governo distribuía panem et circenses (o pão e o circo) para
esconjurar as tentativas de revolta popular. Este costume não mudou muito: hoje se oferece
ao povo carente e desinformado a bolsa família e os campeonatos de futebol, em troca dos
votos para clãs de políticos se perpetuarem no poder. Nihil novi sub sole (“nada de novo
sob o sol”): a história da exploração do povo ignaro se repete!
Num hino posterior, talvez da época de Ramsés II, podemos notar até a concepção de uma
Trindade na Unidade:
“Só há três deuses: Amon, Rá e Ftá;
Não têm semelhantes:
Quando esconde o nome é Amon,
Rá é a sua Face, Ftá o seu Corpo”.
Tal concepção de uma Trindade dentro de uma Unidade não deixa de ter uma certa
semelhança com o Hinduísmo oriental (Brahman = Criador, Shiva = destruidor e
construtor, Vishnu = mantenedor) e o dogma católico da existência de um único Deus,
distinto nas três pessoas do Pai (Criador), Filho (Redentor) e Espírito Santo (Fecundador e
Amor). Apesar desta aparente tríade monoteísta do Egito, há uma infinidade de outros
deuses, venerados em lugares e épocas diferentes, inclusive com surpreendentes teogamias,
pois os sacerdotes, para agradar os poderosos do momento, inventavam núpcias entre
divindades e faraós. Os egípcios achavam que, no início, o país era governado por deuses e
os faraós eram seus descendentes, ao longo das várias dinastias.
Outros aspectos importantes, que colocam os textos egípcios como fonte de outras
religiões posteriores, politeístas ou monoteístas, são o culto aos mortos, a crença numa vida
além do túmulo e o julgamento final. Uma doutrina escatológica foi se formando
gradativamente. No começo, a outra vida era a própria tumba, onde o defunto recebia as
oferendas. Construir mausoléus, capelas funerárias e embalsamar os corpos: tudo isso
visava a conservação dos restos mortais. Mais tarde, a partir do Novo Império, se
generalizou a crença na existência do “Amenti”, um paraíso celeste, onde os antepassados,
reunidos debaixo do governo de Osíris, viviam felizes. Mas, para ter acesso a este reino de
felicidades, o defunto era submetido a um julgamento perante uma corte de 42 juízes, que
pesavam numa balança pecados e méritos.
De outro lado, a necessidade de tornar sensível a idéia da divindade levou os
egípcios a formas de zoolatria (prestavam culto a animais: serpente, crocodilo, vaca, falcão,
gato, entre outros), de animismo (crença em espíritos que animam todas as coisas do
universo) e de totemismo (relação mística com um objeto, animal ou planta). A
antropologia considera “totem” um animal sagrado, visto como ancestral ou divindade
protetora de uma tribo ou clã. Chegamos assim a uma inversão de papéis: o animal já não é
mais servo do homem, mas seu dono. O homem, quando renuncia à sua capacidade de
raciocinar e sucumbe à idiotice de crenças em divindades, messias ou tiranos considerados
salvadores da pátria, torna-se pior do que a besta. Não dá nem para imaginar com quanto
suor e sangue de escravos foram erguidas as Pirâmides do Egito, civilização marcada por
uma profunda diferenciação de classes sociais, que vai do homem-escravo ao Faraó-deus!
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Talvez fossem essa concepção e prática de vida que levaram à decadência a religião
egípcia e o sistema faraônico de governo, que não resistiram ao confronto com a civilização
grega, bem mais evoluída, pelo culto da democracia, da filosofia, da ciência, da
historiografia, da arte teatral e literária. Durante os três séculos do domínio macedônico, o
helenismo invadiu a cultura egípcia, dando vida a um sincretismo entre as antigas
divindades do Nilo e os deuses do Olimpo. O processo de aculturação se consumou na
época do domínio latino, quando o Egito, rebaixado a colônia romana, perdeu seu fulgor e
acabou aderindo ao Cristianismo. Na fase da hegemonia bizantina, o Egito foi dominado
pelo Império Romano Cristão do Oriente. Com o advento de Maomé, a partir do séc. VII,
as povoações que habitavam nas proximidades do Nilo começaram a sofrer as influências
do Islamismo. Ao redor do ano mil, uma dinastia xiita fundou a cidade do Cairo, que se
tornou o novo centro do Egito.
do mérito) e pela libertação final do ciclo de reincarnações, atingindo o nirvana, que seria a
cessação do sofrimento pelo fim do apego e do desejo.
Os termos sânscritos sansara, karma e nirvana podem ser assim interpretados: o
universo todo é constituído pelo “ciclo” evolutivo (sansara) de nascimento, crescimento e
morte; cada ser nasce com uma “marca” (karma) determinada pelas ações passadas,
conforme a lei cósmica do plantio e da colheita; a salvaçao (nirvana) só é possível pela luta
contra o karma com o fim de interromper o sansara e pôr fim às reicarnações e remortes
para conseguir a beatidude e tornar-ase um “buda”, um iluminado, um sábio, um santo.
Mas o Budismo, como qualquer outra doutrina religiosa, tem suas contradições
internas, bem como pontos inexplicáveis para quem lança mão da razão e não da fé cega. E
isso porque, assim como os livros filosóficos do velho Bramanismo (Upanishadas),
promovidos à dignidade de textos revelados, foram elaborados em círculos diferentes,
produzindo diversas tradições, enriquecidas umas a custas das outras, também as escrituras
búdicas nasceram em círculos diversos, remodeladas e codificadas como “palavras de
Buda”, ao longo do tempo, pelo concerto da comunidade de seus fiéis.
Na verdade, nem o Grande Buda, Sidarta Gautama, conseguiu explicar pontos
nevrálgicos de sua doutrona. Negada a transcendência, o nirvana seria a dissolução da
personalidade como uma gota de água no oceano ou a alma imortal se reintegrando ao
Cosmo? Ou seria apenas o livramento da dor, um pulo no nada existencial? Se a alma é
puro complexo de sensações e pensamentos, a morte do corpo seria seu aniquilamento: o
nirvana, portanto, seria limitado apenas à ataraxia, a ausência de preocupaçãoes neste
mundo. O completo desapego está exemplificado num texto do primitivo budismo. O
marido, resolvido a entrar na ordem religiosa, abandona mulher e filho e argumenta com a
ex-esposa:
“Ainda mesmo que lançasse o filho aos chacais, ó miserável,
não me convencerias a voltar, pelo amor do nosso filho”.
“Os Budas, que são a paixão encarnada, adotaram todas as criaturas como se
fôssem eles próprios”.
Os Avestas, os livros sagrados do antigo povo persa, registram uma civilização que
remonta ao século XX a.C. A religião, que passou a se chamar Zoroastrismo, foi
codificado pelo filósofo persa Zaratustra, em meados do séc. VI a.C. Como lembramos
acima, ao redor do ano 2000 a.C., o Norte da Índia foi invadido por povoações semi-
nômades, originárias da Rússia, da Pérsia (atual Irã) e da Ásia Central. O povo ariano, cuja
remota origem remonta a cinco mil anos a.C., talvez precedesse o egípcio no alcance de um
certo grau de civilização. Os antigos Árias, que falavam uma língua (extinta há muito
tempo) considerada a mãe de vários idiomas indo-europeus (sânscrito, grego, latim,
alemão, entre outros), já tinham regras sociais, éticas e religiosas, chegando a dividirem a
sociedade em castas.
O próprio nome arya, que em sânscrito significa “nobre”, indicava uma classe
social. Sua época de esplendor aconteceu durante as dinastias arquemênidas (550-330),
cujo mais ilustre descendente, o rei persa Dario II, venceu Medas e Babilônios, que tinham
dominado os Assírios. Alexandre Magno, da Macedônia, herdou o imenso domínio dos
arquemênidas (330 a.C.) e estendeu seu império sobre as cidades gregas e o Egito,
chegando a conquistar boa parte do território indiano. Ele, que foi educado pelo filósofo
Aristóteles, divulgou a cultura grega pelas regiões ocupadas, dando origem ao Helenismo,
que acabou suplantando civilizações mais primitivas, fundamentadas predominatemente em
crenças religiosas.
Os Avestas narram que o deus Ormuz, cerca de 16 mil anos atrás, apareceu ao
profeta Yima, também chamado de Ram (na epopéia hindú Ramayama, o herói se chama
Rama), revelando-lhe sua história e doutrina. Ormuz teria criado o mundo em seis etapas
(olhem a semelhança com o livro bíblico do Gênesis!). A vida vegetal, animal e humana
seria regida pelos princípios do Bem e do Mal, ambos emanações do deus eterno. A luta
entre os espíritos bons e os espíritos da maldade duraria 12 mil anos, com a vitória final das
forças do bem. Os justos, purificados pelas boas ações, conquistariam o paraíso. Essas
crenças têm muito a ver com o Budismo.
O pensamento reflexivo, que iniciou na Grécia com os filósofos pré-socráticos, deu
início à primeira forma de humanismo, desligando filosofia, ciência e arte da religião. A
não conformação com a morte é vista sob outro foco. O filósofo Heráclito, que viveu em
Éfeso, cidade grega da Ásia Menor, no séc. VI a.C., quase na mesma época de Buda e
Zaratustra, ensinou que a realidade está em constante movimento, renovando-se
continuamente. Explica isso pela bela imagem do homem que não consegue banhar-se por
duas vezes nas mesmas águas de um rio. A concepção do pantarrei (tudo flui) de Heráclito
se aproxima do sansara (a trasmigração) de Buda. Mais tarde, cientistas aprofundarão os
conceitos de movimento e de evolução, revolucionando a cosmologia (o heliocentrismo de
Copernico, Newton e Galilei) e a biologia (A Origem das Espécies, de Darwin).
A contribuição dos dois maiores filósofos da antiguidade, Platão e Aristóteles, dos
quais já falamos no capítulo anterior, é fundamental para entendermos a relação entre a
alma e o corpo. A “teoria das idéias” de Platão está bem próxima da doutrina de Buda por
acreditar na existência das almas separadas do corpo, que é visto como uma prisão do
espírito, e por achar que “o saber é um recordar”. Já Aristóteles, contestando seu mestre,
nega a separação entre a alma e o corpo, considerando o ser humano constituido de matéria
(ilê) e de forma (morfê). Este conjunto, chamado de ilemorfismo, é indivisível, pois a alma
é a forma, o elemento espirítual (inteligência) do corpo. Com a morte da parte material dá-
se também a morte do espírito, não podendo existir um corpo humano sem o
funcionamento de seu cérebro. Corpo e alma são vistos como se fossem as duas faces de
35
uma mesma página, distingüíveis, mas inseparáveis, usando a imagem de que se serviu o
ligüista suiço Saussure para explicar a diferença entre significante e significado. Sendo
assim, a doutrina budista da reincarnação só pode ser aceita por ato de fé, carecendo de
qualquer argumento lógico.
O próprio conceito da “ataraxia”, o fundamento teórico da prática da meditação,
acompanhada pelos exercícios de yoga, característica da espiritualidade indiana, não difere
muito da apatéia de filósofos gregos. O Estoicismo, iniciado no séc. IV a.C. por Zenão de
Cítio, ensinava que o Universo é regido pelo Logos, a Alma do mundo, um todo racional
que envolve todos os seres. Portanto, todos devem viver conforme a lei universal da Razão,
que rege o macrocosmo e o microcosmo. As virtudes cardeais (razão, coragem, justiça e
autodisciplina) têm por base o conhecimento e, portanto, o culto da filosofia é
indispensável. O ser humano chega à sabedoria e se aproxima da felicidade quando, pela
prática da autodisciplina, alcançar a “apatia”, o estado psicológico da insensibilidade
perante a dor ou o prazer, não sendo vítima de paixões. O desapego confere ao indivíduo
um estado de tranqüilidade e de auto-suficiência, pois o livra da dependência alheia com
relação à sobrevivência ou à satisfação de necessidades físicas ou emocionais.
Tecemos tais relações para evidenciar a influência entre teologia e filosofia, que
constituem o caldo cultural de regiões ocidentais e orientais, assim como entre as várias
religiões que precederam o advento do Cristianismo. No próximo capítulo, veremos como o
Código Hamurábi, un conjunto de leis e normas da Babilônia do séc.XVIII, irá influenciar a
composição da Torá judaica. Nada impede pensarmos que estes textos, junto com o Livro
dos Mortos, que foi produzido no Egito quase na mesma época a que remonta o Pentateuco
(séc.XII), cujo pressuposto autor, Moisés, teria vivido aproximadamente durante a dinastia
de Ramsés II, teriam influenciadas as Escrituras persianas e indianas.
O Budismo, portanto, a última das grandes religiões anteriores ao Cristianismo,
pode ser considerado uma mistura de vários credos, ressalvando a peculiridade do espírito
oriental. Observamos, apenas como exemplo, a semelhança entre o Decálogo de Moisés e
o Pentálogo de Buda, cujos cinco preceitos são: 1) não roubar; 2) não cometer adultério; 3)
não mentir; 4) não assassinar; 5) não tomar bebidas alcoólicas. Trata-se de normas de vida
que transcendem qualquer religiosidade, constituindo os fundamentos do viver em
sociedade, pois implicam o respeito para com nossos semelhantes.
O Budismo é a religião principal não somente da Índia, mas também da China e do
Japão. Na China, o sentimento religioso encontra-se registrado no antigo I Ching (Livro das
Mutações), cuja escrita foi iniciada a partir do séc. XV a.C., após uma longa tradição oral.
No século VI, quase contemporaneamente ao aparecimento de Buda na Índia, surgiram dois
grandes sábios chineses: Confúcio (551-479) e Lao Tsé, o fundador do Taoísmo. Confúcio,
também chamado o Venerável Mestre Kung, antecipou, de alguma forma, o pensamento do
filósofo grego Sócrates, que irá ensinar a conhecer-se a si próprop (gnose te ipsum):
passou à história como “o santo do século”, também chamado de novo Jesus Cristo por ter
morrido pregando o amor entre os homens: foi assassinado por um extremista hindu, que
tinha o ódio no coração.
A Doutrina Espírita comunga com o Cristianismo, além da crença num Deus
transcendental, o conceito de moral fundamentado no amor ao próximo. Reafirma a
regra universal de conduta que já se encontra, como veremos, no Código de
Hamurábi, nos mandamentos de Moisés e na legislação de todas as grandes religiões.
Esta moral é ensinada pelos Espíritos “superiores”, cuja função é recordar e
complementar o que Jesus Cristo ensinou. Mas o kardecismo se distingue
fundamentalmente do cristianismo pela negação da divindade de Jesus (Ele seria
apenas o maior Espírito Superior reencarnado) e do apocalipse: a lei cósmica do
plantio e da colheita, do prêmio às almas boas e do castigo aos maus, não se realiza
no Juízo Final, mas através das várias encarnações neste mundo.
Do ponto de vista filosófico ou científico, a doutrina espírita não tem nenhuma
sustentação, pois nem a razão, nem a ciência conseguem atestar a existência das
almas separadas dos corpos, neste mundo ou num outro. Quanto a fenômenos para-
normais, atribuídos a forças mediúnicas, não porque a ciência ainda não consegue
explicá-los completamente somos autorizados a admitir uma intervenção sobrenatural.
É preciso lembrar que os gregos primitivos, não conhecendo a origem dos raios,
pensavam que fossem setas de fogo de Júpiter, lançadas para punir os humanos
faltosos! Acontece que o inconsciente pode levar algumas pessoas, dotadas de um
alto grau de percepção (mediunidade), a fazer coisas extraordinárias, aparentemente
até milagrosas, sem que a autoria tenha que ser atribuída a entidades sobrenaturais.
Há indivíduos que, num estado alterado de consciência, dizem e fazem coisas
inacreditáveis, chegando a manifestações de xenoglossia: falam linguagens
estrangeiras, desconhecidas, arcaicas, nunca ouvidas antes por nenhuma pessoa
presente. Fenômenos de animismo, assim como os milagres religiosos, são mistérios
que a ciência ainda não conseguiu plenamente desvendar. Shakespeare já disse que
“há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”,
mas isso não nos autoriza a acreditar na existência de um mundo transcendental. Allan
Kardec pode ser considerado mais um profeta, um homem que, num certo momento
de sua vida, começou a se achar um “iluminado”, que veio ao mundo para salvar a
humanidade. No capítulo VII da Introdução do seu Livro dos Espíritos, ele afirma:
Ora, depois de mais um século e meio, o Espiritismo ainda não se afirmou como
ciência, não passando de uma crença semelhante ao antigo Budismo. O grande mérito
de Allan Kardec foi o de que, diferentemente de outros profetas, como Moisés ou
Maomé, não apelou pela violência para expandir seu credo, pregando o amor e o
surgimento de uma fraternidade universal, respeitando o sentimento religioso de todas
as etnias. No seu túmulo, lemos:
Lutar pela evolução do ser humano, estando sempre disposto a adequar a fé às novas
conquistas da ciência, é um dos aspectos positivos (junto ao repúdio de qualquer forma de
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violência) que diferencia o Espiritismo das três grandes religiões monoteístas: Judaísmo,
Cristianismo e Islamismo, todas atreladas a dogmas fixos, imutáveis, impostos pelas
autoridades eclesiásticas.
No Brasil, onde 40 milhões de cidadãos declararam cultivar o Espiritismo, o mais
célebre divulgador da Doutrina Espírita foi Francisco Cândido Xavier (1910-2002),
médium de Uberaba-MG, vulgarmente conhecido por Chico Xavier. Ele publicou mais de
400 livros psicografados, entre os quais relevamos Queda e ascensão da Casa dos
Benefícios. Esta obra, conforme a crença, foi-lhe ditada pelo espírito Bezerra de Menezes,
que deu nome a vários hospitais psiquiátricos em muitas cidades do Brasil. Adolfo Bezerra
de Menezes Cavalcanti (1831-1900), nascido no Ceará e formado médico no Rio de
Janeiro, proclamou sua adesão ao Espiritismo em 1875 e dedicou sua vida à assistência dos
pobres, passando à história como o apóstolo da caridade. Além da sua função social, o
Kardecismo no Brasil visa melhorar a vida interior de cada um. Independentemente da
crença na existência de almas fora de um corpo, de sua transmigração e de sua
comunicação com os seres vivos, o Livro dos Espíritos pode ser aceito como uma boa
leitura de auto-ajuda.
Evangelhos canônicos, chamada de Vulgata, foi supervisionada por São Jerônimo (342-
420). Os demais textos do Novo Testamento foram reunidos num único volume apenas no
séc. VI.
Este trecho encontra-se no cap. 1° do Êxodo, onde o autor bíblico descreve a inveja
dos egípcios perante a prosperidade dos hebreus no Egito e a conseqüente perseguição
étnica, que culminou com a expulsão do povo judaico. Um recém-nascido, filho de um
casal da tribo de Levi, o terceiro filho de Jacó e Lia, foi abandonado nas águas do rio Nilo.
Uma filha do Faraó, enquanto tomava banho, ouviu o choro e avistou a criança. Apiedou-
se, então, e o adotou como filho. A história de Moisés salvo das águas é pouco original,
pois tem precedente (a lenda de Sargon, rei da Babilônia, 2300 a.C, metido num cesto de
vime e abandonado nas águas do rio Eufrates) e subseqüente (o nascimento dos gêmeos
Rômulo e Remo, os fundadores de Roma, no séc. VIII a.C., tirados do rio Tibre por uma
loba e depois criados por pastores). Adulto, Moisés, ao defender um hebreu chicoteado por
egípcios, comete assassinato e foge para a cidade de Madian, onde se casa com a filha de
41
“Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó...vai, envio-te ao
Faraó, para que tire do Egito o meu povo, os filhos de Israel” (Ex., 3).
Moisés retorna à corte do Faraó e revela ser o enviado do deus de Israel para salvar seu
povo. O Faraó recusa prestar homenagem a Jeová e a situação dos hebreus no Egito se
agrava, passando a serem escravizados. Para obrigar os egípcios a libertar o povo hebreu,
Deus envia dez pragas (as águas convertidas em sangue, as rãs, os mosquitos, as moscas
venenosas, a peste dos animais, as úlceras, o granizo, os gafanhotos, as trevas, a matança
dos primogênitos). A décima praga, além de ser a mais cruel, é a mais importante por
instituir a Páscoa hebraica. Por ordem divina, Moisés convoca os anciãos do povo de Israel
para imolarem carneiros, embeber ramos de hissope (planta medicinal) no sangue e aspergir
as ombreiras das portas dos israelitas, com o fim de poupá-los do genocídio que iria
acontecer:
O Faraó, primeiro deixou partir, depois perseguiu os hebreus até o Mar Vermelho, onde se
deu o milagre da secagem das águas até a passagem dos judeus. Logo em seguida, as águas
se reuniram, afogando o exército egípcio. Enfim, os filhos de Israel chegam ao deserto do
Sinai, onde se dá a revelação mais importante do Velho Testamento: o Pacto de Aliança
entre Jeová e o povo de Moisés, com a promulgação das Tábuas da Lei, contendo os Dez
Mandamentos. Tendo como texto de base o cap. 20 do Êxodo (Bíblia Sagrada, ed.
Missionários Capuchinhos, Lisboa, 1974), apresento uma síntese do Decálogo atribuído a
Moisés, tecendo algumas considerações a respeito.
As Tábuas da Lei:
“O Senhor pronunciou, então, todas estas palavras: “Eu sou o Senhor, teu Deus, o
que te fez sair do Egito, de uma casa de escravidão. Não terás outro Deus além de Mim.
Não farás para ti imagens esculpidas, nem qualquer imagem do que existe no alto dos
céus, ou do que existe em baixo, na terra, ou do que existe nas águas, por debaixo da terra.
Não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto, porque Eu, o Senhor, teu Deus,
sou um Deus cioso que pune a iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e à quarta
geração daqueles que me ofendem, e uso de misericórdia até à milésima geração para com
os que Me amam e cumprem os Meus Mandamentos”. Eis, a seguir, os dez mandamentos
resumidos:
1° Eu sou o Senhor, teu Deus. Não terás outro deus além de mim. Não farás ídolos.
2º Não tomarás em vão o nome do Senhor, teu Deus.
3º Lembra-te do dia de sábado para santificá-lo.
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Os primeiros três mandamentos podem ser agrupados num único item, pois visam
estabelecer relações entre o homem e Deus, enquanto os outros sete estipulam as normas de
vida dos homens entre si. A referência ao Egito, onde os hebreus haviam servido como
escravos, deixa claro que Moisés queria mudar o tipo de religiosidade que fazia do Faraó
um deus, ao qual eram dedicadas estátuas e templos com o fim de reforçar seu poder. O
legislador hebraico parece não aceitar o sistema teocrático, que juntava o poder político e
religioso numa única pessoa, nem os costumes politeístas, praticados no Oriente Médio, na
sua época. Por isso, reuniu tribos aparentadas entre si, dando-lhes unidade política e
religiosa.
O grande mérito de Moisés foi a organização da nação israelita a partir do culto
atávico de tribos do Sinai ao deus Javé. O nome de YHWH,“Javé” (Yaveh ou Jeová são
apenas variantes), conforme atestam estudos recentes, já era conhecido na Babilônia, a
partir do ano 2.000, portanto, muito antes de Moisés, anterior até à época do patriarca
Abraão. Este nome era tão sagrado que não devia ser pronunciado, sendo substituído pela
palavra “Adonai” (Senhor). É lícito supor que Moisés não foi escolhido, mas foi ele a
escolher essa divindade para conferir um padrão ético ao povo judaico. Na verdade, Moisés
pregou uma monolatria e não um monoteísmo. Ele não negou a existência de outros deuses,
mas ordenou que o culto externo fosse prestado somente ao deus do patriarca Abraão. A
idéia do monoteísmo, a existência de um deus único, irá tomar consistência mais tarde, na
época dos Profetas.
A proibição da adoração de imagens pintadas ou esculpidas visava evitar o
politeísmo, muito comum na época, quando os deuses eram representados por ídolos, para
que o povo pudesse adorá-los. Entende-se que os antigos hebreus, como outros povos
daquela época, não tinham evolução espiritual suficiente para adorarem um Deus invisível.
Mas o segundo mandamento criou controvérsias que persistem até hoje. Em primeiro lugar,
esta passagem entra em contradição com outros trechos da Bíblia, onde Jeová ordena que se
façam imagens. Se o próprio Moisés afirma que Jeová fez o homem a sua imagem e
semelhança, ele admite certa configuração da divindade. De outro lado, esse preceito
bíblico poderia valer apenas para o Velho Testamento, pois o Novo relata a vinda do Filho
de Deus, Jesus Cristo, encarnado numa figura humana e adorado na forma de Crucifixo.
Sem falar do culto que os cristãos prestam às imagens da Virgem Maria e de todos os
Santos da Igreja Católica. Seria, então, uma nova forma de politeísmo? E como admitir que
um mandamento tenha vigor apenas num tempo e num lugar se, para ser considerado
divino, um preceito deve ter os requisitos básicos da imparcialidade, universalidade e
atemporalidade?
A falta de qualquer uma das características apontadas acima nos leva a deduzir que
a lei não provém de Deus, mas do homem que faz uso do Seu nome para impor a sua
vontade. É o que faz Moisés servindo-se do nome de Jeová, não “em vão”, mas para
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legitimar suas Tábuas da Lei ao povo hebraico. Não nomear o nome de Deus em vão não
implica apenas na condenação da blasfêmia (ofensa a Deus pela palavra), do sacrilégio (por
atos) ou de qualquer outro tipo de insulto à religião ou de ultraje a fé numa divindade, mas
também na utilização do nome de Deus para impor ideologias ou conseguir bens materiais.
Isso vale especialmente para igrejas ou seitas religiosas que se servem do nome de Deus
para explorar a boa fé de seus seguidores, prometendo recompensas materiais ou espirituais
em troca do pagamento de dízimos ou da exigência de doações.
Também o 3° mandamento, que ordena santificar o sábado, deve ser entendido não
como um preceito divino, mas uma necessidade fisiológica de qualquer ser vivo: o direito
ao repouso, ao descanso, para recuperar as energias gastas durante vários dias de trabalho,
evitando-se assim o esgotamento físico e mental. O dia de sábado ainda continua sendo
considerado sagrado pelos judeus, enquanto os cristãos passaram a respeitar o domingo (do
latim dominus = Senhor) como dia do Senhor, acrescentando outros dias festivos. A
necessidade do descanso semanal é apenas uma característica humana impropriamente
atribuída à divindade. Aliás, tudo o que está escrito no Gênesis sobre os trabalhos de Jeová
na criação do mundo em seis dias é pura fantasia de Moisés ou de outro escrivão que
redigiu o livro pressupostamente sagrado. Deus que, por definição, é onividente, infalível e
eterno, estando, portanto, acima do tempo, não poderia afirmar coisas que seriam
posteriormente desmentidas pela ciência humana, como demonstra a teoria da evolução, da
qual falarei um pouco num próximo capítulo.
O 4º mandamento ordena honrar o pai e a mãe. Mais do que uma ordem divina,
trata-se de uma exigência natural. Os pais nos dão vida, assistência, educação, amor. Se
eles cumprirem o dever do exercício da paternidade, terão o direito de exigirem gratidão,
respeito, afeto. Enfim, trata-se de uma reciprocidade, com base no princípio da relatividade:
o pai não nasce antes do filho, pois ele adquire o status da paternidade no mesmo instante
em que o filho vem à luz. Portanto, o 4º mandamento deveria ser complementado pela
obrigação dos pais honrarem seus filhos, também. Infelizmente, o Velho Testamento é
essencialmente patriarcalista, como a maioria das sociedades primitivas ou pouco
desenvolvidas. O patriarca bíblico, como o pater famílias da Roma antiga, o capo di tutti i
capi da máfia siciliana ou o chefe de famílias judaicas e muçulmanas, parece ter poder
absoluta sobre os filhos, exigindo uma obediência cega, até na escolha da profissão ou de
um parceiro para o matrimônio. Que dizer, então, da irresponsabilidade de pais e de mães
que põem crianças no mundo sem terem condições materiais e espirituais para sua criação e
educação. Há mães que abandonam crianças recém nascidas e pais que estupram ou
prostituem as próprias filhas. A tais progenitores os filhos devem respeito? Se se faltar ao
dever, como exigir direitos?
Os restantes seis mandamentos podem ser reduzidos a um só, ao 7º: Não Roubar,
que implica no amor ao próximo. Com efeito, “não matar”, quer dizer, respeitar a vida do
seu semelhante; “não cometer adultério” equivale a não desonrar a mulher do outro; “não
dizer falso testemunho” é não faltar com a verdade, prejudicando um seu semelhante; e o
último mandamento, bem abrangente, proíbe a cobiça de qualquer bem alheio. O preceito
de não roubar, portanto, pode ser considerado o mandamento maior, que deveria sustentar a
nossa vida social. Quem for educado a não roubar respeitará qualquer bem que não lhe
pertença, seja privado ou público. A honestidade é o requisito básico para a construção de
uma verdadeira cidadania. Já pensou se os políticos não roubassem tanto, se não houvesse
corrupção e impunidade? Seria o Eldorado, o paraíso sonhado neste mundo!
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A doutrina de Moisés
Os dez mandamentos, como outras leis de Moisés que constituem a Torá hebraica, na
sua essência, não é matéria original, nem coerente. Portanto, não pode ser considerado
objeto de inspiração divina. Eis alguns motivos:
1) O Decálogo é a realaboração de uma coletânea de leis existentes antes de Moisés.
Trata-se do famoso “Código Hamurábi”, que exerceu grande influência na Palestina e em
todo o Médio Oriente. Hamurábi (1793-1759), sexto rei da 1ª dinastia de Babilônia, ocupou
outros reinos da Mesopotâmia e se tornou famoso por ter gravado numa coluna tumular
rochosa um código de direito consuetudinário. Também no Livro dos Mortos, do qual os
antigos egípcios colocavam alguns trechos nos sarcófagos para orientar as almas dos
defuntos, encontramos normas morais semelhantes aos preceitos de Moisés. Os estudiosos
afirmam que, anteriormente a Moisés e na Ásia Meridional, havia muitas lendas sobre
tábuas celestes que haviam descidas miraculosamente à terra e comunicado conhecimentos
secretos de caráter sagrado.
2) A Torá hebraica é um complexo de leis (agrária, familiar, penal, ritual), oriundo de
costumes milenares e de caráter teocrático, de forma que a transgressão de uma lei civil era
considerada um pecado contra Deus. Ora, sua codificação pressupõe um trabalho de
desenvolvimento que começou antes e continuou depois de Moisés. A disseminação de
normas éticas ao longo do Pentateuco e de outros livros, especialmente os didáticos (Jô,
Salmos, Eclesiastes) prova que não houve “revelação” divina instantânea, diretamente
dirigida a um Patriarca num tempo e num espaço delimitado.
3) A contradição sobre o castigo divino, apenas para darmos um exemplo entre as
inúmeras incongruências que podem ser relevadas no Velho e no Novo Testamento, é outro
fator que nos induz a não acreditar na existência de uma Palavra divina revelada ao homem.
Repetimos a proposição do Gênesis (20, 5):
“Eu, o Senhor, teu Deus, sou um Deus cioso que pune a iniquidade dos pais nos filhos,
até à terceira e à quarta geração dos que Me ofendem”.
“Os pais não serão mortos pela culpa dos filhos, nem os filhos pela culpa dos pais:
cada um será morto por seu próprio pecado”.
Em vista de que se, conforme afirmam rabinos e exegetas cristãos, Moisés é o autor dos
dois Livros, é lícito perguntar qual dos dois textos bíblicos devemos considerar verdadeiro
e, portanto, sagrado. Evidentemente, optaremos pela segunda versão, pois seria um
absurdo supor que Deus seja menos justo do que um juiz humano que não transfere a culpa
para um inocente. O primeiro texto, então, além da crueldade, atesta a mentira de Moisés,
que enganou seu povo ao inventar uma revelação divina que nunca existiu.
4) O tratamento que Moisés dá à mulher é próprio de uma cultura (melhor dizer
“barbárie”!) primitiva e machista, incompatível com uma inspiração divina. O profeta, no
décimo mandamento, considera a mulher como um “objeto”, igual à casa do próximo, ao
seu touro, ao seu jumento, ao seu escravo (mais um absurdo: um deus admitiria a
escravidão humana?), que não deve ser “cobiçado”. O verbo utilizado nos enseja pôr em
evidência mais uma estupidez: como um legislador pode proibir até o “desejo”, o ato do
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pensamento, algo que é incontrolável por natureza, proibindo-se não apenas o fazer, mas
também o querer e o pensar?
5) É mais fácil entender que a “teofania” (aparição de Deus) do Sinai foi imaginada por
Moisés para dar sustentação ideológica aos preceitos que se encontram no Decálogo, como
a outras prescrições religiosas. Se Moisés dissesse: “eu” ordeno que o povo adore um único
deus, que não mate, roube ou peque contra a castidade, evidentemente, seu discurso não
teria a aceitação que teve. Colocando Jeová como sujeito da enunciação, o Patriarca dava
credibilidade ao seu discurso, pois seria a palavra de Deus e não do Homem. Esta é a
postura ideológica comum a todos os “profetas”, os homens que fingiram ou realmente se
acharam inspirados por alguma divindade ao longo da história da humanidade. Se não fosse
assim, ficaria difícil entender porque Deus privilegiaria o povo hebreu, confiando só a ele
revelações sobrenaturais, em certa época e num determinado espaço, prejudicando os
demais povos com a privação da luz e do socorro. Talvez seja deficiência mental minha,
mas não consigo conceber um Deus faccioso, cruel, injusto! Evidentemente, esta descrição
da onipotência, do arbítrio, da vingança ilimitada convém mais a um imperador assírio,
babilônico ou persa daquela época do que a uma divindade, sendo a maior prova de que a
religião é criação do homem, espelhando a mundividência relativa a um tempo e espaço
circunscritos.
6) A moral judaica é incompatível com um Deus imaginado, pela sua própria essência,
como um ser justo e misericordioso: sacrifícios de sangue humano (Abraão pronto a imolar
seu filho Isaac) e de animais (o cordeiro na comemoração da Páscoa); obrigação do corte
do prepúcio; sexo incestuoso (Lot seduzido por suas filhas); poligamia e subjeção das
mulheres; a prática da escravidão; a transferência da culpa individual para a coletividade.
Dir-se-á que os princípios éticos foram ministrados de acordo com as condições intelectuais
e psíquicas daquela época. Mas tal concepção de Deus não é “demasiadamente humana”,
como diria Nietzsche? Como preceitos limitados no tempo e no espaço puderam se tornar
dogmas de fé, apresentados como verdades eternas e absolutas?
A Bíblia não fala apenas da história dos judeus (Velho Testamento) e do começo do
cristianismo (Novo Testamento), mas também das origens da Terra e do Universo. A idéia
de “início” dos tempos está contida na etimologia do primeiro livro: Gênesis tem como
radical o termo “gene” (= nascimento), que deu origem a uma família de palavras
pertencentes a línguas antigas e modernas do Oriente Médio e do Ocidente: genética,
gineceu, ginecológico, genealogia etc. Enquanto o livro do Êxodo pode ser considerado
uma teofania (a “fala” de Deus ao homem), o Gênesis é uma Cosmogonia (a “luta” entre os
elementos do Universo). Podemos dividir o Gênesis em duas partes: a Criação do Mundo e
de seus primeiros habitantes (1-11) e a História dos Patriarcas (12-50).
“No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra era informe e vazia. As trevas
cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas.
Deus disse: “Faça-se a luz”. E a luz foi feita... Façamos o homem a nossa
imagem...Concluída toda a obra, no sétimo dia Deus repousou”.
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nos legou? A inspiração divina? Mas o poeta grego Homero, ao escrever a Ilíada e a
Odisséia, também ele se sentiu inspirados pela divindade:
Este primeiro verso do poema A Ilíada deixa claro que o poeta se considera um
intermediário entre a divindade e a humanidade, um “vate”, um profeta que revela um saber
proveniente de uma esfera superior. O mesmo diga-se com relação ao romano Virgílio,
autor da Eneida, e do italiano Dante Alighieri, que escreveu a Divina Comédia. O
grandíssimo poeta florentino é o enviado de Deus que, acompanhado pelo pagão Virgílio e
pela sua angelical amada Beatriz, revela aos homens o que se passa no Inferno, no
Purgatório e no Paraíso, conforme a doutrina católica medieval e a realidade histórica da
Florença da época do Autor. Por que considerar, então, os escritos de Moisés “inspirados”
por uma divindade e os dos outros poetas épicos desprovidos de sacralidade, se, do ponto
de vista imaginativo e educativo, Homero e Dante são de longe bem superiores a qualquer
autor de textos bíblicos ou alcoraicos? A única figura humana verdadeiramente sublime é
Jesus Cristo, mas, infelizmente, ele não escreveu nada. O que sabemos dele foi redigido por
intermediários, muito tempo depois de sua morte.
A Arca de Noé
Adão, que tinha desobedecido a Deus, gera o filho Caim, que acaba matando o
irmão Abel por ciúme, pois o Senhor gostava mais do churrasco do rebanho de Abel do que
dos legumes oferecidos por Caim. Com tais ancestrais invejosos e fratricidas, não temos
porque estranhar a continuada matança dos homens entre si, ao longo dos séculos! Talvez
as lendas sobre Caim e Abel estejam ligadas à passagem da agricultura para a pecuária, ao
longo da evolução da civilização hebraica.
Adão, que morreu com 930 anos, teve outros filhos. A linhagem de Set deu origem
à série dos dez Patriarcas, anteriores ao Dilúvio, que constituem a ponte, sustentada por dez
largos arcos, que liga Adão a Noé. Destaque para o patriarca Matusalém, que viveu 969
anos, vindo a ser o avô de Noé que, com 500 anos (e sem Viagra!) gerou Sem, Cam e Jafet.
Essa cronologia bíblica gera muita suspeita, visto que os povos primitivos têm uma média
de vida bem inferior à dos civilizados. Veja-se a grande mortalidade no meio das
povoações indígenas, desprovidas de assistência médica, odontológica e hospitalar.
Sempre conforme a Bíblia, depois de uma época de heroísmo e grandiosidade, a
humanidade se corrompeu e Deus se arrependeu de ter criado o mundo, determinando sua
destruição. Quis salvar apenas o único homem justo, Noé, a quem deu a ordem de construir
um enorme barco, onde pudesse abrigar sua família e um casal de cada espécie de animais e
de plantas. Aí, abriu as torneiras do céu e mandou chover torrencialmente durante quarenta
dias. As águas cresceram e levantaram a arca, fazendo-a flutuar, enquanto todas as outras
criaturas desapareceram. Passado o dilúvio, Noé construiu um altar ao Senhor e ofereceu
holocaustos. E Deus estabeleceu um Pacto de Aliança com Noé e sua descendência,
prometendo nunca mais castigar a humanidade. E selou este acordo com a criação do Arco
Íris.
Também o episódio bíblico do Dilúvio não é original. Nas mitologias antigas há
várias formas de dilúvio descritas como castigo de Deus. Essa lenda mesopotâmica deve ter
tido origem em inundações do rio Tigre ou Eufrates. Provavelmente, foi aproveitada por
Moisés ou outro escritor bíblico para explicar a desordem cósmica: primeiro, Adão revolta-
se contra Deus (humanidade vs divindade); depois, Caim contra Abel ( homem vs homem);
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enfim, as águas contra Noé (força da natureza vs homem). O Dilúvio é um dos pontos
centrais do Velho Testamento, porque representa a mediação das três Alianças que o Deus
bíblico teria estabelecido com o povo hebreu, estando no meio entre a Aliança que Deus fez
com Abraão (escolha do Povo) e a que fará com Moisés (conquista da Terra Prometida).
Certo é que o episódio bíblico do dilúvio está ligado à memória mítica de povos primitivos
assustados por imensas inundações ocorridas quando se formaram o Mar Negro e o
Mediterrâneo.
A Torre de Babel
Após o dilúvio, os três filhos de Noé, Sem, Cam e Jafet, se dispersaram, dando
origens a várias tribos, que acabaram falando dialetos diferentes. Para explicar a origem da
diversidade de línguas, o narrador bíblico reporta a lenda da Torre de Babel: Deus teria
punido o orgulho dos homens que, pela construção de uma torre altíssima, queriam alcançar
o céu. O Senhor, simplesmente, confundiu a língua dos pedreiros. A aspiração humana para
o alto se encontra também no mito grego de Ícaro, que alçou vôo por cima do mar com
duas asas de cera, que o sol derreteu. O fato histórico que está por baixo da narração bíblica
é que na cidade de Babel (outro nome de Babilônia, então centro comercial do Oriente),
chegavam mercadores de vários países, que falavam diferentes idiomas.
A verdade é que os primeiros onze capítulos do Gênesis, que acabo de resumir,
constituem a pré-história da cultura judaica. A língua hebraica, em que foi redigida o Velho
Testamento (descontando alguns trechos em aramaico), pertence ao ramo cananeu do grupo
semítico. Sua origem remonta ao séc. X a.C., época em que se encontram registrados os
primeiros documentos históricos, poéticos e litúrgicos. Tudo o que aconteceu anteriormente
foi transmitido pela tradição oral e, só bem mais tarde, pessoas alfabetizadas começaram a
pôr por escrito histórias que ouviram de seus antepassados. Se a isso acrescentarmos o
fato de que os livros bíblicos tiveram vários redatores e em épocas diferentes, não é difícil
entender a causa de tantas repetições, contradições, inverdades.
região do Sinai, adoravam Jeová e haviam vivido sob o domínio egípcio, talvez tenham tido
a impressão de que haviam sido libertados do Egito, mas sem sair de sua própria terra.
Seguindo de perto o relato bíblico, conforme o Gênesis: Abraão casou com Sara,
mas não teve filhos. Por comum acordo do casal, o patriarca engravidou a escrava egípcia
Agar, que deu à luz a Ismael. Deus apareceu a Abraão e fez com ele uma Aliança: ele seria
o pai de um menino que nasceria, milagrosamente, do ventre estéril de sua velha esposa,
cuja descendência dominaria o mundo. Abraão e Sara, então, geraram Isaac, que se tornou
o pai de todos os judeus, enquanto Ismael daria origem ao povo muçulmano.
Deus pede a Abraão o sacrifício de seu filho único (Ismael, por ter sido gerado por
uma escrava, não era considerado seu filho!) para testar sua fidelidade. O patriarca,
obedecendo à voz do Senhor, ata as mãos e os pés de Isaac, coloca-o sobre o altar e pega
num facão para degolar a criança. Mas um anjo intervém e substitui o menino por um
carneiro para o sacrifício. Este episódio deixou uma mancha indelével na história do Velho
Testamento. É inconcebível que um pai, seja ele deus ou homem, tenha a coragem de
cometer um ato tão cruel! Vergonhoso é para quem ordena (Deus) e para quem obedece
(Abraão). Pior é perceber que o patriarca conhecia muito bem o procedimento do sacrifício
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sangrento: prepara a lenha para o holocausto, amarra o garoto sobre ela, levanta a faca
pronto a matar a criança como um animal.
E esse não é o único caso na história das religiões. Lembro apenas o sacrifício de
Ifigênia: estamos na Grécia do séc. XII a.C. (quase na mesma época do bíblico Moisés), no
início da Guerra de Tróia. Agamenão, o poderoso chefão da coligação grega, se vangloria
de ser melhor caçador do que Diana. A deusa, então, se vinga exigindo o sacrifício de
Ifigênia, a jovem filha de Agamenão. O pai, obedecendo à vontade divina, manda vir a filha
da cidade de Micenas, com o pretexto de querê-la casar com o herói Aquiles. Mas ela
encontra o altar, não preparado para o matrimônio, mas para o sacrifício humano. E
também aqui, a divindade, no último instante, se apieda da jovem, substituindo-la por uma
cerva. O poeta latino Lucrécio, ao comentar este episódio da mitologia grega na sua obra
De Rerum Natura (Sobre a natureza das coisas), exclama:
Este grande poeta romano viveu no primeiro século antes de Cristo e apresentou
poeticamente a teoria atômica de Demócrito, o filósofo grego que tentara explicar, de uma
forma materialista, a origem e a constituição do Universo. Lucrécio assumiu também a
missão de divulgar os princípios éticos do filósofo Epicuro, que ensinava serem a
ignorância e o medo os sustentáculos de qualquer religião. Ele antecedeu, por mais de dois
milênios, os atuais pensadores Christopher Hitchens (Deus não é grande) e Richard
Dawkins (Deus, um delírio), entre tantos outros, que demonstram como as religiões são
nocivas ao desenvolvimento da civilização humana. Na verdade, ao longo dos séculos,
sempre existiu gente que, fazendo uso da razão e do bom senso, contestasse os dogmas
religiosos e o princípio da autoridade divina ou humana. Mas foram vozes isoladas e
abafadas pelo poderio econômico, que se serve da religião para impor suas ideologias. A
grande massa popular, pobre e ignorante, sempre foi (e continua sendo) vítima de
impostores religiosos ou políticos.
Volto ao resumo do relato bíblico. Isaac, salvo do sacrifício, casou com Rebeca, que
gerou Esaú e Jacó. Eram gêmeos, mas Isaac foi o primeiro a vir à luz, puxando Jacó que se
segurou no seu calcanhar. Chegados à mocidade, porém, Esaú vendeu seu direito de
primogênito por um prato de lentilhas, e casou, ao mesmo tempo, com duas mulheres, que
lhe atormentaram a vida. Jacó vai para a Mesopotâmia, onde também ele, mas no prazo de
uma semana, casa com duas jovens, as filhas de Labão, Lia e Raquel. Trabalha sete anos
para conseguir a mão da amada Raquel, mas, na manhã seguinte à noite de núpcias, percebe
que dormira com Lia, a filha mais velha de Labão, que o enganara, exigindo a promessa da
obrigação de mais sete anos de trabalho para consentir seu casamento com Raquel.
Terminado o contrato de trabalho, Jacó volta para a região de Canaã, levando
consigo Lia e Raquel, além de seus filhos e de todos os bens de Labão. Deus aparece a Jacó
e lhe troca o nome: passaria a se chamar Israel. Raquel morre de parto ao dar à luz
Benjamim e é enterrada em Belém. O penúltimo filho de Jacó, José, preferido pelo pai e,
por isso, odiado pelos irmãos, é vendido a caravaneiros que o levam para o Egito, onde é
comprado pelo poderoso eunuco Putifar e é apresentado ao Faraó como intérprete de
sonhos. Por isso é promovido e pode ajudar seu pai e os irmãos que o seguiram no Egito. O
Gênesis acaba com os funerais de Jacó.
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Como temos visto anteriormente, seguindo o relato bíblico, Moisés, pelo Pacto da
Aliança feito com o Senhor, teria tido a incumbência de construir uma unidade nacional.
Para isso, libertou os judeus do jugo dos egípcios e, após quarenta anos de peregrinação no
deserto ao redor do monte Sinai, acabou levando as doze unidades tribais para a região de
Canaã (atual Palestina), a Terra Prometida. Conforme está escrito nos dois Livros de
Samuel, redigidos bem mais tarde, ao redor do séc. VII a.C., Samuel, sucessor de Moisés, é
o último dos Profetas-Juízes, pois seu sucessor, Saul, abdicou da judicatura em favor da
realeza, tornando-se o primeiro Rei de Israel.
Mas a Monarquia se consolidou realmente com seu sucessor, Davi (1010-970),
considerado o verdadeiro fundador do Estado hebreu. Ele venceu filisteus, amonitas,
arameus e edomitas, construindo um relevante império judaico e escolhendo a cidade de
Jerusalém como capital, ao redor do ano 1000. Seu filho e sucessor Salomão (970-931) foi
famoso pela construção de um templo maravilhoso e pela sua sabedoria. Recentes
escavações num sítio de mineração na Jordânia confirmam a existência das lendárias
“minas do Rei Salomão”, provavelmente no primeiro milênio a.C.
Mas Salomão, pelo seu pendor para a magnificência e a idolatria, levou os hebreus
à decadência moral e à cisão política. Após sua morte, as doze tribos se separaram em dois
reinos. O de Israel, ao Norte, de 931 a 721, com capital em Sumária, teve 19 reis e 5
dinastias e acabou sucumbindo sob os golpes do império assírio. Outro reino, o de Judá
(nome de um filho de Israel) durou até à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, em
587, quando a elite do povo judaico foi deportada para a Babilônia. O exílio durou até à
ocupação da Babilônia pelo império persa. Um edito de Ciro o Grande, no ano de 538,
permitiu a volta dos exilados hebreus para a Palestina. Em 517, foi construído o segundo
Templo de Jeová em Jerusalém. Mas muitos israelitas preferiram permanecer na Babilônia,
região culturalmente mais avançada, de onde deram uma importante contribuição para a
divulgação da cultura hebraica.
Por sua vez, os exilados, que preferiram retornar para sua terra de origem, levaram
consigo nove rolos de papiros que traçavam a história de seu povo desde a criação até a
deportação: Gênesis, Êxodo, Levítico e outros livros de Juízes, Reis e Profetas,
estabelecendo, assim, o esqueleto da Bíblia hebraica. Passava-se, gradativamente, da
heterogenia da coleção de textos à formação da unidade da Escritura. A prova de que tal
unidade foi um produto posterior é que não encontramos diálogos entre os vários Livros do
Velho Testamento. Os Profetas, por exemplo, nunca fazem referências às Leis de Moisés.
A verdade é que, após o avanço das pesquisas arqueológicas, a partir da década de
1980, muitos estudiosos passaram a não acreditar mais em relatos e personagens bíblicos
que não fossem corroborados por fontes externas aos textos considerados sagrados. A
maioria chegou à conclusão de que os eventos mais antigos descritos no Velho Testamento
são invenções humanas e não revelações divinas. Após uma transmissão oral de longas
gerações, apenas a partir do séc. V a.C., os episódios bíblicos, até então esparsos,
começaram a ser reunidos e redigidos na língua hebraica.
As vitórias de Alexandre Magno, filho de Felipe da Macedônia, puseram fim à
dominação persa. Em 322, conquistou a cidade de Tiro e, sucessivamente, toda a Palestina,
que, em 301, ficou sendo província do Egito e, em 198, passou a ser domínio da Antioquia.
Em 142, pelo valor de Judas Macabeu, a Síria concedeu independência política aos judeus.
Em 63, Pompeu ocupou Jerusalém e, em 37, Herodes foi nomeado governador romano. O
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fato capital que dominou todo este período foi a difusão do Helenismo no mundo oriental.
Com Alexandre e seus sucessores, a civilização grega penetrou no Oriente Médio, até então
pouco conhecida naquelas regiões. E o Judaísmo não logrou escapar desta influência. Tanto
é que foram os judeus alexandrinos a realizar a tradução em grego do Antigo Testamento,
dita dos Setenta (Septuaginta).
O povo hebreu (israelitas e judeus), inicialmente nômade, ao contato com tantas
outras etnias mais desenvolvidas, aprendeu a agricultura, a técnica de construir residências,
o culto de deuses diferentes. A Bíblia relata que, até à destruição do Templo de Jerusalém
por Nabucodonosor, em 586, os hebreus praticavam o politeísmo, prestando culto não
apenas a Jeová, um bom deus guerreiro, mas também às divindades da fertilidade dos
antigos habitantes da Cananéia, quando desejavam uma boa colheita. Os principais deuses
locais, anteriores à invasão dos hebreus, eram Baal e sua irmã-esposa Anat (ou Astarte),
representados, respectivamente, por um touro e uma vaca. Em sua homenagem, os devotos
praticavam o rito sexual coletivo para tornar os campos férteis.
A estas divindades, expressões do instinto sexual e da paixão amorosa, eram
imolados até seres humanos. A luta entre diferentes credos e costumes era inevitável. O
Livro dos Juízes narra episódios de guerras fratricidas, raptos de moças, sacrifícios
cruentos. Na época dos Juízes e dos Reis, os hebreus foram atraídos pelos cultos
idolátricos. E por isso vinham sendo continuamente admoestados pelos Profetas (Isaias,
Jeremias, Daniel etc.). Oséias, no início do séc.VIII, foi o profeta que mais invectivou
contra esta prática, pois sentiu na carne a dor da infidelidade: sua mulher, Gomer, servira
como prostituta sagrada ao deus Baal.
Um culto mais civilizado, através de orações nas sinagogas, já começado durante o
Exílio na Babilônia, somente foi oficializado depois que os romanos destruíram o segundo
Templo de Jerusalém, em 70 d.C., quando acabaram definitivamente os ritos de sacrifícios
cruentos sobre o altar. Mas já estamos na época da última diáspora, palavra grega que
significa “dispersão”. Após a diáspora no Egito, na Assíria e na Babilônia, os judeus,
revoltando-se contra o domínio romano, perdem sua independência e sua pátria. A partir
daí, tornam-se cidadãos do mundo, criando focos de cultura hebraica em Atenas,
Alexandria, Roma e, evidentemente, na Palestina.
e Gemara, os comentários dos rabinos. Atualmente, o texto mais utilizado pelos estudiosos
judeus é o Talmude da Babilônia, editado no séc.VI d.C.
No fim do séc. XII, Maimônides, o maior teólogo hebreu, fixou os 13 princípios da
fé judaica: 1) Deus é o criador e provedor do mundo; 2) Ele é uno e único; 3) Ele é puro
espírito e não pode ser representado sob nenhuma forma; 4) Ele é eterno; 5) somente a Ele
devemos elevar nossas orações; 6) todas as palavras dos profetas de Israel são verdadeiras;
7) Moisés foi o maior dentre os profetas; 8) a Lei conhecida pelos judeus foi dada por Deus
a Moisés; 9) ninguém tem o direito de substituí-la nem de modificá-la; 10) Deus conhece
todas as ações e todos os pensamentos dos homens; 11) Ele recompensa aqueles que
cumprem seus mandamentos e pune aqueles que os transgridem; 12) Ele enviará o messias
anunciado pelos profetas; 13) Ele dará vida aos mortos.
O Talmude não é apenas uma coleção de preceitos religiosos e morais, mas um
ordenamento da vida dos que acreditam na religião judaica, legiferando sobre política,
costumes, a prática da justiça, a necessidade do trabalho, o comportamento na guerra, as
relações familiares (casamento entre pessoas da mesma fé, batismo pela circuncisão etc.).
O sofrimento do “hebreu errante”, o apátrida que é perseguido nas nações onde se
hospeda, privado de exercer os mandamentos da sua fé, não é um mito, mas uma realidade
histórica. No séc. XII, a Igreja Católica criou o Tribunal da Santa Inquisição para combater
várias heresias (albingenses e cátaros, principalmente). Na península ibérica, a Inquisição
atuou também contra os chamados “cristão-novos”, os hebreus que eram obrigados a
renunciar ao Judaísmo e forçados a aderir ao Catolicismo. Da Espanha e de Portugal a
perseguição contra os judeus chegou também ao Brasil e a outros países da América Latina.
As penalidades iam do confisco dos bens, até à prisão e à condenação à morte. Essa infâmia
só terminou na tradição lusitana com a Reforma do Marques de Pombal (1699-1782).
Muito pior ainda foi o “Holocausto”, etimologicamente significando uma imolação
sagrada, a consumação da vítima sacrifical pelo fogo. Modernamente, passou a designar os
12 anos de perseguição nazista contra os judeus (1933-1945), especialmente durante a
Segunda Guerra Mundial. Os campos de concentração e os fornos crematórios foram
criados para realizar uma limpeza étnica, visando o extermínio de todos os judeus
residentes na Europa. É incompreensível tanto ódio no coração humano, pois foram
barbarizados velhos, crianças e gente inocente.
Mas, enfim, certa justiça foi feita: em 1947, atendendo a uma resolução da ONU, foi
criado o Estado de Israel, numa faixa do território da Palestina, com sede em Jerusalém,
que passou a ser considerada uma cidade internacional. Realizava-se, assim, o antigo sonho
do Sionismo (de “Sion”, colina de Jerusalém), o movimento que reunia os judeus da
diáspora, visando o retorno à antiga Canaã. O Sionismo foi intenso especialmente na época
do Romantismo, quando na Europa se cultivou o sentimento do Nacionalismo. Em 1901 foi
criado o Fundo Nacional Judeu para a compra de terras na Palestina, que deu início à
imigração de hebreus.
Israel, porém, ganhara a pátria, mas não a paz. Após mais de três milênios, continua
a luta entre judeus e seus vizinhos. E isso porque, o que é considerado “reconstrução” para
os primeiros, é tido como invasão para os segundos. Os árabes não aceitam o mito bíblico
da Terra Prometida por Jeová ao povo judeu. Na verdade, Israel não é a terra natal e
original do povo hebraico, pois Moisés ocupou pela força bélica a terra onde habitavam os
antigos cananeus. A própria etimologia da palavra Jerusalém, “fundamento de Shalem”,
primitiva divindade da terra de Canaã, nos autoriza a pensar assim.
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Enfim, por baixo das diferenças étnicas, predomina o contrastante credo religioso
que, como sempre, fomenta ódio e violência. Na região do Médio Oriente, atualmente,
continua se travando uma briga entre as três religiões monoteístas: Jeová (representado pelo
seu profeta Moisés) vs Alá (representado pelo profeta Maomé) vs Deus Pai (representado
pelo Filho, Jesus Cristo). E tais deuses, embora concebidos como seres onividentes,
onipotentes e sumamente misericordiosos, dificilmente entram em acordo. Seria mais fácil
se os homens, relegando o sentimento religioso à esfera individual, se entendessem entre si,
usando a razão e o bom senso, preocupados apenas em viver da melhor forma possível
neste mundo, do qual não é nos dado conhecer as origens, perdidas na noite dos tempos,
nem prever seu fim.
Na história de qualquer religião, podemos notar a contradição entre a fixidez dos
dogmas e a necessidade da evolução. No caso do Judaísmo, percebemos como o povo
hebraico partiu de formas religiosas mesquinhas e violentas, próprias de gente primitiva e
selvagem: Moisés foi assassino, fujão, polígamo, guerreiro cruel e vingativo, conforme está
escrito no livro do Gênesis, de que ele próprio é considerado autor. E os Patriarcas, os
outros Profetas e todos os seus seguidores não foram melhores. Mas, aos poucos, por
evolução progressiva, o povo israelita sentiu a necessidade de aceitar o monoteísmo, de
acreditar no messianismo e na retribuição futura, de depurar suas doutrinas, visando
alcançar uma maior universalidade e espiritualidade.
Esta tese da evolução da fé judaica parece ser aceita por quase todos os estudiosos
da Bíblia. Os rabinos chamavam a exegese dos textos bíblicos de midrash (“investigação”),
pois trechos apresentavam interpretação diferente a cada leitura. A Palavra dos Profetas,
portanto, como o sentido da Palavra dos Poetas, é inesgotável. Por isso, Religião e
Literatura, por usarem uma linguagem polissêmica (sujeita a várias interpretações), são
ramos de conhecimento perene e universalmente estudados.
Mas, se se admitir a contínua evolução do dogma religioso, a Escritura podendo ter
erros de interpretação, onde fica a verdade da Revelação divina? Será que Jeová foi
revelando sua doutrina a uma miríade de profetas, aos poucos, em picadinhos, ao longo de
um milênio? E, se os vários redatores do Velho Testamento apresentam passagens
conflitantes ou inverdades, como julgar quem estaria com a razão? A verdade é que em
todas as épocas da humanidade e em todas as regiões do mundo sempre surgiram homens
que se julgaram dotados de inspiração profética. Em quem acreditar, então? Simplesmente,
em nenhum!
Efetivamente, com base em que critério pode-se acreditar que o povo hebreu foi
escolhido por Deus, em detrimentos de outros povos? Os judeus, por acaso, são mais
bonitos, mais inteligentes ou mais devotos do que outros seres humanos? Pensar assim é
negar a própria existência de Deus, pois não se concebe uma divindade facciosa, arbitrária,
discriminatória, vingativa, injusta. Voltamos a dizer, então, que seria a concepção de um
Deus “humano...demasiadamente humano”, para usar outra vez a expressão de Nietzsche.
Talvez seja o orgulho dos judeus, que se acham os prediletos de Deus, uma raça
superior que não admite miscigenação, a suscitar o ódio de nazistas (outra facção humana
que se acha privilegiada!) e de outros grupos anti-semitas. É uma pena que não se chegue a
uma convivência pacífica entre as várias etnias que habitam o Médio Oriente. Li,
recentemente, sobre um projeto turístico internacional, que pretende recriar a rota
percorrida pelo patriarca Abraão. A idéia é ligar, por uma estrada de rodagem, o Egito à
Turquia, passando por Hebron (Cisjordânia), Jerusalém (Israel), Monte Nebo (Jordânia),
56
Damasco (Líbano), chegando até Urfa, na Turquia, na tentativa de integrar vários povos de
raças e credos diferentes.
Mas isso só será possível se o homem colocar a esperança de salvação não num
outro mundo, mas neste em que vivemos, não na teologia, mas na filosofia, não na fé, mas
na razão. Acima de qualquer preconceito religioso, temos que colocar o bom senso, visando
uma convivência pacífica entre os povos. A Palavra do Deus de todos os profetas (Moisés,
Cristo ou Maomé) converge numa moral natural. Devemos a Emanuel Kant, o filósofo
alemão que revolucionou o estudo da ética, colocando a Razão ao centro do conhecimento
(como Copérnico colocara o Sol ao centro do universo), a reflexão mais profunda sobre o
estabelecimento de uma moral universal. Seu famoso imperativo categórico pode ser assim
formulado:
“ame teu próximo, de forma a não causar a outra pessoa
o mal que não gostaria que fosse feito a ti!”.
Paulo nunca afirmou que Jesus era Deus, assim como Cristo nunca disse que ele era
o Messias esperado pelos judeus. Aí está o grande erro de todas as religiões: a consagração
do instante. Acontecimentos excepcionais, relacionados com realidades peculiares, são
vistos como feitos milagrosos, expressões de uma vontade sobrenatural, que devem ser
cultuados para sempre e em todos os lugares, fixados em dogmas, como verdades
inquestionáveis.
É preciso salientar que notícias sobre a vida de Jesus não se encontram apenas nos
27 Livros, considerado o “cânone” do Novo Testamento pela Igreja de Roma. Existiam
muitos outros escritos considerados “apócrifos” (não autênticos ou ocultos) ou “gnósticos”:
de seitas cristãs heterodoxas, que juntavam judaísmo com helenismo, professando a crença
no dualismo cósmico do princípio do mal (matéria) e do bem (o espírito, que se identificava
com o “conhecimento” racional). Estes escritos, considerados não sagrados, foram
destruídos por ordem do Concílio de Nicéia, em 325. Trata-se do primeiro crime contra a
cultura perpetrado pela religião católica. Em nome de uma presumida “Autoridade Divina”,
foram condenados à fogueira documentos que não estavam conforme idéias retrógradas e
conveniências políticas.
Felizmente, monges egípcios não obedeceram à ordem papal e guardaram códices
de papiros dentro de urnas de argila e as enterraram na base de um penhasco, à margem do
rio Nilo, e ali ficaram esquecidos e protegidos por mais de quinze séculos. Os manuscritos
foram descobertos, por acaso, em 1945. Este achado incentivou pesquisas arqueológicas,
que continuam em andamento, especialmente nas proximidades do Mar Morto. Ao todo,
foram já encontrados 112 textos, de vários tamanhos, 52 referentes ao Antigo Testamento e
60 em relação ao Novo, inclusive os evangelhos de Judas e de Maria Madalena.
Quer os escritores canônicos, quer os apócrifos, serviram-se também do texto grego
do Antigo Testamento, a famosa Septuaginta, como fonte biográfica para falar da vida e das
obras de Jesus. Na verdade, sob muitos aspectos, o Novo Testamento é uma retomada do
Antigo, pois sua figura central, o Christós grego, corresponde ao Meshiah hebraico, o
“ungido”, o Messias prometido para a salvação do povo judeu, conforme anunciado pelos
Profetas. As correspondências entre os dois Testamentos são gritantes: quem redimiria o
povo judeu seria um descendente da casa de Davi; ele viria montado num asno; os 12
discípulos de Jesus correspondem às doze tribos de Israel; os 40 anos da peregrinação dos
hebreus no deserto têm um paralelo com os 40 dias do retiro de Cristo; as Tábuas da Lei no
Monte Sinai têm a ver com o Discurso da Montanha; Isaias profetizara que uma Virgem
daria a luz um filho chamado Emanuel; seu nascimento é anunciado por um anjo como
aconteceu com Isaac, Ismael e Sansão; a destruição do templo de Jerusalém, em 70 d.C., é
vista como o advento do Apocalipse, a “revelação” do final dos tempos. Enfim, o Antigo
Testamento pode ser considerado um prelúdio do Cristianismo. A maioria dos eventos da
vida de Jesus aconteceu “para cumprir as Escrituras”. Ele próprio afirmou que viera ao
mundo “não para abolir, mas para completar a Lei e os Profetas”.
Todavia, o legado de Jesus superou, ao mesmo tempo em que frustrou, as
expectativas judaicas. A figura do Nazareno se tornou um divisor de águas e a história da
humanidade se distinguiu entre um “antes” e um “depois” de Cristo. Com Jesus nasceu uma
nova Era, um novo Calendário, uma nova cosmovisão. Conforme os ensinamentos contidos
no Novo Testamento, Jesus Cristo não veio ao mundo apenas para salvar o povo judeu da
subjeção aos romanos, mas para redimir toda a humanidade do pecado original cometido
por Adão.
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signo vincet (“com este símbolo, tu vencerás”). E ele venceu (aconteceu mais um milagre!)
e se converteu ao Cristianismo. No ano seguinte proclamou o Édito de Milão, garantindo a
liberdade de culto e ordenando a restituição aos cristãos de todos os bens confiscados. Logo
em seguida, deixou a cidade de Roma aos cuidados do Papa Silvestre I, mudando a capital
do Império Romano para Bizâncio, que foi rebatizada com o nome de Constantinopla, no
ano de 330. O Papa mandou forjar um documento, chamado “A doação de Constantino”,
segundo o qual o Imperador, em seu leito de morte, teria legado ao Sumo Pontífice o poder
sobre Roma e todos os territórios do mundo cristão.
Então, como veremos em seguida, os cristãos, de perseguidos, passaram a ser
perseguidores. Acabara o tempo dos primórdios do cristianismo, quando a nascente igreja
vivia aterrorizada pelas comunidades hostis do judaísmo na Palestina e pelos habitantes de
Roma que não perdoavam a tentativa cristã de derrubar as estátuas de suas divindades
tradicionais, em nome do culto a um único deus, o Cresthos dos hebreus, que morreu numa
cruz. Os latinos sempre foram tolerantes com relação às religiões. Em Roma edificaram um
templo, o Panteon (que ainda hoje pode ser visitado), para abrigar todos os deuses,
nacionais e importados. Os romanos teríam colocado, de bom grado, o Cristo dos judeus
junto ao Zeus grego e a Osíris do Egito. Foram os cristãos a não querer, pois consideravam
todos os deuses pagãos como falsos e mentirosos, sendo verdadeiro apenas o deus deles.
Da Palestina, os cristãos foram a Roma para impor sua nova religião, desprezando
os cultos tradicionais dos que lhes davam abrigo. Os romanos reagiram à invasão dos
cristãos jogando-os aos leões, obrigando-os a lutar nas arenas contra gladiadores,
perseguindo-os nas catacumbas. Tais histórias fantasiosas fizeram a fortuna dos produtores
cinematográficos de Hollyood. Mas ninguém pode negar que a fé dos primitivos cristãos
era tão grande que eles preferiam o sofrimento e até o martírio, esperançosos na ressureição
dos corpos e na conquista do paraíso.
Toda essa crença, porém, não impedia a presença do medo em seus espíritos. E o
medo gera o ódio! A angústia e a revolta estão expressas plasticamente no Novo
Testamento, especialmente no Apocalipse, que pode ser considerado o contraponto ao
Sermão da Montanha, que é um hino à paz entre os homens. O livro atribuído a João de
Patmos apresenta o dualismo cósmico da luta entre as forças do bem contra as do mal. Satã
e suas cortes atacam Miguel e seus anjos no céu, enquanto os perversos agridem os homens
justos na terra.
Mas, a partir da atuação do imperador Constantino, a situação se reverte. Os que
eram vítimas se tornaram agressores. A Igreja de Roma, junto com o poder espiritual,
assumiu também o poder temporal, dando início a uma teocracia que dominou a Europa por
longos e tenebrosos séculos, estendendo sua influência também nas Colônias do Novo
Mundo. E a vingança não era apenas contra os pagãos politeístas. Os bispos, após o
Concílio de Nicéia, mandaram destruir os evangelhos apócrifos e todos os outros escritos
que não se encaixavam no cânone por eles estabelecido, além de condenar e punir qualquer
forma de heresia.
Quando Teodósio II (401-50) promulgou o Cristianismo como a fé oficial do
Império, os judeus foram proibidos de ocupar cargos civis ou militares e sua língua
hebraica não pôde mais ser ensinada, nem sequer nas sinagogas. O terror imposto pela
religião à ciência e ao conhecimento ao longo dos primeiros séculos do Cristianismo
encontra-se descrito nas obras de Apologistas, Doutores e Padres da Igreja. Para Santo
Agostinho os deuses pagãos eram demônios que vagavam numa Terra achatada, que tinha
apenas seis mil anos de idade. Tertuliano afirmava que quanto maior o absurdo, mais forte
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era sua fé, prometendo aos devotos o gozo do espetáculo das torturas eternas a que Deus
condenava os que morressem no pecado. Não diferentemente, os pregadores de várias
igrejas ou seitas da atualidade continuam aterrorizando os incautos crentes com as ameaças
de Satanás, extorquindo seu dinheirinho, em troca da benção divina!
Talvez o exemplo mais cabal do atraso civilizacional provocado pela religião cristã
foi a proibição dos jogos olímpicos. No fim do séc. IV d.C., o imperador romano Teodósio
I (347-395), alcunhado o “Grande” por ter assegurado o triunfo definitivo do cristianismo,
ordenou a destruição do templo de Zeus, na cidade grega de Olímpia, para acabar com o
politeísmo pagão. Determinou, também, o fim das Olimpíadas, que vinham sendo
disputadas desde o séc. VII a.C., por considerá-las nocivas à formação religiosa dos jovens.
O lema clássico mens sana in corpore sano (cabeça boa num corpo sarado), foi substituído
pelo princípio da moralidade cristã: mens sana in corpore castigato (alma pura num corpo
flagelado).
Precisaram passar aproximadamente 15 séculos para que a humanidade retomasse o
espírito olímpico da Grécia antiga. O magnata francês Pierre de Coubertain lutou para criar
o Comitê Olímpico Internacional, que organizou a primeira Olimpíada da era moderna, em
Atenas, em 1896. Seu símbolo é o entrelaçamento dos cinco Continentes, seu lema é citius
(mais rápido), altius (mais alto) e fortius (mais intenso). A Carta Olímpica proíbe qualquer
espécie de propaganda política, religiosa ou racial, afirmando a isenção ideológica do
torneio e exortando à paz e à concórdia entre os povos.
O domínio da Igreja Católica se intensificou com a queda do Império Romano do
Ocidente (476), causada pelas invasões barbáricas. A Idade Antiga, caracterizada pela
civilização greco-romana, chega ao fim, dando origem à chamada Idade Média. O termo é
bem explicativo, pois medieval significa “mediano”, entre um antes e um depois, isto é,
entre a cultura clássica e a moderna, que começaria a partir do século XI. Quer dizer que do
séc. V ao XI não houve civilização alguma, sendo a cultura medieval caracterizada
simplesmente pela ausência de cultura.
Efetivamente, notamos na Europa um longo tempo de vazio civilizacional, passado
para a história como a “época das trevas”. Parece exagero de historiadores, mas é a pura
verdade. Uma pergunta intrigante: algum leitor deste meu livrinho poderia me citar o nome
de apenas uma pessoa ilustre no campo da filosofia, das ciências, das artes, dos esportes,
que viveu na Itália, na França ou em qualquer outro país da Europa, em algum momento, ao
longo de aproximadamente 600 anos, do séc. V ao XI? A resposta só pode ser negativa e se
configura como uma constatação espantosa. A única personalidade importante que passou
para a história, durante este longo período de tempo, foi o Rei da França, Carlos Magno,
coroado pelo Papa como Imperador do Ocidente no ano 800, como recompensa de suas
lutas contra os mouros e em defesa da religião cristã. E, sintomaticamente, ele era
analfabeto, assinando documentos com o dedão.
Como explicar tamanho atraso na Europa toda e durante vários séculos, se a
pequena Grécia, em poucas décadas, apenas na época de Péricles, no longínquo séc. V a.C.,
criara obras maravilhosas de literatura, teatro, artes plásticas, além de inventar a filosofia, a
democracia, as olimpíadas? Será que a crença na fantasmagórica diversidade de seus mitos
pagãos estimulava a mente dos gregos para a criatividade, enquanto o monoteísmo cristão
levara a inteligência humana ao reducionismo?
Sem dúvida, houve um retrocesso da Humanidade na época medieval, causado pela
centralização no problema da salvação da alma que, após a morte corporal, deveria prestar
contas a um deus no além. A preocupação do homem é limitada ao aspecto religioso. Os
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Mas, segundo meu entendimento, o fator que mais concorreu para o atraso medieval
foi a cosmovisão do Cristianismo. De um lado, a Igreja de Roma construiu um sistema
feudal paralelo ao da sociedade civil pela semelhança de sua hierarquia (papa, bispos,
vigários, fiéis que pagam dízimos em troca de indulgências) e por possuir grandes
propriedades (a imposição do celibato aos bispos-feudatários visava não criar vínculos de
hereditariedade). De outro lado, projetando a felicidade num outro mundo, desestimulou
qualquer forma de progresso. Para que estudar e trabalhar se a vida nesta terra é apenas
uma passagem, pois nosso destino é a eternidade? Para que cultivar o físico e o intelecto, se
nascemos do pó e ao pó voltaremos?
A única coisa a fazer é conquistar méritos para salvar nossa alma imortal. E lá vão
rezas, penitências, jejuns, sacrifícios, abstenções de comidas, bebidas e sexo, enfim de
qualquer prazer da carne. Dá-se preferência à vida contemplativa, monástica, em conventos
e mosteiros. Se a finalidade da vida é a espera da morte, por que cultivar ciências e artes?
Basta-nos seguir os ditames da Sagrada Escritura. Tal postura perante a vida não deixa de
ser coerente com os princípios do Cristianismo, assim como postos em prática na primeira
fase da Idade Média.
O último Profeta
Para escapar da perseguição, em 622, Maomé foi obrigado a abandonar sua cidade
natal, começando uma migração, conhecida como a Hégira, que deu origem ao calendário
lunar muçulmano, estabelecendo-se na cidade de Medina. Lá, ele se tornou o chefe da
primeira comunidade islâmica. É preciso relevar que, no século VII, a península arábica era
habitada por povos que levavam uma vida nômade, divididos em tribos, lutando entre si.
Maomé conseguiu dominar, através de sucessivas vitórias, não somente os habitantes de
Meca e Medina, mas a maioria das povoações ao redor das duas cidades.
Ele se revelou um ótimo estrategista bélico, pois sua organização militar, criada
durante estas batalhas, foi usada posteriormente para derrotar várias tribos da Arábia e
povos de outras regiões. As conquistas dos muçulmanos se estenderam da Pérsia à bacia do
mar Mediterrâneo, com relevância na península ibérica e na costa francesa. Além de
militar, Maomé teve também um grande mérito político, conseguindo unificar vastos
territórios sob o signo da religião islâmica. Os antigos costumes tribais das Arábias foram
substituídos pela Sharia (lei do Corão) e pela Sunna (a Tradição de Muhammad, registrada
nos hadith, ditos e feitos do Profeta). Organizava-se, assim, o Estado árabe, regido por um
chefe que reuniu numa única pessoa o poder religioso, militar e político.
A criação de um Estado teocrático, juntando na mesma pessoa o poder material e
espiritual, foi o grande erro involuntário de Maomé, pois ele não previu que seus sucessores
não estariam à altura de sua portentosa personalidade. Sua morte é lendária: a crença mais
comum é que o Profeta, acometido de um mal súbito, no ano de 632, ascendeu aos céus
envolvido numa nuvem, a partir da Cúpula do Rochedo (que ainda não existia, pois foi
construída pelo califa Abd al-Malik, em 691!), em Jerusalém. Ele teria feito uma viagem
noturna, visitando o Paraíso, onde teria se encontrado com os dois outros grandes Profetas
que o precederam, Moisés e Jesus Cristo. Com seu falecimento deu-se o mesmo que
costume acontecer com os grandes ídolos religiosos ou líderes políticos: nenhum dos
seguidores tem o carisma do mestre para continuar sua obra. A briga pela sucessão de
Maomé, logo de cara, originou uma crise que dividiu o Islã em duas facções historicamente
adversas: sunitas e xiitas.
A compilação do Alcorão
O Corão (ou Alcorão, pela aglutinação do artigo árabe “Al”: o sentido de nome é
“recitação”) foi escrito por várias pessoas e ao longo de muito tempo. Maomé, por ser
analfabeto, não escreveu nada. Quando em vida, recitava a parentes e discípulos letrados
versos que teria ouvido durante suas visões, ao longo de duas décadas. Os amigos ouvintes
registravam os ensinamentos do Profeta em folhas de tamareira, pedaços de pergaminho,
omoplatas de camelos ou pedras de várias formas. Durante as noites de vigília do Ramadã,
Maomé reunia seus discípulos e recapitulava o conteúdo de suas visões. Depois de seu
falecimento, foi recolhido o material disperso que, junto com os relatos das pessoas que se
lembravam das palavras do Mestre, passou a constituir o corpus básico da nova doutrina
considerada sagrada pelos islamitas.
A redação oficial do Corão, o texto fundamental, foi realizada, entre 650 e 656
(aproximadamente vinte anos após a morte de Maomé), durante o califado de Otman, que
nomeou uma comissão para decidir o que deveria ser incluído ou excluído do texto final do
Alcorão. Foi então constituído um "livro-referência" a partir do qual se criaram seis cópias
que foram enviadas para Meca e outras cidades importantes. Outro texto que apresenta a
68
A doutrina islâmica
Maomé nunca se considerou um novo deus, mas apenas um novo Messias, um ser
humano igual a Moisés e Jesus, que veio ao mundo para lembrar aos seus contemporâneos
da Meca, que praticavam o politeísmo e tinham desvios éticos, a palavra esquecida de
Abraão, o primeiro patriarca ao qual Jeová se revelara. Portanto, a doutrina islâmica está
visceralmente ligada à do Antigo Testamento judaico, melhorado pelo evangelho de Cristo.
Mas, evidentemente, além de pontos em comum, a religião islâmica apresenta divergências
dogmáticas com relação ao judaísmo e ao cristianismo. Substancialmente, o Islamismo
também acredita em Deus, nos Profetas, nas Sagradas Escrituras, na Predestinação, na
Ressurreição e no Juízo Final, mas com variantes peculiares. A saber:
Todo muçulmano deve acreditar que existe um único Deus, de nome Alá, sendo
Maomé seu principal Profeta. Nega-se, portanto, o dogma católico da Santíssima Trindade,
que admite a divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O Islamismo é frontalmente
contrário à divinização de qualquer criatura humana, inclusive Jesus Cristo, que teria
nascido da Virgem Maria. O próprio Maomé não é considerado um ser divino, mas apenas
um enviado de Alá para ensinar uma nova doutrina. O Corão menciona mais de vinte
profetas, anteriores a Maomé, considerados “mensageiros” de Deus, locais ou nacionais,
sendo Maomé o último e o único Profeta universal. O mesmo diga-se das Escrituras
Sagradas: os muçulmanos não desmentem o que está escrito na Torá e no Evangelho, mas,
para eles, o Corão é a fonte primeira do exato conhecimento da verdade religiosa. Tudo o
que estiver de acordo com o Livro de Maomé deve ser considerado como verdadeiro e o
que for diferente deve ser rejeitado.
Quanto à Predestinação, o muçulmano acredita que todos os acontecimentos estão
previstos pela vontade divina, estando previamente fixados no livro do Destino. Tal crença
passou à história com o nome de “fatalismo árabe”. Recentemente, esta doutrina vem sendo
modificada, pois se percebeu que o fatalismo contradiz o princípio da liberdade pessoal,
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Maomé abandonou este mundo sem indicar seu sucessor ou deixar normas
testamentárias para seus familiares e seguidores. Assim, as rivalidades e inimizades, que ele
conseguira controlar durante sua existência, explodiram em lutas sangrentas, depois de sua
morte. Cada chefe dos quatro clãs, chamado de “califa”, representante de Maomé na terra,
achava-se o legítimo sucessor do Profeta. Enfim, ficaram para a história dois grupos: os
“Sunitas” (de suna = caminho moderado), assim denominada a grande maioria que seguiu a
doutrina original de Maomé; e os “Xiitas” (de shi at Ali), filiados ao partido de Ali, casado
com Fátima, uma filha de Maomé, que constituem a ala extremista, mais rigorosa.
Mas, apesar das lutas intestinas, o Islamismo, gradativamente, avançou por todo o
Oriente Médio, conquistando Iraque, Palestina, Pérsia, Síria, Egito. Chegou também à
Europa Ocidental, conquistando várias regiões banhadas pelo mar Mediterrâneo,
especialmente as costas da França, da Península Ibérica e do Sul da Itália. A expansão
islâmica foi se intensificando ao longo de dois séculos de uma forma incontesta. Mas, a
partir do séc. VIII, começou o período da decadência motivado por causas internas e
externas. Houve uma fragmentação da umma, a comunidade muçulmana, pois a supremacia
do califado começou a ser questionada e formaram-se vários governos independentes, cada
um com feição própria. Decisivas foram as invasões dos mongóis e dos turcos.
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foi a política, mas a religião a dar o grande impulso para a construção de mesquitas
maravilhosas em várias cidades dominadas pelos islamitas.
Depois da destruição do último Templo de Jerusalém, em 70 d.C., passaram-se mais
de seis séculos até que a Cidade Santa, sede das três grandes religiões monoteístas, tivesse
outro templo majestoso. E, desta vez, sobre a égide do Islã. O califa Abd al-Malik, em 691,
mandou construir a dourada Cúpula do Rochedo, sobre a rocha Sakkra, ponto culminante
do Monte Moriah, lugar indicado a Abraão por Jeová para o sacrifício de seu filho Isaac.
Desta Cúpula, Maomé teria ascendido ao Céu, conforme está escrito no Corão. Relevamos,
de passagem, um anacronismo: se a construção terminou 59 anos após a morte do Profeta,
como ele podia ter partido de lá? Efetivamente, a religião tem pouco a ver com a história ou
outra ciência humana! Voltando ao assunto: foi a partir desta época que o estilo arabesco
começou a influenciar outras formas de arte, como a bizantina, a gótica, a renascentista.
Também quanto ao aspecto especificamente religioso, o Islamismo registrou
relevantes avanços com relação aos credos anteriores. A meu ver, o ponto crucial em que a
doutrina islâmica supera a cristã se encontra na afirmação do princípio jurídico da
“intransferibilidade” da culpa. Em nenhum Tribunal ou Corte de Justiça do mundo humano
alguém pode ser responsabilizado pelo pecado de outra pessoa. Se isso se dá na Terra, por
que no Céu deveria ser diferente? Como pode se considerar culpado um ser inocente, uma
criança que acaba de nascer? Será que Deus é menos justo do que o homem, sua criatura?
O Alcorão, diferentemente da Bíblia, ensina que o pecado de Adão não se transferiu
para a humanidade e que ninguém nasce com uma culpa original. A responsabilidade pelo
pecado não é hereditária, nem transferível, nem comunitária. Conseqüentemente, vários
dogmas da religião católica são rechaçados: Jesus Cristo foi apenas mais um Profeta, não
sendo Filho de Deus, pois existe apenas Unidade e não Trindade divina; não há necessidade
de batismo, pois a alma não nasce maculada; as pessoas que não receberam instruções
divinas não podem ser castigadas neste mundo nem no outro; a crucificação de Cristo não
aconteceu para redimir a humanidade, que não precisava desse sacrifício; nenhum ser que
nasce do homem pode ser considerado Santo, com o poder de interceder junto a Deus.
Quanto à moral, os conceitos básicos do Islã, que podem ser apontados surfando os
versos do Alcorão e do Hadith, como igualdade, liberdade, fraternidade, paz, comunidade,
caridade, se aproximam de uma ética universal. Na verdade, os escritos atribuídos a Maomé
e considerados sagrados são apenas uma miscelânea composta de versículos da Torá e dos
Evangelhos, de máximas dos rabinos, de provérbios indianos, da sabedoria do persa
Zaratustra, de trechos de pensadores gregos. A doutrina moral muçulmana está baseada na
filosofia do bom senso e do equilíbrio, na busca da aurea mediocritas, já decantada em
versos belíssimos pelo poeta latino Horácio. A ética de Maomé teve como antecedente o
Evangelho do Amor, apregoado por Jesus Cristo e, como conseqüente, os ideais da
Revolução Francesa. Como exemplo do conceito de honestidade, transcrevo o seguinte
trecho atribuído a Maomé:
“Quem confiar a uma pessoa um cargo público enquanto na sua sociedade houver
outra melhor para desempenhar aquele cargo, atraiçoa a confiança nele
depositada por Deus, pelo seu Mensageiro e pelos muçulmanos”.
Um estudioso dos textos islâmicos comenta que um governante religioso deveria ter
responsabilidade dupla: perante seu Deus e seu povo; e um fiel de Alá tem que participar
ativamente na solução dos assuntos públicos.
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Mas, na prática, a teoria é outra. Tudo muito bonito e edificante, mas, para quem
não quiser renunciar à lucidez mental, é difícil acreditar que o que está escrito no Alcorão é
realmente a palavra de Deus. Passaram-se quase 14 séculos e o Islamismo não apresentou
os resultados esperados. Segundo o dito evangélico, “uma árvore se conhece por seus
frutos”. E os frutos do Islamismo, assim como os do Judaísmo e do Cristianismo, não
foram bons, pois a realidade humana continua salpicada de ódios étnicos, guerras, injustiça,
miséria. A verdade é que, como as outras religiões, o Islamismo é uma grande ilusão, pois
não existem messias, enviados de Deus. Quem ousa achar-se tal deve ser considerado um
presunçoso que, num sentido contrário, nos dá uma prova cabal da não existência de Deus.
E sim, porque se Deus existisse realmente, Ele se revelaria a todos os homens, seus filhos.
Por que escolher Moisés ou Maomé, judeus ou árabes? E os outros povos que viveram
antes destes profetas ou habitam regiões longínquas, como os indígenas da Patagônia ou da
Oceania? Eles não merecem ouvir a palavra de Deus? Será que não foram criados por Ele e
não são também seus filhos?
A resposta mais ouvida é que a vontade de Deus é inquestionável. Ele faz o que
quer, quando quer, como quer e onde quiser. Mas, então, não estaríamos falando de um
Deus, mas de um déspota qualquer. Todavia, Ele é concebido por todas as religiões como o
Ser Supremo, possuidor de todas as virtudes no máximo grau: Ele é onipotente, onividente,
onipresente, previdente, amoroso, justo. Mas, ao mesmo tempo em que afirmam tudo isso,
os devotos de qualquer religião atribuem a Deus características que são próprias dos
humanos, tais como o orgulho (Ele exige subserviência, adoração, sacrifícios, preces), o
ciúme (não pode se prestar culto a outra divindade), a prepotência (manda e desmanda, sem
dar satisfação a ninguém), injustiça (escolhe um homem ou um povo para salvação, em
detrimento de outros).
Acontece que, como dizia um filósofo pré-socrático, “o homem é a medida de todas
as coisas”: cada qual julga tudo a partir de si. Portanto, qualquer líder religioso, sendo
humano, só pode olhar as coisas pelo prisma da sua precariedade. Aliás, ele deve ser
considerado de uma humanidade inferior porque seu fanatismo religioso lhe impede de pôr
ao serviço da busca da verdade a capacidade de raciocínio, que é uma peculiaridade da
natureza humana. O pior é que a grande massa do povo, tendo preguiça de pensar, acaba
sendo levada pela cabeça de ídolos religiosos e líderes políticos. Com relação específica à
religião muçulmana, são oportunas algumas reflexões:
1) Conforme estudiosos do Islamismo, Maomé recebeu a Revelação não apenas no
monte Hira, pelo Arcanjo Gabriel, mas ao longo de 23 anos, de uma forma ininterrupta.
Sendo ele analfabeto, costumava ter ao seu lado escribas, que tomavam nota de seus
ensinamentos. Ora, não está explicado se o Arcanjo Gabriel apareceu só uma vez ou
constantemente ou havia outros emissários divinos. É mais provável que a doutrina vinha
sendo redigida pelos assessores de Maomé, que era gente culta, durante as conversas com o
Profeta. Portanto, é lícito duvidar da autoria divina dos textos que compõem o Corão.
“Maomé disse” não quer dizer que foi ele mesmo quem disse e muito menos que o próprio
Deus tivesse dito a ele!
2) Por que Maomé é considerado o “último” Profeta? Por que a palavra dele tem
que ser ouvida como definitiva e absoluta? Pensar que Deus o teria escolhido como ponto
final da Revelação, a pessoa em quem se condensasse toda a Verdade, per omnia saecula
saeculorum, não é muita pretensão? O que mais causa estranhamento no Islamismo é a
fixidez, o imobilismo de sua doutrina. Os versos do Corão são intraduzíveis e indiscutíveis,
irredutíveis assim como seus rituais (rezar cinco vezes por dia, na hora marcada, na posição
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correta) e seus costumes, que têm que seguir tradições multisseculares. Ora, a rigidez é
própria da morte, enquanto a vida é movimento, evolução que leva ao melhoramento.
Ninguém aprende nada de novo, se ficar apenas repetindo as mesmas convicções. Creio que
se Maomé (ou o círculo de seus discípulos cultos) voltasse ao mundo agora, ele daria um
banho de Darwin e de Einstein no seu Corão!
3) Pela obrigação da Guerra Santa (Jihad), os muçulmanos estão convencidos de ter
recebido a permissão de Deus para divulgar sua fé pela ponta da espada. As primeiras lutas
sangrentas de Maomé contra seus perseguidores da Meca são explicáveis, pois se tratava de
legítima defesa da liberdade de culto. Já a sede de sangue e do botim de guerra com que
assaltaram outros povos para impor o credo muçulmano não tem a mesma motivação.
Afinal, foram os navios árabes que bloquearam o mar mediterrâneo e dominaram cidades
costeiras habitadas por cristãos e não primeiramente os ibéricos a invadir o solo africano.
Na verdade, para o muçulmano, a luta religiosa é um mandamento divino, pois o
Corão obriga seus fiéis a difundir a fé em Alá, sob pena de serem responsabilizados pelos
pecados dos que não forem convertidos. O verdadeiro crente não pode descansar enquanto
o mundo inteiro não se ajoelhar aos mandamentos da Lei islâmica. Neste sentido, a religião
apregoada por Maomé apresenta aspectos de fanatismo racista, como qualquer tipo de
radicalismo ou de fundamentalismo. Um exemplo clamoroso de violência contra a
liberdade de pensamento foi a condenação à morte do escritor Salman Rushdie, em 1989,
pela publicação da obra Os versos satânicos, considerada ofensiva à religião de Maomé,
segundo os Aiatolás do Irá: sua cabeça foi posta a prêmio por dinheiro e pela promessa do
paraíso. Ele ficou durante muito tempo escondido, temendo a vingança dos fiéis da Jihad.
4) O estudo da personalidade de Maomé nos leva a perceber que o último dos três
grandes profetas está mais próximo do primeiro do que do segundo. Era de se esperar que,
como a figura espiritual de Jesus superou a de Moisés, substituindo o Antigo pelo Novo
Testamento, o novo profeta viesse, seis séculos depois, para aperfeiçoar ainda mais a
mensagem de Cristo. Mas, neste aspecto, houve um retrocesso. Maomé retomou a velha
tradição judaica de matar em nome de Deus e de usar as mulheres como escravas
domésticas. Acontece que as tribos humanas, quanto mais afastadas no tempo e no espaço,
mais se aproximam dos animais, vivendo em função da lei da selva: matam para conseguir
os alimentos (instinto da conservação própria) e os machos irrigam o sêmen em várias
fêmeas (instinto da conservação da espécie).
Esse era o costume que ainda vigorava nas povoações árabes na época de Maomé.
Teria sido muito bom se o novo Profeta, sentindo-se inspirado por Deus para dar uma
nacionalidade ao povo árabe e difundir um novo conceito de espiritualidade no mundo
todo, tivesse superado essas antigas tradições desumanas. Infelizmente, do ponto de vista
ético, seu exemplo de vida foi pior do já existente: enquanto os costumes tradicionais dos
árabes permitiam que um homem pudesse ter mais de uma esposa, desde que tivesse
condições econômicas para sustentá-las, Maomé, pobre e inculto, encostou-se numa viúva
rica, bem mais velha do que ele, para ascender socialmente. Inverteu a tradição: a mulher,
em lugar de exigir, ela oferece o dote para ficar com o Profeta. E não foi só uma: conforme
relatam os escritos sobre ele, Maomé casou com mais 15 mulheres, todas elas viúvas
abastadas. Por ultimo, já mais velho, ficou noivo de uma menina de 9 anos, para aquecer
sua concupiscência.
5) Questionando a estrutura da família: por que o deus Alá, que teria se revelado a
Maomé, não lhe fez entender que a poligamia gera um caos familiar, sendo um desrespeito
ao direito das mulheres e das crianças? É humanamente impossível que um homem possa
75
Volta e meia, são veiculadas notícias sobre um próximo fim do mundo por crentes
de vários credos, que acham que os tempos estão acabando, tendo chegada a hora do Juízo
Final ou do Apocalipse. Tornaram-se famosas as profecias de Nostradamus, médico e
alquimista francês da época da Renascença. Anteriormente, na primeira fase da Idade
Média, as superstições sobre o fim do mundo eram abundantes. Por uma delas, os povos
acreditavam que o mundo acabaria no fim do milênio. Mas, a data redonda passou e a vida
76
Esta postura intelectual de Abelardo será retomada séculos depois, quando a Renascença
européia chegou ao ápice.
O primeiro passo importante para a gradativa passagem da Idade Média ao
Renascimento foram as Cruzadas. Até a segunda metade do séc. XI, houve uma
convivência pacífica entre os muçulmanos, chamados também de árabes ou sarracenos, e os
cristãos que faziam suas peregrinações a Jerusalém, onde estava o Sepulcro de Cristo, e a
outros lugares sagrados. Mas, com o início da decadência do Império Romano do Oriente,
de cultura greco-bizantina, hordas de turcos da dinastia dos seldjúcidas ocuparam, em 1071,
a cidade considerada santa pelas três religiões monoteístas. Eles começaram a capturar os
peregrinos, vendendo-os como escravos. O Papado de Roma, apesar do cisma de 1054, que
separara a igreja cristã em Romana (ocidental) e Ortodoxa (oriental) reagiu ao ataque dos
turcos, convocando todos os reis e príncipes cristãos da Europa para libertar a cidade de
Jerusalém.
O apelo do papa Urbano II foi atendido de bom grado, porque, além do motivo da
defesa da fé cristã, os comandantes dos exércitos europeus vislumbravam negócios
lucrativos com o Médio Oriente, uma vez quebrada a hegemonia árabe no mar
Mediterrâneo. Foram organizadas seis expedições militares ao longo de quase dois séculos.
A primeira “Cruzada”, assim chamada porque os soldados cristãos usavam uma cruz
estampada no peito, aconteceu em 1096 e foi um fracasso. Logo se seguiram outras,
capitaneadas por príncipes franceses e alemães, que conseguiram libertar o Santo Sepulcro
de Cristo, mas não de uma forma definitiva.
Se, do ponto de vista militar, as Cruzadas não tiveram o resultado esperado, sua
contribuição para o desenvolvimento econômico e cultural da Europa foi enorme. Ao
romper o predomínio muçulmano na bacia do Mediterrâneo, abriam-se as portas para a
troca de mercadorias e o intercâmbio cultural entre civilizações diferentes. Quem mais se
beneficiou foram as cidades marítimas italianas (Nápoles, Gênova, Pisa, Veneza), banhadas
pelo Tirreno e Adriático, que se tornaram as primeiras potências econômicas da época
medieval. As Cruzadas provocaram a primeira revolução comercial estabelecendo uma
ponte entre o Ocidente e o Levante.
Outro fator fundamental para o início do renascimento foi o surgimento das línguas
neolatinas, também chamadas românicas ou modernas, em oposição às línguas clássicas ou
mortas (grego e latim). A maior parte dos povos europeus, a partir do séc. I a. C., foi
obrigada a aprender a língua dos conquistadores romanos, que impuseram o latim em todas
as regiões por eles colonizadas. Tal fenômeno é comum, pois o fator cultural geralmente
está na dependência do poder militar e econômico. Aconteceu não apenas com o império
romano, mas, sucessivamente, com o poderio espanhol, francês e britânico. Hoje, estamos
sob a égide do imperialismo norte-americano, que nos obriga a estudar a língua inglesa
elevada à condição de língua internacional.
Com a decadência do império dos Césares, no séc. V d.C., não havendo mais a
pressão de Roma sobre suas colônias, os povos que habitavam a península ibérica e italiana
e o centro da Europa iniciaram um longo processo de diferenciação de suas falas,
afastando-se da língua do antigo dominador. A língua latina, que permanecera o idioma
oficial da igreja católica e das instituições públicas, já não sendo mais falada pelo povo,
começa a ceder lugar aos dialetos regionais, que vinham se afirmando por força do
substrato (os dialetos locais anteriores à imposição da língua dos romanos) e do superstrato
lingüístico (os dialetos dos bárbaros e dos árabes, que passaram a ocupar os territórios dos
latinos).
O processo de formação das línguas nacionais durou, aproximadamente, seis
séculos, devido ao isolamento regional e ao predomínio da religião cristã que conservava e
universalizava o uso do latim (o que tenta fazer até hoje!). Somente depois da virada do
primeiro milênio começaram a aparecer documentos escritos em francês, italiano ou
galego. Os fatores do substrato e do superstrato explicam as diferenças entre as várias
línguas modernas, enquanto a descendência do mesmo cepo, o latim, que é a língua-mãe, dá
conta das semelhanças.
Os primeiros documentos numa língua românica foram escritos no francês falado na
região da Provença, a langue d’ oc. E, como nas origens de qualquer língua, estão
registrados em versos, pois a poesia (a linguagem infantil e natural) vem sempre primeira
do que a prosa (a língua da maturidade, regulada pela gramática). A poesia provençal é
chamada também trovadoresca, de “trovador” (do latim trobare, que deu o italiano trovare
= encontrar), o poeta que encontrava a rima certa. Do Sul da França os trovadores se
espalhavam pelas cortes da Europa, prestando sua vassalagem às damas em versos do mais
puro lirismo. O tema recorrente é a aspiração a um amor impossível, pois a dama cantada
geralmente é uma senhora casada e de condição econômica bem superior à do menestrel. A
poesia trovadoresca apresenta uma concepção revolucionária do amor, ao mesmo tempo
espiritual e adulterino, nunca antes vista na literatura ocidental.
Tal temática tem instigado os estudiosos, que formularam várias teses na tentativa
de explicar essa contradição. A hipótese mais sugestiva é que a mulher amada é
considerada um ideal inalcançável por representar a soma das virtudes que ultrapassam o
desejo sexual, material. A namorada do trovador seria o símbolo da Grande Mãe
partenogenética, que dá à luz sem a intervenção do macho, constituindo o princípio estável
em que o homem se refugia, especialmente quando se sente acossado pelas dificuldades da
vida. A união espiritual do trovador e de sua amada seria a reconstrução do mito ancestral
do ser bissexuado, chamado de andrógino ou hermafrodito, que existiria no mundo antes de
Júpiter separar o elemento masculino do feminino, com o fim de enfraquecer o ser humano.
E, sendo a mulher amada casada com um homem poderoso, o desejo de um amor adúltero,
mesmo fisicamente irrealizável, não deixa de ser uma revolta contra o autoritarismo
78
Além da poesia lírica, a segunda fase da idade Média nos deixou o registro de filões
de ficção narrativa transmitidos oralmente, ao longo de muitos séculos: o ciclo bretão,
centrado sobre a figura do Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, na Inglaterra; o
ciclo carolíngio, em torno de Carlos Magno e os Paladinos da França; El cantar de mio
Cid, na Espanha; a Canção dos Nibelungos, na Alemanha. Trata-se de histórias fantásticas
criadas pela imaginação popular sobre os heróis que contribuíram para a formação das
várias nacionalidades. Não havendo ainda uma língua escrita, as façanhas eram narradas em
versos, para uma melhor memorização e transmissão de pai para filhos. Segue uma breve
apresentação desses poemas, relevando sua importância para a tradição cultural e a
formação das principais nacionalidades européias. Se a poesia lírica medieval tratava do
tema do amor, o canto épico e a novela de cavalaria têm por assunto principal a luta
patriótica. Mas os dois motivos se entrelaçam, pois amor e guerra andam sempre juntos.
sangue de Cristo. Depois de sua morte, um cunhado teria levado o Santo Vaso, junto com
seus doze filhos, para a Inglaterra.
A lenda cristã acerca do Graal se cruza com a vida do lendário rei de Gales, Artur,
que viveu entre o séc. V e VI. A figura do rei Artur como herói nacional está ligada à
resistência dos celtas contra os anglo-saxões. Ele teria apaziguado as tribos rivais e
conferido unidade nacional ao povo britânico, sob a égide do Cristianismo, de forma
semelhante ao que fizera Moisés com tribos hebraicas e fará Maomé, um século depois,
com tribos arábicas.
Sobre o assunto, na França e na Inglaterra, se divulgaram vários cantos de amor e
guerra que, após uma longa tradição oral em versos, deram origem às novelas de cavalaria
em prosa, traduzidas em várias línguas modernas, a partir do início do séc. XIII. A matéria
da Bretanha constitui um vastíssimo complexo de textos, em versos e em prosa, que narram
aventuras mirabolantes. Além do rei Artur, personagens importantes são os heróis Percival,
Boors e Galaaz, o traidor Lancelot que arrebata a noiva do bondoso Artur, Tristão e Isolda.
Apenas para saborear a forma e dar uma idéia do conteúdo da Demanda do Santo Graal,
transcrevo um trecho do episódio “A Tentação de Galaaz”, quando o jovem herói, cavaleiro
andante, junto com o amigo Boors, chega ao castelo do rei Bruto e recebe hospedagem:
“E depois que estavam dentro e foram desarmados, o rei os fez assentar perto de si
e fez-lhes muita honra e começou a perguntar de seus feitos. E eles lhe disseram um
pouco de algumas coisas. E a filha do rei Brutos, que era muito formosa, olhou
muito tempo Galaaz e pareceu-lhe tão formoso e tão bem feito, que o amou
entranhadamente, como nunca amou tanto nada do mundo, que não tirava dele os
olhos; e quanto mais o olhava, mais gostava dele e mais o amava”.
O texto continua narrando que a mocinha, de noite e apenas de camisola, entra no quarto do
jovem herói e se deita na cama junto dele. Mas, ao passar a mão pelo corpo para despertá-
lo, percebe que ele usava a “estamenha”, uma malha que funcionava como cinto de
castidade. Mesmo assim queria que o jovem fizesse amor com ela, caso contrário ela se
mataria. Galaaz não acreditou na ameaça e não cedeu ao apelo erótico da mocinha. E ela,
não suportando o sentimento de rejeição, trespassa seu corpo com a espada de Galaaz.
Do ponto de vista da coerência interna à própria obra, podemos apontar vários
elementos de inverossimilhança no texto em tela, especialmente na caracterização da
personagem feminina: uma paixão repentina e tão violenta não é admissível numa mocinha
de apenas quinze anos; o impulso amoroso é sem motivo, pois o jovem herói nem sequer
olhara para ela; a moça nem teria a força física suficiente para empunhar a espada enorme e
fazê-la penetrar no corpo inteiro, do peito até às costas; a espada nem sequer estava no
quarto de Galaaz, pois, conforme está dito acima e seguindo as normas do código da
cavalaria, a arma foi deixada na casa das armas, na entrada do castelo. Como se vê, o
princípio da verossimilhança (a arte parecida com a realidade), que era o preceito
fundamental da estética clássica, não é tido em conta pela arte medieval. Não existe mais
racionalidade, bom senso, equilíbrio, meio termo. O ser humano é visto ou como um anjo
ou como um demônio.
Tal mentalidade medieval é expressa teoricamente pela doutrina do pensador
religioso Maniqueu (216-277), também chamado de Mani ou Manés), oriundo de uma seita
da Mesopotâmia, também ele crucificado por pregar uma nova doutrina de salvação e se
achar outro profeta. O fundador do Maniqueísmo admitia uma perpetua luta entre o
princípio do Bem (Deus, o espírito) e o princípio do Mal (o Diabo, a matéria). Os dois
princípios seriam antagônicos e irredutíveis, constituindo um Dualismo Cósmico que
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explicaria a oposição entre a alma e o corpo, a luz e as trevas, o amor e o ódio, a bonança e
a tempestade. A igreja de Roma, evidentemente, condenou a doutrina maniqueísta, pois não
podia admitir a coexistência de dois seres absolutos, independentes na sua origem. Mas
persistem as perguntas: se o Diabo existe, por quem ele foi criado? Se foi um anjo que se
rebelou, por que Deus lhe deu tanto poder? Como conciliar a existência do mal, do
sofrimento de criaturas inocentes, face à imensa misericórdia divina?
Na verdade, o dualismo cósmico é uma configuração mental de arquétipos do
comportamento humano, existentes antes e depois da teoria do agnóstico Mani.
Encontramos tal dualismo nos mitos cosmológicos de Urano (Céu) e Gaia (Terra), na
oposição apolíneo vs dionisíaco, nos personagens bíblicos de Abel e Caim, na postura
opositiva da estética clássica e romântica, no estudo das profundezas da psique humana,
onde Freud diferencia o “id” (a força do instinto individual) do “superego” (o poder das
injunções sociais). Felizmente, o pai da Psicanálise encontra uma síntese entre a oposição
do código da natureza vs o código cultural: é o “ego”, o eu consciente, que medeia entre os
dois extremos, propiciando o equilíbrio ao ser humano. É a inteligência que faz a diferença!
Em 778, poucos anos antes do rei da França, Carlos Magno, ser coroado Imperador
pelo papa de Roma, houve uma expedição militar na Espanha para lutar contra Marsílio,
emir da cidade de Saragoça, tomada pelos muçulmanos. Ao redor deste fato histórico, a
imaginação popular foi criando lendas que exaltavam o valor dos paladinos da França,
especialmente de Roland, o mais valente guerreiro. Após uma tradição oral de mais de três
séculos, os cantos épicos foram juntados num único poema. O manuscrito original, de
autoria desconhecida, remonta ao ano de 1170. Mas ficou obliterado por longos séculos.
Descoberto em 1832, na época do Romantismo, quando se buscavam e exaltavam as
origens das várias nacionalidades dos povos europeus, o texto começou a ser estudado e
editado. Eu utilizo a tradução em língua portuguesa, calcada sobre o manuscrito de Oxford.
No início da trama, o exército de Carlos Magno está sediado em território espanhol.
O mouro Marsílio envia ao Rei da França um embaixador propondo sua retirada em troca
de valiosos presentes e da promessa de conversão ao Cristianismo. Numa reunião no
acampamento militar, os principais líderes franceses, com exceção do herói Roland,
aceitam a proposta de paz e enviam Ganelão, cunhado de Carlos Magno a Saragoça para
selar o pacto. Mas Ganelão, invejoso da glória de Roland, trama sua morte, aconselhando o
Rei a voltar com o grosso do exército para a França, deixando apenas Roland e um grupo
de paladinos na retaguarda.
O punhado de franceses é atacado por milhares de muçulmanos no estreito de
Roncesvales, nas montanhas dos Pirineus. Apesar da heróica resistência, os franceses são
massacrados, pois Carlos Magno, avisado da traição pelo som da corneta de Roland ferido,
não chega a tempo. Segue a vingança e o castigo: o exército cristão massacra todos os
soldados muçulmanos, conquista Saragoça, obriga seus habitantes a receberem o batismo e
retorna a Aix, a cidade francesa sede do Império, onde Ganelão é julgado e condenado à
morte por esquartejamento.
Este é o resumo da fábula do poema La Chanson de Roland. Mas a história é outra.
A literatura, como a religião, não está preocupada com a realidade histórica ou científica. A
arte e a fé são frutos da imaginação, que cria mundos fantásticos. Apontamos algumas
discrepâncias entre o mito e a realidade: quem libertou a cidade de Saragoça do domínio
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muçulmano não foi o rei francês Carlos Magno, mas Afonso I de Aragão, em 1118; a
expedição francesa não durou tanto tempo e acabou com a derrota e não com a vitória de
Carlos Magno; o número dos componentes dos exércitos, de um lado e de outro, é
exagerado (centenas de milhares de soldados!); os cristãos bascos são transformados em
muçulmanos; o maravilhoso cristão apresentado na obra é uma repetição de passagens da
Bíblia ou do Corão: o arcanjo Gabriel, que já apareceu a Moisés, à Virgem Maria e a
Maomé, aparece também na hora da morte do herói Roland, levando sua alma para o céu; o
rei Carlos, como fizera Josué, pede a Deus que pare o sol para retardar a chegada da noite e
dar-lhe tempo para matar todos os infiéis em Roncesvales; os episódios bélicos são
misturados com assuntos familiares e amorosos: o herói Roland é visto como sobrinho do
rei da França, tendo como noiva a bela Aude, que morre de dor ao saber da morte do
amado, antecipando o mito shakespeariano de Romeu e Julieta.
Portanto, mais do que um episódio histórico, a epopéia francesa deve ser vista
como a exaltação de um conjunto de valores ideológicos que vigoraram na Idade Média e
formaram o ideal da instituição da Cavalaria: a defesa da religião cristã, o patriotismo, o
sentimento de honra e de amizade, do amor idealizado. É por isso que a figura de Roland se
tornou um mito e transcendeu os limites da França, com os nomes eufônicos de Rolando ou
Orlando. Sua fortuna se manifesta principalmente na Itália renascentista, quando se retoma
o gênero da poesia épica greco-romana, tingido dos matizes do romance cavalheiresco.
Ludovico Ariosto, retomando o poema inacabado Orlando Apaixonado, de Matteo Boiardo,
escreveu a obra imortal Orlando Furioso, de que Camões imitou a estrutura rímica para a
composição dos Lusíadas. Outro poema do gênero épico-cavalheiresco é Jerusalém
Libertada, de Torquato Tasso.
O Cid (em árabe “Senhor”, com o apelido “Campeador” = campeão) está à Espanha
como Roland à França: são os dois heróis-símbolos das respectivas nacionalidades. O
elemento de convergência é a luta dos cristãos contra os mouros. Mas há profundas
diferenças entre os dois personagens. Enquanto Roland é uma figura mítica, o Cid é o
protagonista de fatos historicamente comprovados. Seu nome civil é Ruy Díaz de Vivar,
um condutor de exércitos que morreu em 1099. Apenas poucas décadas depois de sua
morte, a partir de 1140, aproximadamente, já surgiram os primeiros cantares sobre suas
façanhas bélicas, seu envolvimento com os políticos de sua época e seus laços familiares.
Como acontecia em todos os poemas épicos, primeiro houve uma tradição oral e depois
começaram a aparecer cantos escritos. O primeiro manuscrito encontrado do Poema del
Cid remonta ao ano de 1307, mas só foi descoberto e publicado, pela primeira vez, em
1779, na época do Romantismo, quando os povos europeus buscavam as origens de suas
nacionalidades.
O poema conta a vida de Ruy Díaz, senhor de Vivar e vassalo de D. Alfonso de
Castilha. As vitórias militares lhe proporcionam fama e riqueza, o que suscita inveja nos
nobres de Castilha. O rei, acatando as intrigas, acaba exilando o herói. Mas ele continua sua
campanha de conquistas de territórios muçulmanos, chegando a penetrar em Valência, onde
assenta seu quartel general. Defende bravamente a cidade do ataque do rei do Marrocos,
Yucef, que desembarcara na Espanha para reconquistar Valência. De lá, o Cid envia
presentes a D. Alfonso, ao bispo, aos amigos e parentes, solicitando a revogação do decreto
de exílio. O Rei reconhece o seu valor e permite que sua esposa Jimena, junto com as
82
filhas Elvira e Sol, visitem o herói em Valência, arrumando o casamento das mocinhas,
ainda em tenra idade, com dois nobres de Carrión, Diego e Fernando. Mas logo os dois
genros do Cid se revelam covardes, interesseiros e violentos, batendo em suas esposas. O
herói reclama por justiça e o tribunal de Toledo condena os dois velhacos a restituir os
bens. O poema termina com duelos e novas núpcias.
Na verdade, El cantar de mio Cid foge das características do gênero épico
tradicional por não fazer uso do maravilhoso, do extraordinário. Não há intervenções
divinas, revelações sobrenaturais, nenhuma espécie de milagre. A religião está presente
apenas como ritual: antes das batalhas, os muçulmanos invocam Maomé e os cristãos
Santiago. São professados dogmas e sacramentos da fé, conforme a tradição católica. Como
também não há nenhuma idealização de ações humanas. Cid derrota o conde de Barcelona
e exige um resgate, vende a cidade de Alcácer, cobre pesados impostos das povoações
subjugadas, compra o perdão do Rei com valiosos presentes, estipula o preço do dote,
enfim, tudo é calculado, pesado, quantificado: a espada Tizona vale mil Marcus, ao herói
cabe a quinta parte de cada botim de guerra. Da mesma forma que as Cruzadas, a defesa da
religião cristã contra o Islamismo é apenas um pretexto para o enriquecimento à custa de
cidades-estado vizinhas: o valor militar, aos poucos, vai suplantando a nobreza de sangue.
primitivos. Por exemplo, o episódio da morte de Sigfrido pela descoberta de seu ponto
vulnerável, parece uma versão adaptada do mito grego do “calcanhar de Aquiles”.
Na verdade, o poema é a exaltação do ideal de vida da nobreza medieval, baseado
no princípio da fidelidade e da honra. O que é relevante e faz a diferença entre a epopéia
germânica e os cantos épicos latinos, especialmente espanhóis, é o tratamento da mulher.
Enquanto no Cantar de mio Cid, a figura feminina é considerada apenas um objeto de uso
ou de troca, a moça sendo obrigada a casar em tenra idade e sem possibilidade de escolha,
configurando uma sociedade profundamente machista, no poema dos Nibelungos é a
vontade da mulher que prevalece. O homem nobre ou o herói de guerra é visto apenas
como um vassalo da mulher, a quem ele deve obedecer, conforme o código cavalheiresco
que já vimos na poesia lírica da Provença.
A Divina Comédia constitui, sem dúvida alguma, o maior monumento literário que
nos deixou a segunda fase do Medievo, sendo seu autor o florentino Dante Alighieri (1265-
1321), o maior poeta da língua italiana. Ele se tornou o símbolo da cultura da Itália e da
Idade Média, assim como Shakespeare o é com relação a Inglaterra e ao Renascimento,
Goethe com a Alemanha e o Romantismo, Dostoievski com a Rússia e a Idade Moderna.
Dante intitulou sua obra “Comédia”, por um sentimento de humildade, visto que os antigos
gregos distinguiam este gênero da “Tragédia”, que tratava de fatos gloriosos e de
personagens heróicos.
Conforme alguns estudiosos, Aristóteles, além do primoroso estudo sobre a
tragédia grega, que se encontra na sua Poética, teria composto também um tratado sobre a
“Comédia”. Mas este texto, infelizmente, teria se perdido. O crítico e ficcionista italiano
Umberto Eco concentra a trama de seu famoso romance O Nome da Rosa na busca desta
obra de Aristóteles, não perdida, mas escondida na biblioteca de uma abadia medieval,
tendo como título o Livro do riso. Crimes horríveis são cometidos para manter oculto este
antigo tratado sobre o humor. Talvez o propósito principal do romance e do filme
homônimo é demonstrar como o dogmatismo religioso impede a liberdade do ensino, da
pesquisa, de qualquer conhecimento estranho às escrituras consideradas sagradas.
O poema de Dante é, pois, chamado de Comédia por tratar da vida e das crenças,
dos pecados e das virtudes dos homens comuns da Florença de sua época e também porque,
ao contrário da tragédia, começa com a tristeza (a vida no inferno) e termina com a alegria
do paraíso. Mas é considerado, igualmente, um poema épico pela grandiosidade temática
que transcende os limites da epopéia de uma nacionalidade para se tornar o canto da
humanidade toda em busca da ascese espiritual. Quem lhe acrescentou o qualificativo de
“divina” foi o escritor contemporâneo e conterrâneo de Dante, Giovanni Boccaccio,
encantado pelo valor estético dos versos e pelo assunto transcendental da obra.
O poeta imagina que teve um sonho, durante a Semana Santa de 1300, o primeiro
“Ano Santo” ou jubilar, inventado pelo papa Bonifácio VIII, para conceder indulgências
dos pecados a todos os peregrinos que fossem rezar em Roma (qualquer semelhança com a
viagem dos muçulmanos a Meca é pura coincidência!). Durante o longo sonho visitou as
três partes do mundo ultraterreno, conforme a crença da religião católica: Inferno,
Purgatório e Paraíso. A descrição desta viagem é o conteúdo da Divina Comédia, poema
dividido em três cânticos, cada cântico composto de 33 cantos, em estrofes de três versos.
O número três, calcado na Trindade divina, era considerado mágico na Idade Média e está
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presente na obra toda: três feras e nove (3+3+3) círculos no Inferno, nove patamares no
Purgatório, nove céus no Paraíso. As três partes da obra terminam todas com a mesma
palavra: “estrelas”. A soma das três partes, 3 vezes 33, dá 99 cantos, mais um introdutório
no começo do Inferno, completa o número 100. Tudo isso faz da Divina Comédia o poema
melhor estruturado de toda a literatura ocidental.
Dante imagina o Inferno formado por uma profunda voragem, em forma de funil,
aberta pela queda de Lúcifer, quando o anjo rebelde foi derrotado por Deus e lançado no
centro da terra, nas proximidades da cidade de Jerusalém. Nesta cratera, composta de nove
círculos, sempre mais estreitos na medida em que se desce, estão distribuídas as almas dos
que morreram em estado de pecado e, por isso, condenadas às penas eternas. Dante,
acompanhado pelo poeta latino Virgílio de quem se sente discípulo, pois da leitura do
poema Eneida ele teve a inspiração para a viagem no mundo do além-túmulo, começa a
descida, visitando e conversando com as almas famosas da antiguidade greco-romana e de
seus contemporâneos. A intensidade do sofrimento é correlata à gravidade dos pecados
cometidos, sempre aumentando na medida em que se aproxima do último círculo, o dos
traidores, onde está afixada para sempre a figura imensa de Lúcifer.
Um dos episódios mais comovente, descrito no canto V do Inferno, é a narração do
amor, da morte e do castigo de dois jovens, Paula e o cunhado Francisco. Percebe-se, no
espírito do poeta, a coexistência de dois sentimentos conflitantes: a ética cristã que condena
o adultério e o impulso irresistível da atração sexual que, por ser natural, não deixa de ser
divino também, posto que Deus é o autor da natureza. Sua consciência de cristão reprova
especialmente o “modo” como a vingança foi feita: colhidos no ato do adultério, os
amantes foram assassinados sem chance de arrepender-se do seu pecado. Uns dois séculos
mais tarde, o imortal dramaturgo Shakespeare vai descrever algo semelhante: Hamlet, o
príncipe da Dinamarca, tendo a missão de vingar a morte do pai, ao perceber que o
assassino estava sozinho na capela, rezando, reflete: se o matar agora, estando ele em
estado de graça por ter pedido perdão de seus pecados, ele irá para o céu. Vou aguardar,
então, outra oportunidade para causar sua morte, quando ele estiver numa orgia. É o
requinte da vingança: matar o corpo e mandar a alma para o inferno!
O segundo cântico fala do Purgatório, uma montanha que se formou pelo
deslocamento da terra para o lado oposto de Jerusalém, no hemisfério austral, depois da
queda de Lúcifer. O sentido do movimento é o inverso: enquanto se desce para o Inferno
(em forma de funil), sobe-se para o Purgatório (em forma de cone), até chegar à parte mais
alta, próxima do céu. Dante e Virgílio visitam as almas que vão subindo, carregando os sete
P (os pecados capitais): na medida em que alcançam um terraço vão se purificando e um P
cai de suas costas. Os orgulhosos carregam recifes; os invejosos andam com as pálpebras
costuradas; os raivosos são envolvidos por uma nuvem de fumaça; os preguiçosos têm que
correr; os avarentos estão com pés e mãos atados; os gulosos sofrem do suplício de Tântalo:
não conseguem alcançar as frutas na sua frente; os luxuriosos ardem em chamas.
Enquanto o Inferno é o reino da rigidez, onde tudo é fixado no tempo e no espaço,
no Purgatório predomina o movimento, a passagem de um lugar para outro, do hoje para o
amanhã. Estamos no reino da esperança da salvação, sendo a escalada da montanha o
símbolo da ascese espiritual. O termo purgatório significa purificação, que se dá pela
passagem das trevas da ignorância para a luz do conhecimento. Fazendo psicanálise antes
do tempo, Dante nos ensina que a superação do mal só é possível por uma tomada de
consciência do passado. Era preciso passar pelo Inferno para poder descobrir a origem do
mal e encontrar sua cura. A causa primordial da desgraça humana é vista no egoísmo que
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praças, palácios.
O homem-emblema do Renascimento italiano e europeu foi o florentino Leonardo
da Vinci (1452-1519), artista e sábio (pintor, escultor, arquiteto, poeta, matemático, físico,
filósofo), sendo definido como “o mais completo dos homens” de todos os tempos e
lugares. Foi com ele que a Europa despertou do sono medieval e abriu as portas para a
modernidade. Ele viajou pelas principais cidades da Itália (Florença, Milão, Mântua,
Roma), solicitado para fazer obras de pintura e de escultura, ora rivalizando, ora
trabalhando em conjunto com os outros dois pintores famosos da sua época, Rafael e
Michelangelo. Enfim, morreu a serviço do rei da França Francisco I. Além das artes,
Leonardo cultivou a investigação científica, estudando fenômenos naturais, anatomia,
hidráulica, mecânica. A obra de arte que o tornou imortal foi a tela Mona Lisa, também
chamada de “Gioconda”, o retrato da esposa do nobre florentino Francesco Del Giocondo,
que se encontra em exposição no museu do Louvre, em Paris. A peculiaridade deste quadro
é que a imagem sorri para o observador de qualquer lado que ele a olhe e de uma forma
enigmática. Como pensador nos deixou vários ensinamento. Eis um, apenas como amostra:
“De tempos em tempos, o Céu nos envia alguém que não é apenas humano, mas
também divino, de modo que, através de seu espírito e da superioridade de
sua inteligência, possamos atingir o Céu".
Ele, sim, pode ser considerado um “enviado” de Deus e não gente tosca, tipo
Moisés ou Maomé!
O poeta conta como o fogo da paixão amorosa incendiou o coração do príncipe Infante pela
bela aia Inês:
“Estavas, linda Inês, posta em sossego...
“Tu só, tu, puro amor, com força crua...
Mas o rei Afonso IV não aceita o relacionamento ilegítimo de seu filho e decreta a morte da
jovem. Inês implora a clemência do Rei pelos dois filhos que tivera com o príncipe
herdeiro:
“Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito...
A estas criancinhas tem respeito...
O Infante, no ano seguinte à morte de Inês, assumindo o trono com o nome Dom Pedro I de
Portugal, em 1355, resgata a memória da amada, afirmando que casara com ela
secretamente e que, portanto, os filhos que tivera com Inês eram legítimos.
Outro episódio famoso d’ Os Lusíadas tem como protagonista o Velho do Restelo e
como cenário o porto de Belém, em Lisboa, de onde os expedicionários partiram para
chegar à Índia por uma via marítima mais curta. Na despedida, um senhor de idade,
comovido pelo choro de mulheres e crianças, se levanta e faz um veemente discurso
reprovando as aventuras marítimas, que causam o abandono de esposas e filhos e deixam a
pátria desprotegida:
“Mas um velho de aspecto venerando,...
90
A figura do Velho do Restelo, em contraste com o Poeta do prólogo que exalta as grandes
navegações, expressa a voz crítica de Camões. Ele, olhando os acontecimentos da Índia
com uma perspectiva de aproximadamente 70 anos, julga o domínio português nas colônias
improdutivo e causa do enfraquecimento do Reino de Portugal. O episódio exprime, ainda,
o Camões cansado das lutas e das guerras, que anseia à paz, com saudade da terra natal e
das tradições bucólicas de seu povo. Como se pode perceber, o poeta lusitano tem uma
personalidade dividida, múltipla, apresentando, ao lado da exaltação patriótica, uma
consciência crítica dos fatos que está cantando. É um prenúncio da criação dos heterônimos
de Fernando Pessoa: a expressão artística da coexistência de uma pluralidade de seres na
mesma pessoa. São os laços da inteligência crítica que fazem a ponte entre os dois maiores
poetas de Portugal, o renascentista e o modernista.
A Cavalaria, em sua origem romana, era uma ordem ou status social a que pertencia
o cidadão que tinha meios para sustentar um cavalo com as vestimentas e as armas
adequadas. A ordem eqüestre estava por baixo da classe senatorial e por cima da infantaria,
constituída pelos soldados que provinham da plebe, o povão que fornecia ao Estado apenas
a “prole”, isto é, seus filhos para ir à guerra. O termo plebeu, em oposição a patrício, mais
tarde, na época de Karl Marx, será substituído por “proletário”, no mesmo sentido
etimológico de ter sua única riqueza nos filhos (prole), que só dispunham da mão de obra
para o trabalho.
Na Idade Média, os cavaleiros andantes tinham a função de transmitir notícias de
um castelo para outro, participar de rodeios, proteger viúvas, mocinhas e crianças
desamparadas, promover a ordem e a justiça. A imaginação popular foi criando inúmeras
histórias sobre os feitos grandiosos destes cavaleiros. Menestréis narravam aventuras
mirabolantes nos paços e nas tavernas, em prosa e em versos. Ouvir histórias era o principal
meio de diversão de um povo analfabeto, numa época em que ainda nem se sonhava com
imprensa, rádio, televisão, cinema, internet.
A obra literária que melhor retrata o mundo da cavalaria é El Engenioso Hidalgo
Don Quijote de la Mancha, conhecida pelo título abreviado Dom Quixote. Seu autor é o
espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616). O protagonista do romance é Alonso
Quijano, fidalgo da província da Mancha, fanático leitor de livros de cavalaria. Lembro que
a descoberta da imprensa pelo alemão Gutenberg, na segunda metade do séc. XV, facilitou
o uso da leitura de textos sagrados e profanos, antes restrito a poucas pessoas em condições
de adquirir manuscritos caríssimos pela raridade. Alonso, deixando-se envolver pelas
aventuras fabulosas encontradas nos livros, confunde ficção com realidade e decide pôr em
prática os ideais dos cavaleiros, andando pelo mundo para restabelecer o sentimento de
honra e de justiça.
Escolhe o nome Dom Quixote de la Mancha, uma camponesa, que passa a chamar
Dulcinéia do Toboso, como a dama do seu coração e o gordo Sancho Pança como
escudeiro. Limpada uma velha armadura e montado no cavalo Rocinante parte em busca de
aventuras. Chega a uma hospedaria e pede ao taverneiro, pensando que é o senhor do
91
castelo, que o consagre cavaleiro, tendo por testemunhas duas prostitutas, tidas como
nobres damas. Luta contra moinhos de vento, tomados por enormes gigantes. Sua derrota é
justificada pela inveja de inimigos feiticeiros. Seguem-se outras aventuras, sempre descritas
pelo modo irônico: confunde uma manada de ovelhas com um exército inimigo, um enterro
com o rapto de um cavaleiro ferido, uma bacia de barbeiro com o elmo do lendário herói
Mambrino.
Para escapar da polícia, Dom Quixote se refugia na serra Morena, onde fica em
meditação, assumindo o nome de “Cavaleiro da Triste Figura”. Lá, é alcançado pelo vigário
e o barbeiro, os amigos que estavam em sua busca. Eles arrumam um estratagema para
conduzi-lo de volta a sua casa, onde o espera a sobrinha que mora com ele. Mas o herói
escapa outra vez, indo até Toboso para rever a amada, confundida com uma moça feia e
malcriada. Sempre acompanhado pelo fiel escudeiro, vai para Saragoça e luta contra um
bacharel camuflado de “Cavaleiro dos Espelhos”. Em Barcelona, Dom Quixote e Sancho
Pança são objetos de gozação, este último sendo eleito “Governador da ilha de Barataria”.
Enfim, o mesmo bacharel, desta vez com o nome de “Cavaleiro da Branca Lua”, desafia
nosso herói a um duelo, desta vez sob juramento de que, se derrotado, voltaria para sua
terra. O que acontece. Dom Quixote chega em casa, adoece e morre.
Este é apenas um resumo de uma obra extensa e complexa, onde, na narrativa
principal, a fábula de Dom Quixote, se encontram encaixadas várias histórias de
personagens secundárias, ouvidas pelo protagonista em suas andanças pelas tavernas. Por
isso, há críticos que consideram a obra de Cervantes não um romance, mas uma “novela”,
devido a sua estrutura aberta, sempre suscetível de acrescentar mais um episódio, como
acontece atualmente com os capítulos da novela de televisão. Aliás, o próprio autor tem
consciência disso quando publica uma “Segunda Parte” do Dom Quixote, após o sucesso da
primeira edição. Mas não é aqui o lugar de discussões técnicas sobre a estrutura e o valor
estético da obra do grande escritor espanhol. Quero apenas salientar que, além do sentido
denotativo, explícito, que salta aos olhos (a sátira aos livros de cavalaria e a gozação de
seus heróis), a obra possibilita uma interpretação simbólica centrada na caracterização dos
dois personagens principais.
O personagem Dom Quixote exprime o ideal cavaleiresco que admite a
possibilidade da existência de um mundo onde reine a justiça social, a verdade, o amor
puro, a beleza, a honestidade, a honra acima de tudo. Neste sentido, Cervantes retoma o
mito bíblico do Paraíso Terrestre antes da culpa de Adão e a lenda pagã da Idade de Ouro,
assim como fazem outros escritores utópicos da Renascença européia. O personagem Dom
Quixote está fechado num subjetivismo absoluto, que julga tudo a partir de si próprio:
Se as duas moças da taverna podem ser vistas como duas nobres donzelas, por que
considerá-las prostitutas vulgares? Mais uma vez, permito-me estabelecer o paralelismo
entre a fantasia poética e a crença religiosa: se o devoto pode acreditar na existência de um
mundo sobrenatural, por que se contentar com as limitações da vida terrena? A arte, como a
religião, prescinde de qualquer fundamentação lógica, colocando-se acima da filosofia, da
história e da ciência.
Já o escudeiro Sancho Pança revela uma personalidade completamente oposta,
representando o que é material e prático, a vida do burguês renascentista. A própria figura
física já estabelece o contraste: gordo e barrigudo. Ele simboliza o conjunto de valores
92
cultivados pelo meio ambiente, especialmente o desejo de riqueza e de uma posição social
de prestígio: ele acompanha o herói exclusivamente porque lhe prometeu o governo de uma
ilha. Sancho não tem instrução alguma, exprimindo-se por provérbios populares e
deixando-se guiar pelo bom senso. Os dois personagens vivem apresentando opiniões
opostas. Mas é próprio na descrição da tensão entre as duas forças opostas, o ideal e o real,
que reside a beleza humana e poética do romance. O personagem Dom Quixote fica doente
e morre quando é impedido de “sonhar seu sonho impossível”, quando se convence de que
é inútil lutar contra a massificação da realidade.
Mas o personagem de uma obra de arte verdadeira morre? É claro que não! Morre o
autor, morre o ator que interpreta o papel, mas sua mensagem perpassa o tempo e o espaço.
Dom Quixote está aí continuamente presente na poesia, no teatro, no cinema, na escultura,
como um deus que muda de religião (judeu, cristão, muçulmano), mas não de
espiritualidade. Afinal, viver numa sociedade onde reine a justiça é sempre preferível ao
domínio da prepotência, do egoísmo, da selvageria. Então, por que não continuar a luta para
alcançar tal ideal? É uma questão de inteligência, de reflexão, de bom senso!
O Teatro de Shakespeare
Júlio César
A peça está centrada sobre o assassinato político mais famoso da história do
Ocidente: no dia 15 de março de 44 a.C., no palácio do Capitólio em Roma, Júlio César,
cônsul e herói nacional, é morto a punhaladas por um grupo de senadores. As vitórias do
grande general sobre os gauleses e sobre os inimigos internos, junto com a grande
popularidade, suscitaram o temor de que César pusesse fim ao regime democrático. Alguns
senadores por inveja, outros realmente preocupados com a sorte da república romana,
resolvem conspirar, solicitando a adesão também do nobre Bruto, que César considerava
como um filho. Fazendo pouco caso do conselho dos adivinhos e da esposa Calpúrnia, que
previam os idos de março como fatídicos e nefastos, o cônsul vai à reunião no Capitólio,
onde é circundado por vários senadores armados. Ao receber os primeiros golpes de
punhais tenta se defender, mas desiste quando percebe que até seu melhor amigo está entre
os conspiradores, pronunciando a famosa frase:
“Tu quoque, Brute, fili mi?” (Também você, Bruto, meu filho?).
O discurso do cônsul do partido democrata alcança seu objetivo: Bruto, Cássio e os outros
assassinos fogem de Roma, perseguidos pelas tropas de Otávio e Marcus Antônio. Em
Filipos, cidade da Macedônia, acontece o enfrentamento. Bruto, vencido, acaba se
suicidando. Ao morrer, ele exclama: “César, descansa agora”, pois o espectro do antigo
amigo não deixava de persegui-lo.
Como toda obra de arte verdadeira, ela é poliédrica, ensejando várias interpretações. Um
sentido épico-político pode ser visto no aproveitamento do mito de Hamlet para explicar a
derrota histórica da Dinamarca por parte da Noruega: antigamente, a Dinamarca, país
poderoso que dominava as nações vizinhas da Noruega, Polônia e Inglaterra, entrou em
decadência por causa da ambição e do ódio de seus governantes. Uma interpretação
psicanalítica explicaria o desprezo de Hamlet pela bela noiva Ofélia. O complexo de Édipo
levaria o jovem a considerar o tio como um rival na disputa do amor de Gertrudes. A
conduta indecorosa da mãe provoca nele um profundo sentimento de misoginia, que o
afasta do relacionamento sexual. Mas, a meu ver, o tema que perpassa esta peça de ponta a
ponta e que se avoluma no monólogo do personagem Hamlet, que inicia com o famoso
verso
“ser ou não ser, eis a questão!”
Romeu e Julieta:
Na cidade de Verona, no Norte da Itália, duas poderosas famílias são inimigas
juradas de morte: Montecchio e Capuleto. O jovem Romeu, da família dos Montecchio,
resolve participar, mascarado, de um baile no palácio dos Capuleto. Ao ver a linda Julieta,
sente-se atraído irresistivelmente. Seu olhar de amor é correspondido, mas, ao se
apresentarem, os dois jovens ficam decepcionados, pois descobrem pertencer a famílias
inimigas. Mas a atração amorosa é irresistível: Romeu, às escondidas, penetra nos jardins
dos Capuleto e ouve Julieta na janela confessar às estrelas sua paixão pelo jovem
Montecchio. Romeu se apresenta, então, e revela a reciprocidade do sentimento. Um padre
franciscano, Frei Lourenço, amigo da família dos Montecchio, em segredo, celebra o
casamento, na esperança de que o enlace apaziguasse as duas famílias rivais.
Mas a desgraça pairava no ar: numa briga entre amigos dos Montecchio e parentes
dos Capuleto, Romeu acaba matando Teobaldo, primo de Julieta, que acabara de causar a
morte de seu amigo Mercúrio. Romeu foge para a cidade de Mântua e Frei Lourenço
prepara um plano para salvar o casal: pede a Julieta que tome um sonífero, parecendo um
veneno, para fingir-se morta e ser sepultada. Romeu chega na sala mortuária e, não tendo
recebido a carta de Frei Lourenço, pensa que a amada está morta de verdade. Suicida-se,
então, para ficar ao lado da amada. Julieta acorda e, vendo Romeu morto, acaba
trespassando seu peito com a espada do esposo. A peça termina com o arrependimento dos
membros das duas famílias que põem fim às inimizades. A mensagem contida na cena final
afirma o triunfo do amor sobre o ódio.
Todas as peças trágicas de Shakespeare estão construídas a partir de um fato
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palavra de Deus está contida apenas nos textos sagrados, não podendo ser alterada pela
intervenção do Papa ou de bispos reunidos em Concílios: sola scriptura (apenas a Escritura
Sagrada contém a verdade).
Lutero não aceita, portanto, o dogma da infalibilidade papal, mesmo falando “ex
cátedra” sobre assuntos de fé: todo ser humano está sujeito a erro. Qualquer cristão pode
dirigir-se diretamente a Deus, não precisando de intermediários: daí a iconoclastia, que
prega a derrubada de imagens e estátuas da Virgem Maria e dos Santos, assim como o culto
de relíquias, a celebração de missas e a confissão. Rejeita, portanto, todos os
“Sacramentos” inventados pela Igreja, aceitando apenas os dois que se encontram no Novo
Testamento: o Batismo (que Jesus recebeu de João Batista) e a Eucaristia (a comunhão do
pão da Última Ceia). Ele deu o exemplo de dessacralização do matrimônio, juntando-se
com a ex-freira Katharina von Bora com quem teve seis filhos.
Mas a doutrina luterana não deixa de ter um substrato político e econômico. Trata-
se, enfim, da insurreição dos povos anglo-saxônicos contra a tirania do poder papal, que de
Roma impunha pesados tributos e uma moral hipócrita. Ele pregou a substituição do
decadente clericalismo romano pela instituição de um sacerdócio universal de todos os
cristãos, abolindo qualquer tipo de hierarquia, posto que todos somos iguais perante Deus.
E por isso que a Reforma luterana provocou rebeliões na Alemanha, na Suíça, na
Inglaterra e em outros países do Norte da Europa, que transcenderam o aspecto religioso,
entrando no social. Os nobres empobrecidos, junto com a seita popular dos “anabatistas”
(os novos batizados), assaltaram abadias e mosteiros, lançando o grito comunitário: se
todos os homens são iguais perante Deus, é justo que todos os bens sejam divididos entre
todos. Mas esta forma de comunismo antecipado não foi aprovada por Lutero, que sempre
esteve ao lado da burguesia.
O apoio à burguesia foi mais evidente ainda no segundo patriarca da reforma
protestante, o suíço João Calvino (1509-1564), que transformou Genebra numa cidade-
igreja, regida pelos princípios do Evangelho. A base ideológica está na crença de que o
sucesso social e econômico, o enriquecimento, mesmo ilícito pela usura, é um sinal da
benção divina. O historiador Marx Weber escreveu uma obra que, publicada em 1905, se
tornou clássica sobre o assunto: A Ética protestante e o espírito do Capitalismo, tese que
pretende dar a razão pela qual a maioria dos povos de religião protestante são mais ricos e
desenvolvidos do que as etnias latinas onde predomina a religião católica, que prega
(apenas na doutrina, bem entendido!) a renúncia aos bens materiais. É preciso salientar que
o fundador do Protestantismo, Lutero, fora educado na filosofia escolástica de Guilherme
Ockham (1287-1347), que havia instado os cristãos a tentar merecer a graça de Deus por
meio de suas obras: estava lançada a base da meritocracia, cada qual devendo ganhar
conforme o mérito.
O princípio fundamental do Protestantismo, que defende o direito ao julgamento
individual na interpretação das Escrituras, teve como conseqüência natural o aparecimento
de um grande número de seitas ao longo do tempo e do espaço. Além do luteranismo e do
calvinismo, apontamos o anglicanismo, as igrejas batistas, metodistas e evangélicas (em
suas várias ramificações), o pentecostalismo, os quacres, os mórmons, entre outras seitas
que não param de surgir. Volta e meia aparece um novo pregador que se acha possuído pelo
Espírito Santo para fundar uma igreja diferente.
O sucesso da Reforma protestante provocou a Contra-Reforma católica. A igreja de
Roma, para enfrentar a disseminação das várias seitas protestantes, convocou o Concílio de
Trento, cidade do Norte da Itália, que durou de 1545 a 1563. Os bispos dos vários países
97
“Você não pode ensinar nada a um homem; você pode apenas ajudá-lo a encontrar
a resposta dentro dele mesmo.”
vista como sua terra prometida, assim como fora Canaã para o povo hebreu. Lá, os
emigrantes do Norte da Europa se juntaram a judeus e a grupos de outras etnias perseguidos
ou desajustados em sua terra de origem para construir uma nova pátria onde os indígenas
não tinham capacidade nem vontade de trabalhar.
Na nova terra, irmanados pelo espírito do trabalho e do progresso civilizacional, não
há conflito entre cristãos, judeus e muçulmanos. O evangelismo americano pouco se
diferencia do catolicismo: a remissão dos pecados e a promessa do paraíso não se paga
mais por indulgências, mas por dízimos. As igrejas, todas elas, se enriquecem às custas de
seus fiéis. Parece que padres, pastores, rabinos, lamas, mulás, aiatolás formem um coro
sussurrando:
uma breve apresentação dos principais pensadores que mais contribuíram, ao longo da
Renascença e do Iluminismo, para o desenvolvimento do raciocínio humano.
O estudioso francês René Descartes é conhecido também pelo nome latino Renatus
Cartesius, de que resultou o nome italiano Cartesio e o adjetivo qualificativo “cartesiano”,
no sentido de uma verdade clara e indiscutível. Além de filósofo, foi também um grande
matemático, associando as duas atividades mentais: para ele, o pensamento reflexivo devia
ter a mesma clareza e objetividade da ciência exata. Ele operou uma revolução no campo da
filosofia semelhante a que seus contemporâneos Copérnico e Galilei estavam realizando no
mundo da astronomia (o heliocentrismo): como o centro do universo até então conhecido
não era mais a terra, mas o sol, assim o conhecimento da realidade não residiria no mundo
exterior, variável e enganador, mas no mundo interior, na mente que o pensa, na razão. Por
isso, ele é considerado o pai do moderno Racionalismo.
Descartes seguiu – consciente ou inconscientemente, pouco importa - o método
socrático da dúvida sistemática, não acreditando em nada que não pudesse ser demonstrado
cientificamente, que não tivesse uma evidência incontestável. A primeira coisa de que não
podia duvidar era o fato de pensar: daí o famoso achado “penso (ou duvido), portanto eu
existo”. A grande contribuição de Descartes à filosofia foi a valorização do ato de pensar, o
estabelecimento da primazia da razão. A única coisa que não é ilusória é o eu pensante. A
própria objetividade da ciência não pode existir fora da subjetividade de quem a estuda. O
conhecimento parte de dentro para fora. Rompe-se, assim, o automatismo cognitivo
fundamentado na tradição cultural, desmonta-se o mundo do autoritarismo: tudo é
submetido ao controle da lógica.
Mas, infelizmente, a clareza e a coerência cartesiana não penetram o domínio da
ética. Filho de sua época, Descartes sucumbe aos preconceitos da teologia escolástica e da
moral burguesa. Ele acaba professando a necessidade de uma ética “provisória”, de
tolerância, conformista em relação aos ditames de ordem política, social e religiosa.
Quando fica sabendo da condenação de Galilei, Descartes deixa de publicar um trabalho
científico em que apresentava idéias inovadoras semelhantes. O medo o torna omisso e
hipócrita. Precisamos esperar a vinda do alemão Emanuel Kant para que os valores
humanos da sinceridade, da verdade e da justiça fossem considerados “imperativos
categóricos”.
“eu” dispor de si mesmo, considerando como princípio de opressão todo o mundo exterior:
a natureza, a sociedade, as paixões. Já, conforme a Bíblia, todos os seres humanos, ao
nascerem, contraem uma culpa por um pecado que não cometeram. O determinismo
psicológico é claramente expresso por São Paulo na sua Epistola aos Romanos:
“faço não o bem que quero, mas o mal que não quero”.
O problema é estudado com uma maior profundidade uns três séculos mais tarde
com os Padres da Igreja. Santo Agostinho tenta conciliar a liberdade de escolha do homem
com a presciência divina, mas a existência do mal cria dúvidas em seu espírito: se Deus
prevê e pode, por que não evita a maldade e a desgraça de que são vítimas não apenas os
culpados, mas também tantos inocentes e ignaros? De outro lado, admitir a coexistência de
uma dualidade cósmica, o princípio do Bem e do Mal, seria aceitar o Maniqueísmo,
doutrina considerada herética. Na verdade, Santo Agostinho dá a entender que a presença
da maldade no mundo, face à imensa sabedoria e bondade divina, é algo de inexplicável,
beirando o mistério.
Na época do Barroco europeu, a questão se torna uma polêmica, ainda hoje não
resolvida plenamente pela igreja católica, entre molinistas e jansenistas. O jesuíta espanhol
Luís Molina, como reação às teorias protestantes da predestinação, em 1588, publicou a
obra “Acordo do livre-arbítrio com o dom da graça, com a presciência divina, a
providência, a predestinação e a condenação”. O bispo holandês Jansênio, partidário do
agostinianismo integral, doutrina que dava maior importância à graça divina, em detrimento
da liberdade humana, iniciou uma campanha contra os jesuítas que, aceitando o pensamento
de Molina, privilegiavam a teoria da salvação pelo mérito pessoal. Sua obra Augustinus foi
publicada em1640, dois anos após sua morte, pelos seus discípulos, alcunhados de
jansenistas. Blaise Pascal conduziu a controvérsia entre molinistas e jansenistas, escrevendo
uma obra a respeito, intitulada As Carta Provinciais (1657), em que ataca o casuísmo dos
padres jesuítas.
Pascal, o grande físico, matemático e filósofo francês, se tornou famoso pela obra
Pensées (Pensamentos: 1670), entre tantas outras. Ele costumava freqüentar a sociedade
mundana, onde esbanjava seu espírito de finura e de elegância verbal, sendo por isso
considerado o fundador da prosa literária francesa. Em 1654, escapando da morte num
acidente de carruagem, teve um êxtase que o induziu a dedicar sua vida a Deus, tornando-se
um homem extremamente religioso. Ao freqüentar a escola jansenista de Port-Royal, Pascal
se deixou cada vez mais levar pelo sentimento, acusado, por isso, de reacionário pelos
intelectuais do Iluminismo. Conhecido é seu adágio: “o coração tem razões que a própria
razão desconhece”, confirmando assim o aspecto misterioso das relações entre o elemento
espiritual e material do ser humano, já apontado por Santo Agostinho.
“O homem é o lobo do homem” (a guerra de todos contra todos): esta famosa frase
do filósofo inglês sintetiza seu pensamento sobre as relações entre o indivíduo e a
sociedade. O homem, pela sua natureza animal, acossado pela autopreservação, acaba
invadindo o espaço do seu semelhante, provocando lutas sangrentas. É necessário, portanto,
que os homens se reúnam em sociedade e estabeleçam normas rígidas de convivência
pacífica. Para tanto, urge celebrar um “contrato social” pelo qual os indivíduos cedam seus
101
direitos e sua liberdade ao Estado, regido por um Soberano, que ele simboliza no Leviathan
(titulo da sua obra mais conhecida), monstro da mitologia fenícia, lembrado pelo profeta
bíblico Isaías. A ele, considerado como Deus na terra, deve ser dado todo o poder, pois
contratos sem a ameaça da espada são impotentes para garantir a paz e a segurança.
A proposta de um governo absolutista deve ser vista num contesto histórico: Hobbes
teve a experiência da Guerra Civil inglesa e dos inúmeros conflitos religiosos que se
espalhavam pela Europa toda. Seguindo, de alguma forma, o pensamento político de
Maquiavel, imaginou, então, que a solução estaria na separação do Estado da Igreja e na
constituição de um Governo único e totalitário que impusesse a paz pela força. O filósofo
inglês estava certo quanto à necessidade de um Estado laico, pois todas as religiões são
fomentadoras de conflitos éticos, mas errou redondamente ao propor um regime ditatorial.
Ele, de uma forma inconseqüente, não calculou que qualquer monarca ou salvador da
pátria, por ser ele também um humano, poderia se tornaria um lobo ainda maior, tipo Hitler
ou Stalin, conforme demonstrará a história a ele posterior.
Baruch Spinoza, a meu ver, é o pensador mais lúcido e coerente que antecedeu o
Século das Luzes. Ele teve a altivez de não se dobrar aos poderosos da sua época,
enfrentando o ostracismo da sinagoga de Amsterdã e não aceitando a cátedra da
Universidade de Heidelberg, para não renunciar à liberdade de pensar, de sentir e de agir.
Judeu descendente dos primeiros israelitas da Espanha, expulsos da península ibérica e
refugiados na hospitaleira e liberal Holanda, estudou para ser rabino, mas chegou à
conclusão de que as contradições encontradas nas Sagradas Escrituras eram provas da sua
origem não divina. Tratava-se apenas de histórias fantasiosas, escritas ao longo de vários
séculos e por muitos autores (por exemplo, como ele releva, seria impossível Moisés ter
redigido o Pentateuco sozinho). Acreditar em revelações divinas improcedentes e
contraditórias se tornou incompatível com os conhecimentos que vinha adquirindo através
do estudo da física, da matemática, da lógica, da astronomia e, especialmente da filosofia:
Galileu, Giordano Bruno e Descartes passaram a ser seus principais mestres.
Spinoza publicou em vida apenas duas obras, Princípios da filosofia de Descartes
(1663) e Tratado teológico-político (1670), mas elas suscitaram ataques tão violentos
contra sua pessoa que o levaram a decidir não mais publicar escrito algum. O restante de
sua produção teve edições póstumas, com destaque pelo seu tratado mais importante, Ética,
onde expõe seu pensamento sobre a divindade e a moral. Para ele, o que chamamos de
Deus é simplesmente a própria natureza em que essência e existência são uma coisa só, sem
criador nem criatura. É a teoria da pura imanência, não existindo nenhuma divindade ou
entidade sobrenatural: nada transcende o mundo da realidade, o espírito não existindo fora
da matéria.
Coerente com sua concepção teológica é seu conceito de moral. Se eu estiver
interpretando bem a idéia de Spinoza, para ele não existe uma ética religiosa nem
individual, pois qualquer forma de moralidade é sempre de cunho social. A própria
etimologia da palavra moral vem do acusativo latino mores, que significa “costumes”,
normas necessárias para se viver em sociedade de uma forma harmoniosa. Tais normas não
fazem parte de um contrato explicito, exarado por um profeta ou um príncipe, mas são
naturais, implícitas no próprio conceito de comunidade, que implica em direitos e deveres.
Num regime democrático, os cidadãos devem ser educados a respeitar a liberdade de seus
102
"Este é o resumo de todos os deveres: não façais nada aos outros que, se fosse feito
a vós, vos causasse mágoa" (Mahabharata);
"Não magoeis os outros com aquilo que vos magoa a vós" (Buda);
"Deus diz: amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Levítico);
"Tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós"
(Evangelho segundo Mateus);
103
ciência.
Nicolau Copérnico (1473-1543), astrônomo polonês, foi o primeiro a publicar um
tratado sobre a hipótese heliocêntrica, invertendo o sistema ptolemaico que regia a
astronomia havia quase 14 séculos: não era o sol, mas a terra que girava. Após dez anos de
estudos na Itália, ele chegou a demonstrar o duplo movimento dos planetas, em torno de si
mesmos e em torno do sol. Mas, temendo as represálias por parte da Igreja Católica, relutou
a apresentar sua idéia revolucionária que, contestando a Sagrada Escritura, iria emancipar a
cosmologia com relação à teologia. Foi o astrônomo italiano Galileu Galilei que endossou a
tese do sistema copernicano, mas foi processado por isso e precisou se retratar.
Francis Bacon (1561-1626), considerado o pai do Empirismo, inaugura uma nova
vertente no pensamento filosófico e científico. O estudioso inglês tem em comum com o
contemporâneo francês Descartes a luta contra o dogmatismo religioso e secular, herança
da cosmovisão medieval, propondo o livre exame da realidade física e psíquica, sem as
amarras de qualquer forma de preconceito. Mas discorda quanto à existência das “idéias
inatas”, postuladas pelo filósofo francês. Para Bacon,
A mente humana é uma “tábua rasa” sobre a qual se imprimem as idéias produzidas
pelas sensações provenientes do mundo exterior. A experiência sensível é a única fonte do
conhecimento. Mas sua grande contribuição reside na formulação do método científico de
pesquisa, até hoje utilizado. Na sua obra mais conhecida, Novum Organun, apresenta as
etapas do seu método: 1) observação do fenômeno; 2) análise de seus elementos
constitutivos, estabelecendo relações quantitativas e qualificativas entre eles; 3) indução de
hipóteses; 4) verificação das hipóteses por meio do experimento; 5) generalização do
resultado formulando uma lei, se as hipóteses forem confirmadas.
Isaac Newton (1642-1727) reconheceu sua dívida aos cientistas que o precederam
pela imagem de que um gênio é apenas um anão sentado em cima de uma montanha,
construída pela tradição cultural. As contribuições do grande cientista inglês no campo da
física, da matemática e da astronomia são incalculáveis. Lembramos apenas o episódio
lendário que o levou ao descobrimento da lei da gravitação universal e da atração terrestre.
Narra-se que Newton, estando descansando em baixo de uma macieira, uma fruta lhe caiu
105
na cabeça. Ele se perguntou, então, por que a maça caíra em lugar de subir ou ficar parada
no espaço. Tal fato o induziu a realizar uma série de experiências, jogando objetos de
diferentes pesos e de várias alturas, que o levaram à confirmação da tese de que os corpos
físicos mais densos caíam mais rapidamente ao solo por vencerem com maior facilidade o
atrito do ar atmosférico. Ele pôs em prática as três fases principais do método científico:
observação, comprovação, formulação da lei.
Descartes, Bacon, Galileu, Spinoza e outros filósofos e cientistas dos séculos XVI
(Quinhentos) e XVII (Seiscentos) criaram a base teórica para a grande revolução política e
social que aconteceu no século XVIII (Setecentos) na Europa e na América do Norte.
Estamos na época do Iluminismo, Ilustração ou “Século das Luzes”, quando se publicou a
grande Enciclopédia, o Estado se separou da Igreja, foi abolida a Escravidão, nasceram os
regimes Constitucionais e a Democracia moderna, aconteceu a Revolução Francesa içando
a bandeira da Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
O advento do Iluminismo foi preparado especialmente pelo Liberalismo, com base
na teoria política de Locke e na prática do Presidente dos EUA, Thomas Jefferson (1743-
1826). O pensador inglês John Locke (1632-1704), contestando a existência das idéias
inatas admitidas por Descartes, professa um materialismo sensualista, pois o conhecimento
só pode advir pelos sentidos, observando as leis da natureza. O desenvolvimento das
ciências naturais e a reorganização da sociedade em bases estritamente racionais acabariam
com todos os preconceitos religiosos. Mas os verdadeiros criadores do liberalismo político
foram os economistas ingleses Adam Smith e John Stuart Mill. Apontamos as linhas-
mestres da doutrina político-liberal:
governo laico a acabar com o instituto da escravidão, a maior vergonha do gênero humano,
sempre tolerada pelos regimes religiosos. Até então a escravidão era considerada uma
constante inerente à própria natureza humana, permitida por todas as teologias. A mão de
obra escrava era utilizada para a construção de obras majestosa, com as Pirâmides, por
exemplo. Os escravos, pois, constituíram a principal força motriz de civilizações.
Encontramos escravatura no Egito dos Faraós, no Velho Testamento, nas póleis
gregas, no Império Romano. Era de se esperar que a chegada de Jesus Cristo, o doce
apóstolo do amor, pusesse fim a tal execrável instituição, mas foi um ledo engano. O
Cristianismo tolerou o sistema escravagista por mais de 18 séculos. Papa algum
excomungou donos ou traficantes de seres humanos, como fazia com hereges, e menos
ainda os condenou à morte na fogueira, como fez como a valente mocinha Joana D’ Arc. E
a outra religião monoteísta, o Islamismo, não deixou por menos: a oitava sura do Corão
manda fazer escravos todos os prisioneiros de guerra!
A vergonha maior está no tráfico de escravos pelos três continentes: da África para a
América, com navios que partiam da Europa. Os negros escravizados não eram cativos de
guerra, mas cidadãos livres, capturados a laço em seu próprio território por capatazes a
serviço de comerciantes de escravos e colocados nos navios negreiros. Durante séculos
houve um comércio triangular de seres humanos entre capitais européias, costas africanas e
litorais americanos. E tal horrenda indústria teve a complacência de todas as igrejas.
No Brasil, esse comércio teve a mais longa duração, acrescida pela escravidão
também de sua prole, os afro-descendentes. Milhares de jovens africanos eram presos e
conduzidos até os navios. Lá eram batizados (ironia ou hipocrisia?) e marcados com ferro
em brasa, como se faz com o gado. Ao chegar aos portos brasileiros, eram leiloados no
mercado público e submetidos a trabalhos desumanos. Castro Alves, o poeta romântico
baiano, pelo seu poema O Navio negreiro, denuncia a degradação humana a que eram
submetidos os africanos durante a travessia oceânica. Apesar de uma lei brasileira de 1850,
que proibia o tráfico de escravos, o vergonhoso comércio ainda continuava em 1868,
quando foi publicado o poema. Vale a pena transcrever alguns versos:
honesta, mas que nenhuma mulher resiste a presentes caros. Um cofre cheio de jóias
preciosas acaba amolecendo o coração de Margarida, que ministra um soporífero a sua mãe
e passa a noite com o namorado. Mas logo o pecado é castigado, dando origem a uma serie
de desgraças. Seu irmão Valentim, jovem soldado, para vingar a honra da família, desafia
Fausto num duelo, mas acaba sendo morto, pois o sedutor conseguira a ajuda do diabo. O
sentimento de culpa pela morte do irmão e pela gravidez inesperada deixa Margarida num
estado de prostração e de loucura. Margarida, na prisão, sente horror à presença do Diabo,
que sempre acompanha o amado Fausto e prefere entregar-se à Justiça de Deus, suplicando
pela salvação da sua alma. Vozes vindas do Alto anunciam que ela está salva. Fausto e
Mefisto desaparecem sobre corcéis na fria madrugada. Cai o pano.
Expondo um dos sentidos possíveis da peça de Goethe, o protagonista Fausto
representaria o ideal romântico do homem que, insatisfeito com a sua condição de mortal,
recorre a qualquer meio para realizar seu sonho de atingir a felicidade. Só que o processo se
desenvolve pelo modo irônico: chegar a Deus pela ajuda do Demônio; ser feliz renunciando
à própria alma; conquistar um amor angelical mediante trapaças diabólicas. A renúncia à
alma imortal em troca de bens materiais só poderia resultar numa degradação. Daí a
conseqüência trágica da loucura de Margarida, vítima de sua paixão inocente. Talvez a
beleza desta peça de Goethe esteja mesmo na representação do mundo de uma forma
dialética: de um lado, a tese do amor puro, angelical, personificado em Margarida; de outro
lado, a antítese do mundo sinistro, diabólico, de Mefistófeles, símbolo da sedução e do
encanto dos desejos carnais; atraído pelas duas visões de vida contrárias, está no meio,
como síntese, o personagem Fausto, amante de Margarida e amigo de Mefistófeles, símbolo
da alma romântica constantemente balançando entre o ideal do sonho e o grotesco da vida
real.
A insatisfação do homem com a sua condição de ser contingente, nascido para a
morte e para a dor, tendo aspirações infinitas e realizações efêmeras, já criara mitos
belíssimos na cultura hebraica e pagã. Vejam-se, por exemplo, os mitos bíblicos de Adão,
que comeu o fruto proibido, e de Caim, que pecou contra Deus matando seu irmão; ou os
mitos gregos de Prometeu que roubou o fogo divino e de Ícaro que queria alcançar o Céu
voando com asas de cera. Trata-se de idealizações da revolta do homem contra as leis do
universo, na tentativa de se igualar à divindade, como fizeram os mitológicos Titãs, que
lutaram contra o todo-poderoso Júpiter.
Na cultura moderna, o personagem histórico-mítico de Fausto surge na época do
Barroco, quando a alma européia acusa o conflito entre o gozo dos prazeres da vida,
herança do Renascimento, e a ameaça de penas infernais sancionadas pelo Tribunal da
Inquisição da Contra-Reforma católica. As sucessivas gerações românticas, especialmente
nos países anglo-saxões, idealizam a figura de Fausto, fazendo dele o arquétipo do jovem
colérico, revoltado contra a hipocrisia da vida burguesa, procurando refúgio na bebida, na
arte, no amor, na morte. O lado positivo do “homem faustiano” é a figura ideal da
humanidade moderna, que sonha com a liberdade e o progresso, libertando-se de qualquer
tipo de preconceito. Do protótipo do homem faustiano ao modelo do homem nietzschiano
o passo é breve. Outro alemão, o filósofo F. Nietzsche (1844-1900), negando qualquer
forma de transcendência divina, irá exaltar o poder da vontade humana contra o
determinismo religioso ou biopsíquico.
Mas o mito de Fausto, além de qualquer especulação de ordem filosófica ou
religiosa, sobrevive na nossa realidade cotidiana, revelando uma postura ética recorrente. A
lenda do homem que vende sua alma ao diabo é uma denúncia de todas as formas de
112
desonestidade. Pelo “dando que se recebe”, praticado nos nossos dias, se realiza uma
troca entre dois valores: o imediato e o individual que esmaga o futuro e o social. Vende
sua alma ao diabo o político que se enriquece com o dinheiro público, que deveria ser
destinado a escolas e postos de saúde; o banqueiro que, com sua pratica de agiotagem, se
alimenta das lágrimas do endividado; o homem que não assume a paternidade; a mulher
que não dá assistência a seus filhos; qualquer pessoa, enfim, que, cedendo a determinismos
psicológicos, é levada a viver egoisticamente, praticando maldades contra seus
semelhantes.
A Revolução Francesa
variados da colméia humana, lutando dia a dia pela sobrevivência. A análise de processos
judiciais realizada durante um estágio juvenil nun escritório de advogacia serviu a Balzac
como aprendizagem para o conhecimento da fauna humana: velhos libidinosos arruinando
famílias para sustentar jovens amantes, maridos arrumando meios para livrar-se das
esposas, herdeiros brigando de foice para apossar-se de heranças, um velho coronel
tentando desperadamente demonstrar que estava vivo, enquanto o interesse econômico de
sua ex-mulher o mantinha oculto, como se fosse um fantasma.
Chegando à maturidade e já com fama de escritor estimado, Honoré começa a
frequentar a alta roda social, penetrando na vida mundana. O objetivo principal era retratar
a florescente burguesia, com muito dinheiro e pouca cultura. Mas sua pena não exclui
nenhum nível social da França de sua época: negociante, banqueiro, médico, cortesã,
nobres, gente comum, todos são ironizados. O método descritivo com que elabora seus
romances segue o padrão do realismo: apresenta primeiro o cenário onde as ações vão se
desenvolver, depois o aspecto físico dos personagens, sua profissão, os tiques peculiares de
tipos, traços psicológicos. A multiplicidade de figuras a quem ele consegue dar vida é
simplesmente estupenda. Entre seus romances mais famosos, assinalo: A mulher de trinta
anos (de que derivou o adjetivo “balzaquiana”), Eugène Grandet, O Pai goriot, O lírio do
vale, As ilusões perdidas, Fisiologia do casamento, que provocou a costumeira revolta nas
raias de crentes e conservadores.
“Quando Madame Bovary apareceu, foi uma completa revolução literária. Teve-se
a impressão de que a fórmula do romance moderno, esparsa pela obra colossal de
Balzac, fora reduzida e claramente enunciada nas quatrocentas páginas de um
único livro. Estava escrito o código da nova arte”.
trabalho meu, que não trata especificamente de literatura, limito-me apenas a relevar mais
dois ficcionistas mundialmente conhecidos: o russo Fiodor Dostoievski e o brasileiro
Machado de Assis.
Machado de Assis (1839-1908) pode ser considerado o maior expoente das Letras
no Brasil, sendo o autor mais conhecido também no exterior. Nasceu e morreu no Rio de
116
Memórias póstumas de Brás Cubas (1881): romance original, que inova na forma e
no conteúdo do gênero narrativo. A obra começa com uma dedicatória, escrita sob forma de
epitáfio, pelo qual é apresentado o narrador, Brás Cubas, um defunto-autor que começa
contando detalhe do seu funeral. Depois de algumas digressões, ele retoma a ordem
cronológica dos acontecimentos, relatando a infância, a primeira paixão da adolescência,
outras aventuras amorosas, o reencontro com o amigo Quincas Borba, a tentativa do
invento de um emplasto, que o faz adoecer, o delírio que antecede a morte, o romance
terminando com a famosa frase:
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
Também, se Capitu fosse considerada adúltera, qual a novidade? A maioria das mulheres
machadianas são assim retratadas. Machado de Assis subverte todos os valores ideológicos
apregoados pela sociedade burguesa. E o casamento é um deles. Suas personagens (como a
maioria das pessoas do mundo real) não contraem matrimônio por amor, mas por
conveniência social ou para ter filhos, atendendo ao instinto da conservação da espécie e a
costumes ancestrais, que preparam a mocinha para o altar. Esta contestação dos valores
sociais e éticos não se dá apenas nos grandes romances, mas, de uma forma mais direta e
sintética, nas narrativas curtas, nas várias coletâneas de contos do grande escritor carioca.
Apenas como exemplo, apresento uma sinopse de três contos:
No conto O Alienista, Machado trata o tema da loucura com a ironia que lhe é
peculiar: o protagonista Simão Bacamarte, médico de Itaguaí, resolve dedicar-se a
pesquisas psiquiátricas e funda o hospício Casa Verde para cuidar dos dementes. Em breve
tempo, esvazia-se a cidade e lota-se o hospício, pois quase todo o mundo sofre de algum
desequilíbrio mental ou emocional. Coerentemente, então, o médico Bacamarte passa a
considerar loucas as poucas pessoas equilibradas, visto que a quase totalidade dos cidadãos
apresenta defeitos psíquicos. O conto machadiano mostra assim, pela arte literária, uma
profunda verdade existencial: o homem verdadeiramente lúcido e sábio, no fim, é um louco
porque, não pensando ou não agindo conforme “Maria vai com as outras”, e sim de acordo
com um raciocínio lógico e coerente, acaba sofrendo o dano da exclusão social.
Na segunda metade do séc. XIX, junto com a grande produção literária, assistimos
ao florescimento de uma reflexão filosófica à margem das bitolas do racionalismo
cartesiano, do idealismo hegeliano ou do positivismo científico. São pensadores
independentes preocupados mais com a compreensão da realidade cotidiana do que na
construção de esquemas teóricos de raciocínio abstrato, ora exaltando a enorme
potencialidade do ser humano, ora apresentando um profundo pessimismo existencial. E
são eles a lançar os pressupostos ideológicos de comportamentos nacionais e sociais que
irão predominar no Ocidente ao longo do século seguinte. Importante foi a corrente do
Existencialismo que começou com Kierkegaard, continuou com Heidegger, chegando a
Sartre.
Considero Darwin, Freud e Marx os três gênios mais profundos que a humanidade
produziu, pois operaram verdadeiras revoluções no campo respectivo de suas atividades:
Darwin substituiu a crença bíblica da criação do mundo pela teoria da evolução genética;
Freud pôs em evidência o papel fundamental do Inconsciente e da sexualidade na formação
da personalidade humana; Marx exaltou a força do trabalho para o progresso econômico e
social. A eles devemos as melhores contribuições para a formação da sociedade moderna.
Por este motivo, aos três fundadores das novas doutrinas (Darwinismo, Freudismo e
Marxismo) dedico um destaque peculiar, no limite de meu parco conhecimento.
A viagem de pesquisa
A tese da evolução
A teoria da evolução, assim como apresentada por Darwin, pode ser resumida em
três pontos fundamentais, ainda hoje objetos de discussões entre apoiadores entusiastas e
oponentes denegridores: 1) os relatos da Bíblia foram escritos por homens, sem nenhuma
intervenção divina, contradizendo verdades históricas, leis naturais e raciocínio lógico; 2) o
ser humano, como as outras criaturas, não foi uma produção individualizada, feita pelas
mãos de Deus, mas teve parentesco com primatas, chimpanzés ou gorilas, deles se
diferenciando por um longo processo de evolução no tempo e no espaço; 3) o princípio
evolucionista rege o Universo todo, bem maior e mais antigo do que se pensava: sua origem
não remonta há apenas 60 mil anos, como erroneamente achavam os teólogos daquela
época.
123
A genialidade de Darwin reside no fato dele ter aproveitado a cultura anterior e ter
lançado as bases doutrinais de cientistas, filósofos, sociólogos e ambientalistas que
continuaram sua obra revolucionária, estabelecendo, assim, uma ponte entre o passado e o
futuro da ciência. T.H. Huxley (não confundir com o famoso ficcionista Aldous Huxley,
autor do Admirável mundo novo), biólogo amigo de Darwin, ao tomar contato com a teoria
evolucionista, exclamou:
Mais estúpido é quem, ainda hoje, continua não acreditando na teoria darwiniana,
dois séculos depois dos estudos de tantos ilustres cientistas que confirmaram, no todo ou
em parte, a tese da evolução cósmica e humana. Negar o princípio universal da evolução é
ficar parado no tempo: a fixidez é a morte! O problema é que o processo evolutivo, por ser
muito lento, é quase imperceptível. O primata demorou milhões de anos para levantar as
patas dianteiras, fazendo com que a cabeça olhasse mais alto, expandindo o horizonte de
sua visão. Adquiriu a forma humana, mas ainda, até hoje, não alcançou um nível de
inteligência capaz de separá-lo da animalidade. O homem ainda continua vivendo conforme
os instintos mais baixos, seguindo a lei da selva, o mais forte comendo o mais fraco, como
demonstram as guerras étnicas, a violência no campo e na cidade, o capitalismo
“selvagem”, a corrupção política, a injustiça social, o egoísmo característico dos seres
primitivos e das crianças.
Assinalamos os mais importantes estudiosos que antecederam e sucederam o gênio
britânico na pesquisa das ciências biológicas:
tese de Lamarck, após a contestação de vários biólogos, está agora sendo reabilitada por
recentes pesquisas sobre o DNA que confirmam que características genéticas podem ser
induzidas por mudanças ambientais e depois passadas de pai para filho.
Esta Grande Viagem fez a diferença entre o homem e o animal: enquanto a besta se
contenta em seguir apenas o instinto gregário, vivendo em grupos no mesmo lugar, o
homem é movido pelo espírito da curiosidade, a vontade de conhecer o que está além da
sua vista. De acordo com cálculos de paleontólogos, o Homo Sapiens da África, a partir de
100 mil anos atrás, depois de ter explorado boa parte do seu continente, começou a dirigir-
se, sucessivamente, em direção à Ásia (60.000 anos atrás), à Oceania (50.000), à Europa
(35.000) e às Américas (15.000).
No continente europeu, por mudanças biológicas, ambientais e culturais, um
protótipo de ser duvidosamente humano, chamado de Homo de Neandertal, espécie já
extinta, gradativamente teria sido substituído pelo Homo Sapiens, de origem africana. A
pele humana branca começou a surgir nas regiões glaciais, a partir de 12 mil anos atrás,
devido ao fator climático (diminuição da exposição direta do corpo aos raios solares: isso
explicaria a causa da brancura da palma dos pés e das mãos dos africanos que
originariamente andavam de quatro). Portanto, o homem de cor branca que se achar
superior ao negro está renegando suas origens. Qualquer ser humano é afrodescendente! O
cantor pop star norte-americano Michael Jackson, de cor preta, recorrendo a um processo
químico de embranquecimento, tentou conseguir, em poucos anos, o que a natureza levou
milênios: os resultados foram pífios.
Na sua generalidade, a civilização humana teria uma história de 6.000 anos,
aproximadamente. Mas a época pré-histórica da humanidade apresenta sinais de trabalhos
artísticos, encontrados numa caverna da África do Sul, que remontam a 70 mil anos,
aproximadamente. A primeira figura humana, documentada até agora e encontrada numa
caverna do Sul da Alemanha, foi esculpida há uns 35 mil anos: é a estatueta de uma mulher
sem cabeça, com enormes seios e nádegas volumosas, com genitália bem desenhada. A
fenda entre as coxas põe em evidência a vulva no meio dos grandes lábios. O convite ao
coito, à penetração, que pode ser considerado pornográfico pela nossa moral (os
arqueólogos denominaram o achado como Venus Peituda), salienta a importância que o
homem primitivo dava ao ato sexual. A configuração artística desta mulher representa os
dois instintos fundamentais do ser humano: a conservação própria pelo alimento (os peitos
generosos que fornecem o leite) e a perpetuação da espécie pelo acoplamento sexual (o
rego onde a vida se reproduz). Para todos os povos indígenas, a arte é principalmente
utilitária, estando a serviço da comunidade tribal. O animal pintado ou esculpido numa
rocha está lá para precaver os transeuntes sobre o perigo que aquele sítio apresenta.
A descoberta da Venus Peituda na Alemanha reforça a tese da existência de um
primitivo matriarcalismo, quando a mulher tinha mais poder do que o homem. Isso
aconteceu (e ainda acontece) especialmente nas regiões do Norte da Europa, onde é
valorizado o papel da mulher na sociedade, contrastando com os povos de origem judaica,
latina ou islâmica, em que predomina o machismo. O achado arqueológico confirma o
mito: o primitivo poema épico-religioso da Finlândia, Kalevala, narra que quem criou o
mundo foi uma mulher, a virgem Ilmatar, após 700 anos de trabalho de parto. Narra a
lenda que a jovem teria recebida a visita de um bichinho anfíbio (uma espécie de pato
marinho ou boto), que se aninhara na sua vulva, confundindo os pelos pélvicos com uma
moita de capim fresco ou uma turfa, matéria esponjosa que se forma no limite entre a terra
e água.
A figura da deusa Ilmatar lembra a lenda brasileira do boto, golfinho do rio
Amazonas, que de noite se transforma num lindo jovem que seduz as mocinhas, na praia ou
ao sair de um baile. “Filho do boto” passou a denominar um filho natural, de paternidade
127
Londres, onde viveu o último ano de sua vida (1939), na companhia da filha, a psicanalista
Anna Freud. Conforme seus biógrafos, o mestre austríaco morreu de um câncer na
mandíbula, de que estava acometido desde 1924. As dores se intensificaram com a velhice
e ele pedia doses de morfina cada vez maiores. Supõe-se que tenha morrido de uma
overdose, suplicando pela eutanásia.
Freud, acima de acertos ou possíveis derrapadas face aos posteriores avanços da
ciência, teve seu incalculável mérito por considerar o impulso sexual como algo natural,
afastando o sentimento de culpa que até então atormentava especialmente as almas mais
religiosas. A hagiografia, disciplina que narra a vida dos santos, registra muitos casos de
devotos que, para livrar-se de desejos carnais, castigavam seus corpos, usando cilícios
diretamente sobre a pele. Conforme a doutrina católica, o ato sexual era um pecado em si, a
libido sendo considerada a fonte de todo o mal, pois vinha da matéria e não da alma, do
Demônio e não de Deus, de acordo com o princípio do maniqueísmo.
E tal mentalidade não mudou muito. Lembro que, quando criança, estudei como
interno num seminário na Itália e, de manhã cedinho, ao acordar, um padre vinha examinar
se havia manchas de esperma nos lençóis, que acusassem alguma ejaculação. Mesmo se
fosse involuntária, devia correr me confessar para sair do estado de pecado mortal. E custou
para me libertar de tamanha escória moral! Por enfrentar tais tabus, Freud, junto com
Darwin e Marx, continua sendo visto por todas as igrejas como uma encarnação demoníaca.
As fases da libido:
famílias e nas escolas para que as crianças tenham uma educação sexual sadia, tomando
precauções, não contra o prazer, mas contra a precocidade da prática do sezo, a gravidez
indesejada, as doenças venéreas?
Sigmund Freud, como todos os grandes cientistas, filósofos e artistas, não morreu
por completo, pois seus ensinamentos continuam iluminando as mentes dos que, livres de
tabus e preconceitos, querem realmente conhecer a verdade existencial. Em 1908, fundou a
Sociedade Psicanalítica de Viena, reagrupando em torno de si vários discípulos, entre os
quais se destaca C.G. Jung. Este, como tantos outros antigos alunos, passou a discordar do
mestre em alguns pontos da doutrina paicanalítica, assim como proposta por Freud. Mas
isso era inevitável porque o conhecimento científico está sempre em continua evolução. Os
seguidores de Freud tentaram aperfeiçoar métodos e técnicas de análise, bem como
estabelecer relações profundas entre psicanálise e outras disciplinas humanísticas
(Linguística, Antropologia, Sociologia). Recursos da Psicanálise são utilizados por
cineastas, poetas, dramaturgos, pintores.
A principal contribuição de Jung foi transformar a “libido” freudiana em energia
vital, algo que transcende a sexualidade. Ao inconsciente individual de Freud ele acrescenta
o inconsciente “coletivo”, indo além do fator puramente genético. Ele chama “arquétipos”
às experiências milenares da humanidade, transmitidas por mitos, lendas, contos de fada.
Os arquétipos seriam os modelos de vida, as imagens psíquicas do inconsciente coletivo,
que se transmitem ao longo de muitas gerações. São eles que determinam nosso sentir,
pensar, agir. Segundo Jung, dentro de nós existiriam os arquétipos do amor e do ódio, da
paz e da guerra, da abnegação e do egoísmo etc. Tais formas primordiais se manifestam ao
nível do fazer, ocasionalmente, conforme as determinações do tempo e do espaço.
São estes arquétipos os responsáveis pelo incentivo ao instinto gregário (de “grei”,
grege, manada), comum ao ser humano e animal. Infelizmente, os homens, como formigas
ou abelhas, aceitam passivamente padrões religiosos, políticos e morais conforme uma
herança familiar e uma cultura milenar, sem se perguntar se correspondem à lógica do
pensamento, à verdade histórica ou ao nosso desejo de felicidade. A pergunta é quantos
milhares de séculos ainda tem que passar para o homo sapiens usar a cabeça para refletir e
se libertar do espírito de dependência mental? Até quando iremos acreditar piamente no que
está escrito em livros falsamente considerados sagrados ou nas palavras de prepostos
divinos (padres, pastores, rabinos, aiatolás) ou líderes políticos? Pensar é preciso!
Já não lembro mais quem disse a frase acima, que reflete muito bem a trajetória da
revolução comunista. Ela iniciou com jovens idealistas franceses e alemães, inconformados
com os efeitos da revolução industrial, que tirara os homens do campo para serem
explorados pelos donos de fábricas. Decênios de luta de trabalhadores, ligados à
Internacional Socialista, contra os detentores do poder político e econômico foram coroados
135
com o triunfo da revolução bolchevique que, a partir de 1917, instalou o regime comunista
na antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). O movimento
revolucionário terminou quando o povo russo não agüentou mais o despotismo sanguinário
de dirigentes comunistas, pedindo uma nova ordem social. O símbolo do fim do
Comunismo foi a derrubada do muro de Berlim (1989), que separava a parte rica da
Alemanha democrática do lado miserável da Berlim oriental. E isso aconteceu porque aos
jovens idealistas Marx e Engels sucederam os tiranos Lênin e Stalin.
Traços biográficos
Formação intelectual
Marx, como Freud (e a maioria dos formadores de consciência), tivera uma sólida
educação humanista. Apresentou, na Universidade de Iena, uma tese sobre “As diferenças
da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro”. O estudo dos antigos atomistas lhe abriu
o caminho para a concepção materialista do mundo, afastando-o das crendices religiosas.
Mas foi um aluno de Hegel, Ludwig Feuerbach, seu contemporâneo e conterrâneo, que o
introduziu para o materialismo dialético e histórico. Na sua obra mestra, A essência do
cristianismo (1841), o filósofo alemão dá a entender que a idéia de Deus está implícita no
desenvolvimento da própria humanidade, não havendo nada que transcenda a realidade.
Também o que chamamos de alma, espírito ou inteligência, é composto de átomos
materiais. Feuerbach chega a afirmar que “o homem é o que come”, pois é o alimento a
nutrir os neurônios do nosso cérebro.
136
capitalistas que, possuindo os meios de produção, exploram a mão de obra, não pagando
aos operários o justo preço do seu trabalho. Os donos das empresas embolsam a mais-valia
como lucro, pagando aos trabalhadores o mínimo necessário para sua subsistência. A não
divisão dos lucros leva a dois malefícios:
1) o pagamento do trabalho apenas para o empregado não morrer de fome segue o
modelo social das épocas de escravidão, quando era praticada a caridade em lugar da
justiça;
2) a concentração do capital nas mãos de poucas pessoas gera o imperialismo nacional e
internacional: as grandes empresas devoram as pequenas, que não suportam o peso da
concorrência desleal, e se expandem além das fronteiras, subjugando as economias de
povos mais pobres e tecnologicamente atrasados.
Daí a luta entre classes sociais desaguar na luta entre nações, provocando conflitos e
guerras. É a lei da selva: o mais forte come o mais fraco! O Capitalismo torna-se um
Imperialismo disfarçado de democracia, pois os poderosos impõem uma ideologia pela qual
seus interesses são apresentados como se fossem os interesses da sociedade toda.
Infelizmente, a exploração do trabalho humano existiu antes da revolução industrial na
Inglaterra e continua existindo ainda hoje, em vários lugares, inclusive sob regimes
considerados democráticos. No Brasil, há uma longa história de opressão dos operários,
que remonta à época colonial quando os donos de engenho se serviam da mão de obra
escrava. Sem ir longe no tempo ou no espaço, no interior do Estado de São Paulo, o mais
rico e progressista do nosso país, recentemente, após o boom do etanol, milhares de
cortadores vivem no submundo da produção da cana, em condições precárias, sem ter os
direitos trabalhistas garantidos. Os produtores se enriquecem egoisticamente, enquanto os
trabalhadores rurais vivem na miséria mais esquálida, ainda sendo ameaçados com a perda
do emprego pela mecanização da lavoura.
Será que um dia a sociedade humana irá entender que o sistema de participação nos
lucros, além de ser a forma mais justa de relacionamento entre patrão e operário, é também,
em muitos casos, a mais eficiente? Urge chegar a uma síntese entre a tese capitalista e
antítese marxista. Na época de Marx, o capitalismo era um sistema econômico selvagem,
sem economia de mercado, valendo a lei do mais forte. Não havia nenhuma legislação
trabalhista nem sindicatos que defendessem os direitos dos operários. Em escala
internacional, ainda não existia a Organização Mundial do Comercio, nem leis antitruste. E
o Estado era omisso na defesa dos trabalhadores.
No regime comunista, houve uma reviravolta: o Estado passou a se hipertrofiar,
matando a economia de mercado e a livre concorrência. Os burocratas do partido se
enriqueceram às custas da grande massa trabalhadora, substituindo os antigos capitalistas. É
necessário, portanto, que as duas principais instituições da sociedade humana, o Estado e o
Mercado, estejam continuamente interagindo.
Para Marx, também a religião é uma forma de alienação, de que se serve a classe
dominante para manter o povo subjugado. A prática de qualquer tipo de religiosidade é o
sintoma de um sistema social enfermo, que precisa de remédios. A cura é colocada na
crença na existência de outro mundo, sobrenatural, onde estão projetados os ideais de vida
impossíveis de serem alcançados aqui na terra: a justiça, a bondade, o amor entre todos os
homens, sem distinção de classes ou de cores. A religião, portanto, torna-se “o ópio do
povo”, a droga indispensável para poder suportar todas as desgraças. O pior é que acaba
com a esperança de um dia encontrar a salvação neste mundo.
138
primeiro ser humano a voltar à vida. Infelizmente, o ser humano não consegue viver sem
mitos: mata um (Cristo) e logo cria outro (Lênin)!
Feroz ditador foi, porém, Josef Stalin, o secretário-geral do partido comunista, que
sucedeu à morte de Lênin e governou a ex-URSS com métodos brutais, por quase três
décadas, de 1924 a 1953. Egresso de um seminário ortodoxo, juntou-se a Lênin em 1905,
também ele sendo preso e deportado. Após a Revolução, passou a fazer parte do politburo,
promovendo um processo de centralização e de coletivização da produção. Estimulou a
indústria pesada e conseguiu um grande progresso tecnológico graças à disciplina operária,
ao trabalho forçado e ao culto da ideologia socialista. Apoiado num poderoso aparelho
estatal, para livrar-se dos inimigos políticos procedeu a um expurgo maciço, eliminando
antigos dirigentes do Komintern e do Exército Vermelho. Em 1941 aderiu à Segunda
Guerra Mundial, lutando contra a Alemanha nazista.
A vitória bélica e a corrida espacial deram a Stalin enorme prestígio na Rússia e nas
democracias populares anexadas à URSS. E a onda de repressão dentro e fora da União
Soviética continuou até sua morte, em 1953. A ele sucederam mais cinco Chefes do
Império Soviético: Kruchev, Brejnev, Andropov, Chernenko e Gorbachev. Este último,
face à crise econômica do regime comunista, tentou conciliar o sistema totalitário com as
liberdades democráticas pelos processos da Glasnost (transparência), que permitia liberdade
de expressão, e Perestróica (reestruturação), que adaptava o sistema econômico à nova
realidade. Enfim, em 1961, o Comunismo no Leste europeu chegou ao fim. Acabou a
Guerra Fria e foi derrubado o muro de Berlim, juntando outra vez a Alemanha Ocidental
com a Oriental. Atualmente, o regime comunista ainda persiste em alguns países (China,
Coréia do Norte, Cuba), mas com adaptações exigidas por novas realidades sociais.
Vanguarda
Futurismo
Expressionismo
Dadaísmo
Surrealismo e Cubismo
A afirmação acima é de Albert Einstein (1879-1955), que levou até o campo das
ciências a dúvida dos filósofos e a perplexidade dos artistas que inquietavam o espírito
humano na primeira metade do século passado, negando qualquer forma de determinismo
ou crença em verdades absolutas. Alemão, filho de judeus, educado num colégio católico,
teve dificuldades na aprendizagem escolar e só de adulto revelou sua genialidade no
domínio da matemática. Exerceu a humilde função de verificador de patentes no serviço
público de Berna, até começar a publicar artigos revolucionários, que lhe fizerem merecer o
Prêmio Nobel de Física, em 1921. Levou uma vida de viajante, estudando e ministrando
palestras em várias cidades européias, até aceitar uma cátedra na Universidade de
Princeton, naturalizando-se norte-americano, em 1940.
A expressão “tudo é relativo” tornou famoso Einstein, da mesma forma que outras
frases imortalizaram outros autores: “Eppur si muove” (a terra gira), de Galileu; “o homem
descende do macaco”, de Darwin; “Freud explica”, com referência ao complexo edipiano;
“a religião é o ópio do povo”, de Marx. São as marcas da genialidade, as verdades
essenciais, que os grandes homens deixaram para a posteridade.
Não tenho competência para explicar cientificamente a teoria da relatividade, nem a
conhecida fórmula E= mc², sendo E a energia, m a massa e c a velocidade da luz, e muito
menos os princípios da física quântica que Einstein aprendeu de seu patriota Marx Planck.
Limito-me a relevar que Einstein realizou uma revolução na concepção da categoria do
Tempo, semelhante a que os cientistas renascentistas Copérnico e Galileu fizeram com
relação ao Espaço. O Tempo não é visto mais como um valor absoluto, independente do
Espaço, pois o cientista alemão demonstra que as duas categorias andam juntas.
O grande achado de Einstein foi ter colocado o observador dentro da ciência natural
para funcionar como perspectiva ou ponto de vista. O tempo, assim, é calculado a partir da
posição de quem vê. Isso já vinha sendo feito na ficção literária. As narrativas de “fluxo de
consciência” de Proust, Joyce, Virginia Woolf, Clarice Lispector, influenciadas pelo
Intuicionismo do filósofo francês Henri Bergson e seu conceito de tempo como durée
(duração), exploram o tempo interior ou psicológico. Este não segue a cronologia dos
acontecimentos, mas as livres associações de idéias e sentimentos do narrador, misturando
o presente com a recordação do passado e a imaginação do futuro.
Para Einstein, também no mundo da física o tempo deixa de ser uma grandeza
independente e objetiva para se tornar subjetiva, relativa ao observador. A imagem de uma
estrela que dista anos-luz da terra não é a mesma daquela que chega ao telescópio do
cientista, pois o modo de sua recepção é alterado pelo percurso realizado. Quer dizer, o
observador vê a estrela como era “há pouco” e não como é “agora”.
143
Estas “pessoas diversas” são os heterônimos, dos quais apresento um rápido esboço:
O heterônimo Alberto Caeiro foi imaginado por Fernando Pessoa como um mestre
de civilização e a ele foram atribuídos dois discípulos em antítese entre si: o poeta clássico
Ricardo Reis, que recorda e exalta a cultura greco-romana, olhando para o passado; e
Álvaro de Campos, o poeta do mundo moderno, que olha para frente. Este heterônimo teria
nascido em Tavira, em 1890, filho de judeus portugueses. Teria estudado na Universidade
de Glasgow, na Escócia, e se formado em engenharia naval. Ele acusa as influências
literárias de Walt Whitman, escritor norte-americano considerado escandaloso em sua
época, quer pela forma de sua poesia (verso livre e vocabulário de baixo calão), quer pelo
conteúdo (exaltação da sensualidade impudica), e de Marinetti, o poeta italiano fundador do
Futurismo. Mais do que explicar, prefiro sentir sua poesia pela leitura de alguns trechos da
sua Ode Triunfal, onde o poeta lusitano retrata a corrupção dos políticos e manifesta sua
simpatia pela massa popular, a “maravilhosa gente humana que vive como os cães”, sempre
mantida longe da civilização:
Concluindo este leve ensaio sobre a poética de Fernando Pessoa, entendo que o
tradutor, o pastor, o médico e o engenheiro, apesar de suas características antitéticas, devem
152
desemprego e conflitos étnicos. Sem falar das crises econômicas mundiais que sempre
atingem mais fortemente povos e classes sociais mais pobres, pois os poderosos costumam
somar lucros e dividir prejuízos.
É preciso entender que ninguém pode ser feliz no meio da miséria. O pesquisador
americano Samuel Huntington, pelo influente livro O Choque das Civilizações, publicado
em meado dos anos 90, é considerado o profeta da era atual. Parece que ele previu o
desastre de 11 de setembro de 2001, quando o terrorismo islâmico derrubou as Torres
Gêmeas de Nova York, ao escrever que haveria um choque iminente entre o Ocidente
avançado e o mundo muçulmano que parou no tempo. Ele considera a civilização ocidental
como a mais progressista, pois fundamentada em princípios sólidos, herdados das
instituições constitucionais que se sucederam à Revolução Francesa (1789): democracia
liberal, mercado livre e forma de governo laico.
Através do processo de Globalização, a civilização norte-americana tenta impor sua
cultura (e seu mercado!) aos outros povos. O exemplo bem sucedido foi o milagre da
Comunidade Européia. Mas, no mundo africano e asiático, a missão é mais difícil pelo
apego a tradições religiosas milenares. A história nos ensina que todo regime teocrático é
“involutivo”, pois qualquer tipo de “fundamentalismo”, sendo dogmático, é fixo e
retrógrado, impedindo o avanço científico e o melhoramento humano. A religião islâmica
está causando o mesmo estrago no Oriente Médio (talvez pior, por ser mais violento) do
que a religião católica na Idade Média européia. Tanto atraso acaba ofendendo a
inteligência humana. Não é preciso demonstrar que o fanatismo religioso, de qualquer
credo, é a perene causa da guerra, da injustiça, da miséria, da ignorância, da escravidão
moral e econômica de um povo. Deus está muito bem lá no Céu, mas quando desce na
Terra e assume o poder público pelas mãos (ou lábias!) de bispos, pastores, talibãs ou
aiatolás, é uma desgraça cívica, na certa!
I - Holocausto nazista
Em grego, a palavra holocausto significa “todo queimado”, com referência aos
animais oferecidos às divindades, ritual praticado também por tribos judaicas, conforme
registrado no Velho Testamento. Depois da 2ª Guerra Mundial, o termo Holocausto passou
a indicar o extermínio de milhões de judeus por Adolf Hitler. Mas o regime nazista
massacrou também outros indesejados como comunistas, sindicalistas, eslavos,
Testemunhas de Jeová, deficientes físicos ou mentais, homossexuais. Estes grupos
pereceram lado a lado nos campos de concentração e de extermínio. Para serem mais
facilmente identificados, os presos eram obrigados a afixar no peito triângulos coloridos.
Por exemplo: os judeus usavam dois triângulos sobrepostos, de cor amarela, formando a
Estrela de Davi; já os homossexuais eram obrigado a pôr no peito um triângulo cor de rosa.
O número certo de mortos, desde 1933, quando começou o regime nazista na Alemanha,
até seu fim, em 1945, é desconhecido, mas, segundo alguns estudiosos, estima-se que a
quantidade de pessoas desaparecidas ou assassinadas durante o conflito chegue a seis
milhões de pessoas.
Além das matanças maciças, consideradas uma forma de higienização por
incineração, os nazistas utilizavam os presos políticos para experiências médicas em
prisioneiros, incluindo crianças. Famoso se tornou o medico nazista Josef Mengele, que
passou à história com o nome de “Anjo da Morte” pelos experimentos cruéis e bizarros
feitos nos prisioneiros de Auschwitz. Quanto à origem do anti-semitismo, os estudiosos
acham que, além do motivo imediato de apossar-se da riqueza dos judeus, os nazistas
cristãos se fundamentavam em algumas afirmações do apóstolo Paulo de Tarso:
2) Hiroshima e Nagasaki
São as duas cidades japonesas destruídas pela bomba atômica. Trata-se de outra
forma de Holocausto, o nuclear, não menos violento daquele perpetrado contra os judeus.
Em 6 de agosto de 1945, após a rendição da Alemanha nazista, a Força Aérea dos EUA,
para vingar-se da derrota naval em Pearl Harbour e acabar com a Guerra que ainda
continuava no Pacífico, lançou uma bomba atômica sobre a cidade de Hiroshima.
Instantaneamente, os prédios desapareceram junto com a vegetação, os corpos de
seres humanos e de animais se desintegraram e a cidade toda pegou fogo. Os efeitos
da radiação ultravioleta se sentiram a kilômetros de distância e quem sobreviveu
sofreu males terríveis. Não bastasse o horror de tamanha crueldade, três dias depois,
os norte-americanos bombardearam outra cidade japonesa, Nagasaki, com mais um
ataque nuclear. Nosso poeta Vinicius de Morais descreve tamanha covardia em versos
emocionantes:
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A ROSA DE HIROXIMA
Pensem nas crianças // Mudas telepáticas // Pensem nas meninas
Cegas inexatas // Pensem nas mulheres // Rotas alteradas
Pensem nas feridas // Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam // Da rosa da rosa // Da rosa deHiroxima
A rosa hereditária // A rosa radioativa // Estúpida e inválida
A rosa com cirrose // A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume // Sem rosa sem nada.
3- Arquipélago Gulag
O nome “Gulag” é um acrônimo, correspondente à sigla russa de “Diretório Geral
dos Campos de Trabalho Corretivo”; e “arquipélago", metaforicamente, significa uma vasta
“corrente de ilhas”, os campos de concentração desconhecidos pelo público. O Arquipélago
Gulag é o título de um romance de Alexandre Soljenitsin (1918-2008), pelo qual ganhou o
Prêmio Nobel de Literatura de 1970. Como oficial soviético, o autor lutou contra a invasão
nazista. Mas, por ter-se manifestado contra os métodos liberticidas do ditador Josef Stalin,
foi condenado aos trabalhos forçados, reservados a quem cometesse crimes de opinião
(tinha publicada uma piada contra Stalin!). Com a morte do ditador, em 1953, ele é
libertado e publica Um dia na vida de Ivan Dennisovich (1962), onde relata a triste vida
cotidiana de um prisioneiro do Gulag. Esta obra é comparada a Recordações da casa dos
mortos, de Dostoievski e lhe dá fama literária. Mas, com a volta da linha dura na época de
Brejnev que sucedera a Kruchev, foi retomada a repressão na URSS e Soljenitsin foi
expulso do país. Retornou à Rússia em 1978, acolhido como herói nacional.
Sua obra-prima, de 1.800 páginas, é uma narrativa sobre fatos que foram
presenciados pelo autor, quando esteve preso num campo do Gulag. Nela, denuncia a
insanidade do regime autoritário e ataca a cumplicidade de russos com os horrores do
regime stalinista. Mas, em fim de vida, se torna crítico do regime russo do pós-comunismo,
condenando a corrupção estatal. Não poupa também a crítica aos EUA e a OTAN por terem
asfixiada a soberania da Rússia, pondo ressalvas à economia de mercado. Enfim,
Soljenitsin colocou-se contra qualquer postura ditatorial ou imperialista, constituindo mais
um momento de alerta da consciência humana na história da cultura ocidental.
Os antigos romanos diziam vis vim roborit (uma violência provoca outra). O brutal
e absurdo atentado suicida contra as duas torres gêmeas do World Trade Center de Nova
York e outros alvos nos EUA, acontecido no fatídico 11 de setembro de 2001, só pode ser
consequência de um ódio incomensurável, fruto de uma vingança milimetricamente
premeditada. Além das espantosas perdas humanas (morreram 3234 pessoas) e materias (os
dois edifícios de 110 andares, 4 estações do metrô, dezenas de construções nos arredores,
os 4 aviões sequestrados e destroçados) é preciso considerar o efeito psicológico sobre o
povo americano, pela primeira vez atacado por forças inimigas no coração da sua pátria.
Conforme foi posteriormente apurado pela Inteligência americana, o motivo dos
ataques era o cumprimento de uma intenção declarada da Al-Qaeda (rede terrorista),
expressa na fatwa (uma ordem emitida por um representante da lei islâmica) de 1998,
emanada por Osama bin Laden. A fatwa aponta os três pecados cometidos pelos Estados
Unidos, pelo quais os norte-americanos deviam ser punidos: a) apoio miltar a Israel; b)
ocupação da península arábica; c) agressão contra o povo do Iraque. Para se vingar desta
vingança, em março de 2003, o Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, apoiado
por alguns países europeus, mas sem o consentimento da ONU, invade o Iraque, a pretexto
de encontrar armas de destruição em massa. Não encontrou armamento algum, mas a
guerra no Iraque continua, dando motivo para outros ataques terroristas no mundo inteiro.
.
É isso aí: quanto mais absurdo é um governo absolutista, mais permanece no poder. Parece
que o homem não consegue superar o instinto gregário, a fase animalesca do automatismo e
da irracionalidade, precisando sempre de um pastor que o conduza. Daí o culto à
personalidade que pode ser constatado no stalinismo soviético e chinês, nos santos
protetores do catolicismo, nos pastores carismáticos do protestantismo, na palavra
inquestionável de Maomé. Na verdade, a cegueira mental é muito pior do que a cegueira
física, porque ela é voluntaria e impede a percepção da verdade. O pior cego é quem não
quer enxergar. O que é barbárie passa a ser considerado como civilização.
O que mais espanta não é a maldade ocasional, mas a banalização do mal.
Recentemente, o Museu do Holocausto da capital dos EUA tornou publica uma série de
fotos, tiradas em 1944, pouco antes do fim II Guerra Mundial, que mostram enfermeiras
festejando o extermínio de judeus, homossexuais e deficientes físicos, no campo de
concentração de Auschwitz. Anos depois, um psiquiatra americano interrogou nazistas
levados a julgamento em Nuremberg sobre os horrores cometidos e a resposta foi que
apenas cumpriram ordens e, portanto, suas consciências estavam tranqüilas. É essa
“normalidade” que espanta, a obediência cega a determinações de um líder carismático, a
institucionalização do crime. Historiadores da ocupação da Polônia pelos alemães também
afirmam que os policiais de Hitler fuzilavam mulheres e crianças com a maior naturalidade.
Mas isso não aconteceu apenas no domínio nazista. Os horrores se encontram em
qualquer conflito bélico. Na atual guerra dos EUA contra o Iraque, por exemplo, aconteceu
algo semelhante: foram publicadas fotos de soldados norte-americanos que se divertiam
com jovens prisioneiras iraquianas, seviciando seus corpos com cigarros acesos. A gente
pode compreender e desculpar o erro ou o pecado do homem como indivíduo, mas quando
é toda uma instituição pública a cometer, tolerar ou aplaudir atos criminosos, nos
colocamos nos limites da civilização, renegando qualquer sentimento de humanidade.
É preciso urgentemente rediscutir o problema da obediência militar ou civil: até que
ponto o homem é obrigado a obedecer a uma ordem, se ela for irracional ou desumana? Por
que ser obrigado a participar de guerras, a matar gente que nem se conhece? Anos atrás lí
uma notícia de jornal que me deixou pasmado: um supermercado pegou fogo e os guardas,
a mando do gerente, fecharam as portas porque, na confusão, algumas pessoas estavam
levando mercadorias sem passar pelo caixa. É obrigação moral obedecer a uma ordem
dessas? Será que uma vida humana tem valor menor do que um pacote de bolachas?
E o que dizer, então, dos conflitos étnicos, que acontecem não apenas em Ruanda ou
no Sudão, mas também na civilizada e próspera Europa? Diferenças de línguas, costumes
ou religiões levam a divergências nos planos político e social, causando confrontos
sangrentos. Na base de tudo está a infinita estupidez humana: a pessoa preconceituosa não
se dá conta de que ela é um mero acaso de loteria biológica. Ninguém escolhe quando,
onde, como ou de quem vai nascer. Por que, então, curtir sentimentos de superioridade?
159
Quem sabe, um dia, a humanidade terá condições de realizar o “sonho” de Martin Luther
King. Ele imaginava um futuro em que
Para que este futuro possa acontecer é preciso a vitória do indivíduo que pense com
sua cabeça, não sendo mais vítima de tradições milenares. É preciso acabar com os
dogmatismos religiosos e os governos absolutistas, o egoísmo individual e de grupos, a
obediência cega a líderes políticos, a exploração do trabalhador, a corrupção e a
impunidade. Nesse futuro desejado cada um ganharia conforme os méritos e seria julgado
pelos seus atos e não pela cor de sua pele, pela herança de sua etnia ou pela sua fé. Enfim, o
homem se convenceria de que ninguém pode ser feliz no meio da ignorância e da miséria.
Em nossos dias, apesar do enorme avanço tecnológico e dos benefícios provenientes
da globalização, especialmente a vulgarização do acesso à Internet e do uso da telefonia
celular, se agravam os temores que provocaram a revolução de Maio de 68. O progresso da
ciência traz consigo o perigo da disseminação de armas nucleares, com a conseqüente
possibilidade da destruição em massa. Não está superado o perigo do choque de
civilizações, especialmente entre Ocidente e Oriente, subliminarmente alimentado pelo
fundamentalismo religioso. É inegável o fato de que os países árabes, de religião
maometana, estão tomados pelo desespero porque regimes ditatoriais e remotas tradições
teocráticas impedem o funcionamento de uma social-democracia. O contato com o
capitalismo, conseqüência da recente globalização, aumenta a corrupção interna e o ódio
atávico entre a cultura judaico-cristã e a islâmica, provocando o intervencionismo militar de
um lado e o terrorismo do outro.
Acrescente-se o fato de que os conflitos étnicos não são mais localizados, mas se
espalham pelo mundo todo. Levas de gente pobre de países africanos, asiáticos, balcânicos
e da América Latina emigram clandestinamente para regiões mais desenvolvidas da Europa
e da América do Norte em busca de trabalho e de asilo, criando também lá bolsões de
miséria e choques de cultura. Problemas de nacionalidade acabam adquirindo feições de
religiosidade, centrados em dois pólos: evangélicos norte-americanos, de um lado, e
muçulmanos das Arábias, do outro, cada qual exercendo influências em regiões carentes.
Assim, o gênero humano, em lugar de progredir, está acusando um retrocesso, uma
volta à barbárie. Os economistas explicam que os altos índices de desigualdade entre os
povos acusam “uma dependência do ponto de partida”. Se é assim, por que os organismos
internacionais não tentam cortar o mal pela raiz, procurando eliminar a pobreza na sua
origem? Melhor do que assistir refugiados é ajudar a criar postos de trabalho nos países
deles, exigir governos democráticos que não deixem faltar escolas para as crianças e
promovam o planejamento familiar de forma que ninguém tenha mais filhos do que possa
sustentar e educar decentemente.
A estrutura intelectual do Ocidente se assenta na idéia de que o mal nasce da
ignorância, causa principal da pobreza material e espiritual. Este era o pensamento de
Sócrates, retomado pelo Iluminismo, segundo o qual a redistribuição eqüitativa dos
recursos, junto com a educação do povo, poderia vencer o mal social e a humanidade
poderia alcançar o supremo bem, que é a justiça e o amor entre os povos. Mas o monstro do
absolutismo religioso e político, que sempre manteve a grande massa de analfabetas na
160
É suma burrice e imensa falácia, no dia de hoje, ainda acreditar ao pé da letra no que
está escrito no Gênesis sobre o nascimento do mundo e do homem. Na época de Moisés,
como também de Buda, Cristo ou Maomé, não se conheciam as civilizações da bacia
amazônica, da Oceania, dos Andes, da Patagônia. Não se imaginava que, além da Terra,
considerada chata e imóvel, existissem outros planetas, que pudessem ser habitados por
outros seres. Não se imaginava que o Universo existisse há mais de 13 bilhões de anos, que
os primeiros hominidas (os mamíferos arquétipos do homem) nasceram na África há cinco
161
milhões de anos. E também Moisés não sabia nada sobre dinossauros, vírus, bactérias,
acelerador de prótons, DNA. E isso porque ele era apenas um homem do seu tempo. Se
fosse realmente um “profeta”, aquele que prevê o futuro por inspiração divina, ele saberia
dessas coisas.
A maioria dos crentes (católicos, protestantes, judeus ou muçulmanos) responde a
esta pergunta com o argumento de que Deus foi revelando gradativamente, aos poucos e
através de vários Profetas, as verdades existenciais, conforme ia se desenvolvendo a
capacidade do cérebro humano, ao longo do tempo e do espaço conhecido. Esta resposta
enseja algumas perguntas:
1) Admitir que a inteligência está em continuo processo de melhoramento não
implica na aceitação da teoria darwinista da evolução? Por que, então, não abandonar de
vez a crença na criação do homem por um ato divino, único e distinto?
2) Por que, depois das descobertas revolucionárias de Galileu, Darwin e Einstein,
não apareceu mais nenhum Profeta para continuar nos esclarecendo sobre os mistérios do
Universo?
3) A existência de tanta ignorância e contradições nas Escrituras não deveria acabar
com o mito da revelação divina, considerando-as apenas como produtos da mente humana
limitada no tempo e no espaço?
4) Por que não considerar os mitos bíblicos apenas da mesma natureza educativa
que atribuímos ao maravilhoso da mitologia greco-romana ou de outras culturas?
A meu ver, quanto à sacralidade, não há diferença entre Abraão disposto a sacrificar
seu filho Isaac à vontade de Jeová e Agamenão que oferece sua filha Ifigênia no altar da
deusa grega Diana. E, quanto à moralidade, os ensinamentos que se encontram na filosofia
do grego Sócrates ou na poesia do latino Horácio são muito mais edificantes, além de
esteticamente melhor elaborados, do que os registrados nos toscos versículos de Moisés ou
Maomé.
(mas a ser reencarnada outra vez no Julgamento Final, quando haveria a “ressurreição da
carne”), gozaria da vida eterna no paraíso ou no inferno, conforme méritos ou culpas.
Segundo a Doutrina Espírita, a reincorporação se daria imediatamente após a morte, o
espírito vagando de corpo em corpo até conseguir a total purificação. Já pela doutrina
cristã, a alma não preexiste ao corpo, mas seria insuflada por Deus no feto durante a
gestação. Os teólogos não explicam em que exato momento se daria a animação do
embrião, nem onde ficariam as almas dos mortos antes do fim deste mundo, nem como a
materialidade dos corpos recuperados após o Juízo Universal poderia gozar ou sofrer no
outro mundo, feito de pura espiritualidade.
Há imaginação mais fértil do que essa? É de fazer inveja a qualquer conto fantástico
de Franz Kafka! O pior é que se considera alienado ou louco quem não acredita nisso! Já no
bíblico Livro dos Salmos está escrito que é “insensato” o homem que não tem fé no Deus
de Moisés. Também naquela época remota os incrédulos eram considerados pessoas de
miolo mole. Na antiga URSS, os dissidentes eram colocados em asilos de loucos, acusados
de sofrer de delírios reformistas e, por isso, de ter perdido a noção de autoconservação,
enfrentando o perigo de uma repressão impiedosa. A história da humanidade está repleta de
gente acusada e condenada por apostasia, heresia ou bruxaria por se atrever a contestar uma
ideologia aceita pela maioria. O brasileiro, ainda hoje, considera o ateu como um ser sem
caráter e sem moral, como décadas atrás se pensava dos comunistas que comiam
criancinha, de homossexuais ou de negros, acusados de fazerem trabalhos sujos. Uma
pesquisa recente revela que apenas uma ínfima porcentagem de brasileiros votaria num
homem que afirme não acreditar em Deus. Ele não se elegeria nem como síndico de um
prédio!
Para gente simples, sem cultura, a prova mais evidente da existência de Deus são os
milagres, entendidos como sinais da presença ou da participação divina no mundo que Ele
criou. Conforme já disse Voltaire, não há um povo em meio ao qual incríveis prodígios não
aconteceram, especialmente quando poucos sabiam ler e escrever. Todas as mitologias,
clássicas e indígenas, fazem referência a numerosos atos que consideram milagrosos. De
um modo geral, é considerado milagre a superação de qualquer ocorrência extraordinária,
que não pode ser explicada pelas leis da natureza ou pelo raciocínio humano: tragédias
naturais, anomalias, doenças incuráveis, perturbações psíquicas.
Conforme a crença num Deus Criador e Provedor, o Arquiteto do “projeto
inteligente” de que falamos anteriormente, nada escapa à vontade divina: não cai uma folha
de uma árvore, se Ele não quiser. Como se explica, então, a presença da dor e da
iniqüidade no mundo? Por que, ao mesmo tempo em que regiões são devastadas por
enchentes ou maremotos, outras sofrem pela seca? Se Deus é poderoso e bondoso por que
não leva o excesso de água do Rio Grande de Sul para irrigar as terras do Nordeste
brasileiro? E por que, em lugar de atender às preces de suplicantes, permite que um ônibus
transportando peregrinos caia num ribanceira? A resposta “foi Deus que quis assim!” pode
satisfazer uma mente inteligente?
A verdade histórica é que os milagres começam a definhar na medida em que a
ciência avança e o povo adquire cultura. A geologia está evidenciando que terremotos,
ciclones, estiagens ou epidemias têm causas naturais, pois vivemos num planeta que ainda
está esfriando, com rachaduras originadas pelo deslizamento de placas tectônicas, pela ação
incontrolável de ventos provocados pelo choque de correntes térmicas, pela proliferação de
vírus e bactérias. É a ignorância disso que alimenta o mito da intervenção divina, além de
que, na maioria das vezes, a presumida ação milagrosa é fruto de equívoco, de alucinação,
163
de histeria coletiva, pois o fato é contado de uns para outros, chegando ao nosso ouvido de
segunda ou terceira mão. Sintomático é que os milagres só acontecem em regiões
campesinas, entre gente pobre e sofrida, com baixo nível de informação: Nossa Senhora de
Lourdes na França, Fátima em Portugal, Montevergine na Itália, Guadalupe no México,
Aparecida do Norte no Brasil.
Entendo e justifico a crença do povo nos milagres. Gente pobre ou doente, não
encontrando ajuda na sociedade dos homens, procura o refúgio na fé em entidades
sobrenaturais, orando para obter graças divinas. O que acho vergonhosa é a exploração da
crença popular por líderes religiosos ou políticos. Benjamin Franklin, Presidente dos USA,
num de seus discursos, atribuiu a uma intervenção divina a descoberta do pára-raios:
“coube a Deus, em sua bondade para com a humanidade, finalmente, revelar a ela o meio
de proteger...”. Interessante é o “finalmente”: por que Deus esperaria tanto tempo para
ensinar aos homens como se defender dos raios numa tempestade? A pregação de pastores
protestantes, especialmente evangélicos, nos canais televisivos, é simplesmente
abominável: forjam as mais incríveis curas milagrosas para enganar crédulos e extorquir
dízimos!
Mas a Igreja Católica não deixa por menos: para cada dia do ano inventou um santo
padroeiro e milagreiro. Pelo culto de tantas divindades, islamitas e protestantes acusam os
católicos da volta ao politeísmo. A resposta é que os santos não são considerados
divindades, mas apenas intercessores ou intermediários entre a humanidade e a divindade.
A diferença, porém, entre Mercúrio, o deus romano do comércio, e o São Jorge cristão é
quase irrelevante. O correspondente Hermes dos gregos também era o mensageiro entre
Júpiter, o pai dos deuses, e os homens. O Velho e o Novo Testamento estão repletos de
episódios considerados milagrosos. Apenas para citar um exemplo, lemos no Evangelho de
Mateus (27, 52-53):
“Abriram-se os túmulos e muitos corpos dos santos falecidos ressuscitaram.
E, saindo dos túmulos após a ressurreição de Jesus,
entraram na Cidade Santa e foram vistos por muitos”.
Onde está, então, a peculiaridade do milagre de Cristo ao ressuscitar Lázaro se, naquela
época, era costume muita gente acreditar em ressurreições? E por que nos tempos modernos
ninguém mais ressuscita? O que dizer, então, a respeito do culto das relíquias, os pedaços
do corpo ou de objetos de santos? Calculam os pesquisadores que com as lascas e os pregos
da Cruz de Jesus, que se encontram espalhados pelo mundo todo, poderia se formar uma
cruz com mais um quilômetro de comprimento. Chegaram até a comercializar as penas do
Espírito Santo, aparecido sob forma de pombo. Mas aí entramos no campo da superstição
que, além de irracional, é estúpida e beira o ridículo.
alcançar o céu? E os seres humanos que vieram ao mundo depois de Cristo, mas que não
tiveram a sorte de serem batizados, por que deveriam ser privados da visão de Deus?
E os milhões de judeus, muçulmanos, budistas e espíritas que não acreditam na
divindade de Jesus Cristo e na necessidade do batismo irão todos para o Inferno? E, se o
sacrifício de Jesus era suficiente para salvar a humanidade, por que enviar outro profeta,
Maomé? Afinal, o Deus dos cristãos não é o mesmo Deus adorado por judeus e islamitas?
As religiões monoteístas, as três, não descendem igualmente do patriarca Abraão? E se, por
acaso, Jeová, o Deus Pai e Alá, além de nomes, são também três entidades divinas
diferentes, em quem acreditar? E qual seria o verdadeiro Profeta enviado por Deus: Moisés,
Cristo ou Maomé? E a Lei que deve guiar os filhos de Deus é a Torá, o Evangelho ou o
Corão? Sendo as três Escrituras conflitantes, com qual está a verdade? Na dúvida, para não
contrariar nenhum deus, é aconselhável não professar religião alguma!
Parentes e amigos já me acusaram de eu ser excessivamente crítico, achando que
estou errado em fazer tantas perguntas, pois Deus, sendo o Todo-Poderoso, faz o quer,
quando quer e como quiser, sem precisar dar satisfação a ninguém. Eu penso
diferentemente. Suposto que minha vida foi um dom divino, se Deus me deu inteligência
para pensar, Ele vai querer que eu faça uso dela e não aceite nada que seja contra o
raciocínio lógico. Muito pelo contrário, a maior ofensa que o homem possa fazer a Deus é
não usar a inteligência, sob pena de renunciar à diferença específica que distingue o homem
da besta.
E nenhum homem é obrigado a pensar com a cabeça de outro, a acreditar no que
alguém disse por se achar “iluminado” por Deus. As chamadas revelações divinas não
passam de alucinações. As biografias dos grandes fundadores de religiões (Moisés, Paulo
de Tarso, Maomé, entre outros) relatam que eles sofriam de distúrbios psíquicos que
provocavam “visões”, imaginariamente atribuídas à intervenção de entidades sobrenaturais.
Os considerados profetas, como outros seres humanos, estavam sujeito ao engano. Tanto é
verdade que suas afirmações dogmáticas, posteriormente, foram desmentidas pelo
progresso das ciências e pela indagação histórica e filosófica. A verdade deve ser colocada
sempre acima da crença. Minha natureza racional se recusa a acreditar sem pensar, sem
convicção pessoal. Estou convencido de que a fé não pode ter prioridade sobre a razão, pois
é por meio da razão que cada um deve justificar – e, se necessário, rejeitar – a fé que
herdou de seus pais.
O sábio grego Aristóteles ensinara que a virtude é uma disposição para fazer o bem,
adquirida e não inata. Quer dizer, o homem não nasce bonzinho. A criança, como o animal
ou qualquer ser humano primitivo, é fundamentalmente egoísta, preocupada em satisfazer
seus instintos e desejos, não respeitando o que é dos outros. Portanto, desde cedo, deve ser
educada para a prática das virtudes que lhe permitam viver no convívio de outros de forma
pacífica: a sinceridade, o respeito ao bem alheio, a polidez, a tolerância, a caridade, a
obediência, o amor ao estudo e ao trabalho, a prática da afetividade e da amizade. O
ensinamento de tais virtudes deve fazer parte de uma formação antropológica sem nenhuma
ligação ou dependência de normas religiosas. Ter uma conduta decente independe de
professar a fé cristã, budista ou islamita.
Estamos falando de valores éticos universais, que cumpre defender contra dogmas e
práticas de moralidade, ensinados por esta ou aquela religião. Talvez possamos distinguir o
165
que é “ético” (bom para todos) do que é “moral” (relativo a um determinado grupo social).
O problema é que o conceito de moral (do latim mores = costumes, usos), quando
relacionado com determinada religião, adquire o sentido de imutável, absoluto, pois
sagrado, imposto por uma vontade divina inquestionável. Tomemos, apenas como exemplo,
o preceito bíblico da circuncisão: o corte da pele do prepúcio do menino devia ser uma
medida de higiene e profilaxia, talvez necessária três mil anos atrás para povoações que
viviam no deserto e sofriam pela falta de água. Mas é praticada ainda hoje (e também por
adultos que se convertem ao judaísmo), quando a ciência médica proporciona ao homem
meios bem mais suaves para resolver um problema de saúde.
Costume semelhante à circuncisão dos hebreus é a infibulação: em regiões da
África, de religião animista ou muçulmana, a menina é submetida à retirada do clitóris e à
sutura dos lábios vaginais para evitar que sinta prazer sexual antes da noite de núpcias. A
permanência de tamanha crueldade, antes de ser atribuída a uma vontade divina, deve ser
vista como sinal da infinita estupidez humana. Um amigo evangélico me confessou que
gostaria de ir a baile, mas sua religião proíbe a dança, pois o contato físico pode induzir em
tentação. Que absurdo! A dança é uma arte universal, considerada a linguagem do corpo,
praticada por culturas indígenas e pelos povos mais civilizados.
É evidente que a liberdade de culto permite a qualquer grupo social a prática de seus
rituais. Mas, se houver conflito, deve prevalecer a moral cívica sobre a religiosa. A ética de
princípios deve ceder a uma ética contextual, pois o bem público não pode ser prejudicado
por mandamentos pressupostamente divinos. Alguns exemplos: a luta contra a AIDS não
pode ser impedida pela proibição eclesiástica do uso da camisinha; as pesquisas com
células-tronco devem ser consideradas eticamente válidas por contribuírem para a cura de
muitas doenças; uma mulher que quiser abortar, para salvaguardar a saúde física e psíquica
sua ou do feto, não pode ser tratada como uma criminosa; o divórcio deve ser permitido
para homens e mulheres encontrarem um novo caminho para a felicidade; não deveria ser
proibido ajudar alguém que queira libertar-se de um sofrimento insuportável e inútil pela
eutanásia; não deixar que uma crença religiosa, que proíbe a transfusão de sangue, cause a
morte de um ser humano.
Nenhuma religião pode ser utilizada para justificar qualquer forma de sofrimento,
físico ou psíquico, individual ou coletivo. Nenhum dogma pode considerar moral a guerra,
a tortura, o homem-bomba, o terrorismo, o racismo, a corrupção, a hipocrisia. Infelizmente,
sentimentos negativos estão imersos no oceano de coletividades vítimas de longas tradições
conservadoras. O corpo anônimo de massas populares, dirigido por líderes fanáticos ou
interesseiros, é induzido a seguir normas cristalizadas no tempo e transmitidas de geração
para geração.
O preceito religioso é racionalizado ou revisitado pela hipocrisia: a regra da Ordem
franciscana proíbe andar a cavalo (na Idade Média, o cavalo era o meio de transporte do
rico, enquanto o pobre andava a pé ou no burrico), mas o frade pode viajar de avião de
primeira classe; a Torá veta o trabalho de sábado, mas o judeu pode pagar alguém para
fazer isso; o Dalai Lama pode visitar uma prostituta desde que outra pessoa pague; é
proibido ao muçulmano xiita fazer sexo fora do casamento, mas nada impede que ele
contraia núpcias temporárias, por algumas horas, divorciando em seguida; o católico deve
abster-se da carne na 6ª feira santa, mas pode comer uma bacalhoada regada a vinho do
Porto. Não se reflete sobre o “espírito” da lei, mas apenas na aplicação da norma jurídica ou
moral ao pé da letra.
166
promessa de sermos imortais e reencontrar nossos entes queridos após a morte física, um
dia, num mundo feito de pura espiritualidade. Tal esperança é boa demais para ser
descartada. Mas, por isso, pagamos um preço muito alto: a renúncia ao espírito crítico e a
convivência com a mentira e a ilusão.
Apresento, a seguir, uma resenha de alguns livros, que me ajudaram na elaboração
deste trabalho, como indicação bibliográfica e sugestão de leituras. Eles têm em comum os
mesmos temas (filosofia, religião e política) e o mesmo tempo de publicação (todos
recentes), além do fato de serem “traduções” (pelo que eu saiba, nenhum estudioso
brasileiro tratou do palpitante assunto sobre o “pensamento alargado”: aqui vai o convite,
estou passando a bola!).
Luc Ferry: Aprender a viver (filosofia para os novos tempos). Objetiva, 2007.
Judía, socióloga e teórica política alemã, emigrou para os EUA após a ascensão do
nazismo. Foi discípula e amante do mestre existencialista Heidegger, formando-se em
filosofia na Universidade de Heidelberg. Mas sua importância está diretamente relacionada
com o pensamento político da segunda metade do século passado, com reflexos no
momento presente, visto que suas idéias são de uma atualidade impressionante. Ela se
tornou mundialmente famosa pela cobertura jornalística do julgamento de Eichmann,
passado à história como o exterminador dos judeus. Foi desta experiência, pelos
interrogatórios de testemunhas, que ela chegou ao conceito da “banalidade do mal”: a
condescendência com a tortura e a prática da maldade pelos burocratas, que aplicam as leis
sem nenhum questionamento, contrição ou remorso, tornam o sofrimento das vítimas como
algo normal, conatural a seres humanos considerados inferiores. Daí sua luta para
diferenciar o bem do mal e a defesa da liberdade em qualquer circunstância. Outro conceito
fundamental da pensadora alemã é a associação do Nazismo com o Comunismo. Para ela,
Hitler e Stalin são duas faces, embora opostas, do mesmo Totalitarismo, que comete crimes
hediondos contra o indivíduo e a família, em nome da construção de uma sociedade de
massas ideologicamente manipuladas. Sua obra nos ajuda a refletir sobre os tempos atuais e
a entender as lutas de etnias dilaceradas por guerras nacionalistas. Enfim, quer a ideologia
nazista quer a comunista se afirmaram pela exploração da boa fé do povo e de sua
tendência à agregação e à dependência de uma liderança política ou religiosa.
Christopher Hitchens: Deus não é grande (Como a religião envenena tudo). Ediouro,
2007.
Este outro autor britânico é mais um jornalista polêmico do que filósofo, cientista
ou estudioso de política. Analisando textos das três grandes religiões monoteístas, o autor
chega à conclusão de que o conceito de Deus é uma conseqüência do medo da morte e os
dogmas judeus, cristãos e islâmicos são responsáveis pela repressão sexual e o atraso da
evolução do homem. Sua originalidade está no conceito de que qualquer religião é puro
fruto do acaso, de algumas circunstâncias completamente aleatórias. Vamos ler um pedaço
da sua obra: “Dos milhares de possíveis religiões no deserto, assim como dos milhões de
170
espécies em potencial, um ramo por acaso deitou raízes e cresceu. Passando por mutações
de uma forma judaica a uma cristã, ela (a religião) acabou sendo adotada, por razões
políticas, pelo imperador Constantino e foi transformada em crença oficial com - no final -
uma forma codificada e obrigatória de seus muitos livros caóticos e contraditórios.
Quanto ao islamismo, ele se tornou a ideologia de uma conquista altamente bem-sucedida,
adotada por dinastias governantes de sucesso, e então codificada, estabelecida e
promulgada como lei da terra. Uma ou duas vitórias do outro lado e nós no Ocidente não
seríamos reféns de disputas provincianas que aconteceram na Judéia e na Arábia antes
que houvesse registro. Poderíamos ser devotos de uma crença inteiramente diferente -
talvez hindu, asteca ou confucionista”. Eu, como qualquer outra pessoa de mente livre,
poderia assinar em baixo a esta síntese lúcida da história da religião, apresentada por
Hitchens!
A expressão acima é de Oscar Wilde, escritor irlandês que viveu de 1854 a 1900.
Tal afirmação foi quase fatídica: os povos do Norte da Europa (anglo-saxões e
escandinavos, principalmente), um século depois, alcançaram um nível de cidadania que
chega quase ao ideal. Eles debelaram a miséria, construindo um Estado de democracia e de
liberdade, sem descuidar da justiça social: salários satisfatórios e conforme o mérito de
cada um, planejamento familiar e controle de natalidade, eficiente sistema educacional e de
saúde, transportes coletivos funcionais (trens velozes e metrôs).
Mas será que não existem pobres na Suécia ou na Dinamarca? Existem sim, mas
podem reparar que são famílias de emigrantes que chegaram lá provenientes de regiões
171
atrasadas da África, do Oriente Médio, dos Bálcãs, da América central e meridional. Algo
semelhante ao que acontece no Brasil com nossos irmãos nordestinos que chegam na
metrópole de São Paulo em busca de trabalho e acabam morando em favelas ou em baixo
de viadutos.
Vou resumir o testemunho de um brasileiro que vive na Europa, veiculado pela
Internet. É um admirável exemplo de prática de cidadania. Escreve ele: “Já vai para 16 anos
que estou aqui na Volvo, uma empresa sueca. Trabalhar com eles é uma convivência, no
mínimo, interessante... A primeira vez que fui para lá, em 90, um colega sueco me pegava
no hotel toda manhã. Era setembro: frio, nevasca. Chegávamos cedo na Volvo e ele
estacionava o carro bem longe da porta de entrada (são 2.000 funcionários de carro). No
primeiro dia eu não disse nada, no segundo, no terceiro... Depois, com um pouco mais de
intimidade, numa manhã, perguntei: "Você tem lugar demarcado para estacionar aqui?
Notei que chegamos cedo, o estacionamento vazio e você deixa o carro lá no final”.
Ele me respondeu, simplesmente assim: "É que chegamos cedo, então temos tempo de
caminhar - quem chegar mais tarde já vai estar atrasado: melhor que fique mais perto da
porta. Você não acha?"
Pergunto eu: por que o Brasil e outros países emergentes não podem alcançar, eles
também, tal alto grau de cidadania, respeitando o seu semelhante, pondo fim ao egoísmo, à
miséria, à ignorância, à violência? Será que os povos do Norte da Europa são mais bonitos,
mais inteligentes ou suas terras produzem frutos mais saborosos do que os nossos? Ou será
porque eles pensam e trabalham? Dizia Santo Agostinho: “Si iste et ille, cur non ego?” (se
um ou outro pôde se tornar santo, por que eu não posso também?). A meu ver, é um
problema de consciência nacional e de vontade política. Os dois fatores criam um círculo
vicioso: não há consciência nacional porque aos políticos não interessa educar o povo, pois
vivem da exploração de sua ignorância; e não há vontade política porque a grande massa,
pobre e desinformada, escolhe mal seus representantes, vendendo o voto em troca de um
benefício qualquer.
Alguns estudiosos da nacionalidade brasileira sustentam a tese de que a origem de
nosso atraso civilizacional estaria no tipo de colonização. Enquanto os ingleses chegaram
na América do Norte para fazer da nova terra uma nova pátria, esquecendo-se do fog de
Londres, os dominadores portugueses e espanhóis viviam sentindo “saudade da terrinha”,
de sua pátria de origem. Daí as repetidas viagens de ida e volta entre os dois continentes
para comercializar produtos. A intenção da exploração é evidenciada pela monocultura: não
se produzia o que era necessário para o desenvolvimento do Brasil, mas apenas o que podia
ser comercializado em grande quantidade para o exterior. Daí os sucessivos ciclos
econômicos do pau-brasil, cacau, cana de açúcar, café, ouro e de outros minerais. Só se
começou a plantar alface no Brasil quando chegaram italianos e japoneses, no começo do
século passado.
Esta tese é quase incontestável, pois baseada numa evidência histórica. Como dizem
os juristas, contra os fatos não há argumentos: em todo o continente americano, os países
colonizados por povos ibéricos são menos desenvolvidos com relação aos que foram
descobertos por etnias do Norte da Europa. Enquanto os imigrantes de lá realizavam o
“sonho” americano em busca de liberdade e prosperidade, os de cá, os colonizadores
espanhóis e portugueses do México, América Central e Meridional, instauravam o
“pesadelo” dos regimes ditatoriais, que exploravam a força do trabalho dos escravos e dos
indígenas.
172
Olhando o mapa do Norte-América, é fácil verificar que, das três Nações que o
habitam, EUA, Canadá e México, este último, de cultura espanhola, é o mais atrasado.
Enquanto duas novas nações colonizadas, ainda ligadas à Comunidade Britânica (Austrália
e Nova Zelândia) apresentam um altíssimo IDH (índice de desenvolvimento humano). A
África do Sul, antes de expulsar os ingleses, também era um país de civilização adiantada:
foi realizado em Johanesburgo o primeiro transplante de coração humano.
A meu ver, o sucesso dos povos anglo-saxônicos, comparativamente aos de origem
latina, reside em dois pilares: o amor ao trabalho e o culto da cidadania. Quem costuma
viajar para o exterior facilmente nota a diferença de mentalidade e de comportamento. Nos
países escandinavos é difícil encontrar gente na rua ou nos botequins, especialmente no
período de trabalho, ou passando altas horas da madrugada em baladas. E isso porque cada
pessoa adulta é educada para providenciar seu sustento. Lá não há tanta gente vivendo à
custa do erário público, ocupando “cargos de confiança” sem necessidade de prestar
concurso para provar sua competência. Aqui basta ser parente ou amigo de algum político e
logo se arruma uma boquinha de “assessor”. Também não há “bolsas” governamentais que
estimulam a indolência.
Em países plenamente desenvolvidos, o conceito de cidadania tem voz ativa e
passiva, implicando direitos e deveres. Nossa última Constituição, infelizmente, fala
centenas de vezes dos direitos (da mulher, da criança, dos trabalhadores etc.), mas nunca
das obrigações dos cidadãos perante a sociedade. Viver em comunidade implica o respeito
ao nosso semelhante e ao que é público, isto é “de todo o mundo” e não de ninguém,
qualquer um podendo botar a mão. Lembro que, já faz mais de cinqüenta anos, visitando a
Universidade de Cambridge na companhia de minha irmã casada com um inglês, uma
sobrinha de três anos foi mexer num canteiro de flores. Meu cunhado logo a tirou de lá,
dizendo “it’s not possible; it’s public”. A criança podia tocar nas flores do jardim de sua
casa, mas não de um lugar público. Um povo sai da barbárie e atinge um bom nível de
civilização quando se convence de que o que é publico é mais importante do que é privado.
Infelizmente, uma pesquisa recente constatou que quase a metade dos brasileiros
tolera a corrupção e o nepotismo, declarando que, se pudessem, eles também contratariam
parentes e amigos para ocupar cargos públicos sem concurso, pouco se lixando com a falta
de competência para exercer determinada função. E isto confirma o fato de que a sociedade
brasileira ainda não percebeu a importância de separar o público do privado. É preciso
tomar consciência de que desperdiçar dinheiro público é mais prejudicial à Nação do que
assaltar bancos: o ladrão rouba o dinheiro apenas de uma instituição financeira e uma ou
algumas vezes, enquanto o funcionário incompetente rouba o dinheiro dos impostos pagos
por todos os cidadãos e de uma forma continuada, mesmo quando não trabalha mais e até
depois da morre, sob forma de aposentadoria e pensão.
Após meio milênio de história, o Brasil continua com os mesmos vícios originais
de uma sociedade paternalista, assentada sobre a concentração de renda que provoca uma
profunda desigualdade social. A corrupção é institucionalizada e, por ser geral, é
considerada normal, gozando da impunidade. O povo se acostumou a conviver com a
injustiça social, contentando-se com o assistencialismo. Todas as tentativas de mudar tal
situação, visando a adoção de um regime verdadeiramente democrático, foram abortadas
pelos governantes de plantão. Monarcas ou Presidentes, militares ou civis, uma vez
173
alcançado o poder, mordidos pela mosca azul, deixam de lado os ideais de reforma da
estrutura social e tomam medidas imediatistas para defender sua permanência na
governança pelo abastecimento de seus currais eleitorais. Ainda hoje podemos perceber a
divisão do nosso país em vastas regiões dominadas por famílias de políticos poderosos, de
forma semelhante ao que acontecia com a instituição das Capitanias Hereditárias na época
do Brasil Colônia.
Continua a ser alimentada a forma mais perniciosa de ditadura, sustentada não mais
pelas armas, mas pela compra do voto popular: quem tiver mais dinheiro e influência
política acaba sempre se elegendo e reelegendo, ficando tudo como estava antes.
Lembramos a famosa frase do Príncipe de Salina, o protagonista do romance O Leopardo,
de Tomasi di Lampedusa, ironizando as reformas propostas pelos conquistadores da Sicília,
na época do herói nacionalista Giuseppe Garibaldi:
permitindo um fosso enorme entre o salário mínimo e o teto altíssimo e não respeitado por
quem tem o poder de aumentar o estipêndio em causa própria.
Infelizmente, o egoísmo é conatural ao homem e a corrupção sempre existiu e vai
continuar em qualquer tempo ou lugar. Mas aqui não nos estamos referindo à corrupção
cultural ou pontual (dar uma gorjeta a um policial ou favorecer um parente), mas,
principalmente, à corrupção organizada e oculta (grandes empresários que sorrateiramente
compram o apoio de governantes). O que se lamenta é a conivência do sistema político que
permite o desaparecimento dos mecanismos de defesa do organismo democrático. A
corrupção não é mais considerada como um crime de lesa-pátria, que deva ser
rigorosamente punido pela força da lei. Ela se tornou uma prática normal dos Três Poderes
da República, gozando da impunidade, apoiada inclusive pela maioria do povo, que
continua dando seu voto a políticos indiciados ou até já condenados em primeira instância
por improbidade administrativa.
O que causa estranhamento é a condescendência do povo brasileiro com os
criminosos de colarinho branco. A multidão se revolta contra atos nefandos de
estupradores, pedófilos, infanticidas, ameaçando seu linchamento, mas não demonstra a
mesma ira contra empresários desonestos, políticos corruptos, religiosos picaretas. Não se
reflete sobre o fato de que a ação destes últimos facínoras é muito mais perniciosa para a
sociedade do que o ato isolado de doentes mentais. Um monstro pode destruir algumas
vidas, enquanto o delinqüente de gravata é a causa da desgraça de milhares de seres
humanos. É incalculável o numero de crianças que poderiam ter sido salvas do caminho do
crime com o dinheiro público surrupiado por gente desonesta. É preciso que o poder do
Estado pense nisso, pois, como dizia o sábio chinês Confúcio:
Já se tornou um bordão afirmar que ainda não foi inventado um sistema político
melhor do que o democrático, pelo qual todo o poder emana do povo e deve ser exercido
com a finalidade primordial de prover o bem-estar da totalidade da população. E nada mais
justo, pois a fonte principal da riqueza de um País provém da arrecadação dos impostos
pagos por trabalhadores, produtores e consumidores. Acontece, porém, que o regime
175
político que vigora no Brasil nunca respeitou a vontade da maioria dos eleitores, pois não
são os homens mais votados que tem o poder de dirigir o País.
Efetivamente, na prática, devido à fragmentação dos partidos, são as legendas
nanicas que acabam dirigindo a Nação. Explico: se o partido A recebe 40% dos votos, o B
30% e o C 15%, será este último (ou vários pequenos associados) a ser o fiel da balança. E
isso porque os partidos menos votados barganham seu apoio com um ou outro partido de
maioria apenas relativa. Para que qualquer projeto de lei possa ser aprovado é preciso fazer
várias concessões: distribuir cargos, favores, privilégios; liberar verbas orçamentárias;
traficar influências, passando a praticar o famigerado ditado franciscano “é dando que se
recebe”, posto em conluio com o maquiavélico “o fim justifica os meios”. Em nome de
princípios ideológicos, muitas vezes amparados até por disposições legais injustas, são
cometidas ações nefandas. A meu ver, o pluripartidarismo e o financiamento privado das
campanhas eleitorais são as duas fontes principais da corrupção institucionalizada.
O remédio seria a adoção do sistema do Bipartidarismo, que já existia na antiga
Roma republicana (anteriormente ao Imperialismo dos Césares), a mãe do Direito Público,
onde havia apenas o partido Aristocrático (representante a elite social) e o partido
Democrático (da massa popular). Tal forma de regime funciona, ainda hoje, nas mais
eficientes democracias modernas (Conservadores e Trabalhistas, na Inglaterra;
Republicanos e Democratas, nos EUA, dois partidos (situação e oposição) em vários
sistemas políticos da Norte da Europa). A experiência negativa brasileira da Arena e do
MDB não pode ser levada em conta, pois se deu durante o execrável regime militar-
ditatorial, que impedia o livre exercício da liberdade, censurando a imprensa e os outros
meios de comunicação.
A proposta atual seria institucionalizar apenas dois partidos, representando a
constante tensão entre a afirmação da liberdade individual e de corporações (a antiga
“direita” conservadora) e a inclinação para uma maior justiça social (a antiga “esquerda”
em defesa das classes menos favorecidas). Simplesmente, longe de qualquer conotação
ideológica ultrapassada, o primeiro poderia ser chamado de “Partido Liberal” (PL) e o
segundo de “Partido Social” (PS). O termo “democrático” ou “republicano” deveria ser
evitado por serem pleonasmos em países não governados por ditaduras.
Caberia ao Presidente da República (escolhido pelo Congresso, com mandato de
oito anos, com possibilidade de renovação), não filiado a nenhum partido e com função
apenas representativa e moderadora, indicar um Primeiro Ministro para colocar em prática
o programa do partido vencedor. Teríamos, assim, a divisão do poder entre o Chefe do
Estado (o Presidente da República) e o Chefe do Governo (o Primeiro Ministro). Este,
tendo a maioria absoluta no Congresso Nacional, poderá nomear Ministros de Estado e
outros assessores com ampla liberdade, sem depender do apoio da oposição.
Desta forma, estaria garantida a plena governabilidade, sem prejuízo da liberdade
institucional, pois, se o governo não correspondesse às aspirações populares, não
promovendo as reformas estruturais necessárias para o bem da coletividade, o Presidente da
República poderia, em qualquer momento, indicar outra pessoa para compor um novo
Gabinete. Em casos extremos, o Presidente poderia até dissolver o Parlamento e convocar
novas eleições. Nesta última hipótese, um dispositivo legal deveria proibir qualquer
Deputado Federal de concorrer a novos mandatos. Em contrapartida, o plenário da Câmara
poderia substituir o Presidente da República, caso ele não agisse com justiça e probidade.
Mas, como todo sistema político, o Bipartidarismo também poderia apresentar
inconvenientes. O perigo maior seria cairmos numa “ditadura partidária”, se alguns
176
necessidades populares voltadas para a segurança pública. Pode aparecer, então, um líder
carismático, tipo Hitler, Stalin, Sadam Hussein, Fidel Castro, Hugo Chávez, um Big
Brother brasileiro, o “Grande Irmão” da fábula de George Orwell, que tudo espiona,
concentrando em suas mãos o poder absoluto. E isso seria o fim do sistema democrático,
que não pode subsistir junto com nenhum “Salvador da Pátria”, seja ele religioso ou
secular, comunista ou capitalista, que se perpetue no poder.
A acentuação da violência na cidade e no campo é um sinal da revolta contra as
instituições completamente desmoralizadas. E o pior é que a perda das garantias
democráticas não seria compensada por uma maior justiça social. A história nos ensina que
nenhuma forma de ditadura foi boa para a grande massa de uma população, pois nenhum
país se desenvolveu de uma forma sustentável durante regimes absolutistas, de esquerda ou
de direita, em vista de que o estadismo não diminui, mas apenas esconde a corrupção.
Precisamos visar a construção de um sistema político-social muito diferente do que tivemos
até agora, simplesmente porque este nunca funcionou. Isso, embora muito difícil, é
possível, se os cidadãos mais esclarecidos e com amor à pátria brasileira fizerem um
constante movimento de renovação dos costumes políticos, exigindo a prática de uma
verdadeira cidadania.
Sirva-nos, como exemplo, a Espanha do Generalíssimo Franco: durante várias
décadas de ditadura, os espanhóis estiveram numa situação social bem pior do que o Brasil
de hoje. Com a entrada no Mercado Comum Europeu e a adoção da democracia
parlamentarista o país floresceu de uma forma esplendorosa, chegando a inverter a
condição emigratória para imigratória: os cidadãos espanhóis não querem mais sair do seu
país e não querem aceitar gente de cultura diferente. A economia da Espanha se tornou
exportadora e seus habitantes alcançaram um invejável índice de desenvolvimento, porque
quem agora manda lá é um Primeiro Ministro que, se não governar corretamente, a
qualquer momento, perdendo a confiança do Congresso Nacional, poderá ser substituído
pelo Rei-Presidente.
que permitem a colaboração do capital público com o privado, fazendo média entre a pouca
eficiência da empresa pública e a ganância das firmas particulares?
As citações acima são provas de que educação e cultura são os fatores básicos da
construção de uma cidadania aqui e em outros lugares, agora e sempre. O espetáculo mais
vergonhoso que um País possa apresentar é a existência de crianças abandonadas, pedindo
esmolas, cheirando cola ou traficando drogas. Cuidar da primeira infância e da
adolescência é fator fundamental para a construção de uma verdadeira cidadania, de uma
Nação que se possa considerar civilizada. A responsabilidade é tanto da Família quanto do
Estado, pois o abandono das nossas crianças está na origem do desemprego, da
delinqüência, da injustiça e da miséria social.
Quando os pais não podem, a obrigação de assistir as crianças é do governo
(municipal, estadual e federal), garantindo creches e escolas para todos e em tempo
integral. A criança deve ser assistida, no mínimo, oito horas por dia, para participar das
aulas, fazer as tarefas de casa, ler jornais, revistas e livros, praticar esportes e alguma
atividade artística. No orçamento público, a verba destinada à Educação deveria ser
satisfatória, absolutamente prioritária e gasta com extrema eficiência porque, como está
demonstrado pela experiência feita em vários países emergentes, aí reside o futuro de uma
Nação.
Mas não se pode apelar apenas para os recursos públicos. Urge estabelecer
prioridades para o gasto familiar, acabando com uma cultura baseada na inversão de
valores: há gente pobre que se lamenta por não ter dinheiro para comprar o leite ou um gibi
para as crianças, mas nunca renuncia à cervejinha ou à “pitadinha”. Está na hora de
mudarmos o conceito do nosso “herói nacional”, o homem sem caráter e sem cultura, o
carnavalesco vagabundo e irresponsável, tipo Sargento de Milícia ou Macunaíma da
tradição literária brasileira. Vamos propor como modelo de herói para nossos jovens o
homem estudioso, trabalhador e responsável por seus atos.
No Brasil, ultimamente, tudo evoluiu, com exceção da Educação, que deu marcha a
ré, prejudicando o caminho para a construção de uma verdadeira cidadania. É preciso
corrigir desvios gravíssimos, acontecidos nas últimas décadas, causados por políticos e
burocratas incompetentes e presunçosos. Devem ser tomadas medidas urgentes, tais como:
um currículo comum para as escolas do país todo, especificando a matéria essencial a ser
ministrada para cada série; acabar com o sistema de progressão continuada, que leva à
aprovação automática; propor bonificação para professores e funcionários das escolas que
181
de “pecado”, as várias doenças endêmicas que se espalham pelo planeta Terra. Nesses
territórios, a Filosofia, a Ciência e o Bom Senso não têm vez.
Felizmente, o Brasil é um país constitucionalmente laico e tolerante, permitindo o
culto de qualquer religião, sem escolher uma como “oficial”. Mas, enquanto o Estado
respeita o sentimento religioso de seu povo, concedendo completa liberdade de culto, a
Religião, contrariamente, não respeita as necessidades do Estado laico. As várias igrejas e
seitas continuamente estão invadindo o direito civil, impondo a seus fiéis normas éticas que
impedem o desenvolvimento social. Nenhuma ideologia religiosa deveria influir na
solução de graves problemas sociais, como o planejamento familiar, a pesquisa científica
com células-tronco, transgênicos, aborto, eugenia, eutanásia ou pena de morte. Tais
problemas devem ser resolvidos pela sociedade civil, com base no princípio democrático da
vontade da maioria, sem a interferência de preconceitos religiosos.
Enquanto o Estado gasta milhões numa campanha nacional para prevenir o povo
contra a AIDS e outras doenças transmitidas sexualmente, as igrejas proíbem o uso de
camisinha e de outros preservativos ou anticoncepcionais; enquanto o Estado, para respeitar
a liberdade individual, permite o divórcio e o convívio entre homossexuais, padres,
pastores, rabinos e aiatolás condenam a penas eternas quem faz sexo fora do matrimônio.
Enfim, o cidadão deve obedecer a quem ou a quê? Ao instinto natural da busca do prazer
neste mundo ou a uma ideologia religiosa que lhe proíbe ser feliz nesta terra para alcançar a
beatitude no céu? A crença na existência de uma alma separada do corpo e de uma vida
transcendental é uma questão de fé e pertence à alçada individual. Seus corolários não
podem atingir o tecido social como um todo. A única norma moral que deveria reinar
numa sociedade que se quer civilizada é a do respeito: a si próprio, ao seu semelhante, à
natureza, ao bem público. Nossa vida seria infinitamente mais saudável e feliz, se todo o
mundo adotasse apenas o princípio ético universal:
“faça o que quiser desde que não faça mal a ninguém”!
uma relação sexual, amorosa ou ocasional, pouco importa. Ainda hoje, num mundo que se
acha civilizado, há camponeses que se orgulham de ter parido dúzias de filhos! Como se
isso fosse um mérito! Se pai verdadeiro é quem educa, como um casal (ou, pior, uma mãe
solteira), pode cuidar decentemente de muitos filhos? Não há crime maior do que dar à luz
um ser humano sem poder garantir-lhe casa, comida, saúde, educação e, sobretudo, amor. A
responsabilidade paterna é insubstituível e o desajuste de uma criança abandonada se
reverte em incalculável prejuízo para a coletividade toda, pois é aí que se encontra a origem
da marginalidade.
Como nossos governantes respondem a esta questão fundamental de cidadania?
Com o silêncio e a omissão! Os políticos, pelo medo de perderem os votos das grandes
camadas religiosas, induzidas a não usar anticonceptivos por motivos morais, fazem vista
grossa e não apresentam nenhum plano eficiente de controle de natalidade. Através de
programas assistenciais, especialmente da bolsa-família, o governo acaba estimulando a
procriação irresponsável, pois há miseráveis que põem mais filhos no mundo para
ganharem, para cada criança, uns trinta reais a mais por mês. E os políticos demagogos,
para angariarem votos, ainda tiram fotos sorridentes com mulheres pobres e desdentadas
com bebês no colo e rodeadas por pencas de crianças. Que lindas imagens de cidadania!
Tal absurdo ofende a inteligência e a sensibilidade humana! Enquanto nos países
mais civilizados o índice demográfico é quase zero (nascem tantos cidadãos quantos
morrem), no Brasil se chega a quase 2%, com a agravante de que a maior superpopulação
se dá nas camadas mais indigentes. É fácil constatar que quem teria condições econômicas
para sustentar muitos filhos tem apenas um ou dois, no máximo, e quem não pode criar um
filho sequer põe no mundo uma dúzia de descendentes. Com a inevitável e injusta
conseqüência social de que alguém será obrigado a cuidar dos filhos dele: uma avó, uma
tia, uma governanta, um orfanato.
Urge educar o ser humano a assumir a responsabilidade por seus atos, sem transferir
o ônus de sua culpa para familiares ou órgãos de caridade. Quem é “o pai da criança” que
cuide dela e, se não o fizer, deveria ser-lhe proibido ter outros filhos. A vasectomia e a
laqueadura são o meio mais eficaz para reduzir a ignorância, a miséria e a desigualdade
social em toda a face da Terra. Não há número de creche que chegue se não se proibir a
procriação irresponsável. O controle da natalidade é fundamental para evitar a
marginalidade e os conflitos étnicos, provocados por jovens pobres e despreparados que
abandonam suas cidades em busca de abrigo em outras regiões ou países. Evidentemente, o
problema da explosão demográfica não é apenas do Brasil e somente de agora. Já
Aristóteles, no séc. IV a.C., observara:
condições psíquicas para educar tantas crianças com a assistência e o amor do que elas
precisam?
Felizmente, a história da formação dos haréns já está melhorando: enquanto, no
longínquo séc. XV, o Sultão da Índia, Ghiyas-ud-Din Khilji, teve 15 mil mulheres, na
atualidade, precisamente em setembro de 2005, o Rei da Suazilândia, MSWATI III, por
um concurso entre 50 mil moças virgens, escolhia sua 13ª esposa, prometendo que seria a
última. Mais recentemente, no Canadá, o empresário Winston Black-More, chefe de uma
igreja mórmon, com 49 anos, se contenta com apenas 30 mulheres.
Mas já aparece uma luz no fim do túnel, vindo do próprio Extremo Oriente,
tradicionalmente muito prolífero: a China promulgou e fez vigorar uma lei férrea que
proíbe às mulheres de terem mais de um filho. Tal providência, junto com o investimento
maciço na educação das crianças, fez com que, em apenas duas décadas, a China passasse
de país emergente à Quarta Potência Econômica do Mundo.
A eficiência do planejamento familiar e a educação para a prática do sexo seguro e
responsável facilitariam muito a solução de um gravíssimo problema ético e social: o
aborto. Decidir quem tem o direito de dar início ou fim a uma vida, eis a questão. Todas as
religiões professam a fé na origem divina do ser humano, considerando a vida como um
dom de Deus, que colocaria uma alma imortal em cada corpo humano em algum momento
da gestação. Até agora, porém, nenhum teólogo se dignou precisar onde e como se daria tal
intervenção divina.
A neurociência nos ensina que a formação biopsíquica de qualquer ser humano está
sujeita ao princípio geral da evolução. Ao tomar forma, o embrião torna-se feto, adquirindo
características peculiares na dependência de traços genéticos e culturais. A mãe, via
placenta, transmite ao feto sinais ambientais da vida intra e extra-uterina. A leitura destes
sinais, feita pela massa cerebral, irá moldar a personalidade da criança. Portanto, a parte
espiritual do ser humano, que nós chamamos alma, mente ou inteligência, constituída pelos
neurônios, não é colocada lá, de fora para dentro e de uma vez, num determinado momento,
mas se molda gradativamente, a partir de experiências anteriores ao nascimento e evoluindo
até à morte cerebral.
Para a ciência biológica, que não cogita em nenhuma intervenção sobrenatural, a
vida inicia quando um espermatozóide, penetrado no útero de uma mulher, consegue
engravidá-la. O elemento genético masculino fecunda o feminino, dando início ao processo
de desenvolvimento do feto, que leva aproximadamente nove meses até chegar a sua
formação completa e vir à luz, saindo do corpo materno. O problema discutido é em que
momento da gestação o feto pode ser considerado uma vida “humana”, por ter adquirido
uma estrutura cerebral capaz de conter a inteligência, o elemento espiritual, o que os
religiosos chamam de “alma”, que distinguiria o homem da besta. A maioria dos cientistas
acha que este estágio de desenvolvimento craniano não se alcança antes da 12ª semana de
gestação. Com base nisso, quase todos os países consideram não criminoso o aborto
realizado até o terceiro mês de gravidez, pois não há humanidade sem vida mental.
A legislação brasileira (Código Penal, artigo 121) considera o aborto um ato não
criminoso apenas em duas circunstâncias: “se não há outro meio de salvar a vida da
gestante ou no caso de gravidez resultante de estupro”. Entendemos a ressalva do primeiro
caso, pois pode se aduzir o princípio da legítima defesa; mas o segundo caso é um absurdo
jurídico. Que culpa tem um feto se foi concebido por uma violência sexual? Se a proibição
do aborto tem como justificativa a preservação da vida, então como condenar um inocente à
pena de morte? Será que o feto gerado por estupro tem menos vida do que outro
186
Mais uma vez, configura-se o choque entre o legal e o moral. Fui visitar na Itália, há
pouco tempo, minha irmã mais velha em estado terminal. Passei uma semana, junto com
outra irmã, cunhado, filhos e netos, assistindo seu imenso e inútil sofrimento, pedindo
insistentemente que Deus a chamasse para si. Mas este Deus, em quem ela tanto acreditara
a vida toda, se revelou insensível à sua dor. Afinal, se a gente não pediu para vir ao mundo,
por que não ter o direito de sair dele quando quiser e descansar em paz? Por que aguentar
tanto sofrimento e fazer padecer inutilmente tantas pessoas que nos amam?
Decididamente, a religião torna infinita a estupidez! O ser humano sente mais
compaixão pela dor de um animal (mata um cavalo doente) do que pelo sofrimento de um
seu semelhante. A meu ver, muito mais “humanos” são os Kutchin, tribo de esquimós
que vivem na região do Alasca. Neste lugar, as pessoas idosas e doentes, que não se
sentem mais úteis, pedem para serem mortas pelos familiares, e estes obedecem a
sua vontade. Se não podemos evitar a morte, destino final de todo ser vivo, por que
não abreviar o sofrimento terminal? Confundimos sensibilidade com egoísmo ou
fraqueza: não suportando a dor pela perda de um ente querido, deixamos que ele
continue sofrendo!
Transporte coletivo
Esta fala do barão Nikolai Tusenbach, personagem da peça As três irmãs, de Anton
Tchekhov, representada em 1901, foi profética, pois, 16 anos depois, estourou a Revolução
Bolchevique na antiga União Soviética, obrigando todos os homens a produzirem bens para
a coletividade. Estava instalado o regime comunista com a pretensão de pôr em prática os
ideais socialistas de Karl Marx. Pena que os privilégios, tirados da classe nobre da época
czarista, reaparecessem ao longo do domínio dos burocratas soviéticos, levando a revolução
comunista ao fracasso.
Na verdade, o trabalho é um direito e um dever fundamental do ser humano, sendo a
única atividade que realmente nobilita nossa existência. “Direito” porque, se não encontrar
um emprego decente, como uma pessoa adulta pode sustentar a si e a sua família? Mas é,
sobretudo, um “dever”, pois, se o homem não se preparar para um ofício, dificilmente
arrumará um bom emprego. Toda criança, desde cedo, deveria ser estimulada, pela Família
e pelo Estado, a pensar no seu futuro, a se perguntar “o que vou fazer quando crescer”?
Completado o ensino médio, se não tiver vocação pela intelectualidade e quiser ou puder
fazer um curso universitário, deve escolher uma profissão, não importa qual. Qualquer
trabalho torna-se nobre, quando é realizado por competência e amor. Quem adquirir um
“saber fazer” alguma coisa (know how), nunca estará desempregado por muito tempo.
Acontece que alguns jovens, especialmente os que não recebem a atenção dos pais,
se acostumam a uma forma leviana de vida, apenas curtindo baladas, “ficando” com
namoradas e vivendo encostados em familiares. Quando acordam para a vida, já adultos,
entram em desespero, pois percebem que não conseguem competir com quem se preparou.
Pagam, assim, o preço da infração da lei cósmica, que impossibilita a colheita sem plantio.
E, se plantou vento, irá colher tempestade! Quem foi vagabundo na juventude, dificilmente
vai ter uma boa velhice. Há gente que não procura “trabalho”, mas apenas “emprego”. É
triste constatar que esta tendência já se tornou um fato cultural no nosso país, pois o
exemplo vem de cima. Muitos funcionários públicos vivem mamando nas tetas do
governo, produzindo pouco e ganhando muito, em detrimento de outros que trabalham
muito e ganham pouco.
No Brasil, a injustiça social, especialmente a salarial, é simplesmente pavorosa: o
mesmo governo, que paga um mínimo de 450 reais, autoriza o pagamento de 45.000 ou
mais para altos burocratas. É absurdo constatar que um ser humano acaba recebendo um
salário cem vezes maior do que outro! A proporção é descomunal, ofendendo a
inteligência e a dignidade humana! Em alguns países (especialmente da Escandinávia),
cultural e economicamente mais desenvolvidos, a proporção não pode passar de quatro
vezes: se o salário mínimo é de mil euros, o governo não vai pagar mais do que quatro mil
para qualquer funcionário público.
Quem sabe, um dia chegaremos a um “Estado de Direito”, onde a lei será igual para
todos, na realidade e não apenas no papel; onde cada qual seria remunerado conforme o
mérito, o trabalho realmente efetuado, com a abolição de qualquer forma de privilégio.
Alguém poderia nos dizer para que serve o cargo de “Delegado de Ensino”, ocupado por
nomeação política? Não bastam o Diretor da Escola e o Secretário da Educação para
orientar as atividades docentes e discentes? Para que tantos pedagogos, coordenadores,
orientadores educacionais, assistentes sociais, psicólogos nas escolas públicas? Com tanto
dinheiro gasto para intermináveis reuniões de estéreis “planejamentos”, poder-se-ia
remunerar melhor o professor que realmente trabalha.
Estes são apenas alguns exemplos dos inúmeros cargos burocráticos de quase
nenhuma utilidade, criados como cabides de empregos para gente envolvida com a política.
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Os muitos ministérios, secretarias, cargos públicos por indicação servem apenas para
acomodar partidários e familiares de políticos. Infelizmente, os Três Poderes
constitucionais, o Legislativo, o Judiciário e o Executivo, agem como corporações
interessadas em defender os privilégios de seus membros: o primeiro legifera em causa
própria, o segundo julga legal o que lhe convêm e o terceiro, a Presidência da República,
que dá o exemplo de gastos desnecessários, ratifica os abusos. Os poderosos, ciosos de
seus “direitos adquiridos”, pouco se importam com a transgressão do princípio
constitucional da isonomia, a igualdade de todos perante a lei, pelo qual para o mesmo
trabalho deveria haver retribuição idêntica.
Esta falta de sentimento de justiça social cria revolta no cidadão, quando vê que
numa cidade vizinha, por pertencer a outro Estado, a professora de cá ganha a metade da
de lá; que o docente do ensino básico de um Município ganha mais do que o professor do
ensino médio do Estado; quando o Prefeito vai de carro do ano buscar a “cesta básica”;
quando a funcionária da Petrobrás, que trabalha na cidade do Rio de Janeiro, num escritório
com ar condicionado, recebe o auxílio de “insalubridade”; quando um Juiz de Direito
recebe, entre outros privilégios, ajuda de custos para pagar a escola particular de seus
filhos, enquanto a balconista não encontra vaga para suas crianças na escola pública;
quando o Presidente da República, em detrimento do seu concorrente, usa toda a máquina
administrativa para se reeleger.
O problema é que, se em tese e pela lei, todos os homens são iguais, na prática,
existem uns que se consideram “mais iguais” do que outros, conforme reza uma famosa
fábula. Tentar levar vantagem é natural, faz parte do egoísmo humano. Por isso, cabe ao
poder público coibir as injustiças. A verdade é que a democracia política só funciona se
existir uma democracia econômica. É preciso entender que o bem público, no fim, se
reverte também no bem privado. Recentemente, um empresário italiano fez uma
experiência inédita: ele e sua família tentaram viver por um mês com o salário médio que
pagavam a seus empregados. Experimentou que o dinheiro acabara no 20º dia. Resolveu,
então, aumentar o ordenado dos funcionários não por generosidade, mas por puro egoísmo,
pois verificou que o stress causado pela falta de dinheiro prejudicava a qualidade e a
quantidade dos produtos.
Na verdade, é preciso entender que não se constrói cidadania alguma sem um
profundo sentimento de justiça. Mas a justiça realmente existe? Esta interrogação ocupou o
espírito de muitos estudiosos da natureza humana e do viver em sociedade. Um personagem
de uma peça de Shakespeare, num diálogo sobre a resolução dos problemas do Reino,
criticando os que cometem injustiças em nome da Lei, especialmente os advogados que,
para defender criminosos, chegam a faltar com a verdade, exclama:
A Justiça romana, correspondente à grega Diké, era a deusa dos julgamentos, filha
de Júpiter (o “Poder”) e de Themis (a “Prudência”), irmã da “Verdade”. Tal divindade
alegórica era representada como uma mulher nua, de porte majestoso. A partir deste
protótipo, ao longo da cultura ocidental, a Justiça recebeu várias configurações por
escultores e pintores, que tentaram dar uma forma plástica ao conceito. A estatuária grega
representa a Justiça como uma mulher bonita, sempre em pé, segurando na mão esquerda
uma balança e na direita uma espada. De olhos bem abertos, observa o equilíbrio entre os
dois pratos, pois é lá que se encontra o justo (ison=isonomia); a espada, além de indicar a
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força, simboliza também o cortar justo no meio as razões apresentadas pelos dois lados em
litígio.
Já os romanos representavam a deusa Justitia com os olhos vendados, significando a
imparcialidade nos julgamentos. Sem a espada, ela segura a balança com as duas mãos,
como sinal de firmeza. A força está na palavra: jurisdição significa jus dicere (“dizer o que
é certo, justo, direito”) e lex (“a lei”) tem como étimo o verbo legere (“ler” em voz alta,
para ser ouvido por todos). Na visão medieval, uma pintura do séc. XIII retrata a Justiça ao
lado da Prudência conversando nas nuvens, indicando claramente que a Justiça verdadeira
só existe lá no Céu.
Na entrada da Suprema Corte da capital norte-americana, a Justiça é representada
por uma estátua colossal, majestosa, colocada no alto da escadaria. A figura feminina está
sentada, vestida solenemente, segurando na mão direita a Constituição de 1787. Em
Brasília, na frente do Supremo Tribunal Federal, pode-se contemplar a escultura de Alfredo
Ceschiatti: o Poder Judiciário é representado por uma mulher pequena, sozinha, sem a
balança, com a espada descansando sobre suas pernas, de olhos vendados, talvez para não
enxergar as mazelas dos Três Poderes.
Na cultura ocidental, foi Montesquieu, o precursor e teórico da Revolução Francesa,
que codificou o direito natural das coisas na sua obra Do Espírito das Leis (1748),
desenvolvendo a teoria da separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que
está na base da maioria dos atuais governos constitucionais. Cada qual no seu lugar,
fazendo o que lhe compete, sem invadir o espaço alheio e ganhando conforme o mérito.
Tal conceito racional de justiça está descrito de uma forma bem simples na peça O Círculo
de Giz Caucasiano, de Bertolt Brecht:
Mas será que essa justiça existe na realidade ou, se houver, ela é igual para todos?
Ela é tão natural assim? Não se trataria apenas de um mito cultivado por agrupamentos
civilizados? Efetivamente, se a gente olhar para a natureza, irá perceber desigualdades e
criminalidade em todo lugar: uma árvore robusta e frutífera, contraposta a outra raquítica e
estéril; o leão que mata e come o cordeiro indefeso, sem piedade alguma; enchentes aqui e
secas acolá. O próprio ser humano não nasce com o sentimento de justiça: a criança é
naturalmente egoísta, apossando-se da boneca que não é dela. Já citei, em outro lugar, a
definição do filósofo inglês Thomas Hobbes: “o homem é o lobo do homem”. A meu ver,
a idéia de justiça está intrinsecamente relacionada com a necessidade de viver em
sociedade. Pertence ao código cultural e não natural. Em certo momento, o homem se deu
conta de que, se não respeitasse a mulher do outro, este também não respeitaria a sua e
começaria a briga, e a vida em comunidade se tornaria um inferno. Daí a necessidade do
surgimento da lei e da punição.
Portanto, o que distingue uma sociedade civilizada de uma selvagem, não é a
ausência da maldade ou da corrupção, mas sua impunidade. A previsão da não punição é o
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maior estímulo para a prática da delinqüência. A advertência moral não funciona sem o
medo do castigo. As igrejas aterrorizam seus fiéis com as penas do Inferno, caso não se
redimirem de seus pecados. Educação e punição devem ser considerados dois conceitos
complementares e não excludentes. O que induz as crianças a estudar é o medo da
reprovação e o conseqüente castigo paterno. Pode-se facilmente verificar que a conjunção
da cultura do civismo com severas penalidades levou países a um alto grau de civilização.
Contrariamente, quando o rigor da lei é aplicado apenas aos pobres indefesos, temos
o atraso civilizacional. Em países subdesenvolvidos, os grandes criminosos, especialmente
os que assaltam o erário público, os sanguessugas da sociedade, dificilmente pagam pelos
seus delitos. Tendo o poder econômico e a influência política, eles contratam os melhores
advogados que, aproveitando das brechas que se encontram nas leis e da morosidade da
máquina burocrática da Justiça, adiam a condenação ad infinitum, até a prescrição do crime.
Acrescente-se que, além do emaranhado absurdo do sistema judiciário e da
incompetência de alguns membros, existe corrupção nos próprios Tribunais. Como diziam
os antigos romanos: atque custodem quis custodiat? (“e quem vai tomar conta do
guarda?”); ou, na expressão do escritor contemporâneo Norberto Bobbio: “quem controla
os controladores?”. Machado de Assis é mais explícito: “é claro que a justiça, sendo
cega, não vê se é vista, e então não cora”. Mas que vai se fazer: como os outros humanos,
também os juízes estão sujeitos às limitações da nossa espécie. Da Justiça podemos dizer o
mesmo que se costuma falar da Democracia: “ruim com ela, pior sem ela”!
Mas, quanto mais fraco é o homem, mais fortes deveriam ser as instituições
jurídicas para se evitar falcatruas. O princípio constitucional de que “a lei é igual para
todos” deveria ser aplicado de uma forma inexorável e em qualquer circunstância.
Infelizmente, o conjunto de leis que vigoram atualmente (a própria Constituição, os
Códigos Penal e Civil e outras fontes normativas) está eivado de privilégios e imunidades
que anulam o preceito da isonomia, considerando uns cidadãos “mais iguais” do que outros.
O pior é que a prática da desonestidade e da esperteza, de tão generalizada, se torna
modelo de comportamento, pois o folgado, o malandro, o corrupto acaba tendo aceitação
social. Na prática, desmente-se o princípio ético de que “o crime não compensa”.
Compensa, sim, e como! O desonesto, o traidor das promessas públicas e privadas, além de
ser repetidamente eleito para ocupar cargos públicos, se torna o protótipo do herói
admirado pelo povão que exige que tais “virtudes” sejam encarnadas nos personagens de
telenovelas. A massa popular sente um prazer masoquista em ser enganada e aprecia a
capacidade de disfarçar, pois, como dizia ironicamente Machado de Assis, “O pecado,
depois do pecado, é a revelação do pecado”.
Faz-se necessária nova ordem jurídica que acabe com imunidade parlamentar, foro
privilegiado, voto secreto, distinção entre justiça militar e civil, regalias sem merecimento,
segredo de justiça. Além do habeas corpus deveria funcionar o habeas data: nenhuma
informação pode ser ocultada, nenhum negócio considerado sigiloso quando implicar em
despesas com o dinheiro de nossos impostos. O sistema de escuta telefônica ou qualquer
outra forma de invasão de privacidade deve ser permitido toda vez que estiver em jogo o
interesse da coletividade. Quem não quiser ter sua vida vasculhada não ocupe cargos
governamentais. É bom lembrar que o étimo da palavra República significa “coisa pública”,
portanto, de todos, “visível” para qualquer cidadão. O regime democrático implica numa
transparência absoluta. Recordemos as palavras de Martin Luther King: “a injustiça em
qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo o lugar”. A iniquidade é sempre causa de
discórdia. O próprio Rei da França Luis XIV, autor da famosa frase “O Estado sou Eu”,
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reconhecia isso ao afirmar que toda vez que indicava alguém para ocupar um cargo de
confiança arrumava cem inimigos e um ingrato.
O jornalista acima citado, Arnaldo Jabor, relata a seguinte confidência feita-lhe pelo
imortal dramaturgo Nelson Rodrigues: se Deus perguntar para mim se fiz alguma coisa que
preste na vida para entrar no céu, responderei: “Sim, Senhor, inventei o óbvio”. O escritor
de peças e o crítico de arte concordam no fato de que o homem comum não enxerga a
realidade das coisas que estão ao alcance de um simples olhar inteligente. Seguindo o
instinto gregário, ele se alimenta do caldo cultural em que foi criado, sem pensar sobre a
possibilidade de uma mudança da realidade que o faz sofrer, projetando sua felicidade num
hipotético mundo sobrenatural.
As reflexões feitas ao longo deste despretensioso estudo sobre nossa realidade
existencial ensejam medidas inovadoras, radicais. Mas, qual é a verdade que não dói?
Vamos continuar com o “faz de conta” de promover reformas sociais? De ilusão também se
vive, mas se vive mal, ao sibilar de balas perdidas, com o medo de assaltos e seqüestros,
entre brigas de policiais e traficantes de drogas. Também se vive mal à vista de crianças
pedindo esmolas nos semáforos ou de milhares de mortes nas estradas esburacadas e nos
aeroportos mal cuidados, olhando os políticos surrupiar o dinheiro público ou na esperança
de um deus nos acuda. Se quisermos salvar o corpo infectado, faz-se necessário amputar os
membros cancerígenos!
É preciso entender que o problema da governabilidade do Brasil vem de longe e está
nas instituições que tradicionalmente permitem o domínio permanente de oligarquias que
sustentam e são sustentadas por currais eleitorais. A corrupção, como um câncer maligno,
já se alastrou por todo o tecido social. Não tenhamos ilusões: enquanto os políticos
continuarem a legiferar em causa própria e os juízes a tolerarem a impunidade e a injustiça,
nenhuma reforma substancial irá ocorrer. A única saída possível do caos social e moral, em
que sempre vivemos, mas agora está se tornando insuportável, colocando novamente em
risco as liberdades democráticas, é a preparação de uma nova Carta Magna. Só com ela
poderiam ser realizadas as reformas indispensáveis para o brasileiro usufruir direitos e
praticar os deveres de cidadania. É preciso pensar numa nova ordem institucional que
garanta, ao mesmo tempo, a estabilidade governamental e a possibilidade de mudança
imediata, caso os anseios do povo não sejam atendidos.
Fundamental é que o conjunto de leis deveria ser elaborado não pelos atuais políticos
detentores do poder, mas por uma Assembléia Constituinte composta de cidadãos honestos e
competentes, imbuídos de um alto espírito patriótico, dispostos a trabalhar gratuitamente. Os
constituintes deveriam jurar que não irão ocupar cargos públicos eletivos ou executivos, pois
nunca deverá ser permitido legislar em causa própria. O pecado original da Constituição em
vigor é que ela foi redigida por Deputados e Senadores da República preocupados mais em
defender os privilégios corporativistas do que o bem estar social. Não preciso citar o nome de
um ilustre Senador Constituinte pelo Estado de São Paulo que deixou seu cargo com o acúmulo
de cinco polpudas aposentadorias, todas pagas com o dinheiro de nossos impostos!
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