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Cristalização, patologização
e criminalização da vida no
sistema de Justiça:
“Alienação Parental” e a
atuação da/o psicóloga/o
Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região - CRP 06
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Cristalização, patologização
e criminalização da vida no
sistema de Justiça:
“Alienação Parental” e a
atuação da/o psicóloga/o
Diretoria
Presidenta | Beatriz Borges Brambilla
Vice-presidenta | Ivani Francisco de Oliveira
Secretária | Raizel Rechtman
Tesoureiro | Rodrigo Toledo
Conselheiras/os
Ana Paula Hachich de Souza
Annie Louise Saboya Prado
Clarissa Moreira Pereira
Edgar Rodrigues
Eduardo de Menezes Pedroso
Emanoela Priscila Toledo Arruda
Ione Aparecida Xavier
Jessica Tomaz da Costa Silva
Julia Pereira Bueno
Jumara Silvia Van De Velde
Lauren Mariana Mennocchi
Lilian Suzuki
Luana Alves Sampaio Cruz Bottini
Luciane de Almeida Jabur
Maria da Glória Calado
Maria Mercedes Whitaker Kehl Vieira Bicudo Guarnieri
Maria Rozineti Gonçalves
Mônica Cintrão França Ribeiro
Mônica Marques dos Santos
Murilo Centrone Fereira
Rita de Cássia Oliveira Assunção
Sarah Faria Abrão Teixeira
Sulamita Jesus de Assunção
Talita Fabiano de Carvalho
Tatiane Rosa da Silva
Organização do caderno
Ana Paula Hachich de Souza e Carlos Renato Nakamura
___________________________________________________________________________
C755c Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça:
“Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o.
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. - São Paulo: CRP SP, 2020.
60 p.; 21x28cm. (Cadernos Temáticos CRP SP)
ISBN: 978-65-87764-00-9
CDD 159.92
__________________________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Marcos Toledo CRB8/8396
Cadernos Temáticos do CRP SP
Desde 2007, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo inclui, entre as
ações permanentes da gestão, a publicação da série Cadernos Temáticos do
CRP SP, visando registrar e divulgar os debates realizados no Conselho em
diversos campos de atuação da Psicologia.
07 APRESENTAÇÃO
09 INTRODUÇÃO AO TEMA E RODAS DE CONVERSA
12 JUDICIALIZAÇÃO DA VIDA, PSICOLOGIA E “ALIENAÇÃO
PARENTAL”: REFLEXÕES E APONTAMENTOS
Ana Paula Hachich de Souza
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
XVI Plenário do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo
1 https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/09/
Caderno_delibera%C3%A7%C3%B5es_10_CNP_
web_8_outubro_FINAL.pdf.
Introdução ao tema 9
e Rodas de Conversa
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
Do tema em foco e da estratégia de ras de Família e em meio a doutrinadores do Direi-
diálogo to de Família, figurando em sentenças e julgados.
Segundo Sousa (2010), importante pesquisadora
A “alienação parental” é conceito que re- brasileira sobre a temática, esse reconhecimento
monta a proposições de Douglas Darnall, psicólo- corresponde a uma demanda institucional de con-
go estadunidense, comumente confundido com a trole e tipificação da conduta humana, e também
expressão “síndrome da alienação parental”, este a uma forma de pensar e agir voltada à patologi-
proposto por Richard Gardner, psiquiatra, também zação e medicalização dos afetos, formas antigas
estadunidense. Os dois conceitos foram propos- de tutela sobre as relações familiares. As ações
tos nos anos 1980, nos Estados Unidos. De forma de Vara de Família, reconhecidamente espaço ge-
ampliada, tanto a “alienação parental” quanto a sín- rador de demandas do Direito à Psicologia (BRITO,
drome a ela correspondente se aproximam no que 1993; SHINE, 2010), passam a contar, no início do
se refere ao fenômeno sócio-familiar do divórcio e século XXI, com a difusão no âmbito jurídico de um
da separação conjugal, e de um tipo específico do conceito que, mesmo sem constituir construto psi-
envolvimento dos filhos em conflitos e questões cológico ou gozar de uma definição clínica preva-
de seus pais. Pela proposta de Darnall, a “alienação lecente na comunidade científica, desponta como
parental” seria fenômeno amplo, explicativo de per- pretensa fonte de explicação para conflitos entre
turbações na relação entre pais e filhos no contexto pais e filhos, e como justificativa para encaminha-
da separação. Já a proposta da “alienação parental” mentos (avaliações e sanções) para casos até en-
enquanto síndrome foi defendida por Richard Gard- tão considerados de difícil resolução.
ner como um conjunto sintomatológico observável
na criança ou no adolescente, que seriam “progra- É em meio a esse contexto que o Brasil
mados” para atuar nas disputas de seus pais com aprova a Lei n.º 12.318/2010, que dispõe sobre a
depreciação e crítica exagerada e injustificada. “alienação parental”. Sem correspondência com
É reconhecido que tais conceitos não pros- qualquer outro país do mundo (Soma et al., 2016)
peraram na comunidade científica tal como pro- e fruto de um projeto de lei de rápida tramitação,
postos, seja por problemas de pesquisa, seja em impulsionada pelo lobby de associações de pais
termos de validade dos dados que subsidiam tais separados, a Lei define “alienação parental” como
CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
teorias e os conceitos da profissão podem res-
ponder a objetos dados pela lei, mas que não são de Família. 3ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
apreensíveis do ponto de vista técnico-científico? 1993.
Em certa medida, essa pergunta testa a própria vi- ESTARQUE, Marina. Entenda a lei da alienação
são que se tem sobre o fenômeno psicológico e parental e as punições previstas a pais e mães.
os compromissos da profissão, porque suas pos- Folha de São Paulo, São Paulo, 24 ago. 2018, Dis-
síveis respostas e seus múltiplos sentidos podem ponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidia-
modificar a própria forma como se concebem as no/2018/08/entenda-a-lei-da-alienacao-parental-
possibilidades de escuta e intervenção pela/o -e-as-punicoes-previstas-a-pais-e-maes.shtml.
psicóloga/o. Nesse sentido, o CRP-SP apresenta Acesso em: 06 mar. 2020.
os trabalhos que aqui seguem ciente de seu papel
nesse debate e de sua relevância. E faz publica- ROVINSKI, Sônia Liane Reichert. Repensando a sín-
mente a chamada para que a Psicologia não atue drome de alienação parental. In: DIAS, Maria Bere-
nas instituições jurídicas de forma judicializada, nice (coord.). Incesto e alienação parental. São Pau-
mas de modo a promover o conhecimento psico- lo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 87-95.
lógico como instrumento que, por auxiliar na cons- SHINE, S. A espada de Salomão – a Psicologia e a
trução e na distribuição da Justiça, se afirme fun- disputa de guarda de filhos. 2ª ed. São Paulo: Casa
damentalmente como libertário e emancipatório. do Psicólogo, 2010.
Boa leitura! SOMA, Sheila Maria Padro; CASTRO, Marina Souto
Bezerra Lopes de; WILLIAMS, Lúcia Cavalcanti de
Albuquerque; TANNÚS, Pedro Magrin. A alienação
parental no Brasil: uma revisão das publicações
científicas. Psicologia em estudo, Maringá, v. 21, n.
3, p. 377-388, 2016.
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
A Psicologia deve se pautar, no exercício
familiares, nas questões de gênero
profissional em qualquer contexto, pela defesa e nas organizações das entidades
intransigente dos Direitos Humanos. Cabe às/ familiares, quase sempre acompa-
aos psicólogas/os levar em consideração que a nhadas por mudanças legislativas,
construção da subjetividade se dá intermediada indicando crescente complexidade
pelos processos sociais, políticos, econômicos, em matérias sócio-familiares”
culturais e religiosos de cada tempo, analisan-
do criticamente como se dão tais influências na
categoria no que se refere aos conflitos familiares
constituição das identidades.
já judicializados. O documento aponta a expectati-
Tais disposições constam no Código de Éti- va já mencionada, por parte dos casais parentais,
ca Profissional do Psicólogo, nos princípios funda- de que a Justiça apresente soluções “justas” para
mentais: “III. O psicólogo atuará com responsabili- os litígios, estabelecendo de forma concreta o que
dade social, analisando crítica e historicamente a cabe a cada um na divisão de responsabilidades
realidade política, econômica, social e cultural.” e perante os filhos.
também na resolução de elaboração de documen-
Em passado recente, verificam-se mudanças
tos (Res. CFP n.º 006/2019), que indica:
importantes nos papéis familiares, nas questões
Art. 5.º [...] § 2º A elaboração de documento de- de gênero e nas organizações das entidades fami-
corrente do serviço prestado no exercício da pro- liares, quase sempre acompanhadas por mudan-
fissão deve considerar que este é o resultado de ças legislativas, indicando crescente complexida-
uma avaliação e/ou intervenção psicológica, ob- de em matérias sócio-familiares.
servando os condicionantes históricos e sociais
É na tentativa de atender a essas deman-
e seus efeitos nos fenômenos psicológicos.
das cada vez mais complexas que chegam ao Po-
§ 3º O documento escrito resultante da prestação der Judiciário que o Direito passa a contar com a
de serviços psicológicos deve considerar a nature- contribuição da Psicologia. Nesta intersecção, é
za dinâmica, não definitiva e não cristalizada do fundamental que uma ciência reconheça as atri-
fenômeno psicológico. (CFP, 2019, grifos nossos). buições da outra e, principalmente, respeite seus
limites. Ou seja, nas relações comumente esta-
belecidas entre as/os profissionais e o Tribunal
“Cabe às/aos psicólogas/os levar de Justiça, por meio de suas/seus magistradas/
em consideração que a construção os, impõe-se uma hierarquia, mas que deve se
da subjetividade se dá intermediada restringir apenas à ordem administrativa, jamais
subjugando o saber científico construído.
pelos processos sociais, políticos,
econômicos, culturais e religiosos Necessário apontar tal questão porque, ao
de cada tempo” longo dos anos, a Psicologia abandonou o papel
inicialmente ocupado de realizar diagnósticos e
contribuir para o ajustamento e a normatização
Tal indicação se dá exatamente porque a de condutas, assumindo o papel de se fazer pre-
sociedade está em constante mudança e somos sente nos diversos contextos da vida humana,
diretamente atravessados pelas questões obje- inserindo-se nas políticas públicas e se pautando
tivas da vida. pelos Direitos Humanos. Passa a promover inter-
CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
conhecido Sistema de Garantia dos Direitos da
Criança e do Adolescente (SGDCA), consolidado lida cotidianamente com os conflitos familiares que
pela Resolução 113 do Conselho Nacional de Di- se transformam em disputas judiciais. Quando os
reitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), direitos não são a priori garantidos, as pessoas re-
publicada em 2006, a fim de garantir o cumpri- correm ao Poder Judiciário. Pismel (1979) apud Lima
mento da Lei. (2016, p. 23) aponta que “cabe ao Poder Judiciário
dirimir conflitos individuais, assegurando a ordem
O SGDCA se organiza em três eixos de atu- jurídica e a paz social, organizado e estruturado
ação: defesa, promoção e controle. É no primeiro à obtenção dos objetivos a ele cometidos”. Mas
eixo que se localizam o Poder Judiciário e suas muitas vezes, nas Varas de Família e Sucessões,
instâncias, a partir da aplicação da lei e de fiscali- onde são abordados os conflitos familiares, a jus-
zação e sanções quando de seu descumprimento. tiça buscada não é alcançada, pois a resposta não
abarca a complexidade e a totalidade da questão.
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
reitos sucumbe à neutralidade técnica. Por isso,
base em um constructo jurídico?” a defesa cega da ciência e da técnica é uma ati-
tude política reacionária” (p. 140). São corrobora-
o passar dos anos, vem demonstrando a impor-
dos por Ramos (2012), que aponta que este tipo
tância de superar o modelo de família tradicional,
de conhecimento, tecnicista, “neutro”, repleto de
nuclear, formada por um casal e seus filhos (MAN-
objetividade, serve apenas ao ajustamento ideo-
DELBAUM, 2012). A atualidade apresenta um sem
lógico dos sujeitos.
número de configurações e formações familiares,
pautadas pelo vínculo e pelo afeto. Tais apontamentos nos indicam o caminho
que a Psicologia deve tomar. O caminho de uma
Patto (2012) nos alerta sobre as práticas
atuação que promova a adequação da demanda
que concebem a família de forma descontextuali-
que chega à/ao psicóloga/o de acordo com a ne-
zada, apartada das formas de relações sociais e
cessidade da/o usuário, e não do demandante;
da história.
que considere as pessoas atendidas em suas
O mesmo alerta é feito por Mena, para quem totalidades e que seja sensível às suas dificul-
“[...] é necessário estarmos atentos e vigilantes dades, sem torná-las cristalizadas; um caminho
também com relação a nossos preconceitos, pois em que a defesa intransigente dos Direitos Hu-
construímos nossos pensamentos a partir de ca- manos seja a diretriz.
tegorias sociais e culturais herdadas” (2012, p. 78).
obscurece a objetividade aspirada pelo direito almente os sujeitos, colaborando para a crimina-
(2016, p. 192). lização das relações familiares, sem ressignificar
os pedidos que a ela chegam.
Crochik e Patto (2012) denunciam a tenta-
tiva de igualar o objeto e o método das ciências O que propomos é, nas palavras de Pat-
humanas aos das ciências naturais, com base no to, “uma psicologia solidamente ancorada em
racionalismo e no positivismo que não se ade- uma reflexão teoricamente sustentada e que
quam àquelas. Criticam a busca pela neutralidade considere o outro como sujeito de múltiplas de-
da ciência, premissa que ignora a historicidade e terminações, não como coisa a ser mensurada”
18 (2012, p. 11). Mello e Patto (2012) nos alertam Referências
sobre a necessidade de que, diante dos dramas
familiares e dos desafios postos pela Justiça, BICALHO, P. P. G. de. Da execução à construção das
a/o psicóloga/o não se olvide de atuar com em- leis: a psicologia jurídica no legislativo brasileiro. In:
basamento teórico, mas também com reflexão BRANDÃO, E. P. (org.). Atualidades em psicologia ju-
e sensibilidade ética. rídica. Rio de Janeiro: Nau, 2016. p. 17-34.
a complexidade da vida em sociedade indicaria BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
a incapacidade de o sistema jurídico-normativo Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.
prever todas as hipóteses de conflitos e de de- planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
mandas. Nisso residiria a evidência de incomple- Acesso em 27 fev. 2020.
tude dos ordenamentos e a crítica pela fixidez BRASIL. Lei nº 11.698, de 13 de junho de 2008. Altera
das normas jurídicas em relação à constante re- arts. 1.583 e 1.584 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro
definição das práticas sociais (2016, p. 31). de 2002 – Código Civil, para instituir e disciplinar a
Assim, concluímos que a Psicologia pode e guarda compartilhada. Disponível em: http://www.
deve oferecer recursos mais saudáveis e possi- planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/
bilidades mais dignas e não violadoras de direitos L11698.htm. Acesso em: 27 fev. 2020.
diante de conflitos familiares. BRASIL. Lei n.º 12.010, de 03 de agosto de 2009. Dis-
põe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de
julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescen-
te, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispo-
sitivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 -
Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho
- CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de
maio de 1943; e dá outras providências. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2009/lei/l12010.htm. Acesso em 27 fev. 2020.
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
l13105.htm. Acesso em: 27 fev. 2020. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012. p. 107-116.
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Paulo – PUC/SP, São Paulo.
20
Masculinidades e a produção
de “alienação parental”
Flávio Urra
Psicólogo e Sociólogo, Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP,
especialização em Violência Doméstica pelo Lacri-USP, coordenador
do Programa “E Agora, José? Pelo fim da violência contra a mulher”.
Introdução
“Esses discursos expõem
Semanalmente procuro dialogar com ho-
mens sobre o exercício de suas masculinidades, fenômenos complexos e profundos
sobre seus discursos machistas, sobre práticas e é preciso evitar a tendência de
abusivas, sobre a masculinidade tóxica que tem uma resposta fácil e superficial”
causado tanta violência contra as mulheres. Mas,
também conversamos sobre a busca e o exercício apresente, apenas, como conhecimento empírico
de uma masculinidade diversa, pautada no respei- baseado em experiências com grupos de homens,
to à pluralidade e pelo ativismo no enfrentamento mas baseado em análises e pesquisas científicas.
à violência contra a mulher.
Atuo com a temática masculinidades desde
2001, principalmente em grupos de homens (URRA,
2014). No decorrer destes anos, juntamente com ou-
“Mas, também conversamos sobre
tros autores, tenho sistematizado uma metodologia e
a busca e o exercício de uma adotado teorias que buscam oferecer suporte à prá-
masculinidade diversa, pautada xis (ANDRADE; URRA; SIMÕES, 2018; BOMBINI, 2017).
no respeito à pluralidade e pelo
Em 2014, por iniciativa da Secretaria de Polí-
ativismo no enfrentamento à ticas para Mulheres da Prefeitura de Santo André,
violência contra a mulher” participei da implantação do Programa “E Agora,
José? Pelo fim da violência contra a mulher”, pro-
grama em parceria com o Tribunal de Justiça e a
Muitas vezes, em nossos grupos de homens
Central de Penas e Medidas Alternativas do Esta-
condenados pela Lei Maria da Penha, ouvimos rela-
do de São Paulo (URRA, 2019a; URRA; PECHTOLL,
tos de pais que estão afastados de seus filhos ou
2016). Desde 2017, com a extinção da Secretaria
que suas companheiras dificultam essa proximida-
de Políticas para Mulheres, o Programa passa a ser
de e que, portanto, estão em um processo de “alie-
incorporado pela Associação Entre Nós - Assesso-
nação parental”. Assim como ouvimos relatos sobre
ria, Educação e Pesquisa (URRA, 2019b).
a violência exercida contra eles pelas mulheres.
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
sociedade e do acesso à riqueza ou informação. Uma
pessoa rica tem mais poder que uma pessoa pobre.
no processo sócio-histórico, são
Uma pessoa que nasce na França já nasce com mais recorrentes e consolidadas, como as
poder que uma pessoa que nasce no Brasil ou no Con- relações de classe social, de idade ou
tinente Africano. Uma pessoa branca tem mais poder geração, de raça/etnia e de gênero”
que uma pessoa negra. Uma pessoa adulta tem mais
acesso a riqueza e poder que uma criança, adolescen- Certamente ocorrem exceções, mulheres
te ou pessoa idosa. Certamente podemos ir adquirin- estadunidenses negras ricas, homens bolivianos
do poder em função da cidade que moramos, do bair- ricos, inclusive sempre observamos jogadores de
ro, da profissão, do estudo, das relações sociais. futebol negros de vários países pobres se torna-
rem ricos e famosos. Mas é um caso em milhares,
Quanto à dominação, ocorre quando uma
e, muitas vezes, ao chegar à categoria de poder
pessoa ou um grupo de pessoas ou classe retira
passam a reproduzir o sistema de dominação so-
poder de outra pessoa e toma pra si. Uma mulher
bre pessoas com menos poder.
tem direito a escolher uma profissão, se vai estu-
dar ou não, ou escolher a roupa que vai sair, mas Para além do sistema de dominação é pre-
às vezes, diante de uma relação abusiva, o homem ciso analisar as ideologias que sustentam essas
pode retirar o poder dessa mulher e passar a deci- dominações. Para isso, recorremos à teoria de ide-
dir se ela vai trabalhar ou não, a roupa que vai usar, ologia de Thompson (1995). Segundo o autor um
se vai ter filhos e coisas desse tipo. A dominação discurso é considerado ideológico quando o sen-
pode ocorrer em uma situação de trabalho, quando tido das imagens simbólicas serve para sustentar,
o trabalhador ou trabalhadora deixa de ter poder estabelecer ou reproduzir relações de dominação.
sobre seu próprio trabalho e fica em uma relação Assim, para identificar um discurso como ideológi-
de subalternidade com seu empregador, em que é co, como uma piada ou música, é preciso analisar
o empregador quem vai decidir vários aspectos de se o sentido da mensagem está reproduzindo uma
sua vida, por exemplo, a hora em que vai acordar, relação de dominação. Por exemplo, um filme por-
como vai realizar seu trabalho, a roupa que vai uti- nográfico em que a mulher é colocada como ob-
lizar, a hora que vai se alimentar ou ir ao banheiro. jeto, sendo o uso de seu corpo instrumentalizado
para o prazer dos homens, muitas vezes com re-
cursos de violência, podemos afirmar, sem sombra
“Quanto à dominação, ocorre de dúvida, que o filme é ideológico, pois serve para
quando uma pessoa ou um grupo manter uma relação de dominação dos homens
de pessoas ou classe retira poder sobre as mulheres.
de outra pessoa e toma pra si” Sobre as relações de dominação de gênero,
recorremos a Joan Scott (1995), principalmente
seu artigo seminal Gênero: uma categoria útil para
Algumas relações de dominação contempo- análise histórica, em que apresenta seu conceito
râneas, construídas no processo sócio-histórico, de gênero constituído por duas proposições fun-
são recorrentes e consolidadas, como as relações damentais: a primeira afirma que o “gênero é um
de classe social, de idade ou geração, de raça/etnia elemento constitutivo de relações sociais base-
e de gênero. Assim, homens comuns nascem com adas nas diferenças percebidas entre os sexos”.
mais possibilidade de acesso a poder e riqueza que A segunda, que “o gênero é uma forma primária
as mulheres. Basta analisarmos dados do IBGE e
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Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
mária diz respeito a não ser derivada de outra ca- cas cotidianas das mulheres. Nas relações de pro-
tegoria. Scott (1995) aponta que o gênero, estabe- dução, a distribuição de tarefas verifica-se pela
lecido como um conjunto objetivo de referências, divisão sexual do trabalho, produzindo uma de-
estrutura a percepção e a organização concreta e sigualdade no processo de distribuição de renda.
simbólica da vida social. À medida que a pertença/ Quanto à cathexis, está ligada ao processo social
identificação a um determinado gênero proporcio- de construir a mulher como objeto de desejo e o
na acesso a certos recursos materiais ou simbóli- homem como objeto desejante, ordenando a orga-
cos, o “gênero torna-se implicado na concepção e nização social de gênero.
na construção do próprio poder”.
Nessa conceituação, gênero é uma forma de
Sobre os estudos de masculinidades, uma estruturar as práticas sociais, vinculadas à raça,
autora referência para nosso trabalho é Raewyn classe, etnia e, em nossa concepção, também, à
Connell, mulher transexual nascida Robert William idade. Ou seja, nas ideologias predominantes, por-
Connell; sua obra, Masculinities, de 1995, é conside- tanto, as masculinidades dos brancos são cons-
rada um dos referenciais teóricos mais marcantes truídas não só em relação às mulheres brancas,
no campo de estudos sobre masculinidade. A au- mas também em relação aos homens negros e às
tora utiliza tanto a tradição clínica freudiana, como outras categorias, como classe e idade.
aportes da Psicologia Social, bem como as Ciências
Sociais: Antropologia, História e Sociologia.
Connell (1995) utiliza o conceito de masculi- “Gênero é uma forma de estruturar
nidades, no plural, para se referir aos vários papéis as práticas sociais, vinculadas à
sociais desempenhados pelos homens, alguns raça, classe, etnia e, em nossa
aceitos e legitimados, outros que não se enqua- concepção, também, à idade”
dram nem no masculino nem no feminino social-
mente aceito (CARVALHO FILHO, 2009). Além disso,
critica definições essencialistas e naturalizantes
que procuram outorgar traços definitivos ao que Sobre a Lei Maria da Penha e a Lei
se chama “homem” ou “mulher”, rejeitando que a da Alienação Parental
sexualidade adulta seja definida pela natureza. A Lei n.º 11.340/2006 - Lei Maria da Penha e
A autora, assim como Scott (1995), apresen- a Lei n.º 12.318/2010 - sobre a Alienação Parental
ta a masculinidade e a feminilidade como conceitos são leis diretamente envolvidas nessa discussão
relacionais, interdependentes, construídos sócio sobre gênero, masculinidades, ideologia, poder e
historicamente. Considera que os aspectos mas- dominação. São leis que vem à tona em meio aos
culinos e femininos coexistem em cada homem e debates nos grupos de homens. Mas cabe um
cada mulher, discordando das teorias de papéis questionamento: essas leis são ideológicas? Ou
sexuais que diferenciam dois desempenhos, um seja, podem servir para estabelecer, manter ou re-
masculino e um feminino. produzir relações de dominação?
Ela propõe um quadro teórico que busca A Lei Maria da Penha é constantemente ata-
entender e interpretar as masculinidades, exami- cada pelos homens que frequentam os grupos,
nando as vinculações existentes entre a vida pes- principalmente porque foram condenados por ela,
soal e as estruturas sociais. Para isso, propõe um mas também na tentativa de desqualificar sua po-
modelo provisório de ordenação entre relações de tência e considerarem a mesma como prejudicial
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poder, relações de produção e cathexis. aos homens. Muitas vezes com argumentos que
parecem legítimos dentro dos debates jurídicos.
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
lheres. Numa tentativa de utilizar as crianças para A sociedade machista e patriarcal concentra poder
atingir as ex-companheiras. Pode ser utilizada e riqueza na mão de homens e concentra pobreza,
para negociar o valor da pensão. Observamos nos logo, abuso e exploração, nas mulheres e crianças.
grupos homens que exerceram dominação contu-
Quando um homem exerce violência ou abu-
maz sobre a mulher, e que, quando confrontados
so contra uma mulher ou criança está reproduzindo
com um movimento de tomada de consciência da
e sustentando uma relação histórica de dominação
mulher e consequente movimento de busca de li-
dos homens sobre as mulheres. Quando uma mu-
berdade, utilizam meios jurídicos para conseguir a
lher exerce uma violência contra um homem está
guarda das crianças ou ter o direito a visitas pela
em um movimento de resistência a um processo de
Lei de Alienação Parental.
dominação e exploração. Podemos afirmar o mes-
De fato, essa lei tem sido usada por homens mo em relação à dominação de raça/etnia, ou à do-
suspeitos de terem cometido abuso sexual con- minação de adultos contra crianças.
tra filhas e filhos, para exigirem por meio legal o
direito às visitas. Assim, essa Lei de Alienação
Parental é ideológica, pois tem servido para man- “Quando um homem exerce
ter relações de dominação de homens sobre as violência ou abuso contra
mulheres, ao mesmo tempo, relações de domina- uma mulher ou criança está
ção de adultos contra crianças.
reproduzindo e sustentando uma
relação histórica de dominação dos
“Assim, essa Lei de Alienação homens sobre as mulheres”
Parental é ideológica, pois tem
servido para manter relações
de dominação de homens sobre
as mulheres, ao mesmo tempo,
relações de dominação de adultos
contra crianças”
da criança e do adolescente
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
Carlos Renato Nakamura
Psicólogo pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP; psicólogo judiciário no
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, atualmente na Comarca de Américo Brasiliense; especialista
em Psicologia Jurídica pelo Instituto Paulista de Estudos Bioéticos e Jurídicos – IPEBJ; mestrando em
Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP; membro do Carreira
Lab/USP – Laboratório de pesquisas e intervenções em desenvolvimento socioemocional e de carreira
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
uma etapa de absoluta indiferença em relação a di- tivamente a Proteção Integral de que trata o ECA.
reitos infanto-juvenis (ROSSATO; LÉPORE; CUNHA, Santos (2011), ao resgatar a história da cons-
2016) e, mais adiante, por um momento tutelar em trução da entidade sociológica da infância “de-
que crianças são objetos dos adultos, chega-se à linquente” ou “abandonada” no Brasil, interroga
fase da Proteção Integral pela emergência de mo- sobre os restos menoristas ainda presentes na
vimentações sociais e políticas que fizeram exigir sociedade e nos órgãos de proteção, mesmo sob
a construção de um paradigma garantista para a a vigência do ECA: estariam as divisões de Varas
vigência de direitos. de Infância e Juventude (e de Câmaras recursais)
entre competências protetivas e infracionais ree-
Ocorre que o ECA, como bem identificou
ditando os recortes sociais dos Códigos de Me-
Arantes (2011), apesar de ser uma legislação sofis-
nores? A criação de um Direito Processual Penal
ticada e reconhecida internacionalmente, ainda se
Juvenil traz uma roupagem pedagógica para prá-
encontra às voltas com duas crises: uma de imple-
ticas que resgatam modelos punitivos? No caso
mentação e outra de interpretação. Sobre a primei-
das/os psicólogas/os que atuam juntamente ao
ra, temos que o ECA foi decisivo para importantes
Poder Judiciário, os laudos e demais documentos
mudanças no país. Segundo o Unicef (2015), desde
psicológicos se dão “na defesa da subjetividade e
o advento do ECA o índice de mortalidade infan-
da singularidade” (p. 68) ou ratificam o instituído,
til caiu em todas as regiões do país, a cobertura
“docilizando os corpos” (p. 69)? Questionamentos
de vacinas aumentou, o número de crianças fora
semelhantes despontam em ações e projetos de
da escola foi reduzido, houve aumento no núme-
lei relacionados à adoção de crianças e adoles-
ro de nascimentos que de fato são registrados, os
centes, como analisaram Oliveira (2015) e Naka-
índices de trabalho infantil diminuíram etc. Porém,
mura (2019) sobre iniciativas que ecoam “restos
também é público e notório que o ECA, 30 anos
menoristas” ao definir formas de garantir o direito
após sua promulgação, ainda não atingiu satis-
à convivência familiar e comunitária focadas mais
fatoriamente seus objetivos e finalidades, até
na retirada de crianças do que na preservação de
porque estes são amplos e implicam na vigência
vínculos. No mesmo sentido, Sousa (2010), dis-
concomitante de Direitos Humanos, sociais e in-
correndo sobre a chamada “alienação parental”1,
dividuais, de forma que a efetivação da Proteção
pontua sobre a tendência de controle social e a
Integral de crianças e adolescentes não se dá por
tutela de pessoas, por meio da patologização e
ações pontuais, mas por transformações em todo
punição de condutas, que o conceito (e sua “sín-
o conjunto da sociedade.
drome” correspondente) implica no âmbito das
Varas de Família. Ou seja, muito embora a Prote-
ção Integral esteja legalmente instituída, ela ainda
“Ocorre que o ECA [...] ainda se
convive no amplo espectro dos direitos de crian-
encontra às voltas com duas crises: ças e adolescentes e suas famílias com práticas,
uma de implementação e outra de escolhas, processos e procedimentos com eixos
interpretação” alinhados à doutrina anterior, tutelar e menorista.
Acresce-se a isso que para a implementação “Mas quem, afinal, fala por essas
do ECA não bastam ações, políticas, programas e crianças e adolescentes quando
serviços, mas um desenvolvimento ético-político que
esses sujeitos passam por serviços
transpassa todos os segmentos que o envolvem:
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Por mais que ela se manifeste nos litígios fami- Em linhas gerais e amplas, o chamado prin-
liares, inclusive para revelar alguma situação de cípio do superior interesse da criança é comumen-
abuso sexual, nada disso será levado em conta te invocado para essa tarefa e, não raramente, a
se os juízes estiverem convencidos de que ela foi aproximação ao que representaria esse interesse
“alienada”. (...) Há, portanto, contradições no cam- superior na prática envolve a participação de pro-
po do direito da Infância e da Juventude na me- fissionais psicólogas/os nos feitos judiciais, posto
dida em que a criança é despojada da condição que estes trabalhadores costumam compor equi-
de sujeito, num lusco-fusco tornando-se objeto, pes técnicas que atuam diretamente nos casos de
ainda que em nome de sua proteção (BRANDÃO, conflitos judicializados.
2019, p. 44).
É frente a esse panorama que se apresenta
Essa obnubilação da proteção, no entanto, o objetivo do presente artigo: refletir criticamente
foi acompanhada por mais dispositivos norma- sobre o superior interesse da criança, suas torções
tivos. Além da própria Lei n.º 12.318/2010, que nas formas de se ouvir crianças e adolescentes em
dispõe sobre “alienação parental” e instituiu provi- casos altamente litigiosos, e as bifurcações inter-
dências para sua “constatação” por meio de “am- pretativas daquele princípio. Ou, dito de outra for-
pla avaliação psicológica”, a presente década tem ma, como um princípio doutrinário corre o risco de
sido marcada por alterações legislativas que têm tornar-se um mito.
não só reconhecido o conceito como alocado a te-
mática como de competência de profissionais es- Qual proteção? Quais interesses?
pecializados, com notável destaque para a Psico- No campo da defesa, promoção e proteção
logia. Nesse sentido, o Código de Processo Civil de de direitos, e mais especificamente da pró-vigên-
2015, que prevê a presença de um “especialista” cia dos Direitos Humanos, fala-se da Proteção
junto ao juiz na tomada de depoimento em casos Integral de crianças e adolescentes não exclusi-
de “alienação parental”, e a já mencionada Lei n.º vamente ao campo doutrinário, que enfatiza o as-
13.431/2017, que classifica essas hipóteses como pecto jurídico da mesma, mas também como um
casos de violência psicológica. Nota-se, assim, paradigma, um derivativo de uma visão de homem
uma veloz expansão do conceito, uma crescente e de mundo que concita ao (e implica no) reconhe-
expectativa de que profissionais psicólogas/os cimento do sujeito humano como agente de cui-
essa designação porque, sob o Código de Meno-
31
“Falar em Proteção Integral de res, os direitos de crianças e adolescentes eram
crianças e adolescentes é também restritos, só competindo o atendimento a eles nos
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casos em que estivessem sob algum tipo de risco,
trabalhar na perspectiva de que o perigo, privação ou “desvio de conduta”. Ou seja,
sujeito humano só é possível nas só havia direitos nas hipóteses em que crianças
relações intersubjetivas” e adolescentes precisavam ser tutelados pelos
adultos. Nesse sentido, qualquer prestação não
dados, tanto na condição de destinatário quanto prevista nessas hipóteses se afigurava mais como
na posição de prestador. Ou seja, falar em Prote- assistencialismo, de forma que ações em prol da
ção Integral de crianças e adolescentes é também infância eram empreendidas “de favor”, mas nun-
trabalhar na perspectiva de que o sujeito humano ca “de direito”. Como ensina Santos (2011), esse
só é possível nas relações intersubjetivas. Assim, modelo de proteção naturalizava recortes sociais
mais do que uma doutrina, trata-se de um marco pois, ao incidir sobre uma realidade de extrema
ético-político cuja síntese é, no caso do Brasil, o desigualdade, associava riscos e criminalidade à
Estatuto da Criança e do Adolescente (FUZIWARA, pobreza. Daí, a criação de uma categoria sociológi-
2006), de tal forma que a norma é menos o instru- ca: a do “menor”, sem voz e nem vez, apenas uma
mento e mais o raciocínio e a sistematização de fonte de problemas para a sociedade e o Estado.
princípios nela entabulados. Na prática, a legislação menorista só tutelava os
filhos daqueles que não se enquadravam na topo-
Logo, toda reflexão sobre direitos infanto-
grafia de uma família burguesa e nos valores dita-
-juvenis precisa apresentar-se transversalmen-
dos por uma classe de intelectuais higienistas que,
te, cruzando variados referenciais, dimensões e
por muito tempo, trabalhou inclusive com concep-
áreas de conhecimento, não sendo esses direitos
ções da própria Psicologia para “explicar” as desi-
uma questão exclusiva do Direito. Nesse sentido,
gualdades sociais e naturalizar suas vulnerabilida-
a discussão que aqui se pretende não é nem a do
des (CRP SP, 2018). Assim, a infância foi, por muitos
campo do Direito ou da Psicologia, e sim o de in-
anos, um objeto de controle.
tersecções possíveis. Mas antes se faz necessário
buscar algumas definições.
A Proteção Integral enquanto uma “doutrina” “A infância foi, por muitos anos, um
(ou seja, um conjunto de princípios que norteiam objeto de controle”
um sistema) exsurge na forma do art. 227 da Cons-
tituição Federal de 1988, que rompe com o modelo
anterior, prescrito pelos Códigos de Menores de
Já a Proteção Integral traz uma acepção ga-
1927 e 1979, a chamada “doutrina da situação ir-
rantista, algo que não se concebia no Código de
regular”. A partir daí, como resultado de movimen-
Menores porque este sequer anunciava direitos.
tações da sociedade, definiu-se que crianças e
Não à toa, deu-se à Lei n.º 8.069/1990 o nome de
adolescentes seriam não só cidadãos plenos em
“Estatuto” e não “Código da Criança e do Adoles-
direitos, mas cidadãos máximos do Brasil, tendo
cente”, afinal, a ele competia mais afirmar e siste-
em vista a prioridade absoluta com que esses di-
matizar direitos do que reger condutas individuais.
reitos devem ser atendidos.
E, ao fazê-lo, tornou-os exigíveis, o que habilita a
concepção de que o ECA faz emergir uma nova re-
lação entre crianças e adolescentes e suas famílias,
“A legislação menorista só tutelava
a sociedade e o Poder Público. Agora, todos esses
os filhos daqueles que não se entes podem ser cobrados para proceder aos cui-
enquadravam na topografia de uma
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Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
lescente como sujeitos de direitos, responsabilidade aponta que “quase todas as discussões judiciais
primária e solidária do Poder Público, privacidade, nestes casos iniciam-se com a afirmação de que
intervenções precoce e mínima, proporcionalidade, a guarda deverá ser conferida à pessoa que possa
responsabilidade parental, prevalência da família, promover o melhor interesse da criança” (p. 215).
obrigatoriedade da informação e participação). Sua Essa recorrência pode ser entendida pela própria
função, para os autores, é proporcionar “um exame evolução legislativa afeta ao Direito de Família
de razoabilidade quanto à aplicação de uma ou outra brasileiro, que apesar de ter superado o critério da
norma jurídica, ou quanto à não aplicação de normas “falta conjugal” (que orientava a definição da guar-
positivas” (p. 68), de onde se conclui que o superior da para o genitor que não houvesse dado causa à
interesse pode ter poder maior que a própria lei. separação) e buscado encontrar outros caminhos
para resolver controvérsias e disputas (“escola”
Melo (2018), por sua vez, aborda o interes-
ou “oficina de pais”, mediação, arbitragem, conci-
se superior destacando sua função garantista em
liação etc.), o aspecto adversarial desse ambiente
múltiplas dimensões. Ele resgata o aspecto herme-
jurídico ainda persiste, de forma que
nêutico mencionado por Rossato, Lépore e Cunha
(2016) ao atribuir a esse princípio a tarefa de pro- o juiz, no seu lugar de administrador da justiça,
mover uma compreensão sistêmica dos direitos procura encontrar o pai “certo” a quem dar a
de crianças e adolescentes, funcionando como posse da criança, ficando, assim, com a sensação
critério para resolver eventuais conflitos entre es- de missão cumprida quando encontra as provas
ses mesmos direitos, e também reitera a projeção necessárias que lhe permitem traçar uma linha
desse princípio às políticas públicas e práticas ad- claramente divisória entre o “bom” e o “mau” ge-
ministrativas e judiciais do Estado, como destacou nitor, ou apontar o “menos ruim” (RAMOS; SHINE,
Amin (2016). Acrescenta, porém, a função de regu- 1999, p. 109).
lar as relações parentais, equilibrando a respon-
Das referências conceituais aqui abordadas,
sabilidade pela criação dos filhos com o crescente
no entanto, observa-se que o interesse superior se
desenvolvimento da autonomia destes.
destaca sobretudo por um aspecto interpretativo
da norma, podendo ela ser eventualmente descon-
siderada se houver segurança de que um determi-
“O princípio do superior interesse nado estado de coisas represente o atingimento
se torna um freio ao paternalismo do espírito daquela mesma norma. Dessa forma,
do Estado, impedindo decisões e entra-se no campo da hermenêutica, do qual duas
intervenções autoritárias” preocupações se elevam: a do excesso de discri-
cionariedade e a do subjetivismo das decisões.
Maciel (2015) discorre sobre esses dois aspectos
Da contribuição do jurista, tem-se que o inte- especificamente sobre litígios familiares envolven-
resse superior é a própria satisfação dos direitos da do cuidados com filhos crianças e adolescentes, e
criança e do adolescente, por meio da valorização de preceitua que princípios têm poder vinculante, não
“um vínculo normativo idôneo” (p. 654) entre direitos podendo ser desconsiderados, devendo resultar
e garantias. O autor também destaca que, ao reger a em menor discricionariedade (quando decisões
aplicação da norma, o princípio do superior interesse se baseiam em vontades unilaterais, e menos em
se torna um freio ao paternalismo do Estado, impedin- uma abordagem sistêmica e multifatorial do caso).
do decisões e intervenções autoritárias e promoven- Sobre o subjetivismo nas decisões, a autora des-
do as que privilegiam a autonomia de crianças e ado- taca a necessidade de ponderação técnica, a fim
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lescentes e o direito de formular as próprias escolhas: de que a interpretação sobre o que é o superior
interesse da criança não reflita mais as crenças,
as intervenções devem ser criteriosas e funda-
preferências e concepções do intérprete.
mentadas, não no bem que um adulto pode crer
ser devido à criança ou ao adolescente, mas com O que a autora adverte diz respeito não só
base no que a garantia a respeito, igualdade, li- ao princípio do superior interesse, mas a todos os
berdade e autonomia possam reclamar (MELO, outros princípios: seu aspecto indeterminado e ne-
2018, p. 656). cessariamente genérico, posto que “possuem em
sua essência, certo e suficiente significado pas- Seda (1999) é crítico dessa prática, que con-
34
sível de concretização” (MACIEL, 2015, p. 846). Ou siderava expressão do “patronato estatal”. Des-
seja, o princípio do superior interesse traz um nú- taca que a concepção do superior interesse muda
cleo de sentido, mas não uma forma; esta deverá com a Convenção Internacional sobre os Direitos
ser aplicada de acordo com o caso concreto. da Criança e o ECA, diminuindo a subjetividade
na interpretação da lei por parte de quem aplica
E é justamente essa amplitude do princípio
a norma (o que não valeria só para autoridades
que tem potencial de esvaziar a norma, nas hipóte-
públicas, mas para todos os que atendem direi-
ses em que seu aplicador se utiliza do interesse su-
tos de crianças e adolescentes, o que inclui seus
perior como salvo-conduto para, em vez de garantir
próprios pais). Ensina o autor que essa regra in-
e proteger direitos, regularizar situações afrontosas
terpretativa é a do art. 6º do ECA, que permite
a esses mesmos direitos. Aliás, a própria origem do
pensar situações tanto no caso a caso quanto à
superior interesse remonta a essa prática.
extensão coletiva e difusa desses interesses. As-
sim, para o autor, a aplicação dos direitos infan-
to-juvenis deve atender aos fins sociais do ECA
“No Brasil, o princípio do superior (introduzir crianças e adolescentes no mundo da
interesse já era compreendido no cidadania), às exigências do bem comum, aos di-
Código de Menores de 1979” reitos individuais e coletivos (atender a direitos
de um indivíduo implica em considerar também
seus deveres, e os direitos e deveres dos demais)
Pereira (2003) ensina que o interesse superior e à condição peculiar da criança e do adolescente
surge no Direito inglês no séc. XIV, pelo instituto pa- como pessoas em desenvolvimento.
rens patriae, que conferia à realeza a ação protetiva
Nessa corrente, Silva e Schweikert (2018)
de incapazes, não só sobre a pessoa, mas também
relembram o aspecto esdrúxulo de quando o
sobre seus bens. Esse instituto é determinante para
superior interesse se sobrepõe ao regramento
o advento do chamado “best interest” nos EUA, no
constitucional, ou seja, quando se pensa nesses
séc. XIX, em julgados sobre divórcio, como atribuição
interesses sem considerar sua finalidade de ga-
do juiz decorrente da função de guardião que recai
rantir a integralidade de direitos que sejam verda-
ao Estado em seu papel de tutelar pessoas. No Bra-
deiramente da criança e do adolescente. Para os
sil, o princípio do superior interesse já era compreen-
autores, o garantismo funciona como inibidor do
dido no Código de Menores de 1979, ao estabelecer,
arbítrio subjetivista. De outra forma, alertam que
em seu art. 5º, que na aplicação da lei “a proteção
o interesse superior pode se tornar um “cavalo de
aos interesses do menor sobrelevará qualquer outro
Troia” da doutrina da situação irregular na sede
bem ou interesse juridicamente tutelado”. Como já
da Proteção Integral, orientando decisões que
discutido, a lei menorista permitia ampla discricio-
desconhecem a criança e o adolescente como
naridade, de forma que o juiz de menores era tido
seus verdadeiros interessados.
como a própria encarnação dos interesses superio-
res, a ele competindo, de forma autoritária, centra- À luz dessa lição, não parece possível pensar
lizadora e descontextualizada, escolher e definir o que na atualidade, marcada por notável judicializa-
que era melhor para os casos envolvendo direitos ção dos conflitos, o princípio do superior interes-
de crianças e adolescentes a ele apresentados. Tal se tem sido buscado com a propriedade que lhe
regramento trazia ao juiz de Direito, por seu pruden- competia em seu projeto original3 (estatutário e
te arbítrio, dizer o que era esse superior interesse, o convencional). Temas como a “alienação parental”,
que se agravava num contexto sócio-político sem a que exalta a fala da criança como prova em meio
vigência do Estado de Direito. a controvérsias de adultos, parecem esvaziar essa
proposta, como discutiremos a seguir.
Se o juiz achava que para atender a esse superior
interesse o melhor era prender a criança, chamando Como já referido, Arantes (2011) adverte que
essa prisão de proteção, chamando essa prisão de o ECA passa por uma crise de interpretação. Ao que
bem estar, fazia isso: mandava prender. E os pais se vê, essa crise interpretativa passa também pelo
não podiam fazer nada para evitar porque, por defini- desvirtuamento do princípio do superior interesse.
ção, o que passava a valer era a proteção, sob a for-
ma de prisão, o nome de bem estar, decretada pelo
juiz autocrático (SEDA, 2004, p. 80, grifos do autor). 3 Edson Seda foi membro da comissão redatora do Estatuto da
Criança e do Adolescente.
A Psicologia, a escuta profissional 35
à criança e ao adolescente, e o “O princípio do superior interesse
respeito a seus interesses passa a promover o reconhecimento
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
O princípio do superior interesse, como já
desses sujeitos nos espaços de
observado, é anterior às legislações protetivas cidadania. No caso do Judiciário,
que orientam a Proteção Integral. Porém, isso não isso implica em sua participação em
se voltava à sua finalidade, mas à celebração de processos judiciais em ações como
direitos e interesses de adultos. Brito (1999) lem- adoção, destituição do poder familiar,
bra, por exemplo, que o livro No melhor interesse medidas de proteção, e naquelas que
da criança?, de 1973, de Anna Freud, Goldstein e
Solnit, foi amplamente criticado pela recomenda-
envolvam a disputa de sua guarda e o
ção de que a guarda dos filhos no divórcio deveria direito ao convívio familiar amplo”
ser atribuída ao chamado “genitor psicológico”, ou
seja, aquele, dentre o casal parental, que possuía Com a queda do primado da falta conjugal
mais vinculação com a criança. Tal indicação limi- como definidor da guarda de crianças e adolescen-
tava o interesse da criança à alternativa parental, tes nas Varas de Família, o superior interesse passa a
promovendo um modelo de guarda unilateral que, exigir formas de o sistema de Justiça se aproximar do
a longo prazo, tendia a demitir o não guardião de que representaria, na prática, o atendimento a esse
sua participação no desenvolvimento do filho. princípio. Os recorrentes pedidos dos magistrados
por laudos e pareceres técnicos, inclusive por psicó-
Ao ser acolhido na Convenção Internacional logas/os, ilustram essa realidade (BRANDÃO, 2011).
sobre os Direitos da Criança, o instituto do supe-
rior interesse teve sua abrangência ampliada e seu Miranda Jr. (2010) acrescenta que é em nome
raciocínio modificado. Se na Declaração de Direitos desse superior interesse que se justifica, juridica-
da Criança de 1959 havia a recomendação mera- mente, a intervenção judicial na família, mas adverte
mente moral para que os Estados-Partes criassem que o significante “interesse superior” produz efeitos
legislações que considerassem aquele princípio, nos contextos social e da instituição judiciária, mui-
agora a Convenção estende esse instituto, inclusi- tos dos quais perpassam a atuação da/o profissional
ve juridicamente, para todas as ações relativas a de Psicologia. O primeiro deles seria a construção de
crianças e adolescentes, não só legislativas mas uma “cena” jurídica, um “quadro cerimonial” que legi-
também administrativas e judiciárias. Mais: no caso tima uma “lógica classificatória” e estereótipos pre-
do Brasil, pela ratificação da Convenção, o princípio tensamente explicativos da vida social (e que, quan-
ganha status de constitucional, mesmo não sendo do sustentados por técnicas/os por meio de laudos e
expressamente presente no texto da Constituição pareceres, ganham status supostamente científicos
federal (PEREIRA, 2003). Somado ao direito à parti- que ajudam a manter aquela mesma cena). O outro
cipação de crianças e adolescentes em ações que aspecto é o da emergência de práticas discursivas
lhes digam respeito (outro comando estatutário desse enquadre jurídico-institucional, assentando
e convencional), o princípio do superior interesse argumentos, no caso de disputas de guarda, sobre
passa a promover o reconhecimento desses sujei- as características pessoais dos litigantes e de condi-
tos nos espaços de cidadania. No caso do Judiciá- ções oferecidas às crianças, bem como do interesse
rio, isso implica em sua participação em processos em cuidar delas e da assistência real que lhes é des-
judiciais em ações como adoção, destituição do tinada. Ou seja, há basicamente uma contraposição
poder familiar, medidas de proteção, e naquelas artificialmente maximizada entre imagens “boas” e
que envolvam a disputa de sua guarda e o direito “ruins” própria do contexto adversarial, acirrando a
ao convívio familiar amplo. oposição entre os pais. Assim, conclui o autor que
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Schweikert (2018) ressalta a importância da nos processos que envolvem crianças e adoles-
superação de uma concepção adultocêntrica dos centes, está sempre em discussão o papel ou a
modelos tradicionais de proteção, destacando que função do juiz. Para lidar com uma área tão su-
a cidadania de crianças e adolescentes não pode jeita a interpretações parciais ou emocionais, é
ser reconhecida apenas pela satisfação de suas preciso encontrar parâmetros para valorar os
necessidades, mas ao atendimento de suas de- fatos e os argumentos e, de certa forma, tal va-
mandas e de seus interesses pessoais, o que impli- loração encontra respaldo na forma como o juiz
ca em permitir sua fala e a devida escuta. entende sua função (MIRANDA JR., 2010, p. 79).
teses de negligência ou abuso de falsas acusa-
36
“A cena judiciária replicará as ções” (PEREZ, 2013, p. 50).
mútuas acusações ou promoverá
espaços de escuta da subjetividade “Apesar disso, há um forte
dos envolvidos na lide?” empuxo institucional e legal para
Ou seja, a cena judiciária replicará as mútu-
reposicionar crianças, adolescentes,
as acusações ou promoverá espaços de escuta da familiares e psicólogos nos lugares
subjetividade dos envolvidos na lide? fixos e de forte controle, como são
No contexto da Psicologia Jurídica, e do am-
os de periciandos e peritos”
plo espectro de especialidades da Psicologia que
se articula com a Justiça, debates sobre a atuação A suposta “detecção da verdade” por trás
profissional limitada pelo enquadre pericial tomam das tramas desses casos ganha ainda um contorno
lugar já há tempo considerável, sempre no sentido mais grave pois frequentemente a alternativa à hi-
de um tensionamento entre o atendimento a de- pótese de “alienação parental” é a de abuso sexual
mandas processuais em termos de diagnósticos e infantil, aprisionando ataque e defesa (e, com eles,
classificações de um lado, e da promoção da singu- a criança e, no limite, a/o própria/o psicóloga/o) num
laridade das pessoas que acorrem às instituições looping infinito: um lado acusa o abuso enquanto o
jurídicas, de outro (ARANTES, 2007). Atualmente, outro acusa a “alienação parental”.
há recomendação expressa para que o modelo
pericial não determine a ação profissional das/os
psicólogas/os em Varas de Família (CFP/CREPOP, “Já há, na literatura nacional e
2019), além de propostas de atuação com carac-
internacional, advertências sobre
terísticas interventivas em meio a conflitos (SUAN-
NES, 2011) e também de possíveis ressignificações
a inadequação de se perguntar
(CAFFÉ, 2005). Apesar disso, há um forte empuxo diretamente à criança/ao
institucional e legal para reposicionar crianças, adolescente sob a guarda de quem
adolescentes, familiares e psicólogas/os nos luga- deseja estar”
res fixos e de forte controle, como são os de peri-
ciandos e peritos. É o que se observa no contexto
específico dos casos de “alienação parental”, que Ora, se a conduta dos genitores é o que,
expressamente situa a “detecção” dessa prática à pela lei, definirá o desfecho de um caso de
“perícia psicológica ou biopsicossocial”, inclusive “alienação parental”, logo a criança é arrastada
prescrevendo que seja analisada no laudo pericial gravemente para o centro do processo, não só
a “forma como a criança ou adolescente se mani- pelos termos definidos na legislação específi-
festa acerca de eventual acusação contra genitor”, ca, mas também pelo próprio conceito de “alie-
tudo nos termos da Lei n.º 12.318/2010. nação parental”, que é analisado pelo crivo do
comportamento, da emocionalidade e da sub-
jetividade da criança/do adolescente. Igualmen-
“Debates sobre a atuação te, das avaliações que envolvem abuso sexual
infantil, ambiente processual que consagra a
profissional limitada pelo enquadre
palavra da suposta vítima como de alto valor
pericial tomam lugar já há tempo probatório (BRITO; PARENTE, 2012).
considerável”
Já há, na literatura nacional e internacio-
nal, advertências sobre a inadequação de se
Perez (2013), juiz trabalhista que atuou na perguntar diretamente à criança/ao adoles-
apresentação de anteprojeto que deu origem cente sob a guarda de quem deseja estar. Bri-
à lei da chamada “alienação parental”, destaca to (1999) chega a dizer que isso seria, além de
que psicólogas/os e outros profissionais desig- violador, “a pesquisa do óbvio”, considerando
nados a atuar como peritos nesses casos de- as alianças familiares decorrentes do exercício
vem proceder a investigações que constituem provisório da guarda após a separação conju-
frequentemente o “encargo de diferenciar hipó- gal, enquanto o estudo clássico de Wallerstein
e Kelly (1998) já destacava a visão diferencial, aponta que a Convenção traz duas tradições
37
entre pais e filhos, a respeito do divórcio. Dessa conflitantes sobre proteção e garantia de direi-
forma, pode-se pensar que as práticas preten- tos de crianças e adolescentes: a mais antiga,
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
samente protetivas de terceirizar a responsabi- que ecoa à Declaração dos Direitos da Criança
lidade à definição da guarda às crianças e aos de 1959 e que define a infância e a juventude
adolescentes, que nunca foram de fato supera- pelo aspecto de sua vulnerabilidade e, portanto,
das, ganham aspecto ainda mais pronunciado de dependência de uma “proteção especial” a
com o advento de procedimentos de suposta lhes ser conferida pelos adultos, e uma mais re-
“detecção da verdade” em casos como os de cente, que acusa a vertente anterior de impedir
“alienação parental”. que crianças e adolescentes acedam à condi-
ção de pessoas e cidadãs, mantendo-as como
O panorama fica ainda mais complexo
“subseres” jurídicos, de forma que a proteção
quando se pensa no uso sancionatório da Lei
dos adultos teria uma função opressora. No
n.º 12.318/2010 e sua feição criminalizadora de
centro dessa perspectiva, direitos que crianças
condutas, verificada no próprio projeto aprovado
e adolescentes só conseguem realizar pessoal-
pelo Congresso Nacional, que continha um artigo
mente, como o de expressar sua opinião, seus
pensamentos e crenças, por exemplo.
tamente, prisões e rupturas de vínculos? difícil, que coloca, de uma maneira geral, o pro-
blema do uso de um critério tão vago quanto o
Tais questões se elevam diante dos aler-
“interesse da criança” (THÉRY, 2007, p. 147).
tas de Théry (2007), pesquisadora francesa da
Sociologia do Direito, em artigo com contunden- Considerações finais
tes críticas a propostas dos que ela chama de
“ideólogos dos novos direitos” no contexto de Arantes (2016) retoma o trabalho de Théry
ratificação, pela França, da Convenção Inter- (2007), situando a dualidade proteção/autonomia
nacional sobre os Direitos da Criança. A autora em discussões importantes, como o do chamado
38
“O superior interesse da criança “Se crianças e adolescentes não
decai de princípio para mito num têm plenas condições de defender
conflito de interpretação do ECA, autonomamente seus interesses,
de seus dispositivos protetivos e da isso não se deve a um estado de
própria lógica garantista?” incompletude desenvolvimental, mas
meramente pela condição dada por
“Depoimento Especial” de crianças e adolescentes sua existência, e que é, talvez, o seu
e os danos decorrentes da colocação prematura
direito mais básico, que é o de ser
dos mesmos em situações de responsabilidade.
Ela adverte que, diferentemente do contexto fran-
propriamente criança/adolescente”
cês, a história de violação de direitos da infância
no Brasil foi realmente marcada por escândalos forma alheia ao interesse de seus pais, como se a
jurídicos de longeva inferiorização de crianças e precedência do interesse da criança fosse limitada
adolescentes, de forma que o tensionamento en- por sua incapacidade jurídica e sua dependência da
tre proteção e autonomia ganha contornos espe- proteção dos adultos. Trata-se, ao fim e ao cabo,
cíficos em nossa realidade. não mais de uma interpretação da norma, mas da
visão que se tem do sujeito humano criança/ado-
lescente. Se crianças e adolescentes não têm ple-
“Constata-se ainda o desafio de nas condições de defender autonomamente seus
interesses, isso não se deve a um estado de incom-
se efetivamente cumprir com os
pletude desenvolvimental, mas meramente pela
fundamentos da Proteção Integral, condição dada por sua existência, e que é, talvez, o
não só como doutrina mas também seu direito mais básico, que é o de ser propriamente
numa dimensão cultural e social, criança/adolescente. Sujeitar a criança e o adoles-
posto que há práticas e ações sob a cente aos interesses dos adultos é carregar para
lógica do menorismo ainda em voga” dentro da lógica protetiva a incorreta concepção de
que são seres incompletos, limitados em seu par-
cial desenvolvimento. Crianças e adolescentes são
Esse tensionamento permite retornar ao seres plenos, com suas singularidades e em cada
início do presente artigo, fazendo-nos repisar o etapa do ciclo vital, e a Psicologia detém vasto refe-
terreno de dúvidas e interrogações que lhe deu rencial para sustentar essa afirmação.
origem: o superior interesse da criança decai de
princípio para mito num conflito de interpretação
do ECA, de seus dispositivos protetivos e da pró- “Crianças e adolescentes são seres
pria lógica garantista? plenos, com suas singularidades e
Prestes ao atingimento do trigésimo ano em cada etapa do ciclo vital, e a
de vigência do ECA, constata-se ainda o desafio Psicologia detém vasto referencial
de se efetivamente cumprir com os fundamentos para sustentar essa afirmação”
da Proteção Integral, não só como doutrina mas
também numa dimensão cultural e social, posto
que há práticas e ações sob a lógica do menoris- Promover a efetivação do ECA exige a plena
mo ainda em voga. Enquanto o interesse superior materialização e incorporação de seus princípios
for tratado como artificialidade, mera roupagem em práticas e ações. A menorização cristaliza o
de consideração à palavra da criança, e subliminar superior interesse como mito, ou seja, como uma
mecanismo justificador dos processos de afirma- alegoria sem compromisso com a realidade. Não
ção de interesses de adultos (e de checagem de pode o Estatuto ser tratado como mera carta de
suas verdades), a vigência dos direitos da criança intenções, mas sim como um conjunto de compro-
e do adolescente continuará parcial. missos. Intenções são transitórias, já os princípios
Discordamos da relativização do princípio do têm qualidade de permanência e orientam etica-
superior interesse da criança pela argumentação mente os compromissos que uma sociedade firma
de que esses interesses não se sustentariam de perante seus cidadãos e com seu futuro.
Referências CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA/CENTRO
39
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Lei da mordaça? Da “alienação 41
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
expressão de violência de gênero
Anna Carolina Lanas Soares Cabral
Psicóloga, Agente de Defensoria do Centro de Atendimento Multidisciplinar (CAM)
do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM).
Introdução
CADERNOS TEMÁTICOS CRP SP
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
atos da vida civil, precisando de assistência ou entre os gêneros pode ser verificada, por exemplo,
ratificação de seus atos por genitores ou, quando pela desvalorização do trabalho reprodutivo e das
casadas, pelos maridos. O artigo 233 da referida funções de cuidado, pela divisão sexual do traba-
normativa, nesse sentido, determinava que o ma- lho e pela inexistência de divisão equânime no que
rido era o chefe da família, cabendo a ele todas as se refere ao exercício de responsabilidade paren-
decisões. A tradição jurídica patriarcal no Brasil foi tal, bem como pela normalização de relações fa-
responsável, ainda, pela solidificação de preceitos miliares violentas (que se manifestam de diversas
como: trabalho “honesto”, “pátrio” poder, o para- formas, vide a Lei Maria da Penha5). Nas relações
digma da culpa pela separação, o questionamento públicas o padrão das desigualdades de gênero
à mulher que “abandona o lar sem justo motivo e também se mantém ao analisarmos, por exemplo,
se recusa a retornar”, bem como a naturalização as relações de trabalho tendo em vista que mulhe-
da primazia da mulher pelo cuidado de filhas/os, res recebem menor remuneração que homens que
e a impunidade de homens que violentaram suas ocupam o mesmo cargo ou função6.
companheiras (LAGE; NADER; 2012), condiciona-
dos à adequação ou não das mulheres à moral re-
pressora. Somente com a Constituição federal de “No entanto, não se pode perder de
1988 o Brasil reconhece a igualdade jurídica entre vista que ainda é possível verificar
homens e mulheres. Assim, no seu art. 226 temos uma assimetria de poder entre
que: “§ 5º Os direitos e deveres referentes à so-
ciedade conjugal são exercidos igualmente pelo
homens e mulheres”
homem e pela mulher”.
“Assim, após um longo percurso com reforço ao estereótipo ideal de mulher como sen-
histórico de desigualdades jurídicas
entre homens e mulheres nas 5 “São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher,
conforme a Lei Maria da Penha, as violências: física, psicológica,
relações familiares, há não muito sexual, patrimonial e moral” (Lei n.° 11.340/06, art.7º).
tempo e após muito empenho, as 6 Segundo dados do Fórum Econômico Mundial (2019), entre
mulheres conquistaram igualdade 153 países analisados, o Brasil ocupa apenas a posição de
número 130º lugar no item sobre a igualdade salarial entre
formal em relação aos homens” homens e mulheres.
do a “boa” mãe, dona de casa, recatada e respeitosa xo da citada tradição jurídica patriarcal brasileira, o
44
ao marido. Presenciamos atualmente maior estímulo que tem contribuído para estigmatização de mulhe-
a esse modelo de família, bem como a atuação de res e revitimização de crianças e adolescentes.
parte das/os profissionais pautada em pressupostos
da união conjugal legitimada pelo casamento, coabi-
tação, filiação legítima, homem como chefe da socie- “O que se busca demonstrar a seguir
dade conjugal e super-responsabilização das mulhe- é que a Lei de Alienação Parental
res pelos cuidados dos/as filhos/as e pelo trabalho (LAP) incide de forma desproporcional
doméstico (SANTOS; LIMA; SOUZA, 2017).
sobre homens e mulheres”
Sendo assim, a desigualdade de gênero en-
contra raízes profundas nas estruturas e institui-
ções assim como no Poder Público, que refletem Expressões de gênero na genealogia
de alguma forma, ora mais avançada, ora mais
retrógrada, a perversa desigualdade de gênero
da Lei de Alienação Parental brasileira
do Brasil, que atinge, de modo ainda mais cruel, as Na base do conceito da Lei brasileira encon-
mulheres negras e as mulheres periféricas. tra-se a “Síndrome de Alienação Parental” (SAP),
constantemente citada no projeto de lei que a ori-
ginou. De acordo com diversas/os autoras/es7, em
“Não raras vezes encontramos especial Sousa (2010), a SAP foi postulada na déca-
nesse sistema, dito de Justiça, da de 80 pelo psiquiatra Richard Gardner, também
conhecido pelo envolvimento em diversas polêmi-
julgamentos moralizantes e
cas, a partir de atuações na defesa de acusados de
estigmatizantes, o que impede que abuso sexual infantil, como perito forense em casos
homens e mulheres tenham acesso de divórcio e disputa de guarda. Uma das principais
a ele em igualdade de condições” críticas à teoria é a de que teria sido criada espe-
cialmente para ser usada como estratégia de defe-
sa contra tais acusações nesse contexto.
Nesse sentido, faz-se necessário - desvelan-
do sua aparente “neutralidade” - perceber o espaço Tal “síndrome”, de acordo com a citada auto-
jurídico como “um campo discursivo no qual atores ra, foi definida por Gardner como uma enfermidade
e papéis estão em disputa” (SEGATO, 2011; COR- mental da criança, desenvolvida, preponderantemen-
RÊA, 1983 apud GOMES, 2018) alternando, contra- te, durante o processo de litígio conjugal e caracte-
ditoriamente, o discurso de promoção e garantias rizada pela rejeição injustificada a um dos genitores,
de direitos com a prática de violência institucional como consequência de uma campanha de difama-
(MONTEZUMA; PEREIRA; MELO, 2017). Não raras ção exercida pela outra parte, a “alienadora”. Gardner
vezes encontramos nesse sistema, dito de Justiça, acreditava que esta, motivada por um suposto de-
julgamentos moralizantes e estigmatizantes, o que sejo de vingança, rancor e mágoa ou em decorrên-
impede que homens e mulheres tenham acesso a cia de características psicológicas individuais, des-
ele em igualdade de condições. Não por outro moti- qualificaria o/a outro/a genitor/a e o/a restringiria ou
vo a Recomendação Geral nº 33 CEDAW, que trata impediria seu contato com a criança ou adolescente.
sobre o acesso das mulheres à Justiça, reconhece Ainda que somada à colaboração da própria criança,
que “os estereótipos distorcem percepções e re- o/a genitor/a alienador/a agiria como se tivesse o
sultam em decisões baseadas em crenças e mitos poder de “programar” sua mente, fazendo uma “la-
preconcebidos em vez de fatos relevantes” (Con- vagem cerebral” com intuito de modificar seus senti-
venção sobre a Eliminação de Todas as Formas de mentos, para que passasse a desprezar ou odiar o/a
Discriminação contra as Mulheres, 2015, p. 14-27). outro/a genitor/a. O diagnóstico da SAP seria feito,
Com frequência, juízas/es adotam rígidos estânda- portanto, a partir dos sintomas exibidos pela criança
res sobre comportamentos que consideram apro- (SOUSA, 2019a). Assim, criança e genitor/a suposta-
priados para as mulheres, penalizando aquelas que mente alienados/as seriam vítimas da conduta de
não agem conforme tais estereótipos. um/a familiar alienador/a, sem qualquer justificativa
no comportamento do/a “alienado/a”.
O que se busca demonstrar a seguir é que a
Lei de Alienação Parental (LAP) incide de forma des-
proporcional sobre homens e mulheres, como refle- 7 Mendes (2019); Montezuma, Pereira, Melo (2017); entre ou-
tras/os.
Como tratamento para a SAP, o citado psi- com os serviços de saúde, assim como problemas
45
quiatra propôs medidas denominadas de “terapia associados à água potável, nutrição, contato com
da ameaça” (ESCUDERO; AGUILAR; CRUZ, 2008 o sistema de justiça ou separação brusca de figu-
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
apud SOUSA, 2019a). Nesse esteio, as práticas a ras de afeto, entre outros. Realizando tal pesquisa,
seguir citadas - aplicadas por meio de medidas constata-se que o termo “alienação parental” não
judiciais - fazem parte do processo “terapêutico” foi reconhecido como um transtorno pela CID-11.
proposto: imposição à realização de tratamentos
No entanto, a possibilidade de sua inclusão
psicoterápicos, suspensão do sigilo entre paciente
na classificação internacional de doenças, ainda
e psicóloga/o, livre acesso da/o juíza/juiz aos da-
que apenas enquanto palavras passíveis de serem
dos do tratamento; além da imposição de multas,
pesquisadas, tem gerado preocupações e reações
uso de tornozeleira eletrônica, inversão de guar-
em diversas/os profissionais, tanto pelos riscos
da, privação total de contato com o/a genitor/a
que a disseminação desse termo acarretará, quan-
“alienador/a”, e até encarceramento; inclusive,
to pela validade da produção de dados de pesquisa
adolescentes que seguissem se opondo ao con-
e estatísticas na área de saúde, além do fomen-
vívio com o pai, deveriam ser internados/as em
to à patologização e medicalização. Notificações
hospitais psiquiátricos ou centros de detenção
técnicas vêm sendo encaminhadas à Organização
juvenis; e em alegações de abuso sexual, crian-
Mundial da Saúde, como a de Mendes (2019)8, infor-
ças deveriam ser colocadas em acareação com os
mando riscos de qualquer referência à “alienação
pais/mães em audiência (MONTEZUMA; PEREIRA;
parental” na CID-11. A Western Centre for Resear-
MELO, 2017). Deve-se observar que tais propostas
ch, Education on Violence Against Woman and Chil-
também não derivam de qualquer evidência cientí-
dren9, em um memorando coletivo de setembro de
fica que justifique seu uso e/ou eficácia. De acordo
2019, endossado por 352 especialistas - em Direito
com Mendes (2019), há inclusive relatos de crian-
de família, violência intrafamiliar, desenvolvimen-
ças e adolescentes que tentaram ou cometeram
to e abuso infantil, entre outros - e organizações
suicídio após terem sido obrigados/as a se sub-
profissionais de 36 países, reforça que o termo não
meter a tais “tratamentos”.
deve constar da CID-11 devido à falta de credibi-
Nesse sentido, apesar de definida por Gard- lidade, além de ser “frequentemente empregado
ner e seguidores como “síndrome”, o fato é, como para desviar a atenção da violência e do abuso do-
destaca Sousa (2010), que as conclusões apre- méstico”. A partir do final de fevereiro deste ano, ao
sentadas pelo psiquiatra nunca alcançaram ne- acessar a Plataforma de Manutenção da CID-1110,
nhuma verificação científica entre seus pares, verifica-se que tais palavras não mais se encon-
sobretudo em razão da ausência de pesquisas e tram no buscador, gerando exceptivas em relação
periódicos científicos sobre o tema. Não por outro à manifestação oficial da OMS sobre tal alteração.
motivo, a SAP também nunca foi catalogada em
Ainda sobre a genealogia da lei, interes-
nenhuma versão do Manual de Diagnóstico e Es-
sante destacar que, de acordo com a completa e
tatística de Transtornos Mentais (DSM), da Asso-
aprofundada pesquisa de Mendes (2019), outros
ciação Americana de Psiquiatria, em que pesem os
psiquiatras, entre as décadas de 50 e 80, também
esforços de Gardner e seguidores/as para alcan-
formularam teorias explicativas com pressupostos
çar tal reconhecimento. No mesmo sentido, atual-
semelhantes aos de Gardner, sobre a existência de
mente existe uma força tarefa internacional, “Task
“síndromes” de “falsas alegações sexuais” feitas
Force PASG” (IBDFAM, 2018), com vistas à inclusão
por mães no contexto do divórcio. O autor resgata
do termo “alienação parental” na 11ª revisão da
Classificação Internacional de Doenças (CID-11),
da Organização Mundial de Saúde, que entrará
8 No mesmo texto, o autor cita ainda Carrey (2011), Escudero,
em vigor em 2022. O que se verifica até o momen- Aguilar, De La Cruz (2008), Meier (2009a), Willis e O’Donohue
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to, ao consultar o site da CID-11, é a inclusão das (2018), que criticam a possibilidade de reconhecimento da SAP
como um transtorno classificável em manuais diagnósticos.
palavras “alienação parental”, quando digitadas
9 Centro de Pesquisa, Educação sobre Violência contra Mulher
em campo de busca, que remetem a “Problemas
e Criança (em tradução livre). Disponível em: http://www.le-
relacionais cuidador-criança” (QE52.0), de forma arningtoendabuse.ca/collective-memo-of-concern-to-WHO-
genérica, como subcategoria de “Problemas as- -about-parental-alienation.html Acesso em: 10 mar. 2020.
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
que incluiu o termo “alienação parental” em seu ta que seus estudos objetivavam atuação em
ordenamento jurídico em 2014. Não obstante, causa própria. Ele explica ainda que o fenômeno
em curto espaço de tempo analisou suas gra- teria se tornado frequente após a Constituição
ves consequências e o suprimiu em 2017. de 1988, quando as mulheres teriam conquista-
do uma situação de igualdade: “agora, pra sair
Em documento aprovado por unanimida-
da igualdade de relacionamento para esse, di-
de, a Federação de Psicólogas/os da Argentina
gamos, coronelismo das mulheres, foi um pulo,
(FePRA), em dezembro de 2019, também se pro-
né?” Para exemplificar o que chama de “domina-
nunciou contra o uso da “falsa síndrome” pela
ção feminina”, ele cita a Lei n.º 11.340/2006, a
ausência de cientificidade e por sua instrumen-
Lei Maria da Penha, promulgada com o objetivo
talização como “ferramenta jurídica a serviço
de coibir a violência doméstica no Brasil.
da impunidade do abusador” nos casos que
envolvem violência e abuso sexual infantil, ao O ano de 2006, quando, de acordo com
buscar desarticular sua denúncia. Informam ain- Sousa (2019a), teve início uma intensa divulga-
da que profissionais também vêm sendo ame- ção da SAP no país por associações compostas,
açadas/os, perseguidas/os e até acusadas/os majoritariamente, por homens-pais não guardi-
de “programar” os relatos junto às mães e às/ ões, foi também o ano da promulgação da Lei
aos pacientes. A norma citada estabelece que Maria da Penha, após condenação do Brasil pela
psicólogas/os “não aplicarão ou indicarão téc- Comissão Interamericana de Direitos Humanos
nicas nem teorias psicológicas que não sejam (CIDH), que recomenda a adoção de medidas
endossadas em âmbitos científicos, acadêmi- para coibir “a tolerância estatal e o tratamento
cos ou profissionais reconhecidos” 12 (FePRA, discriminatório com respeito à violência domés-
2019). Na Espanha, segundo Oliveira (2019), o tica contra mulheres no Brasil” (CIDH, 2001 apud
Poder Judicial “é categórico na explicitação de OLIVEIRA, 2011). Considerada pela Organização
que não se deve utilizar a SAP para deslegiti- das Nações Unidas (2012) como a 3ª lei mais
mar denúncias ou violência sexual ou violên- eficiente no combate à violência doméstica no
cia de gênero (ESPANHA, 2013)”. Entidades da mundo (MARTINELLY, 2019), a Lei Maria da Penha
Nova Zelândia, Austrália, EUA rechaçam a exis- é outro marco histórico importantíssimo pela
tência da SAP para fins legais, bem como sua busca de igualdade de gênero no país. Portanto,
utilização em casos de disputa de guarda pós- vimos que as questões de gênero estão postas
-divórcio, como apurou Mendes (2019), porém, desde a origem da lei brasileira, o que nos reme-
complementa que pressupostos de “alienação te novamente ao conceito de violência de gêne-
parental” seguem sendo utilizados no contexto ro, como tendo um padrão específico que:
jurídico estadunidense com certa frequência.
1) visa à preservação da organização social
Sobre a origem da Lei no Brasil, a imprensa de gênero, fundada na hierarquia e desigual-
entrevistou alguns dos principais responsáveis dade de lugares sociais sexuados, que subal-
pela elaboração do citado projeto de lei (CHIA- ternizam o gênero feminino, 2) amplia-se e
atualiza-se na proporção direta que o poder
masculino é ameaçado (SAFFIOTI, ALMEIDA,
12 Vale recordar que, também de acordo com o Código de Ética
das/os Psicólogas/os brasileiro em seu Princípio Fundamen- 1995, p. 159 - grifo nosso).
tal IV, afirma que a/o psicóloga/o “(...) atuará com responsa-
bilidade, por meio do contínuo aprimoramento profissional, Em 2008, também como reivindicação de
contribuindo para o desenvolvimento da Psicologia como
pais e mães que haviam se separado, foi sanciona-
campo científico de conhecimento e de prática”. Ademais, a/o
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psicóloga/o trabalhará “visando promover a saúde e a quali- da no Brasil a primeira lei sobre guarda comparti-
dade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá lhada13. Decorridos somente dois anos, sem tempo
para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discri-
minação, exploração, violência, crueldade e opressão” (Prin- para debates e mudanças culturais necessárias,
cípio Fundamental II); “atuando ainda com responsabilidade foi promulgada a LAP, cujo texto original previa,
social, analisando crítica e historicamente a realidade política,
econômica, social e cultural” (Princípio Fundamental III). Ainda,
a/o psicóloga/o “considerará as relações de poder nos con-
textos em que atua e os impactos dessas relações sobre as 13 Lei nº 11.698/2008, que estabelece a Guarda compartilhada,
suas atividades profissionais, posicionando-se de forma críti- se possível, em casos de separação. Em 2014, a Lei nº. 13.058
ca e em consonância com os demais princípios deste Código” determinou a guarda compartilhada como regra geral, após a
(Princípio Fundamental VII). (CFP, 2005) separação conjugal.
48 inclusive, a criminalização14 de quem cometesse Expressões da violência de gênero
atos entendidos como sendo “alienadores”. (doméstica e institucional)
Observa-se também a criação de um vul-
tuoso “mercado em expansão”, como costumam
exaltar propagandas sobre cursos de “especializa- “O que se verifica é um incremento
ção” para aprender como “diagnosticar” compor- do litígio intrafamiliar, envolvendo
tamentos ditos alienadores e atender à demanda e penalizando todas as pessoas
por laudos, pareceres e defesas “especializadas”. envolvidas, com vivências de
Verifica-se, assim, a disseminação de eventos, se-
minários, publicação de livros, além de propostas
grande sofrimento psíquico”
de ampliação de tal mercado. A própria lei estimu-
la diretamente o estabelecimento de tal nicho de Ao analisar questões de gênero relaciona-
mercado, ao pontuar que profissionais precisam das à LAP, percebe-se que não se trata de afirmar
ter formação específica para poder atuar15. a existência de uma nova “guerra entre os sexos”,
pois o que se verifica é um incremento do litígio in-
trafamiliar, envolvendo e penalizando todas as pes-
soas envolvidas, com vivências de grande sofrimen-
“Passados mais de dez anos to psíquico. No entanto, como vimos, não há como
da vigência da LAP, não se tem desconsiderar a desigualdade de gênero estrutu-
nenhum estudo científico sobre o ral da nossa sociedade, que, como afirma Brandão
impacto da mencionada legislação (2019), está na base dos julgamentos nas matérias
e sua efetividade na proteção de de família, incluindo conflitos ligados à “alienação
parental” e guarda compartilhada: “A política desi-
crianças e adolescentes”
gual de gênero deve ser um componente inescapá-
vel das avaliações e intervenções da(o) psicóloga(o)
Interessante notar ainda que, passados em todo e qualquer caso que envolve a disputa fa-
mais de dez anos da vigência da LAP, não se miliar dos filhos” (Brandão, 2019, p. 179).
tem nenhum estudo científico sobre o impacto
da mencionada legislação e sua efetividade na
proteção de crianças e adolescentes, revelando, “Não há como desconsiderar a
por exemplo, quantos/as foram consideradas/os desigualdade de gênero estrutural
“vítimas de alienação parental” e quantos/as dei- da nossa sociedade”
xaram de ser após a lei.
14 O art. 10 do texto original da LAP, que foi vetado, previa mo- Tais desigualdades são vivenciadas cotidia-
dificações no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
para que práticas ditas de “alienação parental” fossem
namente em nosso país e, por serem tão natura-
consideradas crime, a ser punido com pena de detenção. lizadas, precisam ser discutidas e visibilizadas.
No entanto, nova tentativa de criminalização de tais “ações Nos estudos, pesquisas e em nossas atuações
ou omissões” foi proposta pelo Projeto de Lei nº 4488/16
que sugere acréscimos à LAP, como: punição da pessoa dita percebemos diferentes expressões de violência
“alienadora” com pena de detenção (prisão) de 3 meses a 3 de gênero, que se apresentam como continuidade
anos, agravada caso haja, por exemplo, “manejo falso” da
Lei Maria da Penha (o que torna evidente o viés de gênero, de dinâmicas da violência já anteriormente insta-
pela tentativa de criminalizar especificamente as mulheres). ladas, incluindo a violência institucional. O que não
Disciplina ainda que “(...) incorre nas mesmas penas quem de
qualquer modo participe direta ou indiretamente dos atos
significa, de forma alguma, que mulheres nunca in-
praticados pelo infrator”; e ainda: “§ 5.º O juiz, o membro correm em atos ilícitos e que todos os homens são
do Ministério Público e qualquer outro servidor público, ou, sempre violentos, mas que existe uma estrutura
a que esse se equipare a época dos fatos por conta de seu
ofício, tome ciência das condutas descritas no §1.º, deverá social histórica a ser considerada, determinando
adotar em regime de urgência, as providências necessárias ações e reações distintas, tanto pela forma quan-
para apuração da infração sob pena de responsabilidade
nos termos dessa lei”. Tal projeto foi retirado do trâmite le- to pela intensidade e rigor, a depender do gênero.
gislativo pelo autor no momento.
D’Almeida (2018), citando estudo realizado
15 LAP, art. 5º § 2o - “A perícia será realizada por profissional ou
equipe multidisciplinar habilitados, exigido, em qualquer caso,
por grupo de advogadas espanholas em 2010,
aptidão comprovada por histórico profissional ou acadêmico também aponta a discriminação em relação às
para diagnosticar atos de alienação parental”. Ato falho da lei, mulheres ao analisar as sentenças dos Tribunais
que suprimiu a palavra “síndrome”, mas deixou “diagnóstico”?
Asturianos, concluindo que tanto as decisões ju- rídico, a aplicação de multas na esfera dos direitos
49
diciais, quanto as medidas adotadas para resolver da família também é bastante problemática, na me-
a questão, foram diferentes em função do gênero. dida em que pode gerar empobrecimento da família.
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
Ainda que algumas dessas mulheres estejam
no critério de renda exigido pela Defensoria Pública17,
“Considerando que o incremento
algumas podem encontrar dificuldades de acesso à
das vulnerabilidades ocorre quando assistência jurídica gratuita e/ou preferir, pelo medo
há maior exposição às situações de (real) de afastamento de suas filhas e filhos, decidir
violência, as mulheres periféricas por contratar o serviço de um/a advogada/o parti-
e as mulheres negras sofrem um cular, por vezes chegando a vender tudo o que pos-
impacto ainda maior” suem, ou solicitando ainda empréstimos financeiros
para arcar com custos advocatícios, honorários de
sucumbência, contratação de assistentes técnicos/
Outro exemplo das expressões da violência as, somados ainda a outros gastos.
de gênero pode ser percebido nos impactos finan-
Neste ponto, ainda é importante destacar
ceiros que a judicialização das relações causa na
que o art. 6º, IV da LAP estabelece como puni-
vida das mulheres, em especial das mulheres vul-
ções para prática de supostos atos de “alienação
nerabilizadas. Considerando que o incremento das
parental”, a possibilidade de a autoridade judicial
vulnerabilidades ocorre quando há maior exposição
determinar “acompanhamento psicológico e/ou
às situações de violência, as mulheres periféricas e
biopsicossocial”18 após o “diagnóstico”. No que
as mulheres negras sofrem um impacto ainda maior
concerne às mulheres atendidas pela Defensoria
pela intersecção entre raça/etnia, classe e gênero, o
Pública, sabe-se da extrema dificuldade em se
que promove e potencializa tais vulnerabilidades.
conseguir acesso a atendimento psicoterápico in-
Entre o rendimento médio das pessoas ocu- dividual na rede pública de saúde, com filas de es-
padas, as mulheres recebem, em média, 29,7% a pera que podem chegar a mais de um ano, quando
menos que os homens. Via de regra, portanto, ho- esse serviço existe no território. Muitas precisam
mens-pais costumam ter maior poder econômico arcar, portanto, com tal tratamento não escolhido
para arcar com custas de processos judiciais, de (podemos nos indagar, então, quais seriam os be-
acordo com Cruz (2017): “ao mesmo tempo que, nefícios de um tratamento imposto e não deseja-
paradoxalmente muitas vezes alegam não possuir do pela pessoa?). Há que se refletir também acerca
condições de pagar pensão alimentícia adequada da complexidade e das questões éticas relaciona-
a filhas/os” (p. 01). E ainda são socializados para se das à imposição de tratamentos compulsórios às
sentirem confortáveis em situações de confronto, partes de processos judiciais.
litígio, o que também lhes adiciona vantagens. Ao
Sob atendimentos à saúde, alerta Sottomayor
passo que não é raro, em situações de violência
(2011) que é fundamental contar com profissionais
doméstica, algumas mulheres terem seus empre-
especializadas/os em abuso sexual e violência do-
gos constantemente ameaçados, ou até mesmo
méstica, pois as sequelas de uma mulher vítima de
chegam a perdê-los, por importunações causadas
violência, ou que está desesperadamente tentando
por autores de violência (envio de intimações e
proteger filhas/os contra abuso sexual, podem ser
advogados/as ao local de trabalho, telefonemas,
idas ao local, etc.), constrangendo-as e dificultan-
do a manutenção do vínculo empregatício e a tão 17 Na Defensoria Pública do Estado de São Paulo pessoas
necessária independência financeira 16. que não possuem condições financeiras para pagar um/a
advogado/a têm direito de serem atendidas a partir de ava-
Ainda em relação a questões financeiras, há liação socioeconômica (recorte de renda familiar de até 03
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Há que se considerar, ainda, que situações de São extremamente graves, ainda, os relatos
violência doméstica muitas vezes se perpetuam, e sobre crianças que recusam, em razão da impo-
até se potencializam, após a separação. Muitas mu- sição em tela, alimentos, tornam-se apáticas e
lheres permanecem por anos presas ao Ciclo da Vio- adoecem; ou até que passam a se automutilar e/
19 Ver Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais 21 Indicamos a leitura, na íntegra, da Nota Pública do Conselho
(2009) em: “Serviço de Acolhimento Institucional para Mulhe- Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - CONAN-
res em Situação de Violência”. DA (2018) sobre a LAP, a qual conclui: “(...) as previsões dos
incisos V, VI e VII revelam uma intervenção desproporcional
20 Acompanhamos a situação trágica de uma mulher, trabalhadora nas famílias e podem, inclusive, gerar distorções e agravar
da área de saúde, que foi assassinada pelo pai de sua filha em violações, à medida em que a mudança de guarda, a fixação
frente ao seu local de trabalho, uma Unidade Básica de Saúde de domicílio e a suspensão da autoridade parental podem re-
que hoje leva seu nome. A Medida Protetiva por ela solicitada foi sultar na convivência da criança ou adolescente com seu abu-
indeferida, pois houve a compreensão de que se tratava, segun- sador, em detrimento do convívio com o suposto ‘alienador’”,
do decisão judicial, de: “(...) violência que se vislumbra na intensa e ainda “(...) visando à efetivação das normas que asseguram
disputa pela filha, desde a separação, a qual não se confunde proteção integral, melhor interesse e absoluta prioridade de
com violência baseada no gênero”. Para contribuir também com crianças e adolescentes, bem como seus direitos à convivên-
esta reflexão, recomendamos o filme “Custódia” (Jusqu’à la Gar- cia familiar e comunitária, a revogação do inciso VI do art 2º e
de), 2018, filme francês sob direção de Xavier Legrand. dos incisos V, VI e VII do art. 6° da Lei n° 12.318 de 2010.
trole, “tecnologias de gênero” e pedagogias privi-
51
“Sua fala foi ignorada e assim legiadas por nossa sociedade, como o “dispositivo
protestava, materializando o amoroso e materno”, indentitários para as mulhe-
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
res em nossa cultura (ZANELLO, 2018).
silenciamento que sofreu”
ou a manifestar ideação suicida persistente, como “São histórias e relatos que podem
a criança que, após seus relatos de abusos e tor-
turas terem sido seguidamente desqualificados,
ser relacionados aos mecanismos
perguntava com muita desconfiança: “Você vai me de controle”
ouvir de verdade? (...) De que adianta eu tá vivo,
se tudo que eu falo ninguém ouve” (sic)22. Essa
criança sentia-se totalmente silenciada e, assim, Ainda refletindo sobre as formas de silencia-
novamente violentada após o contato com profis- mento, também no Brasil já existem relatos de situa-
sionais que, baseadas/os no conceito pseudocien- ções envolvendo acusações de “alienação parental”
tífico de “alienação parental”, chegaram a lhe dizer: que culminaram em suicídios. Houve também o trá-
“O que você pensa não é o que você pensa, o que gico falecimento da menininha Joanna, que morreu
você sente não é o que você sente. Você é como aos cinco anos no Rio de Janeiro, em 2010, após ser
um fantoche da sua mãe”. abruptamente afastada de sua mãe, sua referência
de afeto e proteção, proibida de ter qualquer contato
com ela durante três meses, por ordem judicial, sob
“Essa criança sentia-se totalmente a alegação de a mãe ser “alienadora”23. Situações
silenciada e, assim, novamente como essas trazem à reflexão o desamparo e o so-
frimento que podem ser vivenciados pelas pessoas
violentada”
envolvidas, somadas ao desconcertante espanto,
com possibilidade de graves consequências psíqui-
cas, por sofrerem punições do sistema de Justiça, ao
Em um dos debates intersetoriais e interdis-
qual solicitaram ajuda, com a expectativa de garantir
ciplinares de 2019 sobre a LAP e os questionamen-
segurança e proteção. Recentemente, chegamos ao
tos que vem suscitando, uma profissional defendeu
extremo de uma acusação de “alienação parental”
a lei, afirmando que mesmo sem base científica ela
contra uma mulher vítima de feminicídio, silenciada
protegeria as crianças de “mães, assassinas men-
há dez anos por seu ex-companheiro, que agora a
tais” (sic), que deveriam ser punidas para servir de
acusa de ter sido “alienadora”, como tese de recurso
exemplo a outras mulheres. Tal colocação remeteu
em sua tentativa de absolvição criminal (em um jul-
a discussão ao caráter punitivista da legislação,
gamento ocorrido em Manaus em 2020).
com intenção “pedagógica”, ou de controle, divi-
dindo opiniões, entre as quais a de que seria uma Talvez não à toa que a lei que versa sobre
metáfora atualizada das “bruxas” queimando em “alienação parental” vem sendo nomeada como
fogueiras, em praças públicas, tão comum na Idade “Lei da Mordaça”, ao impor o silêncio, especial-
Média, com o objetivo, justamente, de servirem de mente às mulheres, adolescentes e crianças, na
exemplos a outras mulheres sobre comportamen- dinâmica das relações familiares judicializadas.
tos que deveriam ser socialmente inibidos. Exis- Por vezes, os indícios de tal abuso são identificados
tem ainda relatos de mulheres classificadas em por outras/os profissionais – como pediatras, pro-
audiência diretamente pela/o magistrada/o como fessoras/es -, no entanto, ainda que a proteção seja
sendo “alienadoras severas”, tendo um dos casos dever de todas/os, segundo o Estatuto da Criança
culminado em internação “voluntária” em clínica e do Adolescente (ECA)24, as mães são as que cos-
psiquiátrica, como condição para o retorno à con-
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Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
CFP, mais especificamente, o art. 10 da Resolução e poderiam ser aplicadas no bojo de procedimen-
Nº 008/2010, que dispõe sobre a atuação do/a tos de regulamentação de guarda e de visitas, por
psicólogo/a como perito e assistente técnico no exemplo. Perceba-se, que nestes casos, medidas
Poder Judiciário. Com o intuito de preservar o direi- como ampliação do regime de convivência, deter-
to à intimidade e equidade, veda à/ao psicóloga/o minação de alteração de guarda ou sua inversão e
que esteja atuando como psicoterapeuta das par- declaração de suspensão da autoridade parental
tes envolvidas em litígio, produzir documentos ad- sempre estiveram disponíveis no ordenamento jurí-
vindos do processo psicoterápico com a finalidade dico e eram aplicadas levando-se em consideração
de fornecer informações à instância judicial acerca o melhor interesse da criança. Ocorre que, após o
das pessoas atendidas sem sua autorização. advento da LAP tais medidas judiciais passaram a
ser aplicadas como formas de punição, deixando
em segundo plano o princípio do melhor interesse
“E como ficam as crianças e da criança/adolescente, privilegiando a sanção das/
adolescentes após relatarem os pretensas/os genitoras/es alienadoras/es.
abusos e violências?”
“Tais medidas judiciais passaram
E como ficam as crianças e adolescentes a ser aplicadas como formas de
após relatarem abusos e violências? Será que se punição, deixando em segundo
sentem enganadas, ou até punidas, após revela- plano o princípio do melhor
rem segredo familiar tão difícil de ser quebrado? interesse da criança/adolescente”
Ademais, é a própria “Justiça” a quem pediram
ajuda que as obriga a voltar a ficar com quem
elas mais temem, e as afasta de quem é, para
elas, sinônimo de proteção, carinho e cuidado.
Considerações finais
Há relatos e até filmagens de cumprimento de Entre as análises estudadas sobre o con-
mandado de busca e apreensão com uso de força ceito jurídico de “alienação parental”, destacam-
policial, tudo em nome do seu “melhor interesse”. -se, além da ausência de base científica, também
Sem dúvida alguma, o sofrimento de todas as pes- o reducionismo de uma adaptação informal de um
soas envolvidas em situações como as relatadas constructo teórico estrangeiro da década de 80, e
é altíssimo; no entanto, pessoas adultas têm mais sua transformação em lei sem amplo estudo téc-
recursos internos, e externos, para enfrentar situ- nico e científico com base na realidade brasileira e
ações extremamente difíceis. na produção cientifica já existente sobre, furtan-
do-se ainda ao debate público amplo e qualificado.
Assim, ao estabelecer uma relação direta
entre a não comprovação de abuso sexual como Vimos que muitos estudos consideram que
uma das hipóteses de “alienação parental”, a lei tal conceito fomenta a patologização, a judiciali-
deixa de proteger crianças/adolescentes como zação e a criminalização das relações familiares
sujeitos de direitos, contrariando a proposta de au- e da vida cotidiana, demandando diagnósticos e
tonomia progressiva e fomentando a desconfiança tipificações de condutas, através de uma lógica
no recebimento das denúncias realizadas. A partir adversarial e punitivista, própria do campo jurídico
do engodo criado no Brasil, de que haveria serieda- penal, com uma desproporcional intervenção nas
de e base científica em tal conceito, criou-se uma relações, produzindo assim sofrimentos, estigmas
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nova forma de avaliar os seus relatos com maior e violências, potencializando o acirramento dos
suspeição pela hipótese, tida como verdade incon- conflitos familiares comuns ao pós-divórcio, que
teste, de que suas falas podem ser mera repetição mereceriam outros manejos, com possibilidades
de “programação cerebral” feita pelo/a alienador/a. de desfecho mais adequadas a cada dinâmica fa-
miliar específica.
Verifica-se, portanto, que a LAP falha no que
se refere ao seu objetivo de proteção a crianças e Neste contexto, a Associação de Advoga-
adolescentes, sobretudo se considerarmos que as das pela Igualdade de Gênero (AAIG), ajuizou em
novembro de 2019 uma Ação Direta de Inconstitu- ção à figura de afeto, a uma reação temporária à
54
cionalidade26, tramitando neste momento no Su- situação conflituosa, à percepção da fragilidade de
premo Tribunal Federal. A Ação objetiva impugnar a um dos genitores, à tristeza ou raiva frente às mu-
integralidade da LAP, por violar direitos e princípios danças advindas da separação, e outros motivos,
constitucionais. Afirmam ainda que a Lei já provou combinados ou não. Podem variar também segun-
ser uma ferramenta de discriminação de gênero do a qualidade do vínculo com genitor/a anterior
contra as mulheres que agrava e perpetua os con- ao divórcio. A rejeição pode ser motivada com base
flitos parentais, baseada em teoria pseudocientífica. no comportamento do próprio genitor/a que se diz
“alienado/a”, desresponsabilizando-se assim de
seus próprios comportamentos.
“Conclui-se que a LAP não atende à
Diante da diversidade e complexidade ineren-
finalidade de proteção das crianças tes às relações humanas, como escapar de saídas
e adolescentes” pontuais, simplistas, superficiais e punitivistas?
Como, ao contrário, fortalecer espaços de preven-
ção e escuta de homens, mulheres, crianças e ado-
Diante do exposto, conclui-se que a LAP não lescentes? Investir em um real acompanhamento
atende à finalidade de proteção das crianças e ado- longitudinal, suportes e apoios efetivos às famílias,
lescentes, na medida em que as retira da centrali- parece ser mais valioso do que avaliações que es-
dade da questão, destinando este lugar à relação tigmatizam uma das figuras envolvidas no sistema
de conjugalidade (conflituosa ou com dinâmica de familiar, no qual todos/as estão necessariamente
Violência Doméstica) e possibilitando que a criança/ implicados/as. Será que esse anseio por classifica-
adolescente seja entregue ao abusador. ções taxativas não são formas de tentar satisfazer
à demanda por respostas rápidas e pobres advin-
das das angústias que circulam pelo sistema judici-
“O conjunto de “sintomas” que se ário e por toda a sociedade?
utiliza para caracterizar atualmente
a “alienação parental” pode advir
“Diante da diversidade e
de diversos fatores”
complexidade inerentes às relações
humanas, como escapar de saídas
Destarte, cabe perguntar quais os limites da pontuais, simplistas, superficiais e
intervenção estatal nas relações frente à crescente punitivistas?”
culpabilização de indivíduos e famílias sob a pers-
pectiva do familismo27. O conjunto de “sintomas”
que se utiliza para caracterizar atualmente a “alie- Importantíssimo seria investir, realmente, na
nação parental” pode advir de diversos fatores, tão construção, junto com as famílias, das soluções pos-
diversos quanto a singularidade de cada criança e síveis, não idealizadas, para cada impasse, com ofer-
adolescente, e de cada dinâmica e momento fami- tas de alternativas mais saudáveis e atuações mais
liar. Podem estar relacionadas à fase do desenvol- dignas e não violadoras de direitos, diante de confli-
vimento, como ansiedade de separação em rela- tos familiares difíceis. Prevenindo, sempre que pos-
sível, ou ao menos amenizando a judicialização, com
26 Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 6.273/2019. Dis- a possibilidade ainda de identificação das situações
ponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe. de violência e cuidados adequados e com qualidade
asp?incidente=5823813. Acesso em: 10 mar. 2020.
diante de tais vivências. Assim, promover a resolu-
27 (...) perspectiva da baixa oferta de serviços pelo Estado, tendo, ção coletiva de situações divergentes, bem como
as famílias, “a responsabilidade principal pelo bem-estar so-
cial”. Acepção decorrente do modelo tradicional da família do a inclusão social, considerando a dimensão sócio-
provedor masculino - o foco da ação pública conclama à cen- -histórica das relações e as interseccionalidades
tralidade da família para a proteção de seus membros, o fa-
que as atravessam; investir, enfim, nas potências de
milismo se pauta na solidariedade dos membros. Reitera fun-
ções protetoras femininas e a naturalização da família como indivíduos e grupos para lidarem com conflitos que
instância responsável pela reprodução social e se expressa fazem parte de suas relações parece ser muito mais
em graduações diferentes, conforme a desresponsabilização
pública, quer pela omissão e, também, pelo compartilhamento promissor, ao estimular a circulação de diferentes
de metas ambiciosas, diante de situações adversas e de difí- vozes e ideias para a construção conjunta de alter-
cil solução com parcos investimentos. (CAMPOS; CARLOTO e
MIOTO; 2003 apud ZOLA, 2015, p. 58). nativas, do que a promoção de silenciamentos.
Desta forma, é preciso uma maior discussão
55
entre profissionais e com toda sociedade a respei- “A separação abrupta e violenta
to de espaços mais adequados e legítimos para dos/as filhos/as de suas mães
Cristalização, patologização e criminalização da vida no sistema de Justiça: “Alienação Parental” e a atuação da/o psicóloga/o
acompanhar as demandas advindas dos sujeitos
em processo de rompimento de relações conjugais,
acaba por equivaler a uma
incluindo crianças e adolescentes pertencentes a verdadeira tortura”
essas famílias. Existem espaços que já funcionam
e se mostram potentes para início do acolhimento Com as mulheres também seria importante
e orientações multiprofissionais, como as oficinas aprofundar a reflexão sobre as questões cita-
de parentalidade e experiências de outras políti- das, pensando também na centralidade da ma-
cas como a de saúde28, ou da assistência social29, ternidade na vida de muitas delas, considerando
norteadas pelo cuidado e fortalecimento de víncu- o valor social desse papel ainda nos tempos atu-
los familiares e comunitários. Há de se considerar, ais. A maternidade, construída socialmente como
ainda, a importância da redistribuição mais eficaz o auge da vida a ser alcançado, como lugar de
do orçamento público para que tais políticas consi- poder reservado às mulheres (ZANELLO, 2018),
gam efetivar esse trabalho, que por sua importân- acaba dando sentido estrutural às suas vidas.
cia e complexidade precisa ser qualificado e técni- Assim, a separação abrupta e violenta dos/as fi-
co, equilibrando melhor as dotações orçamentárias, lhos/as de suas mães acaba por equivaler a uma
especialmente entre os sistemas de justiça, saúde, rompimento identitário, uma verdadeira tortura,
assistência social, educação e cultura. ainda mais quando a criança é entregue a quem
percebem ou sabem ser abusador/a. No entanto,
Responsáveis que desejem apoio para (re) ao que parece, a punição a essas mães é dada
construir melhores possibilidades de convívio com somente se atingem quem possui maior poder
filhos/as, ex-companheiros/as e outras/os fami- social. Caso não, seguirão sendo elogiadas como
liares, em casos de possíveis dificuldades, pode- mães dedicadas e abnegadas. Como explica Za-
riam se beneficiar desses espaços de acolhimento, nello (2018), “a mãe ideal é muda e infatigável,
com suporte necessário à frustração derivada da docilmente a serviço do marido e dos filhos” (ZA-
rejeição pela/o filha/o (que pode ser temporária), NELLO, 2018, p. 151).
respeitando os momentos e processos de cada
criança/adolescente, pensando na (re)construção Por fim, verificamos que na desigual e pa-
de vínculos para a vida. Espaços reflexivos e infor- triarcal sociedade brasileira são muitos e graves
mativos como oficinas e grupos sobre a parenta- os complexos impactos negativos do conceito
lidade, conjugalidade, violência e suas formas de jurídico “alienação parental”, que pode ser com-
expressão e superação no meio familiar e domés- preendido também como “alienação patriarcal”,
tico, podem auxiliar na prevenção e amenização de restando a questão: por que o Brasil, com suas
tantos litígios e revitimizações. já tão altas taxas de violência, é o único país do
mundo que ainda tolera uma lei e um conceito
Homens-pais que realmente queiram exercer que abrem tantas brechas para novas e reite-
a paternidade ou que queiram rever padrões de re- radas violações?
lacionamento, passando a exercer uma paternidade
mais ativa e não violenta no pós-divórcio, benefi-
ciar-se-iam de tais espaços, construindo recursos
para resgatar tais relações, que não o serão por
imposições truculentas, autoritárias e imediatistas.
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