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O CANDIDATO Henry Sles: it Ganhador de um Emmy e um Edgar, Henry Slesar (nascido em 1927) é mais conhecido por suas realizagdes no campo da televisdo e do mistério. Mas também escreveu cerca de cem tra- balbos de ficgdo cientifica e fantasia, muitos dos quais sao excelentes. Um de seus grandes ponios fortes, mestria no final — comparavel a O. Henry —, é ilustrado pela hist6ria abaixo. “O valor de um homem pode ser julgado pelo calibre de seus inimigos.” Burton Grunzer, encontrando a frase em uma biografia de bolso que havia comprado na banca de jornais, colocou 0 livro no colo e pés-se a olhar pensativamente a janela sombria do trem de subtrbio. A escuridao prateava o vidro e ele nada podia ver, sendo a prépria imagem, mas isto parecia apropriado 4 sua linha de pensa- mento. Quantas pessoas eram inimigas daquela face; dos olhos estrei- tados por miopia, afastados da vaidade pela corregio de éculos; do nariz que ele secretamente chamava de patricio; da boca que era mole quando relaxada e dura quando animada por fala, sortisos ou carrancas? Quantos inimigos? Grunzer meditou. Alguns ele podia citar, outros adivinhar. Mas 0 seu calibre @ que era importante. Homens como Whitman Hayes, por exemplo. Esse era um oponente de vinte e quatro quilates. Grunzer sorriu, lancando um olhar lateral ao companheiro de assento ao seu lado, nao desejando ser apanhado enquanto pensava em coisas secretas. Tinha 34 anos; Hayes era duas vezes mais velho e seus cabelos brancos eram sindnimo de experién- cia, um inimigo do qual se pode orgulhar. Hayes conhecia 0 negécio de alimentos muito bem, conhecia-o sob todos os aspectos: tinha sido vendedor ambulante durante seis anos, corretor durante dez, executivo de companhia de produtos alimentares durante vinte, antes que 0 chefe o tivesse trazido para a organizacao e 0 fizesse sentar-se a sua direita. Imobilizar Hayes nao era facil, e isso tornava os a pequenos mas crescentes triunfos de Grunzer ainda mais doces. Con- gratulou-se consigo mesmo. Tinha torcido as vantagens de Hayes em desvantagens, tinha feito seus longos anos parecerem apenas equiva- lentes a senilidade e sobrevivéncia 4 vida Util; nas reunides, tinha concentrado suas perguntas sobre 0 novo supermercado e os fend- menos dos subtrbios para demonstrar ao chefe que os tempos tinham mudado, que o passado estava morto, que eram necessaria: novas taticas de merchandising, e que somente um homem mais jovem podia supri-las... Subitamente, sentiu-se deprimido. Seu prazer nas vitorias relembradas parecia sem gosto. Sim, ele havia ga- nhado uma pequena batalha ou duas na sala de conferéncias da empresa; tinha feito o rosto rosado de Hayes ficar carmesim, ¢ visto a pele pergaminhosa do velho enrugat-se num sorriso disfargado. Mas © que é que ele tinha realizado? Hayes parecia mais confiante do que nunca, e 0 chefao mais dependente de seu conselho. Quando chegou a casa, mais tarde do que o habitual, sua esposa, Jean, nio fez perguntas. Depois de oito anos de um casamen- to em que, sem filhos, conhecia seu marido muitissimo bem, agora prudentemente, nada mais lhe havia oferecido do que um cumpri- mento quieto, uma refeicao quente e a correspondéncia do dia. Grunzer mexeu itreverentemente nas contas e circulares e encontrou uma carta sem remetente. Enfiou-a no bolso traseiro da calea, reser- vando-a para exame privado, e terminou a refeicao em siléncio. Depois do jantar, Jean sugeriu uma fita de cinema e ele concordou, tinha paixio por filmes de acdo violenta. Mas, primeiramente, fechou-se no banheiro e abriu a carta. O cabecalho era criptico: Sociedade de Acao Unida. © endereco para a resposta era uma caixa postal. Dizia: “Caro Sr. Grunzer: Seu nome nos foi sugerido por um conhecido mtituo. Nossa organizacao tem uma missdo incomum que nao pode ser descrita nesta carta, mas que o senhor julgara de grande inte- resse. Ficariamos gratos por uma entrevista privada assim que Ihe seja conveniente. Se nao tiver noticias suas em contrario dentro de poucos dias, tomarei a liberdade de visita-lo em seu escritério”. Estava assinada “Carl Tucker, secretério’. Uma linhazinha fina no fim da pagina dizia: “Uma organizagao sem fins lucrativos”. Sua primeira reagao foi defensiva; suspeitava de um ataque indireto a seu bolso. A segunda foi de curiosidade: seguiu para o dor- mit6rio e localizou a lista telef6nica, mas nao encontrou a organize giao arrolada pelo nome do cabegalho da carta. “OK, St. Tucker”, pen- sou ele com um esgar. “Vou morder a isca..” Como nenhum chamado chegou nos ués dias seguintes, sua 12 curiosidade aumentou. Mas na sexta-feira, no aperto dos assuntos do escritorio, esqueceu a promessa da carta. O chefe convocou uma reuniao com a divisao de produtos de padaria. Grunzer sentou-se do lado oposto ao de Whitman Hayes na mesa de conferéncia, pronto para saltar sobre as falicias de suas declarages. Ele quase 0 pegou uma vez, mas Eckhardt, 0 gerente de produtos de padaria, falou em defesa dos pontos de vista de Hayes. Eckhardt estava na companhia fazia apenas um ano, mas evidentemente ja tinha escolhido seu lado. Grunzer lancou-lhe um olhar penetrante, e reservou um lugar para Eckhardt na camara de 6dio de sua mente. As trés horas, Carl Tucker telefonou. — Sr. Grunzer? — A voz era ami! , até alegre. Nao tenho noticias suas, portanto suponho que o senhor nado se importara que eu o tenha chamado. Existe uma oportunidade de que possamos nos reunir em alguma ocasiio? — Bem, se 0 senhor pudesse dar-me alguma idéia, Sr. Tucker .. A risada foi ressonante. — Nao somos uma organizacao de caridade, Sr. Grunzer, caso 0 senhor tenha essa nocao. Tampouco vendemos qualquer coisa. Somos mais ou menos um grupo de servico voluntirio: no momento nossa afiliagdo esté acima de mil. — Para falar a verdade — disse Grunzer, contraindo 0 rosto — , nunca ouvi falar do senhor. — Nao, nunca ouviu? Esse é um de nossos bens. Creio que o senhor entender quando eu Ihe falar a nosso respeito. Posso estar em seu escritério em quinze minutos, salvo se o senhor quiser marcar um outro dia. Grunzer consultou seu calendario. — OK, Sr. Tucker. A melhor ocasidéo para mim é agora mesmo. — Otimo! Irei num instante. ‘Tucker estava preparado. Quando entrou no ficou atonito ao vé-lo com uma pasta na mao dirci melhor quando Tucker, homem rubicundo, no inicio de seus sessenta anos, feigoes agradaveis, comegou a falar. — Gentil de sua parte conceder-me 0 tempo, Sr. Grunzer. E acredi- le-me, nao estou aqui para vender seguro ou laminas de barbear. Nao poderia, ainda que tentasse; sou um corretor semi-aposentado. Contudo, © assunto que desejo discutir € um tanto... intimo, de modo que terei de pedir-he que me apie em um certo ponto. Posso fechar a porta? — Claro — disse Grunzer, intrigado. Tucker fechou-a, puxou sua cadeira mais para perto € disse: — O ponto é o seguinte. O que tenho a dizer € estritamente confidencial. Se o senhor trair essa confianga, se divulgar de algum modo 0 que nossa sociedade faz, as conseqiléncias poderao ser das mais desagradaveis. Esta de acordo? Contraindo o rosto, Grunzer assentiu. t — Otimo! — O visitante abriu a pasta com um estalido e tirou rito grampeado. a, a sociedade preparou esta pequena lengalenga a respeito de nossa filosofia basica, mas nao vou aborrecé-lo com isto. Rstou indo diretamente ao Amago de nossa discussao. O senhor talvez nao concorde absolutamente com 0 nosso primeiro principio, eeu gostaria de saber disso agora. — Que € que o senhor quer dizer com “primeiro principio”? — Bem... — Tucker ruborizou-se ligeiramente. — Na mais crua das formas, Sr, Grunzer, a Sociedade de Acaio Unida acredita que... algumas pessoas nao sao dignas de viver. — Olhou rapidamente para cima, como se ansioso por aquilatar a reac¢Ao imediata. — Pronto, ja disse. — Riu-se, de um certo modo mostrando alivio. — Alguns de nossos membros nao acreditam em minha abordagem direta; julgam que o argumento tem de ser tocado mais discretamente. Mas, franca- mente, tenho obtido resultados excelentes desta maneira um tanto crua. O que € que o senhor pensa do que eu disse, Sr. Grunzer? — Nao sei. Acho que nunca pensei muito a esse respeito. — O seahor esteve na guerra, Sr. Grunzer? im. Marinha. — Grunzer esfregou 0 queixo. — Suponho que eu nao pensava que os japoneses cram dignos de viver, naquela €poca. Creio que talvez haja outros casos. Quero dizer, punigao capi- tal, eu acredito nisso. Assassinos, artistas estupradores, pervertidos.. Que diabo! com certeza nao penso que eles sao dignos de viver. — Ah! — disse Tucker. — Logo, 0 senhor accita realmente nos- so primeiro principio. E uma questao de categoria, nado €? — Creio que o senhor poderia dizer isso. — Bom. Portanto, agora farei uma outa pergunta esquisita. Alguma vez — pessoalmente — 0 senhor ja desejou que alguém mor- resse? Oh, nao me refiro aqueles desejos casuais ¢ fugidios que todos tém. O que quero dizer @ um verdadeiro, profundo, descomplicado desejo da morte de alguém que o senbor julgasse indigno de viver. Ja pensou? — Claro — Grunzer disse francamente. — Acho que sim. — HA ocasides, em sua opinido, em que a remocgao de alguém desta terra seria benéfic: Grunzer sorriu. — Ei, 0 que é isso? O senhor é da Assas cido? Tucker sorriu de volta. — Dificilmente, Sr. Grunzer, dificilmente. Nao existe absoluta- mente aspecto criminoso em nossos alvos ou métodos. Admitirei que somos uma sociedade secreta, mas ndo somos a Mao Negra. O se- nhor flearia pasmado com a qualidade de nossos afiliados; existem 4l@ membros profissionais da lei. Mas suponha que eu the conte inato S.A. ou algo pare- i como a sociedade passou a existir. Ela comecou com dois homens; nao posso revelar os seus nomes no momento. O ano foi 1949, e um desses homens era um advogado ligado ao escritério do promotor publico. O outro era um psiquiatra do Estado. Ambos estiveram envolvidos em um julgamento sensacional, a respeito de um homem acusado de um crime hediondo contra dois meninos pequenos. Na opiniao deles, o homem era inquestionavelmente culpado, mas uma defesa incomumente persuasiva, e um jiri altamente sugestionavel, deram-lhe a liberdade. Quando 0 veredicto chocante foi anunciado, estes dois, que eram amigos pessoais, assim como colegas, sentiram- se como que feridos por um raio, € furiosos. Achavam que tinha sido cometido um grande mal, e sentiam-se impotentes para endireita-lo. Mas eu deveria explicar alguma coisa a respeito desse psiquiatra. Durante alguns anos ele tinha feito estudos em um campo que pode- ria ser chamado psiquiatria antropolégica. Uma dessas pesquisas se relacionava A pritica do voodoo de certos grupos, dos haitianos em particular, Provavelmente o senhor ja ouvit: muita coisa a respeito de voodoo, ou abeab, como o chamam na Jamaica, mas eu nado me demorarei no assunto, para que o senhor nado pense que temos ritos tribais e que espetamos agulhas em bonecos... Mas a caracteristica principal de seu estudo era o misterioso sucesso de certas praticas estranhas. Naturalmente, como cientista, ele rejeitava a explicagao sobrenatural e procurava uma que fosse racional. E, naturalmente, havia somente uma resposta. Quando o sacerdote vodun decretava a punigdo ou morte de um malfeitor, era a propria convicgao do malfeitor concernente a eficacia do desejo de morte, sua propria fé no poder voodoo, que, por fim, fazia o desejo se realizar. Algumas vezes, 0 processo era orginico — seu corpo reagia psicossomatica- mente a maldigao voodoo, ¢ ele ficava doente ¢ morria, Outras, ele mortia por “acidente” — um acidente causado pela crenga secreta de que, uma vez amaldigoado, ele tinba de morrer. Sinistro, nao? — Sem dtivida — disse Grunzer, com os labios secos. — Seja como for, nosso amigo, o psiquiatra, comegou a ponde- rar em voz alta se algum de n6s nao tinha avangado tanto ao longo da trilha civilizada que nao pudesse estar sujeito a essa mesma espé- cie de punicao “sugerida”. Propés que fizessem experimentos nesse objeto de escolha, apenas para ver. Como agiram foi simples. Foram ver este homem e anunciaram suas intengdes. Disseram-lhe que ali estavam para desejd-lo morto, Explicaram como € por que 0 desejo podia tornar-se realidade, e enquanto 0 homem ria da sua proposta, eles podiam ver 0 medo supersticioso cruzar seu rosto. Prometeram- Ihe que regularmente, todos os dias, eles estariam desejando sua morte, até que ele nado pudesse mais impedir a mistica juggernaut que faria o desejo realizar-se. Grunzer estremeceu subitamente e apertou os punhos. — Isso € bastante tolo — disse brandamente. 15 —O homem morreu de um ataque cardiaco dois meses mais tarde. — Ohl, naturalmente. Eu sabia que o senhor diria isso. Mas ha uma coisa que se chama coincidéncia. — Naturalmente. E nossos amigos, conquanto intrigados, nao estavam satisfeitos. Por isso voltaram a tentar. — Novamente? — Sim, novamente. Nao vou contar quem foi a vitima, mas direi que desta vez eles convocaram 0 auxilio de quatro associados. Este pequeno grupo de pioneiros foi o nGcleo da sociedade que hoje represento. Grunzer sacudiu a cabe: — E osenhor quer me dizer que existem mil agora? — Sim, mil ¢ mais, no pais inteiro. Uma sociedade cuja tnica fungio € desejar a morte de pessoas. De inicio a afili era pura- mente voluntéria, mas agora temos um sistema. Cada novo membro da Sociedade de Ado Unida junta-se a nés em base de submeter uma vitima potencial. Naturalmente, a sociedade investiga para determinar se a vitima merece seu destino. Se 0 caso for bom, a afiliagdo toda se poe a desejar-lbe a morte. Uma vez que a tarefa esteja cumprida, na- turalmente, Os novos membros precisam tomar parte em todas as agoes conjuntas futuras. Isso e um pequeno emolumento anual, € 0 preco da afiliacao. Carl Tucker sorriu, — E no caso de o senhor pensar que nao estou falando sério, Sr. Grunzer... mergulhou na pasta novamente, desta vez apresentan- do um volume encadernado em azul, da grossura de uma lista tele- fénica — ...aqui estao os fatos. Até hoje, 229 vitimas foram nomeadas por nosso comité de selegao. Destas, 104 j4 nao estéo mais vivas. Coincidéncia, Sr. Grunzer? Quanto aos remanescentes 125, talvez isso indique que nosso método nao é infalivel. Somos os primeiros a admitir isso, Mas esto sendo desenvolvidas novas técnicas 0 tempo todo, Garanto-lhe, Sr. Grunzer, apanharemos todos eles. — Folheou o livro encadernado em azul. — Nossos membros estao arrolados neste livro, Sr. Grunzer. Vou dar-lhe a op¢ao de telefonar a um, dez, ou cem deles. Chame-os e veja se nao estou contando a verdade— Jogou o manuscrito em direcao 4 mesa de Grunzer. O volume bateu no mata- borrio com um ruido surdo. Grunzer apanhou-o. — Bem? — disse Tucker. — Quer chamé-los? —- Nao — disse Grunzer, umedecendo os labios. — Estou dis- posto a aceitar sua palavra, Sr. Tucker. E incrivel, mas posso ver como @ coisa funciona. Apenas saber que mil pessoas estio desejando sua morte 6 © bastante para que vocé se sinta no inferno. — Seus olhos 8 estreitaram. — Mas ha uma pergunta. O senhor falou a respeito de un “pequeno” emolumento ... Cinqiienta délares, Sr. Grunzer. 16 — Cinqitenta, ei! Cingiienta vezes mil, isso € muito bom din- heiro, nao é? — Garanto-lhe, a organizacdo nao é motivada por lucro. Nao da espécie que o senhor pensa. Os emolumentos meramente cobrem as despesas, trabalho do comité, pesquisa, e coisas parecidas. Com certeza o senhor pode entender isso, nao? — Creio que sim — gemeu. Entao o senhor acha interessante? Grunzer virou a cadeira giratoria, quase vendo a janela. “Deus!”, pensou Deus, se isso realmente funcionasse! Mas como poderia? Se desejos se tornassem efeitos, ele teria matado dazias em sua vida. E no entanto, isto era diferente. Seus desejos sempre foram coisas secretas, ocultas, onde homem algum podia saber deles. Mas esse método era diferente, mais pratico, mais terrifico. Sim, ele podia ver como a coisa funcionaria. Podia visualizar mil mentes queimando com o desejo tnico de morte; ver a vitima sortindo em descrenga no comego, e depois, lenta, gradualmente, com certeza sucumbindo a cadeia asfixiante, constritora do medo de que isso pudesse funcionar,; que tantos pensamentos mortais em com efeito emitir um raio mistico malevolente que se a vida. Subitamente, como um fantasma, viu oO rosto empergaminhado de Whitman Hayes a sua frente. Virou a cadeira e disse: — Mas a vitima tem de saber de tudo, naturalmente, nao? Tem de saber que a sociedade existe e tem tido sucesso, e esté desejando sua morte? Isso é essencial, nao €? — Absolutamente essencial — disse Tucker, recolocando o manuscrito em sua pasta. — O senhor tocou no ponto vital, St. Grun- zer. A vitima precisa ser informada, e foi precisamente 0 que fiz. — Olhou o relégio. — O desejo de sua morte comegara ao meio-dia de hoje. A sociedade comegou a trabalhar. Sinto muito. A porta, voltou-se e ergueu o chapéu e a pasta em um gesto de despedida. — Até logo, Sr. Grunzer — disse ele. 17

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