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OS SERVOS DO
ÍDOLO AMARELO
Autor
HANS KNEIFEL

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização
VITÓRIO

Revisão
ARLINDO_SAN
Os calendários do planeta Terra e dos outros mundos da
Humanidade registram os meados do mês de março de 3.442.
Faz cerca de quinze meses que a catástrofe da deterioração
mental atingiu quase todos os seres inteligentes da Galáxia. O
misterioso “Enxame” prossegue firmemente em seu voo
através da Via Láctea — e com a mesma firmeza Perry
Rhodan e seus companheiros imunes tentam, num trabalho
cheio de perigos, desvendar o sentido e a finalidade da ação
dos terríveis invasores.
Perry Rhodan e seus colaboradores sabem por
experiência própria que os emissários do “Enxame”
trouxeram a desgraça repetida milhões de vezes para muitos
mundos. Também sabem que o “Enxame” é responsável pelo
aparecimento do Homo superior e pela grande mortandade.
Mas ainda não sabem bastante. Só imaginam que o
“Enxame” guarda novas surpresas, que podem representar a
morte para os habitantes de muitos planetas.
Sandal Tolk, o vingador, que se encontra há meses, com
seu companheiro de lutas Tahonka No, num planeta dentro do
“Enxame”, já conheceu algumas surpresas mortais. Colheu
experiências preciosas, que gostaria de comunicar a seus
amigos terranos. Para isso tem de abandonar o planeta. Mas
primeiro tem de enganar Os Servos do Ídolo Amarelo...

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Sandal Tolk — O vingador de Exota-Alfa.
Tahonka No — Amigo de Sandal e companheiro de lutas de
Gedynker Crocq.
Perry Rhodan, Joak Cascal e Gucky — O Administrador-
-Geral e seus companheiros que fazem um voo de
reconhecimento.
Recanti Tak — Um médico que pensa demais.
1

Tahonka No, também conhecido como o ossudo, um fugitivo banido do planeta


Gedynker Crocq, estava sentado à mesa. Sandal sorriu ao ver a mão gigantesca do amigo
erguendo um cálice artístico e encostando-o aos lábios estreitos. No cálice havia uma
bebida alcoólica doce.
Sandal resmungou bem-humorado:
— Já descansamos. Ninguém nos perturbou. Estamos novinhos em folha e muito
bem equipados, amigo. Isto basta para a gente entregar-se ao vício da bebida.
Sandal levantou o cálice e tomou um grande gole. Para estar seguro, o ossudo
pedira um recipiente grande desta bebida, e o sistema de entrega automática o colocara na
sala. Para Tahonka No a existência de uma bebida típica de seu planeta significava que
em Vetrahoon também havia membros de seu povo.
Sem dúvida trabalhavam para o servo-mor do Y’Xanthymr.
— Nada disso! — disse Tahonka. — Este gole é a despedida da boa vida. Dentro de
pouco tempo tentaremos chegar ao interior da cúpula, a rainha das construções, como
você costuma chamar o edifício principal.
Tinham estudado os arredores durante dias e gravado na memória milhares de
detalhes.
Parecia que dentro da cúpula quase tudo parecia formar um sistema de anéis
concêntricos em torno do edifício de quase mil e quinhentos metros; parques e pontes
graciosas, outras construções e estranhos cubos brancos pendurados em suportes negros.
O espaço entre a linha circular em que a cúpula tocava no chão e o campo defensivo era
grande e cheio de mistérios e milagres, ao menos para Sandal.
Havia muito movimento, muitas cores, muita vida... Sandal fez o possível para que
nesses dias lhe fosse explicado tudo, e o ossudo fez o que pôde. Os dois sentiram que os
dias de descanso tinham chegado ao fim.
— Já?
Sandal apontou para fora. Ainda era noite, mas dentro de poucas horas os raios do
sol vermelho de Vetrahoon atravessariam o campo defensivo.
— Assim que clarear. O caminho que leva ao centro é longo, e além do parque não
sei por onde devemos ir.
Tinha-se a impressão de que os edifícios perdiam em importância à medida que a
gente se afastava da torre múltipla que superava tudo. As instalações eram grandiosas e
irradiavam um encanto estranho; era como se alguém contemplasse um jardim exótico.
Mas enquanto não parava de contemplar o quadro, Sandal fez questão de não esquecer
seu objetivo.
Lá adiante, no centro, encontraria o rei ou príncipe do “Enxame”, ou alguém que lhe
apontasse o caminho.
— O que está pensando? — perguntou Tahonka depois de algum tempo.
Tinham apagado as luzes da sala e ativado os sistemas de alerta. Assim sentiam-se
muito mais seguros e protegidos.
— Penso em Rhodan e Atlan. Já lhe falei a respeito destes amigos — respondeu o
caçador e girou a esfera de coral entre os dedos polegar e indicador. Costumava fazer isso
quando se concentrava em alguma coisa.
— Tem esperança de revê-los?
— Eles estão perto daqui — disse Sandal em tom nervoso. — Tenho certeza. Seu
plano era circular ininterruptamente em tomo do “Enxame” com sua nave e outras, para
tentar obter novas informações sobre o que existe dentro dele. Quando voltar poderei
contar muita coisa. É claro que também estou pensando em Chelifer Argas, a moça de
olhos verdes.
Depois de alguns segundos, quando o cálice já estava vazio, o ossudo perguntou:
— Ela é... bonita?
— É, sim — respondeu Sandal. — Mais bonita que Beareema. E mais inteligente do
que era Beareema antes que o ídolo amarelo derramasse a debilidade mental sobre o
planeta.
— Compreendo — respondeu Tahonka No.
Na verdade não tinha compreendido nem a metade.
Estavam descansados e ansiosos para entrar em ação. Queriam medir mais uma vez
seus conhecimentos, sua astúcia e sua rapidez com o inimigo muito superior em número.
Sandal guardara suas flechas — eram mais de cem — numa aljava e destruíra a outra
aljava, que estava vazia. Ganharam mais um pouco em mobilidade.
— Tem uma ideia do que encontraremos lá? — perguntou Sandal.
Ele se encontrava numa situação que detestava. Mesmo que alcançasse seu próximo
objetivo, ainda não teria certeza se este realmente seria o ponto final de sua vingança. Se
estivesse em Exota Alfa saberia perfeitamente, pois lá sempre se tratava de seres que
eram e agiam como ele e falavam a mesma língua. Mas no lugar em que estava não era
assim. Os contrastes não podiam ser maiores.
— Imagino, mas não tenho certeza — explicou Tahonka No. — Acho que veremos
gente de Gedynker Crocq, e sem dúvida alguns indivíduos pertencentes às fileiras dos
pequenos purpurinos mudos, talvez ainda outros seres. É só o que posso dizer.
— Talvez encontre o príncipe do “Enxame” — disse Sandal em voz baixa.
Não esquecera sua vingança por um segundo que fosse, mas nos meses que se
tinham passado desde a morte do avô e a destruição do castelo Crater, seus pensamentos
tinham mudado. Talvez fosse mesmo o que seu novo amigo exótico dissera — tornara-se
adulto.
Não queria matar mais por vingança, mas obrigar o soberano a mudar de rumo.
Isto não queria dizer que não se defenderia se fosse atacado ou descoberto.
Sandal descansou o cálice vazio e levou os restos de comida de volta à cozinha
automática, onde as máquinas continuavam trabalhando para apagar as pistas dos dois
homens.
Quando Sandal voltou à sala de tamanho médio e ia sentar numa poltrona
confortável, o ossudo saltou da poltrona e exclamou em voz baixa:
— Silêncio! Alarme!
Uma das instalações de alerta se ligara. Alguém se aproximava do esconderijo dos
dois homens. Dali a um minuto eles o viram; uma lente espiã captou sua imagem.
— É alguém de Gedynker Crocq, um dos meus homens, Sandal — disse Tahonka
No em voz baixa. — O que traz na testa?
— Um ponto amarelo. Talvez seja um leproso — disse Sandal.
O outro ossudo usava trajes parecidos com os de Tahonka No. Por acaso o amigo de
Sandal escolhera justamente essas peças. O desconhecido segurava nas mãos uma arma
longa, que pertencia sem dúvida ao arsenal dos purpurinos.
— Ele vem para cá? — cochichou Sandal e pôs a mão no arco e na flecha.
— Vem.
O desconhecido caminhava diretamente para a sala de controle. Examinou por
algum tempo os mostradores e as telas, depois virou-se e foi exatamente na direção da
sala em que estavam escondidos os dois amigos.
— Você não sabe quais são os pontos vulneráveis do corpo dos ossudos — disse
Tahonka tão baixo que quase não pôde ser ouvido. — Tentarei deixá-lo inconsciente.
Sandal retirou-se e pegou a arma.
Mais três aparelhos deram o alarme e mostraram exatamente e caminho do
desconhecido. Este deixou que a porta se abrisse, e o ossudo agiu imediatamente. Sandal
viu por três segundos um quadro formado por pernas e braços agitando-se e corpos
girando e tremendo. Finalmente o desconhecido caiu. A porta voltou a fechar-se.
Tahonka No disse em tom indiferente.
— Está morto. Eu não queria isto, mas fraturei alguns ossos importantes.
Os dois arrastaram o desconhecido para o centro da sala e só então viram uma
plaqueta amarelo-ocre em sua testa.
— É algum sinal de identificação? — perguntou o ossudo.
— Talvez sejam pequenos transmissores que todos que trabalham aqui devem usar.
Se não tivermos as plaquetas, seremos identificados imediatamente como intrusos.
Arranque-as.
— Talvez você tenha razão, Sandal — respondeu o ossudo. — Farei o que você
disse.
Arrancou a plaqueta hexagonal, que devia ter cerca de cinco centímetros de
diâmetro, da testa do desconhecido e grudou-a em sua testa. O adesivo da plaqueta
elástica era formado por alguma matéria orgânica, que grudou imediatamente na testa de
Tahonka.
— Pronto. O que faremos com ele?
— Vamos voltar à sala de controle — disse Sandal. — Quando ele for descoberto já
teremos atravessado todos os parques.
— As salas em que estamos seriam melhores. Aqui as inspeções são ainda mais
raras.
Os dois esconderam o cadáver atrás de um depósito, pegaram suas armas e saíram.
Tahonka No serviu de guia.
Dirigiam-se ao centro da cidade que ficava embaixo da cúpula. Imaginavam que
tinham um caminho difícil pela frente.
A Ilha da Felicidade, dissera o alerta... o que significava isso?
Eles ainda saberiam.
***
Mais ou menos ao mesmo tempo Joaquim Manoel Cascal examinava os fechos de
seu traje e ajudava o arcônida.
— Uma das desvantagens de uma onda de debilidade mental de âmbito galáctico é
que milhões de pessoas podem curtir a preguiça, enquanto uns poucos têm de trabalhar
que nem burros de carga — disse Joaquim, o homem com uma placa de terconite no
crânio.
— Entre os cegos o caolho é rei, ilustre — respondeu Atlan num tom que não
chegava a ser indelicado.
— Formidável! — disse Cascal. — Será que isso representa uma alusão às
qualidades dos chamados chefes viajantes?
Atlan sorriu e Gucky pôs à mostra seu notável dente roedor.
— Por favor, poupe-me da resposta, Joak — disse.
Os três homens e o rato-castor estavam parados à frente do pequeno caça Lightning.
Rhodan, Joaquim e Gucky queriam fazer um voo de reconhecimento curto, mas
arriscado. Os trajes espaciais foram testados rapidamente e dentro de segundos Rhodan
lembrou-se de sua fuga do planeta Aggres, pertencente ao sistema Ex-Polata.
Oitocentas naves gigantes vindas de dentro do “Enxame” obrigaram o
Administrador-Geral a fugir, e os enigmas tinham aumentado.
As naves dividiram-se antes do pouso — os tubos em favo de seis cantos juntaram-
-se em blocos de cerca de mil unidades. Rhodan tomou uma decisão. Queria descobrir o
mistério.
— Talvez hoje, que é dia doze de março, saibamos mais alguma coisa — disse
Cascal para consolar os companheiros. — É uma data linda.
Rhodan riu e enfiou-se no assento do artilheiro, atrás de Cascal. Gucky saltou no
colo de Rhodan e fechou o capacete de seu traje espacial.
— Sabe qual é o destino, Cascal? — perguntou Atlan pelo rádio.
Joaquim acenou com a cabeça e acionou a chave que fechava a cobertura
transparente. Através de outras chaves acionou alguns outros sistemas.
— Um bom piloto fica sempre de olho no objetivo, sem olhar para os lados —
respondeu Cascal, que estava contente pela quebra da monotonia.
— É verdade — disse Atlan e fechou a eclusa. — Decole!
O destino era um mundo de insetos chamado Aggres. Cascal esperou que a
portinhola se abrisse à sua frente e deu partida nas máquinas. Saiu em alta velocidade da
abertura estreita. Acelerou com cuidado, mas rapidamente. Os dados da etapa linear já
tinham sido programados pelo computador positrônico que ficava à sua frente.
— Conheço a tarefa, senhor — disse Cascal. — Imagino que nos divertiremos a
valer. Acha que em Aggres encontraremos o querido e petulante Pascal?
— Não acredito — respondeu Rhodan. — Nem pousaremos, porque com mais um
passageiro o aperto seria ainda maior.
Cascal riu e concentrou-se no controle dos instrumentos. Todos os sistemas
funcionavam perfeitamente.
— Mal posso usar os cotovelos — aqui — respondeu. — Este “Enxame” nos
mantém bem ocupados, não é? Acho que no início ainda parecia pior.
— Estamos todos saturados disso — disse Rhodan.
— Pois é — disse Cascal laconicamente. O chefe não estava disposto a ouvir longas
discussões e o rato-castor parecia estar dormindo, como era seu costume. De um lado
Cascal sentia-se grato, mas de outro lado já não aguentava a vida a bordo da Good Hope
II. Elaborara juntamente com Chelifer, que ainda estava com saudades de Sandal, um
belo plano de como se podia desertar para um voo planetário curto, mas só encontrara
incompreensão e até rejeição.
“É estranho”, pensou.
— Está sem assunto ou não tem vontade de falar, Joak? — perguntou Rhodan de
repente.
Cascal refletiu um instante. Dentro de alguns dias o jato realizaria o voo linear.
— É que às vezes a gente não se lembra de nada quando mais precisa — disse em
tom desanimado.
— Quantas vezes sente falta de um assunto?
— Raramente — disse Cascal.
O jato Lightning entrou no espaço linear, abandonou-o depois de algum tempo e
precipitou-se à velocidade da luz numa tangente sobre os limites superiores da atmosfera
do planeta Aggres, o mundo dos insetos.
— Estou desacelerando. Gucky está acordado?
— Não se preocupe — respondeu o rato-castor. — Sei perfeitamente quando tenho
de acordar. Tenho um despertador de precisão dentro de mim.
— Além de outras coisas — disse Perry Rhodan em tom indulgente. — Você sabe o
que está em jogo. Não se arrisque sem necessidade.
Gucky esboçou um sorriso e disse:
— Compreendi, mestre Rhodan.
Depois desapareceu; teleportara para a superfície do planeta dos insetos.
Depois o jato voltou a ganhar altura, Cascal reduziu ainda mais a velocidade e como
se tratava de um objeto tão pequeno que dificilmente poderia ser detectado, entrou em
órbita em torno do planeta, pouco acima dos últimos vestígios de gases da atmosfera.
De repente Gucky apareceu numa rocha amarela inclinada, vindo do nada.
Olhou em volta devagar, atento e concentrado. Reprimiu o desejo de andar por aí, à
procura de coisas interessantes. Teve a impressão de ver à sua frente, contra a luz, um dos
numerosos blocos em forma de favo que devia haver por ali. Gucky arriscou mais um
salto de teleportação para perto da cintilância; era realmente um conjunto de edifícios em
forma de favo.
— Quer dizer que ainda não sofro de perturbações visuais causadas pela idade! —
constatou satisfeito e caminhou em direção ao conjunto.
— Devia tentar entrar nele?
Gucky parou na sombra de uma árvore morta. Não parecia haver vida por perto. O
rato-castor chegava a ter a sensação física da solidão. Gucky fixou-se em um dos favos e
saltou.
— Droga! — disse dali a dois segundos, quando viu que as informações dos outros
dois tripulantes da EX-6633 que tinham ficado imunes eram certas. No favo só havia uma
massa orgânica se espalhando. A massa tremia em convulsões como acontecera há tempo
com os pseudocorpos dos cappins. Fora disso Gucky não viu nada de interessante.
— É isso — comentou. — Não consigo identificar nenhuma forma orgânica.
Gucky saltou de volta para o solo pedregoso e poeirento do planeta. Desta vez foi
parar em outro lugar. Fossem quem fossem os seres guardados nos favos e suas
intenções, no momento não eram perigosos e não podiam ser identificados. Mas quando
virou a cabeça o ilt viu uma coisa brilhando no sol.
— Caramba, por Rhodan! — disse estupefato.
Viu três ou quatro rastros de alguma coisa que fora arrastada, de cerca de um metro
de largura, contornando em várias curvas o conjunto de favos. Havia uma camada ou
gosma fina espalhada na areia e nas pedras. Gucky lembrou-se dos rastros das lesmas
terranas, mas muito aumentados.
— Preciso dar uma olhada! — disse e caminhou para perto dos rastros mais
próximos. Quando chegou lá, levou um susto. Recebeu impulsos hipnossugestivos. Eram
fracos demais para incomodá-lo, mas bastante fortes para que pudesse compreendê-los
sem dificuldade.
— Fique longe — venere minha pessoa!
Estes impulsos eram irradiados numa faixa larga. Logo, também poderiam ser
recebidos e entendidos por outros seres, menos inteligentes.
Era a trilha de gosma em bolhas, brilhando num branco prateado e estruturada em
forma de pérolas que emitia os impulsos.
— É estranho!
Gucky ouvia a mensagem, mas para ele não era um comando. Não precisava
obedecer a ela. Estava completamente imune. Gucky abaixou-se para pegar uma pedra
achatada.
— Uma amostra para Perry! — disse. — Ficará satisfeito. Perry gosta deste tipo de
presente.
Quando sua mão tocou a pedra viu um grupo dos pequenos purpurinos que tinham
saído de trás de uma rocha e apontavam para ele.
Gucky assustou-se, mas logo voltou a controlar-se. Mas sua mão não acertou a
pedra e ele se desequilibrou.
O rato-castor escorregou e caiu na faixa gosmenta. Quando ouviu o primeiro tiro,
teleportou de volta para o jato.
Caiu no colo de Rhodan e cobriu seu traje espacial com a gosma grudenta.
— Caiu numa poça de cola? — perguntou Cascal, que acelerou o jato, programou a
rota e se virou no assento apertado.
— Não abra a boca antes da hora, grandalhão — disse Gucky. — Ouça para saber o
que eu trouxe.
A ênfase com que foram pronunciadas estas palavras deixou Cascal e Rhodan de
sobreaviso, que perceberam imediatamente os comandos hipnóticos muito fracos.
— Que houve? — perguntou Rhodan.
Nem ele nem Cascal foram obrigados a obedecer à ordem insistente, repetida sem
parar.
— Fique longe — venere minha pessoa!
A situação reinante depois do relato de Gucky não era perigosa, ao menos para os
tripulantes das duas naves. Mas a mensagem repetida de forma estereotipada convidava à
reflexão.
Antes que as naves-patrulha pudessem localizar o jato — sua permanência não
durara mais de trezentos segundos — este saiu em alta velocidade, entrou no espaço
linear e voltou ao esconderijo onde estavam as duas naves.
A Intersolar e a Good Hope II permaneciam imóveis no espaço.
O jato foi recolhido em um dos tubos de catapultagem e os homens desceram.
Quando refletiu sobre como devia limpar seu traje espacial, Rhodan notou uma coisa
estranha.
— Cascal! — disse nervoso. — Olhe.
Cascal olhou-o como quem não sabia do que se tratava.
— Vejo que não vejo nada — disse. — Nada além do senhor, que não ficou muito
mais velho durante o voo, ao menos em minha opinião.
— As manchas de gosma dissolveram-se, tanto no meu traje como no de Gucky.
Desapareceram completamente.
— Assim não precisamos fazer a limpeza. Quer dizer que é uma energia
parapsíquica que se espalhou ou dissolveu? — perguntou Cascal em voz baixa e assobiou
entre os dentes.
— É isso mesmo.
Era mais uma novidade. Os seres desconhecidos rastejavam de um lado para outro,
deixando um rastro de gosma que ordenava ao que chegava perto dela que venerasse o
autor do rastro, mas ficasse longe dele.
Rhodan, Atlan, Gucky e Cascal discutiram o caso. Depois cada um voltou a
dedicar-se a seu trabalho.
Cascal procurou Chelifer Argas para discutir métodos de educação a serem usados
com jovens bárbaros individualistas. Na opinião de Chelifer ele tinha muita prática nisso.
— No começo era a mulher — resmungou Cascal — e certamente também estará
no fim. No meio rastejamos nós homens, ficando felizes com qualquer migalha.
Joak desapareceu em algum lugar na penumbra que enchia a grande nave.
2

Protegidos pela escuridão, tinham chegado ao edifício, encontrando um caminho de


fuga e entrando no parque circular. Estava vazio, cem por cento vazio. Só se ouvia o
ruído de alguns animais — seria um excelente esconderijo, caso se vissem novamente em
situação perigosa.
— Do outro lado do parque, como você sabe, há uma espécie de estrada —
cochichou Tahonka No. — Por lá passam planadores automáticos e outros dirigidos por
pessoas.
Tahonka coçou a nuca e cuspiu. Os amigos caminharam depressa na beira de um
caminho que passava entre árvores bem-cheirosas muito velhas.
Será que devemos capturar um planador?
Tahonka parou, puxou Sandal violentamente pelo braço e pôs o dedo nos lábios.
Virou a cabeça devagar, farejando, e descontraiu-se.
— Não é nada — disse e acrescentou: — Nem penso em atacar um planador, seu
jovem idiota. Em vez disso poderíamos ficar de pé à frente do edifício maior e gritar:
Viemos para vingar-nos. Que tal a ideia?
Sandal engoliu a praga que trazia na ponta da língua e disse em voz baixa:
— Por quê?
— Precisamos saber que tipo de inimigo e guarda teremos de enfrentar. Certamente
aqui a vigilância não é tão rigorosa, pois ninguém acredita que alguém tenha escapado a
todas essas armadilhas mortais. Além disso, quem seria capaz de erguer a mão contra os
servos-mor?
— Você e eu — respondeu Sandal.
Finalmente alcançaram a faixa iluminada da estrada. Limitaram-se a examinar os
arredores e o que havia nas máquinas. Sandal viu três espécies de desconhecidos.
Aqueles pertencentes ao povo dos ossudos; pareciam ser médicos como Tahonka
No, ou então auxiliares de medicina. Os planadores em que viajavam mostravam
distintivos especiais. E todos os desconhecidos tinham as plaquetas amarelas no lugar em
que ficava o cérebro.
Também havia seres espantosamente humanóides. Eram esbeltos, quase magros,
com uma longa juba branca e braços muito finos e compridos com seis dedos. Também
usavam a plaqueta, mas ao contrário dos outros do lado esquerdo da cabeça.
Os pequenos mudos purpurinos ele já conhecia. Também existiam em grande
número e ao que parecia, faziam trabalhos pouco importantes.
Finalmente, para sua surpresa, Tahonka descobriu grande número dos seres de oito
pernas e braços aos quais dera o nome de instaladores do “Enxame”, contra os quais ele e
os robôs tinham travado lutas encarniçadas em Teste Rorvic.
— Até há patrícios seus, No! — disse Sandal. — E agora? Aqui você manda, como
já combinamos.
— Vamos procurar um lugar onde possamos sair do parque e chegar mais ou menos
ali — disse o ossudo apontando para o outro lado da estrada.
— Não me diga que vamos atravessar a estrada andando!
— Não. Seria suicídio.
Todos os seres que tinham visto usavam a plaqueta amarela no lugar atrás do qual
ficava o cérebro. Sandal também precisava de uma plaqueta igual a esta e só podia roubá-
-la de um ser parecido com ele.
O ossudo disse em tom pensativo, quando desapareceram de novo na sombra e
seguiram para o leste, em direção a uma luminosidade distante:
— Dentro desta cúpula há seres com os níveis de inteligência mais diferentes. Acho
que os servos-mor reuniram aqui os membros dos povos escravos e fazem com que eles
os sirvam. Afinal esta ilha faz parte de um mundo clínico e de repouso.
— Deve ser isso! — disse Sandal.
Continuaram andando até que clareou tanto que não encontravam mais esconderijo.
O ossudo descobriu um recinto subterrâneo no qual podiam entrar. Ficaram escondidos
nele por enquanto.
Depois de meio dia Sandal sentiu sede e procurou água.
O ossudo reteve-o dizendo que sabia fazer isso melhor. Tirou o grande cantil preso
ao cinto de Sandal e desapareceu nos longos corredores dos subterrâneos. Sandal esperou
pacientemente.
Finalmente, depois de mais uma hora, ouviu passos.
A placa de aço na qual havia um desenho que chamava a atenção deslizou para o
lado — e Sandal viu à sua frente um dos seres parecidos com ele.
— Quem é você? — perguntou o desconhecido. — E o que veio fazer aqui?
Não pôde dizer mais nada.
Sandal largou o arco e saltou para a frente. O desconhecido desviou-se para o lado e
o golpe que Sandal pretendia aplicar atingiu o vazio. Podia acontecer tudo, menos o
alarme. Sandal virou-se instantaneamente e bateu com o punho na cabeça do homem alto.
Houve uma luta.
Os adversários tinham mais ou menos a mesma força. Mas não era só a vitória que
estava em jogo, mas também a vida de Sandal e Tahonka. Sandal atirou o adversário
contra a parede, caiu sobre ele e levou um soco no tórax que quase lhe tirou o fôlego.
Arrancou a faca que trazia no cano da bota, saltou de novo para a frente e foi detido por
uma mesa que o desconhecido colocou entre si e Sandal.
Sandal deu um salto por cima da mesa, virou-a e agarrou as pernas do
desconhecido. Um puxão, e este bateu ruidosamente no chão.
Sandal caiu sobre ele e apertou-lhe a garganta, enquanto com um dos pés procurava
a faca.
Saiu voando que nem um projétil, deu uma cambalhota no ar e pegou a faca.
O desconhecido acabara de levantar. No momento em que Sandal avançava
gritando, pôs a mão no cinto e tirou uma arma.
O desconhecido desviou-se para o lado e o primeiro tiro saiu com um estrondo.
— Sou seu amigo, idiota! — gritou na língua que aprendera de No através da
tradutora.
— Amigo! Aqui não existem amizades.
Sandal atirou o corpo contra o joelho do adversário e o segundo tiro só chamuscou o
tecido da manga. O desconhecido recuou lentamente em direção à porta. Tahonka No
apareceu atrás dele e fez um movimento rápido.
O desconhecido caiu gemendo.
— Cheguei bem na hora! — disse Tahonka e atirou o cantil cheio para Sandal.
Limpou a faca nas roupas do morto enquanto Sandal se abaixava para tirar o ponto
ocre da cabeça do homem e grudá-lo em sua testa.
— Como aconteceu isso? — perguntou No enquanto escondiam o cadáver.
Sandal explicou.
— Vamos seguir adiante! — insistiu Tahonka. — Deixe-me pensar... as galerias de
águas pluviais ou os dutos de energia subterrâneos. Preciso encontrar um deles.
Sandal voltou a guardar a faca, pegou a arma do desconhecido e apagou da melhor
maneira possível os sinais da luta. Ele e seu adversário tinham-se encontrado por acaso,
mas fora um acaso que poderia ter revelado sua presença.
— Atrás de mim — disse o ossudo.
Procurou, mas parecia que sabia perfeitamente o quê. Talvez a planta da casa
correspondesse à que ele conhecida de Gedynker Crocq. Era possível. Os dois correram
por corredores vazios, fizeram com que escotilhas se abrissem, desceram escadas e
rampas e finalmente, depois de muitas curvas e da utilização de um pequeno elevador,
viram-se bem embaixo da superfície.
— É um pavilhão no qual estão preparados planadores? — cochichou Sandal.
— É. Trate de distinguir as máquinas dos seres que estão aqui. Se um desses seres
vir você, mostre-lhe o ponto de sinalização e passe depressa.
Viram à sua frente um gigantesco pavilhão de teto baixo, ou melhor, um longo
corredor central com boxes de ambos os lados. Havia pelo menos trezentos planadores de
todas as formas e tamanhos. Robôs vigiavam os veículos e cuidavam de sua manutenção.
Os dois amigos passaram pelos boxes.
— Aonde vamos? — cochichou Sandal.
— Canto esquerdo à frente — sussurrou Tahonka No.
— Entendido.
De vez em quando examinavam um dos boxes. Em geral estavam às escuras e os
planadores não eram vigiados. Mas outros estavam bem iluminados e cheios de
movimentos. Sandal viu alguns instaladores do “Enxame” e muitos robôs. Ruídos
fizeram-se ouvir. Motores zumbiam, comandos estalavam, ferramentas batiam emitindo
sons agudos. Os dois amigos chegaram ao destino sem incidentes e o ossudo fez com que
mais uma escotilha se abrisse.
Estavam numa sala de máquinas.
— Ventilação, condicionamento e aquecimento de ar, esgoto, cabos de energia —
enumerou o ossudo. — Se usarmos este corredor passaremos por baixo da estrada e
sairemos perto de um silo, onde estaremos em segurança por bastante tempo.
— Está bem.
Saíram correndo. A sua frente estendia-se o teto auto-iluminante de um corredor
não muito mais largo que os ombros de Tahonka No. Parecia estender-se ao infinito. As
águas servidas borbulhavam sob as botas dos dois homens e um misterioso crepitar
acompanhou-os nos vinte minutos seguintes.
— Não falta muito — resmungou Tahonka No. — Logo estaremos lá.
Se Sandal não se tinha enganado na direção, deviam ter-se aproximado uns três mil
metros do centro da cúpula. Era um resultado inesperado, mas era a primeira vez que se
deslocava embaixo de uma cidade, por suas veias energéticas.
Pararam numa sala de máquinas e enfiaram-se num pequeno elevador.
— Vamos subir. Na cobertura enxergaremos mais longe.
Dali a meia hora estavam deitados embaixo da cúpula achatada de um sistema de
exaustão e viam a maior parte da cidade. Distinguiam-se perfeitamente cinco anéis
diferentes, em cujo centro ficava o edifício gigantesco, cercado por uma confusão de
construções menores.
— Ali fica o centro exato da cidade coberta pelo campo energético, mas não da ilha
— disse Tahonka No.
Mais três quilômetros ou um pouco mais; parecia que Sandal errara os cálculos
quando vira a cúpula pela primeira vez.
— Há cinco sistemas diferentes.
— É isso mesmo. E temos de enfrentar cada um deles — tal qual fizemos com as
faixas da morte lá fora.
As construções centrais eram cercadas por um parque bem tratado. Sandal viu pelo
binóculo muitas pessoas passeando e seres suspensos no ar que não pôde identificar
perfeitamente. Em toda parte havia robôs montando guarda. Mas não se via nenhum
purpurino.
Depois vinha um círculo matematicamente exato formado por cúpulas negras que
pareciam encolher-se sob o edifício central. Dessas cúpulas partiam longos raios
energéticos que levavam ao centro.
O terceiro anel era formado por uma muralha de edifícios maciços interligados por
complicados sistemas de pontes.
O quarto círculo era formado por um parque menos extenso, menos grandioso, em
que se viam milhares de casas lado a lado ou uma em cima de outra, penduradas em
barras.
A quinta faixa, que ficava a um tiro de arco da cobertura, era mais uma zona da
morte.
— Incrível! Um anel de metal! — espantou-se Sandal.
Sandal pegou o binóculo e tentou avaliar a distância entre o lugar em que estavam e
o início da faixa da morte, que brilhava ao sol como um lago de mercúrio.
— É um espetáculo formidável — respondeu Tahonka No. — Já viu que temos de
avançar mais devagar e ser mais prudentes?
— Sem dúvida.
Sandal não estava muito bem-humorado. Os dois desconhecidos lhes haviam
fornecido as plaquetas, mas também tinham mostrado como era fácil serem descobertos.
Não estavam no mundo de Sandal, na paisagem aberta. Os edifícios estranhos deixavam
o caçador confuso, uma vez que não conhecia sua finalidade e instalações e devia esperar
um segredo atrás de cada parede ou chave. Sacudiu-se contrariado, removeu um inseto do
dorso da mão e disse:
— Todos estes edifícios devem estar a serviço do centro. Este centro é uma coisa
que eu chamaria de clínica ou hospital, parceiro?
Tahonka tirou o binóculo de sua mão, encostou-o ao olho esquerdo e disse enquanto
olhava por ele:
— Eu o chamaria assim. Mas ainda penso para descobrir por que este lugar é
chamado a Ilha da Felicidade.
— Vamos descobrir — ou morrer — respondeu Sandal.
No lugar em que estavam não havia nada de interessante. No espaço que ficava
entre a gigantesca eclusa e a faixa metálica sobre a qual se moviam várias máquinas
parecidas com insetos havia muitos pavilhões e passarelas, que serviam para levar
abastecimentos e conduzir energia.
Sandal perguntou mais uma vez:
— O que faremos, Tahonka?
— Agiremos devagar e refletindo bem — respondeu o ossudo.
Tahonka apontou para o anel brilhante que vinha logo após uma faixa verde e se
ligava diretamente ao conjunto residencial, sem qualquer espécie de marcação.
— Esperaremos que escureça para sair do silo e arrastar-nos até o limite da faixa.
Acho que no lugar em que existe uma faixa de mortes a maior parte dos edifícios não tem
subterrâneos nem corredores. Teremos de passar pela faixa, não embaixo dela.
— Teremos de esperar de novo! — disse Sandal contrariado.
— Esperar faz parte de um bom caçador. É uma citação de Sandal Tolk — disse
Tahonka No e soltou sua risada característica.
***
O sol mergulhou no ocidente, atrás do mar circular.
Os raios vermelhos ardentes, ligeiramente brumosos, que penetravam na cúpula,
diminuíram. Em compensação voltou a clarear — era aquela claridade ligeiramente
difusa, parecida com o luar, que partia da parede interna da cúpula gigantesca e
aumentava de intensidade. Os parques transformaram-se em superfícies pretas cheias de
faixas e sombras ainda mais pretas. Em toda parte as luzes se acendiam. Os pavilhões e
edifícios transformaram-se em gigantes escuros encolhidos, que se fundiam numa massa
confusa com os edifícios mais próximos.
Tahonka No e Sandal levantaram, bateram a poeira das roupas e certificaram-se de
que as plaquetas de identificação continuavam grudadas em sua testa. Depois correram
abaixados para uma descida, olharam para os lados e desapareceram atrás do alçapão.
— Vamos descer pelo mesmo elevador — disse Sandal. — Será mais rápido e
ninguém nos atrapalhará.
A febre de caçador voltara a despertar nele. Voltou a movimentar-se como fizera há
vários dias: depressa e com cuidado. O problema de como atravessar a faixa da morte
ocupava sua mente sem que se desse conta disso. Sabia que mais uma vez seriam bem-
-sucedidos, porque o inimigo não conhecia seus métodos de luta.
— Entre! — disse Tahonka No laconicamente.
Os dois ficaram de pé na cabina do elevador, apertaram o botão do primeiro
pavimento e desceram em alta velocidade. O ossudo constatou que o elevador raramente
era usado, pois não havia sinais de desgaste. Quando freou com força, os dois
compensaram a pressão dobrando os joelhos. Finalmente a porta escorregou para o lado.
Tahonka olhou para fora e fez um sinal.
— Não há ninguém por aqui. Depressa! Para lá.
Apontou para uma espécie de escadaria com paredes de vidro, que deixou Sandal
surpreso. Era bem iluminada, de formas elegantes, bem diferente das escadarias do
castelo Crater. O caçador olhou para os lados e saiu correndo. Com um salto os dois
chegaram a uma porta de vidro que se abria para o parque sob um telhado artístico.
Havia um grupo de instaladores do “Enxame” parado à frente da entrada, discutindo
em gritos agudos e penetrantes. Os numerosos olhos abriam-se e fechavam-se num ritmo
perturbador.
— Vamos passar por eles depressa e entrar na sombra do parque! — disse Tahonka.
— Mas...
— Rápido. Senão acabam ficando desconfiados.
Sandal pôs a mão na coronha da arma mortal guardada embaixo da jaqueta, fez um
sinal para o amigo e caminhou a seu lado para a placa de vidro que deslizava para o lado
à sua frente. Aproximaram-se dos instaladores do “Enxame”, desviaram-se um pouco e
fizeram questão de mostrar seus pontos de identificação. Ninguém interessou-se por eles
— certamente os servos não sabiam que povos estavam reunidos ali.
Tahonka não tinha nada que chamasse a atenção, pois havia muitos membros de seu
povo na ilha. Sandal também não, porque atirara a meia manta do morto sobre o ombro.
Sandal obrigou-se a não olhar para trás. A cada passo que davam os fragmentos da
conversa que ouviam eram mais baixos. Os nervos excitados de Sandal acalmaram-se
quando saíram do caminho com um salto e mergulharam na sombra.
— Estou no meu mundo... — disse aliviado. De um instante para outro sentiu-se
seguro.
Atirou para trás a manta, entesou ligeiramente o arco e fez um giro lento de
trezentos e sessenta graus. Seus olhos pareciam capazes de perfurar a escuridão, a ponta
da flecha apontava para um inimigo invisível. Não havia ninguém por perto, ninguém se
ocultava em seu esconderijo.
Os dois arrastaram-se sem fazer ruído para o limite da faixa, que de fato parecia um
lago congelado. Todas as luzes, até mesmo os desenhos que mudavam constantemente na
distante torre central, refletiam-se na superfície polida.
— Espere... — disse Tahonka, abaixou-se e procurou com os dedos farfalhando
junto a seus pés. Encontrou uma pequena fruta quadrangular e atirou-a cuidadosamente
sobre o metal em sentido paralelo à sua superfície. A fruta rolou alguns metros, girou e
agitou-se de repente que nem um pingo de água numa chapa de fogão quente e acabou se
desmanchando numa língua de fogo violeta.
Sandal estremeceu.
— Assim seria nossa morte — disse o amigo experiente, que a cada dia recuperava
um pouco da auto-segurança que perdera na selva. A luta contra as superstições e os
tabus dos senhores desconhecidos parecia ter terminado nos últimos tempos, mas também
era possível que os problemas que encontravam pelo caminho os mantivessem tão
ocupados que não tinham tempo para pensar neles.
— Assim morreríamos se nos arriscássemos a pôr os pés na placa — repetiu Sandal.
Lembrou-se da esfera de vidro, mas o método não podia ser usado aqui.
— Onde há uma vontade firme também há um caminho — resmungou e apontou
para um pequeno robô que se aproximava. A máquina voava numa rota cujo modelo não
podia ser reconhecido, dando voltas e descrevendo curvas sobre o metal. Havia oito ou
nove máquinas de limpeza diferentes ligadas ao órgão de controle parecido com uma
semi-esfera.
— Vejo sua vontade, mas ainda não descobri nenhum caminho — disse Tahonka
No e viu a máquina aproximar-se de um montículo de pó deixado pela fruta queimada.
Finalmente Tahonka No compreendeu e soltou uma gargalhada.
3

Sandal tinha à sua frente uma pedra grande, quatro frutas de bom tamanho e um
punhado de galhos secos para atrair o robô.
Primeiro atirou a pedra entre o lugar em que estava e a máquina que exercia uma
sucção e varria a superfície. A pedra arrebentou com um estrondo surdo, transformando-
-se numa espécie de farinha que começou a borbulhar e soltar gases. A máquina
aproximou-se três metros, retirou a pedra e poliu assiduamente o metal naquele lugar.
— Quem será o primeiro a arriscar a travessia? — resmungou o ossudo.
Sandal atirou uma fruta, que fez a máquina aproximar-se mais dois metros.
— Tanto faz — respondeu. — Um dará cobertura de fogo ao outro se for
necessário. Mas não acredito que seja... Não vejo nem vi ninguém que pudesse descobrir-
-nos.
Mais uma fruta foi carbonizada.
Mais uma vez o robô aproximou-se. Ficou suspenso que nem uma aranha a um
metro do metal polido e quando era necessário fazia sair um de seus numerosos braços
para sugar, soprar ou varrer. Era um robô de limpeza feito especialmente para essa
armadilha mortal; a estética até mesmo de um mecanismo de destruição parecia justificar
o dispêndio para os servos-mor. “Outros planetas, outros usos”, pensou Sandal meio
alegre e atirou as folhas à frente dos pés.
— Estou aqui — já comecei a recolher as iscas — disse o ossudo.
— Ótimo. Tentarei...
Sandal teve uma ideia ainda melhor e executou-a quando a máquina ainda estava
ocupada na remoção dos últimos vestígios. Enfiou dez ou doze frutas nos bolsos, além de
uma pedra grande. Em seguida disse:
— Vou mandar de volta o planador, Tahonka. Vamos lá!
Sandal equilibrou-se sobre um pé, deu um salto bem estudado com o arco nas costas
e foi parar bem no centro da semi-esfera. Apoiou-se sobre dois braços da máquina que
não se tinham mexido durante todo o tempo e agachou-se enquanto tirava o arco das
costas e pegava uma flecha.
— Vai começar!
Prendeu a flecha entre os dedos, pôs a mão no bolso e atirou uma fruta a dez metros
de distância. O robô circulou sobre o lugar com a sombra escura de Sandal agachada em
suas costas, visou a fruta e estendeu um dos braços em sua direção.
Sandal segurou-se meio ajoelhado, mantendo o arco com uma ligeira inclinação.
Naquela altura os raios malignos não faziam efeito. Devagar, em quatro etapas, o
robô girou de um lado para outro, removeu os vestígios e aproximou-se do lado oposto.
Uma pedra rolou sobre o metal — um ruído que chamava a atenção.
“Chama a atenção demais”, pensou Sandal, mas já era tarde.
Um pequeno planador aproximou-se em alta velocidade do outro lado da faixa
metálica e Sandal reconheceu as cabeças estreitas de três purpurinos. Tahonka No
cochichou atrás dele:
— Cuidado! À sua direita.
Sandal disse devagar e em tom calmo:
— Nada de armas energéticas! Darei um jeito. Só entre em ação se houver uma
grande emergência.
— Entendido.
Sandal estava agachado sobre o robô que nem um animal pronto para dar o salto.
Não era possível identificá-lo perfeitamente. Entesou a corda do arco, segurou-o quase na
horizontal e enquanto o robô descia os últimos metros que o separavam da pedra que já
começava a desmanchar-se, a primeira flecha saiu chiando e perfurou o tórax de um
purpurino.
— Vingança pelo castelo Crater! — chiou Sandal e uma raiva selvagem tomou
conta dele.
Pôs a mão por cima do ombro quando o planador freou e a distância entre ele e a
superfície metálica se tinha reduzido para três metros.
Mais uma flecha.
Quando o robô fez um giro Sandal atirou a terceira flecha. Depois deu um salto
gigantesco que o levou ao chão e correu para o planador parado. Parou a poucos metros
dele e atirou rapidamente três frutas sobre o metal.
A máquina voltou, obedecendo à programação, afastando-se na direção em que
estava Tahonka No.
Sandal tirou com uma pressa enorme as três flechas dos corpos dos purpurinos, não
deu atenção à voz metálica saída de um alto-falante embutido e encostou o pé de um dos
mortos no pedal do acelerador. O planador saiu em alta velocidade desaparecendo na
escuridão.
Mais um salto — e Sandal ficou encostado num tronco cheio de nós, a cinco metros
da superfície metálica. Viu a máquina voltar devagar e descrevendo curvas para perto de
Tahonka No. Nada indicava que pouco antes houvera uma luta mortal nesse lugar.
Ouviu-se uma explosão surda e algumas vozes roucas começaram a gritar. Parecia um
cenário de fantasmas.
A máquina alcançou a extremidade oposta da superfície metálica. Tahonka No
saltou sobre a cúpula. Enquanto isso Sandal abaixou-se e jogou algumas frutas entre o
lugar em que estava e o aparelho. Devagar, com um zumbido ligeiro, com uma exatidão
pedante e obstinada, o aparelho aproximou-se, sugou os restos da fruta e poliu a
superfície metálica. Sandal olhava atentamente em volta, com uma flecha cuja ponta
ainda estava sangrenta e pronta a ser disparada novamente.
— Ele vai conseguir — disse. — Fará a travessia. Calma, muita calma, parceiro.
As últimas palavras foram ditas em voz muito mais alta. No momento em que
Tahonka No se atirou para a frente Sandal saltou da sombra e puxou o amigo para longe
da extremidade da perigosa placa.
— Pronto! — disse. — Nosso estratagema deu certo. Como estas máquinas são
estúpidas!
— É uma qualidade que aproxima as máquinas dos homens — resmungou o
ossudo. — Acha que tem forças para continuar?
Tahonka apontou para o parque habitado, no qual se via o brilho de superfícies
iluminadas.
— Naturalmente. Desde que eu compreenda como enfrentaremos este obstáculo.
Tahonka No explicou.
Parecia que nesse lugar moravam ou trabalhavam os escravos privilegiados dos
servos-mor do Y’Xanthymr. Portanto, pertenciam a vários povos com condições de vida
diferentes. Será que suas residências possuíam alguma proteção, por meio de máquinas,
animais ou outros recursos?
— Não sei.
Mais uma vez defrontavam-se com um enigma. A face interior da cúpula, que
ficava do outro lado, era um céu artificial, que formava a cortina ligeiramente
fluorescente para esta área cheia de construções em forma de cubo penduradas numa
confusão de barras. Cordas grossas estendiam-se entre os diversos grupos. Era uma
arquitetura estranha, obra de cérebros que não se tinham formado nessa galáxia.
— Sandal?
— Sim — disse o jovem guerreiro.
Caminhavam na beira de uma faixa verde que formava a terça parte de um círculo e
consistia de plantas bizarras de todos os tamanhos. Atrás do verde erguiam-se os cubos
encaixados. De vez em quando os amigos paravam e viam as silhuetas dos desconhecidos
andando atrás das vidraças coloridas.
— Temos de passar ali. Aqui há um muro.
— Compreendi.
Quando chegaram ao fim da faixa verde, os dois pararam à frente de um muro de
pedras lisas. Não viram equipamentos elétricos nem fotocélulas. O muro tinha mais ou
menos dez metros de altura. Não havia possibilidade de transpor aquele lugar, a não ser
voando.
— Olhe ali. Aproveitaremos as plantas e as traves em que estão penduradas as casas
— disse o jovem guerreiro.
— Você é melhor para subir nelas.
Os amigos retiraram-se e estudaram com toda calma as possibilidades que tinham.
Sandal fez o começo. Subiu por um tronco inclinado cheio de espinhos e gigantescos
tocos de galhos e com um salto chegou às traves. O arco bateu no metal, produzindo um
som fraco parecido com uma batida de sino. Sandal prendeu a respiração e segurou-se na
trave que nem um gato.
Ninguém ouvira nada.
O guerreiro fez um sinal e Tahonka No seguiu-o pelo mesmo caminho. Dali a
instantes estavam lado a lado, quietos, dez metros acima do chão.
— Temos de alcançar a sétima casa lá em cima. De lá podemos passar por cima do
muro.
— Também acho — disse o ossudo. — O que estamos esperando?
Os dois passaram pelas traves ao lado das casas, equilibraram-se em cima de cabos
inclinados e abaixavam-se toda vez que passavam pelas janelas. As construções tinham
duas finalidades. Nelas se morava e se trabalhava.
Sandal e Tahonka No viram muitos daqueles estranhos instaladores do “Enxame”
com oito membros, que estavam trabalhando com desenhos de construções ou coisas
parecidas. A tecnologia empregada era tão estranha que Sandal não compreendeu nada.
— O que estão fazendo? — cochichou quando estavam caminhando lado a lado na
beirada de uma cobertura. Destacavam-se como vultos negros na luz difusa do interior da
cúpula.
— Não sei! — respondeu o ossudo.
De repente Sandal fez um movimento com o braço para deter Tahonka No. Ficaram
de pé lado a lado, com suas sombras se confundindo.
— Ouvi um ruído de que não gostei — disse o caçador e pegou o arco. Seus nervos
e músculos estavam tensos. Sandal parecia um animal selvagem farejando, pronto para
dar o salto.
— Parece o choro de animais pequenos.
Sandal lembrou-se dos cães ou filhotes de lobos usados em Exota Alfa para
procurar prisioneiros foragidos. Forçou o ouvido e distinguiu uma série de ruídos. Um
portão ou porta se abrindo, alguns comandos proferidos numa língua estridente,
finalmente o andar lento de muitos pés pequenos. Finalmente houve um silêncio
prolongado, interrompido por um chiado rouco perto deles.
— Se você pensa que soltaram animais farejadores, você tem razão — disse o
ossudo em voz baixa. — Mas eles só podem procurar no chão — não são capazes de
subir em árvores e outros lugares.
Sandal acenou com a cabeça.
— Tomara.
Os dois seguiram adiante. Passaram por um telhado e ao longo de um corredor entre
dois conjuntos de casas, que estava vazio. Em seguida atravessaram um pequeno parque
que ficava em cima de uma placa redonda, alguns metros acima do chão. Quando
passaram por um chafariz e ouviram o ruído da água, Sandal parou e encheu a mão de
água. Começou a beber.
— Vamos. Não pare. Ainda temos de atravessar os edifícios grandes que ficam lá
adiante — insistiu o amigo.
— Está certo, está certo — disse Sandal contrariado.
Estava cada vez mais convencido de que todos as manifestações de vida desse povo,
ou melhor, de todos os membros do “Enxame”, eram ditadas pelo instinto selvagem de
conservação da vida. Era como uma leoa defendendo os filhos depois de ter dado cria.
Como uma colônia de formigas construindo uma montanha em tomo do corpo gigantesco
da rainha e tentando defender-se exasperadamente contra tudo que podia perturbar esses
instintos. Eram impelidos pelo instinto — e quando a vida dos senhores do “Enxame”
estava em jogo, todos os povos escravos deviam trabalhar para esta finalidade com tudo
que tinham.
Eram que nem animais seguindo um guia. Como uma massa gigantesca de
lemingues atravessando a galáxia, que mal podiam ser responsabilizadas pela devastação
que causavam.
Mas havia um meio de exercer a vingança sem ir contra estas ideias.
Era necessário encontrar o príncipe do “Enxame” e obrigá-lo...
Sandal tropeçou numa coisa que não viu muito bem o que era.
— Cuidado! — chiou o ossudo. — Cuidado.
Depois disso ouviram uma espécie de zumbido que durava um segundo, com pausas
de dois segundos.
— Alarme!
No mesmo instante os animais começaram a fungar um andar abaixo deles e a uivar.
— Rápido — em frente — disse Tahonka e saiu correndo. Atravessaram um atrás
do outro um corredor cumprido cheio de curvas, que se estendia por cima de uma ponta.
Embaixo deles estavam as copas de árvores pequenas. No lugar em que a ponte e o cabo
duplo que sustentava a estrutura se cruzavam, o ossudo desviou-se lateralmente por cima
do alambrado.
Sandal quis segui-lo, mas neste instante apareceu um dos pequenos purpurinos do
outro lado do corredor. A pele parecia consistir exclusivamente em placas ósseas.
“Parecem telhas”, pensou Sandal. Abaixou-se sem interromper a corrida, tirou uma faca
do depósito de mercadorias e atirou-a com toda força. No mesmo instante deixou-se cair.
O arco escorregou no chão liso.
Um tiro passou pouco acima da cabeça de Sandal, abrindo uma trilha larga no chão.
Depois de terminada a operação, Sandal viu o purpurino cair lateralmente contra o
alambrado, amolecer o corpo e ficar pendurado nas travessas. Sandal deu um pulo, jogou
o cadáver para baixo e não esperou pelo ruído do impacto. Seguiu Tahonka No e correu
pelo cabo grosso com muita segurança, subindo uns dez metros. Só então perdeu o
equilíbrio.
— Pegue minha mão.
— Obrigado.
Tahonka No recolocou-o na posição vertical e os dois subiram devagar pelo cabo
duplo, segurando-se um no outro. Sentaram na estrutura de sustentação da ponte, atrás de
galhos e na sombra de uma casa.
— Tropecei — disse Sandal. — Aí disparou
o alarme.
Em torno deles reinava uma tremenda
agitação. Em toda parte eram ligadas luzes de
várias cores, instaladores do “Enxame” e as
criaturas tão parecidas com Sandal saíam pelas
portas e os pequenos animais farejadores
estraçalharam rosnando e com sons gulosos o
cadáver do purpurino.
— Você o matou? — perguntou Tahonka
num tom que quase chegava a ser indiferente.
Livrara-se de todos os pensamentos e sentimentos
estranhos e para ele sua vida chegara ao fim —
acompanharia o amigo até o fim e o ajudaria,
fosse como fosse este fim.
— Sim, com uma faca — cochichou o
guerreiro.
— Com sua faca? Eles saberão que há
intrusos quando o encontrarem.
O riso de Sandal soou fracamente na
escuridão.
— Não usei minha faca. Foi tirada do equipamento que você pediu no silo de
mercadorias. É uma arma deles mesmos.
— Você é danado de inteligente, parceiro.
— Pensei nisso enquanto era tempo — confirmou Sandal e olhou para trás.
Estavam muito bem protegidos, mas os primeiros raios de luz mostrariam aos
farejadores onde estavam. Mas por enquanto as buscas se concentravam nos lugares em
que Sandal tropeçara e onde o cadáver caíra ao chão.
Os uivos e latidos dos animais farejadores cresceu num inferno quando o cadáver
foi removido. Alguém desligou o alarme. Vozes exaltadas se fizeram ouvir. Sandal
desligara a tradutora, para que o aparelho não pudesse revelar sua posição. Entendia
alguns grupos de palavras e teve a impressão de que os perseguidores acreditavam que
tivesse sido um acaso ou um engano. De fato, não conheciam sua maneira de lutar.
— Depois que tudo acalmar, seguiremos por outro caminho — disse Tahonka No.
— Naturalmente.
Esperaram mais ou menos meia hora. Aproveitaram o tempo para descansar. Depois
disso tudo voltou a ficar quieto como era antes. Os dois levantaram, desceram devagar
pela ponta da estrutura de sustentação e examinaram atentamente um possível caminho
de fuga.
— Ali, por cima destas casas, e depois passando junto às quatro pontes que se
cruzam. Desceremos para o parque e iremos para a parede dos fundos da primeira casa —
certamente encontraremos uma abertura.
Sandal passou os olhos pelo trecho sugerido. Chegou à conclusão de que seu amigo
realizara uma obra-prima de estratégia. Com exceção da posição junto à parede dos
fundos da casa maciça, tinham três ou quatro caminhos de fuga em cada lugar. O caçador
levantou os olhos acima das fachadas da casa e viu a face voltada para ele do edifício
central, que era o rei das construções.
— Olhe essas cores.
— Estou vendo — disse Tahonka No. — São as cores da chefia daquilo que você
chama de “Enxame”.
A catedral gigantesca, uma combinação de torres e superfícies planas, de inúmeras
sacadas com janelas e elementos de ligação, brilhava em alguns lugares numa luz que
mudava constantemente. Todas as cores do espectro estavam presentes, e os desenhos
formados pelos jogos de cores mudavam mais depressa que a respiração de um ser
humano.
“Uma beleza bárbara, assustadora, digna de um soberano poderoso e sem
escrúpulos”, pensou o jovem bárbaro.
— O que significam essas cores que mudam constantemente, parceiro? —
cochichou, muito impressionado.
— Não sei. Se exprimem alguma coisa dos sentimentos de quem se encontra nessa
torre, então ele deve estar muito nervoso.
— Compreendi — disse Sandal.
Teve de fazer um esforço para não contemplar a beleza brilhante. Mas acabou
baixando a cabeça e examinando mais uma vez o caminho que teriam de percorrer.
— Vamos! — disse.
Sandal saiu à frente.
Primeiro equilibrou-se com os braços abertos em mais um cabo transversal da
espessura de um braço humano, saltou para dentro de uma estrutura e correu em
ziguezague para o jardim suspenso. Tratava-se de uma área retangular cheia de flores e
arbustos, cuja floração exalava um perfume tão forte que perturbava o pensamento. Além
disso havia tipos estranhos de grama, que também não tinham sido criados em Vetrahoon
— aquilo parecia um mundo diferente, importado.
O caçador alcançou o limite do parque, agachou-se, numa estrutura e tentou avaliar
a altura e a direção do último salto. Tahonka alcançou-o e ficou agachado atrás dele.
— Está vendo alguma coisa? — cochichou ao ouvido de Sandal.
— Por enquanto nada.
Os olhos de Sandal penetraram na escuridão, registravam com a maior precisão de
todas as folhas no círculo de luz das luminárias e nas superfícies iluminadas. Não havia
nenhum movimento, com exceção de um vento constante que mexia com as folhas. De
onde vinha esse vento, já que a cúpula era fechada que nem uma barraca?
De onde vinha a chuva que caíra há quatro dias?
E os relâmpagos?
Sandal não encontrou nenhuma explicação. Saltou.
Quando Tahonka No dobrou os joelhos para amortecer os impactos, viu ao lado de
Sandal uma longa sombra branco-prateada, cujas presas apontavam exatamente para a
garganta do amigo. Grandes olhos capazes de enxergar de noite brilharam quando o
ossudo soltou um grito rouco de raiva e atirou-se para a frente
4

A tarefa dos tklaons fora perfeitamente fixada por aqueles que os haviam criado e
adestrado. Além disso o instinto do animal não admitia nenhuma possibilidade — ou ao
menos muito poucas — de outros atos a partir da imobilidade completa. Cabia-lhes vigiar
as flores golsord, uma espécie rara, com as quais eram fabricado, depois da fecundação, o
perfume destinado aos servos-mor do Y’Xanthymr.
“Vigie-o Letos!”, era o comando que lhes fora dado.
Depois que a luz desaparecera, o tklaon passara o tempo à espreita num galho quase
horizontal. Fios muito finos pareciam estender-se entre as diversas flores grandes e o
centro olfativo multiplicado por quatro do animal. Se aparecesse uma das mulheres,
talvez uma das companheiras dos purpurinos, para roubar uma flor, o tklaon a expulsaria
causando-lhe feridas graves.
De repente um dos fios invisíveis foi rompido.
O tklaon abriu os olhos, a pupila aumentou em proporções gigantescas, e viu um
homem que usava o sinal zuninte, mas também viera para roubar uma flor. Ou várias.
Para sua mulher, naturalmente, uma vez que os homens não costumavam enfeitar-se com
flores de golsord. O animal endureceu os músculos, fez seus cálculos sem pensar de
verdade, fixou a trajetória de voo e saltou.
Durante o salto, quando os estimulantes da agitação e da luta atravessaram o
sangue, a cor midry verde-escura mudou e o tklaon tornou-se branco como acontecia toda
vez que lutava. Fez pontaria na artéria principal, pôs à mostra as presas e bateu com a
boca num bastão de madeira duro.
Quando alguém soltou um grito perto dele, o lobo das árvores mudou de tática.
Deixou-se cair e atacou a partir do chão, desta vez num ângulo ascendente.
— Cuidado! — disse Tahonka No e puxou a faca.
Sandal virou-se que nem um relâmpago, também pegou a faca e esticou o braço
esquerdo. O tklaon saltou e bateu com os dentes na braçadeira de couro.
A mão de Sandal desceu com a força de uma rocha caindo e enfiou a lâmina de aço
dois palmos no corpo do animal, logo atrás da cabeça.
O tklaon chorou, e soltou um miado prolongado.
Neste momento o ossudo chegou perto de Sandal.
— Para trás! — disse em tom áspero.
Agarrou as patas dianteiras do animal. As unhas compridas estavam presas no
tecido da jaqueta, que era parecida com a que Rhodan dera ao jovem guerreiro. Tahonka
No fechou impiedosamente os punhos com os dois dedos polegares em sentido contrário.
Com um forte solavanco tirou o animal de cima do braço de Sandal e logo embaixo dos
joelhos as pernas traseiras do animal se agitaram sem causar nenhum estrago.
O animal soltou outro miado.
Sandal enfiou a faca em sua garganta até o cabo. Com um movimento brusco dos
pulsos o ossudo jogou o vigia no meio dos arbustos e limpou as mãos na grama.
— Até no invisível o perigo nos espreita — disse. — Conheço estes animais.
Vigiam em Gedynker Crocq os jardins cujas flores servem de equipamento a certos
viajantes exóticos.
— Vamos em frente! — insistiu Sandal.
Sentiu que seu nervosismo diminuía.
Enfiou a faca várias vezes na terra para limpá-la e guardou-a na bolsa que ficava no
cano de sua bota. Seguiram adiante — por um caminho estreito que passava pelo jardim
cujas flores exalavam um perfume tão inebriante. O destino próximo na caminhada para
o rei dos edifícios era o cruzamento das quatro pontes suspensas, no meio do parque,
cercado por quatro grandes conjuntos de casas cúbicas.
Vinte minutos...
Quinhentos passos muito cuidadosos...
Caminharam durante muitas pulsações do coração, olhavam para a direita e para a
esquerda e ficaram atentos a movimentos suspeitos ou armadilhas. Esperavam outro
alarme ou um planador patrulhando, que abriria fogo contra eles. Não aconteceu.
Chegaram a uma das quatro pontas. Deviam dobrar para a direita. Também podiam saltar
de cinco ou seis metros de altura — aterrissariam suavemente nos arbustos.
— Que é isso? — perguntou Sandal em voz baixa e apontou para a direita.
Encontravam-se no meio da ponte. À sua direita erguia-se uma coluna redonda de
sete metros de altura. Era amarelo-ocre e brilhava de dentro para fora. No pedestal
redondo havia uma coisa que à primeira vista Sandal achou estranho, mas conhecido ao
mesmo tempo — onde já vira essa carranca?
— Eu sei... é o ídolo amarelo... mas um pouco mudado. Provavelmente o ídolo
mudava ligeiramente, de acordo com o povo pelo qual estava sendo venerado.
Y’Xanthymr não significava a mesma coisa para os instaladores do “Enxame” e os
purpurinos. Para as pessoas altas de cabeleira branca era tão diferente quanto para os que
tinham vindo de Gedynker Crocq. Sim, devia ser isso mesmo. Sandal nunca vira a forma
que estava à sua frente — possuía um único olho, na testa, bem em cima do nariz.
— É você que diz. Vai ficar pregado aqui e chorar para ele? — perguntou o ossudo.
— Acho que não — respondeu Sandal.
Seguiram adiante com o maior cuidado, em direção ao cruzamento. Não havia
nenhum movimento por perto e poucas luzes estavam ligadas. Já era tarde; o meio do
período de escuridão fora ultrapassado. Os amigos alcançaram o cruzamento pisando
leve, mudaram de direção e correram devagar para o destino intermediário seguinte, que
era o relvado do parque que os separava da parede dos fundos do edifício.
— Vamos atravessar esta área? — cochichou Cascal. — Ou vamos na escuridão?
Tahonka pesou os prós e os contras em silêncio. Finalmente chegou a uma
conclusão.
— É menos arriscado irmos no escuro. Pelo menos teremos a visão livre para um
semicírculo pelo qual ninguém poderá aproximar-se sem ser notado.
— Concordo. A ponte descia uma curva ligeira para uma superfície branca coberta
de placas, em torno da qual cresciam arbustos. Na curva andavam animais farejadores,
cães ou lobos ou animais da espécie daquele que acabavam de matar. Era o perigo
previsível — podia haver outros imprevisíveis. Os amigos pararam alguns segundos na
área livre, olharam em volta e seguiram em direção à parede escura.
— Não vá muito depressa! — alertou Sandal.
Já colocara uma flecha na corda do arco. Caminhava pela escuridão junto a uma
fileira de arbustos, Tahonka No ia cinco metros atrás dele, com uma faca em cada mão.
Olhava constantemente de um lado para outro.
Por enquanto não estavam sendo atacados, nenhum animal sentira seu faro. Era
quase tão perigoso como andar numa selva desconhecida, mas enquanto lá o ataque e a
defesa resolviam tudo, no lugar em que estavam qualquer luta atrairia outros guardas e
qualquer caçador acabava sucumbindo diante da superioridade em número.
Alguns minutos se passaram sem que acontecesse nada.
Atravessaram a escuridão fazendo uma curva ampla sobre a área livre. Raramente
as folhas farfalhavam embaixo de seus pés. As botas ficaram molhadas com o orvalho da
noite — de onde vinha este orvalho?
“Certamente abrem a parte superior do campo energético de noite ou ao menos o
tornam transparente”, pensou Sandal, no que não estava muito longe de uma correta
avaliação física. Chegaram à parede dos fundos do edifício sem ser atacados e foram
obrigados a parar. Não havia nenhuma abertura.
Tahonka No apalpou metodicamente toda a parede dos fundos, enquanto Sandal se
encostava bem à pedra fria, com a corda do arco meio entesada.
Quando voltou para perto dele, Tahonka disse com a voz triste:
— Temos de tentar com outro edifício, ou na passagem entre duas constelações.
Aqui não há nenhuma abertura.
— Em compensação nossos amigos estão chegando — cochichou Sandal. — São
oito, se não errei na contagem por causa da escuridão.
Tahonka No viu uma matilha dos animais brancos parecidos com lobos e disse:
— Enquanto estiverem correndo, são seus inimigos. Só passarão a ser meus
inimigos num corpo a corpo.
— Seguiremos esse esquema, parceiro — disse Sandal rindo.
Inspirou ruidosamente. O ruído bastou para aumentar a agressividade da matilha de
animais de guarda. Aproximaram-se quase sem nenhum ruído, com as línguas azuis de
fora, formando uma cunha.
Sandal disparou quatro flechas em seis segundos e soltou a quinta quando a vítima
só estava a seis metros dele e se preparava para dar o salto. Aí jogou fora o arco, pegou
duas facas e atirou-se obliquamente para trás, a fim de repelir o ataque contra Tahonka
No.
Tahonka parecia ter crescido além dele mesmo. Atirou-se ao chão à frente dos
animais atacantes, agarrou duas pernas traseiras de dois animais e levantou-os enquanto
se erguia sobre as pernas deu um salto. Girou os animais e arremessou-os contra a parede.
As caixas cranianas dos animais arrebentaram com um estouro.
Sandal atingiu um animal com a bota. O animal capotou na altura de sua cabeça e
enquanto estava girando Sandal enfiou a faca no lobo que mordia seu braço, naturalmente
na braçadeira de couro.
Tahonka voltou a abaixar-se, agarrou a garganta do último animal de guarda e
estrangulou-o.
— O caminho está livre — disse com a voz calma.
— Ainda não — contestou Sandal. — Cada vez que atiro uma flecha, aumenta o
valor das que me restam.
Dentro de pouco tempo recolheu e limpou as cinco flechas. A primeira que atirara
estava bem longe, quase no centro da área aberta. Quando levantou, Sandal viu um
planador sobrevoar o parque depois de passar por cima da última casa.
Teriam notado sua presença?
Sandal resolveu alertar Tahonka.
— Espere. Não atire. Um planador.
— Combinado! — disse a voz de No saída da escuridão.
Sandal colocou rapidamente o arco e a aljava no chão, enfiou-os embaixo do capim
alto e agachou-se. Ficou com a testa na qual estava grudado o ponto amarelo voltada para
a máquina. Enquanto isso acariciava sem parar o animal morto, levantando-o numa
posição correspondente à de um animal vivo.
Seu pulso disparou, mas os pensamentos continuaram frios.
Um farol acendeu-se e Sandal fechou os olhos por alguns instantes. Quando voltou
a abri-los, porque o farol estava sendo desligado, viu o planador com seis pequenos
purpurinos a bordo passar pouco acima e ao lado dele. Ouviu algumas palavras, respirou
profundamente três vezes e acariciou com movimentos automáticos o lobo branco morto,
de cuja ferida saía sangue, até que o planador não pôde ser visto mais.
Tinham atravessado o parque — as construções do centro estavam um pouco mais
perto.
Os amigos encontraram um caminho entre duas casas e alcançaram o anel de
cúpulas. Parecia que uma nova dificuldade estava surgindo.
***
Naquela hora, pouco antes do raiar do dia, estavam à frente do anel de cúpulas
baixas que cercava o centro que nem um colar de pérolas, interrompido somente pelo
parque e ligado ao pavimento inferior da construção gigantesca por meio de trilhas
cintilantes de energia branca. Os dois amigos deviam resolver se iam seguir adiante ou
ficar onde estavam.
— Que acha do problema? — perguntou Sandal.
Estavam a uns cinquenta metros da extremidade inferior da cúpula achatada mais
próxima. Os edifícios formavam o centro de um círculo constituído por placas de piso
finas e brilhantes. Fileiras de colunas tão próximas umas das outras que não se podia
enxergar pelos intervalos impediam a visão do interior da cúpula.
— Se tentarmos avançar mais, a luz do dia nos surpreende na metade do caminho
— ponderou Tahonka. — Acho que devemos procurar uma árvore alta, de copa bem
fechada, e passar o dia dormindo.
— ...e tentar entrar no centro do dia seguinte?
Sandal contemplou desconfiado a cúpula baixa, que só tinha cerca de cinquenta
metros de altura e parecia ter sido feita de uma única peça de um material que brilhava ao
jogo de luzes coloridas do edifício central e reluzia em desenhos confusos.
— Também penso assim. Embaixo do campo energético a noite tem sido nossa
melhor amiga.
Sandal ficou refletindo, mas não lhe ocorreu nenhuma proposta melhor.
— Muito bem — disse. — Vamos ficar aqui esperando.
— Nossas provisões dão para muito tempo — disse Tahonka No. — Além disso
dispomos de todo o tempo que queremos.
Sandal ergueu a cabeça e procurou um esconderijo que lhes servisse. Devia ser uma
árvore cuja copa ficasse longe do chão e fosse tão densa que os dois pudessem estender
suas redes. Não podiam ser vistos, pois no alto seriam indefesos se fossem cercados.
— Lá atrás, perto do muro... é a melhor árvore que descobri. Tahonka parecia
satisfeito com a escolha. Saiu andando imediatamente. Dali a pouco encontravam-se na
copa da árvore que balançava ligeiramente e ajudaram um ao outro a estender e prender
as redes. Dali a uma hora dormiam profundamente — estavam exaustos.
O dia começou a raiar.
Era a véspera da entrada no centro da ilha.
***
Não eram tanto os esforços de escalar, correr e lutar que os tinham deixado
cansados, mas antes a concentração ininterrupta, a tensão contínua. Dormiram quase o
dia todo. Acordaram quando o sol se pôs. O último trecho estava à sua frente — naquela
noite entrariam no centro da cúpula, no centro da ilha.
Talvez encontrariam o príncipe do “Enxame”. Sandal Tolk fazia votos ardentes de
que isso acontecesse.
— O que há nessas cúpulas, Tahonka No? — perguntou.
— Sei tanto quanto você — respondeu o ossudo. — Veremos.
Guardaram seus equipamentos e esperaram que a maior parte dos seres
desaparecesse dos caminhos, das ruas e praças. Só então puderam descer pelo tronco
grosso. Pararam dez metros antes de chegar ao chão.
— Aqui existem membros de todos os povos — disse o ossudo. — Só não há
purpurinos.
Sandal contemplou a cena que se lhes oferecia e respondeu:
— É isso mesmo. Por que será?
Tahonka riu e disse:
— Sei que já estou ficando monótono, mas só tenho uma resposta. Desta vez
também não sei, amigo Sandal.
Estavam admirados. Mesmo de dia não se via quase nos grandes parques ninguém
de quem pudessem dizer que estivesse doente ou tentasse recuperar a saúde por meio de
passeios. Grupos corriam às pressas pelos caminhos, robôs cuidavam dos parques.
Quer dizer que a clínica ou o hospital não se encontrava em nenhuma das cúpulas.
Sabiam pouco para arriscar essa aventura — mas o ódio e ambição de Sandal o
impeliam para a frente.
— Vamos! — disse Tahonka e deixou-se cair do galho de baixo.
Estavam à frente de uma das fileiras de colunas. Completamente livres, fazia alguns
minutos que tinham saído do esconderijo. Caminharam devagar em direção à pequena
cúpula mais próxima. Era pequena por ser mais baixa que os edifícios pelos quais tinham
passado. As cúpulas propriamente ditas tinham duzentos metros de diâmetro e eram
parecidas com o casco das tartarugas.
— Está ouvindo os sons estranhos? — perguntou Sandal ao estender a mão e tocar
na coluna.
— Estou.
A coluna era de um material com aspecto de vida, que era de uma frieza agradável
sob a luva. Parecia que ela afinava logo em cima, onde se ligava diretamente à parte
inferior da cúpula. Se Sandal pudesse ver naquele momento os desenhos em cores nas
paredes do edifício grande, ele teria percebido que os desenhos e os acordes que ouvia
combinavam de certa forma. Enfiou o dedo no ouvido e observou:
— O som desta coisa não transmite muita esperança.
Eram sons agudos, que cresciam e diminuíam, paravam de repente e davam lugar a
outros acordes.
— Quer escutar ou continuar? — perguntou o ossudo em tom sarcástico. —
Representamos excelentes alvos.
— Como queira. Você tem razão.
Sandal seguiu com muito cuidado. Entre a primeira e a segunda fileira de colunas
havia um espaço de aproximadamente dois metros, e as colunas estavam dispostas de tal
forma que não se podia olhar para dentro da cúpula.
Os dois homens saltavam rapidamente de uma coluna para outra. Finalmente viram-
-se ao lado das colunas do sexto anel, que era o último, o anel interior. O chão descia,
formando uma espécie de bacia, e voltava a subir do outro lado, de forma que viam
perfeitamente os diversos objetos. Sandal e Tahonka não deixaram que isso os detivesse.
Contornaram a área circular caminhando entre as colunas. Olhavam constantemente para
os lados.
— Parece que estas colunas foram recolhidas em muitos planetas — disse o ossudo.
— Não entendo nada disso — respondeu Sandal indignado. Parecia uma espécie de
exposição, que funcionava com obras de artes plásticas, com luzes e sombras, com
movimentos e formas misteriosas. Não se podia dizer para que serviam os cerca de
duzentos e cinquenta objetos. Sandal viu cores formando-se do nada e juntando-se,
mudando e desaparecendo — em cima de pedestais redondos. Havia arranjos de bastões
multicores, que faziam movimentos abruptos e formavam constantemente novos quadros.
O que mais lhe prendeu a atenção foram as engrenagens e outras rodas correndo
juntas, rodando sobre eixos invisíveis e emitindo ruídos parecidos com o bater dos sinos,
sendo iluminadas por luzes de várias cores.
— Esqueça — advertiu Tahonka No. — Isso só serve para confundir a gente.
— Vou contar a Chelifer — disse Sandal em tom sombrio. — Se é que ainda
voltarei a vê-la.
— Você terá muita coisa para contar se continuar vivo por mais algum tempo. Cada
hora traz novidades.
— Esta é uma das vantagens da vida de um lutador e caçador, No! — disse Sandal
rindo.
Tinham chegado perto da outra extremidade de seus caminhos. Havia uma rampa
que começava entre as colunas e subia de forma quase imperceptível. No fim dela
pareciam ficar as trilhas energéticas luminosas que terminavam no pavimento inferior do
edifício. Os dois subiram na superfície plana bastante desconfiados, ainda mais que
acabavam de registrar que os raios de comando estavam presentes de novo.
Desta vez eram menos insistentes, mas duravam mais; logo, não eram emitidos por
um transmissor móvel. Os comandos não queriam que os homens atacassem alguma
coisa, mas seu sentido era mais ou menos o seguinte:
— Fique longe — venere minha pessoa!
Sandal virou-se, com o arco meio entesado nas mãos. Não precisou fazer perguntas.
Viu pelo rosto do amigo que Tahonka também percebera os impulsos. Como não sabia a
que se referia a ordem, não precisavam segui-la. Além disso os comandos não chegavam
a obrigar... eram antes uma lembrança contínua. Embaixo deles dois seres vindos do
planeta Gedynker Crocq passavam entre as peças plásticas e as veneravam com muito
respeito, desaparecendo atrás de cortinas luminosas coloridas.
— Sempre esta música.
Sandal notou que os acordes eram mais altos. Tinham chegado mais perto da fonte.
Lembrou-se do purpurino que morrera quando ele ouvira o som da guitarra destruída. Os
pequenos purpurinos não eram vistos nesse lugar porque não suportavam a música.
Sandal disse ao amigo o que acabara de descobrir.
— Quer dizer que temos um inimigo a menos — observou o ossudo satisfeito.
Chegaram ao fim da rampa e viram-se diante de uma pequena plataforma. Dali um
raio com cerca de quatro metros de diâmetro apontava exatamente para a linha formada
pela junção do chão do parque redondo com a muralha que formava o rei das
construções.
Os dois ficaram sob o efeito de três impressões diferentes. Não perceberam que dois
homens de Gedynker Crocq apareceram atrás deles.
Estavam armados.
5

A música ficou mais alta e intensa.


Um oceano de acordes das mais diversas espécies banhou os dois amigos. Sons
muito agudos e incrivelmente graves pareciam entrelaçar-se como cordas. O espaço
limitado pelas pequenas cúpulas vibrava sob o impacto dos acordes. Nenhum deles
parecia ter sido produzido por um instrumento de verdade. Era música de máquina para
muitos seres que se encontravam em volta da construção central. Só então os dois deram-
-se conta do tamanho e da altura do edifício. Enchia completamente seu campo de visão.
Quando olharam para cima, tiveram a impressão de que a ponta tocava o material
luminoso da cúpula.
— Está hesitando, amigo? — perguntou um dos dois homens de Gedynker Crocq ao
ossudo.
Sandal estremeceu.
Reagiu depressa e não perdeu os nervos. Tahonka No riu e foi para o lado para que
os dois homens pudessem passar.
— Admiro e venero isto! — disse e apontou para o alto.
Os dedos de Sandal apalparam a arma energética que trazia sob o braço esquerdo.
— Venere, mas fique longe. Servimos aos servos. Tahonka No inclinou
ligeiramente o corpo e disse:— Também os sirvo, amigo.
Os dois homens cumprimentaram Sandal e o ossudo com um aceno de cabeça,
saíram para a plataforma e entraram no raio. Sandal reprimiu a vontade de alertá-los —
eles cairiam de quinze metros de altura e se despedaçariam.
— Fique quieto.
Tahonka chiou estas palavras entre os dentes cerrados. Os dois pontos luminosos
lhes tinham salvo a vida e acalmado o espírito dos servos dos servos, que sabiam que ali
só podiam estar pessoas autorizadas.
Os homens ficaram pendurados no raio e afastaram-se rapidamente. Depois que
alcançaram certa velocidade, uma semi-esfera azul formou-se à sua frente para protegê-
-los do vento. Dali a pouco desapareceram no edifício.
O coração de Sandal martelava loucamente.
— É incrível... — cochichou. — Falaram com você e não perceberam que...
— Não podemos arriscar mais um acaso — disse Tahonka No, que só então parecia
ter a noção plena do que tinha acontecido. Tinham sido classificados como membros dos
povos de servos. Provavelmente naquele lugar ninguém se preocupava com intrusos,
porque não se precisava contar com sua presença. Mas... Sandal era tão diferente dos
seres que andavam por ali.
Era difícil acreditar, mas tinham escapado com vida.
— Vamos em frente! — disse Sandal. — Temos de esconder-nos em algum lugar.
Fiquei chocado com o incidente.
— Só podia ficar.
A segunda impressão que arrebatou os homens era um nicho gigante a meia altura
da construção central.
Nele se via um ídolo amarelo de formas bizarras. Provavelmente era a forma
primitiva do Y’Xanthymr. Era uma figura aproximadamente humanóide com duzentos
metros de altura ou mais. Estava de pé, com as pernas afastadas e estendia um braço.
Parecia a imagem de um conquistador orgulhoso. O dedo de unha comprida apontava por
acaso para os dois forasteiros. O rosto transmitia uma impressão de orgulho e arrogância,
além de uma selvageria que quase era sentida fisicamente. A boca estava deformada
numa careta de crueldade e como das outras vezes somente um olho brilhava na testa do
ídolo.
Devia ter quase dez metros de diâmetro.
— Um ídolo amarelo. Parece um conquistador. Um conquistador amarelo de um
olho só — disse o homem de Exota Alfa e teve um calafrio.
— Os raios que sentimos saem de seu olho.
Sandal olhou para cima, surpreso.
O olho parecia um diamante gigantesco lapidado em milhões de superfícies. A luz
cintilante que deslizava sobre as paredes do castelo quebrava-se constantemente naquele
olho gigante. Só os raios das luzes coloridas exerciam um efeito hipnótico. E via-se
perfeitamente que o olho do ídolo não podia ser outra coisa a não ser uma maquinaria
gigantesca para gerar o comando:
— Fique longe — venere minha pessoa!
— Você pode contar com nossa veneração, à nossa maneira — disse Sandal em tom
sarcástico e arriscou alguns passos para a frente. Se os dois homens que vira podiam
atravessar o raio, ele também podia. Tahonka No seguiu-o. Via-se que hesitava. A tensão
não diminuíra nos dois homens. Ainda esperavam todos os perigos e armadilhas que
podiam imaginar.
— Descobri uma coisa, No — disse Sandal com uma firmeza que deixou ele mesmo
surpreso.
— Mais um perigo?
A luminosidade suave sob a cúpula energética era reprimida pela música e pelos
véus coloridos. Só existia a torre, o olho do ídolo e a música entrelaçada com as luzes.
— Talvez. A música que não combina com nossos ouvidos faz parte do tratamento
dos desconhecidos.
— Do tratamento dos servos-mor? — perguntou Tahonka.
Estavam perto do raio que estava parado no ar.
— Sim. Deve ser isso mesmo. As cores e a música têm um elevado conteúdo
artístico, mesmo que nós não o compreendamos. Servem para curar — talvez ainda
vejamos.
Sandal acenou com a cabeça para o ossudo e atirou-se para a frente. Teve uma
surpresa. Não caiu nem um palmo, mas podia mexer-se como se estivesse numa pequena
plataforma. Virou ligeiramente a cabeça, sorriu para Tahonka No e fez um sinal para que
ele também viesse.
O ossudo saltou para dentro do raio; deu um salto muito forte.
— Não se preocupe — disse Sandal. — Nada nos acontecerá. Aumentaram
rapidamente de velocidade e afastaram-se da plataforma. O deslocamento do ar começou
a ficar desagradável, mas à sua frente apareceram dois campos semi-esféricos azuis que
os protegiam. O campo de transporte antigravitacional — Sandal já conhecera essa
técnica a bordo da Good Hope II — parecia imóvel, mas transportou-os rapidamente na
direção desejada.
— Quando esta estrada esquisita terminar, teremos de esconder-nos de novo —
disse Tahonka. — No centro certamente chamaremos a atenção.
— Você tem toda razão. Terá de descobrir um esconderijo.
Levaram apenas alguns segundos para percorrer a distância entre as cúpulas e o
edifício gigantesco. A música ficou mais leve, os jogos de cores ficaram para trás e até os
raios saídos do olho do ídolo foram ficando mais fracos e acabaram desaparecendo
quando alcançaram um corredor em forma de tubo e ficaram novamente apoiados nos
próprios pés. Tahonka No olhou em volta e fez sinal para que o jovem guerreiro o
acompanhasse.
Atravessaram o corredor até o fim, saíram numa espiral de material leitoso que
soava como vidro sob suas pisadas e foram para baixo acompanhando a parede externa.
Na parte de baixo, explicara o ossudo, sempre ficavam as salas de máquinas e geradores,
os condutores e inúmeras salas e galerias — era o lugar ideal para encontrar um
esconderijo. Antes de fazer qualquer coisa, precisavam saber por que caminhos podiam
andar no edifício.
Sandal esqueceu completamente que alcançara o destino, ao qual tentara chegar
durante semanas arriscando a própria vida.
Correram pela espiral, passaram por numerosas entradas e saídas e desceram cada
vez mais. A música era cada vez mais baixa, mas em compensação ouviam o zumbido de
máquinas pesadas.
Ficou mais quente, o ar não era tão puro e fresco como nos parques.
Finalmente atravessaram uma sala de vidro transparente e uma gigantesca sala de
máquinas.
— Ficaremos por aqui — disse Tahonka No. — Só não sei exatamente em que
lugar.
— Seria bom você resolver encontrar logo — disse Sandal e apontou para os
inúmeros instaladores do “Enxame” que controlavam as máquinas. Os forasteiros
estavam numa rampa que contornava a sala de máquinas e os instaladores andavam de
um lado para outro um andar abaixo deles.
— Estou à procura do centro de controle — disse Tahonka No.
O ossudo examinou os letreiros e finalmente descobriu um caminho. Andaram pela
passarela até o centro da sala, dobraram para a esquerda e depois de atravessar algumas
rampas e corredores viram-se numa pequena sala vazia.
Uma das paredes era formada exclusivamente por telas de imagem, enquanto nas
outras havia escotilhas. Foram abrindo uma atrás da outra, enquanto Sandal esperava com
o arco entesado, à espera de um ataque.
Todas as salas estavam vazias.
— Trate de encontrar um caminho de fuga.
— É o que estou fazendo o tempo todo — resmungou o ossudo e finalmente
escolheu um pequeno depósito de peças sobressalentes com duas entradas. — Aqui
vamos ficar por enquanto — disse.
— Está bem.
Passaram a hora seguinte fazendo um reconhecimento nos arredores e gravaram na
memória a posição de todas as salas e corredores. Descobriram uma galeria de cabos
construída para permitir o uso de máquinas de reparos. Essa galeria levava para cima e
para baixo. Não enxergaram seu fim. Talvez pudessem usá-la para subir sem serem vistos
e procurar o príncipe do “Enxame”.
Sandal apoiou-se na parede dos fundos da sala e contemplou suas instalações. Por
enquanto não tomou conhecimento das telas — eram mais de cem — porque as imagens
o confundiam. Viu o revestimento escuro do piso, com aspecto de veludo, as poltronas
especialmente feitas para os instaladores do “Enxame”, que já vira na nave-cogumelo e à
frente delas os gigantescos painéis de controle com milhares de chaves e indicadores.
Nas paredes laterais também havia telas.
— Está confuso? — perguntou Tahonka No que tirara suas provisões e comia sem
importar-se com a presença de Sandal.
— Muito confuso! — confessou o caçador. — O que significa tudo isso?
— Estamos em um dos pavimentos inferiores do edifício. A partir desta sala são
controladas certas coisas; pode ser a temperatura ou o ar ou coisa parecida. Poderei dizer
depois que tiver lido as inscrições. Provavelmente aqui aparecem regularmente pessoas
para fazer o controle. Se estiver procurando alguma coisa, encontre-a depressa antes que
sejamos perturbados.
— Qual a disposição das telas?— perguntou Sandal. — Que salas mostra cada uma
delas?
Tahonka avançou contrariado, leu as diversas letras e disse em voz um pouco mais
alta:
— A sala do último pavimento deste edifício é vista em cima, à direita e a sala mais
baixa, que é a sala de máquinas, embaixo, à esquerda. Naturalmente há muitas salas num
mesmo nível, e muitas não podem ser vistas nestas telas.
Sandal caminhou devagar da direita para a esquerda, observando os quadros
tridimensionais coloridos muito nítidos.
Viu muitas coisas que eram novidade para ele. Muitas coisas o deixaram confuso,
porque não as compreendia. Finalmente viu um quadro que o deixou fascinado.
— Tahonka!
— Descobriu alguma coisa?
O ossudo parou ao lado dele e contemplou atentamente a tela de imagem para a qual
Sandal estava apontando.
— Refere-se a esta coisa amarela redonda? — perguntou.
— Isso mesmo.
O ser que os dois admiravam encontrava-se num campo antigravitacional cintilante.
Comparando com o tamanho de outros objetos, devia ter mais de dois metros de altura
segundo os cálculos de Sandal. O campo antigravitacional fazia movimentos ondulados
suaves e Sandal teve a impressão de estar ouvindo de novo a música que já conhecia.
Finalmente, quando viu em uma das paredes da sala que estava contemplando a projeção
dos desenhos luminosos, não teve mais nenhuma dúvida.
— Esta criatura está doente — afirmou. — A criatura amarela está deitada num
campo antigravitacional, completamente despida. O campo move-se ao tato da música e
das luzes, que nem um balanço de crianças no castelo Crater. Parece que o ser está
gostando da música.
— Eu não gosto — mas talvez você tenha razão. A imagem vem do centro do novo
pavimento — disse o ossudo.
— É para lá que eu vou, amigo Tahonka No. Conhecemos todos os outros povos
reunidos aqui. Os servos-mor do Y’Xanthymr não devem estar entre eles. Logo, estes
seres amarelos são os servos-mor. Perguntarei a eles onde posso encontrar o chefe do
“Enxame”.
Tahonka No deu uma gargalhada e disse em tom seco:
— Eles terão muito prazer em dar todas as informações que você pedir,
principiante. Estou disposto a ajudá-lo, mas temos de avançar devagar, passo a passo. De
outra forma não é possível. Ou você quer entrar nessa loucura sozinho?
— Só entrarei com seu auxílio — garantiu Sandal.
— Eu sabia que você é sensato — disse o ossudo.
A criatura, que sem dúvida possuía inteligência, balançava-se encantada dentro do
campo antigravitacional. A música e as luzes colocavam-no numa espécie de êxtase, que
devia ter um poder curativo.
“Neste hospital os desconhecidos usam métodos psiquiátricos estranhos”, pensou
Sandal, embora não deixasse de reconhecer que o bem-estar é o primeiro passo da cura.
Estes seres, ou melhor, o ser que Sandal acabara de descobrir, era parecido com
uma fruta semelhante à pera. Na parte inferior, no lugar mais grosso, o corpo mostrava
um corte absolutamente vertical. Essa parte era bem redonda e devia ter cerca de um
metro de diâmetro.
— Você sabe que sou médico — disse o ossudo em voz baixa. — Vejo nesta
criatura sinais de uma inteligência muito elevada. Além disso suponho que estes seres
devem ter degenerado apenas no físico. Há tempos imemoriais certamente eram muito
diferentes do que agora.
Sandal não compreendia o raciocínio de Tahonka. Por isso perguntou um tanto
confuso:
— De onde tira essa conclusão?
— Da forma do corpo — respondeu o ossudo. — Estes seres devem ser
completamente incapazes de sustentar-se sozinhos. Vimos perfeitamente que sua vida foi
adaptada a uma situação em que são servidos. O parasitismo ou a exploração do tipo
exercido pelos zangões nunca nasce com a pessoa. Sempre é uma marca dos
degenerados.
— Isso nos leva a novas reflexões — disse Sandal.
Na parte superior do corpo redondo em forma de pera havia duas excrescências, que
provavelmente preenchiam muitas funções ao mesmo tempo. Tratava-se de multiórgãos
elípticos que brotavam do corpo, com cerca de quarenta centímetros de comprimento e
trinta de diâmetro. Estes órgãos brilhavam numa cintilância de fogo-fátuo.
Os órgãos propriamente ditos eram claros e transparentes, com um ligeiro brilho
azul em seu interior. Ficavam nos lugares em que era encontrada a testa e a parte
posterior do crânio dos seres humanóides. A boca ocupava o lugar em que seria a barriga,
e o órgão dava a impressão de que servia para ingerir alimentos.
— Você pode explicar para que servem essas saliências redondas, Tahonka No? —
perguntou Sandal.
Tahonka já estava refletindo há algum tempo.
— Servem para enxergar e para falar — mas não da maneira que você e eu
enxergamos e falamos. Em seu interior existem membranas móveis — e esta é a fala.
Outras membranas garantem a audição, e certas aberturas conduzem a um órgão do
olfato. Não tenho muita certeza, mas deve ser isto.
— E a parte inferior do corpo, lisa como se tivesse sido decepada?
Os dois contemplavam a tela que continuava a mostrar esse ser esquisito, que se
balançava em seu envoltório antigravitacional aos sons dos miados e gemidos de uma
música e dava a impressão de que desfrutava uma felicidade incrível. Sandal não sabia
como ele conseguia parecer feliz, mas a impressão que teve foi esta.
— Olhe bem. Está reconhecendo as costelas?
Sandal voltou a olhar para a tela.
O corpo, parecido com um pedestal cortado, possuía costelas muito robustas na
parte inferior, que deviam ser de um material elástico. Elas se contraíam e voltavam a
dilatar-se no ritmo da música. Seus movimentos eram como os dos músculos de uma
serpente atravessando a areia. Os caracóis também se locomoviam dessa forma. Sandal
sabia disso por ter visto em seu mundo.
— Quer dizer que servem para a locomoção? — perguntou.
Ele viu antes que Tahonka respondesse à pergunta.
Um servo-mor “vestido” entrou. Era um dos que serviam aos conquistadores
amarelos, segundo acreditava Sandal. “Andava” sobre o toco decepado do corpo,
desenvolvendo uma velocidade surpreendente, mais ou menos igual à de Sandal
caminhando com muita pressa. Agora, que viu uma criatura movimentando-se
livremente, Sandal viu que uma coisa lhe escapara.
— Até têm braços... — disse espantado.
— E usam roupas. Os doentes provavelmente ficam vazios, os médicos e os
enfermeiros andam vestidos — disse o ossudo.
Mas ele mesmo não sabia muito mais do que estava vendo. Foi somente graças à
sua qualidade de médico que era capaz de reconhecer e interpretar certos processos
melhor que Sandal.
— Parece mesmo que está doente — afirmou Sandal.
O outro ser era igual a ele, mas parecia ser mais dinâmico.
Usava sobre o corpo amarelo-ocre uma peça de roupa mais parecida com um saco
que com qualquer outra coisa. Caía até o chão e ficava preso sobre os ombros por duas
fitas em cruz. Uma das fitas escorregava constantemente nesse ser, e ele era obrigado a
empurrá-la com os braços musculosos.
Os braços...
Tinham certa semelhança com os braços dos instaladores. Tinham cerca de trinta e
cinco centímetros de comprimento na base, e depois se bifurcavam em dois braços
secundários, cada um com seis dedos, sendo dois polegares em sentido contrário como
em Tahonka No.
Com base na estrutura desses braços não se percebia nenhum parentesco com os
instaladores do “Enxame”.
Eram quatro dos braços, saindo embaixo da “cabeça”, sem ossos e musculosos,
cheios de cartilagens e tendões, com seis dedos compridos muito finos, que davam a
impressão de que estes seres podiam executar qualquer trabalho de alta precisão.
— Primeiro tentaremos consolidar nossa base — disse Sandal em voz baixa. —
Depois irei ao novo pavimento e entro em luta.
— Você é um jovem idiota amaldiçoado, que não sabe controlar-se — exclamou o
ossudo. — Há perigos em toda parte.
— No momento não percebo nada — respondeu Sandal laconicamente.
Naves Extraterrestres

Nave-cogumelo dos instaladores do “Enxame”

Dados gerais:
As naves-cogumelo servem
principalmente para modificar os
planetas incubadores para os
conquistadores amarelos que precisam
dividir-se. Cerca de trinta naves-
cogumelo dirigem-se a estes planetas
parecidos com a Terra, que já tinham
sido explorados pelas naves Discoverer.
Depois do pouso são levantadas
antenas de captação para captar a
energia solar. Parte da energia é
transformada e conduzida para os
propulsores antigravitacionais
repolarizados para servir de geradores
de gravidade. Isto significa um aumento
de 2,2156 G na gravitação do planeta.
Outra parte da energia é conduzida ao
chapéu do cogumelo, de onde é levada à atmosfera planetária por meio de conversores
térmicos e projetores de calor. Desta forma a temperatura média é aumentada em 6,3 graus.
Desta forma o planeta é transformado num local de incubação Ideal para os conquistadores
amarelos que chegam em naves-favo. Além disso as naves-cogumelo têm a tarefa de
aumentar em mais 132,6583 milikalups por meio de um ajuste de alta precisão, a constante
gravitacional da quinta dimensão, aumentada em 852 megakalups
por meio dos Manips. Por isso os planetas visitados pelas naves
Discoverer sempre recebem a visita de uma nave-cogumelo. Depois
do pouso surgem no abaulamento superior da haste do cogumelo
oito aberturas de 600 m de diâmetro que emitem raios flamingo. Além
disso quatro triângulos alongados saem do corpo da nave. Embaixo
de cada triângulo forma-se uma grande abertura escura e o casco da
nave que brilha num azul pálido passa a ser amarelo. Da parte
superior do chapéu do cogumelo saem duzentas antenas em forma
de bastão, que servem para modificar a constante
gravitacional da quinta dimensão. Desta forma a
nave passa a ser uma gigantesca cabeça de ídolo
amarelo, com quatro rostos ameaçadores e uma
coroa enorme servindo de chapéu. Este disfarce
serve para assustar eventuais curiosos entre os
habitantes do planeta que foram atingidos pela
deterioração mental. Depois da reforma a tripulação
de 50.000 pessoas sai da nave e volta ao “Enxame”
num pequeno barco espacial. Para caber no
pequeno veiculo espacial, os instaladores do
“Enxame” ficam reduzidos a um vigésimo do
tamanho normal.
Dados técnicos:

A nave-cogumelo tem 5.000 metros de altura s o diâmetro do chapéu do cogumelo é de 7.000


metros. A parte interior da haste tem 2.000 metros de diâmetro e aumenta na parte inferior do chapéu do
cogumelo, onde ficam os jatos-propulsores de partículas, para 4.800 metros. A nave dispõe de um
potente sistema de propulsores de transição que a tornam capaz de realizar hipersaltos.
Além disso está equipada com um sistema de propulsão linear, para voar em grupos com as
naves-favo dos conquistadores amarelos. Para permitir o transporte rápido de tripulantes e cargas, a
nave conta com 24 poços de elevadores de passageiros e carga com 80 metros de diâmetro, Além disso
existem nele elevadores em plano inclinado de cinco metros de diâmetro, além de numerosas esteiras
transportadoras horizontais. A tripulação é formada por 50.000 instaladores do “Enxame”.

1. Barco espacial em forma de disco (100 m de 18. “Olho” de 600 m de diâmetro com pálpebras
diâmetro e 40 m de altura) sobre suportes encolhíveis, centrífuga de produção de
telescópicos de decolagem. lágrimas e canhões térmicos com
2. Eclusas de reparos cm elevador abastecimento de energia independente.
antigravitacional. 19. Bombas de lágrimas disparadas (cada
3. Alojamentos da tripulação, depósitos de bomba de lágrimas tem uma capacidade de
peças sobressalentes e robôs. destruição de um megaton de TNT e è
4. Máquinas destinadas ao ajuste de precisão conduzida ao alvo por um sistema
da constante gravitacional da quinta teleguiado).
dimensão e aquecimento da atmosfera 20. Pavilhões de produção de peças
planetária. sobressalentes com depósitos de matérias-
5. Antena móvel para modificação da constante primas (metais e plásticos), alto-fornos,
gravitacional da quinta dimensão. laminadores, fundições e máquinas de
6. Antenas de captação de energia solar acabamento. Na parte de cima. arsenal de
recolhidas (41 ao todo). bombas de lágrimas.
7. Antenas de captação de raios solares em 21. Propulsor de hipertransição com
posição de funcionamento. transformadores de energia e baterias. Na
8. Transformador e conversor de energia solar. parte de cima, salas da tripulação.
9. Sistema de propulsão linear. 22. Oficinas de manutenção e reparos para os
10. Canhão termo-energético com suprimento manips em forma de arraia.
de energia independente. 23. Sete cabos de sustentação em forma de
11. Propulsores antigravitacionais com corrente com equipamentos de distensão e
dispositivo de repolarização superposto que recolhimento.
permite sua utilização como geradores de 24. Hangares de veículos com elevadores
gravidade e laboratórios. antigravitacionais e círculo de apoio duplo na
12. Usina de energia com reatores de fusão parte inferior.
nuclear, conversores de energia térmica e 25. Eclusas Interiores em forma de arco com
condutos de energia. sistemas de emissão de raios de
13. Jatos-propulsores com bocais de propulsão. profundidade na parte superior.
14. Condutor central de campo energético. 26. Torre gradeada com antenas de medição e
Propulsores ultraluz. goniometria.
15. Sala de comando principal com 27. Ancoragem com cabos de sustentação.
computadores de navegação e centro de 28. Nariz triangular e imitação de boca
computação positrônica na parte inferior. escamoteável, para composição do tosto do
16. Geradores para os campos defensivos. ídolo.
17. Geradores de gravidade com 29. Eclusas que levam aos hangares de manips.
neutralizadores de pressão, sistemas de 30. Chapéu de cogumelo de paredes grassas
regeneração de ar e água, equipamento de com projetores de calor.
climatização e sistema de abastecimento de 31. Antena de rastreamento e goniometria,
energia de emergência. antena de hiper-rádio e câmeras de
observação.
6

Em seguida descobriram mais uma coisa que os deixou estupefatos.


A sala onde se encontrava o ser doente, balançando euforicamente na esfera
antigravitacional, encheu-se de médicos, enfermeiras e enfermeiros... ou sejam quais
forem as posições que estas figuras vestidas exerciam. Nenhum deles exibia o ponto de
micro-transmissão; logo, este só era usado pelos servos.
— Há largas trilhas de gosma no chão, Tahonka. Que é isso?
— Você me pergunta demais.
Estes incríveis seres desconhecidos tinham instalado nesse planeta um centro em
que recebiam tratamento os membros de sua espécie que tivessem adoecido. O pessoal do
hospital bizarro, que confundiu a mente de Sandal, também era formado por membros
desse povo misterioso. Sandal estava mais do que confuso; era demais para ele.
Aquilo ultrapassava em muito sua capacidade de compreensão. Sandal nascera num
mundo pequeno, bem compreensível, e atirado num cosmo que era muito grande e
variado para ele, motivo por que não era capaz de conhecê-lo nem mesmo em suas
estruturas básicas. Quase chegava a envergonhar-se da presunção de ter escolhido este
objetivo... mas logo lembrou-se do avô Sandal e de Atlan e Chelifer...
— Vamos subir e dar uma olhada! — disse em tom obstinado. As ideias de
vingança fizeram com que recuperasse parte da auto-segurança. Toda vez que podia agir
bania da mente os pensamentos ligados à dúvida.
— Primeiro vamos comer e dormir. Não há nada pior que um caçador cansado e
faminto — objetou o ossudo.
— É verdade — respondeu Sandal.
Em seguida olhou para a pulseira de múltiplas finalidades e viu que a noite quase
tinha chegado ao fim. De repente teve de bocejar. As plaquetas de transmissão os
protegeriam por algum tempo dos mecanismos automáticos, mas não do controle de seres
vivos.
— Quando estivermos descansados e tivermos saciado a fome, Tahonka No, você
nos leva ao novo pavimento — disse Sandal. — Combinado?
— Eu prometo, Sandal.
Os amigos saíram do pavilhão onde havia muitas telas e recolheram-se ao seu
esconderijo. Só em pensar que não só tinham entrado num território evidentemente
sagrado, mas até avançado ao seu centro, os fez tremer.
Mas não havia como voltar atrás.
***
Dali a meia hora.
Tinham saído de seu esconderijo e desaparecido no poço de condutos de energia,
tinham acionado o mecanismo de controle e subiram na plataforma de manutenção do
robô até o nono andar. Pelos cálculos de Sandal deviam estar a cerca de quinhentos
metros de altura, na terça parte superior deste estranho hospital.
Pararam o veículo, desceram e descobriram um canal de ventilação no qual se
enfiaram. Por um acaso incrível tinham encontrado pelo menos duas dezenas de vezes o
caminho certo nas bifurcações. Naquele momento estavam deitados lado a lado, de
barriga, e olhavam de pelo menos trinta e cinco metros de altura para uma sala de
hospital.
— Você foi um guia excelente, amigo No — disse Sandal satisfeito. — Aqui não
seremos descobertos, mas vemos tudo.
— Não foi tanto por causa de minha habilidade, mas principalmente por uma
porção de acasos e circunstâncias favoráveis.
Tahonka No parecia febril.
Estava nervoso, seus dedos tremiam e seu rosto quase imóvel assumira a expressão
da concentração máxima, associada com um leve desespero, pois violava constantemente,
depois de ter conhecido Sandal, os tabus nos quais fora educado.
E lá embaixo viu segredos cujo conhecimento era proibido a seu povo.
Mas para ele também não havia nenhum caminho de volta. Ultrapassara há muito o
ponto em que poderia voltar atrás, ao fugir de Gedynker Crocq.
Um jovem lutador cheio do desejo de vingança e um médico experiente que fora
banido — uma dupla formidável.
— Estes rastros... percebo que se trata de uma coisa toda especial, No! —
cochichou Sandal.
— Exercem um efeito hipnótico, tal qual o grande cristal no olho do ídolo — disse
o amigo em voz baixa e num tom resoluto.
Cerca de dez seres amarelos cuidavam de dois doentes suspensos em suas esferas. A
música e as palavras dos enfermeiros, que Sandal e Tahonka No ouviam, caíam-lhes
sobre os nervos. Era uma música infernal e alta. Mas não parecia perturbar os seres
amarelos.
Os dez amarelos fizeram trilhas cintilantes, formadas por pequenas bolhas
luminosas, atrás deles, que nem os caracóis nos vinhedos do castelo de Crater. Estes
rastros exerciam uma ação hipnótica bem perceptível;
— Fique longe — venere minha pessoa.
— Fique longe — disse Tahonka No em tom sombrio — e venere minha pessoa. É
o que transmitem sem parar. Não somos obrigados a obedecer, mas temos de pensar nisso
constantemente.
— Para os outros servos este impulso deve representar um comando que não podem
deixar de cumprir — respondeu o guerreiro de cabelos brancos.
Os dois continuaram atentos no que estava acontecendo.
Depois de cerca de quinze minutos o rastro foi ficando mais fraco e dissolveu-se,
mas naturalmente era renovado constantemente pelos movimentos dos médicos
ajudantes. Enquanto isso os enfermeiros cuidavam dos dois ambientes amarelos. De vez
em quando uma das esferas descia ao chão e então os enfermeiros realizavam exames
com aparelhos estranhos.
Mas quando a parte inferior do corpo dos dois doentes tocava o chão, não havia
nenhum rastro brilhante.
Depois de algum tempo Tahonka No perguntou em voz baixa:
— Acha que chegou a hora de exercer sua vingança? É possível que doze tiros de
flecha bastem para transformar esta sala num cenário de morte.
Sandal protestou firmemente.
— Não luto contra doentes nem contra médicos. Só luto quando sou atacado ou
quando minha vida corre perigo.
— Quer dizer que uma boa vingança só faz sentido quando atinge pessoas sadias?
— Isso mesmo! — confirmou Sandal em tom resoluto.
— Vejo que você amadurece mesmo a cada dia que passa — logo passará à minha
frente em idade, amigo.
— Provavelmente.
A sala que se estendia embaixo deles era gigantesca. Não possuía quatro paredes,
mas era de formato irregular. Até a parede de projeção, que ocupava cerca de um terço da
área das paredes, não era plana, mas apresentava pelo menos dez ângulos. A música
estridente soava ininterruptamente na sala. Ressoava nos ouvidos dos dois amigos, e
quando estes acharam que era demais colocaram as mãos à frente das orelhas, o que não
representava um alívio completo. Acompanhavam constantemente o movimento lá
embaixo e fizeram o possível para registrar todos os detalhes.
Tahonka No resolveu fazer uma pergunta. Sabia que Sandal não gostaria, mas não
tinha alternativa. Só quem tem um objetivo pode conversar sobre as possibilidades
oferecidas pelos caminhos que levam a este objetivo.
— Sandal — chegamos onde queríamos. Alcançamos o destino. O que faremos
agora?
Sandal já se perguntara várias vezes a mesma coisa e já esperava que seu amigo
fizesse a mesma pergunta. Naquele momento não deu nenhuma resposta.
— Por aqui só encontramos grande número de servos — disse em tom indeciso. —
Não nos interessam. Encontramos os servos-mor do ídolo e a metade está doente,
enquanto a outra metade cuida dos doentes. Estou à procura do príncipe do “Enxame”, e
desconfio que não o encontrarei aqui. No momento estou sem destino. Só podemos fazer
uma coisa.
Sandal refletiu e sentiu que o ossudo também estavam refletindo.
— O que podemos fazer?
— Continuar procurando. Ver tudo que existe neste edifício — talvez ainda
acabamos encontrando a Good Hope. Aí teremos muita coisa para contar. Talvez
tenhamos sorte e encontremos o verdadeiro chefe na ponta desta torre.
— Você acredita nisso? — perguntou o ossudo em tom hesitante.
— Não muito — respondeu Sandal. — Mas o que podemos fazer? Ficar aqui?
— Não. É muito desconfortável.
— Sem dúvida — concluiu Sandal. — Por isso vamos abandonar logo este lugar
relativamente confortável e subir ao ponto mais alto do edifício. Talvez lá consigamos
ver mais.
— Talvez — disse o ossudo em tom cético.
Os dois andaram de quatro pelas galerias compridas. Pelo menos tinham ar puro e
fresco e nada de sujeira. A música que podia ser ouvida em todos os recintos do edifício
também os acompanhou durante a retirada. Entraram de novo no poço de energia,
ativaram o robô e subiram até que a máquina parou.
— Estamos na ponta do edifício — você não pode subir mais, parceiro — disse
Tahonka No com a voz firme.
— Vamos esperar para ver — respondeu Sandal e saltou da plataforma de
manutenção. Sentia-se um pouco melhor — podia agir. Pôs a mão por cima do ombro,
tirou as flechas e colocou-a sobre a corda do arco. Em seguida entesou o arco pela
metade e disse: — Você vai na frente?
— É claro que sim.
No lugar em que estavam não viam ninguém e a música saída das máquinas era
muito mais baixa. Tahonka No abriu uma escotilha, tomou muito cuidado com eventuais
alarmes, mas não aconteceu nada quando os dois entraram um depois do outro numa sala
cilíndrica de vidro. Estavam na ponta do estranho edifício — mais de mil e quinhentos
metros acima do solo do planeta.
— Aqui você pode sentir-se dono do planeta! — exclamou Sandal.
Do lugar em que estavam viam tudo. Enxergavam até os limites internos da esfera
energética brilhante. Podiam acompanhar mais ou menos seu caminho, mas já a praia à
frente da tela, do outro lado, no interior da ilha, era quase invisível.
— Nem pensar — disse Tahonka. — Basta que há semanas arriscamos a vida todos
os dias.
Ficaram parados muito tempo, contemplando o panorama arrebatador. Finalmente,
depois de cerca de uma hora, saíram da sala e foram parar numa sala redonda dez metros
abaixo. Uma surpresa lhes estava reservada.
Um ser que nunca tinham visto estava fechado num tubo de vidro. Dezenas de
milhares de fios, unidos em grossos cabos, terminavam no vidro, e na face interna deste
um número igual de agulhas apontava para o ser. A criatura estava dormindo.
— Ou está inconsciente — disse o médico de Gedynker Crocq.
Recuaram devagar para a parede e examinaram a estranha disposição das peças.
Havia uma “coisa” agachada numa poltrona de vidro, que tinha certa semelhança com
uma planta esquisita. Consistia de cabeça, seis membros e tronco — mas tinha-se a
impressão de que crescera em solo fértil. Só depois de alguns minutos os amigos
perceberam que uma névoa fina descia do teto da jaula de vidro, umedecendo todas as
flores, além dos galhinhos brancos muito finos.
O ser ficou nervoso.
— Você conhece alguma explicação? — perguntou o guerreiro.
— Não. Mas tudo isto deve ter uma finalidade muito importante no sistema deste
hospital.
O ser, uma espécie de superflor, parecia sentir sua presença.
As folhas e flores mexeram-se. Havia uma tela embutida na parede, cuja largura
correspondia mais ou menos a dez vezes a altura. Na tela só se viam desenhos coloridos,
que brilhavam do lado de fora, no muro, e mudavam constantemente. Outras cores, ativas
e malignas, apareceram e espalharam-se, subiram pelos muros e voltavam a descer,
devoraram a escala de cores calma e suave. Certamente a coisa que viam à sua frente
produzia as cores.
Tahonka No tentou descobrir uma explicação lógica.
— Posso estar enganado, mas tenho a impressão de que este ser vegetal misterioso
produz a música com suas atividades vitais. As mudanças de tom são reforçadas dentro
do edifício para transformar-se nos jogos de cores e na música.
Dissonâncias ásperas e fortes apareceram na sequência das vibrações. Expulsaram
os sons macios, embaladores. O interior do edifício parecia vibrar. Os movimentos da
planta ficaram mais nervosos; ela balançava em sua poltrona de vidro como se fosse
sacudida por uma tempestade.
No meio da projeção de cores apareceram gigantescas manchas negras, apagando os
véus coloridos.
— Temos de sair daqui, No! — gritou Sandal nervoso. — Senão eles vêm ver quem
perturbou a planta. Estamos em perigo.
— De fato.
Os dois saíram às pressas. Uma escotilha abriu-se e os amigos saíram para uma
escada que fazia parte de uma construção arrojada e fora do comum. As escadas e suas
ramificações pareciam uma árvore de vidro que crescesse num espaço oco
aproximadamente cilíndrico.
Depois de alguns segundos pararam na estranha escadaria.
— A música voltou ao normal — cochichou Sandal. — Ficou mais tranquila.
— Mas nem por isso tornou-se mais agradável — opinou Tahonka No.
As plaquetas que Tahonka No e Sandal usavam na testa continham uma cola que
parecia acalmar a pele irritada. Pelo menos nem percebiam mais que usavam este sinal de
servidão. Os micro-transmissores dentro dos pontos estavam funcionando, mas os dois
homens ainda não tinham sido localizados nem mesmo mecanicamente. Várias vezes
foram salvos simplesmente comportando-se como iniciados, mas não podiam contar com
a repetição desses acasos felizes.
Depois de pouco tempo a música voltou à sua força expressiva normal, que exercia
um poder curativo sobre os amarelos gordos.
— Vamos descer? — perguntou Sandal.
— Vamos. Olharemos atrás de cada porta que encontrarmos no caminho — disse
Tahonka No. — Mas temos de ser rápidos.
— Está bem.
Desceram correndo lado a lado por uma escada em curva; havia um segundo
caminho em cima de suas cabeças, e um terceiro embaixo da escada. O sistema era
semitransparente. Quando se encontravam mais uma vez junto à parede interna do
enorme cilindro. Tahonka No e Sandal pararam abruptamente. Um sinal forte se fez
ouvir, abafando a música.
— Só perceberam que a planta foi perturbada — esclareceu o ossudo.
— Esperaremos aqui. É uma excelente posição.
O tom duplo estridente doía em seus ouvidos. Bem embaixo deles, mais ou menos a
setenta metros, apareceram instaladores do “Enxame”. Saíram correndo de várias
aberturas, abriam e fechavam seus olhos numerosos e carregavam armas. Sandal e No
abaixaram-se e ficaram escondidos atrás do parapeito, mas continuaram visíveis como
vultos confusos. O material do parapeito era semitransparente.
— Estão subindo! — cochichou Sandal.
— Vamos defender-nos se formos atacados, mas não antes que o último esteja nas
escadas.
Enquanto os primeiros seres das árvores subiam correndo pelos planos inclinados,
as placas se fecharam atrás dos últimos coloridos.
— Lá vêm eles!
Vinham mesmo. Sandal ouviu de novo os gritos estridentes que tinham
acompanhado a luta em tomo da nave-cogumelo. O guerreiro de cabelos brancos ergueu-
-se devagar e entesou a corda do arco. Contou depressa. Eram mais de vinte seres das
árvores subindo pelas escadas com os oito pés parecidos com raízes. Foram-se
aproximando. Nervosos e gritando, brandiam as armas. Um deles viu Sandal, que estava
de pé.
— Vamos! Estão atacando! — disse Tahonka No em tom insistente e puxou a arma
de bolas de fogo.
Os primeiros tiros disparados quase sem nenhuma pontaria passaram chiando e
trovejando pela grande sala cilíndrica. O eco rolava e parecia abalar a estrutura da
escadaria. Sandal voltou a abaixar-se, correu dez passos para a frente e voltou a aparecer
em outro lugar. Disparou a primeira flecha.
Um dos instaladores do “Enxame” caiu ao chão gritando.
Sandal pôs a mão por cima do ombro, colocou outra flecha e atirou de novo. A
flecha acertou bem a cabeça de um dos seres das árvores. Enquanto o segundo
desconhecido tombava, o primeiro mudou de figura, foi ficando menor e encolheu na
morte.
— Cuidado! À sua direita! — disse o ossudo e atirou duas vezes em seguida.
As bolas de fogo despedaçaram dois atacantes. A música que enchia a sala
confundiu-se com os estampidos dos tiros. Sandal parecia estar em mais de um lugar ao
mesmo tempo. Abaixava-se, corria alguns passos quando abriam fogo contra ele e
voltava a aparecer de repente em outro lugar, fazia pontaria e atirava.
Fazia pontaria através da confusão de escadas inclinadas e em curva e atingia os
desconhecidos, que estavam cada vez mais perto. Eles também trataram de abrigar-se.
Sete instaladores do “Enxame” tinham sido mortos. O ossudo mudou de posição. Deu um
salto enorme e foi parar, cercado pelos tiros que estouravam sem parar, numa escada que
se cruzava mais embaixo, de onde atirou quatro vezes.
Quatro detonações ofuscantes transformaram a sala num furacão acústico.
Mais quatro atacantes morreram, enquanto Sandal matava o quinto e o sexto com
suas flechas.
— Para cá, Sandal! — gritou o ossudo e subiu que nem um relâmpago pela escada,
até o ponto mais alto. Sandal espiou por entre as escadas. Viu dois instaladores do
“Enxame” fugindo e correndo para as escotilhas pelas quais tinham entrado. Se
conseguissem escapar e alarmar os outros guardas, ele e No estariam perdidos.
O guerreiro puxou a corda até o arco encostar ao seu ouvido e atirou. A flecha
atravessou o corpo de um dos desconhecidos e a ponta de aço terconite fez um arranhão
no material da placa. A segunda flecha atravessou a sala uivando e matou o segundo
instalador. Sandal orientou-se depressa e subiu correndo para onde estava Tahonka No.
— Eles se esconderam — não acertei em nenhum — disse o ossudo.
— Atire para fazê-los sair do esconderijo — disse Sandal. — Aí eu os atinjo com
minhas flechas.
— Compreendi — respondeu Tahonka No.
Fez pontaria e atirou duas vezes. As bolas de fogo mortais brilharam perto dos
esconderijos de dois desconhecidos, expulsando-os de lá. As flechas infalíveis e quase
silenciosas de Sandal atravessaram o ar e mataram os desconhecidos.
Depois ficou tudo em silêncio.
— A música continua normal — cochichou Sandal. — Não há aquelas oscilações
loucas e reveladoras.
Se o pequeno grupo não estivesse equipado com aparelhos de comunicação, sua
falta não seria notada. Mas se existia a possibilidade de os sobreviventes alertarem
outros, então a situação se tornara crítica. Sandal sabia que tinham de terminar a luta
logo.
— Vou descer para pegar minhas flechas — disse em voz baixa. — Dê-me
cobertura.
Sem esperar resposta, o guerreiro desceu de novo pela longa escada em curvas,
atraindo a atenção de cinco sobreviventes. A bola de fogo saída da pequena arma de
Tahonka No matou um deles e Sandal abateu mais dois com suas flechas.
Em seguida tropeçou e caiu ao comprido nos degraus.
7

Dentro de alguns minutos a sala cilíndrica com suas plataformas, portas e escadas se
cruzando transformou-se num cenário de morte.
Vinte e dois instaladores do “Enxame” estavam mortos, não se ouvia mais o alarme
e Sandal corria de um lugar para outro para tirar as flechas dos cadáveres.
Finalmente, depois que terminou, colocou uma das armas energéticas bem ao lado
de um morto. A arma fazia parte do arsenal dos servos-mor.
Finalmente Sandal subiu correndo para onde estava Tahonka No. Respirava com
dificuldade e colocou a última flecha na aljava. Os dois olharam-se um tanto perplexos.
— E agora, amigo No?
Tahonka No refletia nervosamente. Precisavam sair da sala, mas de outro lado a
tentativa de examinar minuciosamente o interior do edifício fracassara. Tinham de
esconder-se de novo, desta vez muito melhor.
— Primeiro vamos voltar à galeria de manutenção — disse Tahonka No em voz
baixa. — Depois veremos o resto. Desceremos o mais depressa que pudermos — aqui em
cima os mortos logo serão descobertos.
— Vamos lá!
Os amigos voltaram a percorrer o caminho pelo qual tinham vindo. Chegaram à
galeria de manutenção, encontraram a plataforma de trabalho no mesmo lugar e desceram
cerca de quatrocentos metros. Não houve mais nenhum alarme, nenhuma notícia, nenhum
pânico e nenhuma mudança na música uivante, que enchia o edifício como um
ingrediente estranho. Os acordes maltratavam os nervos e aumentaram ainda mais a
irritação dos dois homens. No momento estavam fugindo.
Dali a uma hora estavam mais calmos, comeram e beberam um pouco e estavam
sentados na plataforma de trabalho da máquina robotizada.
— Fique longe — venere minha pessoa.
— Chegamos novamente perto de doentes e enfermeiros — disse Sandal em voz
baixa. — Está sentindo os comandos mudos?
— Também os sinto — respondeu o ossudo. — Mas além disso sinto que alguma
coisa mudou.
Sandal assustou-se. O tom de voz de seu amigo indicava algum perigo.
— O quê?
— Quieto! Não está ouvindo nada?
Sandal sacudiu a cabeça, fechou os olhos e tentou escutar alguma coisa dentro dele
mesmo. Não captava nada além dos débeis impulsos hipnóticos.
— Não — respondeu.
— Quer dizer que este comando só age sobre mim e sobre os que são da minha
espécie. Em outras palavras, sobre as pessoas de Gedynker Crocq — cochichou Tahonka
No. Ergueu a mão e fez sinal para que o amigo ficasse calado e não o distraísse. Cobriu
os olhos com as córneas das pálpebras, inclinou-se e concentrou-se ao máximo. Nem
seria necessário, pois as emissões aumentavam de intensidade. Alguém ou alguma coisa
dizia de forma insistente:
— Foram encontrados vinte e dois mortos. Mataram-se uns aos outros. Armas de
fogo proibidas foram usadas na casa da felicidade.
“Sabe-se que coisas estranhas estão acontecendo. Os animais de guarda mortos, o
servo com uma faca cravada no peito e agora a troca de tiros.
“Dirigimo-nos a todos aqueles que vieram de Gedynker Crocq.
“Saiam e tentem encontrar pistas suspeitas. Procurem intrusos, apesar de não
sabermos nada a respeito disso.
“O descanso e a cura dos servos-mor estão sendo perturbados.
“Isso é um crime que deve ser punido. Procurem! Mas não perturbem a paz e a
cura dos reconvalescestes.”
Aí terminava o apelo. Foi repetido duas vezes e concluiu:
— Se os intrusos ouvirem este apelo — desde que haja mesmo intrusos dentro desta
cúpula de proteção — será melhor que ponham fim à sua vida espontaneamente. Senão
pagarão pela blasfêmia e amaldiçoarão o dia em que nasceram.
Tahonka No acenou com a cabeça e disse em tom seco:
— Fomos descobertos, amigo.
Sandal levantou de um salto e arrancou a arma. Voltou a acalmar-se e perguntou em
tom insistente:
— Como? Conte!
O ossudo repetiu palavra por palavra o que acabara de ouvir. Sua mente trabalhava
com ansiedade. Se voltassem a esconder-se, deviam fazê-lo num lugar em que não
pudessem ser encontrados. Mas... e a vingança de Sandal?
— Quero fazer-lhe uma pergunta importante, Sandal Tolk — disse com a voz clara.
— Você queria entrar nesta cúpula para cumprir sua vingança. Não é isto?
— É isso mesmo, Tahonka No — respondeu Sandal furioso. Sabia aonde o ossudo
queria chegar com sua pergunta.
— Você viu que estas instalações só servem para o tratamento dos desconhecidos.
Como lutador nobre que é não quer exercer sua vingança em médicos e doentes. Logo,
neste ponto sua missão falhou. Não é verdade?
Sandal guardou a arma e respondeu em tom de desânimo:
— Sim, é verdade.
— Dali só podemos tirar uma conclusão. Temos de sair desta área perigosa porque
se ficarmos aqui não conseguiremos nada. Temos de procurar em outro lugar. Se
ficarmos aqui, acabaremos sendo presos.
Era um raciocínio arrasador, mas também era cem por cento correto. Sandal não
teve o que responder. Tahonka No sem dúvida tinha razão.
— Não podemos deixar que nos encontrem. Nisso você tem razão — disse Sandal.
— Conhece uma saída, parceiro?
— Sim e não.
— O que significa o sim? — perguntou Sandal em tom ansioso.
— Lutaremos para voltar pelo caminho que usamos para chegar aqui, até atrás das
montanhas.
— De forma alguma! — disse Sandal em tom sombrio. — Não resistiríamos a isso,
apesar de já conhecermos os truques.
— Quer dizer que só nos resta o outro caminho.
— Qual é?
— Podemos tentar um caminho que leve para fora diretamente daqui, do centro.
Não se esqueça do tubo energético e das espaçonaves decolando.
— Não me esqueci.
— É só o que posso dizer. Não vamos procurar o príncipe do “Enxame”, que de
qualquer maneira não poderá ser encontrado aqui. Vamos concentrar-nos em encontrar
um meio de sairmos daqui.
— Assim seja feito — disse Sandal em tom pensativo.
Saíram da plataforma, encontraram uma escotilha e depois de procurarem por
bastante tempo voltaram a entrar numa sala cheia de telas de imagem e aparelhos de som.
Já não estavam tão nervosos; já não se preocupavam em encontrar o caminho que deviam
seguir dali em diante. Fugiriam, mas por enquanto não sabiam como.
Esconderam-se e passaram três dias e três noites observando.
Quando os dois estavam dormindo, no quarto dia depois do tiroteio, a expressão da
música mudou de forma tão profunda que Tahonka No e Sandal acordaram e se
entreolharam perturbados.
— Uma coisa grandiosa está acontecendo — disse Tahonka No. Deixou-se cair da
rede e mexeu numa chave. A tela que exibia a imagem completa de uma sala bem perto
deles iluminou-se.
— Essa música... ainda nos roubará o pouco juízo que ainda nos resta — disse
Sandal deprimido.
O que estava ouvindo podia ser comparado com um pouco de imaginação com as
fanfarras e os tambores de uma marcha da vitória, tal qual tinham soado há tempos em
Exota Alfa. Uma música ruidosa, forte, ainda com os estranhos acordes parecidos com
uivos e miados, mas sem dúvida brilhante e muito clara.
— Olhe essa tela — um dos doentes. Aconteceu alguma coisa.
Tahonka No e Sandal ficaram de pé à frente da tela, contemplando o quadro
confuso que aparecia nela. Uma tremenda agitação reinava entre médicos e enfermeiros.
— Deixam o ser doente de pé, sozinho, e saem correndo. Alguma coisa deve ter
acontecido em outro lugar.
— Alguma coisa que os deixa fora de si de alegria.
— Parece que sim.
Os médicos de cor ocre e em forma de pera corriam de um lado para outro, tiravam
estojos de instrumentos das gavetas e mandaram que as pessoas de Gedynker Crocq lhes
trouxessem redes redondas. Deslizaram nas redes sobre faixas de gosma cintilantes,
mexeram numa chave e subiram meio metro. O fenômeno repetiu-se pelo menos
cinquenta vezes.
— Estão voando... estão voando para os elevadores energéticos que levam para
baixo. Devemos segui-los — disse Sandal em tom decidido.
— Vou com você.
Os médicos voavam para todos os lados. Os doentes que estavam sendo tratados
continuavam em suas esferas antigravitacionais. Os médicos voaram para dentro das
trilhas de raios e dentro de alguns segundos não puderam ser vistos mais.
— Para baixo, parceiro! — disse Sandal.
Os dois desataram as redes, enrolaram-nas, pegaram seus equipamentos e saíram
correndo para a galeria de manutenção. Desceram até o ponto em que tinham entrado
pela primeira vez naquele veículo estranho. Já conheciam o caminho. Dentro de alguns
minutos chegaram ao centro de controle, que estava vazio. Sandal vigiava a entrada,
enquanto o ossudo dedicava sua atenção ao que estava acontecendo.
— O que está vendo, amigo Tahonka? — perguntou Sandal.
— Vejo coisas muito interessantes. Já existe uma esperança de podermos cumprir
nosso plano. Mas não faça perguntas. É apenas uma impressão.
Os médicos saíram das aberturas do elevador energético. Reuniram-se com outros
médicos e enfermeiros que já estavam de vigia na grande sala, formando um círculo
compacto em torno de dois doentes pendurados nas esferas antigravitacionais. Os dois
amarelos pareciam curados.
Só então Sandal, que vigiava a entrada com a corda do arco meio entesada,
percebeu outra coisa.
— Aqui não se ouve mais a música — disse espantado.
Tahonka No prosseguiu:
— Acabam de desligar a projeção dos jogos de cores. Sandal arriscou-se a
abandonar seu lugar por alguns minutos para inclinar-se sobre o console. A música
silenciou, as cores tinham-se apagado e os dois seres curados andavam devagar pelo chão
liso, deixando para trás trilhas de gosma largas. O guerreiro examinava atentamente o que
se passava embaixo dele. A alegria dos médicos parecia ter atingido o auge.
— Quer dizer que estes rastros provam que os seres estão curados — disse Sandal.
— Para onde serão levados?
— O único que sabe é Y’Xanthymr.
Os dois seres curados corriam em círculo, balançavam os multiórgãos e deixavam
rastros. As costelas dos corpos que pareciam decepadas eram capazes de mover-se
novamente. Transportavam o corpo redondo para a frente e para trás. Um vozerio
tremendo alcançou os ouvidos dos dois amigos. Ninguém se interessava pelas máquinas e
aparelhos — todos concentravam seu interesse nos dois seres.
De repente Tahonka No agarrou o caçador branco pelo braço.
— Olhe! — cochichou nervoso. Apontou para baixo.
— É incrível! — disse Sandal.
Os dois corpos foram detidos em pleno movimento. Incharam devagar, quase
imperceptivelmente, foram ficando cada vez mais cheios e os corpos amarelos
desmancharam-se. A forma de pera dos amarelos foi perdida.
— E agora? Estão engordando. Os médicos estão cada vez mais alegres! — disse
Sandal em tom de espanto e virou-se devagar.
Viu a sombra de um desconhecido, encostou a corda do arco no queixo e gritou em
voz baixa:
— No! Atenção!
Um homem de Gedynker Crocq entrou na sala, provavelmente para mexer nos
controles. A flecha de Sandal atirou-o cinco metros para trás, matando-o
instantaneamente. Tahonka No virou-se, puxou a arma, mas o perigo já fora afastado.
Sandal arrancou a flecha do cadáver e disse enquanto levantava:
— Temos de chegar lá embaixo e ver o que está acontecendo.
— Concordo.
Saíram da sala de controle, desceram a toda por uma espiral e viram-se à frente de
uma escotilha fechada. Tahonka destrancou-a e abriu uma fresta de um palmo. Estavam a
apenas cinquenta metros do primeiro amarelo.
O barulho que os atingiu foi ensurdecedor.
Um dos médicos apontou para a direita. Dois campos antigravitacionais redondos
aproximaram-se e pararam perto dos seres que estavam inchando.
— Sandal — disse Tahonka em tom pensativo. — Não me mate, mas uma
lembrança de tempos antigos surge dentro de mim. Acho que estes gigantes flácidos
serão levados daqui. Ouvi isto não sei quando.
Sandal sobressaltou-se:
— Está aí nossa chance. Viajaremos com eles.
— Se for possível. É claro que eu o ajudarei.
Sobre os dois campos antigravitacionais que desciam lentamente quase até tocar no
chão havia dois tubos com cerca de vinte e cinco metros de comprimento. Eram
sextavados que nem os favos das abelhas de Exota Alfa. Não tinham tampa; podia-se
enxergar através deles.
— Certamente serão empurrados para dentro destes tubos — disse Sandal.
— Parece que sim.
Os médicos abriram os círculos que se tinham formado em torno dos dois amarelos
inchados, pegaram aparelhos estranhos e conduziram os amarelos para as aberturas dos
dois tubos. Os corpos deformados espalharam-se e entraram nos tubos como se fossem
uma massa viscosa.
— Vamos entrar! Vamos para perto deles! — gritou Sandal.
— Isso é uma loucura — respondeu o ossudo. — Não temos a menor chance.
Sandal sacudiu a cabeça.
Enquanto os corpos fluíam para dentro dos tubos, os médicos retiraram-se e voaram
em direção a uma eclusa energética. Os campos antigravitacionais giraram e uma das
aberturas apontou para os amigos. Camadas leitosas turvas começaram a juntar-se para o
lado do centro, a partir das extremidades.
— Vamos! Não seja covarde! — disse Sandal, atirou o arco sobre o ombro e deu
um salto para a frente depois de abrir a escotilha.
Por alguns segundos os dois amigos ficaram protegidos pelos tubos sextavados.
Tahonka No não pôde agir de outro modo: seguiu o amigo.
No momento em que encostaram na massa flácida do corpo amarelo, o véu fino se
fechou.
Ficaram invisíveis.
— Por enquanto não corremos perigo — observou Sandal satisfeito.
— Só enquanto a cortina não se abrir em outro lugar do planeta — disse o ossudo.
A cortina energética deixava entrar a luz amarela suave.
— Os desconhecidos estão de boa saúde, expandem-se e ficam maiores. Pelo ídolo,
o que significa isso?
Tahonka No e Sandal refletiram sobre a situação.
Sentiram que os dois corpos se movimentaram. Aliás, deduziram do movimento de
um deles que o outro também girava e em seguida voava para a frente. O júbilo e as
vozes altas dos médicos que acompanhavam o estranho transporte também atravessou a
camada fina.
Tudo fora feito como se houvesse muita pressa. Provavelmente os dois tinham de
ser afastados muito depressa do edifício e levados a outro lugar. Que lugar seria este?
— Temos três alternativas — disse Tahonka No. — Ou estes caras são levados a
outra região deste planeta, ou então serão transportados para outro lugar dentro da cúpula
energética ou até para outro planeta.
— Em qual das alternativas está pensando? — perguntou Sandal.
— Em todas — foi a resposta.
Examinaram seu novo esconderijo. O interior dos tubos sextavados estava equipado
com numerosas portinholas e gavetas nas quais se viam objetos e pacotes dificilmente
identificáveis.
O ser amarelo estava encolhido desajeitadamente no centro da rua e começava a
estender-se. Mas surpreendentemente os dois amigos não tinham medo de ser esmagados.
O tubo aumentou de velocidade e seguiu sempre em linha reta — não se sentia nenhuma
pressão de um ou outro lado. Sandal passou os dedos num gesto indeciso por teclas e
furos. Finalmente descobriu uma garrafa parecida com uma tela de imagem fosca. Não
perdeu tempo. Empurrou uma chave e dentro de dois segundos uma lente transmitiu uma
imagem do que se via à frente do tubo.
Parecia uma ponte de comando num veículo em alta velocidade.
O tubo acelerou.
— Somos transportados com estes amarelos — disse Sandal. — Uma coisa é certa.
Não pude realizar minha vingança no centro do campo energético.
Quando voltou a olhar para a tela, Sandal viu que os dois tubos sextavados se
aproximavam da eclusa que ficava entre o campo e a ponte energética.
A viagem alucinante continuou.
8

Sandal Tolk sentiu-se impotente. Ainda deprimido com a ideia de que apesar do
trabalho e do risco de vida não conseguida nada além de um punhado de informações.
Além disso teve de ver os dois tubos sextavados serem levados em voo rápido do centro
da cúpula até a eclusa energética.
Tahonka No, o ossudo, perguntou num tom que quase chegava a ser delicado:
— Está refletindo, Sandal Tolk?
Sandal apoiou-se em uma das seis “paredes” e empurrou o cabelo para a nuca com
todos os dez dedos das duas mãos. Acenou com a cabeça e finalmente respondeu:
— Acho que somos pobres idiotas ignorantes, apesar da capacidade de enfrentar
perigos.
Em seguida contemplou a tela e olhou para o chão, onde estava seu arco e a aljava
cheia de flechas.
— E isso mesmo. Você tem razão — mas também não tem, parceiro — disse
Tahonka.
Seu rosto também espelhava a perplexidade e a impotência. Tinham passado por
muitas coisas, e o que tinham pela frente seria ainda mais maravilhoso. Pelo menos isto
eles imaginavam.
— Por que não tenho razão?
— Porque saímos desta aventura muito mais inteligentes do que você imagina neste
momento. Você aprendeu, por exemplo, a compreender a ligação que existe entre telas e
chaves, entre condutores de energia e fusíveis, entre portas e alavancas que as abrem.
Transformou-se de um bárbaro selvagem num homem que pode sentir-se bem em dois
mundos, porque conhece ambos.
— Só conheço bem um mundo, amigo Tahonka — disse Sandal em tom sombrio.
— O mundo da luta, das armas e da sobrevivência.
— Você está enganado — respondeu o ossudo e olhou para a tela que ficava atrás
de Sandal e mostrava o interior da ponte energética e parte da selva.
— Não estou enganado.
Os dois contemplaram em silêncio o quadro que viam à sua frente.
Os tubos sextavados tinham parado. Estavam suspensos alguns metros acima do
nível inferior da ponte energética. Não se via nada nem ninguém. A situação encheu os
dois amigos trancados com seres flácidos e pulsantes de curiosidade e desconfiança. O
ser amarelo não se mexia.
— Estes são os servos-mor, Tahonka? — perguntou Sandal em tom penetrante.
Apontou com o dedo polegar por cima do ombro, para a “coisa” pulsante que estava
perto deles, exalando um cheiro aromático. Os impulsos que diziam: Fique longe, venere
minha pessoa!... tinham parado.
— Pelo que sei e pelo que vimos, este é um dos servos-mor — disse Tahonka No
em tom hesitante.
Sandal perguntou em tom pensativo:
— Está doente, foi curado e deixa atrás de si rastros que cochicham nos
pensamentos. Depois incha que nem uma fruta fermentando, é trancado neste esquife de
aço e levado para outro lugar. Acha que será morto?
O ossudo ergueu as mãos grandes e robustas, num gesto apavorado.
— Não! Podem fazer qualquer coisa, mas não matarão o amarelo. Sobre isto não
existe a menor dúvida.
Sandal examinou os recipientes com provisões embutidos nas seis paredes, olhou
para a tela, que continuava a mostrar a mesma imagem e soltou um gemido. Este tipo de
espera maltratava demais seus nervos.
Depois disso seus olhos se estreitaram. As sobrancelhas juntaram-se em cima do
nariz.
— Estou vendo alguma coisa! Está se aproximando — resmungou.
Tahonka No apoiou-se pesadamente sobre o ombro e olhou para a tela. Foi
contaminado pelo nervosismo cheio de expectativa.
— Estou vendo. É um planador com carga pesada. Os dois contemplaram o quadro
em silêncio.
O objeto chegava cada vez mais perto e, como era natural, tornava-se maior e mais
nítido. Era um dos veículos voadores do tipo que tinham visto muitos na ponte energética
depois de terem atravessado com muita dificuldade as numerosas zonas de morte.
“O que era feito do Thoen com sua prole engraçada?”, pensou Sandal e sorriu de
repente.
O planador aproximou-se em alta velocidade, freou e depois que desapareceu da
tela por estar parado perto dos dois tubos os esquifes e seu conteúdo voltaram a
movimentar-se. Levaram alguns minutos para percorrer a distância entre a Ilha da
Felicidade e o porto espacial construído na margem do mar interior.
Depois disso os tubos frearam.
— Ainda acabo enlouquecendo! — exclamou Sandal. — Já não compreendo mais
nada. Os tubos estão parados aqui, neste pavilhão esquisito.
Tahonka No acalmou-o conversando com Sandal sobre o lugar do porto espacial
que só tinham visto por um instante e onde devia ficar o pavilhão em que se
encontravam. Viram uma coisa. Um edifício parecido com as cúpulas cheias de objetos
de arte. De repente um único propulsor de nave rugiu em algum lugar.
Os tubos voaram lado a lado pouco acima do solo. Estavam sobre uma espécie de
pedestal branco e baixo.
Tahonka No voltou a acalmar Sandal.
— Sandal! — disse em tom enfático. — Acho que estamos numa pista importante.
Você me falou muitas vezes a respeito de seu mundo, que um dia foi atacado pela
deterioração mental. Você ligou este processo a meu mundo, isto é, ao “Enxame”. Pode
ser assim e pode não ser — não sei. De qualquer maneira acredito em você quando me
diz que também o homem chamado Rhodan, que você parece respeitar muito...
— É mais forte que eu — disse o homem de cabelos brancos. — Derrubou-me,
embora até agora eu tenha derrotado todos os adversários humanos.
— Rhodan lhe disse que todos os planetas pertencentes a vocês foram atingidos pela
deterioração mental. Talvez este processo tenha alguma ligação com os servos-mor.
— Talvez — disse Sandal. De repente notou que no interior do tubo já não estava
tão quente. Levantou a cabeça e descobriu por quê.
A cortina energética se abrira. Sandal apressou-se em dizer:
— Se os tubos forem abertos, é possível que alguém queira ver como estão os
amarelos. Se formos descobertos...
Sandal não completou a frase.
— Para nós isto significa que por enquanto temos de abandonar o esconderijo onde
estamos em segurança — disse Tahonka No. — Mas vamos voltar.
— Vamos voltar! — confirmou Sandal.
Quando ouviram vozes e passos cujo ruído foi refletido pelo teto abaulado, pegaram
suas armas e equipamentos e saltaram do tubo. Foram parar no chão do pavilhão e
correram para a direita, enquanto um grupo de desconhecidos se aproximava da esquerda.
— Vamos esconder-nos ali — cochichou o ossudo. — Não sei que mercadorias são
estas, mas elas nos protegerão.
Os dois abaixaram-se atrás de uma pilha enorme de objetos com aspecto de tijolos.
Eram os mesmos materiais que tinham visto nas gavetas dos tubos sextavados, mas ainda
não sabiam do que se tratava. Sandal e Tahonka não viam nada, mas em compensação
ouviam bem melhor.
— Não podemos deixar... — seguiu-se uma palavra incompreensível, intraduzível...
— mais de dois...
— Eu sei, médico dos servos-mor — respondeu uma voz diferente. — Mas os
propulsores da nave ainda não estão prontos. Dentro de dois... poderemos decolar.
— Excelente. Vamos ver os servos.
Sandal e Tahonka abaixaram-se e olharam-se. Tahonka acenou com a cabeça para
mostrar que podia explicar o sentido das palavras que Sandal não tinha compreendido.
Foram caminhando lentamente atrás da pilha, em direção à luz que penetrava na sala
semi-escura entre o chão e a parte inferior da cúpula baixa.
Finalmente alcançara uma pequena moita de arbustos, enfiaram-se embaixo das
plantas e deitaram de barriga, com as cabeças encostadas, mas cada qual olhando em
outra direção.
— Os dois tubos ficarão aqui cerca de uma hora e meia pela sua contagem do tempo
— cochichou Tahonka No. — Antes disso não podem ser colocados na nave.
Fitou o caçador como quem esperavam alguma coisa. Sandal fez-lhe o favor de
formular uma pergunta.
— Quer dizer que os tubos serão levados pela nave?
— Isso mesmo — respondeu Tahonka satisfeito.
— Só precisa de uma espaçonave quem quer sair do planeta, senão poderia usar um
planador — disse Sandal, continuando suas reflexões.
— Você acertou mais uma vez — respondeu Tahonka. — E daí?...
— Para nós será a salvação — cochichou Sandal Tolk, que de repente parecia
nervoso. — Quer dizer que sairemos do planeta com os dois amarelos. Sairemos em outra
região entre as estrelas.
Tahonka sorriu.
— É possível — disse. — O que faremos agora?
— Mais uma vez temos de esperar.
Esta pergunta e resposta já se tinham transformado num clichê. Os dois detestavam
as circunstâncias que os obrigavam a ficar passivos. Mas não havia nada que pudessem
fazer.
Sandal sacudiu a cabeça e disse em voz alta:
— Não vamos esperar coisa alguma, parceiro. Já que não pude exercer minha
vingança, não quero voltar de mãos vazias. E de repente tenho certeza de que encontrarei
Perry Rhodan e seus companheiros.
Os amigos levantaram devagar, resolutos e com um sorriso frio. Enquanto
levantava, o ossudo disse:
— Rhodan e Chelifer Argas, não é, amigo?
— É, sim. Vamos dar uma olhada no porto espacial.
Sandal e Tahonka levantaram a cabeça por cima dos arbustos verdes compactos que
os protegiam e olharam em volta. Viram à sua frente a maior parte do espaçoporto;
encontravam-se bem perto dele.
O porto tinha mais ou menos o desenho de um grande círculo cortando um círculo
menor. Em torno da grande superfície branca havia uma cerca alta de um material
parecido com arame com malhas gigantescas. Cabos grossos com isoladores amarelos
estavam ligados aos fios da cerca.
Na periferia da grande cerca havia cinco cúpulas de diversos tamanhos. Eram bem
brancas e muito baixas. Pequenas máquinas robotizadas deslocavam-se entre as cúpulas,
a nave espacial e um edifício comprido com muitas janelas de vidro, levando cargas de
várias cores e formas. Era tudo bem diferente do porto espacial de Exota Alfa.
Dois objetos dominavam o cenário.
Primeiro, uma daquelas naves-cogumelo que Sandal já conhecia e aprendera a
temer; depois, um mastro gigantesco que suportava uma cabine cilíndrica com estranhas
excrescências parecidas com olhos de peixe. Sandal chiou:
— Esta nave está repleta de instaladores do “Enxame”. São os seres que depois da
decolagem e quando morrem mudam de figura e ficam menores.
— Nossos amigos serão transportados nesta nave — disse Tahonka apontando para
a nave. — Gostaria de saber para onde.
Enquanto estavam de pé, examinando as instalações do porto espacial e gravando na
memória todos os detalhes, por insignificantes que pudessem parecer e avaliando a
posição do sol, sua atenção foi despertada.
Um grupo dos seres estranhos saiu do pé da torre de controle, a uns seiscentos
metros do lugar em que estavam.
— Segure o arco, No! — disse Sandal.
— Será um prazer.
Sandal entregou a arma ao amigo, tirou o binóculo e olhou por ele. Dali a instantes
assobiou entre os dentes, descansou o binóculo e deu-o ao amigo.
Enquanto Tahonka No olhava através das lentes, Sandal disse em tom ameaçador:
— São doze instaladores do “Enxame” levando um homem de seu planeta. Vêm
exatamente em nossa direção. Quais são suas intenções?
Tahonka viu que os traços fortes de seu companheiro de espécie estavam presos nas
costas. Parecia que os instaladores do “Enxame” lhe tinham amarrado as mãos e o
obrigavam a seguir à sua frente, para o limite do porto espacial. Parecia uma execução
planejada.
— Estão matando um médico de Gedynker Crocq, amigo No — disse Sandal em
tom exaltado. — Que acha disso?
No deu de ombros. Via-se por seu rosto que se concentrava ao máximo. O homem
natural de seu planeta não apresentava o ponto amarelo na testa. Isto também significava
alguma coisa.
— Não sei se é um médico, mas a maior parte dos médicos de meu povo coloca-se a
serviço dos servos-mor.
Sandal recuou devagar e saiu do meio dos arbustos.
— Vamos libertá-lo. Ele poderá dar-nos informações muito úteis. Vejamos o que
vão fazer com ele.
— Não teremos de esperar muito.
Era fascinante contemplar os movimentos dos seres das árvores para os quais
Sandal tinha preparado uma luta selvagem e uma derrota grave. O caçador lembrou-se do
planeta Teste Rorvic e de seu exército de robôs lutando em silêncio. Era estranho, mas
esta luta deixara-o intocado, não lhe dera a ideia de ter travado uma boa luta contra uma
superioridade de forças.
De todas as coisas que acabaria esquecendo, Teste Rorvic seria a primeira.
O grupo foi chegando mais perto, com os passos arrastados dos membros parecidos
com raízes sobre os quais se locomoviam os instaladores do “Enxame”. Empurravam-se
para a frente como se fossem plantas nômades andando depressa. O rosto do outro ossudo
não mostrava como se sentia e o que estava pensando.
Tahonka pôs a mão devagar em sua arma e cochichou em tom de dúvida:
— Isso cheira a perigo.
Realmente cheirava. Os dois homens tinham criado uma espécie de sexto sentido
para as situações perigosas. Olharam em silêncio e concentrados enquanto os doze
instaladores do “Enxame” levavam o homem de Gedynker Crocq entre dois pavilhões e
seguiam em direção à cerca energética. Passaram a uns cem metros dos dois intrusos.
— O que estão dizendo, Tahonka No? — cochichou Sandal.
Tahonka No tentou compreender algumas palavras ditas de tão longe. Sandal não
compreendera nada. Eles falavam muito depressa e em tons agudos demais. Sandal
começou a avaliar os ângulos de tiro e as distâncias, mas sabia que se fossem descobertos
não teria nenhuma esperança. Era mesmo um milagre ainda não terem sido encontrados.
— Estão falando de morte. Parece que ele não cumpriu seu dever — respondeu o
ossudo.
Dali a alguns minutos Sandal e No viram os instaladores do “Enxame” formarem
um semicírculo à frente do campo energético. O ossudo estava no centro, a vinte passos
da cerca. Sandal viu claramente pelo binóculo que seu rosto estava desfigurado pelo
medo de morrer. Um dos instaladores foi calmamente para perto dele e soltou as amarras
metálicas.
— Vão matá-lo! — gemeu Tahonka No.
— Ainda não está morto — contestou Sandal e pegou as flechas e o arco. O tempo
de permanência passava devagar; logo teriam de voltar aos tubos sextavados, aos
recipientes metálicos que serviam para guardar doentes.
O ser parecido com uma árvore voltou ao círculo e em seguida ouviu-se um ruído
áspero.
Quinze ou vinte animais brancos de cabeça de lobo saíram correndo do edifício
alongado, atravessaram a praça que nem um relâmpago em duas fileiras compridas e
pararam uivando e gemendo atrás do ser parecido com uma árvore. A coisa estava
ficando cada vez mais misteriosa.
— Será que querem que os animais de guarda o estraçalhem? — perguntou o
ossudo. — Não deixarei que isso aconteça.
Tahonka fez um movimento, mas o braço de Sandal avançou e empurrou-o de volta
para o meio dos arbustos. Sandal advertiu:
— Primeiro vamos ver o que acontece, se for tão forte como você, será capaz de
enfrentar alguns animais. Nós o ajudaremos, mas de maneira a não fazer barulho. Temos
mais a perder com ele — duas vidas, enquanto ele só tem uma.
Tahonka No engoliu a raiva.
— Você tem razão — disse.
Esperaram mais alguns minutos, depois um dos homens-árvore disse alguma coisa.
O homem de Gedynker Crocq gritou algumas palavras, e os animais parecidos com lobos
avançaram uivando. Aproximaram-se, formaram um círculo em torno do homem
condenado à morte e esperaram gulosamente. Finalmente um animal grande separou-se
dos outros, deu um salto enorme e antes de tocar no chão bateu no punho do ossudo.
Os instaladores do “Enxame” gritaram.
Os animais de guarda ganiram, uivaram gulosamente e partiram para o ataque. No
mesmo instante Sandal entesou a corda do arco. Em um único esforço enorme o caçador
de cabelos brancos disparou em um minuto exatamente vinte e duas de suas melhores
flechas, e com exceção de uma única todas foram mortais.
A primeira flecha passou zunindo pelo ar e atingiu o chefe da matilha. O projétil
arrancou o animal de cima do braço do desconhecido, e atirou-o no chão onde caiu sobre
dois animais e morreu numa poça de sangue, batendo as pernas.
A segunda flecha passou rente ao solo, Sandal mantivera o arco numa posição quase
horizontal, o que raramente fazia porque não permitia um tiro de campeão. A segunda e
também a terceira flecha mataram dois animais que se preparavam para atacar o ossudo
de trás. Ficaram deitados no chão e na confusão geral, durante a qual o ossudo segurava
um animal pelas pernas traseiras usando-o para golpear os outros, os instaladores ainda
não tinham percebido que havia pessoas estranhas escondidas de um lado deles.
O corpo de Sandal movia-se como um robô que trabalhasse depressa demais.
A mão direita subia em disparada, o cotovelo dobrava-se, os dedos tiravam uma
flecha da aljava e encostavam-na à haste do arco, puxavam-no pelo ar e encostavam a
ponta do arco na mão que o segurava. Em seguida a mão direita avançava enquanto a
esquerda mantinha a flecha encostada à haste do arco. Dali a meio segundo a corda do
arco batia ruidosamente na braçadeira esquerda.
Sandal executou este movimento vinte e uma vezes; a primeira flecha já estava
encostava à corda do arco quando ele começara.
Depois da décima quinta flecha os instaladores do “Enxame” perceberam que havia
estranhos interferindo. Puseram as mãos nas armas gritando, mas não viram os dois
homens.
Finalmente Sandal disse em voz baixa:
— Tahonka — corra até a cúpula e dê alguns tiros para desviar sua atenção. Depois
volte para cá. Combinado?
— Combinado. Aproveitarei a oportunidade para ver se o caminho que leva aos
esquifes de metal está livre.
— Muito bem. Rápido, No!
Tahonka No atirou-se no chão, rastejou de quatro entre os arbustos e saiu de dentro
do pequeno grupo de árvores perto da cúpula. Atravessou a distância na qual não havia
nada para protegê-lo em quatro pulos gigantescos e mergulhou na semi-escuridão
embaixo da cúpula.
Sandal sacrificou mais algumas de suas flechas insubstituíveis.
Fez pontaria nos lugares onde os instaladores do “Enxame” tinham sido mortos pelo
primeiro tiro.
Depois do terceiro tiro viu triunfante cinco bolas de fogo arrebentando com um
estrondo e desmanchando o pequeno grupo de instaladores.
O sobrevivente tratou de fugir, mas antes disso disparou dois tiros contra o
desconhecido ossudo de Gedynker Crocq.
9

Nos minutos seguintes Sandal Tolk provou que assimilara as lições do avô e se
transformara num lutador capaz de enfrentar um exército. Os músculos dos braços doíam,
as pontas dos dedos também, mas Sandal agiu com a rapidez de um relâmpago.
A flecha disparada a grande distância descreveu uma parábola aberta e atingiu o
instalador do “Enxame” na cabeça. A distância era de mais de duzentos metros.
Em seguida Sandal deixou cair o arco, saiu abaixado do meio dos arbustos e correu
em direção ao campo de batalha. Enquanto corria arrancou a faca afiada que trazia no
cano da bota.
Primeiro recolheu as flechas. Em alguns casos teve de fazer cortes nos corpos dos
cães de vigia para arrancá-las.
Olhou para o ossudo e viu que estava morrendo.
Segurando vinte flechas em uma das mãos e a faca ensanguentada na outra, Sandal
levantou.
— Pela estrela de púrpura — disse. — Não estão percebendo nada. Que povo
avesso à arte da guerra é este?
Virou a cabeça; uma figura esbelta movia-se que nem um raio entre os instaladores
do “Enxame”. Os microsseres tinham assumido sua microforma ao morrer, reduzindo o
tamanho para um vigésimo do que era. Sandal arrancou as flechas de seus corpos,
segurou as na mão e viu um movimento pelo canto dos olhos.
— No?
Era No correndo em direção ao grupo de arbustos, junto à extremidade da cúpula e
passando por máquinas robotizadas que zumbiam e equipamentos empilhados. No
mesmo instante alguns propulsores de espaçonaves uivaram. Parecia um sinal. Os dois
recipientes logo voltariam a movimentar-se.
— Depressa! — disse Sandal. — Não podemos perder tempo.
Tentava encontrar uma saída para o caso de os dois tubos serem levados sem que
pudessem esconder-se neles. Quando encontrou a saída, sorriu. Havia duas
possibilidades. Aquele era um dos “seus” dias. Parecia que tudo corria conforme ele
planejara. Sandal virou-se abruptamente, enfiou as flechas na aljava e bateu com a palma
da mão em algumas flechas, fazendo com que entrassem com um ruído leve para o meio
das outras.
— Tahonka No vai ficar contente — cochichou, levantou o corpo ensanguentado e
meio carbonizado do ossudo e carregou-o pelos ombros através da área livre, até o grupo
de arbustos.
Ali, onde não podiam ser vistos nem do edifício principal nem da cabine da torre,
descansou o pesado corpo ossudo.
De repente Tahonka No apareceu perto dele e ajoelhou-se. Colocou a mão com um
cuidado incrível na testa do desconhecido.
Em seguida disse uma coisa numa língua da qual Sandal não compreendia
absolutamente nada.
— Sou Tahonka No... — principiou.
O desconhecido puxou as pálpebras carnudas de cima dos olhos, piscou várias vezes
e respondeu com muito esforço, com a voz entrecortada e tão baixo que quase não pôde
ser entendido:
— Estou reconhecendo você, Tahonka, o proscrito... que ingeriu alimento
ofendendo os outros.
Tahonka No respirava com dificuldade.
— Quer dizer... que você é Recanti Tak... o médico que pensou demais?
— Isso mesmo — cochichou o outro. — Mandaram matar-me porque...
Dentro de alguns minutos sua vida chegaria ao fim. Tahonka e Sandal
entreolharam-se em silêncio, sem saber o que fazer.
— Você não cumpriu seu dever. Tentamos salvá-lo.
— Sim — cochichou Recanti Tak. — Eu percebi. Os servos-mor serão levados a
um planeta que nós...
Recanti interrompeu-se.
— Pergunte-lhes o que vai acontecer agora que eles começam a inchar — perguntou
Sandal nervoso.
Tahonka fez a pergunta, em tom insistente e voz alta. O ruído dos propulsores das
naves era cada vez mais forte. De repente silenciaram.
— Estão largados num planeta onde eles se...
— Como?
— Abandonam...
Era de desanimar. Tinham encontrado alguém que podia ajudá-los a arrancar o véu
que cobria os mistérios. E este alguém morria antes de poder responder aos seus
pensamentos e perguntas insistentes.
— Tahonka... coloque-me na sombra. Não quero morrer no sol... — cochichou Tak.
— Cumprirei seu último desejo — respondeu Tahonka.
Sandal não se lembrava de já ter ouvido alguém falar de uma forma tão suave e
delicada. Ajudou Tahonka a arrastar o corpo pesado para a sombra. O forasteiro morreu
no momento em que estavam descansando sua cabeça sobre um tufo de capim.
Sandal pôs a mão no braço do amigo.
— Temos de voltar aos nossos esquifes, No!
O amigo fitou-o por muito tempo com uma expressão triste, levantou e disse em
tom deprimido:
— Sim. Já vou. Não nos descobriram, não é?
— Ainda não! — disse Sandal em tom de alerta.
Os amigos abriram cuidadosamente um caminho entre os arbustos e olharam para
todos os lados quando chegaram perto da área livre que ficava ente a cúpula e as árvores.
Depois saíram correndo para a sombra. Escorregaram ao frear entre duas pilhas de
bagagens.
— Ainda não foi dado o alarme! — disse o ossudo surpreso. — Eles não entendem
nada de luta e conflito.
Sandal sacudiu a cabeça enquanto seguiam rapidamente e sem fazer ruído o
caminho pelo qual tinham vindo. Parecia não haver ninguém por perto, mas Sandal
achava que era melhor ser cuidadoso demais que de menos. Não queria assumir mais
nenhum risco.
— Vamos em frente?
— Vamos — respondeu Tahonka.
Finalmente, depois de terem percorrido vinte metros, viram os dois tubos
sextavados. Continuavam suspensos sobre o pedestal redondo e claro. Havia cinco seres
diferentes trabalhando lá, colocando objetos coloridos e de formas desajeitadas nas
gavetas. Um instalador do “Enxame”, um dos pequenos purpurinos, um ser em forma de
pera de paletó e suspensórios em cruz, um ossudo e um dos humanóides tão parecidos
com Sandal.
— Vamos esperar aqui — disse Tahonka. — Se os matarmos, correremos perigo.
Sandal respondeu cochichando:
— Se ficarem muito perto do esquifes, teremos de abrir caminho a tiros.
— Receio que seja isso mesmo — disse No.
Os dois ficaram de pé atrás de uma pilha de pacotes em forma de cubo, que um
carro robotizado aumentava de um lado e diminuía no outro. As máquinas traziam carga
do outro lado do porto espacial e colocavam-nas no edifício central alongado. Sandal
sacudiu a cabeça, parado entre os cubos, e refletiu sobre os motivos por que os robôs não
levavam a carga diretamente a esse edifício.
— Como detesto esperar! — gemeu o ossudo. — E a falta de consideração com que
mataram meu conhecido.
— Comparo os povos que vivem no “Enxame” com animais conduzidos
exclusivamente pelo instinto — disse Sandal. — As pessoas de Gedynker Crocq devem
ser uma exceção. Pelo menos você parece independente.
— Obrigado — disse Tahonka No em tom seco. — Mas isso não ajuda a resolver o
problema.
Sandal contestou em voz baixa e ficou atento ao instalador do “Enxame” que saía
dos tubos perto do ser amarelo em forma de pera. As tênues cortinas energéticas ainda
não tinham sido fechadas.
— Diz respeito ao problema. Tenho a impressão de que para os que falham só
existe uma solução: a morte.
Tahonka calou-se amargurado.
Lembrou-se do outro ósseo que queriam salvar e cujo cadáver estava estendido
entre os galhos de um arbusto redondo.
— Os outros três estão se afastando — disse Sandal.
Os amigos mudaram de posição. Caminharam devagar para o lado que ficava mais
próximo dos dois tubos de vinte e cinco metros de comprimento. Ninguém os viu ou
ouviu, somente os robôs trabalhavam perto deles sem tomar conhecimento dos intrusos.
Apenas se desviavam quando Sandal cruzava seu caminho.
— Vamos!
Os últimos três ajudantes subiram num pequeno robô suspenso. A máquina passou
por baixo da cúpula devagar e com um zumbido fraco. Ficou parada no centro do porto
espacial, exatamente entre a nave-cogumelo e a beira da cúpula. O pequeno ser purpúreo
desceu e ficou parado no sol. As máquinas da nave permaneciam em silêncio.
— Vamos entrar ali, Sandal! — disse Tahonka No.
Sandal e Tahonka correram em ziguezague entre as pilhas de materiais em direção
ao tubo escolhido, que era o da esquerda. Tahonka ajudou Sandal a entrar. Sandal
estendeu o braço e puxou o ossudo para perto dele.
Depois se agacharam. Não gostava da situação. Gostaria que a cortina transparente
se fechasse. Enquanto pudessem ser vistos correriam perigo.
— Vai começar! — disse o ossudo.
Os dois aparelhos subiram em suas almofadas antigravitacionais. Parecia que
tinham recebido provisões para os seres grossos e redondos. Quando Sandal e No tinham
entrado em seu esconderijo pela primeira vez, o amarelo enchia o espaço de três ou
quatro metros. Naquela altura já tinha seis a oito metros. Para os dois amigos ainda
restavam cerca de oito metros.
— Quando esta maldita cortina vai fechar-se? — cochichou Sandal nervoso.
— Não faço ideia.
Os dois tubos saíram lado a lado da sombra embaixo da cúpula e voaram
diretamente para o pequeno ser purpúreo, que segurava uma esfera com uma antena
comprida que balançava constantemente e observava os objetos com seus grandes olhos
desprotegidos. Uma suspeita terrível formou-se na mente de Sandal e fez seu coração
bater mais depressa.
O jovem guerreiro colocou o arco na vertical. Só sobravam alguns centímetros
acima da ponta onde estava presa a corda com três laços. Sandal pegou uma flecha, em
cuja ponta ainda se via o sangue seco de um dos animais de guarda.
— O que pretende fazer, maluco? — perguntou o ossudo perplexo.
— Só quero ser atento demais — respondeu Sandal.
Os dois tubos flutuavam no ar pouco acima do solo, deslocando-se em direção ao
ser purpúreo.
Sandal via perfeitamente o ser ossudo com a mão de couro e a estrutura de escamas,
inclusive as botas, o cinto, o cabelo. O pequeno purpurino saltou para dentro da esfera.
Quando as aberturas dos esquifes em forma de coluna estavam a vinte metros, apontou
nervosamente para um dos tubos.
A flecha de Sandal deixou o arco chiando, atingiu o pequeno ser no peito e atirou-o
cinco passos para trás.
Os esquifes continuaram flutuando para a frente, fecharam-se devagar e quando a
nave se erguia perto deles, Sandal ligou a tela.
A imagem da “popa” dos esquifes mostrou-lhes a grande praça banhada pelo sol do
entardecer.
No centro da praça, incrivelmente pequeno e começando a desmanchar-se, estava o
esquife do purpurino.
Os dois tubos sextavados subiram rapidamente na vertical, fizeram uma curva de
noventa graus e entraram num recinto. A imagem projetada na tela escureceu.
— É um compartimento de carga vazio!
— Tomara que continue assim — comentou Sandal. — O que menos queremos é
ter de lutar dentro da nave.
Suas últimas palavras foram abafadas pelo rugido dos propulsores. A escotilha do
compartimento de carga fechou-se, o corpo enorme da nave tremeu e os amigos notaram
que ela estava decolando. A nave subiu na vertical, acelerou e finalmente só restaram as
vibrações. O som ficou para trás.
Sandal sorriu aliviado e colocou o arco perto dele, em uma das seis “paredes”.
Começou a falar devagar.
— Fomos colocados a bordo desta nave, que acaba de sair do planeta Vetrahoon e
encontra-se em pleno voo. Por enquanto estamos em segurança, amigo Tahonka No. Por
acaso conhece o destino da nave?
Tahonka sacudiu a cabeça e espalhou as provisões que tinha trazido. Dois terços
tinham sido tirados das reservas dos servos-mor. Não se preocupavam mais com o que
poderia acontecer se descobrissem os cadáveres e ficassem sabendo que alguém
interferira a favor do ossudo.
— Não, não conheço — respondeu Tahonka No.
A nave-cogumelo foi aumentando a velocidade, sem que eles vissem ou sentissem e
acabou realizando uma transição. Os amigos sentiram o choque; mas Sandal já estava
acostumado aos choques provocados por transições e não desmaiou. O ossudo também
resistiu perfeitamente à transição.
— Até que enfim temos tempo para descansar e comer em paz — disse Sandal.
A iluminação de que precisavam era fornecida pela tela de imagem, que não
mostrava nada a não ser um compartimento de carga mergulhado numa penumbra
amarela.
— Descobri mais uma coisa — disse Sandal.
— Você vive descobrindo coisas — respondeu Tahonka No e entregou o cantil a
Sandal. — Que é desta vez?
— Tente lembrar quantas vezes deparamos com a cor ocre nestas últimas semanas
— disse Sandal. — É a cor do campo energético, a cor dos seres que estão perto de nós.
— Sandal apontou para a pele em pulsações do amarelo que ainda não tomara
conhecimento da presença dos dois amigos. — Os véus coloridos ao ritmo da música, a
cor das salas, das roupas, da luz, dos tubos... só se vê o amarelo.
— Isso justifica o nome conquistadores amarelos — disse Tahonka com a voz
pouco clara, enquanto mastigava.
— É possível.
Os dois comeram e depois dormiram.
Durante a viagem relativamente curta constataram mais uma vez que as paredes
internas do tubo sextavado estavam providas de recipientes das mais diversas espécies.
Muitos desses recipientes só tinham sido cheios há pouco tempo — embaixo da cúpula.
Parecia que os seres que inchavam deviam estar em condições de usar estas reservas para
alimentar-se. Mas por enquanto Sandal e Tahonka No só viam parte do corpo — não
viam nenhum dos órgãos múltiplos, nem os braços.
Estavam “do outro lado” do tubo.
Além de alimentos e bebidas parecia haver equipamentos para muitas finalidades
que os dois não conheciam, mas eles tiveram o cuidado de não abrir nem tocar em nada.
Ainda não estavam com fome, e não queriam provocar o alarme. Suprimentos, pequenos
aparelhos e instrumentos desconhecidos — os dois tentaram reconhecer do que se tratava,
mas não mexeram em alavanca, não abriram nenhuma embalagem.
Só a tela de imagem funcionava ininterruptamente.
A energia de que precisava parecia ser gerada no próprio tubo sextavado. Houve o
segundo choque de transição e a nave preparou-se para pousar. Os dois amigos
acordaram e prepararam-se para mais uma vez defender a vida.
A tela mostrou, sem que Sandal tivesse tocado em qualquer controle, a imagem de
um planeta se aproximando.
Sandal tocou com a mão em Tahonka No e disse:
— Percebo pelo brilho do espaço que nos encontramos dentro do “Enxame”. É sua
área, amigo. Reconhece este planeta?
O ossudo respondeu em voz baixa e num tom pensativo:
— Conheço as fotos e as especificações de muitos planetas. Dê-me algum tempo
para pesquisar a memória.
— É uma pena que não estou doente — disse Sandal. — Gostaria que você cuidasse
de mim.
— Para mim basta — resmungou No — que tive de salvar algumas vezes sua vida
indigna, anão.
Os dois gargalharam enquanto a nave caía em direção ao planeta. Sandal teve a
impressão de que tinham uma visão direta do quadro.
A nave-cogumelo percorreu os últimos quilômetros na atmosfera em posição
horizontal, com a parte superior redonda com o disco de fuga para a frente.
Mas nesse planeta voariam mais devagar, para não causar estragos.
Afinal, estavam no interior do “Enxame”.
— Estamos no planeta Cormathytus Corson — disse Tahonka No. — Trata-se de
um mundo em que posso viver.
— Logo, também posso viver nele — disse Sandal. — Vamos descer aqui?
— Talvez tenhamos uma oportunidade para isso — respondeu o ossudo. — Se bem
que tenho minhas dúvidas.
A nave pousou com um barulho tremendo num porto espacial retangular. Os amigos
viram a imagem aérea. Finalmente as máquinas silenciaram. O silêncio deixava as
pessoas atordoadas. A escotilha do compartimento de carga abriu-se e a imagem
projetada na tela mudou abruptamente.
Sandal agarrou o braço do amigo e perguntou em tom exaltado:
— Pela estrela purpúrea! O que é isso lá embaixo, Tahonka?
Os dois contemplaram a tela. A cortina energética não se abriu; logo, continuavam
trancados. Mas por outro lado também não seriam descobertos.
Viram uma gigantesca superfície metálica, maior que a espaçonave na qual tinham
viajado. Parecia a parte inferior de uma nave ou os alicerces de um edifício gigantesco.
Sandal tinha certeza de que se tratava de uma obra inacabada, pois havia um andaime em
forma de favos, mais alto até que a nave na qual se encontravam.
Um sol matutino iluminava a estrutura.
Parecia ser mais alta que a montanha mais alta do planeta.
— Nossa odisséia só está começando. Fiz bem em dar por encerrada minha vida
quando encontrei você! — disse Tahonka No em tom sombrio.
— Ainda estamos vivos! — respondeu Sandal.
10

Parecia que o planeta Cormathytus Corson (pelo menos a parte que aparecia na tela
e que os dois amigos podiam ver) era um mundo de oxigênio florescente, belo e pouco
habitado. Ficava dentro do “Enxame”, a misteriosa caravana cósmica cujo conteúdo nem
mesmo os seres que viviam dentro dela conheciam.
À frente da nave erguia-se a estrutura, mais um enigma para Sandal e Tahonka.
— Como faremos para sair daqui? — perguntou Sandal.
— Não sairemos — respondeu Tahonka laconicamente. — Por que haveríamos de
fazê-lo?
— Aquela coisa imensa já está me dando medo — confessou Sandal. — É uma
construção ainda mais horrível que o rei dos edifícios em Vetrahoon.
Sandal dizia a verdade. À sua frente, numa altura que a vista não alcançava, erguia-
-se a montanha de andaimes metálicos parecida com um favo e nascida da fantasia
doentia de um pintor que sofria de uma doença chamada gigantomania. Mais alta que
uma montanha gigantesca, a estrutura atingia a extremidade inferior do sol que lançava
milhares de reflexos nas aberturas em ângulo. Sandal teve um calafrio, virou o rosto e
estendeu a mão.
Tocou no campo energético leitoso.
— Nada.
O campo não cedia, mas tocar nele não doía. Provavelmente só podia ser ligado e
desligado do lado de fora.
— Se pelo menos um de nós soubesse o que significa tudo isso — disse Sandal.
— Não posso fazer nada — o outro ossudo poderia ter dito.
O outro ossudo estava morto.
Os amigos ainda tentavam descobrir a finalidade do gigante de aço quando os tubos
voltaram a movimentar-se. Subiram devagar, giraram ligeiramente e voaram lado a lado
sobre uma almofada antigravitacional.
A estrutura formada por inúmeras cavernas enfileiradas aproximou-se, ficando
maior e mais nítida. Sandal assustou-se ao ver que se tratava de vãos hexagonais dentro
da estrutura.
— Eu não seria capaz de imaginar, — disse perturbado — mas os dois esquifes
cabem nos buracos. Será que ficaremos presos de novo, Tahonka?
— Não posso fazer nada — disse o ossudo.
Lembrou-se ligeiramente que a estrutura talvez fosse uma espaçonave que
continuaria a transportar os dois amarelos cada vez mais gordos. Mas outros pensamentos
ocuparam sua mente, e o ossudo esqueceu a ideia. Os dois esquifes de metal afastaram-se
um pouco.
O outro recipiente sextavado subiu um pouco mais, procurou um buraco pelo qual
pudesse passar e foi entrando no vão.
O tubo no qual estavam presos os intrusos desceu um pouco, voltou a procurar ao
longo de uma linha transversal e parou.
— É nossa vez.
“Felizmente”, pensou o jovem guerreiro, “estamos do lado em que o colosso está
aberto. Quando o campo defensivo se abrir, poderemos arriscar a descida pela face
dianteira. O tubo entrou mais ou menos na terça parte inferior da estrutura em forma de
favo.”
De repente o zumbido ligeiro parou.
Sandal e Tahonka No olhavam ansiosamente para a tela, que mostrava a espaçonave
e a agitação em torno dela. Estavam nervosos, à espera de um tempo a respeito do qual
não sabiam nada. Estavam completamente indefesos.
Mais uma vez esperaram. Sandal praguejou.
***
O que aconteceu depois tinha algo a ver com o conquistador amarelo, com os
servos-mor que aumentavam de tamanho.
Ele se espalhava para ambos os lados sem tomar conhecimento da existência de
Sandal e Tahonka No. Sua pele amarela esticou-se e chegava cada vez mais perto dos
dois amigos. Incomodado, Sandal escorregou alguns metros para o outro lado.
Só dispunham de cinco metros entre a pele do amarelo e o campo defensivo.
Dali a alguns minutos a estrutura metálica estremeceu.
— É uma nave! — gritou o ossudo com a voz estridente.
— Uma nave decolando conosco a bordo.
A estrutura balançava e tremia cada vez mais. As vibrações e ruídos das máquinas
propulsoras transmitiam-se através do metal. Vinham da grossa placa do piso, que Sandal
acreditara ser a estrutura inferior de um edifício. A estranha nave-favo subiu devagar, o
barulho aumentou, e finalmente houve uma decolagem rápida através das camadas
atmosféricas do planeta.
Sandal estava contente porque as cortinas energéticas não tinham sido abertas. O ar
rarefeito e depois o vácuo do espaço teriam matado os dois amigos.
Quando o voo não foi acompanhado por ruídos, sendo marcado somente por
vibrações persistentes, o amarelo voltou a mexer-se.
A carne espumosa pulsava embaixo da pele, e o tecido parecia emitir uma série
longa de sons curtos e agudos. Doíam nos ouvidos dos dois amigos, da mesma forma que
a música estridente no planeta Vetrahoon.
— Ele grita porque está feliz por estar voando ou porque nos descobriu? —
perguntou-se Sandal em voz baixa e pôs a mão na arma.
— Isso não importa — respondeu o ossudo. — Olhe para a tela!
Muitas espaçonaves acompanhavam o estranho veículo de transporte. Parecia que
esperara em Cormathytus Corson pelos dois recipientes hexagonais, pois o transporte
espacial tivera início logo após a entrada dos tubos. A nave correu durante horas pelo
espaço. Sandal percebeu que a luz de muitos sóis vinha sempre de direções diferentes.
— Tahonka — disse. — Parece que esta nave-favo vai abandonar o “Enxame”.
Assim teremos oportunidade de entrar em contato com Rhodan e Atlan.
Depois de mais algumas horas viram o gigantesco campo energético que cobria uma
parte insignificante do gigantesco “Enxame” abriu-se num lugar.
A nave-favo e os veículos espaciais que a acompanhavam passaram pela fresta
alongada sem reduzir a velocidade.
Depois disso Tahonka No e Sandal sentiram uma dor leve causada pela pressão.
— Saímos do “Enxame” — disse Sandal e esfregou entre os dedos da mão direita a
esfera de coral que trazia presa à orelha.
— De fato. Devemos armar-nos de muita paciência — disse o ossudo.
Sandal, que estava agachado no chão, apoiou-se em uma das seis faces do tubo e
começou a desenrolar a tira de couro que protegia o arco do cabo.
Tirou o registro do clã, desenrolou-o, voltou a enrolá-lo em parte e tirou de uma
repartição lateral da aljava um estilete que recebera de presente de Chelifer Argas, a
moça de olhos verdes.
Enquanto Tahonka No começava a examinar seus trajes e seu equipamento, para
não morrer de tédio, Sandal começou a escrever.
***
Do registro do clã dos Crater.
“Hoje o pequeno relógio em minha pulseira versátil, que trouxe da Good Hope II,
indica o dia dezenove de março do ano 3.442 segundo a contagem de tempo de meus
amigos terranos. Tenho a impressão de que uma fase importante de minha vida foi
encerrada.
“Continuo esta crônica, porque tenho muito tempo. Não sei exatamente quanto é;
podem ser horas, dias ou semanas.
“O fato é que dei uma volta enorme para descobrir a verdade a meu respeito. Segui
pela vereda da vingança, que é estreita e cheia de perigos. Encontrei um amigo: Tahonka
No, também conhecido como o ossudo. Tive de reconhecer que não é nada fácil exercer a
vingança. Ela me fez passar milhares de perigo, entrar na ilha em Vetrahoon — e sair
dela. Até saí do ‘Enxame’.
“Logo, tenho de adiar minha vingança.
“Devo iniciar a tentativa de encontrar o príncipe do ‘Enxame’ de um outro ângulo.
Talvez tenha de estar mais bem equipado e com recursos diferentes, embora meus
equipamentos tenham passado por todas as situações.
“Não perderei de vista o meu objetivo. Vingança pelo castelo Crater, pelo avô
Sandal e por todos os que morreram.
“Talvez volte a encontrar-me com Atlan e Chelifer, é possível que fora do
‘Enxame’ consiga alcançar Rhodan com meu rádio para pedir ajuda.
“Tenho saudades da moça de olhos azuis e de meu amigo Atlan, que me ensinou
tantas coisas, sem as quais nunca teria completado vivo o caminho para Vetrahoon.
“Faço uma pausa...”
Sandal virou-se para Tahonka No e olhou por muito tempo nos olhos leitosos dele.
O semicrepúsculo no interior do recinto sextavado, com a pele do amarelo pulsando,
transformava os rostos dos dois em máscaras macilentas.
— Compreendo o que está acontecendo? — perguntou Sandal ao amigo.
Tahonka respondeu devagar:
— A única coisa que compreendo é que grande número de conquistadores amarelos
ou servos-mor está sendo transportado para um planeta que dá volta em tomo de seu sol
fora do “Enxame”. Alguma coisa vai acontecer nesse planeta.
Sandal tirou a conclusão lógica mais evidente.
— Quer dizer que a deterioração mental tem alguma coisa a ver com isso. Os débeis
mentais que habitam os planetas pertencentes ao meu mundo não devem ver nem
perceber que uma porção de amarelos chegam lá... A propósito, o que vão fazer nesses
planetas?
Tahonka No deu uma risada sem graça e resmungou:
— Espalham trilhas de gosma que irradiam certo comando. É só o que sei. Além
disso acredito que no planeta os guardas vigiarão atentamente dentro das naves o colosso
cheio de amarelos inchados, assim que a nave-favo tiver pousado. Por mais que force a
fantasia, não consigo imaginar mais que isto.
Sandal acenou com a cabeça e continuou a escrever.
“...e prossigo no registro, mostrando o que penso.
“Tiraremos um bom sono e examinaremos nossas armas. Depois do pouso haverá
um pouco de movimento, mas já estamos cuidando disso. Prefiro não usar agora minha
pulseira para pedir socorro — a pequena nave de Rhodan seria destruída pelas naves da
escolta. No planeta nossas chances serão melhores.
“E faço votos de que dentro de pouco tempo possa cantar minhas canções aos pés
de Chelifer Argas.”
O jovem guerreiro guardou o estilete na aljava, avaliou com tristeza a quantidade
reduzida de flechas que lhe restava e voltou a enrolar o registro do clã em torno do cabo
do arco.
Em seguida fechou o envoltório de couro, certificou-se de que estava bem firme e
deitou.
Esperou... e começou a sonhar.
Que nem um filme tridimensional muito vivo, as aventuras dos últimos tempos
desfilaram diante de sua mente. Quando acordou depois de ouvir os gritos do amarelo e
os roncos do amigo, a última imagem que teve em sonho foi a da moça chamada
Chelifer.
Sandal Tolk sorriu.

***
**
*

Enquanto Sandal Tolk e Tahonka No abandonam o


“Enxame” e iniciam o voo que leva ao desconhecido,
um planeta começa a morrer.
Primeiro são os seres humanos que contribuem
para a catástrofe — mas os conquistadores vindos do
“Enxame” completam o caos...
Leia a história no próximo volume da série Perry
Rhodan, cujo título é Os Últimos Dias das Amazonas.

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